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Direito das Obrigações I

Apontamentos

Luís Manuel Costa


Ano Letivo: 2023/2024
3.º ano
Direito das Obrigações
Aviso

Estes apontamentos foram realizados com base nos manuais de Direito das
Obrigações dos professores ANTUNES VARELA E MENEZES LEITÃO.

A consulta destes apontamentos não dispensa a consulta dos manuais de


referência da cadeira Direito das Obrigações lecionada pelos senhor professor,
Doutor Alberto Sá e Mello, e pelo senhor professor José Nuno Aguiar, na
Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias – Centro Universitário de Lisboa.

Bom Estudo!

Luís Manuel Costa


Ano Letivo: 2023/2024
3.º ano
Direito das Obrigações
INDÍCE
Aviso........................................................................................................................ 2
1. O principio da autonomia privada ............................................................ 6
1.2. A Liberdade Contratual e os seus Conteúdos .................................. 7
1.3. Restrições à Liberdade Contratual .................................................... 8
1.3.1. Generalidades...................................................................................... 8
1.3.2. Restrições à Liberdade de Celebração ........................................... 9
2. O principio do ressarcimento de danos .................................................. 10
Conceito e Estrutura da Obrigação ................................................................ 12
1. Generalidades........................................................................................... 12
2. Posição adotada por MENEZES LEITÃO ............................................ 13
Características da Obrigação .......................................................................... 14
3. Mediação ou colaboração devida ......................................................... 16
4. A relatividade ........................................................................................... 16
5. A autonomia .............................................................................................. 18
6. Conclusão .................................................................................................. 18
Distinção entre Direitos de Crédito e Direitos Reais ................................. 19
1. A distinção entre direitos de crédito e direitos reais....................... 20
2. A questão dos direitos pessoais de gozo.............................................. 21
Objeto da Obrigação: A Prestação .................................................................. 23
1. Delimitação do conceito de prestação ................................................. 23
2. Requisitos legais da prestação .............................................................. 23
2.2. Possibilidade física e legal ................................................................. 24
2.3. Licitude .................................................................................................. 25
2.4. Determinabilidade ............................................................................... 25
2.5. Não contrariedade à ordem pública e aos bons costumes ........... 25
Complexidade Intra-obrigacional e os Deveres Acessórios de Conduta 26
Modalidades de Obrigações ............................................................................. 28
1. As obrigações naturais. Problemática da sua inserção no conceito
de obrigação. .................................................................................................... 28
2. Classificação das obrigações em função dos tipos de prestações .. 30
2.2. Prestações fungíveis e prestações infungíveis ............................... 31
2.3. Prestações instantâneas e prestações duradouras ....................... 32
2.4. Prestações de resultado e prestações de meios ............................. 34
2.5. Prestações determinadas e prestações indeterminadas .............. 34
2.5.2. As obrigações genéricas .................................................................. 35
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2.6. As Obrigações pecuniárias ................................................................. 36
CONTRATOS, GENERALIDADES ................................................................... 37
1. Noção de contrato .................................................................................... 38
2. Análise jurídica do conceito. Princípio voluntarista (solus
consensus) ........................................................................................................ 38
3. Conceção normativista ou precetivista do contrato ........................ 40
4. As relações contratuais de facto ........................................................... 40
5. Formação do contrato sem declaração de aceitação ........................ 41
6. A disciplina legislativa dos contratos. Princípios fundamentais por
que se rege. ....................................................................................................... 43
7. O principio básico da liberdade contratual. ...................................... 44
8. A liberdade de contratar e as suas limitações ................................... 45
9. A livre fixação do conteúdo dos contratos; limitações. .................... 49
10. Contratos de adesão, como limitação de facto à liberdade
contratual. ........................................................................................................ 50
11. A responsabilidade pré-contratual, a culpa in contrahendo e o
principio da boa-fé.......................................................................................... 52
12. Contratos típicos (nominados) e contratos atípicos (inominados).
54
1. Noção .......................................................................................................... 56
2. Junção, união e coligação de contratos .............................................. 57
3. Modalidades de contrato misto............................................................. 58
4. Regime ....................................................................................................... 59
5. Teoria da absorção .................................................................................. 59
6. Teoria da combinação ............................................................................. 59
Contratos com Eficácia Real ............................................................................ 60
1. Noção .......................................................................................................... 60
3. Reserva da propriedade (pactum reservati dominii). ...................... 61
Contrato-Promessa ............................................................................................ 62
1. Noção e regime aplicável. O principio da equiparação ................... 62
2. Modalidades de contrato-promessa ..................................................... 64
3. Forma do contrato-promessa ................................................................ 64
4. Transmissão dos direitos e obrigações emergentes do contrato-
promessa ........................................................................................................... 67
5. A execução especifica ............................................................................. 67
6. Sinal e antecipação do cumprimento .................................................. 69
7. Funcionamento do sinal. O regime do art.º 442.º............................... 71

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8. Funções do Sinal ...................................................................................... 72
9. A atribuição do direito de retenção ao promitente que obteve a
tradição da coisa ............................................................................................. 72
10. Eficácia real do contrato-promessa .................................................. 73
Pactos de Preferência ....................................................................................... 74
1. Conceito ..................................................................................................... 74
2. Figuras próximas ..................................................................................... 75
3. Requisitos e Efeitos ................................................................................. 75
4. Exercício do direito de preferência ..................................................... 76
5. Violação da preferência: ação de indemnização ou de preferência.
76
6. Venda da coisa (objeto da preferência) juntamente com outras. .. 77
7. Pluralidade de Preferentes. Notificação feita pelo obrigado à
preferência e notificação feita por um dos preferentes aos outros...... 78
8. Natureza jurídica dos pactos. ............................................................... 79

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1. O principio da autonomia privada


1.1. A Autonomia Privada e o Negócio Jurídico
Tecnicamente, deve referir-se que as regras jurídicas caraterizam-se pela
generalidade e abstração, pelo que elas não podem ser criadas por atos dos privados.
O que os privados criam são comandos, que só para eles vigoram. A autonomia
privada é assim a possibilidade de alguém estabelecer os efeitos jurídicos que se irão
repercutir na sua esfera jurídica.

A autonomia privada não se confunde com o direito subjetivo. Na autonomia privada


existe uma permissão genérica de conduta, porque a todos os sujeitos ada ordem
jurídica é reconhecida esta possibilidade de produção de efeitos jurídicos, não
havendo nenhum que dela seja excluído. Por isso, se pode dizer, seguindo MENEZES
CORDEIRO, que a autonomia privada é uma “permissão genérica de produção de
efeitos jurídicos”. A autonomia privada consiste assim num espaço de liberdade, já
que, desde que sejam respeitados certos limites, as partes podem livremente
desencadear os efeitos jurídicos que pretendem.

A autonomia privada é assim a liberdade de produção reflexiva de efeitos jurídicos,


na medida em que os efeitos jurídicos produzidos irão repercutir-se na esfera dos
sujeitos que os produzem. No entanto, essa produção reflexiva de efeitos jurídicos
depende da utilização de um instrumento jurídico especifico, ao qual convém fazer
referência: o negócio jurídico.

É importante fazer referência à distinção entre negócio jurídico e outros factos


juridicamente relevantes. O facto jurídico é todo o facto que produz efeitos
jurídicos. Estes, por sua vez, dividem-se em factos jurídicos stricto sensu (os que não
resultam de qualquer comportamento humano voluntário, como o decurso do tempo
ou a morte) e atos jurídicos, que são aqueles em que existe um comportamento
humano voluntário, sendo em função dele que se produzem os efeitos jurídicos. No
âmbito dos atos jurídicos há que distinguir, consoante a maior ou menor liberdade
de produção de efeitos jurídicos, entre atos jurídicos simples e negócios
jurídicos. Nos atos jurídicos simples existe apenas a liberdade de celebração, uma
vez que os seus efeitos resultam imperativamente da lei. Pelo contrário, nos negócios
jurídicos existe tanto liberdade de celebração como de estipulação, já que as partes
não apenas têm a possibilidade de decidir celebrar ou não o negócio, mas também
podem determinar quais são os seus efeitos jurídicos.

Os negócios jurídicos correspondem por esse motivo à forma preferencial de exercício


da autonomia privada, atenta a liberdade de produção de efeitos jurídicos que os
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carateriza. Os negócios jurídicos subdividem-se em negócios jurídicos unilaterais e
bilaterais ou contratos. Quer nos negócios jurídicos unilaterais quer nos contratos as
partes exercem amplamente a autonomia privada, determinando os seus efeitos
jurídicos.

Quanto à constituição de obrigações, a lei atribui primazia aos contratos, referindo o


art.º 405.º CC sob a epígrafe “liberdade contratual” simultaneamente a liberdade de
celebração de contratos, a liberdade de seleção do tipo negocial (que permite quer
escolher contratos diferentes dos tipos legalmente consagrados, quer inclusivamente
celebrar contratos misturando regras oriundas de tipos legais diferentes) e a
liberdade de estipulação (já que as partes podem incluir no contrato as clausulas que
melhor lhes aprouver).

1.2. A Liberdade Contratual e os seus Conteúdos

O que carateriza o contrato enquanto negócio jurídico é que ambas as partes estão
de acordo em relação aos efeitos jurídicos produzidos, estabelecendo assim, através
de duas declarações negociais harmonizáveis entre si, uma disciplina jurídica comum
com repercussão nas respetivas esferas jurídicas. Esta autovinculação de cada uma
das partes é sempre, segundo a doutrina fundamental do contrato, um ato de
liberdade, considerando-se que o contrato se baseia sempre na livre determinação de
cada uma das partes, uma vez que exige o consenso de ambas para se poder formar
(art.º 232.º). A liberdade contratual é assim a possibilidade conferida pela ordem
jurídica a cada uma das partes de autorregular, através de um acordo mútuo, as suas
relações para com a outra, por ela livremente escolhida, em termos vinculativos para
ambas (art.º 406.º/n.º1). a liberdade contratual é a parte mais importante da
autonomia privada, enquanto principio fundamental do Direito das Obrigações.

Conforme se referiu a liberdade contratual admite tradicionalmente a liberdade de


celebração (possibilidade que cada uma das partes tem de livremente decidir se
quer celebrar ou não o contrato e com quem, e, consequentemente, a possibilidade de
propor ou não a celebração do contrato e aceitar ou rejeitar, sem constrangimentos
de qualquer ordem, uma proposta de contrato que lhe seja dirigida); a liberdade de
seleção do tipo negocial (a não limitação das partes aos tipos negociais
reconhecidos pelo legislador; as partes podem livremente escolher os contratos que
entenderem, mesmo que o legislador ignore totalmente a categoria escolhida
[contratos inominados] ou não lhes tenha estabelecido qualquer regime [contratos
atípicos]; as partes podem ainda estabelecer livremente os efeitos jurídicos do
contrato, ou seja, a possibilidade conferida pela ordem jurídica às partes de, por
mutuo acordo, determinarem à sua vontade o conteúdo do contrato respeitando o
previsto no art.º 405.º, a liberdade de estipulação pode ainda ser exercida no momento
da celebração do contrato ou posteriormente com modificações ou aditamentos ao
contrato celebrado);

Deve ainda no âmbito da liberdade contratual ser incluída a liberdade de extinguir,


por mutuo acordo, o contrato através da celebração do respetivo distrate ou revogação
que pode ser total ou parcial (art.º 406.º, in fine).

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Uma consequência importante da autonomia privada no âmbito do Direito das
Obrigações é a supletividade tendencial das suas regras. Efetivamente, o relevo dado
à autonomia provada neste ramo do Direito implica que as regras estabelecidas por
lei devam ceder perante a decisão das partes em sentido contrário.

Consequentemente, no Direito das Obrigações só excecionalmente se encontram


regras imperativas. Mesmo que correspondam à solução jurídica mais adequada para
o caso, a aplicação da grande maioria das disposições cede em caso de existir clausula
contratual.

1.3. Restrições à Liberdade Contratual


1.3.1. Generalidades

Sabe-se que a igualdade jurídica não tem correspondência no plano económico, dado
que em certos contratos uma das partes (como o produtor, ou o empregador) tem
maior força económica e maior domínio da informação do que a outra parte (o
consumidor ou o trabalhador). Nesse caso, a parte mais fraca pode ver-se
constrangida, por fraqueza negocial ou deficiente informação, a aceitar celebrar
negócios em condições que normalmente não seriam por si aceites. Daí que a ordem
jurídica tenha de abandonar um paradigma de tutela absoluta da autonomia privada
para estabelecer, em certos casos igualmente uma tutela da parte mais fraca, o que
implica aceitar restrições pontuais à liberdade contratual.

Atualmente, não pode aceitar-se que genericamente todo e qualquer contrato seja
sempre efetivamente baseado na livre determinação de ambos os sujeitos. Tal só
sucederá se as partes estiverem constrangidas de forma idêntica à celebração
daquele contrato, o que na nossa sociedade é um fenómeno raro. A maior parte dos
membros da nossa sociedade precisa de celebrar contratos para satisfação das suas
necessidades, sendo que essa dependência não se verifica no lado da contraparte do
contrato (empresa prestadora do serviço, p. ex.). A parte economicamente mais fraca
é faticamente constrangida à celebração do contrato, mesmo em condições que ela
não aceitaria se tivesse outra possibilidade de satisfação das suas necessidades
económicas.

Ocorrendo desigualdade económica das partes, a invocação da liberdade contratual


torna-se meramente formal, uma vez que, em termos materiais, uma das partes se
encontra constrangida à celebração do contrato. Daí que se deva assumir a existência
de uma certa ambivalência da liberdade contratual na atual sociedade económica,
na medida em que ela pressupõe a livre atuação e iniciativa dos sujeitos económicos,
mas ao mesmo tempo exige que essa atuação seja disciplinada, por forma a
proporcionar que cada parte faça efetivo uso da sua liberdade contratual e não se
veja forçada a renunciar a ela, aceitando condições contratuais ditadas em
consequência da maior força económica da outra parte.

Desde sempre se admitiu uma restrição à autonomia das partes, que consiste na
proibição da celebração de negócios usurários, em que uma das partes consegue obter

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benefícios injustificados através da exploração da necessidade económica da outra
parte (art.º 282.º e ss.).

1.3.2. Restrições à Liberdade de Celebração

Uma importante restrição à liberdade de celebração consiste na obrigação de


celebração do contrato. Uma das partes (ou ambas) pode estar vinculada, por
obrigação contratual ou legal, à celebração do contrato com a outra parte. Nesses
casos, a outra parte pode exigir essa celebração (art.º 817.º) ou inclusivamente obter
sentença que produza os mesmos efeitos que o contrato prometido (art.º 830.º). A não
celebração do contrato constitui, por isso, nesses casos um ilícito obrigacional, que
gera obrigação de indemnização. Nessa situação a liberdade de celebração apenas
existe para a parte que não esteja vinculada a essa obrigação, e que por isso pode
exigir a celebração do contrato ou renunciar a ela. A outra parte tem de corresponder
às suas solicitações, perdendo assim a liberdade de recusar a celebração do contrato.

Na autonomia privada, as partes podem criar obrigações de celebração de contratos


(art.º 410.º e ss.), podendo nesses casos considerar-se a celebração como cumprimento
de uma obrigação livremente assumida e que, portanto, ainda se funda na autonomia
privada. Quando é, porém, a lei a impor obrigações de celebração de contratos, a
autonomia privada encontra-se restringida, podendo essa restrição considerar-se
como um corretivo à liberdade contratual, em virtude de se pretender evitar os
abusos de uma das partes que, em virtude de um maior poder económico que possua
(situações de monopólio, p. ex.), poderia facilmente constranger a outra parte a
aceitar condições contratuais desvantajosas, se lhe fosse permitido recusar
livremente a celebração de contratos. No caso de contratos sobre bens essenciais
(águas, gás, eletricidade, comunicações, etc.) a ausência de concorrência no setor e a
necessidade dos bens por parte do consumidor levaria a constrangimentos
inaceitáveis da parte mais fraca, se a outra parte pudesse livremente recusar a
celebração do contrato. Deve entender-se, por isso, como juridicamente consagrada
nesses casos uma obrigação de celebração do contrato.

Essa obrigação de celebração funciona como um “corretivo da economia de mercado”,


já que, se normalmente os votos dos consumidores levariam os fornecedores a alterar
as suas condições contratuais, de acordo com a lei da oferta e da procura, em casos
de monopólio ou de oligopólio, o fornecedor pode, em virtude da sua força económica,
ignorar os votos dos consumidores. Efetivamente, se o consumidor tiver necessidade
absoluta daqueles bens e não tiver fornecedores alternativos, pode facilmente ser
constrangido, através da ameaça da recusa de celebração do contrato, a aceitar
condições contratuais que seguramente recusaria numa situação de concorrência
perfeita. Ao retirar ao fornecedor de bens essenciais a liberdade de recusar a
celebração do contrato, é corrigida a situação em beneficio da parte mais fraca.

A obrigação de celebração de contratos pode ainda ser estabelecida como “meio de


direção central da economia”. Nestes casos, não apenas aparece para corrigir os
defeitos da economia de mercado, mas antes aparece como forma de dar execução a
um plano económico, estabelecido por um órgão dirigente central.

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2. O principio do ressarcimento de danos

Em termos gerais, esse principio pode ser enunciado pela forma seguinte: sempre
que exista uma razão de justiça, da qual resulte que o dano deva ser suportado por
outrem, que não o lesado, de ser aquele e não este a suportar esse dano. A
transferência do dano do lesado para outrem opera-se mediante a constituição de
uma obrigação de indemnização, através da qual se deve reconstituir a situação que
existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo (art.º 562.º).

A simples injustiça do dano sofrido não é suficiente para se ter direito à


indemnização. Por muito injusta que seja a situação, em principio o Direito tem de
aceitar o veredito do destino, não atribuindo indemnização a quem veio a suportar
um prejuízo material, a perder uma vantagem ou a sofrer danos morais, em virtude
de qualquer circunstância lesiva. Daí que o dano seja normalmente suportado por
quem o sofreu, como fazendo parte do risco geral da vida (casum sentit dominus, res
perit domino, the loss lies where it falls). Quando o Direito não concede a eliminação
dos danos sofridos, a reação contra a injustiça do dano só pode ser realizada através
de atuações espontâneas de solidariedade social, resultantes ou da decisão política
do Estado ou de iniciativas de sociedade civil. Mas a espontaneidade dessas
iniciativas torna incerta a efetiva existência de indemnização.

Em muitas situações ocorre um fenómeno que denomina de imputação dos danos.


Ocorre a imputação de danos quando a lei considera existir, não apenas um dano
injusto para o lesado, mas também uma razão de justiça que justifica que esse dano
seja transferido para outrem.

Tradicionalmente, a única imputação que poderia servir de base à responsabilidade


civil consistia na culpa do lesante. A consequência dessa formulação é a de que o
lesado não teria direito a qualquer indemnização, a menos que demonstrasse a culpa
do lesante (art.º 487.º/n.º1). o rigor do regime foi, no entanto, atenuado através da
consagração de sucessivas presunções de culpa, por meio das quais o lesado era
dispensado desse ónus (art.º 491.º a 493.º). Posteriormente, foi-se desenvolvendo a
ideia de que a imputação de danos poderia mesmo dispensar a culpa do lesante,
passando a assentar simplesmente na criação de riscos específicos de que outrem tira
proveito ou que pode controlar, tendo de indemnizar os danos abrangidos por essa
esfera de riscos. Surge assim, a responsabilidade pelo risco, que se tem vindo a
assumir como uma outra grande categoria de responsabilidade civil, embora entre
nós continua a ser restrita às hipóteses previstas na lei (art.º 483.º/n.º2). atualmente,
inserem-se aqui, entre outras situações, os casos da responsabilidade do comitente
(art.º 500.º), da responsabilidade do Estado e pessoas coletivas públicas (art.º 501.º),
os danos causados por animais (art.º 502.º), os acidentes por veículos (art.º 503.º e ss.)
e os danos causados por instalações de energia elétrica ou do gás (art.º 509.º e ss.).

Em certos casos, a imputação de danos pode basear-se em permissões legais de


sacrificar bens alheios no interesse próprio, que têm como contrapartida o
estabelecimento de uma obrigação de indemnização (art.º 81.º/n.º2 e 339.º/n.º2).
nesses casos, temos a denominada responsabilidade por factos lícitos ou pelo
sacrifício.

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Temos três títulos de imputação pelos danos:

Imputação por culpa, a responsabilidade baseia-se numa conduta ilícita e


censurável do agente, que justifica dever ele suportar em lugar do lesado os prejuízos
resultantes dessa sua conduta. Neste caso, a responsabilidade civil, além de uma
função reparatória, vai desempenhar uma função sancionatória, na medida em que
representa uma sanção ao agente pela violação culposa de uma norma de conduta.

Imputação pelo risco, o fundamento que lhe está na base baseia-se numa conceção
de justiça distributiva, segundo as doutrinas do risco-proveito, risco profissional ou
de atividade e risco de autoridade. Segundo a primeira doutrina, aquele que tira
proveito de uma situação deve também suportar os prejuízos dela eventualmente
resultantes de harmonia com o principio ubi commoda ibi incommoda. De acordo
com a segunda conceção, aquele que exerce uma atividade ou profissão que seja
eventualmente fonte de riscos deve suportar os prejuízos que dela resultem para
terceiros. Na terceira conceção, sempre que alguém tenha poderes de autoridade ou
direção relativamente a condutas alheias deve suportar também os prejuízos que dai
resultem.

Imputação pelo sacrifício corresponde à situação em que a lei permite, em


homenagem a um valor superior, que seja sacrificado um bem ou direito pertencente
a outrem, atribuindo, porém, uma indemnização ao lesado como compensação pelo
sacrifico. Neste caso, o fundamento da imputação baseia-se numa ideia de justiça
comutativa, ou seja, na atribuição de uma vantagem como contrapartida do sacrifício
suportado no interesse de outrem.

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Conceito e Estrutura da Obrigação

1. Generalidades

Sendo o direito de credito um direito subjetivo, a definição do seu conceito terá de ser
traçada a partir do seu objeto, que conforme resulta do art.º 397.º vem a ser a
prestação, ou seja o comportamento que o devedor está vinculado a adotar em
beneficio do credor.

Ninguém pode ser coagido fisicamente a realizar uma prestação se decidir


voluntariamente não o fazer. Nesses casos, conforme resulta do art.º 817.º, o credor
apenas pode proceder à execução do património do devedor, para obter por via
coerciva a satisfação do seu direito à custa dos bens do devedor (execução especifica,
a que se referem os art.º 827.º e ss.) ou uma indemnização por incumprimento, a que
se referem os art.º 798.º e ss.). Por esse motivo, questiona-se se o verdadeiro objeto
do direito de crédito não será antes o património do devedor, uma vez que só através
dele o credor pode obter judicialmente a satisfação do seu direito, atenta a
incoercibilidade da prestação.

Temos assim duas realidades a tomar em consideração como possíveis objetos do


direito de crédito:

- A prestação (conduta do devedor);


- O património (bens do devedor).

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O debate em torno do conceito e estrutura da obrigação parte sobre o objeto do direito
de crédito, havendo autores que sustentam ser esse objeto a prestação, outros o
património do devedor, outros ainda uma combinação dessas duas realidades e
finalmente outros que sustentam que o objeto do direito de crédito consiste numa
entidade complexa.

Poderemos classificar estas correntes respetivamente como teorias personalistas,


teorias realistas, teorias mistas e doutrinas de complexidade obrigacional.

2. Posição adotada por MENEZES LEITÃO

A obrigação não se pode considerar um direito incidente sobre os bens do devedor,


sendo antes um vinculo pessoal entre dois sujeitos, através do qual um deles pode
exigir que o outro adote determinado comportamento em seu beneficio.

É esta aliás a conceção adotada pelo legislador que no art.º 397.º consagra a teoria
clássica, definindo a obrigação como o vinculo jurídico por virtude do qual uma pessoa
fica adstrita para com outra à realização de uma prestação. É também a posição
adotada pela grande maioria da doutrina portuguesa, que entende o direito de
crédito como tendo por objeto a prestação, negando a existência de qualquer direito
do credor sobre o património do devedor. Efetivamente, a ação executiva representa
apenas a aplicação pelo Estado de uma sanção pelo incumprimento das obrigações,
através da qual se assegura a proteção jurídica ao direito de crédito. Assim, no
processo de execução, o Estado substitui-se ao devedor na satisfação do direito de
crédito, obtendo para o efeito os meios necessários através da execução do seu
património. Ao credor não é, porém, reconhecido qualquer direito sobre os bens do
devedor.

Reconhecendo-se que o credor não tem qualquer direito sobre os bens do devedor,
parece claro que tem de se reconhecer-lhe um direito subjetivo à prestação, uma vez
que o devedor está vinculado ao cumprimento, sendo que a existência de um direito
apenas depende do seu reconhecimento por uma norma, independentemente de ser
garantido por uma sanção e muito menos por uma sanção com plena eficácia.

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Direito das Obrigações
Características da Obrigação
1. Generalidades

Como características da obrigação, a doutrina tem vindo a apostar as seguintes:


A) A patrimonialidade;
B) A mediação ou colaboração devida;
C) A relatividade;
D) A autonomia.

2. A patrimonialidade
Por patrimonialidade entende-se a suscetibilidade de a obrigação ser avaliável em
dinheiro, tendo, portanto, conteúdo económico. A doutrina mais antiga entendia que
a obrigação não se poderia constituir se não fosse suscetível de avaliação pecuniária.
Como argumentos em defesa desta tese invocava-se o facto de a execução apenas se
poder exercer sobre o património do devedor e, como esta execução pressupõe sempre
a liquidação do crédito numa soma pecuniária, daí resultaria a necessidade de a
prestação ter valor pecuniário. Para além disso, estaria em principio excluída a
ressarcibilidade dos danos morais causados pelo incumprimento das obrigações.

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3.º ano
Direito das Obrigações
O atual código português afastou-se referindo que a prestação não necessita de ter
caráter pecuniário, mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de
proteção legal (art.º 398.º/n.º2). Fica assim consagrada a admissibilidade de
constituir obrigações sem cariz patrimonial, como, por exemplo, a emissão de um
desmentido ou de um pedido de desculpas, ou a obrigação de não fazer barulho,
quando o credor por razões de saude, não o pode suportar. Resta saber que hipóteses
estarão excluídas por não corresponderem a um interesse do credor, digno de
proteção legal.

Para ANTUNES VARELA, esta norma pretende excluir do âmbito da obrigação dois
tipos de prestações: a) as prestações que correspondam a simples caprichos ou
manias do devedor; b) as prestações que correspondem a situações tuteladas por
outras ordens normativas, como a religião a moral ou no trato social, e que não
merecem, por esse motivo, a tutela do direito. Para MENEZES CORDEIRO não há
obstáculos a que se constituam obrigações relativas a meros caprichos ou manias,
desde que se refiram a situações jurídicas. Apenas se corresponderem a situações
tuteladas por outras ordens normativas, como a religião, a moral ou o trato social, e
que não merecem, por esse motivo, a tutela do direito. Para MENEZES CORDEIRO
não há obstáculos a que se constituam obrigações relativas a meros caprichos ou
manias, desde que se refiram a situações jurídicas. Apenas se corresponderem a
situações oriundas de outros complexos normativos, é que não será admissível a
constituição de obrigações com esse objeto.

Pensamos se mais correta a posição de MENEZES CORDEIRO. Efetivamente, o


facto de o interesse do credor corresponder a uma mania ou capricho para a
generalidade das pessoas (ex.: a realização de uma tatuagem) não exclui a sua
eventual importância para o credor e daí a admissibilidade de, através do exercício
da autonomia privada, se constituir uma obrigação com esse objeto. Apenas se a
situação disser exclusivamente respeito a outras ordens normativas (comparecer em
certo encontro social, rezar determinadas orações) é que a sua juridicidade é excluída
e daí não poder-se admitir uma efetiva constituição de obrigações.
De qualquer forma e conforme GALVÃO TELLES, a questão é destituída de
interesse prático, já que a obrigação revestirá natureza patrimonial na esmagadora
maioria dos casos. Daí que seja incorreto excluir liminarmente a partir da referência
do art.º 398.º/n.º2, a patrimonialidade como caraterística das obrigações, uma vez que
terão natureza excecional as situações em que a obrigação não reveste cariz
patrimonial. Justifica-se, por isso, que se fale como MENEZES CORDEIRO da
existência de uma patrimonialidade tendencial. Efetivamente o crédito, enquanto
direito à prestação (art.º 397.º) é garantido através da ação de cumprimento e da
execução do património do devedor (art.º 817.º). Consequentemente o direito de
crédito consiste num ativo patrimonial do credor da mesma forma que a obrigação é
um passivo no património do devedor. Tal é demonstrado pelo facto de, no momento
do vencimento, a ação executiva permitir a realização de dinheiro em substituição do
objeto da prestação. Mas, mesmo que o credito não esteja vencido, ele representa um
ativo patrimonial do credor, que o pode transformar em dinheiro, através da sua
cessão onerosa a terceiro (art.º 577.º), ou da sua afetação a fins de garantia (art.º
679.º).

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3. Mediação ou colaboração devida
O credor não pode exercer direta e imediatamente o seu direito, necessitando da
colaboração do devedor para obter a satisfação do seu interesse. Neste sentido se fala
em mediação, uma vez que só através da conduta do devedor o credor consegue obter
a satisfação do seu interesse. O direito de crédito tem assim como característica a
mediação da atividade do devedor ou a exigência da colaboração deste, para que o
credor consiga obter a realização do seu direito.

A mediação tem sido apontada pela doutrina como uma das qualidades das
obrigações que permite estabelecer a sua distinção dos direitos reais, uma vez que a
estes faltaria essa característica, na medida em que consistiriam num poder direto e
imediato sobre uma coisa.

É manifesto que a mediação existe nas obrigações e falta nos direitos reais, já que
enquanto nestes o direito do credor se exerce diretamente sobre coisas, naquelas o
direito à prestação só é realizável através de um intermediário, que é o devedor, que
se vincula assim a prestar a colaboração necessária para que o credor obtenha a
satisfação do seu interesse.

Em certos casos, pode suceder que, perante a recusa do devedor em prestar, o credor
possa obter a satisfação do seu direito à prestação por via coerciva, como sucede na
execução especifica (art.º 827.º e ss.). tal não justifica, que se deixe de considerar a
mediação como característica das obrigações, já que, se por via judicial se pode
substituir a conduta do devedor em ordem a obter a satisfação do direito do credor,
tal ocorre precisamente porque o devedor se vinculou a prestar essa conduta para
esse efeito. Daí que, como refere MENEZES CORDEIRO, na obrigação exista sempre
uma vinculação à colaboração por parte do devedor, sendo a colaboração devida o
verdadeiro entendimento da mediação como característica do direito de crédito.

4. A relatividade
A relatividade costuma ser igualmente apontada como característica das obrigações.
Esta caraterística é, no entanto, suscetível de ser entendida em dois sentidos
diferentes:

a) Através de um prisma estrutural: neste sentido, se refere que o direito de


crédito se estrutura com base numa relação entre credor e devedor.
b) Através de um prisma de eficácia: neste sentido se refere que o direito de
crédito apenas é eficaz contra o devedor. Consequentemente só a ele pode ser
oposto e só por ele pode ser violado. Daí que a obrigação não possa ter eficácia
externa, ou seja, eficácia perante terceiros.
A relatividade estrutural do direito de crédito e, consequentemente da obrigação é, a
nosso ver, indubitável. Efetivamente, o direito de crédito apresenta-se como o direito

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de exigir de outrem uma prestação. Consequentemente, só pode ser exercido pelo seu
titular, o credor, contra outra pessoa determinada que tenha o correlativo dever de
prestar, ou seja, o devedor, estruturando-se, por isso, com base numa relação jurídica
entre dois sujeitos. Apenas o devedor deve prestar e apenas dele pode o credor exigir
que realize a prestação. Daí concluir-se que o direito de crédito tem caráter
estruturalmente relativo, o que o distingue dos direitos reais, que se caraterizam por
ter um caráter estruturalmente absoluto, na medida em que, ao terem por objeto
uma coisa, não se estruturam a partir de uma relação entre pessoas, mas antes
pressupõem uma ausência dessa relação, sendo oponíveis erga omnes.

Já a relatividade no sentido de não eficácia do direito de crédito em relação a terceiros


(não eficácia externa da obrigação) apresenta-se como mais discutível. A doutrina
clássica, que foi ente nós defendida pro CUNHA GONÇALVES, faz derivar em
termos concetualistas da relatividade estrutural do direito de crédito uma
relatividade em termos de eficácia, defendendo que os direitos de crédito nunca
podem ser violados por terceiros, já que, sendo direitos relativos, os terceiros não têm
o dever de os respeitar. Assim, os direitos de crédito só poderiam ser violados pelo
devedor, não tendo o terceiro qualquer responsabilidade pela sua frustração. Essa
solução resultaria no nosso Direito do art.º 406.º/n.º2 (que refere que, em relação a
terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos previstos na lei) e da distinção entre
a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional ( já que o art.º 483.º,
relativo à violação de direitos absolutos, sujeita à responsabilidade civil, com a
consequente obrigação de indemnização, a sua violação culposa por qualquer pessoa,
enquanto que o art.º 798.º, relativo à violação do direito de crédito, restringe ao
devedor a responsabilidade obrigacional). Daqui resultaria que para os terceiros o
direito de crédito seria totalmente irrelevante, não o podendo violar, nem podendo
ser por ele beneficiados, de acordo com o principio “res inter alios acta aliis neque
nocere neque prodesse potest”.

Essa doutrina clássica teve desde sempre forte oposição na doutrina nacional, já que
inúmeros autores entendiam que o dever geral de respeito, que todos têm, de não
lesar os direitos alheios (neminem laedere), também abrangeria os direitos de crédito,
que consequentemente teriam tutela delitual (art.º 483.º). Nesse sentido: Entre
outros, GALVÃO TELLES, MENEZES CORDEIRO.

Uma posição intermédia neste debate é aquela que, embora não aceite a existência
de um dever geral de respeito dos direitos de credito, admite alguma oponibilidade
dos créditos perante terceiros, através da aplicação do principio do abuso de direito
(art.º334.º). O terceiro poderia ser assim responsabilizado nos casos em que a sua
atuação lesiva do direito de crédito se possa considerar como um exercício
inadmissível da sua liberdade de ação ou da sua autonomia privada. Nesse sentido:
ANTUNES VARELA, entre outros.

MENEZES LEITÃO: deve ser adotada esta solução intermédia. É certo que na
maioria dos casos o terceiro que contrata com o devedor não deve ser
responsabilizado pelo facto de este violar as suas obrigações, uma vez que faz parte
da autonomia privada de cada um a possibilidade de contrair sucessivas obrigações,
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mesmo que não esteja em condições de as cumprir todas. Efetivamente, não se exige
qualquer requisito de legitimidade para a constituição de obrigações, sendo
plenamente válida a constituição de créditos que o devedor poderá não satisfazer sem
incumprir outros já estabelecidos. Nesse caso, é o próprio legislador que vem dizer
que os créditos anteriores não adquirem qualquer prevalência sobre os posteriores.
Antes pelo contrário, todos concorrem do mesmo modo sobre o património do devedor
(art.º 604.º/n.º1).

Temos de reconhecer que a constituição de um direito de crédito a favor de um


terceiro é plenamente válida, independentemente de existir um crédito com este
incompatível anteriormente constituído. Ora, sendo válida essa constituição, temos
de considerar a não responsabilização do terceiro nessa situação, uma vez que tal
corresponde à liberdade económica que carateriza o nosso sistema jurídico, e que tem
como corolário a liberdade de contratar. Efetivamente, quem contrata com outrem
não tem de ponderar a existência de vínculos obrigacionais anteriores do devedor,
uma vez que os dados essenciais do sistema económico são que só o devedor deve
responder por eles.

Conclui-se que a obrigação tem como caraterística a relatividade estrutural e que o


regime da responsabilidade patrimonial implica a admissibilidade de constituir
direitos de crédito incompatíveis entre si, não tendo o direito de crédito anterior
prevalência sobre o posterior. Em certos casos, porém, a constituição do segundo
direito de crédito pode ser vista como abusiva, para efeitos do art.º 334.º, caso em que
o terceiro poderá ser responsabilizado.

5. A autonomia
A autonomização de uma obrigação não impede a sua regulação pelo Direito das
Obrigações nas partes não sujeitas ao seu regime especifico. Efetivamente, a
estrutura da obrigação autónoma e não autónoma é idêntica. O regime das duas é
que pode divergir em maior ou menos medida, o que não impede a qualificação de
ambas como verdadeiras obrigações. Ora, o Direito das Obrigações é um ramo do
Direito Civil cuja autonomização assenta precisamente em caraterísticas
estruturais, uma vez que a classificação germânica do Direito Civil não tem um
critério homogéneo. A autonomização das disciplinas de Direitos Reais e de Direito
das Obrigações tem por base as características estruturais dos direitos a que se
referem. Já o Direito da Família e das Sucessões são autonomizados em função da
fonte de onde resultam as relações de que tratam. É, por isso, perfeitamente natural
que surjam situações estruturalmente obrigacionais noutros ramos do direito, mas
estas não perdem a sua natureza de obrigação em virtude de aí serem inseridas. Daí
que a autonomia não deva ser considerada como uma caraterística das obrigações.

6. Conclusão
São três as características das obrigações: a patrimonialidade tendencial, a mediação
e a relatividade.

A patrimonialidade tendencial significa que as obrigações têm geralmente natureza


patrimonial e por isso a obrigação corresponde a um passivo no património do
devedor, da mesma forma que o crédito corresponde a um ativo no património do

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Direito das Obrigações
credor. Excecionalmente, no entanto, poderão constituir-se obrigações que não
revistam esta caraterística.

A mediação, ou colaboração devida, significa que o credor necessita da interposição


ou colaboração do devedor para exercer o seu direito. Efetivamente, o crédito é um
direito à prestação, ou seja, um direito a uma conduta do devedor, pelo que o credor
necessita que o devedor realize essa conduta, não podendo obter diretamente a
satisfação do seu direito.

A relatividade significa que a obrigação se estrutura numa relação entre o credor e o


devedor. Consequentemente, só o devedor tem o dever de prestar e só o credor tem o
direito de exigir o cumprimento. Da relatividade resulta que em principio só o
devedor deve ser responsabilizado em caso de violação do direito de crédito, porque
é só dele que o credor pode exigir que satisfaça a prestação. Tal não significa, no
entanto, que a obrigação não tenha qualquer eficácia perante terceiros, ou que o
terceiro não possa ser responsabilizado quando proceda à lesão do direito do credor
em violação dos vetores fundamentais do ordenamento jurídico, como os referidos no
art.º 334.º.

Distinção entre Direitos de Crédito e Direitos


Reais

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1. A distinção entre direitos de crédito e direitos reais
A distinção essencial que se deve estabelecer entre os direitos de crédito e os direitos
reais consiste no critério do objeto: os direitos reais são direitos sobre as coisas; os
direitos de crédito são direitos a prestações, ou seja, direitos a uma conduta do
devedor.

Este distinto objeto tem reflexos em termos das características dos direitos. Se o
crédito é um direito à prestação, ele carateriza-se por necessitar da mediação ou
colaboração do devedor para ser exercido. Assim, mesmo quando a prestação tem por
objeto uma coisa, o credor não possui qualquer direito direto sobre ela, o que só
sucederia se possuísse um direito real. Tem apenas o direito a que o devedor lhe
entregue essa coisa. O credor necessita assim da colaboração do devedor para
satisfazer esse seu interesse. Nada disto acontece nos direitos reais. Neles o credor
não necessita da colaboração de ninguém para exercer o seu direito, já que o seu
direito incide direta e imediatamente sobre uma coisa, não necessitando da
colaboração de outrem para ser exercido.

Da mesma forma, o direito de crédito distingue-se dos direitos reais em virtude da


sua relatividade estrutural. O direito de crédito assenta numa relação, o que implica
que tenha de ser exercido contra o devedor. O direito real não assenta em qualquer
tipo de relação, encontra-se desligado de relações interpessoais, dado que se exerce
diretamente sobre a coisa, podendo ser oposto a toda e qualquer pessoa: é o que se
denomina a oponibilidade erga omnes do direito real.

O direito de crédito é um direito relativo pelo que a sua oponibilidade a terceiros é


limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias. Pelo contrário, a
oponibilidade do direito real a terceiros é plena. O direito real adere à coisa e
estabelece uma vinculação tal com a coisa que dela já não pode ser separado. Esta é
a denominada inerência, que carateriza os direitos reais. Assim, se alguém constituir
uma hipoteca sobre determinado prédio não pode depois transferir a hipoteca para
outro prédio. O direito incide sobre aquela coisa e não pode ser dela separado.

A inerência tem uma sua manifestação dinâmica que é a sequela, a qual significa
que o titular de um direito real pode perseguir a coisa onde quer que ela se encontre.
Assim, se alguém é proprietário de um determinado bem e outrem o vende a um
terceiro, que por sua vez o torna a revender, para reclamar a coisa do seu possuidor
atual o proprietário não necessita de demonstrar a invalidade de todas as
transmissões, bastando-lhe demonstrar a sua propriedade para obter a restituição
da coisa, através da ação de reivindicação (art.º 1311.º). isto significa que apesar de
ter existido toda uma série de transmissões, se alguém demonstrar a titularidade de
um direito real sobre a coisa pode sempre exercê-lo. É isto o que se denomina a
sequela. O direito real persegue a coisa onde quer que ela se encontre e pode sempre
ser exercido.

O direito de crédito já não tem essa característica. Se alguém tem direito a uma
prestação o devedor aliena o objeto da mesma, o credor já não o pode exigir. Só lhe
resta pedir uma indemnização ao devedor por ter impossibilitado culposamente a
prestação.

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Uma outra caraterística dos direitos reais que os permite distinguir dos direitos de
crédito é a denominada prevalência, que, no seu sentido amplo, significa a prioridade
do direito real primeiramente constituído sobre posteriores constituições, salvo as
regras do registo, e a maior força dos direitos reais sobre os direitos de crédito, o que
significa não ser possível constituir sucessivamente dois direitos reais incompatíveis
sobre o mesmo objeto, só um podendo prevalecer. Assim, se alguém vender o mesmo
objeto duas vezes a pessoas diferentes prevalecerá a primeira alienação, ou em caso
de bens sujeitos a registo, a que primeiro for registada. Tal significa a exigência de
um requisito de legitimidade para a constituição dos direitos reais (art.º 892.º), uma
vez que com a primeira alienação o vendedor perde a sua legitimidade para dispor
do bem, já não o podendo fazer segunda vez.

Essa caraterística não existe nos direitos de crédito, que não se hierarquizam entre
si pela ordem da constituição, antes concorrem em pé de igualdade sobre o
património do devedor que, se não for suficiente, é rateado para se efetuar um
pagamento proporcional a todos os credores (art.º 604.º/n.º1). Assim, se alguém tiver
um património no valor de 1000 euros, e assumir sucessivamente duas obrigações de
pagar 1000 euros a dois credores distintos, as duas obrigações foram validamente
assumidas, tendo o património do devedor ser dividido para pagar a cada um dos
credores metade do seu crédito. A regra é assim a do rateio do património do devedor.
Desta forma, os direitos de crédito não se hierarquizam entre si pela ordem da
constituição ou do registo. Têm todos uma posição equivalente sobre o património do
devedor, a não ser que surjam acompanhados de um direito real que atribua
prevalência no pagamento (art.º 604.º/n.º2). Efetivamente, os direitos reais têm mais
força do que os direitos de crédito, será aquele que prevalecerá.

Em conclusão, a distinção entre direitos de crédito e direitos reais baseia-se numa


diferença do objeto. Os direitos de crédito são direitos sobre prestações, os direitos
reais direitos sobre coisas. Em consequência, os direitos de crédito possuem as
características da mediação do devedor, da relatividade, de uma oponibilidade a
terceiros limitada, ausência de inerência e não hierarquização entre si. Pelo
contrário, os direitos reais são direitos imediatos, absolutos, plenamente oponíveis a
terceiros, inerentes a uma coisa, dotados de sequela e hierarquizáveis entre si, na
medida em que a constituição de um direito implica a perda de legitimidade para
posteriormente constituir outro.

2. A questão dos direitos pessoais de gozo


A nossa lei denomina estes direitos de direitos pessoais de gozo (art.º 407.º e 1682.º-
A), entre os quais se inclui o direito do locatário (art.º 1022.º), do comodatário (art.º
1129.º), do parceiro pensador (art.º 1121.º) e do depositário (art.º 1185.º). A posição
clássica na doutrina com a adesão de GALVÃO TELLES, ANTUNES VARELA e
CARVALHO FERNANDES, pronuncia-se no sentido da qualificação destes direitos
como direitos de crédito. Outros autores (DIAS MARQUES, OLIVEIRA ASCENSÃO)
reconhecem, pelo menos, natureza real ao direito do arrendatário. Foi ainda
defendida na doutrina por MANUEL HENRIQUES MESQUITA, JOSÉ ANDRADE
MESQUITA E NUNO PINTO OLIVEIRA uma posição intermédia. Para estes
autores os direitos pessoais de gozo constituiriam um tertium genus entres os direitos
de crédito e os direitos reais.

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Esta posição intermédia deverá, a nosso ver, ser rejeitada. Efetivamente, a
classificação entre os direitos reais e os direitos de crédito não admite realidades
intermédias. A configuração do direito pessoal de gozo como um direito misto entre
os direitos de crédito e os direitos reais implica uma junção de características
contraditórias entre si. Se o direito recai imediatamente sobre uma coisa, não
necessitando da colaboração do devedor para ser exercido, não se vê como se pode
afirma que é estruturalmente relativo.

O legislador pretendeu seguramente qualificar estes direitos como direitos de


crédito, estabelecendo que embora confiram o gozo de uma coisa, esse gozo resulta
ou de uma obrigação positiva assumida pela outra parte (locação, art.º 1022.º e
1031.º/b) e parceria pecuária, art.º 1121 e 1125.º ou de uma obrigação negativa por
esta assumida (comodato, art.º 1129.º e 1133.º/n.º1) ou ainda de uma autorização
eventual (depósito, art.º 1185.º e 1189.º in fine). Não haveria assim um direito
imediato sobre a coisa, conforme é característico dos direitos reais, exigindo-se antes
a mediação ou colaboração do devedor que vimos ser a caraterística dos direitos de
crédito. Por outro lado, a inserção sistemática do seu regime no titulo relativo aos
contratos em especial e não no livro dos direitos reais indica uma intenção de
qualificação destes direitos como direitos de crédito.

No entanto, a verdade é que o regime dos direitos pessoais de gozo tem muitas
carateristicas que os aproximam dos direitos reais, como seja o facto de admitirem
uma tutela que extravasa da simples ação de cumprimento e execução (art.º 817.º).
Efetivamente, a lei admite a utilização das ações possessórias contra terceiros que
privem o titular do direito pessoal de gozo da coisa ou o perturbem o exercício do seu
direito, aos quais equipara a outra parte no contrato (art.º 1037.º/n.º2, 1125.º/n.º2,
1133.º/n.º2 e 1188.º/n.º2). Quem é assim qualificado pela lei como devedor de uma
obrigação de gozo, vem a ser tratado pela mesma lei como qualquer lesante em caso
de violação desse direito de gozo. Parceria faltar, por isso, aos direitos pessoais de
gozo a relatividade estrutural que carateriza os direitos de crédito, sendo o direito
pessoal de gozo estruturado em termos absolutos como os direitos reais.

Para além disso, o exercício do gozo sobre a coisa normalmente realiza-se sem a
intervenção de qualquer pessoa. O locatário, o comodatário, o parceiro pensador e o
depositário não necessitam de recorrer à outra parte para obter a satisfação dos seus
direitos. Podem obter diretamente o gozo da coisa, a partir do momento em que esta
lhes é entregue.

Parece-nos assim de considerar que os direitos pessoais de gozo são direitos de


crédito, uma vez que através deles o titular adquire o direito a uma prestação do
devedor, que consiste em assegurar o gozo de uma coisa corpórea, tutelável através
da ação de cumprimento. A satisfação dessa prestação pressupõe, porém, a atribuição
ao credor um direito à posse das coisas entregues, o que justifica que a lei lhe atribua
as ações possessórias para defesa dessa situação jurídica. A existência de posse
nestes direitos não implica, porém, a sua qualificação como direitos reais (ao
contrário do que poderia ser sustentado através de uma argumentação concetualista
a partir do art.º 1251.º), uma vez que neste caso o direito ao gozo da coisa é obtido a
partir de uma prestação do devedor, resultando, portanto, de um direito de crédito.

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Objeto da Obrigação: A Prestação

1. Delimitação do conceito de prestação


Da definição do art.º 397.º resulta que a prestação consiste na conduta que o devedor
se obriga a desenvolver em beneficio do credor, consistente na resposta à pergunta
quid debeatur. A prestação aparece por isso como contraposição no plano ontológico,
ou do ser, do conteúdo deontológico da vinculação assumida pelo devedor. Daí que a
realização da prestação pelo devedor se considere como cumprimento, importando a
extinção da obrigação (art.º 762.º/n.º1).

De acordo com o art.º 398.º/n.º1, a prestação pode tanto consistir numa ação como
numa omissão, sendo o seu conteúdo determinado pelas partes, dentro dos limites da
lei. A prestação muitas vezes pode consistir não propriamente na atividade que o
devedor desenvolve, mas antes no resultado dessa atividade, tendo nessa medida a
expressão prestação um duplo significado. Confrontem-se, por exemplo, os art.º
1152.º e 1154.º do CC.

O art.º 398.º/n.º2, estabelece, porém, um requisito suplementar, referindo-nos que a


prestação, embora não necessite de ter valor pecuniário, deve corresponder a um
interesse do credor, digno de proteção legal. Estamos aqui perante o problema da
patrimonialidade da prestação, a que a lei deu resposta negativa, embora seja claro
que a grande maioria das prestações reveste valor patrimonial, uma vez que na atual
sociedade económica, a prestação de coisas, a simples concessão do seu uso, ou a
prestação de qualquer serviço é suscetível de avaliação pecuniária e tem, portanto,
conteúdo patrimonial. A fórmula utilizada permite abranger como objeto da
obrigação situações não patrimoniais, mas que correspondam a interesses do credor
que mereçam efetiva tutela jurídica, como a publicação de um pedido de desculpas
ou de um desmentido em caso de difamação ou lesão da intimidade da vida privada.
Já não constituirão, porém, objeto possível da obrigação situações que se reconduzam
a outras ordens normativas, como o cumprimento de deveres religiosos (rezar
orações, frequentar igrejas) ou de moral interna (perdoar determinada ofensa) ou
situações de mera cortesia (como estar presente num jantar social).

O interesse do credor deve ser entendido meramente como o interesse jurídico em


receber a prestação, não os interesses pessoais e económicos que ela lhe pode
proporcionar. Assim, o interesse do comprador é receber a coisa comprada, não o de
posteriormente a revender ou oferecer. Esses interesses, quando a sua obtenção não
é garantida ou quando não se tenham constituído como base do negócio, são
irrelevantes.

2. Requisitos legais da prestação


2.1. Generalidades
A prestação tem assim de respeitar certos requisitos legais para a sua constituição.
Consequentemente, se a obrigação resultar de um negócio jurídico, a prestação
estará naturalmente sujeita às regras de um negócio jurídico, a prestação estará

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naturalmente sujeita às regras relativas ao objeto negocial, que constam do art.º
280.º, tendo como consequência a nulidade do negócio se a prestação desrespeitar
algum desses limites. Se assim a prestação for física ou legalmente impossível, o
negócio será nulo e a obrigação não se chega a constituir. A mesma situação ocorre
se a prestação for ilícita, ou se for indeterminável. E o negócio será ainda nulo no
caso de a prestação estipulada se apresentar contrária à ordem pública ou ofensiva
dos bons costumes. As regras do art.º 280.º relativas ao objeto negocial são assim
plenamente aplicáveis à prestação. A prestação deve por isso ser física e legalmente
possível, licita, conforme à ordem pública e aos bons costumes e determinável.

O legislador não deixou de voltar a referir-se aos requisitos da prestação nos art.º
400.º e 401.º, que terão assim de ser articulados com o art.º 280.º.

2.2. Possibilidade física e legal


A impossibilidade da prestação produz a nulidade do negócio jurídico, podendo essa
impossibilidade ser física (p. ex., levantar 500kg com as mãos) ou legal (p. ex., vender
verbalmente um imóvel). Esta regra vem a ser repetida no art.º 401.º/n.º1, mas os
n.º2 e 3 estabelecem algumas restrições a esta solução.

Para que a impossibilidade da prestação produza a nulidade do negócio jurídico, é


necessário que ela constitua uma impossibilidade originária (art.º 401.º/n.º1). Se a
prestação vem a tornar-se supervenientemente impossível, após a constituição do
negócio, este não é nulo. A obrigação é que se vai extinguir, por força do art.º 790.º.

O art.º 401.º/n.º2, admite casos em que a prestação é originariamente impossível, mas


a validade do negócio não é afetada. Serão os casos em que o negócio é celebrado para
a hipótese de a prestação se tornar possível, ou em que o negócio é sujeito a condição
suspensiva ou a termo inicial e, no momento da sua verificação, a prestação já se
tornou possível.

A impossibilidade tem de ser absoluta, impedindo a realização da prestação, e não


meramente relativa, tornando excessivamente difícil ou onerosa a sua realização.
Efetivamente, a denominada impossibilidade relativa não se enquadra no conceito
legal de impossibilidade referido nos art.º 280.º/n.º1 e 401.º, pelo que não pode afetar
a validade do negócio.

A impossibilidade deve ser objetiva e não apenas subjetiva. O art.º 401.º/n.º3, refere-
nos que apenas se considera impossível a prestação que o seja em relação ao objeto e
não em relação à pessoa do devedor. A mesma regra aplica-se à impossibilidade
superveniente, por força do art.º 791.º. Efetivamente, as prestações são em principio
fungíveis, pelo que o seu cumprimento pode ser efetuado por qualquer pessoa (art.º
767.º/n.º1). Assim, se só o devedor estiver impossibilitado de prestar, ele deve fazer-
se substituir no cumprimento da obrigação. Não há por isso qualquer obstáculo à
constituição da obrigação se a impossibilidade for meramente subjetiva, exigindo-se
uma impossibilidade que o seja em relação ao objeto e não meramente em relação à
pessoa do devedor. Daí a possibilidade reconhecida de a obrigação ter por objeto
coisas relativamente futuras (art.º 211.º), bem como a circunstância de a denominada
impossibilidade económica não ser considerada como verdadeira impossibilidade, por
ser apenas referida à pessoa do devedor.
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2.3. Licitude
O requisito da licitude da prestação consta dos art.º 280.º/n.º1 e 294.º, de onde resulta
que objeto negocial não pode ser contrário a qualquer disposição que tenha caráter
injuntivo. As normas injuntivas constituem um importante limite à autonomia
privada, impondo a nulidade dos negócios que as contrariem.
A ilicitude do negócio pode ser de resultado ou de meios, consoante o negócio vise
objetivamente um resultado ilícito (p. ex., assassinar determinada pessoa) ou se
proponha alcançar um resultado licito, através de meios cuja utilização é proibida
por lei (p. ex., o tratamento de uma pessoa, em desrespeito pelas leis da medicina).
Em ambos os casos o art.º 280.º/n.º1, considera o negócio como nulo.

Salienta MENEZES CORDEIRO que, não deve ser, porém, confundida com a
ilicitude de resulta a situação em que apenas o fim subjetivo de quem celebra o
negócio é ilícito (ex.: a aquisição de um arma para cometer um homicídio). Nestes
casos, uma vez que cada uma das partes pode ter um fim subjetivo distinto em
relação ao negócio, o negócio só será nulo, no caso de o fim ser comum a ambas as
partes (art.º 281.º).

2.4. Determinabilidade
A prestação tem de ser determinável. Esta regra resulta do art.º 280.º, que estabelece
a nulidade do negócio jurídico cujo objeto seja indeterminável. Deve esclarecer-se que
indeterminável não deve ser confundido com indeterminado, já que a obrigação pode
constituir-se estando ainda a prestação indeterminada, desde que ela seja
determinável. São exemplos de prestações indeterminadas as obrigações genéricas
(art.º 539.º e ss.) e as obrigações alternativas (art.º 543.º e ss.).

Em caso de indeterminação da prestação, aplica-se à situação do art.º 400.º do CC,


que refere que a determinação da prestação pode ser confiada a uma ou a outra das
partes ou a terceiro; mas que, em qualquer dos casos, deve ser feita segundo juízos
de equidade se outros critérios não tiverem sido estabelecidos. A referência a “juízos
de equidade” não significa uma remissão para o mero arbítrio das partes ou do
terceiro, mas antes significa o mesmo que “juízos de razoabilidade”, os quais têm de
ser estabelecidos sobre uma base objetiva.

Caso, porém, não resulta do negocio qualquer critério que permita realizar a
determinação da prestação, ele terá de ser considerado nulo por indeterminável (art.º
280.º/n.º1), não podendo o art.º 400.º servir para suprir essa nulidade.

2.5. Não contrariedade à ordem pública e aos bons costumes


A prestação não pode ser contrária à ordem pública e aos bons costumes (art.º
280.º/n.º2. Estamos neste caso, mediante remissões para conceitos indeterminados,
cuja concretização deve ser realizada pelo julgador. Em qualquer caso, e seguindo
MENEZES CORDEIRO, parece que se deverão abranger na referencia aos bons
costumes, as regras de conduta familiar e sexual, bem como as regras deontológicas
estabelecidas no exercício de certas profissões. Não será, por isso, válido o negócio
jurídico que tenha por objetivo a realização de favores sexuais. Já a referencia à
ordem pública corresponde aos denominados princípios fundamentais do
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ordenamento jurídico, cuja contrariedade, mesmo que não constando de uma norma
expressa, implica a invalidade do negócio.

À semelhança do que acontece com a ilicitude, também apenas o fim subjetivo das
partes pode ser contrário à ordem pública ou aos bons costumes. Nesse caso, o negócio
só será nulo, se o fim for comum a ambas as partes (art.º 281.º).

Complexidade Intra-obrigacional e os Deveres


Acessórios de Conduta

Um dos problemas suscitados pela obrigação diz respeito à complexidade do vinculo


obrigacional, que justifica que se fale de obrigação em dois sentidos, um estrito,
correspondendo à definição do art.º 397.º, que apenas abrange o binómio direito de
crédito-dever de prestar, e outro mais amplo (para o qual seria preferível reservar a
expressão “relação obrigacional”) que abrangeria todo o conjunto de situações
jurídicas geradas no âmbito da relação entre o credor e o devedor.

Nesse sentido, a obrigação constitui analiticamente uma realidade complexa, que


permite abranger:

1) O dever de efetuar a prestação principal, que por sua vez pode analiticamente
ainda ser decomposto em sub-deveres relativos a diversas condutas materiais
ou jurídicas;
2) Os deveres secundários de prestação, que correspondem a prestações
autónomas ainda que especificamente acordadas com o fim de complementar
a prestação principal, sem a qual não fazem sentido;
3) Os deveres acessórios, impostos através do principio da boa-fé, que se
destinam a permitir que a execução da prestação corresponda à plena
satisfação do interesse do credor e que essa execução não implique danos para
qualquer das partes;
4) Sujeições, como contraponto a algumas situações jurídicas potestativas que
competem ao credor;
5) Poderes ou faculdades, que o devedor pode exercer perante o credor;
6) Exceções que consistem na faculdade de paralisar eficazmente o direito de
crédito.

O dever de efetuar a prestação principal é o elemento determinante da obrigação e


que lhe atribui a sua individualidade própria. Por esse motivo, as classificações de
obrigações fazem-se normalmente tomando apenas em consideração a essa
realidade. Como exemplo, temos a situação de o devedor se comprometer a entregar
um automóvel (contrato de compra e venda) ou a repará-lo (contrato de empreitada).

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Os deveres secundários de prestação correspondem a outras prestações
funcionalizadas em relação à prestação principal, que visam complementar. Assim,
nos exemplos acima referidos, o devedor, alem de se obrigar a entregar o automóvel
ou a repará-lo, pode secundariamente comprometer-se a encher o depósito ou
proceder ainda a uma lavagem. Muitas vezes estes deveres secundários de prestação
são mesmo estabelecidos por lei, como sucede com a obrigação de entrega dos
documentos relativos à coisa (art.º 882.º/n.º2). Como deveres de prestação, estão
naturalmente sujeitos à ação de cumprimento (art.º 817.º) e, existindo um contrato
sinalagmático, são abrangidos pelo sinalagma, permitindo ao credor utilizar a
exceção de não cumprimento do contrato (art.º 428.º) ou a resolução em caso de não
cumprimento (art.º 801.º/n.º2).

Podem ainda surgir para as partes outros deveres específicos de conduta, e que
normalmente desempenham apenas uma função acessória do dever principal: são os
chamados deveres acessórios de conduta. É o que sucede designadamente nas
relações contratuais duradouras como a sociedade ou o trabalho, em ordem a não
frustrar a intensa relação de confiança e colaboração que deve vigorar entre as
partes, mas também em todas as relações obrigacionais em que se justifique a tutela
de uma situação de confiança. De acordo com a sistematização de MENEZES
CORDEIRO, os deveres acessórios podem classificar-se em deveres acessórios de
informação, proteção e lealdade. Estes deveres resultam do principio da boa-fé e têm
por função assegurar a realização do dever de prestação principal, em termos que
permitam tutelar o interesse do credor, mas também evitar que a realização da
prestação possa provocar danos para as partes. Assim, o devedor não estaria
unicamente vinculado ao dever de prestar, mas também a outros deveres de proteção,
informação e lealdade perante o credor em ordem a permitir a satisfação do seu
interesse e assegurar a não existência de danos. Por sua vez, o credor também estaria
vinculado a deveres acessórios perante o devedor, por forma a evitar a verificação de
danos para este. No exemplo acima referido, relativo ao fornecimento de um
automóvel novo, o devedor teria o dever de informar o credor do seu funcionamento
adequado. Mas se o credor pedisse a reparação em virtude de ter ocorrido um curto-
circuito no motor, deveria informar o devedor dos risco que a sua ligação poderia
acarretar. Em relação aos deveres acessórios, não se concebe a ação de cumprimento,
mas apenas outras sanções como a indemnização pelos danos sofridos com a violação
ou eventualmente a resolução do contrato (art.º 1003.º a)). Os deveres acessórios são,
alias, independentes do dever de prestação principal, pelo que pode surgir antes ou
após a sua extinção (deveres pré-contratuais e pós-contratuais) e inclusivamente
tutelar a situação de terceiros ao contrato (eficácia de proteção em relação a
terceiros).

Quanto às sujeições, contrapostas às situações jurídicas potestativas, poderemos


incluir entre elas situações como a faculdade de interpelação nas obrigações puras,
que coloca o devedor na situação de mora (art.º 805.º/n.º1) ou a resolução do contrato
em consequência do incumprimento (art.º 801.º/n.º2). Verifica-se que o direito de
crédito, não sendo estruturalmente um direito potestativo, pode incluir no seu seio
elementos de caráter potestativo.

Quanto aos poderes ou faculdades, podemos referir a faculdade de o devedor oferecer


a todo o tempo a prestação nas obrigações puras (art.º 777.º/n.º1) que, não sendo
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aceite, importa a colocação do credor em mora (art.º 813.º) e as faculdades de
determinar a prestação nas obrigações genéricas (art.º 539.º) e alternativas (art.º
543.º/n.º2).

Quanto às exceções, elas podem incluir a prescrição (art.º 303.º) a exceção de não
cumprimento do contrato (art.º 428.º), o beneficio da excussão (art.º 638.º) e o direito
de retenção (art.º 754.º).

Conclui-se que a obrigação constitui no fundo uma relação complexa, onde se


encontra algo mais que a simples decomposição dos seus elementos principais como
o direto à prestação e o dever de prestar. Abrange ainda deveres acessórios, sujeições,
poderes ou faculdades e exceções. Fala-se em “relação obrigacional complexa”.
Através desta expressão a doutrina faz referência ao facto de a obrigação não poder
ser reconduzível estruturalmente apenas aos elementos do direito de crédito e do
dever de prestação, mas incluir também um conjunto de situações jurídicas que se
unem num fim que é a realização do próprio interesse do credor, sendo este o fim da
obrigação.

Modalidades de Obrigações

1. As obrigações naturais. Problemática da sua inserção no


conceito de obrigação.

Elas são definidas pelo art.º 402.º como as obrigações que se fundam “num mero dever
de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas
corresponde a um dever de justiça”. O que carateriza as obrigações naturais é assim
a não exigibilidade judicial da prestação, resumindo-se a sua tutela jurídica à
possibilidade de o credor conservar a prestação espontaneamente realizada (soluti
retentio) a que se refere o art.º 403.º. Como consequência exclui-se a possibilidade de
repetição do indevido, referida no art.º 476.º, salvo no caso de o devedor não ter
capacidade para realizar a prestação.

Assim, se o devedor tiver capacidade para realizar a prestação e a efetuar


espontaneamente – ou seja, sem qualquer coação (art.º 403.º/n.º2) – já não pode pedir
a restituição do que prestou, mesmo que estivesse convencido, por erro, da
coercibilidade do vínculo.

As obrigações naturais não podem ser convencionadas livremente pelas partes no


exercício da sua autonomia privada, uma vez que uma convenção nesse sentido
equivaleria a uma renúncia do credor ao direito de exigir o cumprimento, o que é
expressamente vedado pelo art.º 809.º. Só poderão por isso admitir-se obrigações
naturais com base na disposição do art.º 402.º que se refere aos deveres de ordem
moral ou social que correspondam a um dever de justiça, de que seriam exemplos a
situação da obrigação prescrita, prevista no art.º 304.º/n.º2, o jogo e aposta, referido
no art.º 1245.º e o pagamento ao filho de uma compensação pela obtenção de bens
para os pais, a que se refere o art.º 1895.º/n.º2. Para além destes casos, a obrigação
natural é admitida genericamente, em todos os casos em que se possa considerar que
o cumprimento de um dever moral ou social corresponde a um dever de justiça.
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A lei manda aplicar às obrigações naturais o regime das obrigações civis em tudo o
que não se relacione com a realização coativa da prestação, salvas as exceções da lei
(art.º 404.º). Parece-nos que o alcance da remissão será muito mais reduzido do que
à primeira vista poderia parecer. Não lhes é aplicável o regime das fontes das
obrigações. Não nos parece que tenha cabimento a transmissão negocial de
obrigações naturais. Por outro lado, a exigência da espontaneidade do cumprimento
da obrigação natural é incompatível com a estipulação de garantias ou mesmo com a
aplicação do regime do cumprimento e do não cumprimento. Finalmente, as
obrigações naturais não se podem extinguir por prescrição, uma vez que as
consequências desta correspondem precisamente em transformar uma obrigação
civil em obrigação natural.

Para JOSÉ TAVARES, as obrigações naturais constituiriam, pelo contrário,


obrigações jurídicas imperfeitas. Para o autor, o que explica a não repetição do
indevido é o facto de a divida existir realmente, embora não tenha plena eficácia
jurídica por lhe faltar algum requisito previsto na lei.

A posição de GUILHERME MOREIRA veio a ser seguida por GALVÃO TELLES e


ANTUNES VARELA, para quem a obrigação natural constituiria um dever oriundo
de outras ordens normativas, a cujo cumprimento a lei atribuiria efeitos jurídicos.
Para GALVÃO TELLES, tratar-se-ia de “uma relação de facto, embora juridicamente
relevante”. De acordo com ANTUNES VARELA, as obrigações naturais constituiriam
deveres oriundos de outras ordens normativas, imperativos éticos ou sociais, que
apenas seriam relevantes para o direito por serem deveres de justiça, sendo por isso
juridicamente qualificada essa atribuição como cumprimento e não como liberdade.

A solução que nos parece adequada, é, porém, a de que a obrigação natural não
constitui uma verdadeira obrigação jurídica, na medida em que nela não existe um
vinculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fique adstrita para com outra à
realização da prestação (art.º 397.º). A simples existência de um dever moral e social,
que corresponda a um dever de justiça não basta para se considerar subsistente na
obrigação natural um vinculo jurídico, uma vez que é a própria lei que recusa ao
credor natural a tutela jurídica desse direito ao negar-lhe a faculdade de exigir
judicialmente o cumprimento. Ora essa faculdade integra o conteúdo do direito de
crédito e não é dele concetualmente separável (e justamente por isso a lei proíbe que
o credor a ela renuncie antecipadamente – art.º 809.º). Por outro lado, nas obrigações
civis o cumprimento da obrigação não aumento o património do credor, uma vez que
o devedor se limita a solver um crédito, que já consistia um valor patrimonial no
âmbito desse património. Na obrigação natural a situação é radicalmente distinta.
Sem a faculdade de exigir o cumprimento, o direito de crédito não tem conteúdo, não
podendo nunca considerar-se como um valor no ativo patrimonial. Justamente por
isso o cumprimento da obrigação representa um incremento do património do credor
natural à custa do património do respetivo devedor, o que leva a que a situação se
aproxime da doação, apenas dela se distinguindo pela ausência de espirito de
liberdade (art.º 940.º). É aliás essa proximidade às liberdades e a consequente
diferenciação das obrigações civis que justifica que o art.º 615.º/n.º2 exclua da
impugnação pauliana o cumprimento das obrigações civis e o admita quanto às
obrigações naturais.
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Nas obrigações naturais, não existe, consequentemente um direito primário à
prestação, como direito de crédito. A lei limita-se a reconhecer causa jurídica à
prestação realizada espontaneamente, excluindo que o prestante possa vir a recorrer
à repetição do indevido. O art.º 476.º/n.º1, determina que o regime da repetição do
indevido é aplicável, “sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais”, o que
implica a consideração de que as obrigações naturais são uma simples exceção ao
regime da repetição do indevido, que seria potencialmente aplicável em virtude de
se estar perante um caso de inexistência da obrigação. A interpretação da restrição
do art.º 476.º/n.º1, baseia-se no facto de o legislador reconhecer que o cumprimento
da obrigação natural é juridicamente não devido, mas que esse mesmo cumprimento
espontaneamente realizado, por corresponder a um dever de justiça, constitui uma
causa jurídica para a receção da prestação, que exclui a aplicação do enriquecimento
sem causa.

2. Classificação das obrigações em função dos tipos de prestações


2.1. Prestações de coisa e prestações de facto
Prestações de coisa são aquelas cujo objeto consiste na entrega de uma coisa. Por
exemplo, na hipótese de alguém comprar um bem, o vendedor obriga-se a entregá-lo
(art.º 879.º/b)). Prestações de facto são aquelas que consistem em realizar uma
conduta de outra ordem, como na hipótese de alguém se obrigar a cuidar de um
jardim (art.º 1154.º).

A classificação entre prestações de coisa e prestações de facto pode ser aproximada


da classificação económica entre bens e serviços. Efetivamente, as prestações de coisa
dizem respeito ao fornecimento de bens e as prestações de facto à realização de
serviços. Juridicamente estas duas realidades justificam outras distinções.

Tradicionalmente a prestação de coisa costumava ser dividida em prestações de dare,


praestare ou restituere (dar, prestar e restituir), consoante respetivamente a
prestação envolvesse a transmissão da propriedade da coisa, ou a simples posse sobre
ela (como em caso de concessão de um direito pessoal de gozo) ou respeitasse à sua
restituição, findo o contrato.

Os bens futuros são aqueles que, não tendo existência, não possuindo autonomia
própria ou não se encontrando na disponibilidade do sujeito, são objeto de negócio
jurídico na perspetiva da aquisição futura destas caraterísticas. – GALVÃO
TELLES.

Já há algumas restrições à constituição de obrigações sobre coisas futuras uma vez


que, embora o art.º 399.º admita genericamente a prestação de coisa futura, refere
logo, porém, a existência de casos em que a lei a proíbe. Efetivamente, os bens futuros
podem ser objeto da compra e venda (art.º 880.º), mas já não podem ser objeto de
doação (art.º 942.º/n.º1).

As prestações de facto também admitem uma classificação entre prestações de facto


positivo (facere) e prestações de facto negativo (que por sua vez se subdividem em
prestações de non facere e de pati). As prestações de facto positivo são aquelas em
que a prestação tem por objeto uma ação e as de facto negativo aquelas em que a
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prestação tem por objeto uma omissão do devedor. Estas admitem, porém, ainda uma
distinção consoante a omissão que é objeto da prestação corresponda a não realizar
determinada conduta (prestação de non facere) ou antes a tolerar a realização de uma
conduta por outrem (prestação de pati).

É ainda possível relativamente às prestações de facto, estabelecer uma subdistinção


entre prestações de facto material e prestações de facto jurídico. Nas primeiras, a
conduta que o devedor se compromete a realizar é uma conduta puramente material,
não destinada à produção de efeitos jurídicos (ex.: realizar ou não realizar
determinada obra). Nas segundas, a conduta do devedor aparece destinada à
produção de efeitos jurídicos, sendo assim esse resultado jurídico incluído na
prestação (celebrar ou não celebrar determinado contrato).

2.2. Prestações fungíveis e prestações infungíveis


Prestações fungíveis são aquelas em que a prestação pode ser realizada por outrem
que não o devedor, podendo assim este fazer-se substituir no cumprimento. Pelo
contrário prestações infungíveis são aquelas em que só o devedor pode realizar a
prestação, não sendo permitida a sua realização por terceiro.

O art.º 767.º/n.º1, determina que a prestação pode ser realizada por terceiro,
interessado ou não no cumprimento da obrigação. Desta norma, resulta que, regra
geral, as prestações são fungíveis. Mas já o art.º 767.º/n.º2, refere os casos em que a
prestação é infungível: quando a substituição do devedor no cumprimento prejudica
o credor (infungibilidade natural), ou quando se tenha acordado expressamente que
a prestação só pode ser realizada pelo devedor (infungibilidade convencional).
A fungibilidade da prestação é em regra, pelo que o devedor pode em principio fazer-
se substituir no cumprimento. Por exemplo, um advogado encarregado de um
processo pode fazer-se substituir por um colega na realização do julgamento, sem que
o cliente a isso possa obstar. Sempre que, a substituição prejudique o credor, a
realização da prestação pelo terceiro não é admitida, pelo que a prestação é
naturalmente infungível.

A fungibilidade da prestação tem uma importância especial para efeito da execução


especifica da obrigação. Efetivamente, se a prestação é fungível, o credor pode, sem
prejuízo do seu interesse, obter a realização da prestação de qualquer pessoa e não
apenas do devedor. Admite-se que o credor requeira ao tribunal que determine a
realização da prestação por outra pessoa, às custas do devedor. Assim, se a prestação
consistir na entrega de coisa determinada, o credor pode requerer em execução que
a entrega lhe seja feita (art.º 827.º), obtendo, por via executiva, a realização da
prestação por outrem, que não o devedor. Também as prestações de facto positivo
podem, quando fungíveis, ser sujeitas à execução especifica, que consiste em requerer
a realização por outrem da atividade que o devedor se tinha comprometido a realizar
(art.º 828.º). Um fenómeno semelhante ocorre em relação às prestações de facto
negativo fungíveis em que, se a atuação consistir na realização de uma obra, se pode
requerer que a obra em questão seja demolida à custa do que se obrigou a não fazer
(art.º 829.º). E, finalmente, mesmo que a prestação consista na realização de uma
atividade jurídica (p. ex., a celebração de um contrato) admite-se a substituição no
cumprimento, através da emissão pelo tribunal de uma sentença com os mesmos
efeitos do contrato prometido (art.º 830.º).
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Se a prestação é infungível, a substituição do devedor no cumprimento já não é
possível, pelo que a lei não admite a execução específica da obrigação. Em alguns
casos a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, que visa precisamente
coagir o devedor a cumprir a obrigação (art.º 829.º-A). Alem disso, as obrigações
infungíveis estão sujeitas a um regime especifico em caso de impossibilidade da
prestação, uma vez que nelas a impossibilidade relativa à pessoa do devedor (o pintor
fica sem a mão direita) acarreta mesmo a extinção da obrigação, em virtude de não
ser admitida a sua substituição no cumprimento (art.º 791.º).

2.3. Prestações instantâneas e prestações duradouras


Uma importante classificação é a que distingue entre prestações instantâneas e
prestações duradouras. As primeiras são aquelas cuja execução ocorre num único
momento (ex.: a entrega da coisa no contrato de compra e venda – art.º 879.º/b)). As
segundas são aquelas cuja execução se prolonga no tempo, em virtude de terem por
conteúdo ou um comportamento prolongado no tempo uma repetição sucessiva de
prestações isoladas por um período de tempo (p. ex., as prestações relativas aos
contrato de locação, de sociedade, de mútuo, de trabalho, ou contratos de
fornecimento como os de gás ou eletricidade).

O essencial para a caraterização de uma prestação como duradoura é que a sua


realização global dependa sempre do decurso de um período temporal, durante o qual
a prestação deve ser continuada ou repetida. Neste âmbito pode distinguir-se entre
prestações duradouras continuadas ou periódicas. Nas primeiras a prestação não
sofre qualquer interrupção (v.g., a prestação do locador, prevista no art.º 1031.º/b),
ou o fornecimento de eletricidade). Nas segundas, a prestação é sucessivamente
repetida em certos períodos de tempo (v.g., o pagamento da renda pelo locatário,
referido no art.º 1038.º a), ou o pagamento de juros pelo mutuário, referido no art.º
1145.º/n.º1). Em ambos os casos, porém, trata-se de uma prestação duradoura,
atendendo a que ela aumenta em função do decurso do tempo.

Pelo contrário, as prestações instantâneas não têm o seu conteúdo e extensão


delimitados em função do tempo. Estas prestações podem ainda classificar-se em
prestações instantâneas integrais ou fracionadas. As primeiras são as que são
realizadas de uma só vez (ex. a entrega da coisa pelo vendedor: art.º 882.º, ou a
realização da obra pelo empreiteiro: art.º 1208.º). as segundas são aquelas em que o
seu montante global é dividido em várias frações, a realizar sucessivamente (ex. o
pagamento do preço na venda a prestações, referido no art.º 934.º).

As prestações instantâneas fracionadas poderiam ser confundidas com as prestações


duradouras periódicas. A distinção é, no entanto, fácil de estabelecer. Nas prestações
fracionadas está-se perante uma única obrigação cujo objeto é dividido em frações,
com vencimentos intervalados, pelo que há sempre uma definição prévia do seu
montante global e o decurso do tempo não influi no conteúdo e extensão da prestação,
mas apenas no seu modo de realização. Assim, na compra e venda a prestações, o
preço é previamente fixado em globo, servindo o decurso do tempo apenas para
escalonar a sua divisão em partes. Nas prestações periódicas, verifica-se uma
pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de um vinculo fundamental
que sucessivamente as origina, pelo que, por definição, não pode haver qualquer
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fixação inicial do seu montante global, já que é o decurso do tempo que determina o
número de prestações que é realizado. Assim, o locatário só deve as rendas
correspondentes ao tempo de duração do contrato de locação, sendo sempre em
função do decurso do tempo que se determina o conteúdo da sua obrigação.

O facto de o decurso do tempo determinar o conteúdo da obrigação e não apenas o


momento em que esta deve ser realizada é assim o que distingue as prestações
duradouras das instantâneas. Mesmo nas prestações fracionadas, o decurso do
tempo não influi no conteúdo da obrigação, mas apenas determina o seu vencimento
(art.º 805.º/n.º2/a)), o qual pode mesmo em certos casos ocorrer antecipadamente a
esse momento (art.º 781.º). Pelo contrário, nas prestações duradouras, contínuas ou
periódicas, o decurso do tempo influi no conteúdo e extensão da obrigação, pelo que
a extinção ou alteração do contrato antes do decurso do prazo implica a não
constituição ou a alteração da prestação relativa ao tempo posterior.

O facto de estes contratos se poderem prolongar no tempo implica que a lei deva
assegurar também alguma limitação à sua duração, sob pena de a liberdade
económica das partes poder ficar seriamente comprometida. Efetivamente, a
vinculação absoluta a um contrato de execução duradoura não delimitado
temporalmente implicaria que as partes não pudessem celebrar durante um período
longo e indefinido contratos semelhantes com outros concorrentes, limitando assim
a sua autonomia privada e pondo em causa a liberdade de concorrência em que
assenta o nosso sistema económico.

A lei tem assim de assegurar uma delimitação temporal aos contratos de execução
duradoura, o que é realizado através do acordo prévio das partes fixando um limite
temporal ao contrato – caso em que o decurso do tempo importa a extinção do
contrato por caducidade – ou, quando isso não sucede, através do instituto da
denuncia do contrato. A denuncia do contrato é um instituto típico dos contratos de
execução duradoura e carateriza-se por permitir, quando as partes não fixaram a
duração do contrato, que qualquer delas proceda à sua extinção para o futuro,
através de um negócio jurídico unilateral recetício. Assim, se alguém celebra um
contrato de execução duradoura, o contrato pode manter-se durante um certo lapso
de tempo, mas não vigora ilimitadamente, uma vez que ambas as partes têm o direito
de o denunciar para o futuro (denúncia do contrato).

Não está excluída neles a aplicação de resolução do contrato, para o que se exigem
fundamentos específicos, correspondentes à inexigibilidade de manutenção por mais
tempo do vinculo contratual, distintos do genérico incumprimento das obrigações da
outra parte.

Uma outra caraterística dos contratos de execução duradoura é um desvio ao regime


da resolução dos contratos, documentado no art.º 434.º/n.º2. Efetivamente, se a
resolução do contrato tem normalmente efeito retroativo (art.º 434.º/n.º1), nos
contratos de execução continuada ou periódica, pelo contrário, ela não abrange as
prestações já executadas, a não ser que entre elas e a causa de resolução exista um
vínculo que legitime a resolução de todas elas (art.º 434.º/n.º2). Tal explica-se devido
ao facto de nas prestações duradouras o decurso do tempo determinar o conteúdo da
obrigação e não apenas o momento em que esta deve ser realizada. Por esse motivo,
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Direito das Obrigações
o tempo em que o contrato vigorou constitui nas partes o direito às prestações
recebidas, que não é afetado pela resolução do contrato. Por esse motivo, a resolução
nestes contratos só opera normalmente para o futuro, não tendo efeito retroativo, a
menos que a causa da resolução seja reportada às prestações já realizadas.

Finalmente, os contratos de execução duradoura caraterizam-se por neles vigorarem


com maior intensidade os deveres de boa-fé. Efetivamente, trata-se de relações que,
atendendo à sua duração, pressupõem uma intensa relação de confiança e
colaboração entre as partes, o que pressupõe uma aplicação mais intensa do principio
da boa-fé e dos deveres acessórios de proteção, informação e lealdade em ordem a
manter uma permanente confiança recíproca e entendimento mútuo no âmbito
daquele contrato. Daqui resulta que, se alguma das partes vier a lesar a confiança
da outra, mesmo que não incumprindo uma prestação recíproca, ela tenha o direito
de resolução do contrato, com fundamento em justa causa (art.º 1002.º, 1140.º, 1150.º,
1194.º e 1201.º).

2.4. Prestações de resultado e prestações de meios


Segundo esta classificação, nas prestações de resultado, o devedor vincular-se-ia
efetivamente a obter um resultado determinado, respondendo por incumprimento se
esse resultado não fosse obtido. Nas prestações de meios, o devedor não estaria
obrigado à obtenção do resultado, mas apenas a atuar com diligencia necessária para
que esse resultado seja obtido. Assim, enquanto o transportador estaria obrigado a
entregar a coisa transportada num lugar e tempo determinado (prestação de
resultado), o médico estaria apenas obrigado a desenvolver os seus melhores esforços
para que a cura do doente seja obtida (prestação de meios).

O interesse da distinção resulta na forma de estabelecimento do ónus da prova. Nas


prestações de resultado, bastaria ao credor demonstrar a não verificação do resultado
para estabelecer o incumprimento do devedor, sendo este que, para se exonerar de
responsabilidade, teria de demonstrar que a inexecução é devida a uma causa que
não lhe é imputável. Nas prestações de meios não é suficiente a não verificação do
resultado para responsabilizar o devedor, havendo que demonstrar que a sua
conduta não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado. Assim o
transportador que não entrega as mercadorias no local e tempo estipulados fica
sujeito a responsabilidade, salvo se demonstrar a ocorrência de fatores externos que
a excluam, como os de o facto ser imputável ao credor ou devido a causa de força
maior. Pelo contrário, o facto de o doente não se ter curado não indicia a
responsabilidade do médico, cabendo àquele demonstrar, que o processo que visava
obter a cura não foi conduzido com a adequada diligência.

2.5. Prestações determinadas e prestações indeterminadas


2.5.1. Generalidades

Resulta dos artigos 280.º e 400.º que a prestação, enquanto objeto da obrigação, não
necessita de se encontrar determinada no momento da conclusão do negócio,
bastando que seja determinável. Assim sucede quando, por exemplo, as partes
celebram um negócio sem estabelecer integralmente a forma da prestação ou o
montante da contraprestação.

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Direito das Obrigações
Tal permite estabelecer uma distinção entre prestações determinadas e prestações
indeterminadas. As primeiras são aquelas em que a prestação se encontra
completamente determinada no momento da constituição da obrigação. As segundas
são aquelas em que a determinação da prestação ainda não se encontra realizada,
pelo que essa determinação terá de ocorrer até ao momento do cumprimento.

2.5.2. As obrigações genéricas


O art.º 539.º define as obrigações genéricas como aquelas em que o objeto da
prestação se encontra apenas determinado quanto ao género. Isto significa que a
prestação se encontra determinada apenas por referência a uma certa quantidade,
peso ou medida de coisas dentro de um género, mas não esta ainda concretamente
determinado quais os espécimes daquele género, mas não está ainda concretamente
determinado quais os espécimes daquele género que vão servir para o cumprimento
da obrigação. Exemplos serão a obrigação de entrega de vinte garrafas de vinho ou
de dez quilos de maçãs. Há uma referência ao género – vinho, maçãs – e à quantidade
– vinte garrafas, dez quilos -, ainda não estão concretizadas quais as unidades – as
garrafas ou maçãs – com que o devedor deverá cumprir a obrigação. Daí que a
obrigação se denomine genérica, pois apenas o género se encontra determinado. Pelo
contrário, a obrigação específica é aquela em que tanto o género como os espécimes
da prestação se encontram determinados.

As obrigações genéricas são bastante comuns no comércio, ocorrendo quase sempre


que se efetua uma negociação sobre coisas fungíveis (art.º 207.º).

O facto de a obrigação ser genérica implica naturalmente que tenha de ocorrer um


processo de individualização dos espécimes dentro do género. É a denominada
escolha que, nos termos do art.º 400.º, pode caber a ambas as partes (credor ou
devedor) ou a terceiro. Nos termos do art.º 539.º a regra é a de que a escolha cabe ao
devedor, referindo o art.º 542.º as hipóteses excecionais de a escolha caber ao credor
ou a terceiro. Pergunta-se, no entanto, se o devedor é absolutamente livre na escolha
que faz, podendo por exemplo escolher as garrafas do vinho de pior qualidade da sua
adega ou as frutas com pior aspeto do seu armazém? Entre nós, MENEZES
CORDEIRO, pronunciou-se também nesse sentido, invocando o regime da integração
dos negócios jurídicos segundo os ditames da boa-fé, a que faz referência o art.º 239.º.
Essa solução parece, no entanto, resultar diretamente do art.º 400.º que, ao
estabelecer que a determinação da prestação deve ser realizada segundo juízos de
equidade, implica que esta deve ser adequada à satisfação do interesse do credor, o
que normalmente não ocorrerá se a prestação for exclusivamente determinada com
coisas de qualidade inferior.

A nossa lei consagrou relativamente à concentração das obrigações genéricas por


escolha do devedor como regra geral a teoria da entrega de JHERING. Essa solução
resulta do art.º 540.º que, ao referir que enquanto a prestação for possível com coisas
do género estipulado não fica o devedor exonerado pelo facto de terem perecido
aquelas com que se dispunha a cumprir (genus nunquam perit), consagra a
irrelevância geral da escolha ou do envio para efeitos de concentração da obrigação
genérica. Se o devedor continua a ter de entregar coisas do mesmo género, isso
significa que a obrigação genérica ainda não se concentrou, pelo que essa
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concentração da obrigação ainda não se concentrou, pelo que essa concentração
apenas ocorre, regra geral, com o cumprimento. É esse, também o momento da
transferência da propriedade sobre as coisas objeto da obrigação genérica, já que, em
face do art.º 408.º/n.º2, a transmissão da propriedade sobre coisas genéricas exige a
sua concentração, que normalmente apenas ocorre mediante a entrega pelo devedor
(art.º 540.º).

Conclui-se assim que, no nosso direito, a concentração da obrigação genérica, quando


a escolha compete ao devedor, apenas se dá no momento do cumprimento, podendo
até lá o devedor revogar escolhas que anteriormente tenha realizado. Tal só não
sucederá se tiver perdido a possibilidade material de o fazer (perecimento das
restantes coisas do género), ou se a escolha tiver sido aceite, o que significa que as
partes por acordo modificaram a obrigação, transformando-a em específica. Não há
assim desvios à consagração da teoria da entrega no art.º 540.º, com soluções
próximas da teoria da escolha ou do envio, pois a mora do credor não deve impedir a
realização de nova escolha pelo devedor até ao cumprimento que se trata.

Diferentemente se passam as coisas quando a escolha compete ao credor ou a


terceiro. Nesses casos, a nossa lei adota plenamente a teoria da escolha, referindo o
art.º 542.º que, uma vez realizada pelo credor ou pelo terceiro, passa a ser irrevogável.
Consequentemente, a escolha pelo credor ou pelo terceiro concentra imediatamente
a obrigação, desde que declarada respetivamente ao devedor ou a ambas as partes.
Se, no entanto, a escolha couber ao credor e este não a fizer dentro do prazo
estabelecido ou daquele que para o efeito lhe for fixado pelo devedor, é a este que a
escolha passa a competir (art.º 542.º/n.º2). Naturalmente que nesta situação passam
a ser aplicáveis as disposições do art.º 540.º e 541.º, como se a escolha coubesse ao
devedor desde o inicio.

2.6. As Obrigações pecuniárias


2.6.1. Generalidades
Estas correspondem às obrigações que têm dinheiro por objeto, visando proporcionar
ao credor o valor que as respetivas espécies monetárias possuam. Estes dois
requisitos são cumulativos. Se a obrigação tem dinheiro por objeto, mas não visa
proporcionar ao credor o valor dele (ex.: entrega de determinadas moedas e notas,
para entregar uma coleção) não estaremos perante uma obrigação pecuniária.
Também não estaremos perante uma obrigação pecuniária, se a obrigação visar
apenas proporcionar ao credor um valor económico (de um determinado objeto ou de
uma componente do património), não tendo assim por objeto a entrega de quantias
em dinheiro. Neste caso, falar-se-á antes em divida de valor, a qual se carateriza por
ter por objeto um valor fixo, que não sofre alteração em caso de desvalorização da
moeda, não suportando assim o credor o risco correspondente. A divida de valor terá,
no entanto, em certo momento, que ser liquidada em dinheiro, pelo que nesse
momento se converterá em obrigação pecuniária.

O dinheiro, objeto destas obrigações, assegura na ordem económica simultaneamente


as funções de meio geral de trocas, meio legal de pagamento e unidade de conta. A
função de meio geral de trocas advém do facto de o dinheiro, em função do seu poder
de compra, ser utilizado para efeitos de aquisição e alienação de bens e serviços,
funcionando como meio intermediador da circulação desses bens. A função do meio
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legal de pagamento resulta do facto de, por força de uma disposição legal, ser
atribuída eficácia liberatória à entrega de espécies monetárias em pagamento das
obrigações pecuniárias, vinculando-se assim o credor à sua aceitação. A função de
unidade de conta resulta do facto de, sendo o valor da moeda relativamente estável,
pode ser utilizado como medida do valor dos bens e serviços de qualquer tipo.

CONTRATOS, GENERALIDADES

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1. Noção de contrato
Diz-se contrato o acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de
vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas, mas
perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição
unitária de interesses.

O Código português além de admitir a constituição de obrigações com prestação de


caráter não patrimonial (art.º 398.º/n.º2), considera expressamente como contratos o
casamento (art.º 1577.º), do qual brotam relações essencialmente pessoais, bem como
o pacto sucessório (art.º 1701.º, 2026.º e 2028.º), que é fonte de relações mortis causa.

O contrato pode ser hoje, por conseguinte, não só fonte de obrigações (da sua
constituição, transferência, modificação ou extinção), mas de direitos reais,
familiares e sucessórios.

2. Análise jurídica do conceito. Princípio voluntarista (solus


consensus)
Três correntes de pensamento, no entender de alguns autores, contribuíram
decisivamente para a formação do novo conceito.

Destaca-se, em primeiro lugar, o ensinamento dos canonista, que pregaram o dever


moral de fidelidade à palavra dada, condenando o perjúrio como pecado e realçando
o valor dos nuda pacta, independentemente de qualquer formalismo ou solenidade
negocial, foram os canonistas quem, a partir do século XVI, mais decididamente
combateu o culto fetichista da forma (a emissão da declaração perante certas
testemunhas ou em determinado local; o respeito de fórmulas sacramentais; a
observância de ritos solenes, como o aperto de mãe a selar a conclusão do contrato ou
a prática de certos atos litúrgicos v.g., a troca de alianças dos esponsais) como a
verdadeira fonte da força vinculativa da promessa feita.

A velha máxima pacta sunt servanda aparece já defendida pelos antigos canonistas,
embora tendo especialmente em vista as relações entre Estados.

Em segundo lugar, a contribuição doutrinária da escola jusracionalista do Direito


natural e do Iluminismo setecentista, que colocaram a liberdade individual no centro
ideológico de todo o sistema jurídico, afirmando a supremacia da vontade esclarecida
do homem entre as forças criadoras do Direito (solus consensus obligat).

Foi o jusnaturalismo que mais contribuiu para espiritualizar o contrato, libertando-


o da carga ritual, simbólica, materialista ou formalista que, durante séculos, cobriu
a pureza ou a essência do fenómeno jurídico.

Em terceiro lugar, o voluntariado jurídico, estimulado pelas necessidades da


burguesia triunfante, interessada em desembaraçar o comércio jurídico das peias
sociais, muitas delas de origem feudal, que desnecessariamente entorpeciam o seu
desenvolvimento.

À ação conjugada desses três fatores se deve a nova fisionomia jurídica do contrato.

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Digna de menção é também a forma como, a partir sobretudo do momento da
codificação, se transitou da consideração dos vários contratos singulares, herdados
do direito romano e do período medieval (como a compra e venda, a locação, o
mandato, o comodato), para a categoria abstrata de contrato.

O contrato é essencialmente um acordo vinculativo de vontades opostas, mas


harmonizáveis entre si.

O seu elemento fundamental é o mutuo consenso.

Se as declarações de vontade das partes, apesar de opostas, não se ajustam uma à


outra, não há contrato, porque falta o mútuo consentimento. Não há nesse caso o cum
- trahere a que alude etimologicamente o vocábulo contrato.

Se A quer vender o apartamento do 1.º andar e B declara querer comprar o do 10.º


andar ou se A quer vender o do 10.º, mas por 250.000 euros, enquanto B só se dispõe
a dar 200.000, há dissenso entre as partes e o contrato não chega a formar-se.

Para que haja contrato, em obediência à livre determinação das partes que está na
base do conceito, torna-se indispensável que o acordo das vontades, resultante do
encontro da proposta de uma das partes com a aceitação da outra, cubra todos os
pontos da negociação (art.º 232.º).

Se a proposta do destinatário da proposta contratual não for de pura aceitação,


haverá que considerá-la, em homenagem à vontade do proponente, como rejeição da
proposta recebida ou como formação de nova proposta, até se alcançar o pleno acordo
dos contraentes (art.º 233.º).

E é essencial que as partes queiram um acordo vinculativo, um pacto colocado sob a


alçada do Direito. Não basta, para que haja contrato, um simples acordo amigável,
de cortesia, de camaradagem ou de obsequiosidade (os pais que combinam levar os
filhos alternadamente ao colégio, o passageiro que promete ao companheiro de
carruagem acordá-lo na estação da Pampilhosa; ou o gentlemen’s agreement dos dois
grandes acionistas da mesma sociedade). Nem bastará que os negociadores
destacados pelas empresas para prepararem o contrato tenham chegado a acordo
sobre todos os pontos que interessavam à sua celebração. É necessário que haja
ainda, por parte dos representantes das empresas, a vontade de tornar juridicamente
vinculativo o acordo, aquilo que os alemães expressivamente chamam a
Gentungswille (a vontade de pôr o acordo de pé, a valer).

As vontades, que integram o acordo contratual, embora concordantes ou ajustáveis


entre si, têm de ser opostas, animadas de sinal contrário.

O vendedor quer obter dinheiro, desfazendo-se da coisa vendida; o comprador quer


alcançar a coisa, abrindo mão do dinheiro de que dispõe.

Se as declarações de vontade são concordantes, mas caminham no mesmo sentido,


refletindo interesses paralelos, não há contrato, mas ato coletivo ou acordo, como
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sucede com várias pessoas que se reúnem para formar uma associação ou para
constituir uma fundação, com os cônjuges que escolhem o nome e os apelidos que
devem compor o nome do filho.

Quando as declarações de vontade se fundem, não para formar um acordo sobre


interesses contrapostos, mas para apurar, por sufrágio, a vontade de um órgão
colegial, também não há contrato, mas deliberação.

Enquanto o contrato só vincula quem o aceitou, a deliberação pode impor-se a quem


votou contra ela ou a quem não participou sequer na sua formação.

3. Conceção normativista ou precetivista do contrato


Alguns autores colocam o acento tónico do contrato, não nos direitos e obrigações
concretamente criados pelos outorgantes, mas no regulamento de interesses
instituído pelo acordo, equiparam, de facto, o contrato às normas jurídicas. O
contrato seria, essencialmente, um ato normativo. O contrato é o mais genuíno
expoente da autonomia privada, precisamente porque através do instrumento
contratual criam as partes, por sua livre iniciativa, as normas reguladoras dos seus
conflitos de interesses. Esta é a conceção normativista, precetivista ou objetivista do
contrato.

As regras nascidas das clausulas contratuais destinadas a regular pontualmente o


interesses concretos dos dois contraentes, não podem ser equiparadas às normas
jurídicas, que visam disciplinar, em termos abstratos, conflitos duma generalidade
mais ou menos ampla de pessoas.

À interpretação e integração das normas jurídicas são, por isso, aplicáveis as regras
(art.º 9.º e 15.º) muito diferentes daquelas que vigoram para as declarações
contratuais (236.º e 239.º).

Enquanto as normas jurídicas podem, em principio, ser alteradas por nova lei, com
eficácia retroativa, o mesmo não sucede com as clausulas contratuais, cuja
interpretação e integração devem sempre ser realizadas à luz do direito vigente na
data da conclusão do contrato. Se as partes, por acordo, alterarem a convenção por
elas anteriormente estabelecida, é do novo contrato, e não do precedente, que a
alteração procede, ao invés do que sucede se uma nova lei imperativa modificar o seu
conteúdo.

Repugna reconhecer aos simples particulares, nomeadamente às empresas privadas,


o poder de criarem normas jurídicas, usurpando as funções próprias das câmaras
legislativas, embora não custe aceitar a sua legitimidade para livremente regulares
os seus interesses específicos e particulares.

4. As relações contratuais de facto


Numa curiosa investigação sobre a matéria, HAUPT aponta alguma categorias de
situações jurídicas, a cuja disciplina seria aplicável ao regime dos contratos, sem que
haja na sua base um acordo de declarações de vontade dos contraentes. Tratar-se-ia

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de relações contratuais de facto, não nascidas de negócio jurídico, assentes em puras
atuações de facto.

A primeira das categorias apontadas pelo autor engloba os casos em que a disciplina
contratual se aplica às relações nascidas do simples contacto social entre as pessoas,
antes da celebração, ou independentemente até da celebração de qualquer negócio
jurídico. Trata-se dos casos típicos da culpa in contrahendo, entre os quais avulta o
da responsabilidade na preparação e formação do contrato.

A segunda categoria compreenderia as relações jurídicas provenientes de contratos


ineficazes, porquanto a ineficácia do contrato, com a consequente destruição do
acordo entre as vontades dos contraentes, não impede a aplicação (por vezes intensa
e duradoura, como nos contratos de prestação continuada ou periódica) das normas
próprias dos negócios bilaterais (válidos).

A terceira categoria abrangeria os casos (vulgaríssimos no tráfico jurídico de massas,


muito característico nos dias de hoje) em que as relações entre as partes assentam
sobre atos materiais reveladores da vontade de negociar, mas que não se reconduzem
aos moldes tradicionais do mútuo consenso. É o caso da utilização dos transportes
públicos, dos meios públicos de comunicação, das máquinas automáticas dos parques
de estacionamento remunerado, em que não há nenhuma declaração de vontade do
utente e, todavia, se não duvida da subordinação da situação criada pelo seu
comportamento ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual
necessidade de algumas adaptações.

As pessoas entrem no autocarro ou no metro, ou deixam o automóvel no parque de


estacionamento, sem emitirem nenhuma declaração de vontade e sem estabelecerem
nenhum acordo prévio com a empresa transportadora ou exploradora do parque.
Limitam-se a praticar um facto, que é uma forma típica de utilização do serviço.

Não se demonstra, porém, que seja indispensável recorrer a uma figura especial,
distinta do contrato, como seja a das relações contratuais de facto para cobrir as
soluções fundadamente propugnadas por HAUPT e seus continuadores.

No tocante à primeira categoria, bastará observar que o principio básico da boa-fé se


estende, não apenas à execução do contrato (ao cumprimento da obrigação e ao
exercício correlativo direito de crédito: art.º 762.º/n.º2), mas também ao período da
preparação e formação do contrato (art.º 227.º/n.º1).

Relativamente à segunda, cumpre também salientar que ao conceito naturalístico da


nulidade (quod nultum est nullum producit efectum) e à própria conceção da
invalidade do negocio como um direito de critica se sobrepõem os conceitos
normativos (ou valorativos) da nulidade, anulabilidade ou da inoponibilidade,
perfeitamente amoldáveis, não apenas pelas suas causas, mas também pelos seus
efeitos, à extrema variedade das situações jurídicas a que se aplicam.

5. Formação do contrato sem declaração de aceitação


Há uma disposição especial da nossa lei civil (art.º 234.º) que ajuda a compreender e
enquadrar uma parte importante desse fenómeno negocial.
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Diz-se nesse preceito que “quando a proposta, a própria natureza ou circunstâncias
do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, tem-se o
contrato por concluído logo que a conduta da outra parte mostre a intenção de aceitar
a proposta”.

Trata-se, por conseguinte, de casos em que, mercê de circunstâncias concomitantes


do negócios ou dos próprios usos), a lei tem o contrato por concluído sem declaração
de aceitação, embora se não prescinda da vontade de aceitação (da intenção de
aceitar).

É o caso típico do cliente que faz uma reserva para determinado dia num hotel ou do
livreiro que mando ao advogado, seu comprador habitual, uma novidade jurídica,
com o pedido de devolução imediata, se o destinatário já tiver o livro ou livro lhe não
interessar.

São situações em que, dispensando-se a declaração de aceitação, mas não se


prescindindo da vontade de aceitação, esta se demonstra as mais das vezes por atos
de execução da vontade (atuações ou execuções de vontade, como lhes chamava
MANUEL DE ANDRADE): a inscrição do cliente na lista de hospedes, a abertura de
folhas do livro recebido pelo correio, a assinatura do nome do comprador na capa do
livro ou na primeira folha interior, etc…

Fenómeno semelhante ocorre com o automobilista que estaciona o carro no parque


de estacionamento, com o passageiro que entra no metro, no autocarro ou na
carruagem do comboio (se antes não tiver adquirido bilhete, celebrando contrato de
transporte com a empresa). Também deles se pode dizer que, entrando no autocarro,
adquirindo o bilhete da maquina na estação do metro ou estacionando o automóvel
no parque, aceitam a oferta contratual tacitamente feita pelo outro contraente,
embora possam não emitir nenhuma declaração em tal sentido.

A lei inclui hoje abertamente no conceito das declarações negociais (art.º 217.º) todas
as formas de comportamento do homem (palavra, escrito ou outro meio) que
exteriorizam uma vontade (independentemente do intento da sua notificação). Nele
cabem, por conseguinte, a mera colocação de cabines telefónicas ou das máquinas
automáticas de jogo à disposição do público, mediante acionamento mecânico do
respetivo engenho e outras formas análogas de proposta contratual.

Por outro lado, quem pratica qualquer daqueles atos a que LARENZ chamava formas
de comportamento social típico não pode naturalmente pretender que o ato não seja
interpretado (e qualificado) de harmonia com o sentido que ele reveste aos olhos do
grande público (e da contraparte), visto que a sua reação não passaria de uma
protestatio facto contraria (ou de um venire contra factum proprium, condenado no
art.º 334.º do CC).

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Direito das Obrigações
6. A disciplina legislativa dos contratos. Princípios fundamentais
por que se rege.
Mais que uma das fontes das obrigações, o contrato, como negócio bilateral que é,
pode considerar-se em certo sentido a fonte natural das relações de crédito. Tendo
estas um sujeito ativo e um sujeito passivo, e sendo certo que nem sequer um
beneficio deve em regra ser atribuído a quem quer que seja contra sua vontade, é por
obra e graça da vontade de ambos os titulares (através do acordo contratual) que o
vínculo, em principio, há-de ser constituído.

Quanto à lei civil vigente, a maior parte do regime comum aos diferentes contratos -
no que designadamente se refere à sua formação: capacidade dos contraentes, forma
de declaração, perfeição do acordo, requisitos substanciais de validade, cláusulas
acessórias, etc. - é fixada na parte geral do Código dentro do capitulo que tem por
objeto o negócio jurídico (art.º 217.º e ss.).

À teoria geral das obrigações, porém, interessam apenas os efeitos do contrato como
fonte de relações jurídicas creditórias. E esse aspeto importante da vida dos contratos
desdobra-o a lei em duas partes: numa delas (que se estende desde o art.º 874.º até
ao 1250.º) estabelece a disciplina de cada um dos vários contratos em especial (típicos
ou nominados) que, sendo as especiais mais concorrentes no comércio jurídico,
servem de padrão ou modelo na grande massa das operações negociais; na outra, que
vai do art.º 405.º ao artigo 456.º, traça uma espécie de teoria geral do contrato, com
as regras aplicáveis, em principio, não só aos contratos em especial regulados na lei,
mas a quaisquer outros contratos celebrados pelas partes.

Os princípios fundamentais em que assenta toda a disciplina legislativa dos


contratos são os seguintes: a) o principio da autonomia privada, que atribui aos
contraentes o poder de fixarem, em termos vinculativos, a disciplina que mais
convém à sua relação jurídica; b) o princípio da confiança, assente no stare pactis,
segundo o qual cada contraente deve responder pelas expectativas que
justificadamente cria, com a sua declaração, no espirito da contraparte; c) o principio
da justiça comutativa ou equivalência objetiva, de acordo com o qual, nos
contratos a titulo oneroso (que são, de longe, os mais frequentes no comércio jurídico),
à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder uma prestação de valor
objetivo (ou subjetivo) sensivelmente equivalente da parte do outro contraente.

a) O principio da autonomia privada reveste, na área especifica dos negócios


bilaterais ou plurilaterais, a forma da liberdade contratual. Uma coisa é a
faculdade reconhecida aos particulares de fixarem livremente, segundo o seu
critério, a disciplina vinculativa dos seus interesses, nas relações com as
demais criaturas (autonomia privada). E outra coisa é o poder reconhecido às
pessoas de estabelecerem, de comum acordo, as clausulas reguladoras (no
plano do Direito) dos seus interesses contrapostos (liberdade contratual), que
mais convenham à sua vontade comum. A autonomia privada é um principio
de área bastante mais dilatada (do que a liberdade contratual), pois
compreende ainda a liberdade de associação (para a constituição de pessoas
coletivas), a liberdade de tomar deliberações nos órgãos colegiais, a liberdade

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Direito das Obrigações
de testar, a liberdade de celebrar acordos que não são contratos (como os que
abundam na vida da sociedade conjugal) e a liberdade de praticar numerosos
atos unilaterais (passar procuração, perfilhar, anular, revogar, resolver ou
denunciar negócios jurídicos, etc.) que concitam a tutela do Direito.
b) O princípio da confiança (pacta sunt servanda) explica, por sua vez, a força
vinculativa do contrato, a doutrina válida em matéria de interpretação e
integração dos contratos (art.º 236.º; 238.º; 239.º + art.º 217.º) e a regra da
imodificabilidade do contrato por vontade (unilateral) de um dos contraentes
(art.º 406.º/n.º1): quod prius est libertatis postea fit necessitatis. É com efeito,
a proteção da legítima expectativa criada pelo recebimento da proposta
contratual no espirito do destinatário que explica a irrevogabilidade dela pelo
proponente durante o período razoavelmente reservado à reflexão e decisão
deste (art.º 230.º)
c) O principio da justiça comutativa (ou da equivalência das prestações)
encontra-se, por seu turno, latente em várias disposições importantes do
nosso direito constituído, entre as quais podem salientar-se as seguintes: a) a
anulação ou modificação dos negócios usurários (art.º 282.º e ss.); b) a
possibilidade de redução oficiosa da cláusula penal excessiva (art.º 812.º); c) a
redução ou aumento do preço de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou
medição, no caso de divergência, alem de certo limite, entre a realidade e a
declaração das partes (art.º 888.º/n.º2); d) o direito à redução do preço no caso
da venda de coisas defeituosas (art.º 913.º) ou da venda de bens onerados, nas
circunstâncias previstas no art.º 911.º; e) as regras supletivas sobre repartição
de lucros e perdas nos contratos de sociedade (art.º 992.º a 994.º); f) a
possibilidade de redução da renda ou aluguer estipulado, nos casos em que o
locatário sofra privação ou diminuição do gozo da coisa locada (art.º 1040.º
CC).

7. O principio básico da liberdade contratual.


O preceito basilar que continua a servir de trave-mestra da teoria dos contratos é o
da liberdade contratual. A liberdade contratual consiste na faculdade que as partes
têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos
contratos que realizarem, celebrar contratos diferentes dos prescritos no CC ou
incluir nestes as clausulas que lhes aprouver (art.º 405.º). As partes são livres, ao
contratar, na medida em que podem seguir os impulsos da sua razão, sem estarem
aprisionadas pela jaula das normas legais.

A regra fundamental é a contida na primeira afirmação do texto - livre fixação do


conteúdo dos contratos.

A liberdade contratual é um corolário da autonomia privada, concebida como o poder


que os particulares têm de fixar, por si próprios (auto…), a disciplina (nomos)
juridicamente vinculativa dos seus interesses. A autonomia privada, que não se
confunde com o dogma da vontade, é mais ampla do que a liberdade contratual, que
se limita ao poder de autorregulamentação dos interesses concretos e contrapostos
das partes, mediante acordos vinculativos.

Antes, porém, da liberdade de fixação do conteúdo do contrato está implicitamente


consagrada no art.º 405.º a liberdade de contratar. A liberdade de contratar consiste
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na faculdade reconhecida às pessoas de criarem entre si, guiadas pela sua própria
razão, acordos destinados a regular os seus interesses recíprocos. E ao lado da
liberdade de contratar cabe ainda, no cerne da liberdade contratual, a liberdade de
escolha do outro contraente. Depois de livremente se decidir a contratar, cada um de
nos tem ainda a faculdade de eleger livremente a pessoa com quem pretende fechar
o contrato - caso ela também esteja disposta a negociar connosco. Qualquer destas
liberdades há-de respeitar os limites traçados na lei, quanto à capacidade negocial,
à forma excecionalmente prescrita para certos atos, à defesa da moral pública e dos
bons costumes, ou à imposição de certos tipos ou modelos contratuais (como sucede
no domínio das sociedades comerciais ou dos negócios de família por exemplo).

8. A liberdade de contratar e as suas limitações


As pessoas são livres na decisão de contratar ou não contratar, na escolha da pessoa
com quem hajam de contratam, na sua própria retratação, enquanto a proposta não
chega ao poder do destinatário (art.º 230.º), na modificação ou extinção do seu acordo.
O indivíduo pode ir fazer a barba ao barbeiro ou barbear-se a si próprio. O lavrador
pode vender o vinho a outrem ou gastá-lo em sua própria casa. Se este poder de livre
decisão for violado, sendo o declarante coagido a aceitar ou a formular qualquer
proposta, o contrato não produzirá nenhum efeito ou será anulável, consoante haja
coação absoluta (art.º 246.º) ou simples coação moral (art.º 256.º).

A liberdade reconhecida às partes aponta para a criação do contrato. E o contrato é


um instrumento jurídico vinculativo é um ato com força obrigatória. É a lex
contractus. Liberdade de contratar é, por conseguinte, a faculdade de criar sem
constrangimento um instrumento objetivo, um pacto que, uma vez concluído, nega a
cada uma das partes a possibilidade de se afastar (unilateralmente) dele - pacta sunt
servanda. A razão da vinculação esta em que a promessa livremente aceita por cada
uma das partes crias expectativas fundidas junto da outra e o acordo realiza fins
dignos da tutela do direito. Ao interesse da livre ordenação dos interesses recíprocos
das partes sucede a necessidade de proteção da confiança de cada uma dela na
validade do pacto firmado. E essa vinculação recíproca não viola o principio da
autonomia privada, na medida em que assenta sobre a autodeterminação de cada
um dos contraentes.

Atribuindo força vinculativa ao acordo das partes, extraem-se do principio da


autonomia privada as consequências que ele logicamente comporta no campo da
criação do direito.

Prescrevia o art.º 702.º do CC de 1867 que “os contratos legalmente celebrados devem
ser pontualmente cumpridos; nem podem ser revogados ou alterados, senão por
mutuo consentimento dos contraentes…”. E doutrina análoga consigna o art.º
406.º/n.º1 do CC vigente, ao proclamar que “o contrato deve ser pontualmente
cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos
contraentes ou nos casos admitidos na lei”.

É, portanto, no sentido complexo o resultante das considerações precedentes - livre


criação de um ato vinculativo para cada um dos contraentes - que deve ser entendida
a liberdade de contratar.
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A liberdade de contratar sofre, porém, limitações ou restrições em vários tipos de
casos, que serão oportunamente analisados.

Dever de contratar. Há múltiplos casos em que as pessoas, singulares ou coletivas,


têm o dever jurídico de contratar, logo que se verifiquem determinados pressupostos.
Quando assim seja, a pessoa que se recusa a contratar pratica um ato ilícito, que
pode constituí-la em responsabilidade perante a que deseja realizar o contrato. Casos
há inclusivamente em que a estas pessoa se permite obter a execução coerciva do
contrato.

Promessa negocial de contratar. Assim sucede, desde logo, quando uma das
partes ou ambas hajam assumido (previamente) em contrato-promessa (art.º 410.º e
ss.) a obrigação de celebrar determinado contrato. Quando exista uma convenção
desta natureza (promessa de compra e venda, de locação, de sociedade, etc.), o
promitente já não é livre de contratar; tem o dever de fazê-lo, sob pena da contraparte
poder exigir judicialmente o cumprimento da promessa ou a indemnização pelo dano
proveniente da violação desta.

Ao lado dos casos em que a obrigação de contratar resulta das convenções celebradas
entre as partes, cabe mencionar aqueles em que a obrigação procede diretamente da
lei. É o caso do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e dos contratos
de arrendamento impostos ao dono do imóvel nalguns países estrangeiros, logo após
o termo da guerra ou durante ela e que entre nos foram impostos, após a revolução
de 25/04. E é ainda o caso especial previsto e regulado no art.º 1793.º

Dever de contratar relativo a serviços públicos. São também obrigadas a


contratar, em certos termos as empresas concessionárias de serviços públicos
(transportes, comunicações, abastecimento de agua, fornecimento de energia
elétrica, gás, etc.), sempre que o ato constitutivo da concessão ou os regulamentos
aplicáveis lhes não permitam recusar a celebração do contrato, sem especial causa
justificativa. O facto de essas atividades respeitarem a bens essenciais à vida dos
cidadãos e se exercerem em regime de exclusivo, como é vulgar no sistema económico
dos próprios Estados capitalistas, justifica que a entidade concessionária (quer se
trate de empresa pública, quer de empresa mista ou privada) não possa recusar a
celebração do contrato com qualquer utente que preencha os requisitos de utilização
do serviço fiados nos respetivos regulamentos.

Profissões de exercício condicionado. Restrição semelhante incide ainda, por


força de lei expressa, sobre pessoas que desempenham profissões liberais cujo
exercício esteja condicionado à posse decerto titulo de habilitação ou à inscrição em
determinados organismos.

Assim sucede nomeadamente com os médicos, que não podem, salvo caso de força
maior, recusar a prestação de assistência, quanto a socorros “de extrema urgência a
um doente ou sinistrado em perigo imediato” e que são igualmente obrigados a
prestar os serviços da sua especialidade, sempre que não haja outro medico a quem
o doente possa facilmente recorrer.

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Direito das Obrigações
Imposição semelhante, embora de aplicação menos intensiva, recai sobre os
advogados e solicitadores. E obrigação da mesma natureza, mas em mais larga
escala, recai sobre os corretores nas operações de bolsa.

Venda de bens essenciais à vida das pessoas? Não haverá uma obrigação de
contratar, por exemplo, quanto aos estabelecimento fornecedores de bens destinados
a satisfazer necessidade vitais do cliente?

O problema tem sido amplamente discutido na doutrina, havendo muito quem se


incline para a solução restritiva da liberdade de contratar: uns, com fundamento na
situação de facto (monopólio) em que certas empresas se encontrem e que, num plano
de razoabilidade, as obrigaria a não recusar a celebração do contrato; outros,
tomando como critério a importância vital dos bens a que o contrato se refere, a
pretexto de que não devem ser recusados aos interessados na sua aquisição; outros,
finalmente, aplicando a semelhantes situações os princípios que, especialmente
através da condenação do abuso de direito, condicionam o exercício de todo o direito
subjetivo.

Tais limitações funcionando como exceções ao principio da liberdade de contratar


consagrado no art.º 405.º, só deviam ter-se como validas quando a lei explicita ou
implicitamente as estabelecesse, sem violação dos princípios constitucionais. É
duvidoso que as possa sufragar o preceito que condena o abuso de direito, visto que
a liberdade de contratar não constitui, em bom rigor, um direito subjetivo, cujo
exercício seja capaz de constituir o respetivo titular em responsabilidade civil
perante terceiros.

Há, todavia, uma disposição constitucional com manifesto interesse para o problema
em exame. Trata-se do principio da igualdade (art.º 13.º CRP), que parece condenar,
pelo seu espirito, toda a recusa de contratar que envolva caráter discriminatório, em
termos que ofendam o preceito constitucional.

Proibição de contratar com determinadas pessoas. Restrições à liberdade


contratual são (além das que se estendem a certas categorias de pessoas: proibição
de acesso dos menores a certos espetáculos públicos) as provenientes das normas que
proíbem a realização de alguns contratos com determinadas pessoas: art.º 579.º e
876.º, quanto à cessão e à venda de direitos ou coisas litigiosas; o art.º 877.º,
relativamente à venda feita por pais a filhos ou por avós a netos, sem o consentimento
dos outros filhos ou netos; o art.º 953.º, quanto à doação a favor das pessoas
abrangidas pelas indisponibilidades relativas, constantes dos art.º 2192.º a 2198.º.

Renovação ou transmissão do contrato imposta a um dos contraentes.


Dentro do capítulo das limitações à liberdade de contratar cabem ainda os casos em
que, sem prejuízo da liberdade inicial dos contraentes, a lei impõe a um deles a
renovação do contrato ou a transmissão para terceiro da posição contratual da outra
parte.

Necessidade do consentimento, assentimento ou aprovação de outrem.


Figuram ainda entre as limitações à liberdade contratual os casos em que, para
contratar, certas pessoas necessitam do consentimento ou do assentimento de
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outrem, e aqueles em que a validade do contrato livremente celebrado entre as partes
depende da aprovação de certa entidade.

É o caso dos cônjuges, que necessitam do consentimento um do outro, para alienarem


os bens compreendidos no art.º 1682.º/n.º3/a) e no art.º 1682-A/n.º 1 e 2; e do
inabilitado, que necessita de autorização do curador para os atos de disposição entre
vivos e todos os demais que constem da sentença de inabilitação (art.º 153.º/n.º1)

E é ainda o caso dos representantes legais de certos incapazes, que necessitam de


autorização do tribunal (art.º 1889.º, 1938.º, 139.º e 140.º) para a realização de certos
atos jurídicos.

Limitações à liberdade de escolha do outro contraente. O segundo aspeto que


cumpre destacar na liberdade contratual refere-se à pessoa do outro contraente.

Essa faculdade reveste uma importância especial nos negócios realizados intuitu
personae, nos contratos a crédito ou nos contratos destinados a criar relações de
cooperação ou de colaboração (obrigacionais, corporativas ou de outra ordem) entre
os contraentes.

São exemplos típicos do interesse, que reveste a escolha do outro contraente os


contratos de mandato, de empreitada, de sociedade e, acima de todos naturalmente,
o contrato de casamento (gerador de relações familiares).

Também neste domínio existem verdadeiras limitações à liberdade contratual, umas


resultantes da vontade das partes (e que, por isso mesmo, por se tratar de
autolimitações, não constituem em bom rigor restrições à liberdade contratual),
outras provenientes diretamente da lei.

Entre as primeiras, avultam as criadas pelos chamados pactos de preferência,


mediante os quais um dos contraentes (o obrigado à preferência) se compromete a
escolher o outro (em condições de igualdade) como sua contraparte, na hipótese de se
ter decidido a realizar determinado contrato.

Entre as segundas, destacam-se as resultantes dos chamados direitos legais de


preferência e as impostas pelas normas que reservam para certas categorias
profissionais (os advogados, os corretores da bolsa, etc.) a realização de determinados
tipos de prestação de serviços.

Os direitos legais de preferência, em que o nosso sistema jurídico é relativamente


pródigo, tem uma eficácia limitativa da liberdade contratual ainda mais forte do que
a resultante dos pactos de preferência.

Enquanto os pactos de preferência possuem, em regra, mera eficácia relativa ou


obrigacional, os direitos legais de preferência gozam sistematicamente de eficácia
real (erga omnes), como melhor convém à natureza dos fins que determinam a sua
instituição.

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9. A livre fixação do conteúdo dos contratos; limitações.
Além da liberdade de contratar e da liberdade de escolha do outro contraente,
reconhece-se aos contraentes a faculdade de fixarem livremente o conteúdo do
contrato (a livre fixação do conteúdo dos contratos).

Tomando como ponto de referência os contratos em especial regulados na lei, a


liberdade de modelação do conteúdo do contrato desdobra-se sucessivamente: a) na
possibilidade de celebrar qualquer dos contratos típicos ou nominados previstos na
lei (comprando, arrendando, doando, associando-se uns com os outros para o
exercício de certa atividade lucrativa, etc.); b) na faculdade de aditar a qualquer
desses contratos as cláusulas que melhor convierem aos interesses prosseguidos
pelas partes (sujeitando, por exemplo, a eficácia da compra à verificação de certo
evento futuro e incerto; modificando os termos em que os defeitos da coisa vendida
dão ao comprador, nos termos do art.º 914.º, a faculdade de exigir a reparação ou
substituição da coisa; fixando um prazo para a produção dos efeitos do contrato ou
de alguns deles; onerando uma das partes com prestações especiais, etc,); c) na
possibilidade de se realizar contratos distintos dos que a lei prevê e regula.

Limitações. Tal como a liberdade de contratar e a liberdade de escolha do outro


contraente, também a regra da livre fixação do conteúdo do contrato está sujeita a
limitações. Pode mesmo dizer-se que, uma vez destruídos os pressupostos
fundamentais em que assentava o liberalismo económico é afastada pelo
intervencionismo político-económico a relutância do Estado em se intrometer nas
relações do comércio privado, essas limitações se têm multiplicado de forma
acentuada nas modernas legislações, principalmente nos contratos (como o de
trabalho, o arrendamento, o seguro, os negócios bancários, os transportes, etc.) em
que afloram, com mais frequência ou maior intensidade, ponderosos interesses
coletivos ao lado dos meros interesses particulares, ou em que, ao lado ou acima dos
interesses dos contraentes, importa acautelar legitimas expectativas de terceiros
(constituição dos direitos reais; forma das sociedades comerciais). As limitações são,
todavia, menos frequentes no campo das obrigações do que nos outros setores do
direito privado.

Entre os fins visados por semelhantes restrições destacam-se o de assegurar a lisura


e a correção com que as partes devem agir na preparação e execução dos contratos, o
de garantir quanto possível a justiça real, comutativa (não a simples justiça formal
expressa pela igualdade jurídica dos contraentes) nas relações entre as partes, o de
proteger a parte que dentro da relação contratual se considera económica ou
socialmente mais fraca e o de preservar a integridade de certos valores essenciais à
vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a segurança do
comércio jurídico e a certeza do direito.

Todas estas restrições se podem considerar englobadas genericamente nas palavras


introdutórias do art.º 405.º: dentro dos limites da lei.

a) Estes limites abrangem concretamente, em primeiro lugar, os requisitos


formulados nos artigos 280.º e ss., quanto ao objeto do negócio jurídico (entre
os quais se destaca a sanção aplicável aos negócios contrários à ordem pública
ou ofensivos dos bons costumes, bem como aos negócios usurários, cuja noção
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é dada em termos particularmente amplos, e no art.º 398.º/n.º2 (relativamente
ao objeto da prestação incluída na relação obrigacional que não necessita de
ter valor pecuniário, mas há-de corresponder a um interesse do credor, digno
de proteção legal); e compreendem ainda as numerosas disposições dispersas
por toda a legislação (civil, penal, administrativa, fiscal, comercial, etc.), que
proíbem, no geral sob pena de nulidade, a celebração de contratos com certo
conteúdo. Assumem também especial relevo, neste aspeto, a proibição da
exclusão ou limitação convencional da responsabilidade, qualquer que seja o
grau de culpa do devedor (art.º 809.º e 800.º/nº2); a proibição da doação de
coisas futuras (art.º 942.º), bem como dos pactos sucessórios (art.º 946.º/n.º1 e
2028.º/ n.º2)|, e ainda a proibição da subordinação do casamento ou da
perfilhação a termo ou condição (art.º 1618.º/n.º2 e 1852.º, etc.).
b) Em segundo lugar, cumpre mencionar os contratos-normativos, e os
contratos-coletivos, cujo conteúdo, fixado em termos genéricos, se impõe, em
determinadas circunstâncias, como um padrão que os contraentes são
obrigados a observar nos seus contratos individuais de natureza
correspondente. Constituem exemplos típicos desta figura de standarização
negocial as convenções coletivas de trabalho (os contratos coletivos e os
acordos coletivos de trabalho). Trata-se de uma espécie dos contratos
preliminares ou preparatórios, dentro da qual podem distinguir-se duas
variantes. Se o contrato-modelo ou padrão se destina a servir de paradigma
dos contratos individuais que os outorgantes venham, de futuro, a celebrar
entre si, chama-se-lhe usualmente contrato-tipo. Se pelo contrário o
clausulado genérico do contrato, firmado em regra por entidades
representativas de certas categorias económicas ou grupos sindicalizados, se
destina a servir de modelo (obrigatório) a contratos individuais realizados
entre pessoas que não participaram na elaboração do modelo, chama-se-lhe
preferentemente contrato normativo.
c) Cabe, por ultimo, referir as normas imperativas que se refletem no conteúdo
dos contratos: umas, aplicáveis à generalidade dos contratos ou a certas
categorias de contratos; outras, privativas de certos contratos em especial, e
que são vulgares nos sistemas de economia fortemente dirigida. Entre as
primeiras avulta o principio da boa-fé, pelo qual se deve pautar a conduta das
partes, tanto no cumprimento da obrigação, como no exercício do direito
correspondente (art.º 762.º/n.º2). Este preceito ético-jurídico reflete-se em toda
a economia do contrato e durante todo o período da sua execução, vinculando
os contraentes, não ao mero cumprimento formal dos deveres de prestação
que recaem sobre eles, mas à observância do comportamento que não destoe
da ideia fundamental de leal cooperação que está na base do contrato.

10. Contratos de adesão, como limitação de facto à liberdade


contratual.
Na formação teórica tradicional, o contrato é normalmente precedido de uma livre
discussão entre os pactuantes sobre o teor de cada cláusula.

Pressuposto do debate prévio entre os contraentes é a igualdade jurídica das partes,


uma das premissas em que o liberalismo individualista assentava a força soberana
do contrato.

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À medida, porém, que o poder económico dos grupos se foi fortalecendo com o
desenvolvimento do capitalismo, a atividade das empresas foi-se diversificando e a
oferta dos produtos em massa foi-se alargando, começaram a surgir e a multiplicar-
se no comércio jurídico os casos em que a lex contractus é praticamente elaborado
por um só dos contraentes, sem nenhum debate prévio acerca do seu conteúdo.

Ao outro contraente fica apenas, na prática, a liberdade (tantas vezes bastante


precária) de aceitar ou não o contrato que lhe é facultado, mas não a de discutir a
substancia das soluções nele formadas.

Ao tipo de contratos assim forjados, bem próprios das sociedades de consumo e bem
distanciados do modelo clássico da época liberal, e que na doutrina e na pratica dos
países latinos começou-se a partir de certa altura a dar o nome sugestivo de contratos
de adesão.

Diz-se, por conseguinte, contrato de adesão aquele em que um dos contraente como
sucede, por exemplo, na generalidade dos contratos de seguro e de transporte por via
aérea, férrea ou marítima ou dos contratos bancários, não tendo a menor participação
na preparação e redação das respetivas clausulas, limita-se a aceitar o texto que o
outro contraente oferece, em massa, ao público interessado.

Não há aqui, por conseguinte, a livre discussão entre as duas partes, que
salutarmente costumava preceder a fixação do conteúdo do contrato e da qual nascia
a seiva ético-jurídico do negocio bilateral.
Daí precisamente o nome de contratos de adesão, dado a esse tipo de convenções, que
entre nós continuam a ter os seus exemplos mais vulgarizados nas varias
modalidades do contrato de seguro, em algumas variantes dos contratos de
transporte (aéreo, marítimo ou terrestre), de fornecimento (água, gás, eletricidade e
comunicações), em certas operações bancárias e nas promessas de compra e venda
de imóveis.

Note-se, porém, que a limitação da liberdade contratual existe apenas no domínio


dos factos. No plano da lei, nada há que impeça os particulares e as empresas
seguradoras, por exemplo de fixarem livremente as clausulas do contrato de seguro
ou de se afastarem dos modelos de negociação usualmente seguidos.

Embora sempre haja quem possa observar que as cláusulas destes contratos só
obrigam porque e na medida em que, apesar de elaboradas por uma das partes, são
aceites pela outra. Foram-se, no entanto, avolumando cada vez mais as reservas
suscitadas por este tipo de contratação, atendendo à situação precária em que muitas
vezes se encontra o contraente mais fraco (necessitado de contratar) e menos
prevenido.

O facto de os modelos ou formulários de alguns destes contratos incluírem numerosas


clausulas, muitas delas de caráter técnico, que regulavam minuciosamente os vários
aspetos, não só substantivos mas até processuais da relação, dava na pratica como
resultado que o contraente subscritor das cláusulas não chegava em muitos casos a
aperceber-se da existência ou do alcance de algumas delas, porque as não lia, as não
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examinava com a necessária ponderação, as não entendia ou sentia que não tem
condições para as discutir.

Entre as diversas tentativas levadas a cabo nas legislações europeias para conciliar
o legitimo interesse das empresas na racionalização dos seus negócios e na adequação
dos regimes dos contratos à crescente especialização da sua atividade comercial, com
as exigências da justiça comutativa e a proteção devida à parte económica ou
socialmente mais fraca, destacou-se sob vários aspetos a lei alemã.

O legislador germânico atacou o problema das cláusulas pré-formuladas num


diploma avulso.

Por um lado, sujeitou-se expressamente a liberdade contratual, na formulação de


cláusulas gerais, às restrições mais importantes que, através da figura geral do
abuso de direito, limitam o exercício do direito subjetivo.

Por outro lado, fez-se menção expressa e minuciosa dos tipos de clausulas cuja
inserção passou a ser proibida como condições gerais da contratação de uma empresa
ou grupo de empresas, nuns casos com possibilidade de valoração concreta das
circunstancias, noutros sem essa possibilidade de valoração.

Por último, reconheceu-se aos tribunais (e não à Administração como noutros países)
o poder de uma fiscalização preventiva contra as clausulas gerais abusivas: a
requerimento de certas entidades, os tribunais podem condenar as empresas e
eliminar para futuro determinadas clausulas que elas tenham usado ou
recomendado como condições gerais da sua contratação, independentemente de
qualquer ação destinada a apreciar a sua validade num contrato concreto.
11. A responsabilidade pré-contratual, a culpa in contrahendo e o
principio da boa-fé
À questão da liberdade contratual, no período anterior à conclusão do contrato,
acresce o problema da eventual responsabilidade dos contraentes pela sua deficiente
conduta (ou dos seus representantes ou auxiliares) ao longo do período de preparação
do contrato.

A, interessado em vender o prédio que possui em Cascais, marca com B, residente


em Coimbra e interessado em comprá-lo, uma visita ao local, para daí a 15 dias. Na
semana seguinte vende o prédio a C, mas não cuida de avisa B, que no dia aprazado
se desloca de Coimbra a Cascais

Há ou não responsabilidade de A pelas despesas que B tenha efetuado? No caso


afirmativo, que espécie de responsabilidade? Qual o seu verdadeiro fundamento,
legal e dogmático?

Assim nasce o problema da chamada responsabilidade (civil) pré-contratual.

Segundo o art.º 227.º do CC “quem negoceia com outrem para conclusão de um


contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as

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regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra
parte”.

Em primeiro lugar, a lei consagra a tese da responsabilidade civil pré-contratual


pelos danos culposamente causados à contraparte tanto no período das negociações
(dos preliminares, como lhes chama a disposição, o das trattative, usando a
terminologia italiana), como no momento decisivo da conclusão do contrato,
abrangendo, por conseguinte, a fase crucial da redação final das cláusulas do
contrato celebrado por escrito.

Em segundo lugar, a responsabilidade das partes não se circunscreve, como sucedia


com a tradicional teoria da culpa in contrahendo, à cobertura dos danos
culposamente causados à contraparte pela invalidade do negócio. A responsabilidade
pré-contratual, com a amplitude que lhe dá a redação do art.º 227.º, abrange os danos
provenientes da violação de todos os deveres (secundários) de informação, de
esclarecimento e de lealdade em que se desdobra o amplo espetro negocial da boa-fé.

Em terceiro lugar, alem de indicar o critério, pelo qual se deve pautar a conduta
de ambas as partes (a boa-fé), a lei portuguesa aponta concretamente a sanção
aplicável à parte que, sob qualquer forma, se afasta da conduta exigível: a reparação
dos danos causados à contraparte.

Em quarto lugar, a lei não se limita a proteger a parte contra o malogro da


expetativa da conclusão do negócio, cobrindo-a de igual modo contra outros danos
que ela sofra no iter negotii.

Por outro lado, embora uma das vertentes da boa-fé abranja, sem dúvida, a cobertura
das legitimas expetativas criadas no espírito da outra parte, o artigo 227.º não aponta
deliberadamente para a execução especifica do contrato, no caso de a conduta ilícita
da parte ter consistido na frustração inesperada da conclusão do contrato. A lei
respeita assim até o derradeiro momento da conclusão do contrato (art.º 232.º), salvo
se houver contrato-promessa (art.º 830.º), um valor fundamental, transcendente do
direito dos contratos: a liberdade de contratar.

E da ideia de que a lei, por mais censurável que seja a rutura das negociações na
eminência da celebração do contrato, intencionalmente não vai ao extremo da
obrigatoriedade de celebração ou da execução especifica do contrato, decorre como
corolário lógico que a indemnização prescrita na parte final do art.º 227.º, destinada
a cobrir (no caso de frustração injustificada do negócio) o interesse negocial negativo
da parte lesada, não pode exceder o limite do interesse contratual positivo (ou seja,
do beneficio que a conclusão do contrato traria à parte prejudicada nas suas
expetativas).

A determinação exata da indemnização devida pela parte que viola o principio da


boa-fé, na fase preliminar da preparação ou conclusão do contrato, depende
obviamente da natureza do dever acessório de conduta infringido. Se a falta da parte
fez com que a outra tivesse realizado uma deslocação que noutras circunstâncias não
faria, são as despesas dessa deslocação que noutras circunstâncias não faria, são as
despesas dessa deslocação inútil que o faltoso tem de cobrir. Se, em consequência da
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falta, a outra parte quebrou um braço ou uma perna, são os prejuízos resultantes
desse acidente que a pessoa em falta tem de reparar. E assim por diante.

O interesse que o faltoso tem de ressarcir é sempre, porém, quando tenha havido
futura injustificado do contrato, o chamado interesse contratual negativo (id quod
interest contractum initum non fuisse); a perda patrimonial que não teria sido se não
fosse a expetativa na conclusão do contrato frustrado ou a vantagem que não
alcançou por causa da mesma expetativa gerada (teria vendido a terceiro por melhor
preço ou teria comprado por melhor preço a terceiro).

Desde que a própria lei, no art.º 227.º, impõe às partes o dever (jurídico) de agir de
boa-fé no período das negociações, nenhuma razão há para considerarmos legal (ex
lege) a relação jurídica que se estabelece entre as partes, antes da conclusão do
contrato, logo que elas iniciam as relações tendentes à sua preparação.

Dado, porém, o nexo teleológico existente entre esta relação ex lege e a relação
contratual para que ela tende, nada repugna aceitar a aplicabilidade à primeira
relação, no caso de violação dos deveres dela decorrentes para qualquer das partes,
das regras próprias da responsabilidade contratual. Apesar de não haver ainda
nenhum vinculo contratual entre as pessoas que iniciam negociações para a
realização do contrato, a verdade é que a relação criada entre essas pessoas
determinadas está muito mais próxima da relação contratual do que da existente
entre o titular do direito absoluto e o autor da violação ilícita dele.

12. Contratos típicos (nominados) e contratos atípicos


(inominados).
Dizem-se contratos típicos ou nominados os que (como a compra e venda, a doação, a
sociedade, a locação, o mandato, o depósito, a empreitada ou a transação), além de
possuírem um nome próprio (nomes iuris), que os distingue dos demais, constituem
objeto de uma regulamentação legal específica.

Os contratos típicos ou nominados, que a lei chama a si para os disciplinar


juridicamente, correspondem às espécies negociais mais importantes do comercio
jurídico.

A disciplina especifica traçada na lei para cada um deles obedece, pelo menos, a um
tríplice objetivo do legislador.

Por um lado, exatamente porque se trata dos acordos negociais mais vulgarizados na
prática, a lei pretende auxiliar as partes e os tribunais, fixando subsidiariamente a
disciplina jurídica aplicável aos pontos em que, não obstante a importância que
revestem, as convenções redigidas pelas partes são frequentes vezes omissas.

Por outro lado, a lei aproveita o esquema negocial típico do contrato nominado para,
a propósito do conflito de interesses particulares subjacente a cada um deles, ficar as
normas imperativas ditadas pelos princípios básicos do sistema.

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3.º ano
Direito das Obrigações
Por fim, na disciplina de cada contrato típico figuram ainda as normas dispositivas,
que constituem o núcleo de longe mais numeroso das disposições reguladoras desse
contrato, em larga medida inspiradas na vontade presuntiva das partes.

Nessa zona típica das lacunas dos contratos (at.º 762.º a 830.º e ss.), a lei continua a
procurar a solução de cada problema posto (do prazo para a realização da prestação,
do lugar para essa prestação, da distinção entre a impossibilidade temporária e a
impossibilidade definitiva, entre a impossibilidade parcial e a impossibilidade total,
etc.). Simplesmente, uma vez apurada a existência da lacuna (por omissão ou por
colisão), a solução passou a ser adotada na lei, não por presuntivamente corresponder
à vontade mais provável em face das circunstancias concretas da situação real, mas
por ser a mais razoável, a mais justa, a mais equilibrada em face do ponto lacunoso
ou omisso previsto na lei sem ressalva, portanto de presunção concreta de vontade
em contrário.

Distintos dos contratos típicos ou nominados são aqueles (chamados contratos


atípicos ou inominados) que as partes, ao abrigo do principio da liberdade contratual
(art.º 405.º/n.º1), criam fora dos modelos traçados e regulados na lei.

Como através do principio da liberdade contratual, a lei permite, não só a criação de


contratos diferentes dos previstos no CC, mas também a inclusão, nos contratos
previsto, das cláusulas que melhor aprouverem aos interessados, importa
naturalmente saber quando é que as cláusulas aditadas pelas partes espreitam
ainda o tipo contratual ficado na lei e quando é que essas cláusulas, pelo contrário,
envolvem já o abandono dos tipos negociais legalmente previstos, com a consequente
formação de um contrato atípico (diferente de todos os modelos estereotipados na lei).

Todo o contrato nominado possui, efetivamente, uma função económico-social própria


que se reflete numa estrutura jurídica privativa, a que na doutrina italiana se dá o
nome sugestivo de causa do contrato e que constitui o verdadeiro cartão de
identidade de cada espécie contratual típica.

A causa (hoc sensu) da compra e venda, por exemplo, é a transmissão de um direito


mediante um preço, tal como o da locação está na concessão do gozo temporário de
uma coisa mediante retribuição e da empreitada reside na realização de certa obra a
troco de um preço.

Sempre que na convenção celebrada entre as partes se instale um dos esquemas ou


modelos previstos na lei e as cláusulas acrescentadas pelas partes não destruam o
núcleo essencial do seu acordo, nem lhe aditem qualquer outro dos esquemas
legalmente autonomizado, o contrato continuará a pertencer ao tipo correspondente
a esse esquema.

Quando assim não suceda, a convenção negocial das partes navegará já no gurgite
vasto dos contratos atípicos ou inominados.

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Contratos Mistos
1. Noção

Diz-se misto o contrato no qual se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total
ou parcialmente regulados na lei. Em lugar de realizarem um ou mais dos tipos ou
modelos de convenção contratual incluídos no catalogo da lei (contratos típicos ou
nominados), as partes, porque os seus interesses o impõem a cada passo, celebram
por vezes contratos com prestações de natureza diversa ou com uma articulação de
prestações diferente da prevista na lei, mas encontrando-se ambas as prestações ou
todas elas compreendidas em espécies típicas diretamente reguladas na lei.

A cede em locação a B, mediante renda global, um prédio urbano para habitação e


um prédio rústico para exploração agrícola, ou arrenda apenas o prédio urbano, mas
obrigando-se o arrendatário à prestação de determinados serviços, além da renda
estipulada. Fenómeno semelhante ocorrerá se, no contrato de arrendamento de certa
fração dum imóvel em construção, os contraentes incluírem ainda um pacto de
preferência relativamente à venda de todo o imóvel.

C, tio de D, vende um prédio ao sobrinho; mas, para o compensar das liberalidades


feitas a outros sobrinhos, irmãos de D, convenciona um preço muito inferior ao valor
real do prédio, no intuito de o beneficiar gratuitamente com o arranjo negocial entre
eles concertado.

E arrenda um apartamento para os dois meses de praia, obrigando-se o dono dele


não só a ceder (temporariamente) o gozo da coisa, como a fornecer mobília, louças,
roupas e a prestar múltiplos serviços (lavagem e arranjo de roupas, etc.), a troco da
renda (pecuniária) estipulada.

No 1.º caso, em qualquer das suas variantes, misturam-se no contrato celebrado


elementos do arrendamento para habitação com elementos do arrendamento rural
ou com elementos do pacto de preferência; no 2.º misturam-se elementos da compra
e venda com clausulas da doação; no 3.º, reúnem-se elementos do arrendamento para
habitação com clausulas do contrato de prestação de serviços (art.º 1154.º) e de
aluguer.

Verdadeiro contrato misto terá constituído, entre nós e noutros países europeus,
durante algum tempo, o chamado contrato de leasing que, numa das suas
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modalidades mais frequentes, envolvia uma associação curiosa de prestações do
contrato de locação com prestações da compra e venda ou do compromisso de venda.

2. Junção, união e coligação de contratos


O contrato misto distingue-se, por sua natureza, quer da simples junção, quer da
união ou coligação de contratos.

Trata-se, nestes casos, de dois ou mais contratos que, sem perda da sua
individualidade, se acham ligados entre si por certo nexo.

Umas vezes (junção de contratos), o vinculo que prende os contratos é puramente


exterior ou acidental, como quando provém do simples facto de terem sido celebrados
ao mesmo tempo (entre as mesmas pessoas) ou de constarem do mesmo titulo.

A compra um relógio e manda consertar um outro ao mesmo relojoeiro. Certa


empresa encomenda um projeto moroso a determinados arquitetos, ao mesmo tempo
que lhes arrenda as instalações onde eles vão trabalhar. O dono de uma fábrica
contrata um técnico para a realização de certa tarefa, comprando-lhe ao mesmo
tempo o direito de utilizar certas patentes de sua invenção.

Quando assim seja, como os contratos são não só distintos, mas autónomos, aplicar-
se-á a cada um deles o regime que lhe compete.

Outras vezes, porém, sucede que os contratos, mantendo embora a sua


individualidade, estão ligados entre si, segundo a intenção dos contraentes, por um
nexo funcional que influi na respetiva disciplina. Já não se trata de fim nexo exterior
ou acidental, mas de um vínculo substancial que pode alterar o regime normal de um
dos contratos ou de ambos, por virtude da relação de interdependência que
eventualmente se crie entre eles.

A relação de dependência (bilateral ou unilateral) assim criada entre os dois ou mais


contratos pode revestir as mais variadas formas. Pode um dos contratos funcionar
como condição, contraprestação ou motivo do outro; pode a opção por um ou outro
estar dependente da verificação ou não verificação da mesma condição; muitas vezes
constituirá um deles a base negocial do outro (art.º 252.º/n.º2 e 1437.º/n.º1); etc…

A encomenda refeições no restaurante de B, mas só as quer se B lhe puder reservar


aposentos num hotel ou motel próximo.

C convenciona com D comprar-lhe ou arrendar certo prédio, optando pela primeira


ou pela segunda alternativa, consoante venha a ser colocado na respetiva localidade
a título efetivo ou em regime de simples interinidade.

Em todos estes casos (de verdadeira coligação de contratos) há já certa dependência


entre os contratos coligados, criada pelas clausulas acessórias (Nebenabrede) ou pela
relação de correspetividade ou de motivação que afetam um deles ou ambos eles.
Porém, nem as clausulas acessórias, nem o nexo de correspetividade ou de motivação
que prendem um dos contratos ao outro, destroem a sua individualidade.

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No contrato misto, pelo contrário, há a fusão, num só negócio, de elementos
contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial
unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste.

O problema de maios delicadeza na qualificação jurídica e na fixação do regime


destas espécies negociais de múltiplas prestações consiste em saber se nelas existem
dois ou mais contratos (típicos ou atípicos), substancialmente correlacionados entre
si, ou se há, pelo contrário, um só contrato atípico, de diversas prestações.

A questão pode ter interesse prático na aplicação, quer do art.º 292.º (que consagra o
principio da redução para os casos de nulidade parcial do negócio), quer do art.º 232.º,
que só considera o contrato concluído quando houver acordo das partes sobre todas
as clausulas que o integram.

Para que as diversas prestações a cargo de uma das partes façam partes de um só e
o mesmo contrato, e não de dois ou mais contratos, é necessário que elas integrem
um processo unitário e autónomo de composição de interesses.

Não são as partes que decidem, dentro ou fora das cláusulas do contrato, sobre a
qualificação singular ou plural do acordo que estabeleceram. Mas é sobre a natureza
do acordo por elas estabelecido, à luz do pensamento sistemático denunciado na
classificação e definição dos diferentes contratos típicos, que as duvidas na matéria
hão-de ser solucionadas.

Como critérios auxiliares, conquanto não decisivos, para a resolução do problema


avultam naturalmente dois: um, tirado da unidade ou pluralidade da
contraprestação; outro, assente na unidade ou pluralidade do esquema económico
subjacente à contratação.

Se às diversas prestações a cargo de uma das partes corresponder uma prestação


única (una ou indivisível) da outra parte, será naturalmente de presumir, até prova
em contrário, que elas quiseram realizar um só contrato (embora, possivelmente, de
caráter misto). É o que sucede expressivamente na venditio cum viliore pretio, em
que tanto uma como outra das partes se obrigam a uma única prestação.

E o mesmo se diga, quando na base das prestações prometidas por uma e outra das
partes haja um esquema ou acerto económico unitário, de tal modo que a parte
obrigada a realizar várias prestações as não queira negociar separada ou
isoladamente, mas apenas em conjunto. É o caso típico da viagem em cruzeiro.

3. Modalidades de contrato misto


Há quem distinga três variantes ou modalidades possíveis.

Há casos em que a prestação global de uma das partes se compõe de duas ou mais
prestações, integradoras de contratos (típicos) diferentes, enquanto a outra se
vincula a uma contraprestação unitária (contratos combinados). Assim sucede
também no contrato realizado entre o campista e a entidade titular do parque de

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campismo e, bem assim, no contrato entre o passageiro, com instalação reservada no
wagon-lit, e a empresa ferroviária transportadora.

Outras vezes, uma das partes obriga-se a uma prestação de certo tipo contratual,
mas a contraprestação do outro contraente pertence a um tipo contratual diferente.
A cede a B uma casa para habitação em troca da prestação de serviços que integram,
por exemplo, o contrato de trabalho. C, obriga-se a realizar uma obra para certa
empresa, que em contraprestação lhe promete uma quota na sociedade que vai
explorar economicamente a obra. A estes tipos negociais chamam os autores
contratos de tipo duplo.

Por último, há casos, como o da doação mista, em que o contrato de certo tipo é o
instrumento de realização de um outro. O contrato que serve de meio ou instrumento
(que, no caso da doação mista, é as mais das vezes o contrato de compra e venda)
conserva a estrutura que lhe é própria; mas esta é afeiçoada de modo que o contrato
sirva, ao lado da função que lhe compete, a função própria de um outro contrato
(naquele caso a doação). Estes dão pelo nome de contratos mistos em sentido estrito

4. Regime
A fixação do regime destas espécies híbridas da intensa floração contratual tem dado
lugar a muitas hesitações na jurisprudência e a largas divergências de orientação na
doutrina.

5. Teoria da absorção
Alguns autores procuram saber qual seja, entre as diversas prestações reunidas no
contrato misto, aquela que prepondera dentro da economia do negócio, para
definirem pela prestação principal, com as necessárias acomodações, o regime geral
da espécie concreta. Esse tipo contratual preponderante absorveria assim os
restantes elementos na qualificação e na disciplina do negócio (teoria da absorção).

Assim é que se mandava aplicar aos contratos mistos de arrendamento rural e outro
ou outros negócios jurídicos as normas próprias de cada um deles; quando isso,
porém, não fosse possível, funcionaria o regime do negócio jurídico que, dados os
termos do contrato, devesse considerar-se predominante.

Também o art.º 1028.º/n.º3, a propósito da locação com vários fins, prevendo a


hipótese de um destes ser principal e os outros subordinados, manda prevalecer o
regime correspondente ao fim principal

6. Teoria da combinação
Com fundamento de que nem sempre é possível determinar o elemento principal do
contrato e de que não se justifica de qualquer modo a extensão indiscriminada do
regime que corresponde a esse elemento preponderante a outras partes da relação,
tentam harmonizar ou combinar, na regulamentação do contrato, as normas
aplicáveis a cada um dos elementos típicos que o integram (teoria da combinação). A
disciplina legal de cada contrato típico não se justifica apenas nos casos que integram
todos os seus elementos constitutivos, mas também nas espécies em que cada um

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destes elementos se instala, embora só para fixar o regime próprio desses elementos
isolados.

Contratos com Eficácia Real

1. Noção
O contrato não se limita a constituir, modificar ou extinguir relações de obrigação.
Dele nascem também relações de família (art.º 1576.º e 1577.º) e direitos sucessórios
(art.º 1700.º e ss.). E dele podem nascer ainda direitos reais.

“A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada, diz o art.º


408.º, dá-se por mero efeito do contrato”

Assim, se A vender a B certa coisa móvel ou imóvel, o contrato imporá ao vendedor


a obrigação de entregar a coisa (art.º 879.º). Mas, ao mesmo tempo, por força do
preceito basilar contido no art.º 408.º, a celebração do contrato transfere desde logo,
do vendedor para o comprador, o domínio sobre a coisa.

Suponhamos que A vendeu certo móvel a B no dia 1 de Novembro, devendo a coisa


ser paga e entregue no dia 5, porque B só nesse dia a pode receber (art.º 796.º/n.º1 e
2). Se no dia 3 um terceiro (C) a furtar, danificar ou a vender (porque a tinha em seu
poder) a D, quem pode reivindicar o móvel de D ou exigir de C a reparação do dano é
B e não A.

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Aos contratos com semelhante efeito dá a doutrina o nome de contratos com eficácia
real ou, mais simplesmente, de contratos reais (quod effectum).

São três as principais diferenças existentes entre os regimes (opostos) da eficácia real
e da eficácia meramente obrigacional dos contratos de alienação ou oneração de coisa
determinada:

a) Na solução germânica, o contrato de alienação, não dispensando um ato


posterior de transmissão da posse e de transferência do domínio, mercê da
sua eficácia meramente obrigacional, torna o adquirente um simples credor
da transferência da coisa, com todas as contingências próprias do caráter
relativo dos direito de crédito. A tal situação de precariedade não está sujeito
o direito do adquirente, nos sistemas de raiz napoleónica.
b) No sistema de translação imediata, o risco do perecimento da coisa (res suo
domino perit) passa a correr por conta do adquirente, antes mesmo do
alienante efetuar a entrega (art.º 408.º/n.º1 e 796.º/n.º2), ao invés do que
sucede com a outra orientação. Se a coisa, por qualquer circunstancia, só
depois da conclusão do contrato (como sucede, p. Ex., no contrato de
empreitada de construção de coisa móvel com materiais fornecidos pelo
empreiteiro, em que a propriedade destes só se transfere com a aceitação da
outra parte) se transferir para o adquirente, somente a partir deste momento
posterior o risco passa a correr por conta dele.
c) A nulidade ou anulação do contrato de alienação tem como consequência, no
regime tradicionalmente aceite entre nós, a restauração do domínio na
titularidade do alienante (cfr., porém a limitação proveniente do disposto no
art.º 291.º), ao contrário do que sucede nos atos de transmissão do direito
germânico, visto que este, alem da separação entre os dois momento
assinalados, imprime ainda, por influência da doutrina de SAVIGNY sobre o
fenómeno da transmissão, caráter abstrato ao ato de transmissão do domínio.

A transferência imediata do domínio, por mero efeito do contrato, não impede que,
subjacente a ela, se mantenha sempre latente a obrigação correlativa de o alienante
transferir, não apenas a posse, mas também o domínio da coisa para o adquirente.
Só assim se explica, aliás, a responsabilidade em que incorre o alienante se, por
qualquer razão (p. Ex., porque a coisa alienada lhe não pertença ou porque não possa
dispor dela), o domínio se não transferir com o contrato. Haja em vista o regime
fixado para a venda de coisa alheia, nomeadamente a obrigação de convalidação da
venda prescrita nos artigos 895.º e 900.º.

3. Reserva da propriedade (pactum reservati dominii).


O principio da transferência imediata do direito real constitui a regra dos contratos
de alienação de coisa determinada (art.º 408.º/n.º1); mas não se trata de um princípio
de ordem pública. É uma pura regra supletiva, que as partes põem afastar, por
exemplo, mediante o estabelecimento de uma cláusula de reserva de propriedade. A
reserva de propriedade, prevista no art.º 409.º (cfr., art.º 934.º, quanto à reserva na
venda a prestações), consiste na possibilidade, conferida ao alienante de coisa
determinada, de manter a sua titularidade o domínio da coisa até ao cumprimento
(total ou parcial) das obrigações que recaiam sobre a outra parte ou até à verificação

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de qualquer outro evento. Trata-se de uma clausula naturalmente há-de convir, por
excelência, às vendas a prestações e às vendas com espera de preço.

Se reservar para si a propriedade de coisa até ao cumprimento das obrigações da


outra parte ou à verificação de qualquer outro evento, é sinal de que a alienação é
feita sob condição suspensiva - e não sob condição resolutiva da falta de cumprimento
ou da não verificação do evento.

Para que tenha efeitos em relação a terceiros, tratando-se de coisas imóveis, ou


móveis sujeitas a registo, é necessário que o direito emergente da cláusula (pactum
reservati dominii) tenha sido inscrito no registo.

Tendo a alienação por objeto coisas móveis não sujeitas a registo, a reserva vale,
mesmo em relação a terceiros, por simples convenção das partes. A solução pode lesar
as compreensíveis expetativas, quer dos credores do adquirente, quer dos próprios
subadquirentes (pois não vigora entre nós o principio posse vale titulo), que
suponham, p. Ex., na ignorância da clausula, pertencerem desde logo ao adquirente
as mercadorias por ele compradas, que se encontrem em seu poder; mas explica-se
principalmente pelo intuito de facilitar a concessão de crédito ao adquirente e ainda
pela possibilidade que, em regra, não faltará a um contraente prudente e cauteloso
de com Becker a real situação das coisas. Aliás, só mediante esta clausula ou a
reserva da resolução do contrato o vendedor poderá recuperar o domínio da coisa
vendida, depois de efetuada a entrega dela, com fundamento na falta de pagamento
do preço, dada a disposição excecional do art.º 886.º.

Contrato-Promessa
1. Noção e regime aplicável. O principio da equiparação
De acordo com a definição prevista no art.º 410.º/n.º1, o contrato-promessa é a
convenção pela qual alguém se obriga a celebrar novo contrato. Estamos assim
perante um contrato preliminar de outro contrato que, por sua vez, se designa de
contrato definitivo. O contrato-promessa caracterizasse especificamente pelo seu
objeto, uma obrigação de contratar, a qual pode ser relativa a qualquer outro
contrato.

Efetivamente, em muitas situações as partes iniciam negociações para a conclusão


de um contrato, e chegam a acordo relativamente a essa celebração, mas não querem
ou não podem por algum motivo realizá-la naquele momento (pode, por exemplo, o
contrato definitivo exigir escritura pública e não haver a possibilidade de a efetuar
imediatamente). Nesses casos, em lugar de celebrar logo o contrato definitivo, as
partes podem comprometer-se à sua celebração, assumindo uma obrigação nesse

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sentido. Essa obrigação tem por objeto a emissão de uma declaração negocial,
podendo por isso ser caracterizada como uma prestação de facto jurídico.

O contrato-promessa pode qualificar-se como um contrato preliminar que tem por


objeto a celebração a celebração de um outro contrato, o contrato prometido.
Constitui uma convenção autónoma deste, uma vez que se carateriza normalmente
por ter eficácia meramente obrigacional, mesmo que o contrato definitivo tenha
eficácia real.

Apesar desta autonomia entre os dois contratos, a lei não deixou de sujeitar o
contrato-promessa ao mesmo regime do contrato definitivo (art.º 410.º/n.º1). É o que
se denomina de principio da equiparação. Efetua-se uma extensão do regime do
contrato definitivo ao contrato-promessa, sujeitando-se este, em principio, às
mesmas regras que vigoram para o contrato definitivo. Assim se a lei proíbe a venda
a filhos e netos (art.º 877.º), naturalmente que também proibirá a celebração de
contratos-promessa entre ambos, ou se a lei determina um critério supletivo para a
determinação do preço na compra e venda (art.º 883.º), naturalmente que esse critério
é também aplicável para a determinação do preço por que se promete vender.

O principio da equiparação é objeto de duas importantes exceções (art.º 410.º/n.º1):

1) As disposições relativas à forma;


2) As disposições que pela sua razão de ser não devam considerar-se
extensivas ao contrato promessa.

Relativamente à primeira exceção, dela resulta que a forma do contrato-promessa


não seja necessariamente a mesma do contrato definitivo, o que permite que ao
contrato-promessa seja atribuída uma forma menos solene do que a que seria exigida
para o contrato definitivo.

Já quanto à segunda exceção, ela implica o afastamento de todas as disposições


relativas ao contrato-prometido, justificadas em função da configuração deste, e que
não se harmonizem com a natureza do contrato-promessa.
Assim o art.º 879.º refere-nos que a compra e venda tem como efeitos essenciais a
transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de o vendedor a entregar e a
obrigação de o comprador pagar o respetivo preço. Nenhum destes efeitos pode ser
estendido em relação ao contrato-promessa, já que dele resulta apenas a obrigação
de celebrar um novo contrato (art.º 410.º/n.º1).

Da mesma forma, o regime das perturbações da prestação do contrato de compra e


venda não se estende ao contrato-promessa. Daí que, embora a venda de bens alheios
seja nula sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar (892.º), o
contrato-promessa de venda de bens alheios é válido já que, estando em causa uma
mera obrigação de contratar, não se exige em relação ao promitente-vendedor
qualquer requisito de legitimidade. Da mesma forma, se a lei veda que um dos
cônjuges possa isoladamente proceder à alienação, oneração, arrendamentos ou
constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns
(art.º 1682.º-A/ n.1/a)), não lhe estará, por isso vedada a celebração de contratos-
promessa relativos aos mesmos imóveis, uma vez que estes se limitam a constituir
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obrigações e cada um dos cônjuges não está impedido de contrair dividas sem o
consentimento do outro (art.º 1690.º/n.1). Para além disso, se não é possível vender
simultaneamente o mesmo bem a duas pessoas, já não há qualquer obstáculo à
celebração de dois contratos-promessa incompatíveis sobre o mesmo bem, uma vez
que há apenas a constituição de dois direitos de crédito, os quais não se hierarquizam
entre si pela data da constituição, mas antes concorrem simultaneamente sobre o
património do devedor (art.º 640.º/n.º1).

2. Modalidades de contrato-promessa
O contrato-promessa pode ser classificado em contrato-promessa unilateral ou
bilateral, consoante apenas uma das partes se vincule à celebração do contrato-
futuro ou essa vinculação ocorra para ambas as partes. Como exemplo de contrato-
promessa bilateral, teríamos o caso de alguém prometer vender a outrem
determinado imóvel por certo preço e esse outrem, simultaneamente, se
comprometer a comprar-lhe. Como exemplo de contrato-promessa unilateral,
teríamos o caso de alguém se comprometer, da mesma forma, a vender o imóvel por
um certo preço, mas a outra parte não se comprometer a comprar-lhe, ficando livre
de o fazer ou não.

O contrato-promessa unilateral pode ser remunerado, o que sucede sempre que a


outra parte assuma a obrigação de pagar ao promitente determinada quantia como
contrapartida pelo facto de se manter durante certo tempo vinculado à celebração de
um contrato (preço de imobilização). Em qualquer caso, no contrato-promessa
unilateral, a lei considera que o direito à celebração do contrato definitivo apenas
deve poder ser exercido dentro de um prazo limitado, pelo que, sempre que as partes
não o estipulem, é possível ao promitente ficar à outra parte um prazo para o
exercício do direito, findo o qual este caducará (art.º 411.º).

3. Forma do contrato-promessa
A forma do contrato-promessa é precisamente um dos campos não abrangidos pelo
principio da equiparação de regime com o contrato definitivo (art.º 410.º/n.º1).
Relativamente à forma, o contrato-promessa segue, por esse motivo, o regime geral,
que se baseia precisamente na liberdade de forma (art.º 219.º).

Há uma importante exceção, referida no art.º 410.º/n.º2, que nos refere que quando a
lei exige um documento, autêntico ou particular, para o contrato prometido é também
exigido documento para o contrato-promessa, bastando, porém, um documento
particular, ainda que o contrato-prometido exija um documento autêntico. Assim, o
contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, sujeita por lei a escritura
pública ou documento particular autenticado (art.º 875.º), pode realizar-se por
simples documento particular. A exigência de forma escrita para o contrato-
promessa não é naturalmente preenchida com a simples outorga de um recibo de
sinal.

Nos termos do art.º 410.º/n.º2, o referido documento tem de ser apenas assinado pela
parte que se vincula à celebração do contrato definitivo. Assim, se o contrato-
promessa for unilateral, só terá quer ser assinado pelo promitente, apenas se
exigindo a assinatura de ambos nos contratos promessa bilaterais.

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Uma questão que tem suscitado bastante controvérsia desde a entrada em vigor do
CC tem sido a de averiguar se o contrato-promessa bilateral, que seja assinado
apenas por um dos promitentes, pode ser válido como promessa unilateral,
permitindo a subsistência da obrigação por parte de quem assinou o documento.

Existem as seguintes posições doutrinais:

1) a tese da transmutação automática desse contrato em promessa unilateral;


2) A tese da nulidade total do contrato;
3) A tese da conversão;
4) A tese da redução.

Caso faltasse ao contrato-promessa bilateral a assinatura de uma das partes, ele


valeria automaticamente como promessa unilateral, veio a ser sufragada numa
primeira fase pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em sucessivos acórdãos tirados
entre 1972 e 1977.

A tese da nulidade total do contrato veio a ser sufragada pelo STJ numa segunda
fase, a partir de 1977, passando então a defender-se que a falta da assinatura de
uma das partes é um elemento essencial para a forma do contrato-promessa bilateral
e que atenta a natureza sinalagmática deste contrato, a invalidade de uma das
obrigações tem de afetar igualmente a outra, uma vez que o sinalagma genético não
pode ser válido apenas em metade. Não se justificaria, ponderar hipóteses de redução
ou conversão, já que a vontade das partes no sentido da sua aplicação teria de ser
inequivocamente demonstrada. Esta tese foi também defendida por GALVÃO
TELLES até 1986, como consequência da sua posição, face à legislação anterior, de
que o próprio contrato promessa unilateral deveria ser assinado por ambas as partes.

A tese da conversão foi defendida por ANTUNES VARELA e, posteriormente, por


GALVÃO TELLES. Os seus argumentos partem do pressuposto de que se
apresentaria como iníquo não permitir o aproveitamento do negócio, mas que este
deve ser realizado através do mecanismo da conversão e não da redução, já que a
redução pressupõe uma invalidade parcial (art.º 292.º) e o contrato promessa
bilateral a que falte uma das assinaturas se apresenta como totalmente nulo, por
falta da forma exigida por lei. Por outro lado, a natureza sinalagmática do contrato-
promessa bilateral torná-lo-ia radicalmente diferente do contrato-promessa
unilateral, que não reveste essa natureza. Não se estaria, assim, perante um
aproveitamento parcial do negócio, mas perante a sua transformação num negócio
de tipo ou, pelo menos, de conteúdo diferente, situação por isso sujeita ao art.º 293.º.
Finalmente, em face do regime da redução, cabe à parte interessada na invalidade
total do negocio alegar e provar que este não teria sido concluído sem a parte viciada,
quando o correto seria antes que este ónus recaísse sobre a parte interessada no
aproveitamento do negócio.

A tese da redução foi defendida por ALMEIDA COSTA, RIBEIRO DE FARIA,


CALVÃO DA SILVA e GRAVATO DE MORAIS. Os seus argumentos assentam em
que, se no contrato-promessa a lei só exige assinatura para a declaração negocial do
contraente que se vincula à promessa, a nulidade por falta de forma no contrato-
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Direito das Obrigações
promessa bilateral será parcial se apenas um dos contraentes não assinar o contrato,
o que justifica a aplicação do regime da redução (art.º 292.º). Para além disso, esse
regime é o que melhor tutela os interesses da parte que pretende o aproveitamento
do negócio, uma vez que estabelece em principio essa solução, apenas a afastando
quando se demonstre que a vontade hipotética das partes iria em sentido contrário.

MENEZES CORDEIRO adota uma posição intermédia. Considera, em primeiro


lugar, que, sendo a promessa unilateral visceralmente diferente da bilateral, a
situação nunca poderia ser de invalidade parcial, mas antes de invalidade total pelo
que, em princípio, só a conversão poderia salvar o negócio. Como, no entanto,
reconhece que a redução pode em concreto salvaguardar melhor os interesses do
contraente vinculado propugna uma aplicação conjunta dos dois preceitos,
remetendo ainda, com base no art.º 239.º, para a boa-fé em ordem de encontrar a
solução mais justa.

A jurisprudência maioritária tem, porém, decidido a favor da redução. Na opinião de


MENEZES LEITÃO, a solução preferível é efetivamente a da redução. Na verdade,
uma vez aceite o entendimento de que deve procurar aproveitar-se como contrato-
promessa unilateral o contrato promessa bilateral a que falte uma das assinaturas,
então deve adotar-se a solução que dê mais abertura a essa possibilidade. Essa é
indubitavelmente a tese da redução, uma vez que nela é ao interessado na nulidade
total do negócio que caberá alegar e provar que o contrato não teria sido concluído
sem a parte viciada (art.º 292.º).

A tese da conversão não permite salvaguardar um importantíssimo aspeto do


contrato-promessa que é a sua articulação com o regime do sinal. Na verdade, a tese
da conversão não salvaguarda a manutenção do sinal, caso este tenha sido
constituído já que, pretendendo-se que o contrato promessa bilateral é totalmente
nulo e apenas se converte em promessa unilateral, então essa conversão não poderia
abranger a convenção de sinal bilateral, considerada nula. Já a tese da redução,
considerando esta situação como uma mera hipótese de invalidade parcial,
permitiria manter a sanção do sinal em relação à parte que permanecesse vinculada
à celebração do contrato definitivo, o que MENEZES CORDEIRO julga ser a solução
mais adequada, já que o afastamento dos direitos atribuídos pelo art.º 442.º
representaria um grande prejuízo para o promitente fiel.

Mesmo em termos conceituais, não se afigura altamente problemática a qualificação


da situação como invalidade parcial, uma vez que, apesar de se tratar de uma
invalidade formal, esta é cindível em relação às duas partes. Por força do art.º
410.º\n.º2, admite-se que, no contrato-promessa unilateral, a assinatura das partes
seja apenas necessária para a constituição da obrigação de contratar, adquirindo a
outra parte o direito à celebração do contrato definitivo sem ter de assinar o contrato-
promessa. Ora, se assim é no contrato-promessa unilateral, não se vê por que motivo
esta solução não haveria de valer também para o contrato-promessa bilateral,
considerando-se, em virtude da falta de uma das assinaturas, como formalmente
válida a assunção de uma das obrigações e formalmente inválida a assunção de
outra, o que representaria sempre um caso de invalidade parcial do contrato. A partir
dai, saber se essa invalidade parcial se deve comunicar ou não a todo o contrato

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dependerá da aplicação do art.º 292.º, e não de uma posição conceptualista sobre a
natureza sinalagmática do contrato.

No art.º 410.º/n.º3 exige-se ainda que o contrato-promessa, quando respeite à


constituição ou transmissão de direito real sobre edifício ou fração autónoma dele, já
construído, em construção ou a construir, o documento referido no n.º1 seja
acompanhado de reconhecimento, da existência de licença de utilização ou
construção. Neste caso, não se está perante uma exigência de forma, uma vez que
não se revela por esta via qualquer vontade negocial, tratando-se antes de
formalidades, exigidas para a validade plena do negócio. A exigência destas
formalidades prendeu-se com a intenção de estabelecer um controle notarial ou
equiparado dos contratos promessa relativos a edifícios ou suas frações autónomas,
por forma a evitar a celebração em casos de construção clandestina, impondo-se por
isso, no interesse do promitente adquirente, o reconhecimento presencial das
assinaturas e a certificação no próprio documento, da existência de licença de
utilização ou construção. Caso não sejam cumpridos, ocorrerá a invalidade do
contrato promessa que, no entanto, só poderá ser invocada pelo promitente
adquirente, a menos que seja provocada por sua culpa exclusiva, caso em que o
promitente alienante também a pode invocar.

Daqui resulta que a referida invalidade não pode ser invocada por terceiros, nem
conhecida oficiosamente pelo tribunal.

A omissão destas formalidade não constitui uma verdadeira nulidade, sujeita ao


regime do art.º 286.º, mas antes uma situação de invalidade mista, estabelecida no
interesse do promitente adquirente em evitar a aquisição de um imóvel clandestino.
Por esse motivo, o promitente adquirente pode invocar essa invalidade a todo o
tempo, admitindo-se, porém, que essa invocação possa ser restringida com base no
abuso de direito.

4. Transmissão dos direitos e obrigações emergentes do contrato-


promessa
O art.º 412.º vem esclarecer que os direitos e obrigações emergentes do contrato
promessa, que não sejam exclusivamente pessoais, se transmitem por morte aos
sucessores das partes (n.º1), ficando a transmissão por ato entre vivos sujeita às
regras gerais (n.º2). Desta norma resulta que em princípio a lei não reconhece ao
contrato-promessa um cariz intuitu personae, pelo que nada impede que, em caso de
morte de uma das partes, o cumprimento da obrigação respetiva seja exigido dos
herdeiros ou seja, requerido pelos herdeiros do defunto. Caso, no entanto, as partes
tenham celebrado o contrato-promessa tomando em consideração especificamente a
pessoa do outro contraente, a própria natureza da relação impedirá a transmissão
por morte, ao abrigo do art.º 2025.º

5. A execução especifica
No contrato-promessa os promitentes vinculam-se a uma prestação de facto jurídico.
Está é incoercível, não podendo o devedor ser coagido pela força a emitir a declaração
negocial a que se obrigou. No entanto, a lei admite a execução especifica desta
obrigação, que consiste em o devedor ser substituído no cumprimento, obtendo o

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credor a satisfação do seu direito por via judicial. Neste caso, a execução especifica
consistirá em o tribunal emitir uma sentença que produza os mesmos efeitos
jurídicos da declaração negocial que não foi realizada, operando-se assim a
constituição do contrato definitivo.

A execução especifica da obrigação de contratar encontra-se prevista no art.º 830.º.

Desta norma resulta que o não cumprimento da promessa atribui à outra parte do
direito recorrer à execução especifica. A referência legal a “não cumprimento” deve
ser entendida em sentido amplo, uma vez que para efeitos da execução especifica é
suficiente a simples mora, já que o credor mantém interesse na prestação, exercendo
o seu direito a ela.

A execução especifica deixa de ser possível a partir do momento em que se verifique


uma impossibilidade definitiva de cumprimento, como no caso de o bem que se
prometeu vender já ter sido alienado a um terceiro, ou não ser possível obter a licença
de utilização do imóvel. Efetivamente, no primeiro caso, a sentença judicial não
poderia produzir os seus efeitos de um contrato definitivo válido, mas antes os efeitos
de uma venda de bens alheios nula (art.º 892.º e ss.), o que não é admissível. Essa
solução é aplicável mesmo que o registo da venda somente ocorra após o registo da
ação executiva específica continua a haver apenas um direito de crédito, que não
adquire prevalência sobre os direitos reais, mesmo que seja registado.

No segundo caso, a sentença de execução especifica elidiria a obrigação de obter a


autorização de utilização do imóvel antes da realização da sua transmissão o que não
se pode igualmente permitir.

Há ainda duas situações em que é expressamente excluída a execução especifica do


contrato promessa. São elas:

1) A existência de convenção em contrário;


2) A execução especifica ser incompatível com a natureza da obrigação
assumida.

Relativamente à primeira situação, deve referir-se que a possibilidade de execução


especifica da obrigação de contratar não se apresenta como um regime imperativo,
pelo que as partes podem derrogá-lo através de convenção. Presume-se que tal sucede
no caso de as partes constituírem sinal ou estipularem uma penalização para o
incumprimento (art.º 830.º/n.º2), por se presumir que, nessa situação, o que as partes
pretendem em caso de incumprimento é unicamente a obtenção da indemnização
convencionada e não a execução especifica. Esta presunção é, porém, ilidível por
prova em contrário (art.º 350.º/n.º2), nada impedindo, por isso, que as partes
convencionem a aplicação dos dois regimes, cabendo nesse caso ao credor optar pela
alternativa que lhe for mais conveniente. Tal acontecerá imperativamente na
situação prevista no art.º 830.º/ n.º3, onde se determina que nas promessas a que se
refere o art.º 410.º/n.º3 - relativas à constituição ou transmissão de direito real sobre
edifício ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir - o
direito à execução especifica não pode ser afastado pelas partes. Nestas promessas,
consequentemente, não podem as partes estipular convenções contrárias à execução
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especifica, pelo que nunca será atribuído esse efeito à convenção de sinal ou à
clausula penal.

Relativamente à segunda situação, existem casos em que a execução especifica se


apresenta como incompatível com a obrigação assumida por a índole especifica do
processo de formação do contrato prometido ou a sua natureza pessoal não se
apresentar como compatível com a sua constituição por sentença judicial. Assim, nos
contratos-promessa relativos a contratos reais quod constitutionem (penhor de
coisas, mutuo, comodato e deposito), em que se exige a tradição da coisa para se poder
operar a constituição de contrato definitivo, não é possível decretar-se a execução
especifica, uma vez que o tribunal não pode substituir-se ao promitente na tradição
da coisa, ato cuja espontaneidade a lei pressupõe. Da mesma forma, o contrato-
promessa de contrato de trabalho é insuscetível de execução especifica, atento o
caráter pessoal da prestação de trabalho (art.º 103.º/n.º3 CT). Nestes casos, o
incumprimento do contrato-promessa apenas poderá gerar indemnização por
responsabilidade contratual, não se admitindo a produção dos seus efeitos através
de sentença judicial.

A lei procura ainda resolver dois problemas que a execução especifica poderia
desencadear. O primeiro diz respeito à hipótese de o bem ter sido prometido vender
livre de ónus ou encargos, mas se encontrar presentemente hipotecado. Nesse caso,
a execução especifica não protegeria adequadamente os interesses do adquirente,
que ficaria sujeito a ver o bem posteriormente executado para pagamento da divida
ao credor hipotecário. Por esse motivo, admite-se que na ação de execução especifica
seja simultaneamente pedida a condenação do promitente faltoso na quantia
necessária para expurgar a hipoteca, assim se conseguindo a sua extinção, sem
prejuízo para o beneficiário da promessa (art.º 830.º/n.º4).

Um outro problema diz respeito à hipótese de o promitente faltoso poder invocar a


exceção de não cumprimento do contrato, caso em que a ação improcedente se ele não
consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal (art.º
830.º/n.º5). Pretende-se com esta norma evitar que quando o promitente faltoso
beneficie da exceção de não cumprimento do contrato (art.º 428.º) - como acontece
quando as partes convencionam que o pagamento do preço ocorra previamente ou
simultaneamente com a celebração do contrato definitivo - viesse o tribunal emitir a
sentença de execução especifica - a qual determina a transmissão da propriedade da
coisa a que se refere o contrato prometido - sem assegurar que o promitente faltoso
viesse receber a prestação a que tem direito. Para esse efeito, permite-se que o
tribunal imponha ao autor o ónus de proceder à consignação em depósito da sua
pretensão, em prazo por ele fixado, sob pena de a ação ser julgada improcedente.
Nesse caso, o depósito prévio assegura que o promitente faltoso continua a beneficiar
da proteção conferida pelo sinalagma funcional, caso a ação de execução especifica
seja julgada improcedente.

6. Sinal e antecipação do cumprimento


O sinal consiste numa cláusula acessória dos contratos onerosos, mediante a qual
uma das partes entrega à outra, por ocasião da celebração do contrato, uma coisa
fungível, que pode ter natureza diversa da obrigação contraída ou a contrair. O sinal
funciona então como fixação das consequências do incumprimento, uma vez que se a
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parte que constituiu o sinal deixou de cumprir a sua obrigação, a outra parte tem o
direito de fazer a sua coisa entregue. Se o não cumprimento partir de quem recebeu
o sinal, tem este que o devolver em dobro (art.º 442.º/n.º2, primeira parte). Caso se
verifique o cumprimento do contrato, a coisa entregue será imputada na prestação
devida - valendo, então, como principio de pagamento - ou restituída, caso essa
imputação não seja possível (art.º 442.º/n.º1).

O sinal representa um caso típico de datio rei que transmite a propriedade com uma
função confirmatória-penal, podendo nessa medida qualificar-se como um contrato
real simultaneamente quod constitutionem e quod effectum. Efetivamente, o sinal só
se constitui com a tradição da coisa que é seu objeto. Uma vez constituído o sinal, a
propriedade é adquirida pelo accipiens, mas este pode vir a ser reforçado a restituí-
la ao dans, em caso de não ser possível imputar o sinal à prestação devida. Sendo
possível essa imputação, a coisa objeto do sinal fica definitivamente no património
do accipiens, em caso de cumprimento do contrato. Verificando-se, porém, o
incumprimento deste, há lugar à aplicação dos efeitos penais, que passam ou pela
perda do sinal ou pela sua restituição em dobro. Uma vez que envolve uma
estipulação de indemnização em caso de incumprimento, o sinal aproxima-se da
cláusula penal (art.º 810.º/n.º1), desta se distinguindo apenas pelo facto de pressupor
a entrega previa de uma coisa fungível.

Sendo uma figura de aplicação geral, o sinal tem um campo de aplicação privilegiado
no âmbito dos contratos-promessa. Efetivamente, o art.º 440.º, vem esclarecer que
“se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar
ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito,
é a entrega havido como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as
partes quiseres atribuir à coisa entregue caráter de sinal”. Desta norma resulta que
normalmente a realização de uma datio rei, por uma das partes, na altura da
celebração do contrato ou em data posterior, não implica presunção de constituição
de sinal, sempre que se verifique coincidência entre a datio realizada e o objeto da
obrigação a que aquela parte está adstrita. Nesta situação, entende-se que o que se
visou com a datio foi antecipar o cumprimento da obrigação e não a constituição do
sinal. Se as partes quiserem que a prestação entregue tenha caráter de sinal, deverão
atribuir-lhe especificamente essa natureza.

Diferentemente, se passam as coisas em sede de contrato-promessa, onde a datio rei


realizada pelo promitente comprador nunca pode ser coincidente com a prestação a
que este fica adstrito, pelo que nunca se poderia qualificar como antecipação do
cumprimento de uma obrigação vigente. Na verdade, o contrato-promessa institui
apenas obrigações de prestação de facto jurídico (celebrar o contrato definitivo) de
que a entrega de uma coisa nunca poderia constituir cumprimento. Por esse motivo,
é excluída a aplicação do art.º 440.º, dispondo pelo contrário o art.º 441.º que:

“No contrato-promessa de compra e venda presume-se


que tem caráter de sinal toda a quantia entregue pelo
promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda
que a titulo de antecipação ou principio de pagamento do
preço.”

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Desta norma resulta que a entrega de quantias em dinheiro (datio pecuniae) pelo
promitente comprador ao promitente-vendedor constitui presunção da estipulação
de sinal por essa via, e isto mesmo que as quantias entregues o sejam a titulo de
antecipação ou principio de pagamento do preço. Efetivamente, uma vez que a
obrigação de pagamento do preço só surge com a celebração do contrato definitivo, a
sua antecipação ou principio de pagamento na fase do contrato-promessa tem por
referência uma obrigação ainda não existente, o que não chega para elidir a
presunção de ter sido estipulado sinal.

7. Funcionamento do sinal. O regime do art.º 442.º


O art.º 442.º/n.º1, refere-se ao regime do sinal em geral, indicando o seu
funcionamento em caso de cumprimento da obrigação. Conforme se referiu, em caso
de cumprimento, o sinal é imputado na prestação devida, quando coincida com esta.
Se for impossível a imputação, por coisa entregue não coincidir com a prestação
devida, deve o sinal ser restituído em singelo (art.º 442.º/nº1). A restituição do sinal
em singelo ocorrerá igualmente nos casos em que se verifique a impossibilidade da
prestação por facto não imputável a qualquer das partes. Efetivamente, em ambas
as situações, a parte deixa de ter causa justificativa para a conservação do sinal, pelo
que terá de o restituir.

O art.º 442.º/n.º2, primeira parte, refere-se igualmente ao regime do sinal em geral,


explicando o seu funcionamento em caso de não cumprimento. Nesse caso, se o não
cumprimento for de quem, constituiu o sinal, este será pedido a favor da contraparte.
Se for esta a incumprir o contrato, terá de restituir o sinal em dobro. A lei não refere
a hipótese de o incumprimento ser imputável a ambas as partes, mas parece que
neste caso a solução devera ser a da restituição do sinal em singelo. Efetivamente,
por força do art.º 442.º/n.º2, ambas as partes teriam nessa situação direito à
indemnização da contraparte, pelo que essas obrigações se extinguiriam por
compensação (art.º 847.º), ficando apenas subsistente a restituição do sinal em
singelo.

Já no art.º 442.º/n.º2, segunda parte, deixa-se de se falar do funcionamento do sinal


em geral para se passar a falar especificamente do funcionamento do sinal no
contrato-promessa. A lei prevê, que se houver tradição da coisa a que se refere o
contrato-prometido, o promitente adquirente pode optar, em lugar da restituição do
sinal em dobro, por receber o valor atual da coisa, ao tempo do incumprimento, com
dedução do preço convencionado, acrescido do sinal (em singelo) e da parte do preço
que tenha sido paga.

O art.º 442.º/n.º3, primeira parte, vem referir que, “em qualquer dos casos previstos
no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a
execução especifica do contrato, nos termos do art.º 830.º”. Trata-se de uma
disposição igualmente exclusiva dos contratos promessa

O art.º 442.º/n.º3, segunda parte, prevê ainda que “se o contraente não faltoso optar
pelo aumento da coisa ou do direito, conforme se refere no numero anterior, pode a
outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a
promessa, salvo o disposto no art.º 808.º”. O legislador consagrou expressamente a
solução defendida por MENEZES CORDEIRO, que consistiria em admitir que a
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oferta do cumprimento da promessa, por parte do promitente faltoso, paralisasse o
direito ao aumento do valor da coisa ou do direito pela outra parte. A figura foi depois
qualificada pelo autor como exceção do cumprimento do contrato-promessa”, dado
que o cumprimento do contrato-promessa representaria neste caso uma situação
jurídica ativa, suscetível de paralisar um direito da contraparte, ou seja, uma
exceção.

8. Funções do Sinal
Para MENEZES CORDEIRO, o regime vigente procedeu à junção de diversas
funções do sinal, uma vez que o sinal tem natureza confirmatório-penal, “na medida
em que da consistência ao contrato e funciona como indemnização” e natureza
penitencial, “quando funcione como “preço de arrependimento”, permitindo ao
interessado resolver o contrato, mediante o pagamento que resulte do próprio sinal”.
A seu ver, a primeira situação ocorre sempre que a possibilidade de execução
especifica coexista com a convenção de sinal, tendo o sinal natureza penitencial,
quando a sua estipulação funcione como convenção contrária à execução especifica.

Cabe tomar posição nesta querela. Parece-nos que a lei nunca considera o sinal como
penitencial, mesmo quando admite que este funcione como convenção contrária à
execução especifica. Efetivamente, como se demonstrou, o sinal só pode ser exigido
em caso de incumprimento definitivo da obrigação pela outra parte, funcionando
como predeterminação das consequências desse incumprimento. Não é, por isso, um
preço de arrependimento, não se podendo assim qualificar como penitencial. Defende
MENEZES LEITÃO, por isso, a sua natureza confirmatório-penal.

9. A atribuição do direito de retenção ao promitente que obteve a


tradição da coisa
A situação do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real,
que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido é ainda
complementada, em termos de garantia, com a atribuição no art.º 755.º/f) de um
direito de retenção sobre essa coisa, pelo credito resultante do não cumprimento
imputável à outra parte, nos termos do art.º 442.º. O beneficiário deste tipo de
promessas, que obteve a tradição da coisa, não tem assim apenas um direito de
credito à celebração e do contrato prometido, mas também um direito real de
garantia, oponível erga omnes, que justifica que possa conservar a posse da coisa até
ver satisfeito o seu crédito.

O promitente comprador, titular de um direito real de garantia prevalecente sobre a


hipoteca, teria o direito de ser pago pelo não cumprimento da obrigação, à frente do
credor hipotecário que, posteriormente dificilmente conseguiria obter a satisfação do
seu crédito. Para além disso, a situação é facilmente manipulável, já que as
exigências de forma do contrato-promessa não permitem um adequado controlo da
veracidade da situação, sendo fácil efetuar-se a sua simulação no intuito de
prejudicar os credores hipotecários existentes. A solução da atribuição do direito de
retenção ao promitente que obteve a tradição da coisa originou, por isso, bastantes
criticas na doutrina.

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Poder-se-á então inferir que o direito de retenção, consagrado no art.º 755.º/f) só tem
conexão com o direito ao aumento do valor da coisa ou do direito, que é o único credito
resultante do não cumprimento que tem uma relação direta com a coisa a reter.
Parece, assim, que o credor só deve poder exercer a retenção em relação a esse
crédito. Assim, a retenção não deve poder ser exercida em relação ao crédito da
restituição do sinal em dobro, mas apenas em relação ao aumento do valor da coisa,
se o credor optar por essa alternativa. E, mesmo no caso de exercer essa opção, não
devem ficar garantidos pelo direito de retenção os créditos relativos à restituição do
sinal (em singelo) e do preço pago, uma vez que em relação a estes falta também a
conexão direta da coisa.

Com esta interpretação restritiva, aliás baseada no fundamento comum do direito de


retenção, se consegue harmonizar os direitos dos credores hipotecários com os
direitos do promitente comprador. Efetivamente, o credor hipotecário obteve a sua
garantia quando o bem tinha determinado valor. Tendo este obtido uma valorização
enquanto este se encontrava na posse do promitente comprador, este pode exercer a
retenção para obter, em primeiro lugar o pagamento do aumento desse valor, após o
que o bem poderá continuar a ser executado pelo credor hipotecário em relação ao
valor remanescente.

10. Eficácia real do contrato-promessa


A lei permite ainda atribuição de eficácia real ao contrato-promessa, no caso de a
promessa respeitar a bens imóveis ou moveis sujeitos a registo, e as partes declarem
expressamente a atribuição de eficácia real e procedam ao seu registo (art.º
413.º/n.º1). O contrato-promessa com eficácia real está sujeito a uma forma mais
solene, uma vez que é exigida escritura publica ou documento particular autenticado,
a menos que não seja exigida essa forma para o contrato prometido, caso em que
basta um simples documento particular com reconhecimento das assinaturas.

Cumpridos estes requisitos, o contrato-promessa adquire eficácia real o que significa


que o direito à celebração do contrato definitivo prevalecerá sobre todos os direitos
reais que não tenham registo anterior ao registo da promessa com eficácia real. Neste
caso, parece que o direito à celebração do contrato definitivo pode ser sempre
exercido, mesmo que as partes decidam constituir sinal ou estabelecer penalizações
para o incumprimento ou inclusivamente celebrar convenção contrária à execução
especifica.

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Pactos de Preferência

1. Conceito
Suponhamos que A, imprevistamente necessitado de dinheiro, se dispõe a vender um
prédio; confiado, porém, na futura melhoria da sua situação, só quer fazê-lo se o
comprador lhe prometer que, no caso de mais tarde alienar o prédio, o preferirá na
compra, em igualdade preço, a qualquer outro comprador. B só está disposto a entrar
na constituição de uma nova sociedade por quotas se os outros sócios lhe concederem
preferência na futura alienação das suas quotas. E os outros sócios, interessados na
colaboração pessoal de B, concordam com a exigência. C, D e E, herdeiros de F,
interessados em manter na família os bens que herdam deste, sem prescindirem da
faculdade de os alienar, concedem reciprocamente direitos de preferência nas
alienações que venham a realizar. É às convenções deste estilo que na lei e na
doutrina se dá o nome de pactos de preferência (art.º 414.º)

Pactos de preferência são os contratos pelos quais alguém assume a obrigação de, em
igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como
seu contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio.

Os pactos de preferência não têm apenas por objeto a compra e venda - onde são mais
vulgares, como pactos de prelação (pacta praelationis) ou preempção -, mas também
outros contratos, como o arrendamento, o aluguer, o antigo aforamento, o contrato
de fornecimento, a sociedade, a parceria pecuniária, etc… De modo geral, pode dizer-
se que os pactos de preferência são admitidos em relação à compra e venda (art.º
414.º) e relativamente a todos os contratos onerosos em que tenha sentido a opção
por certa pessoa sobre quaisquer outros concorrentes (art.º 423.º).

Do pacto de preferência nasce uma obrigação típica: para uns autores, a de o devedor
não contratar com terceiro (non facere), se o outro contraente se dispuser a contratar
em iguais condições; para outros, a de, querendo contratar, o obrigado escolher a
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contraparte, de preferência a qualquer outra pessoa (facere). Em face dessa
obrigação, fica a plena liberdade de o titular da preferência aceitar ou não a
celebração do contrato, nos termos em que o obrigado se propõe a realizá-lo.

2. Figuras próximas
O pacto de preferência distingue-se do contrato-promessa. Na promessa bilateral há
uma obrigação reciproca de contratar, enquanto no pacto de preferência só um dos
contraentes se vincula. Na promessa unilateral, o promitente compromete-se a
contratar, enquanto no pacto de preferência a obrigação é diferente: o vinculado não
se obriga a contratar, promete apenas, se contratar, preferir certa pessoa (tanto por
tanto; em igualdade de condições) a qualquer outro interessado, havendo assim,
quando muito, uma promessa unilateral condicional.

Distingue-se igualmente da venda a retro (art.º 927.º e ss.), que assenta sobre uma
cláusula resolutiva. A venda a retro implica a faculdade de resolução da venda
anterior por simples declaração de vontade do vendedor, obrigando por isso à entrega
do preço primitivo e determinando, a caducidade dos direitos entretanto constituídos
sobre a coisa. O pacto de preferência prevê a realização eventual de um futuro
contrato de venda (ou de outra natureza), sobre o qual se exerce então o direito
conferido ao titular da preferência, tendo este de pagar o preço (ou a contraprestação)
que o terceiro deu ou estaria disposto a dar.

3. Requisitos e Efeitos
Quanto à forma, se a preferência respeita ao contrato para cuja celebração a lei exija
documento (autentico ou particular), como seja a venda de bens imóveis, o pacto só é
válido se constar de documento escrito, assinado pelo obrigado. Não é necessária a
assinatura da outra parte, visto esta não ser promitente. É a solução decorrente do
disposto no art.º 415.º, que manda aplicar ao pacto de preferência o disposto no art.º
410.º/n.º2 para o contrato-promessa em geral.

Tal como o contrato-promessa, o pacto de preferência apenas possui, em regra,


eficácia obrigatória relativa (inter partes), não sendo o seu titular chamado sequer a
exercer o direito nos processos de execução, falência, insolvência, etc., nem
procedendo a preferência contra a alienação efetuada nos processos desta natureza.

Mas pode produzir efeitos em relação a terceiros, gozar de eficácia real, quando se
reporte a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, desde que se verifiquem os
requisitos exigidos para o caso paralelo do contrato-promessa (art.º 421.º/n.º1).
Quando assim suceda, a preferência torna-se um verdadeiro direito real de aquisição.
A preferência será oponível ao terceiro adquirente da coisa e é igualmente atendível
nos processos de execução, ou de liquidação, como a falência e a insolvência, onde os
direitos de origem convencional, devido à sua eficácia erga omnes, serão tratados
então como os direitos legais de preferência, sem prejuízo da prioridade devida em
qualquer caso a estes últimos (art.º 422.º). Havendo, direitos reais de gozo ou de
garantia anteriormente registados sobre a mesma coisa, o direito de preferência,
embora goze de eficácia real, não os pode afetar. Assim, se houver hipoteca já
registada sobre o prédio que, em seguida, é objeto do pacto de preferência, o titular
desta, se quiser adquirir o prédio na execução hipotecária, terá de habilitar-se como

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qualquer terceiro à venda judicial, não lhe sendo lícito, p. Ex., invocar o direito de
prelação para se furtar ao concurso de propostas em carta fechada, visto que de outro
modo poderia lesar seriamente os interesses do executado e do credor garantido.

4. Exercício do direito de preferência


Duas hipóteses importa distinguir: a de o obrigado se dispor a cumprir o pacto, por
um lado; e, por outro, a de ele o não observar, celebrando o contrato com terceiro,
sem do facto dar conhecimento ao titular da preferência.

Notificação para preferência. No primeiro caso, o obrigado comunicará à contraparte,


por meio de notificação judicial ou extrajudicial (denuntiatio), não apenas a sua
intenção de contratar, mas também as cláusulas do contrato que está pronto a
celebrar, para que ela possa usar do seu direito. É preciso não confundir a notificação
para preferência, a que se refere o art.º 416.º/n.º1, com a proposta de contrato que o
obrigado à preferência dirija ao preferente antes de ter qualquer projeto ajustado de
venda com terceiro.

Efetivamente, com relativa frequência, que o obrigado à preferência, decidido a


contratar em determinadas condições antes de ter qualquer projeto negocial acertado
com quem quer que seja, começa por comunicar ao preferente a sua vontade,
perguntando-lhe se quer preferir nessas condições, se quer ou não usar do seu direito
em tais circunstâncias.

Quando assim suceda, não existe ainda notificação para preferir, mas simples
proposta para contratar, independentemente da designação que o autor dê à sua
notificação.

“Um pressuposto sempre imprescindível a esse propósito, é que esteja projetado,


tendo as partes chegado já a completo acordo, um daqueles negócios que originam a
preferência e o obrigado à prelação se proponha efetivá-lo”.

Se o notificado declinar a preferência ou nada disser dentro do prazo devido, o seu


direito caduca, ficando o obrigado com as mãos livres para celebrar o contrato
projetado com outra pessoa. A abdicação do direito do preferente pode hoje ser feita
mediante simples renuncia verbas, visto ter desaparecido do CC.

5. Violação da preferência: ação de indemnização ou de


preferência.
Admitamos, porém, que o obrigado à preferência (A) aliena coisa a terceiro (C), sem
notificar o preferente (B). Nesse caso, o direito de preferência só através da ação de
preferência prevalecerá sobre o negócio já efetuado (1410.º). Mas para tal necessita
o direito invocado pelo autor de gozar de eficácia real (art.º 421.º/n.º2); se o direito de
preferência tiver mera eficácia obrigacional, terá o titular (A) de contentar-se com a
indemnização, por parte de B, dos danos causados pela violação do pacto.

Recorrendo à ação de preferência, o titular lesado tem a faculdade de haver para si


a coisa alienada, contanto que o requeira no prazo de seis meses a contar da data em
que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite

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judicialmente o objeto da prestação que lhe cumpre efetuar. Se a alienação efetuada
com violação da preferência tiver sido precedida de promessa de venda ao adquirente,
o prazo (de 6 meses) de propositura da ação conta-se a partir do conhecimento dos
elementos essenciais da venda, e não da promessa de alienação, embora esta já possa
servir de objeto à ação de preferência se o alienante não se tiver reservado ou a lei
não lhe conceder o direito de arrependimento. Valem para o caso da promessa
irretratável de venda as razões invocadas para admitir a preferência contra a
alienação efetuada com o gestor de negócios do adquirente. A ação deve ser inventada
não só contra o adquirente (C), mas também contra o alienante, visto a lei mandar
intencionalmente citar para a ação de preferência os réus (no plural) e não apenas o
réu (no singular), como decerto o faria, se quisesse restringir a legitimidade passiva
da ação ao adquirente, ou não pretendesse tomar posição na questão suscitada
durante os trabalhos preparatórios do Código.

6. Venda da coisa (objeto da preferência) juntamente com outras.


Pode acidentalmente suceder que o obrigado pretenda alienar, por um preço global
uma ou mais coisas juntamente com a que é objeto da preferência, ou que ele receba
de terceiro que pretende adquirir a coisa - objeto do direito de preferência - a
promessa de uma prestação acessória (qualquer serviço pessoal, p.ex.), que o titular
da preferência não possa satisfazer.

A lei considera sucessivamente, nos art.º 417.º e 418.º, uma e outra hipóteses
formuladas.

Na primeira, não sendo justo agravar os pressupostos da preferência acordados no


pacto, concedesse ao respetivo titular a faculdade de restringir o seu direito à coisa
a que o pacto se refere, reduzindo o preço devido à importância que
proporcionalmente corresponde a essa coisa dentro do preço global estabelecido; na
falta de acordo sobre tal determinação, haverá que recorrer à ação de arbitragem
necessária para fixar o valor proporcional da coisa. O obrigado pode, contudo, opor-
se à separação das coisas, se ela envolver um prejuízo apreciável para os seus
interesses; nesse caso, o titular da preferência terá de exercer o seu direito, se o não
quiser perder, relativamente ao conjunto das coisas alienadas, pelo preço global que
houver sido fixado.

Não se tratando de disposição imperativa, o titular da preferência poderá evitar a


oposição do obrigado, desde que no pacto de preferência este se comprometa desde
logo a não alienar a coisa juntamente com quaisquer outras.

No caso de as coisas serem separáveis, mas terem sido alienadas por um preço global,
sem discriminação do preço atribuído a cada uma delas, importa saber quando
começa a correr o prazo de caducidade da ação de preferência e qual o preço que o
autor deve depositar, nos termos do art.º 1410.º.

Sendo o preço um dos elementos essenciais da alienação, se o obrigado à preferência


não tiver indicado, como lhe cumpre, o preço atribuído à coisa objeto da preferência,
dentro do preço global convencionado, terá o preferente de propor a ação de
arbitragem a que se refere o art.º 1459.º/ n.º2 do CPC para determinação do preço, no
prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento do preço global. O
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preço, porém, só será obrigado a depositá-lo, depois de fixado judicialmente o que
compete à coisa objeto da preferência.

Vejamos a segunda hipótese.

A prestação acessória que o titular da preferência não pode satisfazer é de todo


irrelevante, se tiver sido convencionada com o mero intuito de afastar a preferência
(art.º 418.º/n.º2). Nenhum efeito terá também se, não sendo avaliável em dinheiro,
não for essencial ao contrato que o obrigado pretende celebrar. Sendo a prestação
essencial, e não havendo intuito fraudulento das partes, a preferência fica excluída,
mas sem prejuízo da indemnização a que o seu titular tenha direito. Se a prestação
acessória, não fraudulenta, for avaliável em dinheiro, o titular da preferência que
pretenda exercer o seu direito terá de acrescentar o valor dela ao preço
convencionado.

E poderá o titular da preferência exercer o seu direito contra a alienação efetuada


pelo obrigado à preferência a um gestor de negócios, não estando o contrato ainda
ratificado pelo dono do negócio?

É incontestável que pode. Desde que o obrigado manifestou a vontade séria de


alienar a coisa, é realmente a alienou, estão criados os pressupostos necessários e
suficientes para que a preferência se possa exercer. Pouco interessa, a partir desse
momento, que o contrato se tenha consolidado na pessoa do dominus negotii ou que
este não esteja disposto a ratificá-lo.

De contrário, se a preferência se não pudesse exercer enquanto o contrato não fosse


ratificado, não seria difícil defraudar a lei e lesar o direito do preferente em proveito
de um terceiro, fazendo intervir na alienação um gestor e diferindo a ratificação da
gestão tanto tempo quanto necessário.

7. Pluralidade de Preferentes. Notificação feita pelo obrigado à


preferência e notificação feita por um dos preferentes aos
outros.
Duas hipóteses se podem também figurar, no plano substantivo, dentro da rubrica
genérica da pluralidade de preferências

A primeira é aquela em que a preferência deve ser exercida conjuntamente por todos
os seus titulares, como no caso de dois ou mais herdeiros haver sucedido ao titular
de direito que os interessados consideram transmissível por morte (art.º 420.º). Nesse
caso, se algum dos interessados não puder ou não quiser usar da preferência, o direito
dos restantes amplia-se imediatamente a todo o objeto do pacto, por um fenómeno
semelhante ao que no capitulo das sucessões se dá o nome de direito de não decrescer.

A segunda hipótese é aquela em que a preferência deve ser exercida por um só dos
titulares, e não por todos em conjunto.

Se, em tal caso, o pacto (ou o legado) tiver estabelecido qualquer ordem de prioridade,
esse será o critério que cumpre observar. Na falta de crédito estabelecido e de

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qualquer outro processo de graduação dos interessados (recurso a sorteio, à escolha
de terceiro, etc.), abrir-se-á licitação entre eles, a partir do preço estipulado,
revertendo o excesso, como é justo, em proveito do alienante (art.º 419.º/n.º2).

8. Natureza jurídica dos pactos.


Muitos (autores) enquadram os pactos de preferência na figura mais ampla dos
contratos promessa. Não há, porém, nos pactos de preferência nenhuma obrigação
ou promessa de contratar, sendo a obrigação de celebrar no futuro determinado
negócio o objeto típico do contrato-promessa

À objeção replicam os defensores da tese com a afirmação de que o pacto de


preferência é um contrato-promessa unilateral, feito sob uma dupla condição: a de o
obrigado querer efetuar o contrato a que a preferência se refere e a de o titular da
preferência querer aceitar.

Simplesmente, esta dupla condição desfigura por completo o sentido próprio do


contrato promessa: não faz sentido afirmar que alguém se obriga a celebrar um
contrato futuro, quando a estipulação dependa da livre decisão daquele que deveria
ser obrigado a contratar. Além disso, enquanto a condição é um elemento exterior ao
negócio, como clausula acessória da convenção, a liberdade de decisão que o obrigado
à preferência se reserva quanto a celebrar ou não celebrar o contrato, bem como a
liberdade de aceitação da outra parte, fazem parte essencial do esquema do pacto de
preferência. Por essa razão, algumas das normas típicas do regime da condição e do
negócio condicional não são aplicáveis aos pactos de preferência.

O objeto típico do pacto de preferência está na obrigação de escolha daquele que há-
de ser o futuro contraente, se o obrigado vier a contratar. O obrigado compromete-se
a escolher determinada pessoa (que tanto pode ser o outro contraente, como um
terceiro), de preferência a qualquer outra, na realização eventual do contrato.

É, assim, um contrato sui generis, com prestação de facto positiva, a que o CC, com
fundadas razões, concedeu um lugar próprio na disciplina dos contratos em geral.
Trata-se da promessa de escolher determinada pessoa, no caso de o obrigado se
decidir a realizar o negócio. Se o obrigado à preferência, violando o pacto, alienar a
coisa a terceiro, passa o titular da preferência, tendo ela eficácia real, a gozar de um
verdadeiro direito potestativo, por virtude do qual, mediante uma simples declaração
unilateral de vontade (integrada pela sentença judicial), ele se pode substituir ao
adquirente.

Há quem sustente que a prestação de facto a que o obrigado se encontra adstrito é


antes negativa: consistiria num non facere, em não contratar com terceiro, se o
titular da preferência quiser contratar nas mesmas condições.

Mas não é essa a conceção que melhor se ajusta ao esquema das soluções consagradas
na lei, tendo em vista a composição de interesses que está na base da generalidade
das convenções de preferência.

Tanto no processo de notificação para preferência, como na ação de preferência, não


se trata apenas de destruir o projeto de contrato ou o contrato que o obrigado haja
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concertado com outrem, como se faz, por exemplo, quando o obrigado a não construir
sobre determinado terreno levanta qualquer construção; nem se trata de conceder
apenas ao lesado a indemnização a que tenha jus. Num e noutro caso vai-se ao ponto
de efetivar judicialmente a escolha do contraente que o obrigado se comprometera a
fazer, investindo o titular da preferência na posição contratual que lhe fora
prometida, sem conceder sequer ao obrigado a faculdade de desistir do contrato
projetado ou de resolver a alienação efetuada.

O tribunal não se limita, por conseguinte (desde que se preencheu a condição de que
depende a obrigação do adstrito à preferência, que é a de ele querer realizar o
contrato) , a condenar o obrigado a não alienar a coisa a terceiro, uma vez que o
titular da preferência a quereria tanto por tanto; efetua ou sanciona a alienação,
mediante uma verdadeira execução específica da prestação positiva a que o
inadimplente se encontrava vinculado.

Pode assim dizer-se que, quando o obrigado, violando o pacto de preferência, aliena
a coisa a terceiro, e o direito do preferente goza de eficácia real, ou quando o obrigado
comunica judicial ou extrajudicialmente o projeto do contrato de alienação, a
contraparte passa a dispor de um verdadeiro direito potestativo, na medida em que,
mediante uma simples declaração da sua vontade (coadjuvada pela decisão judicial),
ela pode constituir-se titular de um direito sobre a coisa.

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