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2º SEMESTRE
Tiago Rocha
Porto - 2017
Índice
Índice ............................................................................................................................... 2
Nota ................................................................................................................................. 5
Parte II – Fontes das obrigações ..................................................................................... 6
1. Responsabilidade Civil. ................................................................................................................... 6
1.1. Considerações preliminares: dano, Direito e responsabilidade civil. ............................... 6
1.2. Pressupostos da responsabilidade civil. ................................................................................ 7
1.3. Modalidades da responsabilidade civil. ................................................................................. 7
1.3.1. Responsabilidade obrigacional e responsabilidade extraobrigacional: entre a
diferenciação e a unidade. ................................................................................................................... 8
1.4. Funções da responsabilidade civil. ......................................................................................10
1.5. Responsabilidade civil por factos ilícitos e culposos (ou responsabilidade delitual ou
aquiliana). .................................................................................................................................................11
1.5.1. Pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos e culposos. ...........................11
A. Facto. ............................................................................................................................11
B. Ilicitude. ........................................................................................................................12
C. Culpa. ............................................................................................................................16
D. Dano. ............................................................................................................................20
E. Nexo de Causalidade entre o Facto e o Dano........................................................22
1.5.2. Factos ilícitos especialmente previstos na lei. ............................................................25
1.5.3. Causas de exclusão da ilicitude. ....................................................................................27
1.5.4. Titularidade do direito à indemnização.......................................................................27
1.5.5. Prescrição do direito à indemnização..........................................................................28
1.6. Responsabilidade civil pelo risco. ........................................................................................29
1.6.1. Responsabilidade do comitente....................................................................................29
1.6.2. Responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas públicas..........................31
1.6.3. Danos causados por animais. .......................................................................................31
1.6.4. Danos causados por veículos. ......................................................................................32
1.6.5. Danos causados por instalações de energia elétrica ou gás. ....................................35
1.7. Responsabilidade civil por factos lícitos. ............................................................................35
Parte III – Modalidades das Obrigações. ...................................................................... 37
1. Sistematização.................................................................................................................................37
2. Modalidades das obrigações quanto à natureza do vínculo. ...................................................37
2.1. Obrigações civis. ....................................................................................................................37
2.2. Obrigações naturais. ..............................................................................................................38
3. Modalidades das obrigações quanto ao sujeito. ........................................................................40
3.1. Obrigações de sujeito ativo indeterminado........................................................................40
3.2. Obrigações plurais..................................................................................................................40
3.2.1. Obrigações conjuntas. ...................................................................................................41
Nota /// Apontamentos/Direito das Obrigações/IISemestre
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Nota /// Apontamentos/Direito das Obrigações/IISemestre
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Nota /// Apontamentos/Direito das Obrigações/IISemestre
Nota
Os Apontamentos que se seguem baseiam-se na frequência das aulas teóricas de Direito das
Obrigações no 2º semestre do ano letivo 2016/2017, lecionadas pelo Professor Doutor Carneiro da
Frada. Ademais, foram utilizados os manuais de referência da cadeira, nomeadamente dos civilistas
Antunes Varela e Ribeiro de Faria.
Porque pode conter erros ou incompletudes, que desde já se lamentam, deve este trabalho ser
sempre lido numa perspetiva crítica.
Quando não indicado, a ausência de fonte nos artigos referidos remete para o Código Civil.
Salvaguardando-se a liberdade e autonomia de cada um na seleção dos métodos de estudo,
manda a prudência mais avisada aconselhar a utilização deste material a título meramente subsidiário,
não pretendendo ele, em nenhuma circunstância, substituir-se à frequência das aulas ou à leitura da
bibliografia da Unidade Curricular.
1 Varela, A. (2000). Das Obrigações em Geral (Vol. I): Almedina. Pp. 518 e ss.
2 O vocábulo ‘indemnização’ tem origem morfológica na expressa ‘tornar indemne’, ou seja, sem dano. Indemnizar
significa, portanto, remover, retirar ou reparar um dano.
3 Não basta que se apliquem os princípios fundamentais do Direito, expressos por Ulpiano, no tríptico honest vivere,
alterum non leadere (= não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (= atribuir a cada um o que é seu).
4 Carneiro da Frada, M. (2011). Direito Civil - Responsabilidade Civil - O Método do Caso. Almedina. Pp. 60 e ss.
‘responsabilidade contratual’ não é completamente rigorosa, visto que a obrigação de indemnização nem sempre resulta da
violação de um contrato. Por outro lado, a expressão ‘responsabilidade obrigacional’ é equívoca, visto que não se distingue
a violação do dever de prestar do dever de indemnizar associado àquela violação. Ademais, não é liquido que todo o regime
de responsabilidade decorrente da violação de obrigações em sentido técnico/estrito se aplique à violação de outras
obrigações provenientes de fontes diversas (v.g. da lei). Novas designações podem ser encontradas, contudo, e apesar das
imprecisões apontadas, as expressões a que aqui recorremos gozam já de uma tradição doutrinal e jurisprudencial enraizada.
Carneiro da Frada prefere a designação ‘responsabilidade obrigacional’.
8 O termo responsabilidade ‘aquiliana’ resulta da romana Lex Aquilia que obrigava à indemnização do proprietário
em sentido amplo (vide Apontamentos, p. 9), que «abrange toda e qualquer limitação ou restrição à liberdade pelo Direito
ou, no limite, até mesmo por ordens extrajurídicas».
Outro conjunto de modalidades da responsabilidade civil que importa apontar é a que distingue
entre:
A responsabilidade delitual é menos exigente quanto a alguns dos seus pressupostos que
a responsabilidade obrigacional;
11 A responsabilidade por atos lícitos, conquanto apenas ocorra em casos contados (v.g.: estado de necessidade,
relações de vizinhança, expropriação por utilidade pública), não tem no Código Civil artigo próprio.
12 Embora não seja acompanhado pela totalidade da doutrina. Veja-se Ribeiro de Faria, J. (1987). Direito das Obrigações
(Vol. I). Almedina. P. 412. Antunes Varela partilha do mesmo entendimento que Carneiro da Frada.
13 Neste caso concreto não se pode falar em responsabilidade obrigacional, conquanto não exista ainda nenhum
negócio jurídico – que pode até nunca conhecer vida. Também não se pode falar em responsabilidade por factos ilícitos,
porque, em bom rigor, o comportamento em causa na culpa in contrahendo não se dirige à proteção de valores
absolutos/genéricos, mas antes deveres relativos à relação entre os sujeitos que estão em negociação.
14 Note-se que a recusa da doutrina em aceitar a indemnização por danos não patrimoniais em caso de
responsabilidade obrigacional tem razão de ser: é qua a prestação tem, geralmente, um preço acoplado, não fazendo sentido
compensar-se um dano não patrimonial não contratado em termos de contraprestação.
15 Isso não quer dizer que toda a tutela que o direito delitual oferece seja disponível e que possa sempre ser afastada
por convenção. Seria contrário à ordem pública, por exemplo, que uma pessoa renunciasse antecipadamente ao seu direito
à indemnização que advenha da lesão da sua propriedade.
16 No âmbito da responsabilidade obrigacional, ligadas à função punitiva da responsabilidade civil andam duas figuras:
o sinal e a cláusula penal. Relativamente ao sinal, nomeadamente quanto ao seu conceito, função e regime, remetemos para
o que foi dito nos Apontamentos do 1º Semestre (p. 60). A cláusula penal vem prevista e regulada nos arts.º 810º-812º e
corresponde a uma indemnização que o devedor pagará ao credor em caso de incumprimento. Questiona-se se o sinal
penitencial e a cláusula penal, quando em montante superior ao do prejuízo do credor, não terão o caráter de verdadeiras
penalidades. O certo é que nunca se tratará de punir por punir, visto que no direito civil a pena privada não faz sentido.
admite que se arbitre uma indemnização que não corresponde a um dano concreto, mas a um prejuízo
presumível (que admite prova em contrário).
O art.º 483º recorre a uma cláusula geral, da autoria de Vaz Serra, para cobrir os casos em que
alguém está obrigado a indemnizar outrem quando o lese ilicitamente e com culpa. A ordem jurídica
portuguesa distingue-se, neste desiderato, de outras suas congéneres, como a francesa e italiana, que
perfilam uma cláusula geral bem mais abrangente no que toca à responsabilidade delitual17. Assim, a
imputação neste tipo de responsabilidade só se faz quando haja culpa do agente. Perceba-se, desde
já, que na responsabilidade delitual não existe, à partida, qualquer tipo de relação jurídica entre lesante
e lesado que seja anterior ao delito (rectius, facto ilícito), ao contrário do que acontece na
responsabilidade obrigacional. É, portanto, a prática de um facto ilícito – necessariamente um facto
voluntário humano, pois só o homem é capaz de violar direitos ou normas, visto ser o destinatário
dos comandos jurídicos – que desencadeia a responsabilidade civil delitual.
Como já se disse, e tradicionalmente, os autores apontam para uma penta categorização dos
pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos e culposos. Escusamo-nos a repetição, tratando
a partir de agora, e em detalhe, cada um deles. Aí inseriremos as matérias que, com alguma dispersão,
foram sendo lecionadas nas aulas.
1.5.1. Pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos e culposos.
A. FACTO.
Para que haja ilicitude, culpa ou dano é necessário, antes de mais, um facto. Não se trata aqui de
qualquer facto, mas de um facto humano voluntário, controlável ou dominável pela vontade,
um comportamento ou conduta humana. Essa conduta tanto pode consistir numa ação (: facto
positivo) que viole o dever geral de abstenção ou de não intervenção na esfera do titular do direito
absoluto, como numa omissão ou abstenção (: facto negativo)18. Tratando-se da responsabilidade
delitual a obrigação de indemnizar recai, total ou parcialmente, sobre o agente que praticou o facto
ilícito e culposo19.
Quando classificamos o facto como voluntário, não queremos com isso restringir o âmbito da
responsabilidade delitual aos atos queridos pela vontade do lesante, i.e., os atos prefigurados
mentalmente pelo sujeito como danosos e que ele, ainda assim, tenha desejado praticar. Quando
abordarmos os tipos de culpa veremos que é possível que não ocorra a representação agora aludida,
o que significa que atos praticados pelo lesante “por distração” ou com falta de autodomínio
constituem-no, igualmente, em responsabilidade. Assim, facto voluntário reporta-se apenas àqueles
atos suscetíveis de serem objetivamente domináveis ou controláveis pela vontade; basta a
possibilidade de controlar o ato ou omissão e não uma conduta (ou a sua omissão) orientada para o
fim danoso. Seguindo este critério, só é possível excluir do domínio da responsabilidade civil os danos
17 Diz o Código Civil Francês, no atual art.º 1240º: «tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui
par la faute duquel il est arrivé à le réparer». Já o Código Civil Italiano refere no art.º 2043º que «qualunque fatto doloso o colposo, che
cagiona ad altri un danno ingiusto, obbliga colui che ha commesso il fatto a risarcire il danno». Ora, nenhuma destas disposições, ao
contrário do que acontece com o nosso CC, discrimina as situações em que há obrigação de indemnizar, remetendo essa
tarefa para a jurisprudência e a doutrina.
18 Neste tipo de responsabilidade há uma predominância para que o dano resulte de um facto positivo, visto que no
que toca a direitos absolutos é mais frequente ser-nos exigida uma abstenção do que um ato de cooperação que seja possível
omitir.
19 Na responsabilidade pelo risco não será sempre assim: a obrigação de indemnizar pode advir de facto natural, facto
praticado pelo responsável ou até facto praticado pelo lesado.
provocados por «causas de força maior ou pela atuação irresistível de circunstâncias fortuitas» (v.g.: A, que
conduz um autocarro na Foz, vê uma onda gigante impelir o seu veiculo para junto de outras viaturas
que acaba por destruir).
Ponto relevante é o de saber que resposta dar ao problema daqueles que são classificados como
negocialmente incapazes (vide as incapacidades constantes da Parte Geral: menoridade, interdição e
inabilitação). Poderão os seus atos estar, também, na origem da obrigação de indemnizar. É que o
Código adota um critério baseado na capacidade natural de entendimento (cfr. art.º 488º) que
trataremos no âmbito da culpa.
As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando,
independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do
negócio jurídico, o dever de praticar o omitido.
Artigo 486.º - Omissões
Como se disse acima, o facto constitutivo da responsabilidade civil tanto pode ser positivo,
tratando-se de uma ação, como negativo, quando, pelo contrário, se reporte a uma conduta que o
lesante, devendo ter praticado, tenha omitido. Nos termos do art.º 486º, nas situações de omissão há
lugar a responsabilidade civil quando o lesante estivesse obrigado a praticar a ato omitido por força
de uma norma ou de um negócio jurídico. Isto significa que a omissão, em geral, enquanto atitude
negativa, não é suscetível de gerar materialmente um dano. Mas nas situações previstas no art.º 486º
essa mesma omissão passa a ser considerada causa do dano, visto haver um dever jurídico especial
de praticar um ato que, provavelmente, teria impedido a verificação do dano20. É o caso da
mãe que não alimenta o filho ou do professor de natação que não salva o seu aluno que se afoga.
Também associada ao problema das omissões e das consequências mediatas das condutas, surge,
em 1981, pelas mãos de Antunes Varela, a doutrina dos deveres de tráfego. V.g.: o veículo de A
espalhou numa via pública óleo, tendo A seguido o seu caminho, sem nada fazer. Em consequência,
o ciclista B despista-se, ficando deitado no chão com ferimentos ligeiros. De seguida, C, que conduz
o seu veículo, perde o controlo da viatura no óleo e acaba por atropelar B, provocando-lhe a morte.
Pode A ser responsabilizado pela morte de B? Segundo a teoria dos deveres de tráfego, sim.
Esta doutrina traduz a ideia de que aquele que cria ou controla uma fonte de perigo tem de
desencadear as medidas necessárias para prevenir e evitar danos a terceiros. Caso não o faça,
estará a omitir um cuidado exigível; a omitir o afastamento de uma fonte de perigo. Assim, o
proprietário do bar responde por ter colocado as mesas de bilhar demasiado próximas umas das
outras, levando a que os clientes se tenham ferido com os tacos enquanto jogavam. De igual sorte
será responsável o empreiteiro que tendo realizado escavações em certo local, não tapa nem assinala
a presença dos buracos levando a que alguém aí se fira.
A doutrina dos deveres de tráfego não foi formalmente recebida no nosso Código Civil,
designadamente através de uma cláusula geral com conteúdo semelhante à formulação que supra
apontamos. Ainda assim, esta teoria está positivada no nosso direito através de um conjunto de
disposições que a concretizam (art.º 491º a 493º).
B. ILICITUDE.
Quando introduzimos o tópico da responsabilidade civil dissemos que nem todos os danos ou
prejuízos geram a obrigação de indemnizar. Para que tal ocorra será necessário que tais prejuízos
sejam juridicamente relevantes. No âmbito da responsabilidade delitual essa relevância traduz-se na
ilicitude do facto. Antunes Varela aponta vários exemplos disto mesmo. Deixamos um: «Se B levar
a almoçar em sua casa um grupo de amigos que encontra no restaurante, poderá ter causado ao dono
20 Relativamente à omissão questões relevantes se colocam, principalmente no foro penal, questões essas já estudadas.
É que se a lei civil parece só admitir a responsabilidade civil por “não-ações” quando haja um dever de garante derivado da
lei ou de negócio jurídico, alguns problemas se têm colocado na atualidade: não haverá responsabilidade, pelo menos penal,
no caso do sujeito que passando num lago deserto vê uma criança a afogar-se e nada faz? No âmbito da teoria das funções,
hoje consensual do direito penal, estaríamos aí perante uma situação de monopólio, em que o agente teria uma posição
fática absoluta de evitar a verificação do dano. Contudo, o monopólio enquanto fundamento do crime de omissão continua
a ser o mais fraco e que mais dúvidas levanta.
um prejuízo. Ninguém se lembrará, no entanto, de considera-lo responsável por esse efeito danoso ou
prejudicial do seu convite», visto não ter cometido nenhuma violação da lei ou de um interesse
juridicamente tutelado.
É preciso, contudo, precisar em que consiste a ilicitude e, aqui, o art.º 483º descreve duas
formas de ilicitude. Deste modo, para além de limitar o arbítrio do julgador na definição das
condutas antijurídicas, procura-se auxiliar o intérprete-aplicador na árdua tarefa de delimitar o campo
de atuação ilícita daquelas zonas de comportamento que, ainda que danosas, são toleradas ou
indiferentes à ordem jurídica. Quais são, então as duas variantes da ilicitude:
Art..º 483º - «Aquele que, […], violar ilicitamente os direitos de outrem […]»;
Art.º 483º - «Aquele que, […], violar ilicitamente […] disposição legal destinada a
proteger interesses alheios».
Resulta, então, do preceito legal supra que um facto será ilícito quando violar o direito absoluto
de terceiro ou quando violar uma norma destinada a proteger interesses alheios. Note-se que o
legislador foi mais abrangente na previsão da violação de direitos de outrem, visto que em relação à
violação de interesses protegidos impõe que exista uma disposição legal específica que proteja o
interesse individual. Esta opção justifica-se: é que, à partida, e historicamente, a ordem jurídica só
tutela direitos e não interesses.
Analisemos em detalhe cada um destes comportamentos ilícitos. Começamos pela violação de
um direito de outrem que é, desde logo, a situação que mais frequentemente origina
responsabilidade delitual. Da longa lista de direitos subjetivos e absolutos cuja violação pode dar
origem a um facto ilícito, excluem-se apenas, mas categoricamente, os direitos de crédito, quer pelo
seu caráter relativo, quer porque a sua violação (i.e., o não cumprimento de uma obrigação) gera
responsabilidade obrigacional. Vejamos, então, uma enumeração das posições jurídicas cuja violação
pode dar origem a responsabilidade civil delitual:
21 V.g.: propriedade dos cônjuges, usufruto dos pais, propriedade dos menores sobre certas coisas entregues à sua
livre disposição e administração, etc.
22 V.g.: comerciante lesado por práticas anticoncorrenciais do seu comerciante vizinho; tratamento médico em
violação das leges artis; automobilista que viola as regras de trânsito; etc.
particulares criminalmente protegidos ou tutelados pelo direito de mera ordenação social (v.g.:
liberdade, autenticidade dos documentos e assinaturas, ambiente), ou ainda aqueles interesses
particulares que a lei civil protege, mas sem atribuir propriamente um direito subjetivo ao seu titular
(v.g.: art.º 1391º23).
Para que a violação de um interesse de outrem resulte em responsabilidade delitual, três
requisitos têm de estar preenchidos: [i.] que o interesse do particular corresponda à violação de uma
norma legal; [ii.] que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma
violada; [iii.] que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
Relativamente ao primeiro requisito, não há muito mais a ser dito: decorre do dispositivo do artigo
que assim seja.
No que toca ao segundo requisito, segue este de encontro à ideia de que a norma legal tem de
apetrechar o sujeito com uma pretensão indemnizatória: é que não basta que a disposição legal tutele
os interesses privados como mero reflexo da tutela de interesses coletivos. Assim, o que releva não é
o efeito na norma (a proteção de um certo interessa) mas sim o seu fim e conteúdo: não basta que
a norma aproveite ao particular, é preciso que ela tenha em vista a sua proteção. Por exemplo,
a violação da maioria das normas constitucionais não preenche este requisito.
Finalmente, no que respeita ao último requisito, a ideia base é a de que tem de haver identidade
entre o interesse lesado e o interesse que norma visa acautelar. Alguns exemplos que bem
expressam a problemática: A trepou a um poste de uma linha de alta tensão colocado a uma altura
inferior à regulamentar, tendo morrido eletrocutado. A empresa gestora da rede elétrica foi
desresponsabilizada por se considerar que a altura mínima do poste não tem como fim impedir a sua
escalada, mas evitar que os meios de transporte terrestres e aéreos contactem com as linhas; uma
norma regulamentar manda iluminar certo recinto público para proteção dos profissionais que aí
trabalham. Em certa ocasião, estando as lâmpadas desligadas, B, não trabalhando no recinto, cai num
buraco e sofre danos físicos. Mais uma vez não há responsabilidade, visto que que o dano não é a
realização do risco em consideração do qual a conduta era ilícita.
Ainda relacionada com a violação de interesses alheios está a questão dos danos patrimoniais
puros, que resultam da violação de interesses plenamente patrimoniais. Nestes casos, poder-se-ia
sempre argumentar que não estão em causa direitos absolutos, pelo que não haveria nunca lugar a
responsabilidade civil. Esta argumentação afigura-se-nos, contudo, pobre. É que situações se colocam
em que pode haver um interesse económico tutelado por uma disposição legal. E nessas situações?
Há responsabilidade civil? Um caso: A leva a uma feira de gado os seus bovinos para venda. No
decurso da feira, uma inspeção deteta que os animais de B estão infetados com um vírus, sendo todos
os bovinos colocados de quarentena e a feira de imediato cancelada. A pretende, invocando a norma
que proíbe a apresentação em feira de animais doentes, reclamar de B uma indemnização pelo
prejuízo que sofreu pela não venda dos seus animais. Quid iuris? De imediato a pretensão de A não
procederia, visto que não está preenchido o segundo requisito supra estudado: o interesse visado pela
norma não é no sentido de legitimar o lesado a recorrer à responsabilidade civil. Mas imagine-se,
agora, que os bovinos de B tinham contaminado os de A: aqui ocorre já a violação de interesses gerais
a par de interesses específicos e particulares (o fim da norma é precisamente evitar o contágio de
outros animais), permitindo a disposição legal violada a indemnização. Assim, uma só disposição
legal, em razão do dano causado, pode ser interpretada no sentido do interesse do lesado ser
indemnizável ou não.
Tanto tribunais alemães como portugueses, salvo algumas oscilações, foram decidindo no
sentido de que os interesses patrimoniais puros não são, em regra, suscetíveis de gerar
responsabilidade civil delitual, por não estarem em causa direitos subjetivos, não havendo
nenhuma disposição legal que tutele, em geral, o direito das pessoas ao património.
Esta problemática coloca-se hoje no domínio da responsabilidade de terceiro pela violação
do crédito. O caso: o banco X não concede crédito à empresa Y que, por causa disso, entra em
insolvência. Os Credores de Y ficam por pagar visto que a responsabilidade obrigacional falha por
23 O art.º 1391º não concede um direito subjetivo aos proprietários dos prédios inferiores em relação ao direito, esse
sim subjetivo, do proprietário do prédio onde se localiza a fonte ou nascente de água. Mas se forem terceiros que violem o
interesse legalmente protegido dos proprietários dos prédios inferiores, haverá, em relação a esses, responsabilidade civil.
falta de património suficiente para cobrir os créditos. C demanda o banco X a titulo de violação de
um interesse alheio, alegando que se não tivesse sido a recusa de X em conceder um empréstimo a Y
esta teria sido capaz de cumprir as suas obrigações. Será X responsável? Parece que não, visto que
nenhum direito subjetivo assiste aos Credores e, tratando-se de um interesse económico puro, falta
disposição legal que tenha sido violada.
Em suma, a questão passa por articular e gerir duas realidades conflituantes: é que todos
queremos zonas de liberdade e zonas de responsabilidade. E, precisamente, a insusceptibilidade
dos interesses patrimoniais puros gerarem responsabilidade delitual relacionam-se com a necessidade
de preservar, para os sujeitos, zonas razoáveis de liberdade de atuação e de isenção do risco
da responsabilidade. É que o risco geral da vida também não gera responsabilidade civil.
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De tudo o que se foi até aqui dizendo retiramos que a ilicitude traduz uma reprovação da
conduta do agente em termos de antijuridicidade.
Não existe, na nossa ordem jurídica, uma norma semelhante ao § 826º do BGB (: «a person who,
in a manner contrary to public policy, intentionally inflicts damage on another person is liable to the
other person to make compensation for the damage») que responsabiliza e obriga a indemnizar os
indivíduos que, com dolo, causem um dano a outrem, independentemente da natureza do dano (se
resulta da violação de um direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido). Entende
Carneiro da Frada que tal preceito é essencial visto que a sociedade tem necessariamente de contar
com pessoas “razoáveis e decentes”, tendo todos aqueles que, afastando-se deste padrão, causarem
danos ser responsabilizados.
Na ausência de semelhante disposição, resta ao intérprete-aplicador recorrer à integração de
lacunas permitida pelo art.º 10º, nº 3, criando tal norma para o caso concreto. Sinde Monteiro entende
que para estas situações se aplica a figura do abuso de direito, prevista no art.º 334º 24. De facto,
quando verificado o abuso de direito as consequências podem ser variadas, como bem sintetiza o
Acórdão 2889/2008-6 da Relação de Lisboa: «as consequências do abuso de direito podem ser de
natureza variada, podendo consistir na supressão do direito ou na cessação do concreto exercício
abusivo, mantendo-se, todavia, o direito. Como podem consistir num dever de restituir, em espécie
ou em equivalente pecuniário ou num dever de indemnizar, quando se verifiquem os pressupostos
de responsabilidade civil, com relevo para a culpa».
Diz Antunes Varela, acompanhado por Manuel de Andrade, que o abuso de direito não
corresponde à violação de um direito de outrem, ou da ofensa de uma norma tuteladora de um
interesse alheio, mas do exercício anormal do direito próprio. Diz Manuel de Andrade que há abuso
de direito quando «o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de
maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante»25. Nestes casos há uma
conformidade estrutural e formal do exercício do direito, mas a sua afetação material, em termos de
finalidade, é considerada ilegítima à luz dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou
pelo fim económico ou social desse direito.
Não nos alongaremos mais na discussão da figura, visto tal assunto ter sido já tratada em Teoria
Geral do Direito Civil. Anotaremos apenas que Carneiro da Frada entende que a figura do abuso de
direito não abrange todos e quaisquer danos provocados a outrem: é que é necessário, em primeiro
lugar, que haja um direito próprio que se viole e, em segundo, que essa violação ocorra pela
ultrapassagem dos limites supra. No exemplo do individuo que requer a insolvência da sua empresa,
24 Um caso muito discutido no espaço europeu trata daquele empreiteiro que, estando a fazer escavações, corta um
cabo de alimentação elétrica a uma fábrica distante, tendo essa fábrica de encerrar durante certo período. É evidente que a
empresa tem prejuízos, que os trabalhadores e os clientes que aguardavam as encomendas também. Perante quem é o
empreiteiro responsável? Perante a EDP, dona do cabo, é certo que sim. E perante os proprietários da fábrica, os
trabalhadores ou os clientes? Há quem diga que não sendo danificada nenhuma maquinaria estamos perante um interesse
económico puro não indemnizável. Entende-se que é excessivo exigir-se a um empreiteiro negligente indemnizar em quantia
avultada a fábrica e et al. Mas se o empreiteiro atuasse com dolo a solução seria já diversa: aí repugna que não haja obrigação
de indemnizar. Mas a que título? O art.º 483º, não dá resposta suficiente. Sinde Monteiro diria que estaríamos perante um
caso de abuso de direito, mas não há aqui direito algum do qual se tenha abusado. Só através de norma semelhante ao §
826.º conseguiríamos o resultado pretendido.
25 Andrade, M. (1966). Teoria Geral das Obrigações (3ª ed.). Almedina.
criando alarme no mercado e levando à efetiva falência da empresa, tudo para que os credores sejam
prejudicados, parece não haver abuso de direito.
C. CULPA.
1 – Aquele que, com dolo ou mera culpa, […].
Artigo 483.º - Princípio geral
Para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o autor tenha agido com culpa, é
esse o nexo de imputação na responsabilidade delitual. Mas o que é a culpa em direito civil? A culpa
traduz uma atuação que merece a reprovação ou censura do direito. E quando é que uma conduta
é censurável? Quando, em face das circunstâncias do caso concreto, e atendendo às capacidades
do sujeito, ele podia e devia ter agido de outro modo.
Assim, o juízo de culpa é um juízo de censura que atende às circunstâncias pessoais do
agente, visto que é possível prefigurar situações 26 em que tendo um individuo atuado de modo
reprovável pelo direito, não lhe é exigível naquela concreta situação diferente atuação. Referimo-nos
às causas de exclusão da culpa e ilicitude, que mais à frente trataremos. É, pois, visível, que a culpa
não reporta a um mero nexo psicológico entre o agente e o facto, é preciso determinar a
censurabilidade da conduta através de juízos normativos e éticos.
Antunes Varela divide em dois momentos a resposta à questão de saber quando é que uma
conduta é culposa. O primeiro momento reporta ao juízo de imputabilidade, i.e., determinar quem
é imputável ou suscetível, genericamente, do juízo de censura. O segundo momento trata de analisar
no caso concreto se a pessoa a que o facto foi atribuído agiu em termos que justifiquem a reprovação.
No fundo, trata-se de saber se a pessoa podia e devia ter agido de outro modo e em que grau o podia
ou devia ter feito. Comecemos pela imputabilidade:
1 – Não responde pelas consequências do facto danoso quem, no
momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado
de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse
estado, sendo este transitório.
É imputável a pessoa com capacidade para entender e querer um facto, nos termos do nº 1 do art.º
488º. O Código adota um critério de capacidade natural de entendimento, i.e., será imputável a
pessoa que tenha a capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos atos que pratica
(capacidade de entender) e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca deles (capacidade
de querer). Apela-se, para que haja imputabilidade, ao elemento intelectual e volitivo.
Pelo contrário, é inimputável, não respondendo pelas consequências dos seus atos, quem não
tenha, por qualquer causa, capacidade intelectual ou volitiva (v.g.: sonâmbulo). Note-se, desde já, que
basta a ausência de um destes elementos para que o agente seja inimputável, diferentemente do que
sucede com a imputabilidade. Por outro lado, eles têm que estar ausentes no momento da prática
do facto.
Em relação a algumas pessoas a lei estabelece presunções de inimputabilidade: as crianças
menores de sete anos e os interditos por anomalia psíquica. Trata-se, em todo o caso, de uma
presunção ilidível, embora pareça improvável demonstrar a capacidade de entender e querer destas
pessoas. Por outro lado, a inexistência de presunção não impede que se prove que em relação a
maiores de sete anos, inabilitados ou outros a não capacidade entendimento e vontade da prática de
certo facto.
Por outro lado, a lei admite que, em certos casos, embora o agente não disponha de
entendimento e vontade para agir, seja, ainda assim, imputável: é o caso previsto daqueles que
26V.g.: medo invencível que faz com que alguém prima o gatilho; o artista que não sobe ao palco porque o seu filho
está doente, etc.
culposamente se incapacitarem de entender ou querer, sendo tal estado transitório. Encaixam-se aqui
os estados de embriaguez, consumo de estupefacientes, etc.
As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por
virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas
causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de
vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.
Artigo 491.º - Responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de
outrem
Não podendo o incapaz ser responsabilizado, ficará o lesado por reparar? Em regra sim, visto
não haver quem responda pela lesão. Mas nem sempre assim será. Uma das formas que o lesado tem
de ver o seu dano reparado é responsabilizar quem esteja obrigado à vigilância de incapazes (pais,
tutores, professores, amas, etc.), nos termos do art.º 491º. Estas pessoas respondem por facto próprio
e não pelo facto pratico pelo incapaz, visto que a lei presume27 que houve por parte delas uma omissão
de vigilância adequada (culpa in vigilando). Mas para que tal suceda certos pressupostos têm de estar
reunidos:
Que alguém esteja por força da lei ou de negócio jurídico obrigado a vigiar outrem;
Que esse outrem sofra de uma incapacidade natural;
Que o agente não tenha cumprido o seu dever de vigilância (ou não consiga provar o
contrário);
Que não consiga provar que os danos se teriam produzido à mesma, ainda que tivesse
cumprido os deveres de vigilância a que estava obrigado.
Note-se que como à incapacidade natural nem sempre se soma a inimputabilidade pode haver
concorrência de responsabilidade entre o lesante e a pessoa sobre quem recaia o dever de vigilância,
resolvido nos termos do art.º 497º através da responsabilidade solidária.
1 – Se o ato causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável,
pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou
parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das
pessoas a quem incumbe a sua vigilância.
Artigo 489.º - Indemnização por pessoa não imputável
A outra forma de reparação do dano do lesado vem prevista no art.º 489º. É que se é um facto
que a regra é a da que os inimputáveis não são responsabilizados, uma exceção se impõe: razões de
equidade no caso concreto. Imagine-se que o lesante tem bens mais do que suficientes para reparar
o dano do lesado, ou que este último ficou numa difícil situação económica, ou que há um grande
desequilíbrio entre lesante e lesado, ou que o montante do prejuízo é particularmente elevado, ou que
a conduta do inimputável é particularmente grave, etc. Ora, nestes casos, a lei admite que o
inimputável seja total ou parcialmente responsabilizado pelos danos que causar através das suas
condutas ilícitas. Mas tal só sucederá quando não for possível responsabilizar as pessoas legal ou
convencionalmente obrigadas à vigilância do inimputável. Veja-se, ainda, o nº 2 do art.º 489º que
impõe limites à indemnização a ser arbitrada.
Note-se que este não se trata de um caso de responsabilidade objetiva. O inimputável responde
como responderia caso fosse imputável e tivesse praticado o mesmo facto, mas responde apenas
segundo critérios de equidade e não segundo as regras gerais da responsabilidade delitual.
/\ \/ /\ \/
Vista a questão da imputabilidade, trataremos agora da culpa propriamente dita, i.e., determinar
se a conduta pessoal do agente merece a censura do direito, em face das circunstâncias do
caso, que é o mesmo que questionar se o agente podia e devia ter agido de modo diferente, e em
que grau o podia ou devia ter feito. O art.º 483º, nº 2 estabelece que só em «casos especificados na
27 Antunes Varela aponta três motivos para esta presunção: [i.] a experiência, que diz que na maior parte dos casos os
atos ilícitos práticos por incapazes decorrerem da falta de vigilância adequada; [ii.] a necessidade de acautelar o direito de
indemnização do lesado; e [iii.] a conveniência de estimular o cumprimento dos deveres de vigilância.
A culpa pode revestir duas modalidades distintas, nos termos do art.º 483º, nº 128: dolo ou mera
culpa/neglicência. O dolo corresponde à modalidade mais grave de culpa, sendo a sua conduta
mais severamente censurável por via da maior ligação existente entre a vontade do agente e a
produção do facto. Dentro do dolo podemos distinguir três hipóteses:
A distinção entre dolo e negligência não é no direito civil, ao contrário do que sucede no direito
penal, fulcral, visto que o lesante é responsabilizado segundo o mesmo regime em ambos os casos.
Quis, contudo, o legislador estabelecer uma importante diferença no que respeita à obrigação de
indemnizar: é que tratando-se de um facto negligente, em que a culpa do agente seja pequena ou
moderada, e a situação económica do lesante e lesado e as circunstâncias do caso assim o
determinem34, pode a indemnização ser equitativamente calculada em montante inferior ao prejuízo,
numa exceção à função ressarcitória da responsabilidade civil. Fundando-se a indemnização no dolo,
a indemnização terá de corresponder, pelo menos, ao valor dos danos, não podendo o juiz arbitrar
indemnização inferior.
28 Outras distinções, com pouca relevância, costumam ser estabelecidas pela doutrina, nomeadamente entre culpa
grave, culpa leve e culpa levíssima.
29 V.g.: A agride B porque este foi promovido em seu lugar no trabalho.
30 V.g.: C quer transportar uma carga de um para outro dos seus prédios, sabendo que para tal tem de atravessar
prédio alheio e aí destruir uma plantação de milho, mas ainda assim fá-lo.
31 V.g.: D atira a beata do cigarro num dia de intenso para uma mata seca, nada se importando com a possibilidade
/\ \/ /\ \/
2 – A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um
bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Artigo 487.º - Culpa
Temos até vindo a dizer que a culpa se traduz numa ilicitude ético-jurídica, numa conduta
censurável à luz do direito que pressupõe a existência de um dever (ou de uma proibição) violado que
se destinava a evitar a lesão. Mas qual é o padrão ou medida pelo qual se deve aferir a culpa?
Qual é a bitola pela qual se mede o grau de diligência que se exige de um sujeito? É que há
pessoas mais preocupadas e diligentes e outras mais displicentes, do mesmo modo que certas
situações convocam diferentes graus de cuidado. Para estas questões é possível encontrar duas
respostas opostas, i.e., dois critérios de culpa distintos:
Nos termos do art.º 487º, nº 1 (em conformidade com a regra geral do art.º 342º, nº 1), na
responsabilidade delitual é sobre o lesado que recai o ónus da prova da culpa do lesante,
contrariamente do que acontece na responsabilidade delitual em que é ao devedor que cabe
demonstrar que o facto que gera o incumprimento não procede de culpa sua (cfr. art.º 799º, nº 1).
Acrescente-se, ainda, que ao contrário do que sucede com a responsabilidade delitual, o art.º 799º, nº
1, estabelece, também, uma presunção de ilicitude, porque, verificada a falta de cumprimento, se
presume que esse incumprimento é imputável a uma conduta ilícita do devedor que está na sua
origem35.
35 Considera Carneiro da Frada que esta presunção que abrange ilicitude e culpa só se pode justificar no âmbito das
obrigações de resultado e já não nas obrigações de meios. Nestes casos seria o credor que teria de provar a não utilização
ilícita dos meios ou da diligência devida, prometida ou corrente.
O art.º 487º, nº 1 ressalva, contudo, casos em que a lei presume a culpa do lesante. Vejamos
alguns desses casos:
Dano real (ou natural): prejuízo que o lesado sofreu in natura nos seus bens (sejam eles
de natureza patrimonial ou pessoal), i.e., a destruição, subtração ou deterioração de
uma coisa (material ou incorpórea);
Dano patrimonial: reflexo ou efeito do dano natural no património do lesado que, por
via da destruição, subtração ou deterioração de uma coisa, apresentará uma diferença
para menos. O dano patrimonial 37 consiste na diferença entre o estado atual do
património do lesado e o estado em que ele estaria, no mesmo momento, se a
lesão não tivesse ocorrido, abrangendo, portanto, a diminuição do património já
existente (: dano emergente) como o seu não aumento (: lucro cessante)38.
Embora tenhamos apresentado estas compreensões de dano como contrapostas, a verdade é
que elas se complementam como perspetivas diferentes do mesmo fenómeno (: o dano). Assim, se
tivermos em vista o dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil estar-nos-emos a referir ao
dano real, sendo que é este que interessa no âmbito do nexo causalidade facto-dano e na opção da
indemnização entre reconstituição natural e indemnização por equivalente. Por seu turno, se tivermos
em mente a obrigação de indemnização já é o dano patrimonial que nos interessará.
Vejamos mais modalidades:
Dano de cálculo: soma de dinheiro que corresponde ao dano real (v.g.: prejuízo de 500€
no carro). O dano de cálculo pode (e deve, preferencialmente) ser avaliado de forma
concreta/subjetiva – quando a avaliação do prejuízo se faz em função do valor que a
coisa tem no património do lesado, i.e., o prejuízo efetivo sofrido pelo sujeito – ou
abstrata/objetiva – a avaliação do prejuízo faz-se apenas em função do seu valor genérico
ou de mercado39.
Outra distinção:
Dano direto: efeitos imediatos do facto ilícito (v.g.: vidro de uma loja partido por A);
Dano indireto: efeitos mediatos ou remotos do facto ilícito (v.g.: por causa do vidro
partido a loja é assaltada).
Finalmente tem ainda relevância uma última modalidade40:
Danos patrimoniais: todos os prejuízos que são passíveis de avaliação pecuniária e que,
por isso mesmo, podem ser indemnizados por via da reconstituição natural ou da
indemnização por equivalente;
Danos não patrimoniais: todos os prejuízos que têm por objeto um interesse não
patrimonial, i.e., um interesse que não pode ser reduzido a um equivalente pecuniário (:
a vida, a saúde, a integridade física, a honra, o bem-estar, o crédito ou bom nome de
alguém, etc.).
Durante muito tempo a doutrina viu-se animada por um intenso debate sobre a
ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (também designados por danos morais), que é o
mesmo que perguntar se podem os danos não patrimoniais ser indemnizados. Uma parte da doutrina
vinha dizendo que não, com base em alguns argumentos que sintetizamos:
Se o dano não patrimonial não é suscetível de ser avaliado em dinheiro não poderá ser
reparado com base num equivalente pecuniário;
É difícil averiguar se e quais as pessoas que sofrem um dano moral, visto que o mesmo
facto pode lesar moralmente uma quantidade infinita de pessoas;
A reparação dos danos não patrimoniais é imoral e materialista, porque os danos morais
são incompensáveis em dinheiro;
A prova de um dano moral é difícil, podendo até quem o alega fingi-lo;
A dor depende da sensibilidade ou emotividade de cada um e não da culpa alheia;
Ainda que se prove a existência do dano não patrimonial o cálculo da indemnização seria
sempre demasiado arbitrário.
É certo que os danos não patrimoniais são in(a)pagáveis: não se pode pretender eliminar uma
dor ou a morte de alguém com uma soma de dinheiro. Mas pode o dano não patrimonial ser
compensado, i.e., podemos tentar atenuar ou minorar um sofrimento infligido em outrem através
de uma quantia pecuniária que poderá sempre ser uma fonte de satisfações várias (a ideia de que o
dinheiro não elimina uma dor, mas uma semana de férias num paraíso tropical mal não faz). É que a
outra opção seria a de não conceder nenhuma compensação ao lesado, permitindo-se que o lesante
continuasse intocado a desfrutar de todos os seus bens. Ora, como é evidente, isto atenta
39 Relativamente a esta matéria, parte da doutrina preconiza que o lesante é obrigado a substituir o velho pelo novo,
restituindo o lesado a diferença. Outros autores criticam este critério por não ser equitativo e defendem que ainda que o
lesante possa espontaneamente substituir o velho pelo novo não pode depois vir exigir o valor da diferença. A posição mais
razoável será entender que o lesante deve indemnizar o lesado pelo valor do dano que causa no seu património (do ponto
de vista concreto), pelo que o lesado deve ser colocado numa situação em que obtenha uma coisa com um valor de uso
idêntico à danificada. Assim, em geral, o lesante só é obrigado a dar ao lesado o preço de uma coisa usada nas
condições da destruída ou deteriorada. Mas dando-se o caso da aquisição nestas condições não ser possível, terá que ser
entregue o preço de uma nova, ficando para a boa fé ou a equidade a possível restituição ao lesante do aumento patrimonial
recebido pelo lesado.
40 Carneiro da Frada aponta, na op. cit., mais algumas modalidades, das quais destacamos o dano da “perda da
oportunidade” ou da “perda de chance”, quando há interferência de alguém no nexo causal, o dano da privação de uso ou
dos danos ambientais.
frontalmente contra qualquer ideia de justiça, ainda que tenhamos de admitir alguma
discricionariedade na fixação pelo juiz da indemnização por estes danos.
1 – Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais
que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Artigo 496.º - Danos não patrimoniais
Não há hoje réstia de polémica quanto à ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, conquanto
a lei, no art.º 496º, se tenha mostrado claramente favorável àquela. O nº 1 do referido artigo parece
impor duas limitações para a compensação dos danos não patrimoniais: que eles sejam graves e que,
por isso mesmo, sejam merecedores da tutela do direito (i.e., «o dano deve ser de tal modo grave que
justifique a concessão de uma satisfação pecuniária ao lesado»). O preenchimento destes conceitos
reclama, parece evidente, o maior bom senso e apelo às regras da experiência, sendo que a gravidado
do dano tem de ser avaliada do ponto de vista objetivo (de acordo com as circunstâncias de cada
caso) e não subjetivamente (atendendo à particular sensibilidade de cada um).
4 – O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo
em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; […]
Artigo 496.º - Danos não patrimoniais
41 O facto de a lei mandar atender no cálculo da indemnização por danos não patrimoniais à situação económica do
lesado e do lesante faz com que a doutrina considere que a indemnização reveste nestes casos um caráter misto: reparatório
por um lado (visto querer mais do que indemnizar, reparar os danos sofridos pela pessoa) e sancionatório/punitivo
(reprovando e castigando a conduta do agente).
estritamente empírico, baseado na lógica post hoc ergo propter (: depois disso, logo causado por isso),
visto que a experiência de todos os dias permite afirmar que para o processo causal conducente a um
facto concorrem múltiplas circunstâncias. A problemática da causalidade trata a questão de
determinar de entre o conjunto de circunstâncias que interferem no processo causal quais aquelas
que são juridicamente relevantes. Ora para responder a este problema três teorias são habitualmente
apontadas pela doutrina: teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade adequada e teoria
do fim da proteção da norma. Analisemos, em traços muito breves, cada uma delas:
Segundo a primeira, a teoria da equivalência das condições, ou teoria da condição sine qua
non, há que distinguir, no complexo de factos que condicionam a verificação de um dado resultado,
dois tipos de circunstâncias: [i.] as circunstâncias que são indiferentes para a produção do resultado e
[ii.] as circunstâncias que são condições sine qua non do dano, i.e., aquelas cuja falta determinaria
a não produção dano. Ora, nos termos desta doutrina, só as segundas poderiam ser causa do dano,
mas mais: todas elas seriam causa ou efeito do dano. Assim, causa seria toda a condição sem a
qual o efeito se não teria verificado.
Como bem se vê, esta teoria, excessivamente ampla, leva a resultados absurdos, que repugnam
ao sentido de justiça. Vejamos o exemplo: o lavrador A compra a B um bovino. B vende um bovino
doente, que não só morre como contamina e mata todos os restantes animais de A. Por causa disto,
A não pode cultivar as suas terras, sendo que o lucro que perdeu lhe não permite saldar as dívidas do
ano anterior. Os credores de A executam o seu património e, vendo-se sem nada, A acaba por se
suicidar. À luz da teoria da equivalência das condições, o dano da morte de A pode ser imputado ao
facto de B ter vendido um animal doente. Os defensores desta teoria, conscientes dos seus empenos,
tentaram, mas sem resultado, encontrar outras formulações mais restritivas: primeiro, vieram ligar o
conceito de dano ao de culpa, dizendo que no âmbito da indemnização só podiam ser incluídos, entre
os diversos danos causados pelo facto, aqueles de que o agente tivesse culpa. Depois, houve quem
identificasse a causa como a condição mais eficaz ou mais próxima do dano ou com a condição mais eficiente
ou decisiva do dano, e, ainda, quem apontasse para a teoria da última condição, que atribuía a
responsabilidade do dano a quem teve the last clear chance de o prevenir. Nenhuma destas correções
logrou, porém, aceitação, conquanto não sejam intrinsecamente diversas daquela teoria-mãe,
acrescentando, inclusive, uma enorme dose de imprecisão e dúvida.
A segunda teoria, da causalidade adequada, é, podemos já adiantar, aquela que é amplamente
aceite pela doutrina e jurisprudência como (mais) acertada, sendo também a que merece consagração
no direito constituído (cfr. art.º 563º). Havíamos já concluído que a escolha da noção de causa é uma
tarefa jurídica, em que influi, certamente, a causalidade lógica própria das ciências naturais. Assim, na
determinação da noção de causa é importante acumular um critério lógico com um critério
teleológico-normativo que atenda aos valores e fins do direito enquanto sistema. Assim, a causa, para
a teoria em análise, parte de uma perspetiva lógica, convocando a teoria da equivalência das condições,
para, depois, invocar um critério normativo de causalidade adequada. Como? Para impor a alguém a
obrigação de reparar o dano sofrido por outrem é necessário que o facto praticado pelo agente
tenha sido condição sine qua non do dano (= condição necessária do dano). Mas isto não basta:
é ainda necessário que esse facto, em abstrato ou em geral, seja causa adequada do dano. É,
pois, «preciso escolher entre todos os factos que levaram ao dano, aquele que, segundo o curso
normal das coisas, se pode considerar apto a produzir o dano, afastando-se aqueles que só por
virtude de circunstâncias extraordinárias ou excecionais o passam ter determinado».
Exemplo: se A é ferido quando vai para o aeroporto e, perdendo o seu voo originário, embarca num
que se despenha, não é possível responsabilizar o lesante pela morte de A, ainda que a agressão tenha
sido condição necessária da morte, visto que adiamento da viagem não aumenta a probabilidade de
alguém se ver envolvido num acidente de aviação. Daqui se conclui, portanto, que nem todas as
condições necessárias do dano são, simultaneamente, as suas causas adequadas, em abstrato.
A questão essencial está em saber quando é que um facto pode, abstratamente ou em geral, ser
considerado causa adequada de um dano. E aqui podemos seguir duas formulações: uma positiva,
que entende por causa adequada de um resultado toda e condição apropriada para a
produção dele, segundo um critério de normalidade, excluindo, portanto, as circunstâncias
especialmente particulares, de todo improváveis e estranhas ao regular/normal/provável
curso das coisas42. Assim, constituiriam causa adequada do dano todas os factos que, segundo um
observador experiente na altura da prática dos factos, sejam consequência normal ou típica daqueles,
i.e., o dano se possa prever como consequência natural ou efeito provável dessa conduta.
A segunda formulação, negativa, diz que um facto é inadequado a produzir um dano sempre
que ele seja indiferente para a sua produção, tendo esse dano ocorrido apenas por
circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, não previsíveis de modo
nenhum por um observador experiente na altura em que o facto se verificou. A formulação
negativa é mais ampla que a positiva, podendo levar a resultados distintos: A dispara sobre B a uma
distância tal que, segundo um juízo de normalidade, jamais o atingiria. Porém, devido a uma
circunstância anómala, atinge B mortalmente. Segundo a primeira formulação o disparo não é
considerado causa adequada da morte, mas o contrário já se afirma se adotarmos a segunda
formulação: é que o disparo não foi indiferente à produção do dano.
Note-se que a teoria da causalidade adequada se baseia num juízo de normalidade das
circunstâncias em causa para um observador experiente à data dos factos. Mas, para além destas,
devem também ser consideradas as circunstâncias efetivamente conhecidas do lesante à data da lesão,
ainda que ignoradas por outras pessoas. Assim, se A esbofeteia B que morre devido a uma condição
cardíaca grave, A, caso não tivesse conhecimento dessa condição, seria isentado de responsabilidade
(formulação positiva da teoria da causalidade adequada).
Qual destas formulações da teoria da causalidade adequada é preferível? Antunes Varela entende
que, relativamente à responsabilidade por factos lícitos, se deve adotar a formulação positiva da teoria
em estudo. Relativamente à responsabilidade delitual e obrigacional, que pressupõem um facto
ilícito e culposo do agente, já seria de defender a formulação negativa da mesma teoria, só se
devendo excluir a responsabilidade quando o facto se pudesse considerar de todo indiferente, na
ordem natural das coisas (e porque se verificaram circunstâncias extraordinárias e excecionais), à
produção do dano.
Mas é necessário, ainda, operar algumas precisões à teoria da causalidade adequada:
Para que haja causalidade adequada não é necessário que o facto, só por si e sem a
colaboração de outros, tenha produzido o dano;
Para que um dano seja considerado efeito adequado do facto não é necessário que ele
seja previsível para o autor desse facto (o facto tem de ser previsível, mas já não o dano);
A causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas
ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. Assim, ainda que um facto em
abstrato seja capaz de produzir a morte de alguém, ele poderá não ser a causa adequada
desse dano43;
O facto de terceiro (: intervenção de terceiro no nexo causal) ou do próprio lesado
causadores imediatos do dano, e independente do facto original, não é imputável ao
lesante quando o facto original não tenha aumentado significativamente ou alterado
essencialmente o risco da verificação do dano44.
Visto tudo isto, analise-se o exemplo: A é barbaramente agredido por B, sendo internado num
hospital. Aí contrai uma bactéria que circula pelo hospital, vendo o seu período de internamento
prolongado. Durante o internamento, C, enfermeiro, furta a carteira de A. Devido ao furto, A fica
impossibilitado do saldar uma obrigação pecuniária, tendo de responder judicialmente e arcar com as
respetivas custas judiciais. Até onde há nexo de causalidade? Segundo a teoria da causalidade
42 A aferição daquilo que é o normal ou regular curso das coisas faz-se com recurso às regras comuns da experiência
(: segundo Galvão Teles estas são juízos que se obtêm com a ajuda da experiência geral da vida ou com base em
conhecimentos especiais e que servem para deles se retirar conclusões de facto ou para facilitar a sujeição do facto ao
direito.)
43 Caso do individuo que, vitima de uma agressão mortal, graças à sua especial robustez e resistência sobrevive, mas
adequada, na sua formulação negativa, há nexo de causalidade para as ofensas corporais até ao
prolongamento do internamento devido à bactéria. Contrair uma bactéria durante um internamento
hospitalar é um efeito previsível e até provável, sendo que a agressão não é indiferente a esse resultado.
Já o furto da carteira é completamente atípico e extraordinário ao internamento, daí que se interrompa
aí o nexo causal.
A última das teorias que referimos quando abrimos este ponto, a teoria do fim da proteção da
norma, é mais recente e de origem alemã e, embora mereça considerável adesão doutrinal, é muito
criticada tanto por Antunes Varela como por Carneiro da Frada. Na base desta teoria está a ideia de
que a distinção entre danos indemnizáveis e danos não indemnizáveis se deve fazer, não em
obediência ao pensamento da causalidade adequada do facto, mas tendo em conta os interesses
tutelados pelo fim da norma legal.
Sobre as omissões remetemos para o foi dito aquando da discussão do facto enquanto
pressuposto da responsabilidade civil.
Veremos, agora, alguns casos em que não há propriamente um facto ilícito especialmente
previsto, mas uma presunção legal de culpa que recai sobre certas pessoas. Simultaneamente são
estes, também, casos de consagração da doutrina dos deveres de tráfego. É que em todas estas
hipóteses não se trata de uma responsabilidade objetiva, mas de situações em que o agente
culposamente não observou certos cuidados para prever ou prevenir uma fonte de perigo.
As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por
virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas
causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de
vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.
Artigo 491.º - Responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de
outrem
Nos casos de ruina total ou parcial de edifício ou outra obra (devendo considerar-se como tais
construções ligadas ao solo ou unidas ao prédio, mas não coisas móveis sem ligação ao solo ou
produtos naturais assim ligados – v.g.: árvores), presume-se responsável o proprietário ou possuidor
do edifício, pois, em princípio, será deles a negligência havida na construção ou conservação do
edifico ou obra que resultou na derrocada. Nos termos do nº 2 do art.º 492º, porém, tratando-se
exclusivamente de dano provocado por falta de conservação do edifício ou obra, não é o proprietário,
mas sim o obrigado por lei ou negócio jurídico (v.g.: usufrutuário, locatário, etc.) o responsável. Se
houver culpa de ambos, responderão solidariamente.
O proprietário ou possuidor pode afastar a presunção de culpa nas situações previstas no art.º
492º, nº 1 in fine.
1 – Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e
bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais,
responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar
que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente
produzido ainda que não houvesse culpa sua.
45 Várias hipóteses se podem colocar em que existe um dever jurídico de informar ou aconselhar, muitas dessas
hipóteses decorrem explicitamente da lei (v.g.: cfr. art.º 465º, al. d). Noutros casos, o dever de informar não decorre
expressamente da lei, mas de certas valorações da ordem jurídica (v.g.: responsabilidade pré-contratual ou deveres acessórios
de informação). Baptista Machado vai ainda mais longe do que a lei e admite que, mesmo quando não haja dever jurídico
de informar, há responsabilidade quando se prestem informações falsas com dolo ou negligência consciente.
Trata-se neste caso de danos provocados pelas coisas ou animais e não danos causados pelo
agente com o recurso a coisas e animais. Neste último caso, estaremos perante um uso instrumental
dos animais e coisas, onde se aplicará o regime geral da responsabilidade delitual.
Estabelece a lei a presunção de que, havendo um dever vigiar certa coisa ou animal, e se essa
coisa ou animal provocar danos será a pessoa que a/o detém (e não quem é proprietário) responsável,
presumindo-se (presunção afastável nos termos do art.º 493º, nº 1, in fine) que houve falta de
precaução necessária para evitar ou prevenir o dano.
Relativamente ao exercício de atividades perigosas (v.g.: fabrico de explosivos, tratamentos com
radiações, transporte de combustíveis, etc.) a presunção de responsabilidade recai sobre quem exerça
a atividade e só pode ser afastada se ficar demonstrado que o executante empregou todos as
providências necessárias para evitar e prevenir o dano. Foi discutido se o nº 2 do art.º 493º teria
aplicação à condução de veículos terrestres, enquanto atividades perigosas, mas o STJ veio negar tal
possibilidade.
do risco de dano associado a um negócio o celebra na mesma (v.g.: se um banco não se mune, pudendo fazê-lo, das garantias
suficientes para a realização do seu crédito não pode demandar o cliente que não os forneceu).
lesado, mas exclusivamente por terceiro. É que o acontece no caso da morte ou lesão corporal,
previsto no art.º 495º. Esta disposição corresponde a uma tradição que advém já do Código de
Napoleão. A morte e a lesão corporal que a ela conduza merecem um tratamento especial, conquanto
se tenha que assegurar que tanto quem arcou com despesas relacionadas com o socorro à vitima,
como os seus sucessores, são reparados. O nº 3 do art.º 495.º institui, inclusive, uma obrigação de
indemnização a quem dependia da vitima (mesmo no caso das obrigações naturais). Outra exceção à
regra supra enunciada é a presente no art.º 496º, nº 2 e 3, que fixa os titulares do direito à indemnização
por danos não patrimoniais (e patrimoniais, por analogia) no caso de morte da vítima.
1 – Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua
responsabilidade.
Todos os comparticipantes respondem de igual forma pelos danos que hajam causado (cfr. art.º
490º). A lei acrescenta, no art.º 497º, que a responsabilidade dos vários comparticipantes é solidária,
o que significa que o titular do direito de indemnização pode exigir de qualquer um dos
comparticipantes a reparação de todos os prejuízos. Adquire esse comparticipante, contudo, o direito
de regresso, i.e., pode exigir a cada um dos restantes comparticipantes que lhe restituam a sua parte
na indemnização, calculada em função “das respetivas culpas e das consequências delas advieram”.
É, preciso, ainda, provar que os vários comparticipantes tiveram condutas com graus de
censurabilidade distintas, visto que a lei estabelece uma presunção de igualdade de culpa dos vários
responsáveis.
Relativamente ao direito de indemnização, dois são os prazos de prescrição que devem ser
considerados: três anos a partir da data em que o lesado teve conhecimento do direito à
indemnização pelos danos que sofreu, ainda que desconheça o lesante ou a extensão integral dos
danos; e, em todo o caso, vinte anos (relativo ao prazo de prescrição ordinário: cfr. art.º 309º) a
contar da data da verificação do facto ilícito.
A lei estabelece um prazo relativamente curto para a prescrição do direito de indemnização,
evitando, assim, que as pessoas sejam colocadas na eventualidade de ser confrontadas com pretensões
indemnizatórias decorridos largos períodos de tempo desde a prática do facto. É que, nestas questões,
e como frequentemente se tem de recorrer à prova testemunhal, quanto maior for o desfasamento
entre os factos e o seu julgamento, maior será a dificuldade em reconstituir fielmente a situação de
responsabilidade.
É a própria lei, no art.º 483º, que estabelece como princípio geral o de que a responsabilidade
civil repousa no pressuposto da culpa do lesante (responsabilidade subjetiva). Do conjunto de
danos que alguém possa sofrer na sua esfera patrimonial e não patrimonial, a regra diz-nos que só é
legitimo exigir-se indemnização quando o facto que tenha conduzido ao dano seja ilícito e provenha
de uma atuação culposa. No mais, todos os danos provocados por terceiros, mas sem culpa, e os
danos provenientes de acasos furtuitos ou de força maior correm à custa do lesado.
Esta ideia de que certas lesões têm de ser assumidas pelo titular dos bens ou direitos lesados
traduz uma ideia de que viver – e viver em comunidade – comporta uma série infinita de riscos. Ora,
o chamado risco geral da vida é o «preço que cada um tem de pagar por estar no mundo ou viver
em sociedade»47.
A responsabilidade subjetiva, baseada na culpa do lesante, é a forma de assegurar a justiça
corretiva, havendo um conteúdo ético-jurídico que impõe que aquele que culposamente cause um
prejuízo o repare. Acontece, contudo, que a teoria da culpa nem sempre conduz aos resultados
materialmente mais justos ou desejáveis. Como ensina Antunes Varela, «há largos e importantes
setores da vida48 em que as necessidades sociais de segurança se têm de sobrepor às considerações de
justiça» comutativa. É, pois, necessário, quando a responsabilidade subjetiva não dê resposta às
necessidades (sociais e de justiça) de reparação de prejuízos, introduzir certos carateres sociais
objetivos, que permitam acionar os mecanismos da obrigação de indemnizar independentemente de
culpa do lesante e, até, da existência de um facto ilícito, visto que a responsabilidade pode provir de
facto natural, facto de terceiro ou facto do próprio lesado.
A responsabilidade sem culpa (: responsabilidade objetiva) tem na sua base uma ideia de
justiça distributiva, responsável pela repartição dos ónus e encargos entre os membros da
comunidade, e assenta na teoria do risco. Assim, quem introduz ou controla uma fonte de
risco/perigo para proveito próprio deve suportar as consequências prejudiciais da sua
utilização, já que dela colhe vantagens49. Estamos perante a responsabilidade pelo risco.
A lei, ao consagrar a responsabilidade pelo risco (cfr. art.º 499º - 510º), utilizou (cfr. 483º, nº 2)
a técnica de enumeração. A responsabilidade pelo risco, numa sociedade cada vez mais técnica e de
riscos, tem tendência a um progressivo alargamento, colocando-se a necessidade de repensar os
seus esquemas. Carneiro da Frada defende a criação de uma cláusula geral de alcance limitado para
este tipo de responsabilidade, mas reconhece a dificuldade dessa tarefa.
Analisemos os casos de responsabilidade pelo risco previstos na lei.
50 São exemplos de comissão: empregado (: comissário) face ao patrão (: comitente); procurador face ao mandante;
motorista face ao dono do veículo. Não são exemplos de comissão (por falta de relação de dependência): empreiteiro face
ao dono da obra; taxista face ao passageiro; médico face ao paciente.
51 Alguma doutrina defende que, para além da relação de subordinação, é preciso, para que haja responsabilidade, que
o comitente tenha liberdade de escolha do comissário. Este requisito levanta várias dúvidas: muitas situações há em que
não existe inteira liberdade de escolha do comitente (ou porque é necessário que este disponha de certa habilitação ou
licença ou porque o comitente delega em terceiro o encargo da escolha do comissário), sem que deixe de existir, contudo,
relação de dependência.
52 Nestes casos o agente pode apenas aproveitar as facilidades que o exercício da comissão lhe proporciona para
consumar o facto. V.g.: o empregado que mata alguém com a espingarda de que se apoderou em casa do patrão.
53 Fica incluído neste quadro de funções o caso do empregado bancário que dá uma informação falsa para lesar um
cliente; o funcionário que causa um dano propositado numa instalação elétrica que é enviado para reparar.
internas entre o comitente e o comissário, operar-se nos termos do art.º 497º. Daqui resulta que
havendo culpa do comissário e do comitente, cada um é responsável na medida das respetivas culpas.
Se houver apenas culpa do comissário, pode o comitente exigir, ao abrigo do direito de regresso, tudo
o que haja pago. Se apenas houver culpa do comitente, nenhuma obrigação de indemnização impende
sobre o comissário, sendo que o primeiro responde nos termos da responsabilidade por factos ilícitos.
Finalmente, falta apenas referir o fundamento jurídico da responsabilidade do comitente. E,
aqui, duas justificações são de avançar: se o comitente se serve de um terceiro para a realização de
certa atividade, e daí retira vantagens, é justo que responda pelos prejuízos que possam ocorrer; o
comitente, estando geralmente numa posição economicamente mais confortável que o comissário,
serve uma função de garantia da indemnização perante o lesado, que assim nunca fica privado desta
por insuficiência de património do comissário. É, pois, possível, dizer que demandado comitente e
comissário, o primeiro responde pelo risco e o segundo pela culpa.
Manda a lei aplicar o regime supra descrito aos danos causados por órgãos, agentes ou
representantes do Estado no exercício das suas funções de gestão privada. Os danos causados
pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou demais pessoas coletivas no exercício de
atividades de gestão pública, sendo matéria primordialmente administrativa, merece regulação em
diploma próprio (Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro). Serão atividades de gestão privada todas
aquelas em que o Estado atua despido das vestes de ente público, i.e., sem ius imperium,
encontrando-se numa posição simétrica à da contraparte, aplicando-se-lhe, portanto, as regras do
direito privado.
Em traços muito genéricos, o Estado e demais entidades públicas respondem perante o terceiro
lesado, independentemente de culpa, sempre que haja responsabilidade dos seus órgãos, agentes ou
representantes no exercício da função. Podem, depois, em relação a estes, ativarem o direito de
regresso de tudo o quanto hajam pago (em relação aos órgãos coletivos o direito de regresso goza de
especiais dificuldades, na medida em que é difícil apurar a culpa de cada um dos membros do órgão).
Já o art.º 493.º se refere aos danos causados por animais, mas aí não no âmbito da
responsabilidade objetiva, antes para estabelecer uma presunção de culpa contra quem tenha o dever
de vigilância dos animais. O art.º 503º vai mais longe, estabelecendo que quem usar animais em
interesse próprio, e sendo estes uma fonte de perigos, responsabilizar-se-á pelos danos causados por
tal utilização. Assim, desde já se torna clara a diferença de regime: o art.º 493º aplica-se a quem estava
encarregue da vigilância dos animais (v.g.: o depositário, o mandatário, o guardador, o tratador, etc.),
já o art.º 503º aplica-se a quem utilize os animais em interesse próprio (geralmente o proprietário,
mas não só54).
Mas para que haja responsabilidade objetiva a lei elenca dois requisitos: que a utilização do
animal seja feita no interesse do próprio utilizador, visto que é essa pessoa que retirará os benefícios
da utilização do animal, devendo por isso responder pelos danos que ele possa causar 55. Pode haver
casos em que a responsabilidade objetiva se acumulará com a responsabilidade por factos ilícitos
(caso, v.g., do animal alugado que satisfaz tanto o interesse do proprietário como do locatário ou do
proprietário que solicite a outrem que vigie o animal e este com culpa falhe os seus deveres de
vigilância). O segundo requisito diz-nos que só são indemnizáveis os danos que resultem do
perigo especial que envolve a utilização do animal. «É assim pelo perigo específico resultante da
utilização de cada animal que se define o círculo dos danos indemnizáveis. Ficam, assim, afastados
os casos em que o animal foi utilizado como mero instrumento de um facto (v.g.: atiçar cão a outrem).
Relativamente aos danos causados por veículos terrestres vigora, igualmente, um princípio de
responsabilidade objetiva fundada no risco56. A responsabilidade objetiva considerada nestes casos
é extremamente importante, visto que o número de acidentes de viação é elevado, numa sociedade
em que a intensidade do tráfego automóvel aumenta cada vez mais.
Nos termos da lei (cfr. art.º 503º, nº 1) é responsável pelos danos que envolvam acidentes
causados por veículos quem reúna um duplo requisito: [i.] quem tenha a direção efetiva do veículo
e [ii.] o utilize no seu próprio interesse. Por norma, é o proprietário de veículo que mais facilmente
reúne estes dois requisitos, mas não será assim necessariamente. Tem direção efetiva de veículo quem
usa ou dispõe do veículo, i.e., quem tem um poder de facto sobre o veículo 57 , gozando e
usufruindo das suas vantagens, ainda que não tenha nenhum poder jurídico sobre o veículo. É
precisamente a estas pessoas que incumbe o especial cuidado de controlar o funcionamento do
veículo (v.g.: vigiar luzes, travões, pneus, motores, óleo, etc.). O segundo requisito visa afastar a
responsabilidade objetiva daqueles que utilizam o veículo não no seu próprio interesse, mas
em proveito ou às ordens de outrem (caso do comissário). O interesse em causa pode ser
material/económico, moral/espiritual, digno de proteção legal, reprovável, etc.
3 – Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos
danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se,
porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário,
responde nos termos do nº 1.
Artigo 503.º - Acidentes causados por veículos
É preciso, neste âmbito, abordar a responsabilidade do comissário, i.e., daquele que conduza um
veículo por conta de outrem. É que, aqui, determina o art.º 503º nº1 e 3 um cumulo de
responsabilidades: tanto é responsável o comitente (visto que é no seu interesse que o veículo é
utilizado e, na maioria das vezes, é ele que tem a direção efetiva) como o comissário. O comissário
tem contra si uma presunção de culpa 58 , que, caso consiga afastar, determina que apenas seja
55 V.g.: o individuo que encontre um animal abandonado e o recolha não responderá objetivamente pelos danos que
ele causar até o usar no seu próprio interesse.
56 Note-se que o STJ afastou a possibilidade de se considerar a condução de veículos como uma atividade perigosa,
para efeitos da aplicação da presunção de culpa associada ao regime da responsabilidade delitual, prevista no art.º 493º.
57 Mas note-se que isto não corresponde a quem tem “o volante nas mãos”. Antes abrangerá o proprietário,
usufrutuário, locatário, comodatário, adquirente com reserva de propriedade, autor do furto do veículo, pessoa que o utiliza
abusivamente. Faltará direção efetivo, e logo não será objetivamente responsável, o passageiro entra num táxi, o dono a
quem a viatura foi roubada, etc.
58 Como se justifica esta presunção de culpa sobre o comissário? É que tal presunção não abrange a viatura conduzida
pelo próprio dono, cabendo ao lesado provar culpa do condutor. São várias as circunstâncias especiais apontadas por
objetivamente responsável o comitente. Caso não consiga elidir essa presunção, há responsabilidade
solidária entre condutor e detentor do veículo, podendo este último invocar o direito de regresso,
face à atuação culposa do condutor, nos termos do art.º 500º, nº 3. Se o comissário utilizar o veículo
fora do exercício das suas funções (i.e., contra ou a sem a vontade do comitente) responderá nos
termos gerais do art.º 503º, nº 1.
Situações podem ocorrer em que um terceiro, não sendo comissário, conduza o veículo (v.g.:
furto, aluguer, empréstimo). Nestes casos, duas hipóteses é preciso distinguir: se o detentor do veículo
não autorizou a utilização do veículo não responderá pelos danos causados (caso do furto); se o
detentor do veículo autorizou o seu uso responderá solidariamente pelo dano, uma vez que a direção
efetiva pertence a ambos.
Relativamente aos danos indemnizáveis, diz o nº 1 do art.º 503º serem os “danos
provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Assim, cabem dentro da fórmula legal os danos causados por veículos em circulação (atropelamentos,
colisões, destruições de coisas) como por veículos estacionados (porta de veículo aberta que leva a
embate, veículo mal estacionado, explosão do motor ou do depósito de gasolina, etc.). Dentro do
risco próprio do veículo cabe absolutamente tudo o que estiver relacionado com a máquina de
transporte 59 , assim como o que tudo o que esteja ligado ao condutor (v.g.: perigo de síncope,
congestão, colapso cardíaco, doença súbita, etc.)
1 – A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a
terceiros, bem como às pessoas transportadas.
Estabelece o art.º 504º, nº 1 que são beneficiários da responsabilidade, e logo titulares do direito
de indemnização, os terceiros que estando fora do veículo foram lesados de alguma forma e as
pessoas transportadas no veículo. Relativamente a estas, há que analisar se estamos perante um
transporte contratado (v.g.: viagem de táxi)60 ou se se trata de um transporte gratuito (v.g.: boleia). No
primeiro caso, a responsabilidade abrange os danos pessoais que atinjam o transportado e todas as
coisas que estejam a ser transportadas por aquele. No segundo o caso, a responsabilidade limita-se
aos danos pessoais que atinham o transportado (cfr. art.º 504º, nº 2 e 3).
Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do
artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado
ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao
funcionamento do veículo.
Artigo 505.º - Exclusão da responsabilidade
O art.º 505º prevê três causas de exclusão da responsabilidade objetiva (eliminando o nexo
causal): [i.] o acidente ser devido a facto culposo do próprio lesado (v.g.: o peão que atravessa a
rua fora do lugar próprio ou com o semáforo vermelho para si; o individuo que vê um carro a arder
Antunes Varela que justificam esta presunção: os condutores de veículo por contra de outrem são, normalmente,
camionistas ou motoristas profissionais, sendo-lhes exigido uma perícia especial na condução; há na condição por conta de
outrem um perigo especial de afrouxamento na vigilância do veículo por vários motivos; o próprio comitente está, muitas
vezes, influenciado pela fadiga associada à profissão.
59 São muitos os exemplos: vício de construção, desequilíbrios de carga, peso ou sobrelotação, desgaste das peças,
iluminação, vibrações, rebentamento de pneus, explosão de motores, direção partia, falta de travões, pedra ou gravilha
projetada pelo veículo, etc.
60 Note-se que nos casos de transporte contratados há responsabilidade objetiva que concorre com a responsabilidade
contratual e com a responsabilidade delitual, caso se reúnam os seus pressupostos.
e se aproxima, acabando ferido, etc.)61; [ii.] o acidente for devido a facto de terceiro (v.g.: peão que
apedreja o condutor e o leva a embater num muro; condutor de outro veículo que repentinamente
guina o seu carro; passageiro que coloca a mão ao volante do carro; animal que se solta da coleira e
surge na via pública, etc.)62; [iii.] causa de força maior estranha o funcionamento do veículo (v.g.:
viatura arrastada por cheia ou que explodiu devido a um incêndio provocado por um raio, etc. ).
1 – Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou
em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a
responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos
veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados
somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a
pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.
Se ambos os condutores tiverem culpa nos danos, cada um deles responde pelos danos
correspondentes ao facto que praticou;
Se apenas um dos condutores foi culpado, só ele responderá por todos os danos
causados;
Se nenhum dos condutores for culpado, duas hipóteses se abrem (cfr. art.º 506º, nº 1):
se foi apenas um dos veículos que causou danos ao outro, só o detentor do veículo
causador dos danos responde; se ambos veículos tiverem concorrido para o acidente,
independentemente de apenas um deles ter ficado danificado, somam-se todos os danos
resultantes da colisão e reparte-se a responsabilidade na proporção em que cada um dos
veículos houver contribuído para a produção desses danos 63. Vide a presunção do art.º
506º, nº 2.
1 – Se a responsabilidade pelo risco recair sobre várias pessoas, todas
respondem solidariamente pelos danos, mesmo que haja culpa de alguma ou
algumas.
Perante uma pluralidade de responsáveis dos danos causados aplicar-se-á o art.º 507º,
que estabelece o princípio da responsabilidade solidária. Assim, o lesado pode exigir a
indemnização de qualquer um dos responsáveis. No âmbito das relações internas entre
responsáveis manda o art.º 507º, nº 2 distribuir a obrigação de indemnizar por todos os
responsáveis em “harmonia com o interesse de cada um na utilização do veículo”. Havendo,
contudo, culpa de algum dos responsáveis apenas esse fica obrigado a indemnizar, havendo
direito de regresso dos responsáveis objetivos nos termos do art.º 497º, nº 2.
61 Defende a doutrina que, apercebendo-se o condutor que circula na estrada um inimputável (criança, ébrio, incapaz)
deve tomar as precauções especiais adequadas, incorrendo em culpa se não as adotar. Assim, se uma criança se atirar para
a frente do veículo e o condutor não abrandar, há obrigação de indemnizar. Não haverá, porém, culpa da sua parte se,
tomadas todas as precauções, o acidente for causado pela vítima.
62 Pode o terceiro ser responsabilizado? Sim, ao abrigo da responsabilidade delitual e preenchidos os seus requisitos.
sofreu danos de 1500 €. Se o tribunal entender que a viatura pesada contribuiu em dois terços, pelo maior risco que criou,
pagará 1334€.
A lei estabelece, no art.º 508.º, limites máximos para a responsabilidade objetiva fundada no
risco quando reporte a danos causados por veículos. É que o legislador reconhece os graves
inconvenientes e as sérias dificuldades que as indemnizações acima de certo valor podem causar ao
detentor do veículo, principalmente num cenário em que não haja culpa do responsável. Assim, nos
casos de risco a indemnização fundada em acidente de viação tem como limite máximo o capital
mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (vide art.º 12º e 13.º do
Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto).
Entende a doutrina que a energia elétrica e o gás são fontes de perigo, mas cuja exploração é
bastante lucrativa para os operadores económicos, entendendo-se, portanto, que também aí deve
haver responsabilidade pelo risco. Assim, os danos causados pela instalação, transporte e distribuição
dessas fontes de energia correm por risco das empresas que as exploram.
O regime do art.º 509º é semelhante àquele que vigora para os acidentes de viação. O nº 2 prevê,
igualmente, causas de exclusão da responsabilidade. Apesar do preceito apenas referir a “causa de
força maior”, deve-se, por analogia, incluir aí, também, o dano ser imputável ao lesado ou a terceiro.
O nº 3 exclui da responsabilidade aqui prevista os danos causados por utensílios de uso de energia (:
aquecedores, frigoríficos, televisões, etc.). Entende-se, também, que a instalação elétrica que o
consumidor tenha feito, por sua conta e risco, não cai no âmbito da responsabilidade objetiva.
O art.º 510º prevê, igualmente, limites máximos da indemnização.
Obrigações civis
Vínculo
Obrigações naturais
Modalidades das obrigações quanto ao
Obrigações indivisíveis
Obrigações específicas
Obrigações genéricas
Obrigações cumulativas
Obrigações alternativas
Obrigação de de informação e de
apesentação de coisas ou documentos
1. Sistematização. Pág. 37
Parte III – Modalidades das Obrigações. /// Apontamentos/Direito das Obrigações/IISemestre
A noção de obrigação civil é obtida por contraposição à noção de obrigação natural, pelo que
não nos alongaremos muito. Tem sido o conceito de obrigação civil a que habitualmente nos temos
referido ao longo do estudo do Direito das Obrigações. Este representa a obrigação típica, dotada de
juridicidade, que se distingue das obrigações naturais em dois pontos: [i.] serem judicialmente
exigíveis (cfr. art.º 817º) e [ii.] a possibilidade de repetição (restituição) da prestação (cfr. art.º 476º,
nº 1).
O art.º 402º explicita o conceito de obrigação natural. São duas as notas características desta
modalidade de obrigações:
Dívida prescrita (art.º 304º, nº 2): uma vez invocada a prescrição de uma certa dívida,
por extinção do vínculo jurídico, ela permanece, visto que a sua regularização
corresponde ainda a um dever de justiça, transformando-se numa obrigação natural;
Dívidas provenientes do jogo ou aposta (art.º 1245º): são obrigações naturais as dívidas
provenientes de jogo ou aposta lícita e sobre as quais não recaia legislação especial;
Prestação de alimentos (art.º 495º, nº 3 e 2009º) efetuada a favor de certas pessoas que
não tenham o direito de exigi-los;
Dever de os pais compensarem os filhos pelo seu trabalho (art.º 1895º, nº 2);
O art.º 404º estabelece o regime geral das obrigações naturais, estabelecendo uma regra de
equiparação às obrigações civis, com duas exceções: [i.] quando haja disposições especiais na lei
referentes às obrigações naturais e [ii.] excluindo tudo o que se relacione com a realização coativa
da prestação. A regra da equiparação implica o afastamento das obrigações naturais do regime das
doações. Relativamente à primeira exceção, são vários os preceitos especiais consagrados na lei (v.g.:
615º; 495º, nº 3; etc.). A exclusão de tudo o que se relacione com a realização coativa da prestação
envolve as regras que regulam o modo, lugar, e o tempo do cumprimento da prestação, as que
definem a mora do devedor, as relativas aos efeitos do não cumprimento da obrigação, etc.
Questão interessante é a de saber se as obrigações naturais admitem outras formas de extinção
da obrigação para além do cumprimento espontâneo. No que toca à compensação, parece evidente
que não se possa compensar uma dívida civil com uma dívida natural; o contrário, porém, já é válido.
A dação em cumprimento é admitida. A novação está excluída. Não é possível constituir garantias
em relação a obrigações naturais.
Outra discussão que merece tratamento é a relativa à natureza jurídica das obrigações
naturais. E, aqui, três teses emergem:
Tese da obrigação jurídica imperfeita: a obrigação natural seria uma obrigação jurídica
imperfeita porque lhe faltaria a garantia ou sanção, i.e., a exigibilidade judicial. Assim,
haveria entre os dois sujeitos da obrigação natural um vínculo imperfeito, mais frouxo
do que aquele que liga o credor e o devedor na obrigação civil. Esta tese não colhe, uma
vez que pressupõe que a sanção integre o conceito da obrigação, o que não é totalmente
liquido;
Tese da juridicidade póstuma: a obrigação natural seria uma pura situação de facto
estranha ao direito que, a partir do cumprimento, se converteria em verdadeira obrigação
jurídica (perfeita). Como diz um jurisconsulto italiano, citado por Antunes Varela, a
obrigação natural seria uma trágia que “morre no mesmo instante em que vê a luz do
dia”.
Tese do dever moral ou social juridicamente relevante: as obrigações naturais são
relações de facto entre as pessoas, que traduzem imperativos éticos e socais
correspondentes a deveres de justiça. É esta a orientação válida.
64 Note-se que esta não é a solução admitida para todos os casos em que uma obrigação é nula por vício de forma: é
preciso analisar a exigência prosseguida pela exigência de forma, que pode ser incompatível com a imposição de qualquer
vínculo ao declarante.
65 Os títulos ao portador não são meros documentos probatórios da constituição da obrigação. A própria obrigação
está incorporada nesse documento, sendo que esses títulos se transmitem livremente pela simples entrega e o credor da
obrigação determina-se pela posse do documento.
66 São exemplos a obrigação de reparar partes comuns da propriedade horizontal, a obrigação de arrancar árvores
plantadas em desrespeito das distâncias impostas pelas relações de vizinhança, etc.
contraposição temos as obrigações singulares, que são encabeçadas apenas por um titular do lado
ativo e passivo.
Note-se que pluralidade das obrigações pode ser:
67 Cada um dos sujeitos pode dispor livremente da sua parcela (pela cessão, remissão, compensação, etc.). Se a
obrigação relativa a um dos contitulares for declarada nula ou anulada, se extinguir pelo cumprimento ou por outra forma
de cessação da obrigação (prescrição, compensação, dação, …), ou se um dos contitulares se tornar insolvente, esses factos
não prejudicam as restantes obrigações parcelares nem aproveitam aos outros contitulares.
As obrigações solidárias passivas são definidas como o poder do credor exigir a prestação
integral de qualquer um dos devedores e a prestação realizada por um desses devedores
solidários liberar todos os restantes perante o credor. Exemplo: A, B e C, devedores solidários,
devem a D 300 €. O credor D pode exigir a qualquer um dos devedores (A, B ou C) a totalidade da
prestação, sendo que o cumprimento por parte de um deles, v.g. B, exonera os outros dois face a D.
Nas obrigações solidárias ativas qualquer um dos credores tem a faculdade de exigir ao
devedor a totalidade da prestação, e a prestação efetuada pelo devedor a qualquer um dos
credores solidários libera-o face a todos os outros credores. Exemplo: A deve a B, C e D,
credores solidários, 300 €. Qualquer um dos credores, v.g. C, pode exigir de A a entrega da totalidade
devida, sendo que o cumprimento por A o exonera perante todos os outros credores.
O regime da solidariedade das obrigações é relevante sobretudo do ponto de vista do risco de
insolvência do devedor ou credor. Assim, tratando-se de solidariedade passiva, se um dos devores
solidários se tornarem insolvente quem sofre o prejuízo são os restantes devedores e não o credor
comum (como aconteceria se a obrigação fosse conjunta), e bem assim, sendo a solidariedade ativa,
se posteriormente ao cumprimento pelo devedor, o credor que tenha recebido a prestação se tornar
insolvente e não puder repartir com os outros a prestação recebida, são esses concredores que
suportarão o prejuízo.
Não são estas, evidentemente, as únicas vantagens da solidariedade. No que respeita à
solidariedade passiva trata-se de uma questão de facilitar a exigência do crédito68 , protegendo de
forma mais eficiente o credor e, também, beneficiar os próprios devedores, a quem facilita a obtenção
do crédito. Relativamente à solidariedade ativa, as suas vantagens são menos claras: aproveita ao
credor, porque pode exigir a prestação – impedido que esta prescreva por falta de interpelação ao
devedor –, e ao devedor, porque podendo escolher perante que credor cumprir realizará a prestação
de forma mais cómoda.
É possível, no âmbito de qualquer obrigação solidária, distinguir dois tipos de relações: relações
externas e relações internas. As primeiras são as que ligam credor-devedor e as segundas as que
ligam os credores ou devedores solidários nas relações entre si.
2 – A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem
obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o
conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar
quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores
solidários.
Artigo 512.º - Noção
A doutrina muito tem debatido sobre os pressupostos da solidariedade. Três pressupostos são
unanimemente apontados:
68 Nas obrigações conjuntas, o credor terá de interpelar todos os devedores para evitar que alguma parte do seu
crédito, pelo menos, possa a vir a prescrever; na obrigação solidária, enquanto a obrigação não prescrever em relação a
todos os devedores, o credor poderá sempre exigi-la, na íntegra, de um ou algum deles.
69 Assim, se A, com medo que uma certa encomenda não chegue a tempo, encomendar a dois fornecedores a mesma
coisa, ele adquire o direito de exigir a mesma prestação de dois devedores, mas tal não constitui uma obrigação solidária: é
que o cumprimento de um dos fornecedores não exonera o outro. Falta o efeito extintivo comum.
70 Relativamente à identidade de causa, afasta-se esta como pressuposto das obrigações solidárias, visto que nada
impede que estas derivem de causas diversas (i.e., elas não têm que nascer do mesmo facto jurídico, antes podem nascer em
momentos sucessivos e de fontes diferentes para os vários credores ou devedores – v.g.: responsabilidade do comitente
quando haja culpa do comissário). No que toca à comunhão de fins, alguns autores consideram que para que haja obrigação
solidária é necessária que as prestações dos vários devedores cumpram a mesma finalidade. Não estão errados.
alguns autores dizendo que só há obrigação solidária quando a prestação debitória seja idêntica para
todos os devedores, tanto nas relações externas como nas relações internas. Em face da lei, contudo,
esta orientação só colhe parcialmente: nos termos do art.º 512º, nº 2 os devedores podem estar
obrigados em termos diversos ou com diversas garantias71, ou ser diferente o conteúdo das prestações
de cada um deles quer face aos restantes devedores, quer face ao credor 72. É importante observar,
contudo, que, tratando-se de prestações com conteúdo diferentes, cada devedor só responde pela
parte comum da prestação, porque só essa parte comum corresponde à “prestação integral”.
A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou
da vontade das partes.
Artigo 513.º - Fontes da solidariedade
Sabe-se já que no direito civil a regra é a conjunção ou parciaridade das obrigações. Para alguém
atuar por outra pessoa é necessário um fundamento especial, em nome da autonomia e
autossuficiência de cada um. Assim, tanto a solidariedade ativa como a solidariedade passiva
requerem disposição legal ou convencional para o efeito 73 . São exemplos de obrigações
solidárias que resultam da lei a responsabilidade delitual e pelo risco, a pluralidade de gestores na
gestão de negócio (cfr. art.º 467º), a pluralidade de fiadores (cfr. art.º 649º, nº 1), entre outros. Uma
nota: por via do princípio favor creditoris que preside ao direito comercial, aí a regra é a da solidariedade
passiva das obrigações.
Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários
comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação
jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou
que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do
crédito.
Artigo 516.º - Participação nas dividas e nos créditos
A lei estabelece uma presunção, no art.º 516º, de que, nas relações internas, os vários devedores
ou credores solidários repartem em parcelas iguais a integralidade da prestação, i.e., divide-se a
totalidade da obrigação pelo número de devedores ou credores. Pode, contudo, como admite a lei,
coisa diferente resultar da relação obrigacional entre as partes, podendo os devedores solidários
responderem entre si por diferentes quotas (A por 100 €, B por 50 € e C por 150 €) e a cada um dos
credores solidários caber, igualmente, uma parcela distinta. No limite, pode acontecer que, ainda que
haja solidariedade entre devedores, apenas um deles ser responsável pela totalidade da prestação (caso
de danos provocados pelo comissário com culpa: só sobre recai a indemnização, podendo o
comitente reaver tudo o que haja prestado – cfr. art.º 500º, nº 3). Do mesmo modo, pode apenas um
dos credores solidários obter o benefício da totalidade do crédito.
Estudaremos, agora, com maior detalhe, e acompanhando a própria sistematização do código,
os dois tipos de solidariedade conhecidos.
/\ \/ /\ \/
Comecemos pelas relações externas no domínio da solidariedade passiva.
1 – O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a
prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado;
mas, se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica
inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha
exigido, salvo se houver razão atendível, como a insolvência ou risco de
insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a
71 Prestações com termos diversos: pode a obrigação de um estar a sujeita a termo ou a condição; podem ser diferentes
os lugares de cumprimento para os vários devedores. Prestações com diversas garantias: pode a obrigação de apenas um
devedor estar sujeita a fiança ou hipoteca.
72 Pode um dos devedores responder apenas pelo capital, enquanto outro responde pelo capital e pelos juros; pode
ser diferente a soma por que os vários devedores estão obrigados (um deve 100 €, outro 200€).
73 Mas a exigência de estipulação não é acompanhada de exigência de forma. Assim, para que se constitua a obrigação
como solidária basta qualquer forma de declaração expressa ou tácita (recorre-se, algumas vezes, a expressões como “um
por todos” ou “um pelos outros”).
prestação.
Artigo 519.º - Direitos do credor
Questão importante é a de saber que meios de defesa pode o devedor demandado invocar em
processo e de que forma é que esses meios se repercutem em relação aos demais condevedores. O
artº 514º, nº 1 dá-nos a regra: o devedor demandado pode invocar todos os meios de defesa
pessoais74 e todos os meios de defesa comuns75 aos condevedores. A única restrição coloca-se em
o devedor usar meios de defesa pessoais de outros devedores. Alguns meios de defesa estão
especialmente regulados na lei:
A satisfação do direito do credor, por cumprimento, dação em cumprimento,
novação, consignação em depósito ou compensação, produz a extinção,
relativamente a ele, das obrigações de todos os devedores.
Artigo 523.º - Satisfação do direito do credor
Como parece óbvio, tendo em conta a natureza da solidariedade, se a prestação for realizada
perante o credor, todos os outros devedores ficam liberados. Ora, quando se trata de realização da
prestação pelo cumprimento, dúvidas não se colocam. Não obstante, em relação a outras formas de
cumprimento o legislador preferiu não correr riscos, estabelecendo a extinção da obrigação em
relação a todos os condevedores nos casos previstos no art.º 523º.
1 – Se, por efeito da suspensão ou interrupção da prescrição, ou de outra
causa, a obrigação de um dos devedores se mantiver, apesar de
prescritas as obrigações dos outros, e aquele for obrigado a cumprir,
cabe-lhe o direito de regresso contra os seus condevedores.
Ainda no que respeita aos meios de defesa pessoais, o art.º 521º estabelece regime especial para
a prescrição: ela corre autonomamente para cada um dos condevedores e, se a obrigação
prescrever em relação a todos, cada um deles poderá invocar a prescrição em seu proveito.
Porém, se a obrigação não prescrever apenas em relação a um dos condevedores e ele haja
74 Meios de defesa pessoais: factos que, afastando temporária ou definitivamente a pretensão do credor, se referem
apenas a um dos devedores, só por este podendo ser invocado. Os efeitos dos meios pessoais de defesa variam consoante
a natureza do facto que lhes está na base:
[i.] alguns só podem ser invocados pelo devedor a quem se referem, mas aproveitam a todos os outros condevedores
(v.g.: compensação – cfr. art.º 523º);
[ii.] alguns só podem ser invocados pelo devedor a quem se referem e só a ele aproveitam (v.g.: incapacidade do
devedor, anulabilidade proveniente de vício da vontade, não verificação de condição ou termo que apenas diga respeito a
um dos devedores). Nestes casos os restantes condevedores são prejudicados, tendo de assumir a parcela daquele que é
libertado da obrigação;
[iii.] alguns só podem ser invocados pelo devedor a quem se referem, mas não aproveitam nem prejudicam os outros
condevedores (v.g.: prescrição, remissão).
75 Meios de defesa comuns: factos que dizem respeito a todos os devedores: nulidade da obrigação; anulabilidade;
exceção de não-cumprimento; resolução do contrato por incumprimento do credor; mora do credor, etc.
sido obrigado a cumprir, goza, ainda, do direito de regresso face aos outros condevedores,
apesar da prescrição do crédito em relação a esses operada. Ademais, estabelece o nº 2 do art.º
supra que, tendo prescrito a obrigação em relação a todos os condevedores, se um deles renunciar a
invocar a prescrição não poderá posteriormente vir exigir dos outros condevedores as suas parcelas.
A renúncia à solidariedade a favor de um ou alguns dos devedores não
prejudica o direito do credor relativamente aos restantes, contra os quais
conserva o direito à prestação por inteiro.
Artigo 527.º - Renúncia à solidariedade
A renúncia à solidariedade corresponde a outro meio de defesa pessoal, nos termos do qual
o credor se compromete a não exigir do beneficiário da renúncia – um ou vários condevedores –
mais do que a sua parcela na prestação integral. Nos termos do art.º 527º, a renúncia à solidariedade
não aproveita aos restantes condevedores.
Vistos os meios de defesa, analisemos, ainda no plano das relações externas da solidariedade
passiva, outras características do regime:
O caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos
restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se
baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor.
Artigo 522.º - Caso julgado
Sabe-se que um dos limites do caso julgado é dado, subjetivamente, pelas partes chamadas ao
processo, i.e., a decisão proferida só a estas vincula. Assim, se apenas um dos devedores for
judicialmente demandado, a decisão favorável ao credor proferida nesse processo apenas prejudica o
condevedor demandado, não podendo ser oponível aos restantes devedores, nos termos do art.º 522º.
Assim, ficam estes condevedores livres de utilizar todos os meios de defesa pessoal e todos os meios
de defesa comuns, mesmo aqueles que já tenham sido apreciados na ação anterior76. Afastando-se do
regime regra, a lei dá, todavia, a faculdade aos restantes devedores não demandados, nos termos do
art.º 522º, de aproveitarem uma sentença a eles favorável na ação entre um dos condevedores e
o credor comum, desde que não se basei em fundamentos que respeitem pessoalmente ao devedor
demandando (v.g.: incapacidade, vício de vontade, etc.). Assim, perdendo o credor a ação face a um
dos devedores, e desde que não estejam em causa fundamentos pessoais, essa decisão favorece os
restantes condevedores.
Se a prestação se tornar impossível por facto imputável a um dos devedores,
todos eles são solidariamente responsáveis pelo seu valor; mas só o devedor a
quem o facto é imputável responde pela reparação dos danos que excedam
esse valor, e, sendo vários, é solidária a sua responsabilidade.
Artigo 520.º - Impossibilidade da prestação
Caso a prestação se torne impossível por facto não imputável a nenhum dos credores, a
obrigação solidária extingue-se em relação a todos eles. Contudo, se essa impossibilidade resultar de
facto imputável a um dos devedores há que distinguir, na totalidade da indemnização devida, o valor
da prestação integral e a parte excedente: quanto ao primeiro respondem todos os devedores
solidariamente; quanto ao segundo responde apenas aquele que tenha praticado o facto. Se tiverem
sido vários os devedores responsáveis pela impossibilidade, todos responderão solidariamente pela
parte excedente.
O devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir
tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a
estes compete.
Artigo 524.º - Direito de regresso
Analisemos, agora, a solidariedade passiva no âmbito das relações internas. Sabemos, já, que
na solidariedade passiva o condevedor que for interpelado pelo credor está obrigado a realizar a
76
Este regime justifica-se pela possibilidade de facultar aos outros devedores todas as possibilidades de defesa e a
produção de todos os meios de prova de que disponham. Não seria legítimo vincular estes condevedores ao resultado de
uma ação na qual não intervieram, não se podendo devidamente defender. Note-se que o credor tem sempre a possibilidade
de demandar todos os condevedores.
totalidade da prestação. Mas tal não prejudica o direito de regresso que esse devedor tem contra
todos os outros condevedores, cabendo-lhe a faculdade de lhes exigir a respetiva parcela na
prestação integral, tal como dispõe o art.º 524º.
1 – Se um dos devedores estiver insolvente ou não puder por outro motivo
cumprir a prestação a que está adstrito, é a sua quota-parte repartida
proporcionalmente entre todos os demais, incluindo o credor de regresso
e os devedores que pelo credor hajam sido exonerados da obrigação ou
apenas do vínculo da solidariedade.
Se algum condevedor falecer, os seus herdeiros, enquanto a herança não estiver partilhada,
respondem coletivamente pela totalidade da prestação devida. Depois de feita partilha, cada um
responde apenas pela quota proporcional ao seu quinhão hereditário.
1 – Os condevedores podem opor ao que satisfez o direito do credor a falta de
decurso do prazo que lhes tenha sido concedido para o cumprimento da
obrigação, bem como qualquer outro meio de defesa, quer este seja comum,
quer respeite pessoalmente ao demandado.
Também aos devedores solidários, nas suas relações internas, assistem alguns meios de defesa
que, exercidos, os previnem de realizar a sua parte da prestação para com o devedor que tenha
cumprido perante o credor. Assim, podem os condevedores opor entre si todos os meios pessoais de
defesa e todos os meios de defesa comuns, ainda que o devedor que cumpriu perante o credor os
não tenha invocado (cfr. art.º 525º, nº 1). Excetua-se (cfr. idem, nº 2) o caso da falta de invocação
contra o credor ser imputável ao devedor que, em seguida, pretende opor esse meio de defesa ao seu
condevedor.
/\ \/ /\ \/
Passemos às particularidades da solidariedade ativa e comecemos pelas relações externas.
1 – É permitido ao devedor escolher o credor solidário a quem satisfaça a
prestação, enquanto não tiver sido judicialmente citado para a respetiva
ação por outro credor cujo crédito se ache vencido.
demandante.
Artigo 528.º - Escolha do credor
Qualquer dos credores solidários pode exigir, por si só, toda a prestação devida; e a prestação
efetuada a um deles libera o devedor em face de todos os restantes credores. Determina o art.º 528º,
nº 1 que o devedor tem, quando não judicialmente interpelado, liberdade para escolher
qualquer um dos concredores a quem satisfaça a prestação. Isto significa que se a prestação
tiver sido exigida por concredor extrajudicialmente, o devedor pode livremente optar por efetuá-la
junto de outro credor solidário. Se o concredor escolhido se recusar a receber a prestação incorrerá
em mora do credor. Tendo sido judicialmente citado, o devedor só perante o credor que o tenha
demandado pode cumprir a prestação.
O nº 2 do art.º 528º estabelece, contudo, um critério diferente para aqueles casos em que a
“solidariedade entre os credores tiver sido estabelecida em favor do devedor”. Com esta formulação,
o legislador parece estar a referir-se a situações em que a solidariedade ativa é usada como um
instrumento de diminuição de custos de cumprimento para o devedor (v.g.: credores vivem em zonas
diferentes do País e o devedor, aquando da constituição da obrigação, propôs a solidariedade ativa
com o propósito de evitar deslocações em ordem a cumprir perante cada um dos credores). Assim,
se a solidariedade ativa tiver sido estabelecia em favor do devedor, ele fica apenas impedido de
entregar aos outros credores a sua quota que, nas relações internas, pertence ao demandante; mas
conserva a liberdade de efetuar a parte restante da prestação ao outro ou outros credores, recusando-a
ao credor demandante, mesmo que este haja impedido o cumprimento integral da prestação. Se a
solidariedade ativa não tiver sido estabelecida em favor do devedor, ele terá de efetuar toda a
prestação ao demandante, não se liberando com a prestação que, entretanto, realize a favor de outros.
Também nestes casos, muito embora o credor tenha a faculdade de exigir a prestação integral,
nada impede que, renunciando a esse beneficio, um dos concredores exija apenas a parcela da
prestação que lhe cabe, não se podendo o devedor opor, a não ser que a solidariedade tenha sido
estabelecida também em seu benefício. Caso o devedor, entretanto, se torne insolvente, o risco é dos
demais concredores, e não podem estes vir depois responsabilizar o credor solidário que apenas exigiu
a sua quota, porque ele, apesar de ter o direito de exigir a integralidade da prestação, não tem tal
dever. O cumprimento parcial efetuado pelo devedor a um dos credores aproveita aos outros,
que só poderão exigir dele a parte restante do crédito.
2 – Ao credor solidário são oponíveis igualmente não só os meios de defesa
comum, como os que pessoalmente lhe respeitem.
Artigo 514.º - Meios de defesa
Na solidariedade ativa os meios de defesa funcionam nos mesmos termos que na solidariedade
passiva, podendo os concredores opor ao devedor todos os meios de defesa pessoais e todos os
meios de defesa comuns. Entre os meios de defesa comuns está qualquer forma de extinção do
vínculo obrigacional, eficaz em relação a todos os credores, como sejam as previstas no art.º 532º. A
prescrição, enquanto meio de defesa, vem especialmente prevista no art.º 530º: se a prescrição se
verificar apenas em relação a um concredor, reconhece-se ao devedor a faculdade de opô-la, não só
ao titular do crédito prescrito, mas também aos outros, na medida da quota daquele.
O caso julgado entre um dos credores e o devedor não é oponível aos outros
credores; mas pode ser oposto por estes ao devedor, sem prejuízo das
exceções pessoais que o devedor tenha o direito de invocar em relação a cada
um deles.
Artigo 531.º - Caso julgado
Caso a prestação se torne impossível por motivo imputável ao devedor, os concredores são ao
ainda solidariamente credores da indemnização. Se a prestação se tornar impossível por facto
imputável ao um dos concredores, ele deve indemnizar os outros. Se for mais do que um concredor
o responsável pela impossibilidade da prestação, aplica-se, por analogia, o regime da solidariedade
previsto no 520º.
O credor cujo direito foi satisfeito além da parte que lhe competia na relação
interna entre os credores tem de satisfazer aos outros a parte que lhes cabe
no crédito comum.
Artigo 533.º - Obrigação do credor que foi pago
Passando agora, e muito brevemente, às relações internas na solidariedade ativa, temos que,
por força do art.º 533º, o concredor a quem o devedor comum haja realizado a integralidade da
prestação está obrigado a entregar a cada um dos restantes credores a sua respetiva quota da
prestação total. Assim, cada concredor apenas tem direito por via de regresso à parte que lhe
compete nas relações internas.
/\ \/ /\ \/
Terminando a exposição relativa às obrigações solidárias, que vai já mais longa que o desejado,
tratemos apenas a questão do fundamento do direito de regresso. A doutrina divide-se quanto a
este assunto: há quem encontre tal fundamento na relação de mandato, da gestão de negócios, da
fiança, da relação de sociedade ou do enriquecimento sem causa. Uma das teses mais recorrentes é
aquela que filia a solidariedade convencional na relação de mandato e a solidariedade legal na gestão
de negócios. Parece ser para esta tese que Carneiro da Frada se inclina. Assim, a solidariedade criaria
entre os condevedores/concredores um vínculo de mútua representação: quando um deles
efetua/recebe a prestação integral, fá-lo-ia como representante dos demais na parte que excede a sua
quota e, por isso, pode invocar o direito de regresso. Na solidariedade legal, considerar-se-ia que
devedor/credor atua como gestor de negócios dos outros, podendo em seguida exigir deles a sua
quota. Antunes Varela critica estas soluções, dizendo que a lei se afastou deliberadamente de ambos
os regimes: para ele o direito de regresso é um verdadeiro direito de compensação.
Quanto à natureza jurídica da obrigação solidária tem-se hoje que a obrigação solidária
corresponde a uma pluralidade de obrigações ligadas entre si por um nexo especial.
1 – A solidariedade não impede que os devedores solidários demandem
conjuntamente o credor ou sejam por ele conjuntamente demandados.
A solidariedade, como refere o art.º 517º, não impede que os devedores solidários demandem
conjuntamente o credor, ou que sejam, por ele, conjuntamente demandados. Por exemplo, se a
solidariedade resulta de uma causa ilícita do negócio, todos os credores têm interesse em que o
tribunal declare que o negócio é ilícito. São hipóteses de litisconsórcio voluntário.
77 Por exemplo, a obrigação de entrega de um serviço de louça ou de uma obra em mais de um volume são indivisíveis
porque acarretam um prejuízo no valor. A obrigação de entrega de um automóvel, de um livro ou de uma joia são, também,
indivisíveis por alteração da substância da prestação.
obrigação divisível. As prestações de facto negativo são, geralmente, obrigações indivisíveis porque é
necessária a omissão ou abstenção de todos os devedores para que se satisfaça o interesse do credor.
Quando se trata da celebração de um negócio jurídico, importa averiguar a natureza do direito em
causa no negócio: se esse direito poder ser transmitido por partes ou quotas, a obrigação será divisível
(v.g.: o direito a constituir uma servidão não é divisível, visto que a aquisição de apenas uma parcela
da servidão não satisfaz o interesse do credor).
1 – Se a prestação for indivisível e vários os devedores, só de todos os
obrigados pode o credor exigir o cumprimento da prestação, salvo se tiver
sido estipulada a solidariedade ou esta resultar da lei.
Passando agora ao regime das obrigações indivisíveis, começamos por equacionar a pluralidade
de devedores. Aí impor-se-á o princípio da parciaridade ou da conjunção, e, nos termos do art.º
535º, só de todos os devedores pode o credor exigir o cumprimento da prestação, mesmo que
a prestação tenha por objeto coisa que esteja só no poder de um deles ou facto que só um deles pode
praticar78. Esta regra só se afasta se, legal ou convencionalmente, se aplicar a solidariedade passiva.
Se a obrigação indivisível se extinguir apenas em relação a algum ou
alguns dos devedores, não fica o credor inibido de exigir a prestação dos
restantes obrigados, contanto que lhes entregue o valor da parte que cabia
ao devedor ou devedores exonerados.
Artigo 536.º - Extinção relativamente a um dos devedores
Quando a prestação indivisível se tornar impossível por facto imputável a algum dos devedores,
todos os outros ficam exonerados do seu cumprimento, nos termos do art.º 537º. Assim, só o
responsável pela impossibilidade será responsabilizado pelo valor integral da coisa e pelos danos que
hajam de ser indemnizados (cfr. 801º). Embora o regime da indivisibilidade das obrigações não
preveja se refira quanto à força do caso julgado, parece que as razões justificativas do regime da
solidariedade passiva (art.º 522º) procedem, por analogia, relativamente às obrigações indivisíveis.
1 – Sendo vários os credores da prestação indivisível, qualquer deles tem o
direito de exigi-la por inteiro; mas o devedor, enquanto não for judicialmente
citado, só relativamente a todos, em conjunto, se pode exonerar.
2 – O caso julgado favorável a um dos credores aproveita aos outros, se o
devedor não tiver, contra estes, meios especiais de defesa.
Artigo 538.º - Pluralidade de credores
78 A justificação deste regime prende-se com a injustiça que se colocaria perante a possibilidade de exigir a prestação
de apenas um dos devedores, que contava com a colaboração dos restantes na sua realização. Ainda que a conjunção coloque
dificuldades adicionais no chamamento dos devedores, tal deve ser desconsiderado, visto que o credor tinha ao seu dispor
o regime da solidariedade que melhor o acautelava.
79 Se A, B e C se obrigarem a construir uma casa a D, e a dívida de A se extinguir por prescrição, D continuará a ter
direito a exigir a construção da casa, mas só depois de entregar a B e a C o valor da parte que competia a A. É que não seria
justo para os restantes condevedores sofrerem o prejuízo resultante da exoneração de outros devedores.
80 Esta solução justifica-se, visto que o credor, se fosse obrigado a ir a juízo exigir o cumprimento em coligação com
Nem sempre a mera escolha é suficiente para que haja concentração: por vezes a lei impõe,
como requisito de eficácia, um dever de comunicação. Assim, quando a escolha for realizada pelo
credor ela tem que ser notificado ao devedor; quando a escolha pertencer a terceiro tanto credor
como devedor têm de ter notificados (cfr. art.º 542º). Uma vez feita a escolha ela é irrevogável (idem).
Note-se, ainda, que para que a obrigação se considere concentrada, e se a coisa dever ser
entregue ao credor, à escolha terá de se acrescentar a entrega ou oferta da coisa.
A obrigação também se concentra quando haja extinção parcial do género, i.e., quando o
género se extinguiu sobrando apenas uma das coisas nele compreendias. Exemplo: A vende vinte das
suas cem pipas. Um incêndio destrói oitenta pipas. Como apenas sobram vinte, e já não é possível
escolher outras dentro do género estipulado, a obrigação considera-se concentrada. Como se viu pelo
exemplo é preciso interpretar a letra da lei habilmente: não basta que sobre apenas uma das coisas
compreendidas no género; a concentração dá-se logo que reste uma quantidade igual ou
inferior à que devida. Assim., a concentração opera quando deixe de haver margem para escolha
do objeto da prestação (e não quando haja notificação ao credor, que se impõe, ainda assim, ao abrigo
da boa fé contratual)
No que toca à mora do credor, se o credor se recusar a receber a prestação ou a dar quitação,
a obrigação tem-se por concentrada a partir do momento da oferta da prestação.
Quanto à última causa de concentração, o envio para local diferente do lugar de
cumprimento, a concentração dá-se logo com a entrega ao transportador ou ao expedidor da coisa
ou à pessoa designada para a execução do envio (cfr. art.º 797º), antes, por conseguinte, da chegada
da coisa ao local de destino.
Enquanto a prestação for possível com coisas do género estipulado, não
fica o devedor exonerado pelo facto de perecerem aquelas com que se
dispunha a cumprir.
Artigo 540.º - Não perecimento do género
Enquanto a obrigação não se converter de genérica em específica manda o art.º 540º que o
simples perecimento de certas coisas dentro do género estipulado não permita ao devedor
considerar-se exonerado. Assim, enquanto houver coisas dentro do género fixado, mesmo que
as coisas perecidas fossem aquelas com que o devedor pensava cumprir (v.g.: colocado certas
pipas de vinho de parte), ele continua obrigado a cumprir (tendo de oferecer outras pipas).
Imagine-se, por hipótese, que o devedor deixa de ter suficientes pipas para cumprir: teria de ir ao
mercado procurar pipas do mesmo género. Neste desiderato, tem-se questionado qual é o esforço
exigível ao credor: na Alemanha tem-se entendido que ele está só obrigado a um esforço razoável
(v.g.: o devedor que fica obrigado a entregar dois galgos afegãos, não tem de ir ao Afeganistão, como
é evidente, isto porque o género a que se apela é localizado e não absoluto ou planetário) Só pode o
devedor considerar-se desonerado quando, sem culpa sua, se extinga todo o género estipulado, vide
art.º 790º (v.g.: arderam todas as pipas).
E por conta de quem corre o risco nas obrigações genéricas? Caso a coisa pereça quem arca
com o prejuízo? É que ainda que o devedor se tenha desonerado da obrigação, por extinção total do
género, ele pode ter, ainda assim, de suportar o prejuízo que daí advém (perdendo ou restituindo o
preço que tiver recebido). A regra do art.º 796º dita que o risco corre por conta do proprietário da
coisa. Procede, porém, que, como nós sabemos, nos contratos com eficácia real a transferência da
coisa dá-se por mero efeito do contrato (cfr. art.º 408º, nº 1 em conjugação com o art.º 1317º, al. a),
e tratando-se de obrigações genéricas, no momento da determinação da prestação (cfr. idem, nº 2)
que, como nós já sabemos, ocorre com a concentração da obrigação. Assim, se a coisa perecer
antes da concentração, o prejuízo corre por conta do devedor. Se a coisa perecer após a
concentração, i.e., quando a obrigação genérica se converte em específica, o prejuízo corre por
conta do credor, que não poderá exigir o cumprimento com outra coisa do mesmo género, tendo
de pagá-lo, se ainda o não tiver feito, ou perdendo o direito à sua restituição.
As obrigações alternativas, nos termos do art.º 543º, são aquelas que compreendem duas
ou mais prestações, mas em que o devedor se libera mediante a realização de uma só, aquela
que vier a ser determinada por via de escolha. Exemplo: A vende a B um dos dois automóveis
que possui: o automóvel X ou o automóvel Y. Assim, nas obrigações cumulativas o vinculo abrange
várias prestações, mas o cumprimento fixa-se apenas em relação a uma delas.
Apesar de ambas pressuporem mais do que uma prestação, a distinção das obrigações
alternativas face às obrigações cumulativas parece simples: nas primeiras usa-se uma conjunção
disjuntiva (ou) e nas segundas uma conjunção copulativa (e). Também das obrigações genéricas se
distinguem as obrigações alternativas: na primeira há uma indeterminação do objeto; nas segundas os
objetos das várias prestações estão perfeitamente concretizados (podem existir, contudo, obrigações
genéricas alternativas). A obrigação alternativa também não se confunde com a obrigação
condicional, i.e., aquela obrigação a que foi aposta uma condição: a condição refere-se à eficácia do
negócio, estando o objeto determinado desde logo.
A escolha de entre várias prestações que está na base das obrigações alternativas tanto pode
resultar da lei (cfr., v.g., o art.º 802º, nº 1 e o 1222º) como do acordo das partes. As razões da
alternatividade podem ser várias: pode o credor satisfazer o seu interesse com qualquer uma das
prestações, mas querer precaver-se contra o risco de uma delas se tornar impossível; pode o devedor
saber que não poderá ou não lhe será conveniente realizar uma das prestações, embora desconheça
qual; pode o credor ou o devedor não se considerarem habilitados a escolher entre duas prestações,
embora lhes interesse fechar logo de imediato o negócio. Diz-se, de um modo genérico, que as
obrigações alternativas visam compor interesses futuros, de algum modo incertos no momento em
que a obrigação se constitui.
A escolha consiste no ato de opção ou seleção, por meio do qual se opera, geralmente, a
concentração da obrigação numa das prestações alternativas a que o devedor se encontra
adstrito. A partir do momento em que a escolha é feita passamos a ter uma obrigação simples. O
poder de escolha entre as várias obrigações alternativas compete, supletivamente, e nos termos do
art.º 543º, nº 1, ao devedor. Pode, contudo, tanto pertencer ao credor como a terceiro (cfr. art.º 400º,
nº 1), dependendo aí de estipulação das partes.
O credor, na execução, pode exigir que o devedor, dentro do prazo estipulado
ou do estabelecido na lei de processo, declare por qual das prestações quer
optar, sob pena de se devolver ao credor o direito de escolha.
Artigo 548.º - Falta de escolha pelo devedor
Tratando-se a escolha de um poder, ela é também um dever. Daí que quando ela caiba ao credor
ou a terceiro deva ser notificada sob pena de ineficácia e, bem assim, se o credor não efetuar a escolha
dentro do prazo fixado será o devedor a escolher (cfr. art.º 549º que remete para o art.º 542º). Quando
seja o terceiro que não escolha dentro do prazo estipulado ou fixado, caberá essa tarefa ao tribunal
(cfr. art.º 400º, nº 2). Tratando de falta de escolha do devedor, regula o art.º 548º que o credor possa
em ação executiva exigir que o devedor escolha dentro de prazo fixado ou estipulado, sob pena de
ser o próprio credor a fazê-lo.
A escolha do devedor pode ser feita de forma tácita ou expressa. O mais das vezes ela será
tácita84, com a oferta ou entrega da prestação, a remessa por correio, ou outro meio de expedição.
Mas pode, também, o devedor, anteriormente à oferta, entrega ou remessa da prestação, através de
declaração expressa, escolher a prestação, deixando o risco de correr a seu cargo.
O devedor não pode escolher parte de uma prestação e parte de outra ou
outras, nem ao credor ou a terceiro é lícito fazê-lo quando a escolha lhes
pertencer.
Artigo 544.º - Indivisibilidade das prestações
Por outro lado, a escolha de entre as várias prestações é livre e reporta-se à totalidade de cada
uma das prestações e não a prestações fracionadas. Se forem vários os credores ou os devedores com
direito de escolha, todos terão de escolher a mesma prestação. Uma vez feita, a escolha é irrevogável.
Se uma ou algumas das prestações se tornarem impossíveis por causa não
imputável às partes, a obrigação considera-se limitada às prestações que
84 Mas note-se que não é pelo facto de declaração de escolha ser cronologicamente simultânea ao cumprimento que
estes dois factos se confundem. Se o devedor realizar a prestação por supor erroneamente que a obrigação não era
alternativa, entende a doutrina que a prestação deve ser restituída para que o devedor faça a escolha a que tem direito.
forem possíveis.
Artigo 545.º - Impossibilidade não imputável às partes
Vejamos agora os casos em que uma ou alguma das prestações alternativas se torna impossível.
A impossibilidade pode ser originária ou superveniente. Quando se trate de uma impossibilidade
originária de alguma das prestações alternativas, devido à falta de requisitos do objeto negocial
(impossibilidade física ou jurídica, contrariedade à lei, bons costumes ou ordem pública), estamos
perante um caso de nulidade parcial, que leva à redução da obrigação, nos termos do art.º 292º85.
Quando a impossibilidade originária abranger apenas parte de uma ou algumas prestações há ainda
que observar as regras do art.º 793º, nº 1 e 2.
Partindo para a análise dos casos de impossibilidade superveniente, quatro hipóteses hão que
distinguir:
85 A promete vender a B uma esmeralda ou uma estrela. O negócio será reduzido à única possibilidade restante,
regime geral da impossibilidade por causa não imputável às partes, isto para que o caso de ter sido a prestação escolhida a
tornar-se impossível.
87 Isto equivale, na prática, a manter o poder de escolha do credor quanto à prestação impossível, substituindo-se a
sua realização in natura pela indemnização pecuniária correspondente.
Não há lugar a nenhuma escolha: o credor só tem direito a exigir uma prestação, mas o
devedor pode entender substitui-la por outra;
Se a prestação for originariamente impossível ou ilícita todo o negócio será nulo;
Se a segunda prestação (a prestação facultativa) for impossível ou ilícita caduca a
possibilidade de substituição;
Se a impossibilidade for superveniente e afetar a prestação exigível a obrigação extinguir-
se-á;
Se a impossibilidade for superveniente e afetar a prestação facultativa a obrigação
mantem-se;
No que respeita às obrigações de quantidade uma importante questão se coloca: como bem se
sabe, a moeda apresenta flutuações de valor, podendo, por exemplo, sofrer desvalorizações. Perante
estes casos, e tendo em conta que o ciclo de vida da obrigação pode ser longo, como é que se deverá
resolver aquelas situações em que o valor da moeda à altura da constituição do vinculo era um e no
momento do cumprimento outro? Há duas hipóteses: ou se considera que a obrigação pecuniária
corresponde a um crédito de pura expressão monetária nominal (e o devedor está obrigado à
mesma prestação nominal desde o momento da constituição da obrigação até ao seu cumprimento)
ou se entende que esta corresponde ao crédito a um poder aquisitivo real (e o valor da prestação
monetária no momento do cumprimento deve ser atualizada face às flutuações cambiais, de forma a
dar ao credor um poder real de adquirir mercadorias e produtos).
A lei, no art.º 550º, resolveu esta questão, dando cobertura à primeira orientação, através de duas
proposições: [i.] o cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda com curso legal no
país à data do cumprimento e [ii.] pelo valor nominal que a moeda tiver também no momento
do cumprimento. Estabelece a lei, por conseguinte, o principio nominalista ou nominal, nos
termos do qual se atende apenas ao valor facial da moeda (um euro é um euro), independentemente
das flutuações que alteram o seu valor aquisitivo (aquilo que a moeda vale em termos dos consumos
que permite fazer). Assim, se se determinada obrigação no valor de 100 000 € foi constituída em 2000
e o cumprimento se faz em 2017, o devedor terá de entregar 100 000 €).
Note-se que o princípio nominalista é a regra, mas ele admite «estipulação em contrário». Podem
as partes, pois, estabelecer cláusulas de indexação ou atualização da prestação. Noutros casos, é
a própria lei que permite a atualização de uma prestação pecuniária, adaptando-a à oscilação da moeda
(são exemplos o arrendamento; a prestação de alimentos – art.º 2012º; os danos ilícitos com caráter
continuado que sejam indemnizados sob a forma de renda vitalícia ou temporária – art.º 567º, nº 2).
Quando a lei permitir a atualização das prestações pecuniárias, por virtude das
flutuações do valor da moeda, atender-se-á, na falta de outro critério legal, aos
índices dos preços, de modo a restabelecer, entre a prestação e a quantidade
de mercadorias a que ela equivale, a relação existente na data em que a
obrigação se constituiu.
Artigo 551.º - Atualização das obrigações pecuniárias
O critério supletivo de atualização das prestações pecuniárias vem previsto no art.º 551º
e manda atender ao índice de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional de
Estatística.
Questiona-se muitas vezes na doutrina se só no caso da previsão convencional ou legal é possível
proceder à atualização das obrigações pecuniárias. A resposta maioritária vai em sentido positivo,
atendendo a um caso histórico: durante a Grande Depressão de 1929 o marco alemão atingiu um
milésimo do seu valor por ordem do governo, devido à galopante inflação. Abre-se, então, uma
querela jurisdicional: os tribunais pronunciam-se dizendo que seria contrário à boa fé que o devedor
se aproveitasse da desvalorização monetária para se liberar junto do credor através do pagamento de
uma quantia, ainda que nominal, irrisória. Este conjunto de decisões ficou conhecido como a
jurisprudência da revalorização, e estabeleceu a atualização da prestação pecuniária recorrendo ao
mecanismo da alteração superveniente das circunstâncias (art.º 437º e ss.).
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A doutrina diverge quanto à existência das chamadas dívidas de valor. Estas dívidas não têm
por objeto direto o dinheiro, mas o valor de certa coisa ou o custo real e mutável de um objeto.
Nestes casos, o dinheiro é meramente expressão da medida do valor das coisas, servindo como ponto
de referência da liquidação da prestação. Será o caso da indemnização em dinheiro quando a
reconstituição natural não é possível.
Nestes casos, parece, também, abrir-se uma exceção ao princípio nominalista, permitindo-se a
fixação do montante da prestação em momento posterior à constituição da obrigação. A partir do
momento em que a obrigação é fixada, por acordo das partes ou decisão judicial, o risco de
desvalorização corre por conta do credor.
O art.º 552º estabelece como regra a validade do pagamento em moeda específica apesar de
haver uma moeda com curso legal. Ademais, prevê o artigo duas variantes das obrigações em moeda
específica:
Os artigos 553º e ss. estabelecem uma série de especialidades de regime para as várias hipóteses
de obrigações de moeda específica. No primeiro artigo, faz-se referência àquelas obrigações expressas
em certa espécie monetária (v.g.: cem moedas em ouro, dez libras esterlinas). Nestes casos, deve
efetuar-se o cumprimento da obrigação na espécie estipulada, desde que ela mantenha a sua existência
legal.
Quando o quantitativo da obrigação é expresso em dinheiro corrente, mas se
estipula que o cumprimento será efetuado em certa espécie monetária ou em
moedas de certo metal, presume-se que as partes querem vincular-se ao valor
corrente que a moeda ou as moedas do metal escolhido tinham à data da
estipulação.
Artigo 554.º - Obrigações de moeda específica ou de certo metal com
quantitativo expresso em moeda corrente
Nos três artigos seguintes – art.º 555º, 556º e 557º - preveem-se, respetivamente a solução a dar
a três hipóteses: falta da moeda estipulada ao tempo do cumprimento; espécie monetária estipulada
deixar de ter curso legal e a convenção e cumprimento em moedas de dois ou mais metais ou de um
entre vários metais.
Quando estejamos perante um juro legal (v.g.: art.º 465º, al. c); 468º; 480º; 806º; 1145º; 1446º;
1164º; 1167º, al. c); 1199º) é necessário determinar o quantitativo desse juro, questão que o art.º
559º resolve, remetendo para portaria dos membros do governo responsáveis pela área 88 . Esta
limitação legal decorre de razões de moralidade pública, e aplica-se supletivamente aos juros
convencionais, exceto se cláusula expressa no negócio estabelecer taxa de juro superior.
É aplicável o disposto no artigo 1146º a toda a estipulação de juros ou
quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga,
renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e
em outros análogos.
Artigo 559º-A Juros usurários
Já se sabe que a usura corresponde ao vício em que ocorre uma desigualdade excessiva de
posições entre as partes, ficando uma delas numa desvantagem desproporcionada face à outra.
Contado com tal, o art.º 559º-A impõe um limite máximo 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia
real, por remissão para o art.º 1146º, para “juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos
de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e
em outros análogos”. A estipulação usurária implica a nulidade da parte que exceder os limites
máximos previstos pelo art.º 1146º.
1 – Para que os juros vencidos produzam juros é necessária convenção
posterior ao vencimento; pode haver também juros de juros, a partir da
notificação judicial feita ao devedor para capitalizar os juros vencidos ou
proceder ao seu pagamento sob pena de capitalização.
O anatocismo é juro cobrado sobre os juros, i.e., a capitalização de juros. Imagine-se o caso
que uma obrigação de juros não é cumprida oportunamente, incorrendo o devedor em mora: haverá
aí lugar ao vencimento de juros de mora? A lei oferece resposta negativa no art.º 814º, nº 2, em
coerência com o art.º 561º, nº 1 que estabelece uma proibição geral do anatocismo.
Nos termos da lei, o anatocismo só é admitido em situações restritas. É necessário um acordo
posterior ao vencimento da primeira obrigação de juros ou é preciso uma decisão judicial nesse
sentido. O nº 2 do art.º 561º estabelece o limite temporal mínimo de um ano para o vencimento de
juros sobre juros e o nº 3 estabelece que este regime pode ser afastado quando assim determinem as
regras ou usos particulares do comércio.
Desde que se constitui, o crédito de juros não fica necessariamente
dependente do crédito principal, podendo qualquer deles ser cedido ou
extinguir-se sem o outro.
Artigo 561.º - Autonomia do crédito de juros
Uma vez constituído, o juro pode ter vida autónoma. Isso implica que o credor possa ceder o
crédito de juros, mantendo o crédito de capital, ou vice-versa. Pode qualquer um dos créditos
extinguir-se sem que o outro se extinga também. Por outro lado, relativamente à prescrição, nos
termos do art.º 310º, al. d) e e) e do art.º 307º, os créditos periódicos de juros podem prescrever
independentemente da extinção da dívida principal.
88 Atualmente, nos termos da Portaria n.º 291/2003, os juros legais são de 4% ao ano.
89 Artigos 1233º, nº 1; 1347º, nº 3; 1348º, nº 2; 1349º, nº 3; 155º; 1554º; 1559º; 1560º, nº 3; 1561º, nº 1
90 Impossibilidade: morte do lesado; consumo, destruição ou perecimento da coisa;
91 A reconstituição natural não cobre todos os danos (v.g.: acidente de viação: paga-se o conserto do carro, mas não
o prejuízo da sua privação) ou não abrange todos os aspetos em que o dano se desdobra ou o dano não é indemnizável,
mas compensável.
92 Há uma manifesta desproporcionalidade entre o interesse do lesado e o custo que a reparação natural envolve para
o lesante.
93 Colocam-se algumas dúvidas de ordem prática quando o dano se traduz na destruição de coisas usadas: aí parece
ser de defender que o lesante adquira uma coisa da mesma qualidade da inutilizada, mas que se deduza do preço da nova
coisa o valor da anterior visto que, a contrario, ocorreria uma situação de enriquecimento sem causa.
94 A, atropelado, é internado num hospital para um período previsível de recuperação de cinco dias. Porém, por
incúria sua no tratamento, é obrigado a ficar mais dez dias; B aceita boleia de D, visivelmente embriagado, sofrendo
posteriormente um acidente.
é necessário um nexo de causalidade entre a vantagem obtida pelo lesado e o facto danoso e não uma
mera coincidência95.
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O último ponto que abordaremos relativamente à obrigação de indemnizar é o que trata das
formas especiais de causalidade ou da concorrência de causas para a verificação do mesmo dano.
Quando se trate de uma concorrência de pessoas em relação à mesma causa (rectius, comparticipação
– através de instigação, coautoria, cumplicidade) regula genericamente o art.º 490º que consagra o
princípio da responsabilidade solidária.
Mas pode também ocorrer concorrência ou concurso de causas para a verificação do mesmo
dano (contribuem para a verificação do dano duas ou mais causas). Aqui é preciso distinguir
concurso real de concurso virtual ou hipotético. O concurso real pode revestir várias formas:
95 Por exemplo, o passageiro que é injustificadamente abandonado pelo táxi e encontra no local do abandono um
anel de diamantes.
96 A destrói uma cultura do campo do seu vizinho. Porém, no dia seguinte, uma tempestade violentíssima arrasa todas
as culturas da região. A alega que ainda que não tivesse praticado o facto o dano sempre se produziria.
97 C e D colocam o veneno em dois copos distintos, sendo que a patroa só irá beber um deles. Só a empregada
responsável pelo copo que a patroa ingeriu deve ser responsabilizada civilmente ou, pelo contrário, devem ambas sê-lo?
A obrigação de apresentação de coisa é essencial para o sujeito que queira provar uma
determinada alegação sua. Assim, é possível exigir a quem detenha certa coisa a sua apresentação para
exame, desde que ele seja necessário para apurara a existência ou o conteúdo do direito que é
invocado. Idem para a apresentação de documentos.
Algumas notas introdutórias importam, ainda, deixar: a primeira é que só as obrigações “vivas”
(ou seja, não extintas, por exemplo, pelo cumprimento) é que podem ser transmitidas. Depois, é
importante distinguir a fonte da transmissão da forma da transmissão. A fonte da transmissão é o
facto jurídico do qual resulta a transmissão (v.g.: venda, doação, etc.). A forma da transmissão
é a modalidade escolhida para a sua concretização (v.g.: cessão, sub-rogação, etc.) A forma precisa
sempre de um facto jurídico que a preceda, visto que é daí que brota a transmissão.
Analisemos cada uma das modalidades de transmissão de obrigações previstas no Código Civil.
2. Transmissão de créditos.
2.1. Cessão de créditos.
1 – O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito,
independentemente do consentimento do devedor, […].
Artigo 577.º - Admissibilidade da cessão
A cessão de créditos pode ser definida como o contrato pelo qual o credor transmite a
terceiro, por acordo, e independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou
uma parte do seu crédito (cfr. art.º 577º, nº 1). O credor inicial, que transmite o crédito a terceiro,
chama-se cedente. O credor que adquire a titularidade do direito do credito designa-se por
cessionário. Ao devedor do crédito cedido chama-se devedor cedido (debitur cessus). Exemplos de
cessão99:
A emprestou 5000 € a B, pelo prazo de três anos, tendo a dívida sido afiançada por C.
Passado um ano, A tem uma súbita necessidade de dinheiro. Como não pode ainda exigir
a restituição da quantia mutuada, vende o crédito que tem em relação a B por 4200 € a
D;
E vende uma quinta a F por 100 000 € (Negócio1). Como vendeu em muito boas
condições, graças ao intermediário G, resolveu doar-lhe 5000 € (Negócio2) do seu
crédito sobre F;
H deve 5000 € a I e decide com o seu assentimento transmitir-lhe um crédito de 5000 €
que tem sobre J para que I se considere pago;
L, produtor de cinema, com necessidade de financiamento para realizar o filme, transfere
para a entidade que o financia, como garantia da divida que contraiu, todas as receitas
que a exibição do filme venha a proporcionar, até ao montante do empréstimo e juros.
O termo cessão designa, simultaneamente, o ato realizado entre o cedente e o cessionário e o
efeito fundamental essa operação (= transmissão da titularidade do crédito). O art.º 577º, nº 1 salienta
que a cessão de créditos, enquanto negócio entre cedente e cessionário, não necessita do
consentimento do devedor 100 , sacrificando-o deliberadamente, dando prevalência ao poder de
disposição do crédito pelo credor.
Vejamos, agora, os requisitos comuns de admissibilidade e validade da cessão de
créditos. Carneiro da Frada divide-os entre requisitos positivos e requisitos negativos. Os primeiros,
de verificação obrigatória, são:
Acordo (rectius, contrato) mediante o qual o credor cede o crédito a terceiro, sem
consentimento do devedor;
Cedibilidade ou transmissibilidade do direito de crédito;
Notificação ou aceitação da cessão, ou conhecimento dela pelo devedor cedido.
99 Retirados de Antunes Varela, J. (1997). Das Obrigações em Geral (7ª ed., Vol. II). Almedina. Pp. 294 e ss.
100 É que, na maioria das situações, a alteração da pessoa do credor não prejudica o devedor, que continua adstrito
ao cumprimento da prestação. Nem sempre, contudo, assim sucede. Por exemplo, quando se trate de cessão parcial do
crédito, pode não ser indiferente para o devedor realizar um ou vários atos de cumprimento, possivelmente, até, em lugares
diferentes.
Do ponto de vista negativo, os requisitos cuja verificação impedem a cedência do crédito são as
interdições de cessibilidade e os direitos litigiosos.
Começando pelo acordo entre cedente e cessionário, este decorre da noção da cessão dada pelo
art.º 577º, nº 1. O facto de existir um acordo é muito relevante, pois permite estabelecer que a cessão
não é um negócio abstrato 101 mas um negócio causal. Uma transmissão de créditos integra-se
sempre numa compra e venda, numa doação, numa dação em cumprimento, numa constituição de
garantia em beneficio de outro crédito que o credor pretenda efetuar, etc. Assim, a cessão tem a sua
causa (: a sua fonte), variável de caso para caso. O art.º 577º omite deliberadamente as causas da
cessão, dando apenas as suas notas genéricas. O art.º 578º, ao estabelecer o princípio da
consensualidade, reforça a ideia de que cessão pode ter como fonte diversas causas. É por isso que
Antunes Varela designa a cessão como um contrato “policausal ou polivalente”.
1 – […] contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou
convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da
prestação, ligado à pessoa do credor.
Quanto à cedibilidade do direito de crédito é preciso dizer que nem todos os créditos são
transmissíveis. Embora a regra seja a da transmissibilidade dos créditos, a lei admite, no art.º 577º
nº 1 três grupos de exceções à regra da livre cedibilidade dos créditos: [i.] direitos cuja cessão tenha
sido interditada por lei (v.g.: art.º 420º, 995º e 2008º), [ii.] ou por acordo entre as partes (: pactum
de non cedendo) 102 e [iii.] quando a própria natureza da prestação, porque ela se encontra
incindivelmente ligada à pessoa do credor, impede a cessão, visto que seria desrazoável impor
que o devedor estivesse vinculado perante outra pessoa, bem como se poria em risco a satisfação do
interesse do credor. É o que acontece, geralmente, com as prestações infungíveis.
Noutros casos, e ainda que os créditos sejam suscetíveis de ser transmissíveis em abstrato, a lei
impede que tal aconteça quando eles estejam a ser contestados em tribunal (: créditos litigiosos
ou contenciosos). Fá-lo como garantia de imparcialidade dos envolvidos no processo, de modo a
impedir a especulação na aquisição de créditos litigiosos 103 . Assim, certas entidades e pessoas,
mencionadas no art.º 579º, nº 1, não podem adquirir créditos litigiosos por via de cessão, salvo
quando se verificarem as exceções previstas no art.º 581º. Se esta limitação à regra geral da
cedibilidade dos créditos foi violada gera, nos termos do art.º 580º, uma nulidade do negócio, mas
uma nulidade mista, visto que ela não pode ser invocada pelo cessionário104 e não dispensa este da
obrigação de reparar os danos que tenha causado.
1 – A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja
notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.
101 Negócios abstratos são todos aqueles que produzam efeitos independentemente da existência de uma causa válida.
Um bom exemplo de negócios abstratos são os negócios cambiários, como o saque de um cheque ou o aceite de uma letra.
102 Atente-se, no caso de pacto de não cessão, ao que dispõe o art.º 577º, nº 2: se o cessionário não conhecer a
preciso que pareça séria”. Imagine-se o caso do juiz que compra um crédito contencioso por baixo preço e, no julgamento
da causa, age parcialmente obtendo grande vantagem.
104 Considerou-se que não seria justo conceder ao adquirente do crédito, depois de ter violado a proibição estabelecida
contra ela, a faculdade de destruir o negócio, quando verificasse que a operação, contra a sua expetativa, não tinha resultado
no que pretendia.
devedor, da contraparte da relação obrigacional105. Assim, é fundamental que o devedor saiba quem
é o seu credor, de modo a que se possa exonerar da dívida à pessoa correta. Nestes termos, o art.º
583º nº 1 impõe, em nome da boa fé, que o devedor seja notificado, pelo cedente ou cessionário, da
transmissão do crédito ou a aceite106. Ora, enquanto o devedor não for notificado, tiver aceite ou
conhecer a transmissão de créditos pode cumprir - e cumprirá certamente - perante o cedente. E
esse cumprimento é, apesar de ser realizado perante um credor aparente, exoneratório, não ficando
o devedor obrigado a cumprir perante o cessionário. Só quando o cessionário consiga provar que o
devedor cedido conhecia a cessão e ainda cumpriu perante o cedente é que esse cumprimento não
pode ser oponível ao cessionário, ficando o devedor obrigado a cumprir perante este (cfr. art.º 583º,
nº 2). Nas restantes situações, caso o devedor cumpra perante o credor aparente poderá o cessionário
reaver a prestação através do instituto do enriquecimento sem causa. Tratando-se de negócio de
disposição do crédito o cedente responderá pelos danos causar ao cessionário, nos termos da
responsabilidade por factos ilícitos e culposos.
Se o mesmo crédito for cedido a várias pessoas, prevalece a cessão que
primeiro for notificada ao devedor ou que por este tiver sido aceita.
Artigo 584.º - Cessão a várias pessoas
Ainda na mesma senda, o art.º 584º trata aquele caso em que o credor primitivo cede o crédito
a mais do que uma pessoa. Nestas situações, manda a lei que prevaleça a cessão que seja notificada
em primeiro lugar ao devedor ou a que ele tiver aceite. Note-se que aqui já não há uma equiparação
do mero conhecimento à notificação ou aceitação.
1 – Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em
função do tipo de negócio que lhe serve de base.
105 Muito discutido na doutrina tem sida a questão de saber se a notificação é requisito de perfeição da cessão, i.e.,
saber se o contrato de cessão só adquire eficácia feita a notificação. Antunes Varela não segue tal caminho, considerando
que o contrato de cessão produz os seus efeitos no momento em que se completa o acordo entre as partes.
106 A aceitação pode ser expressa ou tácita, através, v.g., do pagamento parcial, do oferecimento de nova garantia para
a mesma dívida, do pedido de moratória, etc.
/\ \/ /\ \/
Partindo para a análise dos efeitos da cessão de créditos, temos que o principal efeito da
cessão é a transferência do cedente para o cessionário do direito à prestação debitória. É por
mero efeito do contrato que o cessionário adquire o poder de exigir a prestação em seu nome e no
seu próprio interesse.
1 – Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a
transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do
direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.
O crédito transmite-se para a esfera do cessionário tal como se encontrava na esfera do cedente,
o que significa que o acompanham as garantias e outros acessórios do crédito. Isto porque, como
já se disse, não se pretende criar um direito ex novo, mas tão-só transferir para o cessionário um direito
de conteúdo igual ao anterior. Daí que o art.º 582º estabeleça a regra supletiva da imodificabilidade
do crédito na cessão, quanto às suas garantias e acessórios, com duas exceções: [i.] se as partes, ao
abrigo da autonomia privada, outra coisa não acordarem [ii.] e se as garantias ou acessórios forem
inseparáveis da pessoa do cedente. São exemplos de garantias que acompanham o crédito cedido a
hipoteca, o penhor (com norma especifica: art.º 582º, nº 2), os privilégios creditórios, o direito de
retenção (vide o art.º 760º: se o credor se limitar a ceder o seu crédito, sem nada dizer acerca do direito
de retenção, este não deve considerar-se transmitido, em virtude da sua íntima ligação com a pessoa
do credor primitivo). Entre os acessórios que acompanham o crédito estão a estipulação de juros, a
cláusula penal, o compromisso arbitral, etc.
O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, todos os
meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva
dos que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão.
Artigo 585.º - Meios de defesa oponíveis pelo devedor
À cessão de outros direitos (que não de crédito) não excetuados por lei (não abrange os
direitos reais nem os direitos familiares, mas os direitos de autor e conexos e os direitos
potestativos);
Às transferências legais de créditos (art.º 119º, nº 1; 120º; nº 2; 2076º, nº2; 2077º; 794º;
803º, nº 1; 1181, nº 2; 1057º, etc.);
Às transferências de créditos decretadas pelo tribunal.
2.2. Sub-rogação.
A sub-rogação é uma forma de transmissão de dívidas que pressupõe um ato de
cumprimento: há um terceiro que realiza a prestação debitória que não lhe pertence, ficando
investido (i.e., ingressando) na posição do credor. Exemplos107:
Sub-rogação voluntária;
◊ Por vontade de credor (art.º 589º);
◊ Por vontade do devedor (art.º 590º-591º).
Sub-rogação legal (art.º 592º).
O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus
direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento
da obrigação.
Artigo 589.º - Sub-rogação pelo credor
A sub-rogação voluntária pode, ainda, decorrer da vontade do devedor, nos termos do art.º
590º. Assim, sem que o credor tenha que consentir, pode o devedor indicar a terceiro que realiza
a prestação debitória que ele ingressa na posição de credor a partir desse momento. Também aqui se
colocam exigências de forma108 (declaração expressa. Cfr. artº 590º, nº 2). Saltou-se sobre o obstáculo
teórico da faculdade atribuída ao devedor de dispor sobre um direito de que não é titular, para se
atender a uma justa composição dos interesses baseada em considerações práticas.
1 – O devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa
fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do
credor.
Ainda dentro da sub-rogação voluntária por vontade do devedor, temos aqueles casos
abrangidos pelo art.º 591º em que é ainda o devedor a realizar a prestação debitória mas
indiretamente, através de meios de terceiro, ou seja, ele é assistido por um terceiro, que lhe fornece
os meios (dinheiro ou outra coisa fungível) necessários ao cumprimento. Nestas situações, a lei
autoriza que o devedor sub-rogue o terceiro na posição do credor, sem o seu consentimento. Para
que esta sub-rogação seja válida tem de ser declarada expressa no documento do empréstimo que
aqueles bens estão afetos ao pagamento da dívida e é vontade das partes que o mutuante fique
sub-rogado na posição do credor. Isto significa que, em regra, se um terceiro auxiliar financeiramente
um devedor para o assistir no pagamento de uma dívida não fica sub-rogado nos direitos do credor,
salvo se outra for a vontade expressa das partes.
1 – Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da
lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do
credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa,
estiver diretamente interessado na satisfação do crédito.
108 A declaração expressa exigida funda-se, sobretudo, em razões de segurança jurídica e facilidade de prova. Se nada
se disser ocorrerá apenas a extinção da obrigação pelo cumprimento.
com a sub-rogação.
Art.º 592.º - Sub-rogação legal
Sobre os efeitos da sub-rogação, dispõe o art.º 593º, nº 1 que o principal efeito da sub-rogação
é a transmissão do crédito que pertencia ao credor, agora satisfeito, para o terceiro sub-rogado.
Note-se que os direitos e poderes do sub-rogado se medem sempre em função do ato de
cumprimento. Se o terceiro sub-rogado pagar 500 € ele será credor de 500 €, só lhe sendo lícito
exigir do devedor prestação igual ou equivalente àquela com que tiver sido satisfeito o interesse do
credor.
Como a lei evidencia, a sub-rogação pode ser total ou parcial (cfr. art.º 593º, nº 2 e 3). A
sub-rogação parcial pode decorrer do facto do terceiro não realizar a totalidade da prestação ou de
serem vários os terceiros a satisfazer o crédito. No primeiro caso, determina o art.º 593º, nº 2 que o
credor primitivo (e seu cessionário) tenham preferência no pagamento do resto da dívida em relação
ao sub-rogado. O mesmo já não sucede no caso de serem vários os sub-rogados, não se estabelecendo
nenhuma preferência entre eles para o cumprimento (cfr. nº 3 idem).
É aplicável à sub-rogação, com as necessárias adaptações, o disposto nos
artigos 582º a 584º.
Artigo 594.º - Disposições aplicáveis
Por remissão do art.º 594º, aplicam-se à sub-rogação as regras relativas à transmissão de garantias
e outros acessórios do crédito com a cessão (vide supra). O mesmo artigo faz aplicar as regras do art.º
583º e 584º, relativas aos efeitos da cessão em relação ao devedor e à cessão a várias pessoas. Tanto
no caso da sub-rogação levada a cabo pelo credor, como na sub-rogação legal, é possível que o
terceiro cumpra a obrigação e seja sub-rogado nos direitos do credor, sem que o devedor tenha de
tal conhecimento. Por isso, deve o sub-rogado e o primitivo credor notificar o devedor da
sub-rogação (para evitar que ele cumpra perante o antigo credor), de modo a que a transmissão seja
plenamente eficaz, produzindo todos os seus efeitos em relação a todos os interessados. Se a
notificação não se fizer, e se o devedor ignorar a sub-rogação, caso pague ao antigo credor ou efetue
qualquer negócio relativo ao crédito esses factos são oponíveis ao sub-rogado, estando o devedor
liberado da obrigação. Da mesma sorte, se o credor sub-rogar duas ou mais pessoas, sucessivamente,
no mesmo crédito, a sub-rogação que prevalece é a que primeiro tiver sido notificada ao devedor.
No que toca aos meios de defesa do devedor em relação ao sub-rogado a remissão do art.º
594º parece ter omitido inintencionalmente o art.º 585º que deverá, em todo o caso, aplicar-se quanto
à sub-rogação voluntária feito pelo credor e em certas situações de sub-rogação legal, não se aplicando
à sub-rogação voluntária feita pelo devedor.
3. Transmissão de dívidas.
3.1. Assunção de dívidas.
A assunção de dívidas é a forma de transmissão da relação jurídica obrigacional pelo lado
passivo que o Código Civil contempla. Do ponto de vista histórico, tanto a doutrina como a
jurisprudência resistiram durante muito tempo à introdução da transmissão singular de dívidas fora
dos casos de sucessão hereditária e outros análogos. A ideia então aceite era a de que a modificação
subjetiva do devedor implicava sempre uma novação, i.e., a constituição de uma nova obrigação de
conteúdo e identidade diferente da anterior. Foram, mais uma vez, as necessidades práticas que
pesaram no reconhecimento da assunção de dívidas.
O regime de assunção de dívidas hoje expresso no Código Civil é diferente daquele que o
Anteprojeto de Vaz Serra adotava. Aí, seguindo os ensinamentos do congénere italiano, operava-se
a distinção entre três figuras:
Delegação: convenção pela qual uma pessoa (delegante) incumbe uma outra (delegado)
de realizar certa prestação a terceiro (delegatário). No fundo, o devedor indica ao credor
a pessoa que vai cumprir perante ele109;
Expromissão: convenção pela qual um terceiro (expromitente), sem delegação do
devedor, assume perante o credor a obrigação de efetuar a prestação devida por
outrem110.
Acollo: convenção celebrada diretamente entre o antigo devedor e um terceiro (novo
devedor) que é ratificada pelo credor.
O nosso Código Civil reduziu estas três a uma só categoria - a assunção de dívidas - mas, ainda
assim, deixou expressa as diversas vias da transmissão de dívidas, que correspondem,
tendencialmente, às agora referidas. Ora vejamos o que diz o art.º 595º:
1 – A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:
Na economia do art.º 595º há lugar a duas formas de assunção de dívida: na alínea a) faz-se
referência ao acollo (= assunção interna); na alínea b) vem descrita a expromissão (= assunção
externa). A delegação, ainda que omissa no texto da lei, não se pode dizer que não seja meio válido
de assunção de dívida: é que, diz Antunes Varela, ela será sempre admissível por duas ordens de
razão: por força do princípio da liberdade contratual (art.º 405º) e porque se a lei admite a transmissão
109 V.g.: depositante que manda o banco entregar determinada quantia da sua conta a um terceiro, a quem o
depositante pretende fazer um empréstimo.
110 V.g.: A, sabendo que o vizinho ausente tem uma divida por pagar e que o credor se propunha a executá-lo,
obriga-se a pagar a dívida.
de dívida através de contrato entre antigo e novo devedor, ratificado pelo credor, por maioria de
razão aceitará um contrato trilaretal em que, com o mesmo fim, o credor participe enquanto
contraente.
Há algo comum a todas estas formas de assunção dívida, que é aquilo que define o instituto: o
facto de um terceiro (assuntor) se obrigar perante o credor a efetuar a prestação devida por
outrem. A assunção de dívidas opera uma mudança na pessoa do devedor sem que haja uma alteração
no conteúdo ou identidade da obrigação.
2 – Em qualquer dos casos a transmissão só exonera o antigo devedor
havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo devedor
responde solidariamente com o novo obrigado.
Artigo 595.º - Assunção de dívida
O nº 2 do art.º 595º dá ainda destaque a uma outra classificação da assunção de dívida, desta vez
não tão atenta à formam, mas à intenção do assuntor: ou ele quer exonerar o primitivo devedor a
partir do momento da assunção, e estaremos perante aquilo que a doutrina designa por assunção
liberatória da dívida; ou o terceiro faz sua a divida do primitivo devedor, mas sem o exonerar, i.e.,
o antigo devedor continua vinculado à dívida e o credor tem direito o obter a prestação de qualquer
um dos dois vínculos em regime de solidariedade. Esta modalidade designação por assunção
cumulativa da dívida.
A transmissão de dívida é, também, à semelhança da cessão de créditos, um negócio causal. A
assunção por terceiro de dívida alheia pode resultar de uma liberalidade que o novo devedor faz ao
anterior, de um contrato oneroso de venda de uma dívida, de uma dação em cumprimento, etc.
Antunes Varela dedica algumas páginas às figuras semelhantes à da assunção de dívida.
Destacamos duas:
111 Questiona-se a razão de ser da necessidade de consentimento no caso da assunção cumulativa, que funciona
claramente em benefício do credor. Não se pode, contudo, esquecer que a ninguém pode ser imposto um encargo – nem
um benefício – contra a sua vontade.
Ainda sobre a ratificação, enquanto elemento de perfeição da assunção de dívida, vem o art.º
596º nº 1 estabelecer que enquanto o credor não ratificar o acordo entre o antigo e o novo devedor
podem as partes recuar na sua intenção sem consequência, visto que até à ratificação a assunção não
produz efeitos. Mas como seria injusto sujeitar o novo e o primitivo devedor a uma espera infinita
pela anuência do credor, o nº 2 da mesma disposição legal vem permitir que qualquer dos devedores
possa fixar um prazo ao credor para que este ratifique o negócio, relevando o silêncio como recusa.
Recusada a ratificação o contrato é ineficaz, sem prejuízo da possibilidade de se converter, nos termos
gerais, em promessa de liberação.
Se o contrato de transmissão da dívida for declarado nulo ou anulado e o
credor tiver exonerado o anterior obrigado, renasce a obrigação deste, mas
consideram-se extintas as garantias prestadas por terceiro, exceto se este
conhecia o vício na altura em que teve notícia da transmissão.
Artigo 597.º - Invalidade da transmissão
Analisando, agora, os meios de defesa que o novo devedor tem ao seu dispor em relação ao
credor da obrigação, resulta do art.º 598º o seguinte:
Relações entre
Antigo devedor Novo devedor
Meios de defesa
Inoponíveis ao credor.
invocáveis pelo novo
devedor (: assuntor) Antigo devedor Credor
ao credor
Oponíveis ao credor, desde que anteriores à assunção da dívida e não
referentes a meios de defesa pessoais do antigo devedor.
Este regime visa, na sua primeira parte, proteger o credor das invalidades do contrato de
transmissão de dívida, o que, combinando-se este regime com o do art.º 597º, leva a resultados
interessantes: o novo devedor pode opor ao credor a nulidade ou anulação do negócio que dá causa
à dívida (desde que não se tratem de vícios da vontade), mas já não uma causa de nulidade ou anulação
do contrato de assunção. Na segunda parte, visa-se proteger o assuntor, que deve ficar a coberto de
112A lei tenta, com isto, não contrariar as expetativas daqueles terceiros garantes da dívida que confiaram na
exoneração do devedor.
surpresas de uma relação que, em princípio, desconhece. Note-se, ainda, como nota final, que se o
meio de defesa pessoal for invocado pelo antigo devedor aproveita ao assuntor.
1 – Com a dívida transmitem-se para o novo devedor, salvo convenção em
contrário, as obrigações acessórias do antigo devedor que não sejam
inseparáveis da pessoa deste.
E nos casos em que o novo devedor se mostrar incapaz de cumprir a dívida que assumiu?
Tratando-se de assunção cumulativa sabemos já a resposta: tanto o antigo como o novo devedor
respondem pela dívida. Não sendo um capaz, será a divida sempre exigível do outro. Na assunção
liberatória a questão é já mais complexa. Regula, aí, o art.º 560º: só poderá o credor, perante a
insolvência do assuntor, exigir a prestação ou outra garantia do antigo credor se tiver expressamente
ressalvado a responsabilidade do primitivo obrigado. Caso contrário, terá a cargo o risco da
insolvência do assuntor, cabendo-lhe, antes de exonerar o antigo devedor, averiguar da possibilidade
económica de cumprimento pelo assuntor.
113É bom de notar que de se um contrato apenas resultar a transmissão de direitos ou obrigações estamos perante,
respetivamente, uma cessão de créditos ou uma assunção de dívidas e não uma cessão da posição contratual.
cessão, que é aquele que opera a transmissão da posição contratual entre o cedente e o cessionário,
com consentimento do cedido. Exemplos114:
Analisando os requisitos da cessão da posição contratual, grande ajuda nos dá o art.º 424º e
425º. Em primeiro lugar, o requisito fundamental, é o consentimento do contraente cedido que
pode ocorrer no momento da cessão ou estar já, no âmbito do poder que as partes têm de modelar
o conteúdo do contrato, previsto e consentido ab initio (situação típica nos contratos de fornecimento
de serviços, como telecomunicações). No primeiro caso, é preciso que o cedido consinta na
transmissão no momento em que ela é acordada. No segundo, e como esse consentimento já foi
prestando, exige o nº 2 do art.º 424º que a cessão da posição contratual seja notificada (tratando-se
de uma declaração receptícia vinculada às regras de eficácia do art.º 224º) ou reconhecida; só a partir
do consentimento ou do eficaz conhecimento da cessão da posição contratual poderá o contrato de
cessão produzir os seus efeitos. Caso o cedido recuse dar consentimento à cessão da posição
contratual, ela tem-se por não consumada.
A forma da transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e
vícios da vontade e as relações entre as partes definem-se em função do
tipo de negócio que serve de base à cessão.
Artigo 425.º - Regime
Os restantes requisitos da cessão da posição contratual vêm expressos no art.º 425º que, fazendo
apelo à ideia de que a cessão da p. c. é, também, um negócio policausal, é no contrato-base que se
deve procurar o regime aplicável ao contrato-instrumental, em matéria de forma, capacidade, vícios
e relações entre as partes. Assim, se a cessão da p. c. se der através da venda dessa posição, dever-se-á
aplicar o regime do contrato de compra e venda. Se transmissão da posição contratual corresponder
a uma liberalidade do cedente para com o cessionário, há que aplicar as regras específicas da doação.
Se a cessão da p. c. operar através da dação em cumprimento, idem. Nada disto exclui, como é
evidente, a aplicação das regras gerais dos negócios jurídicos.
116 É preciso aqui, contudo, fazer uma precisão: nem todos os direitos potestativos se transmitem para o cessionário,
mas tão somente aqueles que integrem a relação contratual no momento da cessão da posição. Os direitos potestativos e
estados de sujeição ligados à pessoa do cedente, e resultantes, não da relação contratual, mas do contrato-base, não se
transmitem ao cessionário. Por exemplo, o direito de resolução ou de anulação do contrato-base não se transmite para o
cessionário.
O nº 2 do art.º 762º já não nos é de todo desconhecido: aí se impõe às partes que, quer no
cumprimento da obrigação, quer no exercício do direito correspondente, elas atuem de boa fé. Isso
significa, no fundo, que as partes devem cooperar lealmente entre si para a realização do
interesse cabal do credor com o menor sacrifício possível dos interesses do devedor. Devem
as partes, pois, respeitar certos deveres de cuidado que permitam a satisfação dos seus interesses
recíprocos. Este princípio implica, também, que nem sempre a realização formal da prestação
debitória signifique que a obrigação se cumpra, se daí resultar uma ofensa à boa fé (v.g.: cumprir uma
obrigação no dia em que tenha ocorrido uma tragédia ao credor). É ainda de destacar que a boa fé
obriga, não só à realização dos deveres principais e secundários, como aos deveres acessórios de
conduta que nela se fundam e que já tivemos oportunidade de estudar118.
Vai-se discutindo na doutrina acerca da natureza jurídica do cumprimento, defendo alguns
autores que quando o devedor realiza a prestação a que está adstrito estamos perante um negócio
jurídico. Carneiro da Frada, porém, considera essa uma explicação redutora: há, de facto, atos de
cumprimento que correspondem a negócios jurídicos (quando a própria prestação debitória tenha
por objeto a prática de certo facto ou negócio jurídico), mas outros existem que não são suscetíveis
de ser entendidos enquanto tal (v.g. factos e atos materiais – o indivíduo que se obriga a dar
explicações de matemática, por exemplo). Se o cumprimento não representar um negócio jurídico
não lhe é aplicável as regras da falta e vícios da vontade; quando se trate de um ato que provenha da
vontade já se lhe aplicará tal regime.
1 – O contrato deve ser pontualmente cumprido, […].
Artigo 406.º - Eficácia dos contratos
117 Diz Antunes Varela que, em bom rigor, o termo cumprimento só deve ser utilizado nos casos em que o devedor
cumpra voluntariamente a prestação. Com isto pretende-se excluir, terminologicamente, tanto a realização da prestação por
terceiro como a realização compulsiva da prestação (art.º 817º). O certo é que, na prática, e numa noção ampla do termo,
o cumprimento designa qualquer uma destas situações.
118 O incumprimento destes deveres acessórios pode originar um cumprimento defeituoso da obrigação (art.º 762º,
nº 2), apesar de não poderem, pela sua natureza, ser objeto de ação de cumprimento (art.º 817º).
O devedor não pode realizar outra prestação diferente daquela a que estava vinculado
sem consentimento do credor (aliud pro alio = uma coisa em vez de outra), nos termos
do art.º 837º que regula a dação em cumprimento;
O devedor, para que cumpra cabalmente, deve realizar uma prestação que corresponda
qualitativamente à prestação devida (v.g.: A obriga-se a entregar dez maçãs, mas entrega
duas podres – há um cumprimento defeituoso).
O devedor não goza do beneficium competentiae nem da condenação in id quod facere potest,
ou seja, não pode a prestação estipulada ser reduzida pelo tribunal em função daquilo
que o devedor possa realizar de acordo com a sua situação económica.
O devedor deve realizar a prestação integralmente (vide infra).
1 – A prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, exceto
se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos.
pedir indemnização pelos danos sofridos. Conhecendo a falta de poder de disposição do devedor,
nada poderá fazer. Já ao devedor, estando de boa ou má fé, é ilícito a impugnação do cumprimento
sem o oferecimento simultâneo de nova prestação.
Nos casos em que o cumprimento seja nulo ou anulável por causa não imputável ao credor a
obrigação renasce e com ela todas as garantias. Se a causa for imputável ao credor a obrigação pode
renascer, mas já não as garantias prestadas por terceiro. Essas só ressurgirão se o terceiro, na altura
em que o cumprimento se efetua, tiver conhecimento do vício de que o ato padece. Vide art.º 766º.
1 – Quando a prestação puder ser efetuada por terceiro, o credor que a recuse
incorre em mora perante o devedor.
Não só o devedor tem legitimidade para realizar a prestação. Também os seus representantes e
auxiliares a têm. Mas mais: nos termos do art.º 767º, nº1 também terceiro, interessado ou não no
cumprimento, a pode realizar. Mas há limites: se as partes tiverem estipulado que só o devedor tem
legitimidade para o cumprimento e se a realização da prestação, pela sua própria natureza, resultar
num prejuízo para o credor (cfr. nº 2 idem)119. Nestas situações, o credor pode recusar a prestação,
incorrendo o devedor em mora. Fora destes casos, quando a prestação possa ser prestada por terceiro,
se o credor a recusar incorrerá em mora do credor. É que o vinculo obrigacional tem como finalidade
a satisfação do interesse do credor e não os seus caprichos ou taras. Se a prestação oferecida estiver
apta a satisfaz o seu interesse, o credor tem de a aceitar.
Muitas vezes o cumprimento de terceiro é do interesse de todas as partes: do credor, que assim
vê o seu interesse satisfeito o quanto antes; do devedor, que através da intervenção de terceiro não
incorre em mora; e do terceiro, que pode, eventualmente, ter interesse no cumprimento (v.g.: a
companheira do arrendatário que paga as rendas em atraso para não ser despejada). Sempre que o
terceiro tiver interesse no cumprimento, e logo puder ficar sub-rogado nos direitos do credor (cfr.
art.º 592º), o credor não pode recusar a prestação, ainda que o devedor se oponha ao cumprimento.
Quando assim não seja, o credor pode recusar a prestação de terceiro se o devedor não consentir no
cumprimento. Vide art.º 768º, nº 2.
Se o terceiro cumprir erroneamente obrigação alheia na convicção de que era sua ou na
convicção de que a tal estava obrigado, fica investido no direito de repetição contra o credor, nos
termos do enriquecimento sem causa (art.º 477º e 478º).
Se assim foi estipulado ou consentido pelo credor. Uma das formas mais comuns do
credor consentir na prestação a terceiro é a de confiar ao terceiro o recibo ou documento
de quitação a quem o devedor tem direito;
Se o credor, embora não tenha autorizado o cumprimento a terceiro, o ratificar;
Se quem a recebeu houver adquirido posteriormente o crédito;
Se o credor vier a aproveitar-se do cumprimento e não tiver interesse fundado em não a
considerar como feita a si próprio;
Se o credor for herdeiro de quem a recebeu e responder pelas obrigações do autor da
sucessão;
Nos demais casos em que a lei o determinar (art.º 606º e ss., 685º.).
Ora, só nestes casos o cumprimento a credor aparente libera o devedor.
3. Lugar da prestação.
1 – Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, a prestação deve ser
efetuada no lugar do domicílio do devedor.
Artigo 772.º - Princípio geral
Quanto ao lugar onde deve ser efetuada a prestação vale a regra, prevista no art.º 772º, nº
1, de que a prestação se cumpra no local acordado entre credor e devedor (expressa ou
tacitamente). A fixação do lugar da prestação tem importância prática, visto que a prestação pode
alterar o seu valor económico de acordo com o lugar onde haja de ser efetuada. Por outro lado, o
lugar da prestação determina, muitas vezes, a competência territorial dos tribunais judiciais.
Na falta de estipulação das partes quanto ao local de cumprimento ou vale a disposição
especial que a lei contenha ou, na falta dela, a regra supletiva de que a prestação deva ser
efetuada no domicílio do devedor120 (são as chamadas “obrigações de ir buscar ou procurar”).
Entre as regras especiais que a lei fixa para o lugar de cumprimento das obrigações encontra-se as
seguintes:
Entrega de coisa móvel (art.º 773º): se a prestação tiver como objeto coisa móvel
determinada, coisa genérica que deva ser escolhida de um conjunto determinado ou de
coisa que deva ser produzida em certo lugar, deve a obrigação ser cumprida no lugar
onde a coisa se encontrava ao tempo da conclusão do negócio;
120Veja-se o preceituado no nº 2 do 772º para os casos de mudança de domicílio do devedor. Esta norma aplica-se
tanto nos casos em que o domicílio se ter dado dentro do território nacional como para fora dele.
Se o devedor tiver mais de um domicílio (nos termos do art.º 82º), a prestação deve ser efetuada no domicílio
correspondente à data do cumprimento, i.e., no lugar onde habitualmente resida na altura.
4. Prazo da prestação.
1 – Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito
de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o
devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
Artigo 777.º - Determinação do prazo
Quando é que uma obrigação deve ser cumprida? A partir de que momento é que o
cumprimento pode ser exigido do devedor? A doutrina alemã distingue entre o momento a partir do
qual o credor pode exigir o cumprimento do crédito (sob pena do devedor entrar em mora),
denominando-o exigibilidade ou vencimento do crédito, e o momento em que o devedor pode
prestar, forçando o credor a receber (sob pena do credor entrar em mora), denominando-o
pagabalidade do crédito.
O momento em que a obrigação pode e deve ser cumprida pode resultar de estipulação das
partes ou de disposição legal123 (cfr. art.º 777º, nº 1 in initio). Na falta de estipulação das partes ou
disposição especial na lei, vale a regra supletiva de que as obrigações possam ser exigidas pelo
credor e cumpridas pelo devedor a todo o tempo (: princípio da imediata exigibilidade e
pagabilidade das obrigações). A doutrina trata estas obrigações como obrigações puras, uma vez
que podem ser exigidas e cumpridas a todo o tempo, i.e., são obrigações sem prazo.
2 – Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer
pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias
que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na
121 Dispõe o art.º 775º para aqueles casos em que a lei ou as partes convencionarem o lugar da prestação no domicílio
empresa que os contratou para trabalharem. O edifício da empresa é destruído num incêndio, mas tal não significa que a
prestação não possa ser realizada noutro lugar.
123 Atente-se, em relação ao contrato de empreitada, ao art.º 1211º, nº1 ou, no que toca ao contrato de mútuo, o art.º
1148º, nº 1, 2 e 3.
Algumas prestações, porém, pela sua própria natureza (v.g.: construção de uma casa), pelas
circunstâncias que a determinam (v.g.: prestação que tem de ser enviada para lugar diferente do
lugar de cumprimento) ou pela força dos usos (v.g.: pagamento da retribuição no contrato de trabalho
com base mensal) não podem ser imediatamente exigíveis ou cumpridas. São as chamadas
obrigações a prazo ou a termo, uma vez que o seu cumprimento não pode ser exigido nem
realizado antes de decorrido certo período ou da chegada de certa data. O prazo marca a data antes
da qual o credor não pode exigir a prestação se o devedor ainda a não tiver efetuado, ou não pode
ser forçado a recebê-la.
Podem as partes não conseguir chegar a um acordo quanto ao prazo para o cumprimento, nos
casos em que ele seja exigido pela natureza, circunstâncias ou usos, pelo que essa determinação fica
a cargo do tribunal (cfr. art.º 77º, nº 2 in fine). O mesmo vale para aqueles casos em que a faculdade
de determinar o prazo de cumprimento seja do credor e este não o faça ou se recuse a fazê-lo (cfr. nº
3, idem).
1 – Se tiver sido estipulado que o devedor cumprirá quando puder, a
prestação só é exigível tendo este a possibilidade de cumprir; falecendo o
devedor, é a prestação exigível dos seus herdeiros, independentemente da
prova dessa possibilidade, mas sem prejuízo do disposto no artigo 2071º.
O art.º 778º prevê duas situações especiais quanto à fixação indireta do momento do
cumprimento da obrigação. A primeira, prevista no nº 1, reporta-se àquelas hipóteses em que as
partes tenham determinado que o devedor só terá de cumprir “quando puder” (= cláusula de
melhoria). Neste caso, a prestação só se torna exigível quando o devedor tiver a possibilidade de
cumprir, tendo o credor de alegar e provar que o devedor dispõe de meios económicos bastantes
para efetuar a prestação, sem que esta o deixe numa situação precária ou difícil. Se o devedor falecer
sem ter cumprido, e sendo esta uma cláusula intuitu personae, a prestação passa a ser exigível dos
herdeiros do devedor, sem necessidade de prova da sua possibilidade de cumprimento, mas limitada
aos meios de satisfação disponibilizados pela herança (cfr. art.º 2071º).
Quanto à segunda hipótese prevista no nº 2 do art.º 778º, trata os casos em que o credor dá a
possibilidade ao devedor de ele cumprir “quando quiser”. Ora, aqui, a obrigação existe na mesma,
mas só depois da morte do devedor pode ser exigida ser exigida pelo credor, agora já aos herdeiros
do devedor.
O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre
que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente.
Artigo 779.º - Benefício do prazo
O prazo estipulado pelas partes tanto pode ser originário (estabelecido no momento da
constituição da obrigação) como superveniente. Estes prazos podem ser substituídos por outros que
ampliem (: moratória = beneficio suplementar do prazo do cumprimento concedido pelo credor ao
devedor) ou reduzam os prazos anteriores. Os prazos têm, por regra, caráter suspensivo (i.e., o
cumprimento só é exigível após a sua verificação), mas podem também ter, excecionalmente, caráter
final ou resolutivo (v.g.: a empresa realizadora de certo sorteio só paga os prémios que forem
levantados até certa data). O decurso do prazo suspensivo não implica a caducidade da obrigação,
que continua a ser suscetível de ser cumprida (trata-se de um termo suspensivo que não implica a
impossibilidade definitiva da obrigação, dando apenas lugar a mora). A verificação do prazo
ou termo final ou resolutivo, sem que haja cumprimento, faz extinguir a obrigação (v.g.: pasteleiro a
quem é encomendado um bolo de casamento a realizar no dia vinte de agosto, prazo é falhado), por
impossibilidade definitiva.
Nesta matéria é fundamental saber a favor de qual das partes da obrigação foi estabelecido
o prazo, i.e., saber quem é o seu beneficiário. A regra supletiva prevista no art.º 779º é que, na falta
de estipulação em contrário, o prazo se presume constituído a favor do devedor. Decorrem daqui
duas consequências: [i.] o credor não pode exigir o cumprimento antes de decorrido o prazo, [ii.] mas
pode o devedor, renunciando ao benefício do prazo, cumprir a prestação antes do seu
vencimento. Se o benefício do prazo for atribuído ao credor, fica o credor autorizado a exigir o
cumprimento antes de o prazo se vencer, mas não pode ser forçado a receber a prestação antes
de findo o prazo. Se o beneficio do prazo pertencer tanto ao credor como ao devedor, nem um pode
exigir o cumprimento antes do prazo nem ou outro pode oferecer antecipadamente.
Há casos em que a lei faz com que o devedor perca o benefício do prazo quando este haja
sido estabelecido a seu favor ou de ambos as partes, podendo o credor antecipar a exigibilidade
do cumprimento da prestação em relação ao prazo estipulado, por caducidade deste. O primeiro
desses casos vem previsto no art.º 780º e dá-se quando o devedor se tornar insolvente124, visto que
termina aí a confiança do credor na capacidade de cumprimento do devedor. Também a diminuição
das garantias do crédito125 ou a falta de garantias prometidas126, por culpa do credor, implicam a
imediata exigibilidade do crédito.
O segundo caso (cfr. art.º 781º) reporta à falta de cumprimento de uma prestação, nas
dívidas pagáveis em prestações: muitas vezes, a prestação obedece, por via de um acordo entre o
credor e o devedor que beneficia este último, de um fracionamento que permite ao devedor cumprir
escalonadamente ao longo do tempo. Aqui, basta o incumprimento de uma das prestações
acordadas para que todas as seguintes imediatamente se vençam127. A razão disto é simples: há
uma perda de confiança no devedor, visto que ao falhar ele se mostrou indigno da confiança do
credor (Batista Machado fala no “incumprimento sintomático”). Chame-se, não obstante, a atenção
para as regras especiais previstas nos artigos 934º a 936º que devem ser conjugadas com o regime do
art.º 781º.
Quanto aos limites da eficácia atribuída à perda do beneficio do prazo, interessa ver o art.º 782º:
pode o benefício do prazo afetar apenas um dos devedores. Quando assim for, mesmo que a dívida
seja solidária, a perda do benefício do prazo não afeta os restantes condevedores. Idem para quando
um terceiro tenha constituído qualquer garantia a favor do crédito.
Última nota: quando há antecipação do cumprimento, questiona-se muitas vezes qual é o destino
dos frutos naturais e civis que ocorram entre o momento do cumprimento efetivo da obrigação e o
cumprimento estipulado. V.g.: A acorda entregar a B um pomar em janeiro de 2017, mas fá-lo em
janeiro de 2016. Se o beneficio do prazo pertence ao devedor, o produto daquele lapso de tempo
pertence ao credor. Se o beneficio do prazo pertence ao credor, o produto será já do credor. É que
quem tem interesse no prazo não pode prejudicar a contraparte.
5. Imputação do cumprimento.
Pode acontecer que, perante o mesmo credor, o devedor tenha várias dívidas por saldar. Ora, se
ele cumpre em montante inferior à totalidade de dívidas, importa saber a qual das várias obrigações
se refere o cumprimento, ou seja, saber a que obrigação concreta se imputa o cumprimento.
124 A insolvência consiste na situação em que se encontra o devedor que, por carência de meios próprios e por falta
de crédito, se mostre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações. Ora, a insolvência é para aqueles
devedores que têm mais dívidas do que ativos, mas é também para aqueles que têm património superior à divida, mas que,
por qualquer razão estrutural, não conseguem converter o património em liquidez (v.g.: porque ninguém compra o
património).
125 V.g.: a dívida estava garantida por hipoteca: mas, por culpa (dolo ou negligência) do devedor, o prédio urbano
hipotecado sofreu grande desvalorização. Não é necessário que a diminuição da garantia do crédito o torne insuficiente,
uma vez que o que o está em causa é a confiança no devedor.
126 V.g.: a dívida estava garantida por hipoteca: mas, por culpa (dolo ou negligência) do devedor, o prédio urbano
hipotecado foi totalmente destruído. O devedor tinha prometido afiançar a dívida, mas não cumpre a promessa feita.
127 A comprou a B um automóvel por 5000 €, tendo-se acordado o pagamento em cinco prestações, uma por ano.
Nos primeiros dois anos A cumpre pontualmente. No terceiro, porém, falha a prestação: imediatamente se vencem as
restantes duas.
Exemplo: A tem dois débitos de 100 € e entrega 50€ ao credor: a qual das dívidas se deve imputar o
cumprimento?
Note-se que a questão da imputação de cumprimentos só se coloca verdadeiramente quando a
natureza das dívidas seja a mesma (v.g.: todas obrigações pecuniárias), visto que se o género das dívidas
for distinto (v.g.: uma prestação de facto e uma de coisa) é a própria natureza das prestações que
denuncia qual a obrigação a que o cumprimento se reporta. Por outro lado, também o problema da
imputação do cumprimento não se verifica quando aquilo que haja sido entregue pelo devedor seja
suficiente para cobrir todas os débitos. Verifica-se, por conseguinte, que as regras de imputação só
nos são verdadeiramente úteis quando [i.] as prestações tenham a mesma espécie e [ii.] o cumprimento
seja insuficiente em relação à totalidade das dívidas.
A lei, para dar solução à questão, entre os artigos 783º e 785º, dispôs uma série de regras:
Regra geral (art.º 783º, nº 1): é o devedor que escolhe as dívidas a que o cumprimento
se refere. Mas exige-se o acordo do credor (art.º 783º, nº 2) para que o credor possa
designar uma dívida que ainda não haja vencido, se o prazo tiver sido estabelecido em
beneficio do credor, e para que possa designar uma dívida de montante superior ao do
cumprimento, desde que o credor possa recusar o cumprimento parcial;
Regra supletiva (art.º 784º, nº 1): se o devedor não designar as dívidas a que imputa o
cumprimento ou não chegar a acordo com o devedor, a imputação deve fazer-se
sucessivamente:
◊ À dívida vencida;
◊ Se várias dívidas houverem vencido, à que oferece menor garantia;
◊ Se várias dívidas estiverem igualmente garantidas, à que for mais onerosa para
o devedor (a que vencer taxa de juro maior);
◊ Se várias dívidas forem igualmente onerosas, na que primeiro tiver vencido;
◊ Se várias tiverem vencido simultaneamente, à mais antiga.
Regra de ultima ratio (art.º 784º, nº 2): se aplicados todos os critérios supletivos
sobrarem, ainda assim, várias dívidas, rateia-se (= divide-se proporcionalmente) o
cumprimento entre todas as dívidas.
O artigo 758º prevê já uma situação distinta, em que não há uma pluralidade de dívidas, mas
uma dívida constituída por parcelas diferentes: capital, juros, despesas e indemnização. Nos termos
do artigo, o cumprimento insuficiente para cobrir a globalidade da dívida, é imputado, por ordem, às
despesas de indemnização, juros e capital. Mas trata-se esta de uma presunção, que pode ser afastada
pelo devedor, exceto no cumprimento em último lugar do capital, cuja antecipação depende de
autorização do credor.
7. Prova do cumprimento.
O art.º 787º, nº 1 estabelece que quem cumpre uma obrigação tem o direito de exigir um
documento de quitação (“estamos quites”), podendo recusar o cumprimento enquanto a quitação
não for dada ou exigi-la já depois de efetuada a prestação (nº 2, idem). Trata-se esta faculdade de quem
cumpre (devedor ou terceiro) de uma espécie de extensão da exceção de não-cumprimento do
contrato.
Por outro lado, o art.º 786º estabelece uma série de presunções de cumprimento que se destinam
a facilitar a vida do devedor quando seja chamado a provar o cumprimento. No que respeita aos
títulos de crédito, dispõe o nº 3 que a entrega voluntária do título ao devedor faz presumir a liberação
do devedor. Nestes casos, o documento de quitação não é bastante, visto que o título de crédito tem
vida autónoma e pode sujeitar o devedor a novos cumprimentos. Daí que ele tenha direito à sua
restituição ou imediata destruição (v.g.: cheques), nos termos do art.º 788º e 789º. Se o cumprimento
for parcial, há que averbar esse cumprimento ao próprio título, para que dele conste (art.º 788º, nº 1).
8. Efeitos do cumprimento.
Os efeitos principais do cumprimento da obrigação, são a sua extinção e a respetiva liberação
do devedor. O cumprimento pode gerar outros efeitos: a obrigação da emissão da quitação a cargo
do credor e a extinção das garantias da dívida (seja elas pessoais ou reais). Ademais, pode permanecer
certos deveres acessórios mesmo após a extinção da obrigação: culpa post pactum finitum.
Cumprimento
A prestação é realizada com vícios, defeitos ou irregularidades134.
defeituoso
O Código Civil adota uma sistemática que combina as diferentes modalidades do não
cumprimento. Começa por tratar a impossibilidade do cumprimento e mora não imputáveis ao
128 V.g.: o terceiro que destrói a coisa devida, criando uma situação de impossibilidade.
129 V.g.: a doença súbita e grave que impede o artista de atuar no concerto.
130 V.g.: a lei que proíbe a realização do negócio jurídico prometido.
131 V.g.: A devia entregar a B um livro que, em resultado de uma inundação, se inutilizou. C devia pintar a casa de D,
135 Causada pelo devedor, pelo credor ou por terceiro. Os factos de terceiro só não fazem extinguir a obrigação
quando sejam praticados por pessoas dependentes do devedor, nos termos do art.º 800º.
136 Factos naturais cujas consequências o devedor não possa evitar nem controlar usando da diligência normal, pelo
que nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada: tempestades, inundações, desabamentos de terras, descarrilamentos
de comboios, doença súbita ou grave, etc.
extinção da obrigação. Esta doutrina não é hoje aceite nem na Alemanha nem noutros países. Assim,
se A contratar com B o fornecimento de uma tonelada de cimento a certo preço e, repentinamente,
o cimento triplicar de preço no mercado, não pode A invocar a impossibilidade da prestação para dar
como extinta a obrigação. Poderá, contudo, recorrer ao mecanismo da alteração superveniente de
circunstâncias para resolver ou modificar o contrato (art.º 437º e ss.).
Enquanto a prestação for possível tudo pode ser exigido do devedor, i.e., uma mudança de
circunstâncias que leva a que a realização da prestação ultrapasse o limite do sacrífico que o devedor
projetou não torna a prestação impossível, devendo ele invocar a alteração superveniente para a
revisão ou resolução do contrato137. Ao contrário dos efeitos previstos para a impossibilidade da
prestação, que operam automaticamente, a alteração superveniente das circunstâncias depende
sempre da intervenção do tribunal.
/\ \/ /\ \/
1 – A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por
causa não imputável ao devedor.
Artigo 790.º - Impossibilidade objetiva
Façamos, agora, um périplo pela que estabelece o Código Civil relativamente aos vários tipos de
impossibilidade. Tratando-se de impossibilidade objetiva não imputável ao devedor a
consequência é a extinção da obrigação, tal como previsto no art.º 790º, nº 1. Se o negócio foi
celebrado com aposição de uma condição ou termo e se a prestação for possível à data da celebração
do negócio, mas se tornar impossível antes da verificação da condição ou do termo a obrigação
extingue-se igualmente, não afetando a validade do negócio (cfr. nº 2 idem).
A impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa igualmente a
extinção da obrigação, se o devedor, no cumprimento desta, não puder
fazer-se substituir por terceiro.
Artigo 791.º - Impossibilidade subjetiva
Para que a impossibilidade extinga a obrigação ela tem que ser, em regra, definitiva. A
impossibilidade temporária apenas cria uma espécie de suspensão do vinculo obrigacional,
continuando o devedor adstrito à prestação e tendo de a realizar assim que a inviabilidade transitória
desaparecer. O art.º 792º, nº 1 ressalva apenas, para contrastar com a falta de cumprimento imputável
ao devedor, que na impossibilidade temporária por facto alheio ao devedor ele não incorre em mora.
Mas pode dar-se o caso de a prestação ter sido aprazada e, findo esse prazo, ela já não poder
cumprir o seu fim (i.e., satisfazer o interesse do credor). São as prestações a termo fixo ou em que a
demora faz desaparecer o interesse do credor na prestação (v.g.: A encomenda frutas exóticas
137 Antunes Varela aventa, ainda, uma outra possibilidade: a do devedor invocar o abuso no exercício do direito do
credor para faltar ao cumprimento da prestação, quando o cumprimento do crédito, em face das circunstâncias, exceda
manifestamente os limites impostos pela boa fé.
do Brasil para o seu casamento, mas, devido a uma greve dos transportadores, a remessa só pode ser
enviada depois da cerimónia). Nestes casos, o prazo da prestação é elemento essencial do contrato e
findo esse prazo o credor já não se considera vinculado a aceitar a prestação, com fundamento de
que esta já não lhe interessa. Nestes casos, a lei, através do art.º 792º, nº 2, faz equiparar a
impossibilidade temporária à impossibilidade definitiva, o que importa a extinção da obrigação.
1 – Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o devedor exonera-se
mediante a prestação do que for possível, devendo, neste caso, ser
proporcionalmente reduzida a contraprestação a que a outra parte estiver
vinculada.
2 – Porém, o credor que não tiver, justificadamente, interesse no
cumprimento parcial da obrigação pode resolver o negócio.
Artigo 793.º - Impossibilidade parcial
Se a impossibilidade for apenas parcial, o devedor exonera-se cumprindo o que ainda for
possível. Quanto à parte restante, a impossibilidade não imputável ao devedor continua a constituir
causa de extinção das obrigações. Se a prestação parcialmente inviabilizada integrar um contrato
oneroso a contraprestação que lhe corresponda há de ser proporcionalmente reduzida, visto que seria
injusto que, diminuindo a prestação cumprida, a contraprestação se mantivesse inalterada (v.g.: se o
artista se impossibilitou depois de dar dois dos quatro concertos contratados só será remunerado
pelos dois concertos que realizou).
O legislador salvaguarda, contudo, no art.º 793º, nº 2, casos em que o cumprimento parcial
da prestação não interesse para o credor, porque à finalidade do contrato convém apenas a
prestação total (v.g.: ao artista que encomenda certa quantidade de mármore necessária para a
realização de uma escultura não interessa receber apenas um terço). Nestes casos, é lícito ao credor
recusar o cumprimento parcial, resolvendo o negócio.
Pode o facto que determinou a impossibilidade fazer com que o devedor adquira algum direito
sobre certa coisa ou contra terceiro, em substituição do objeto da prestação. V.g.: A deveria entregar
a B um livro raro de muitíssimo valor que ele havia segurado contra todos os riscos. No dia em que
se deslocava para realizar a entrega é assaltado tendo perdido o livro. Neste caso, A adquire o direito
a ser indemnizado pela seguradora. Ora, por força do art.º 794º pode o credor exigir a prestação da
coisa que o devedor haja adquirido por força da impossibilidade ou substituir-se ao devedor na
titularidade do direito que este adquiriu contra terceiro. Pode, então, B substituir A na titularidade do
direito de indemnização contra a seguradora. É isto o commodum da representação, outro efeito
da impossibilidade não imputável ao credor.
Haverá também commodum da representação nos casos de alienação de coisa indeterminada ou
de alienação feita com reserva de propriedade, se o credor não for ainda titular de um direito real,
quando a prestação se impossibilita.
É preciso cautela na aplicação deste regime, visto que o objetivo não é atribuir ao credor, com
o commodum, um beneficio superior ao que ele receberia se a prestação não se tivesse inutilizado. Daí
que há quem defenda que se devem nestas situações aplicar as regras do enriquecimento sem causa,
para que o credor não obtenha um enriquecimento à custa do devedor.
A prestação que se torna impossível pode fazer parte de um contrato bilateral ou com
prestações recíprocas. Nestes casos qual é a sorte da contraprestação em caso de impossibilidade
da prestação? Nos termos do art.º 795º, nº 1 a contraprestação caduca e, se o credor a tiver já
realizado, nasce na sua esfera o direito de restituição nos termos do enriquecimento sem causa, i.e.,
nos termos do enriquecimento atual (é justo que o devedor não tenha que entregar ao credor mais
do que aquilo que tem). Pode, contudo, o credor optar não pela desoneração da prestação ou pela
restituição, mas, antes, pelo commodum da representação, visto que a faculdade que lhe é atribuída pelo
art.º 794º funciona também em relação aos contratos sinalagmáticos. A solução agora descrita reporta
apenas àquelas situações em que a impossibilidade não pode ser imputável ao devedor.
O nº 2 do art.º 795º prevê os casos em que a impossibilidade da prestação se fica a dever
a motivo imputável ao credor através de um juízo de censurabilidade (v.g.: A celebra com B um
contrato de empreitada, mas, tendo de licenciar a obra para que B pudesse começar a trabalhar não
o faz, ficando B impossibilitado de realizar a prestação; C contrata D, mecânico, para lhe reparar a
mota, mas, entretanto, ateia-lhe fogo). Nestes casos, o devedor fica desonerado da prestação, mas
o credor não, continuando cometido à realização da contraprestação (pagando do preço ao
empreiteiro ou ao mecânico), apenas abatendo o lucro que o devedor haja porventura tido com
a exoneração (se B ou D, por força do tempo que deixaram de ter de gastar com a obra ou a
reparação realizarem outra atividade que lhes traga algum beneficio – outra obra ou reparação – será
o lucro – mas o apenas o lucro – daí resultante descontado na contraprestação devida pelo credor).
Ligada a esta questão da impossibilidade da prestação por causa imputável ao credor andam
aqueles casos em que a impossibilidade, embora diga respeito à pessoa ou aos bens do credor, não
lhe possa ser imputada. São as situações que a doutrina classifica como frustração do fim da
prestação e realização do fim da prestação por outra via. Vejamos alguns exemplos: o doente
que o cirurgião devia operar morre entretanto (frustração do fim) ou cura-se inexplicavelmente
(realização do fim por outra via); o barco que o rebocador ia safar afunda-se (frustração do fim) ou
desencalha inesperadamente por ação das marés (realização do fim por outra via). Todos estas
situações, ainda que por caminhos diferentes, levam à impossibilidade da prestação. Mas os efeitos
dessa impossibilidade que, estando ligada ao credor, não lhe pode ser imputável (porque nenhuma
censura se lhe pode dirigir) é que têm de ser pensados: a aplicação do art.º 795º, nº 2 nestes casos
ofenderia o mais elementar sentido de justiça, tanto mais que o legislador pensou aquelas
consequências para casos em que o credor tenha praticado com culpa o facto de que resulta a
impossibilidade da prestação. Mas então que solução se deve dar aos casos em que se frustra o fim
da prestação ou o seu fim é alcançado por outra via? Deve aplicar-se por analogia o art.º 468º, nº 1,
reconhecendo-se ao devedor da prestação de serviços, que sem culpa sua se tornou impossível, o
direito a ser indemnizado, quer das despesas que fez, quer do prejuízo que sofreu.
1 – Nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa
coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o
perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante
corre por conta do adquirente.
Artigo 796.º - Risco
As regras quanto aos efeitos da impossibilidade da prestação que até aqui temos vindo a elencar
podem sofrer alterações por aplicação das previsões relativas ao risco, regime especial a propósito
dos contratos que impliquem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam
ou transfiram um direito real sobre ela. Precise-se o que aqui se quer dizer com “risco”, tendo em
conta a plasticidade e omnipresença da expressão. O que aqui se trata é apenas o regime do risco
da perda ou deterioração da coisa nos contratos que transfiram ou constituam direitos reais.
No exemplo do anel que cai ao lago num contrato de compra e venda há, como se sabe, a
desoneração do devedor da prestação e a correspetiva liberação do credor da contraprestação (cfr.
art.º 795º, nº 1). Mas, no nosso regime, como se sabe, o efeito real da compra e venda dá-se por mero
efeito do contrato (cfr. art.º 408º, nº 1; 879º, al. a); 1317º, al. a). Se o contrato foi já celebrado isso
significa que o direito já se transmitiu, mas há um efeito real que não se concretiza por força da
impossibilidade da prestação, ficando o credor/adquirente prejudicado.
O nº 1 do art.º 796º estabelece a regra: o risco da perda ou deterioração da coisa nos contratos
que transfiram ou constituam direitos reais corre por conta do adquirente nos casos em que a
impossibilidade da prestação não seja imputável ao alienante ou devedor138. Assim, se A vende a
B um automóvel que é destruído por um incêndio não imputável a A, é por conta de B que corre o
risco de tal evento, por força de lhe pertencer o domínio sobre a coisa, não gozando o credor B dos
direitos conferidos no art.º 795º, nº 1 e tendo, contrariamente, de entregar o preço devido se ainda
o não tiver pago, ou podendo A guardá-lo se ele já lhe tiver sido entregue. Mas há desvios a esta regra:
2 – Se, porém, a coisa tiver continuado em poder do alienante em
consequência de termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com
o vencimento do termo ou a entrega da coisa, sem prejuízo do disposto no
artigo 807º.
Artigo 796.º - Risco
A primeira exceção, que inverte o risco, ocorre quando o devedor não entregue de imediato a
coisa porque o prazo é estabelecido em seu benefício (v.g.: A vendeu um automóvel a B, mas
obrigou-se a entregá-lo só passados quinze dias para que pode utilizar numa última viagem de
despedida. Entretanto, o carro desaparece). Nestas hipóteses, o risco continua a correr por conta do
devedor até que se vença o prazo ou se entregue a coisa.
3 – Quando o contrato estiver dependente de condição resolutiva, o risco do
perecimento durante a pendência da condição corre por conta do adquirente,
se a coisa lhe tiver sido entregue; quando for suspensiva a condição, o
risco corre por conta do alienante durante a pendência da condição.
Artigo 796.º - Risco
A segunda exceção reporta-se aos contratos feitos sob condição: sendo a condição resolutiva
(e porque a cláusula não impede o efeito translativo imediato do contrato) o risco do perecimento da
coisa corre por conta do adquirente se a coisa lhe tiver sido entregue. A contrario, corre o risco por
conta do alienante. Se a condição for suspensiva (como o domínio ou o direito real sobre a coisa se
não transfere ou se não constitui enquanto o evento se não verifica) o risco durante a pendência da
condição corre por conta do alienante. Uma vez verificada a condição o risco passa a correr por conta
do credor.139
Quando se trate de coisa que, por força da convenção, o alienante deva
enviar para local diferente do lugar do cumprimento, a transferência do
risco opera-se com a entrega ao transportador ou expedidor da coisa ou à
pessoa indicada para a execução do envio.
Artigo 797.º - Promessa de envio
138 Não obstante as criticas que possam ser feitas a esta solução, e na impossibilidade de encontrar neste domínio
uma solução completamente justa, aceitamos o sistema que temos. O sistema alemão, por exemplo, não conhece esta regra
de distribuição do risco.
139 Sobre a cláusula de reserva de propriedade (cfr. art.º 409º) a doutrina não se coloca de acordo quanto à sua natureza
jurídica: há quem diga que se trata de uma condição suspensiva (os efeitos do negócio produzem-se integralmente, apenas
se suspendendo o efeito translativo. Isto significa que o alienante ficaria proprietário até à verificação do facto em causa.) e
quem julgue tratar-se de uma condição resolutiva (a cláusula de reserva de propriedade funciona como um negócio com
eficácia plena e imediata, mas que cessa com determinado evento – v.g.: a falta de pagamento –, o que significa que o
comprador se torna verdadeiro proprietário da coisa logo no momento da celebração do contrato.). A conceção que aqui
se adote é relevante para saber por conta de quem corre o risco pelo perecimento ou destruição da coisa com reserva de
propriedade. Antunes Varela acompanhado da doutrina maioritária defende a tesa da condição suspensiva; Carneiro da
Frada parece inclinar-se para a tesa da condição resolutiva.
O art.º 797º refere em especial o risco do transporte: se a coisa tiver de ser enviada, por força
do contrato, para local diferente do lugar de cumprimento a transferência do risco da destruição
ou deterioração da coisa dá-se com a entrega ao transportador da coisa, correndo, durante a
viagem, por conta do credor. V.g.: A, comerciante de Vinho do Porto, recebe uma encomenda a ser
remetida para Inglaterra. O lugar do cumprimento é o cais de Gaia, comprometendo-se o devedor a
providenciar o transporte. O risco transfere-se aquando da entrega do vinho ao transportador,
correndo a partir daí contra o comprador.
Todas as regras respeitantes ao risco que agora abordamos são supletivas, nada impedindo que
as partes configurem em diferentes termos a distribuição do risco.
140 Esta solução vale, também, para aquelas hipóteses em que a prestação não tenha sido efetuada em tempo devido
o credor mantém, ainda, o interesse nela, mas o devedor declara não querer cumprir. Trata-se da chamada declaração ou
recusa antecipada de não cumprimento: há lugar ao imediato vencimento da obrigação, podendo o credor recorrer aos
meios de realização coativa da prestação aplicando-se o regime do incumprimento definitivo no que toca aos direitos
indemnizatórios do credor.
cumprimento. Já o interesse contratual negativo destina-se a colocar o credor na situação em que ele
estaria se não tivesse celebrado o contrato, ou sequer iniciado as negociações.
Ora, o não cumprimento da prestação obriga à reparação do interesse contratual positivo,
englobado tanto o dano emergente como o lucro cessante. Ademais, é este prejuízo calculado em
função dos danos concretamente sofridos pelo credor, pelo que o não cumprimento de prestações
perfeitamente iguais pode dar origem a indemnizações distintas.
3.1.1. Responsabilidade contratual: pressupostos.
Quando abordamos a responsabilidade civil como fonte de obrigações referimos que a
responsabilidade civil era comumente dividida entre responsabilidade extracontratual e
responsabilidade contratual, mas que a consequência para ambas era a mesma - e por isso regulada
autonomamente: a obrigação de indemnizar.
É precisamente da responsabilidade contratual de que agora nos ocuparemos. Esta resulta, como
já vimos, da falta culposa do devedor ao cumprimento de uma obrigação. É a culpa que estabelece
o nexo de imputação da situação de responsabilidade e obriga o devedor a indemnizar o credor.
Também já sabemos que os pressupostos da responsabilidade extracontratual são os mesmos que os
da responsabilidade contratual, ainda que, em alguns casos, adaptados. Façamos um périplo:
Quanto à ilicitude, ela resulta, no domínio da responsabilidade contratual, da relação de
desconformidade entre a conduta devida (: prestação debitória) e o comportamento adotado.
Assim, na responsabilidade contratual falamos de uma ilicitude especial: a violação de uma
obrigação.
Tal como na responsabilidade extracontratual, a violação da obrigação pode, excecionalmente,
constituir um ato lícito sempre que o devedor se encontre no exercício de um direito ou no
cumprimento de um dever (v.g.: exceção de não cumprimento, recusa da entrega da coisa fundada no
direito de retenção).
1 – Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o
cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
Quanto à culpa, já se disse que esse é o nexo de imputação na responsabilidade contratual. «Agir
com culpa significa atuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou
reprovável». E a conduta será censurável quando o devedor, perante as circunstâncias concretas,
devesse e pudesse ter agido de outro modo. A culpa é interpretada em sentido amplo, abrangendo
quer o dolo quer a negligência, nos mesmos termos da responsabilidade delitual. Embora a falta de
cumprimento seja um facto objetivo, o não cumprimento só será ilícito se proceder de culpa do
devedor.
A lei, quanto ao ónus da prova da culpa do devedor, vem facilitar a vida ao credor (cfr. art.º
799º, nº 1), presumindo que o não cumprimento da obrigação resulta de culpa do devedor.
Assim, trata-se esta de uma dupla presunção de culpa e ilicitude contra o devedor. Nestes termos,
cabe ao credor provar os factos constitutivos do seu direito (i.e., demonstrar que há uma obrigação e
que ela foi incumprida), mas cabe ao devedor «provar que a falta de cumprimento não procede de
culpa sua». Note-se no art.º 791º, nº 1 estabelece, também, segundo Carneiro da Frada, uma
presunção de ilicitude, pelo que o devedor tem de provar que o incumprimento não é nem culposo
nem ilícito.
Nos termos do nº 2 do art.º 799º a culpa é apreciada segundo a fórmula do bonus pater famílias
(cfr. art.º 487º, nº 2) válida para a responsabilidade aquiliana, nos termos supra estudados.
1 – O devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus
representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da
obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor.
Artigo 800.º - Atos dos representantes legais ou auxiliares
141 A comprou a B certa quantidade de mercadorias, pagando antecipadamente o preço. Se a mercadoria se inutilizar
por culpa de B, pode a A convir mais a restituição do dinheiro que pagou do que a indemnização correspondente à falta de
entrega oportuna da coisa comprada.
142 Carneiro da Frada discorda, nos termos que veremos infra.
3.2. Incumprimento.
Carneiro da Frada diz-nos que a “falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor” é uma
expressão muito ampla que abarca diferentes possibilidades com regimes distintos. Segundo o
professor, o incumprimento é a situação básica que origina a responsabilidade civil obrigacional. Só
há incumprimento quando a não realização da obrigação represente a violação de um dever
jurídico.
O civilista divide o incumprimento em várias modalidades, nos termos que já antes aqui fizemos:
Incumprimento A não realização da prestação implica que deixe de ser possível salvaguardar
definitivo o interesse do credor porque ele fica definitivamente por satisfazer.
Em termos genéricos, a doutrina tem dividido os tipos de incumprimento em três grupos: [i.]
incumprimento definitivo, [ii.] mora [iii.] e cumprimento defeituoso.
3.2.1. Incumprimento definitivo.
O incumprimento definitivo ocorre em três situações:
A impossibilidade imputável ao devedor pode, como já se sabe, ser parcial. Nestes casos, o
credor pode optar pela resolução do negócio ou exigir o cumprimento da prestação ainda possível,
reduzindo-se a contraprestação ou exigindo a restituição de parte dela. Mas note-se que nos termos
do nº 2 do 802º, o credor não pode resolver o contrato se a prestação abrangida pela impossibilidade
tiver relevo insignificante para a satisfação do seu interesse.
prestação se tornar liquida, exceto nas situações aí enumeradas. Se a prestação não é certa, porque a
sua determinação cabe ao credor ou a terceiro, não há mora do devedor porque o facto não lhe é
imputável. Mas se a determinação estiver a cargo do devedor, já haverá mora quando ele não o faça
dentro do prazo que se estipule.
Detenhamo-nos, agora, nos efeitos da mora do devedor.
1 – A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos
causados ao credor.
Artigo 804.º - Princípios gerais
O outro efeito da mora é a inversão do risco da perda ou deterioração da coisa que devia
ser entregue ao credor, que passa a correr por conta do devedor, ainda que os factos de que resulta
a perda ou deterioração não lhe sejam imputáveis. Assim, se A devia entregar o automóvel ao credor
no dia 1 de junho e ele é destruído por uma deslocação de terras no dia 3, ele continuará adstrito ao
dever de prestar. Pode, não obstante, o devedor afastar este regime alegando e provando, nos termos
do nº 2 do art.º 807º, que o credor teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido
cumprida em tempo.
/\ \/ /\ \/
1 – Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na
prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente
for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a
obrigação.
Como se sabe o Direito das Obrigações assenta no princípio da liberdade contratual, tendo as
partes a faculdade de adaptarem o conteúdo dos negócios às suas necessidades. Porém, essa liberdade
não vale no que toca ao incumprimento das obrigações. É o art.º 809º que estabelece a proibição
de cláusulas através das quais as partes renunciem antecipadamente aos direitos que lhes
são reconhecidos no âmbito da falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor (v.g.:
indemnização, resolução do contrato, redução da contraprestação, commodum, etc.). Abre-se exceção,
apenas, para a possibilidade conferida ao credor de limitar ou excluir a responsabilidade do devedor
por atos praticados pelos seus representantes legais ou auxiliares.
Mas note-se que o alcance da proibição, cuja sanção é a nulidade, tem moldes precisos:
corresponde à renúncia antecipada de direitos. Ora, nada impede o credor, de uma vez verificado o
incumprimento ou a mora, de não exercer nenhum dos direitos que a lei lhe reconhece ou até
renunciar em definitivo ao seu exercício. O que não pode é fazê-lo antecipadamente, i.e.,
anteriormente à violação contratual.
Assim, esses direitos conferidos ao credor em caso de incumprimento são o núcleo irredutível
do direito de crédito, visto que é aí que reside a sua juridicidade ou a força do vínculo obrigacional.
Admitir a renúncia antecipada daqueles direitos seria privar a obrigação da força vinculativa que a
caracteriza.
3.3.1. Cláusula penal.
1 – As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização
exigível: é o que se chama cláusula penal.
Artigo 810.º - Cláusula penal
Uma das formas mais comum de se fixar os direitos do credor é a através da estipulação de uma
cláusula penal. Se está vedado ao credor renunciar aos seus direitos decorrentes do não
cumprimento, nada obsta, porém, a que ele vá mais além do que a lei exige. Desta sorte, a cláusula
penal é a forma do credor reforçar ou antecipar a reação contra o não cumprimento: trata-se da
estipulação pela qual a partes fixam o objeto da indemnização exigível do devedor que não
cumpre, como sanção a falta de cumprimento. Podemos ter dois tipos de cláusula penal,
atendendo à sua função:
3 – O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o
valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.
Artigo 811.º - Funcionamento da cláusula penal
As notas fundamentais que caracterizam o regime da cláusula penal evidenciam-se no art.º 811º:
[i.] o credor não pode exigir ao mesmo tempo o cumprimento da prestação e a indemnização
que corresponda à cláusula penal, exceto se esta se tratar de uma cláusula penal moratória (v.g.:
acorda-se uma taxa de juro superior à legal para a mora, entre outras); [ii.] o credor não pode exigir
uma indemnização superior à cláusula penal, ainda que o prejuízo a exceda, salvo se as partes
tiverem estipulado de outro modo; [iii.] em todo o caso, o credor, e só na cláusula penal
ressarcitória, não pode exigir uma indemnização superior ao valor do prejuízo causado pelo
incumprimento da obrigação principal.
1 – A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a
equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa
superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.
Artigo 812.º - Redução equitativa da cláusula penal
O art.º 812º admite que a cláusula penal compulsória, quando seja “manifestamente
excessiva”, possa ser reduzida pelo tribunal obedecendo a juízos de equidade. É preciso ter-se uma
certa noção de proporcionalidade na fixação de uma cláusula penal compulsória, de modo a não se
prejudicar o devedor em demasia. É por isso que se admite que o juiz corrija a cláusula penal, numa
espécie de reconhecimento do princípio da proporcionalidade no direito privado, de modo a
proceder-se ao reequilibro da relação obrigacional.
4. Mora do credor.
O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a
prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos
necessários ao cumprimento da obrigação.
Artigo 813.º - Requisitos
145 Note-se que o credor pode justificadamente recusar a prestação quando, por exemplo, ela seja defeituosa ou
quando seja coisa diversa da devida, etc. Por outro lado, podem motivos de força maior obrigar o credor a recusar a
prestação (doença súbita, atropelamento, etc.).
146 Mas havendo algum beneficio para o devedor com a mora, ela será descontada à contraprestação devida.
2.1. Resolução.
A resolução do contrato vem prevista entre os artigos 432º e 436º. Corresponde à destruição
da relação contratual, operada unilateralmente por um dos contraentes, com base num facto
posterior à celebração do contrato. O objetivo da resolução é fazer com que as partes regressem à
situação em que elas estavam se não tivessem celebrado o contrato.
O direito de resolução tanto pode resultar da lei como de convenção das partes (cfr. art.º 432º,
nº 1). Neste último caso estamos perante uma cláusula resolutiva que as partes apõem ao contrato
e em que conferem a uma delas, ou a ambas, o poder (rectius, direito potestativo) de extinguir a relação
contratual 147 . Muitas vezes, quando o direito de resolução resulta da lei trata-se de um poder
147 A cláusula resolutiva não se confunde com a condição resolutiva. Esta opera imediatamente assim que verificado
o facto futuro e incerto; aquela apenas opera se a parte assim entender, visto que se trata de um poder.
vinculado, conquanto a parte que o invoque tenha que o fundamentar (art.º 801º, nº 2; 802º, nº 1).
Noutros casos o poder é discricionário (927º e ss.).
A resolução goza, em princípio, de eficácia retroativa (cfr. art.º 434), exceto quando outra seja
a vontade das partes ou quando se trate de contrato de execução continuada ou periódica, em que a
resolução vale apena para o futuro, salvaguardando-se os efeitos produzidos enquanto a relação se
manteve. Para colocar as partes no status quo ante, a resolução cria, em regra, outras obrigações para
as partes.
A resolução não pode prejudicar os direitos adquiridos por terceiro na pendência do contrato,
salvos nos casos e nas condições previstas no art.º 435º, nº 2. Em tudo o resto, por força do artigo
433º, aplica-se à resolução o regime da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico.
Por fim, em conformidade com o art.º 436º, a resolução opera por simples declaração à
contraparte, tendo esta declaração eficácia extintiva da relação jurídica. Se a contraparte não aceitar
a resolução ou contestar os seus efeitos será necessário recorrer à via judicial.
2.2. Revogação.
A revogação do contrato consiste na destruição da relação contratual assente no acordo
dos seus autores, posterior à celebração do contrato. Esta hipótese, expressamente prevista no
art.º 406º, nº 1, traduz um acordo de sentido oposto àquele que deu origem à relação obrigacional,
denominado contrarius consensos, que expressa a regra de que quem ergue um contrato pode também
derrubá-lo.
Há casos em que a revogação opera por um ato jurídico unilateral (: revogação unilateral). Tal
sucederá quando o ato anterior tenha sido um negócio jurídico unilateral (testamento, proposta) ou
quando o contrato tenha sido estabelecido no interesse do sujeito que agora renuncia (mandato,
poderes de representação).
Os efeitos da resolução produzem-se, geralmente, apenas para o futuro (ex nunc), não havendo
lugar à retroatividade dos seus efeitos. Para além disto, a revogação exprime, em regra, um poder
discricionário, sem necessidade de fundamentação. Porém, em certas situações em que é necessário
proteger o interesse da contraparte, já se exige esse fundamento.
Também a revogação pode criar obrigações para as partes (v.g.: a restituição de coisa), impedir o
nascimento de outros ou extinguir obrigações já constituídas.
2.3. Denúncia.
A denúncia é a forma própria de extinção dos contratos de execução continuada ou
periódica de duração indeterminada (v.g.: arrendamento, fornecimento, sociedade, mandato, etc.).
Consiste na declaração feita por um dos contraentes à contraparte de que não quer a
continuação do contrato ou que não deseja que ele se renove.
A denúncia é uma declaração livre e unilateral, em princípio, que projeta os seus efeitos apenas
para o futuro (ex nunc), devendo ser feita com antecedência razoável, em nome da boa fé, sobre o
termo do período negocial em curso.
A ratio da figura é permitir a qualquer uma das partes de uma relação obrigacional a desvinculação
de um contrato com duração indefinida. Entende-se que os contratos não podem adstringir
excessivamente as pessoas que os celebram, daí que elas lhe possam pôr fim. Alguns autores dizem,
talvez de forma excessiva, que nos contratos com duração definida mas muito prolongada, as partes
podem denunciá-los antes do seu termo. Esta possibilidade deve ser vista com cautela, mas se os
interesses das partes e o fim do contrato não forem ofendidos, Carneiro da Frada concorda com tal
hipótese.
A dação “pro solvendo” tem por objetivo, também, a realização de uma prestação diferente da
que é devida. Mas o seu fim, no entanto, não é o extinguir imediatamente a obrigação, mas apenas
facilitar o cumprimento da obrigação. Trata-se, pois, de uma dação em função do cumprimento.
Exemplo: o devedor passa um cheque ao credor; não há extinção imediata da obrigação, i.e., o ato de
emitir o cheque não faz desonera o devedor. Apenas quando o credor sacar o cheque é que a
obrigação se tem por cumprida. Deste modo, a obrigação só se extingue se e à medida que o respetivo
crédito for sendo satisfeito, à custa do novo meio proporcionado ao credor (é uma dação
condicionada, que pressupõe a realização de uma outra coisa).
Esta finalidade de facilitar a satisfação do crédito e não de o extinguir de imediato é muito
comum, e acontece, por exemplo, mediante a entrega de uma coisa (para que, vendendo-a, o credor
se cobre do crédito) ou através da transmissão de um crédito do devedor sobre terceiro.
/\ \/ /\ \/
Analisemos, agora, o regime da dação em cumprimento. O principal efeito da dação é a
extinção da obrigação e das garantias e acessórias do crédito. Já se sabe (art.º 837º) que o
cumprimento com coisa diversa da que é devida só é admitida havendo consentimento do credor.
Se a coisa ou direito entregue em substituição da primitiva prestação tiver vícios, o art.º 838º faz
conceder ao credor a mesma proteção que os artigos 905º e ss. dispensam ao comprador, quando a
coisa ou direito transmitido apresente vícios. Mas às faculdades do credor previstas naqueles artigos
(reparação ou substituição da coisa; redução do valor que lhe foi atribuido) o art.º 838º acrescenta
uma outra: optar pela prestação primitiva e reparação dos danos sofridos.
148E a dação pode não ter por objeto apenas a transmissão da propriedade de uma coisa, mas, também, a transmissão
de outros direitos (v.g.: usufruto, crédito que o devedor tenha sobre terceiro).
a) Quando, sem culpa sua, não puder efetuar a prestação ou não puder
fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor;
b) Quando o credor estiver em mora.
149 Pelo que entrará em mora do credor. Mas, como sabemos, a mora do credor não extingue a obrigação, podendo
um prazo razoável para tal efeito que, findo, e aplicando um regime simétrico ao da interpelação admonitória, leva à
exoneração do devedor.
3.3. Compensação.
Acontece com frequência que uma pessoa deva a outra certa quantia e seja credora da mesma
pessoa de igual ou diferente quantia. Exemplos: o advogado deve ao contabilista 50€ por este ter
efetuado a sua contabilidade; o contabilista deve ao advogado outros 50€ por uma consulta jurídica.
O médico deve ao barbeiro 15€ pelos serviços que ele lhe prestou; o barbeiro deve ao médico 30€ de
uma consulta.
Normalmente, teríamos nestes casos dois atos de cumprimento: primeiro o advogado e o
médico cumpririam; depois seguir-se-ia o cumprimento do contabilista e barbeiro. Mas, havendo
reciprocidade de créditos, parece desnecessária esta duplicação de atos de cumprimento, pela
simples lei do menor esforço, bastando um simples encontro de contas ou compensação, para que se
extingam ambos os créditos (no caso da relação entre o médico e o barbeiro, o primeiro via, de
imediato, o seu crédito extinguir-se, enquanto o barbeiro apenas entregaria 15€).
1 – Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor,
qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação
com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção,
perentória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e
qualidade.
A compensação dá-se quando duas pessoas sejam simultaneamente credor e devedor uma da
outra. É o meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito
equivalente de que disponha sobre o credor. Mas atente-se que obrigação não é o mesmo que
cumprimento simultâneo das prestações.
Para além da vantagem que já apontamos à compensação – a de evitar a multiplicação de atos
de cumprimento – uma outra utilidade pode ser aventada: proteger o credor em caso de insolvência
do devedor. Imagine-se que o contabilista está em risco sério de insolvência. Pelo funcionamento
normal do sistema, o advogado cumpriria a sua prestação na integra e poderia vir a receber apenas
uma parte daquela a que tinha direito ou mesmo nenhuma. É que as regras da insolvência mandam
ratear por todos os credores os bens do insolvente. Mas se o credor puder compensar o seu crédito,
ele fica livre do risco de insolvência do devedor visto que a sua divida se considera extinta graças ao
crédito que dispõe contra o devedor. Deste modo, é dupla a finalidade da compensação: simplifica
e garante os pagamentos.
A compensação pode ser legal (quando realizada através de declaração unilateral de uma das
partes, reunidos certos requisitos) ou convencional (mediante acordo das partes, mesmo sem
verificação de alguns dos requisitos prescritos pela lei). A compensação legal corresponde ao exercício
de um direito potestativo.
Para que possa haver compensação a lei prevê que preencham certos requisitos. São eles:
152 V.g.: prescrição (vide art.º 850º), nulidade, anulabilidade, exceção de não cumprimento, beneficio de excussão, etc.
Créditos provenientes de factos ilícitos dolosos, visto que o contrário seria contra a
moral pública155;
Créditos impenhoráveis, exceto se ambos forem da mesma natureza, porque se trata
de créditos que se destinam a garantir a subsistência do credor e da sua família;
Créditos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, exceto quando a lei o
autorize;
Lesão de direitos de terceiro sobre o crédito (penhor, usufruto, penhora, arresto, etc.),
constituídos antes da compensabilidade do crédito.
Renúncia do devedor.
Feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos
desde o momento em que se tornaram compensáveis.
Artigo 854º. - Retroatividade
Uma vez feita a declaração de compensação o principal efeito é a extinção mútua dos créditos
e de todas as garantias e acessórios, que retroage ao momento em que eles se tornaram
compensáveis (art.º 854º). Caso exista uma pluralidade de créditos compensáveis deve observar-se o
art.º 855º. Se a compensação for inválida não se extinguem os créditos e débitos que lhe estiveram na
base (cfr. art.º 856º). Mas, sendo a invalidade imputável a alguma das partes, não renascem as garantias
prestadas por terceiro em beneficio dessa parte, salvo se o terceiro conhecia o vício ao tempo da
compensação.
3.4. Novação.
A novação é a convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a
criação de uma nova obrigação em lugar dela. Exemplo: o empregado A, a quem o empregador
dispensara automóvel para as suas deslocações, é despedido. Querendo, porém, conservar o veículo
que à empresa não interessa recuperar obriga-se a entregar ao empregador 1500 € em vez de restituir
o veículo. Aqui, extingue-se a obrigação de restituir o automóvel, fundada na relação de trabalho, e
nasce em lugar ela, por força do contrato posteriormente realizado, uma nova obrigação.
Dá-se a novação, objetiva quando o devedor contrai perante o credor uma
nova obrigação em substituição da antiga.
Artigo 857.º - Novação objetiva
153 Este requisito de homogeneidade qualitativa das prestações compensáveis é corolário da ideia de que o credor não
pode ser forçado a receber coisa diferente da lhe seja devida, ainda que de valor superior. A diversidade dos lugares do
cumprimento das prestações não afeta a compensação, nos termos do art.º 852º.
154 Se o crédito principal não existe, for nulo ou vier a ser anulado, a compensação não se verificará; e se, porventura,
a compensação tiver surtido praticamente os seus efeitos, o crédito da contraparte renascerá com todas as suas garantias.
155 Mas é possível, atendendo à ratio legis, que a compensação opere os seus efeitos se o compensante for o credor (e
não o devedor) da indemnização pelos provenientes do facto ilícito doloso. Se A tiver o direito de exigir 2000 € de B, que
o agrediu, nada impedirá que o agredido se considere desonerado, por compensação, da dívida de igual montante por
géneros que B lhe forneceu.
credor.
Artigo 858.º - Novação subjetiva
3.5. Remissão.
A remissão é a causa de extinção das obrigações em que o credor, com assentimento do
devedor, renúncia ao direito de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua
esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse que a lei lhe conferia. A remissão,
como confirma o próprio nome da figura, traduz-se num ato de perdão que o credor concede ao
devedor156. A obrigação extingue-se sem que chegue a haver prestação.
A remissão ou perdão da dívida faz-se por meio de um contrato: é que o devedor pode ter
interesse em cumprir157, daí ter que consentir. Por outro lado, ninguém pode ser compelido a receber
um benefício sem o querer. Bastaria, talvez, que se desse ao devedor a faculdade de recusar o
beneficio, considerando-se a remissão como um ato unilateral recipiendo do credor. Em lugar disto,
no entanto, julgou-se mais conveniente e mais lógico adotar-se o princípio da contratualidade (cfr.
art.º 863º, nº 1).
156 V.g.: A credor do seu amigo B por 100€, impressionado por uma série de acontecimentos trágicos na sua vida,
contraparte para se livrar de cumprir a sua, mas pode a contraparte querer cumprir a sua prestação para receber a
contraprestação.
A remissão pode corresponder a uma liberalidade (cfr. art.º 863º, nº 2), quando haja animus
donandi (: remissão donativa), ou ter o simples intuito de rejeitar ou demitir o crédito da esfera jurídica
do credor, podendo aí constituir um ato oneroso ou gratuito, consoante haja ou não, em troca dela,
um correspetivo (: remissão puramente abdicativa). Quando a remissão constitua uma liberalidade
aplicar-se-á o regime da doação.
O principal efeito da remissão é a perda definitiva do crédito para o credor e a exoneração
do devedor. Extinta a obrigação, extinguem-se, também, os acessórios e garantias da dívida (cfr. art.º
866º). Assim, a remissão da dívida principal arrasta a remissão da dívida acessória e restantes garantias.
E mesmo que a remissão seja inválida por facto imputável ao credor não renascem as garantias, exceto
se o terceiro conhecesse o vício quando teve conhecimento do perdão. Daqui se retira que se
invalidade a remissão renasce a obrigação.
Por outro lado, nos termos do art.º 867º, a remissão que o credor faça ao garante não presume
a remissão da dívida principal. Isto significa que se o credor renunciar à fiança não fica remitida a
divida principal, a não ser que ele assim o queira, e o devedor consinta.
Quando sejam vários os obrigados principais, numa obrigação solidária (cfr. art.º 864º, nº 1 e 2)
ou numa obrigação indivisível (cfr. art.º 865º, nº 1), e a remissão se não refira a toda a dívida, mas
apenas a um dos devedores, os seus efeitos só aproveitarão ao benefício, embora não possam
prejudicar os outros.
3.6. Confusão.
Quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor
da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida.
Artigo 868.º - Noção
158 V.g.: A devia 5000 € a B. Morrem ambos no mesmo acidente, deixando como único sucessor o sobrinho comum
C.
- Declaração de invalidade dos atos nulos praticados pelo devedor que possam causar prejuízo
ao devedor;
- Ação sub-rogatória que permite ao credor substituir-se ao devedor no exercício de certos direitos
de conteúdo patrimonial contra terceiros, desde que a substituição se mostre necessária à
satisfação ou garantia do seu direito de crédito;
- Impugnação pauliana que confere ao credor o poder de reagir contra os atos praticados pelo
devedor (ainda que válidos) que envolvam diminuição da garantia patrimonial.
- Arresto que permite ao credor requerer a apreensão dos bens do devedor, sempre que ele tenha
justo receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito.
A alteração superveniente das circunstâncias é figura exclusiva dos contratos duradouros, i.e.,
daqueles contratos que se prolongam no tempo, não se aplicando a contratos instantâneos. Nos
contratos que se prolongam no tempo o condicionalismo existente à data da celebração do contrato
pode vir a sofrer modificações tais que descaracterizam a equação contatual que foi criada pelas
partes. Houve uma alteração exterior ao próprio contrato.
Perante esta alteração como é que deve a ordem jurídica reagir? Permitir o afastamento da
disciplina contratual? Manter a disciplina? É que estão aqui em causa o principio do pacta sunt servanda,
a segurança jurídica e a justiça comutativa. Note-se que a alteração superveniente das circunstâncias
é uma figura subsidiária, a que só se recorre quando falhem outros mecanismos, como a
interpretação teleológica do contrato. A aplicação deste regime pressupõe o recurso aos tribunais.
Mas que requisitos de admissibilidade devem estar reunidos para que possa ocorrer uma
alteração superveniente das circunstâncias? Os requisitos desta figura podem dividir-se em três
elementos:
Elemento real;
Elemento hipotético;
Elemento normativo.
O elemento real corresponde à modificação ou alteração do circunstancialismo propriamente
dito. Mas é necessário haver uma alteração do status quo? Não. Basta que as circunstâncias não se
verifiquem de acordo com o que era esperado pelas partes. Não sendo necessária uma modificação
de circunstâncias é essencial que haja uma evolução inesperada do status quo. Por outro lado, é
possível, em situações limitadas, admitir o instituto em contratos já extintos, desde que se tratem de
contratos com finalidade projetada no futuro: a boa fé poderá admitir o alargamento das suas
fronteiras, aplicando para o futuro.
Quanto ao elemento hipotético, a lei refere-se a ele nos seguintes termos: “Se as circunstâncias
em que as partes fundaram a decisão de contratar, […]”. Se na disciplina contratual estiver incluída a
previsão hipotética da modificação das circunstâncias, a questão não se chega a colocar. Mas e quando
isso não acontece? É que na maior parte dos casos as partes não pensam nas circunstâncias
supervenientes. Nem a tal estão obrigadas: é que prever todas e quaisquer circunstâncias que podem
ocorrer acarreta pesados custos de oportunidade da negociação.
Como é que se descobre a vontade hipotética a que se refere o legislador no art.º 437º, i.e., como
é que sabemos que esta alteração de situação não estava incluída na previsão das partes? Será
necessário atender à vontade hipotética das partes baseada nos elementos subjetivos
existentes. A vontade hipotética das partes pode ter duas funções: interpretativa e sindicante. À
alteração superveniente das circunstâncias serve esta última: a figura só tem efeitos sobre a
vinculatividade do contrato se resultar da vontade hipotética das partes que elas não teriam
celebrado o contrato naqueles termos se tivessem previsto a alteração. Mas note-se que tem de
tratar de um juízo plúrimo, na medida em que têm todas as partes de se encontrar na posição de
não celebrarem o contrato.
No que respeita ao elemento normativo o legislador vem, através de quatro requisitos,
densificar a vontade hipotética a que nos referimos agora:
Não pode a alteração superveniente das circunstâncias cair nos riscos próprios do
contrato;
Tem de ser imprevisível;
Não pode ser imputável ao lesado;
Tem de gerar a inexigibilidade de cumprimento.
Quanto ao critério dos riscos próprios do contrato, há que ter em conta a equação económica
do contrato, a sua função, aquilo que ele pretende conseguir, etc. Para se chegar à equação económica
do contrato preciso analisar as cláusulas contratuais de distribuição de risco e as normas legais sobre
a mesma matéria. Em regra, estas normas afastam a alteração superveniente das circunstâncias. Se a
norma ou cláusula de distribuição de risco não abrangerem aquela situação especifica ultrapassa-se a
razão de ser da norma ou cláusula e deve recorrer-se à alteração superveniente das circunstâncias.
A imprevisibilidade é tratada pelo nosso Código como anormalidade” (rectius, “alteração
anormal”). Não estamos aqui perante uma imprevisibilidade abstrata, mas uma imprevisibilidade
concreta, daqueles sujeitos em concreto.
Por outro lado, o lesado não pode invocar a alteração superveniente das circunstâncias quando
ele tinha a possibilidade de evitar os danos, recorrendo-se aqui, para aferição da responsabilidade, ao
critério do bonus pater famílias.
Finalmente, o critério da inexigibilidade está relacionado com o princípio da boa fé e com um
juízo de equilíbrio da bilateralidade do contrato: perante aquelas circunstâncias torna-se inexigível às
partes cumprirem o contrato.
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Também o art.º 437º prevê as duas consequências da alteração superveniente: modificação do
contrato (aplicando-se o princípio do aproveitamento do contrato) ou a resolução do contrato. Há
quem defenda uma terceira consequência: a renegociação do contrato, impondo-se às partes uma
obrigação de se entenderem sobre as cláusulas do contrato. O problema nesta terceira consequência
está na hipótese de uma das partes se recusar a renegociar ou o fizer de má fé. Carneiro da Frada não
considera que se possa retirar do art.º 437º a renegociação como consequência da alteração
superveniente de circunstâncias.
Pode, sendo requerida, a resolução do contrato não operar por oposição de uma das partes, que
aceita modificar o contrato (art.º 437º, nº 2). Por outro lado, se a parte lesada estiver em mora não
goza do direito de resolução ou modificação do contrato (art.º 438º).