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CURSO DE FENOMENOLOGIA

2023_1
Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB

TEXTO 1

I. OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA
FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE E.
HUSSERL

I.1. O fenômeno e sua fenomenologia em Husserl

I.1.1. Notas sobre a palavra “fenômeno”. Fenômeno na fenomenologia do


pensamento grego originário.

A palavra “fenômeno” é de origem grega. Em grego temos o particípio neutro


fainovmenon (phainómenon). O particípio é tanto uma forma verbal quanto uma forma
nominal. Como forma verbal, o particípio fainovmenon (phainómenon) significa a
participação num evento, a saber, no evento de faivnesqai (phaínesthai), isto é, tornar-se
visível ou manifesto, vir à luz, se mostrar, aparecer e parecer, apresentar-se, tornar-se
patente, mas também resplandecer, brilhar e advir, despontar. Como forma nominal,
significa o que brilha, advém, desponta, resplandece, e, assim, se torna visível, se
mostra, o que se faz claro, manifesto, patente, perspícuo, evidente. Significa tanto o que
se torna aparecente quanto o que se torna aparente. Tudo isso é dito através de formas
intransitivas do verbo (a significação não transita, não passa a um objeto, mas
permanece no próprio “sujeito”). Para nós, o intransitivo é uma forma que guarda algo
do medial (que na nossa língua não existe). Faivnomai (phaínomai) é uma forma verbal

1
cuja voz é medial. Isto quer dizer: não é nem ativa (quando o verbo indica uma ação
praticada pelo sujeito), nem passiva (quando indica ação recebida pelo sujeito), nem
reflexiva (quando indica ação praticada e recebida pelo sujeito). O “medial” não se
refere, assim, a uma voz que está no meio entre o ativo e o passivo. Diz, antes, uma voz
que deixa entender a dinâmica do “medium”, ou seja, do meio, tomando-se esta palavra
na acepção de permeio, ambiência, elemento. É o que pre-jaz a modo de uma
“transcendência imanente”. “Transcendência”, pois, nos perpassa e ultrapassa,
abrangendo, abraçando, englobando a tudo. “Imanência”, pois, permeia e impregna a
tudo, dando-lhe o seu vigor. Para os gregos, o fenômeno se dá, pois, na dinâmica do
medial “vindo à luz” e “mostrando-se”.

O medial Faivnomai (phaínomai) remete, por sua vez, ao ativo faivnw (phaíno).
Já este verbo se diz na forma transitiva (passa a um objeto). Ele quer dizer,
primordialmente, deixar e fazer ver ou aparecer, manifestar, mostrar, trazer à luz, mas
também indicar, fazer conhecer, tornar noto, desvelar, fazer patente, declarar, denunciar,
proclamar.

Talvez possamos captar um pouco da experiência grega da significação deste


verbo seguindo um pouco de seus derivados. Alguns compostos são derivados de
faivnw (phaíno) sobre o tema do presente faivnw (phaíno). É o caso de fainoliv"
(phainolís): luzente, resplandecente. Outros compostos derivados apresentam o radical
fa- (pha-). Por exemplo: ajfavneia (apháneia): obscuridade, destruição; e ejmfavneia
(empháneia): aparição, manifestação. Temos derivados daí, tais como: fanerov"
(phanerós): bem visível, evidente, manifesto, claro, noto, mas também célebre, insigne,
ilustre, notável. Daí derivam também nomes de ação em -si" (-sis). Com o radical fa-
(pha-): favsi" (phásis): a aparição, no sentido do surgir, de modo especial, dos astros,
como também a fase da lua e, ainda, a denúncia, a delação, a acusação. Com o radical
fan- (phan-): favnsi" (phánsis): aparência; ajpovfansi" (apóphansis): declaração,
asserção (afirmativa ou negativa). Do radical fant- (phant-) aparecem numerosos
derivados, como fantavzomai (phantázomai): tornar-se visível, aparecer; fantavsma
(phantásma): aparição, imagem; fantasiva (phantasía): aparência, imagem, imaginação.

A raiz fa- (pha-) remete à significação originária de “aclarar, brilhar” (em


sânscrito há bha-ti: ele luz, ele aclara). Da mesma raiz temos a palavra grega fw'" (phós)
ou favo" (pháos): luz, claridade: o elemento em que algo se torna manifesto, visível nele
mesmo, e, assim, se mostra. Esta raiz fa- (pha-) também traz a significação originária de
2
“falar, explicar”. Daí temos o verbo grego fhmiv (phemí), dizer, falar, afirmar. É que a
experiência grega do falar e dizer é a do mostrar e deixar aparecer, deixar aclarar, vir
à luz. Esta ambivalência está presente na significação de palavras como favsi" (phásis),
que quer dizer tanto a aparição no sentido do surgimento dos astros ou das fases da lua,
quanto a denúncia, a delação, a acusação; como provfasi" (próphasis): a primeira
manifestação de uma doença, mas também o pretexto; como ajpofaivnein
(apophaínein): fazer aparecer, mas também declarar.

Para a fenomenologia no pensamento grego, o fenômeno originário é a ajlhvqeia


(alétheia): o des-velamento do ser, que se dá tanto como fuvsi" (phýsis), surgimento,
quanto como lovgo" (lógos): recolhimento, reunião, e, daí, estruturação, com-preensão,
e, só a partir daí, fala, discurso. Levgein (légein) significa, originariamente, colher,
recolher, reunir e concentrar; depois, pousar, assentar, repousar, de-por; e, a partir daí,
pro-por, narrar, contar, falar. Lovgo" (lógos) é, pois, uma dinâmica de recolhimento, de
abrigo, daquilo que se deixa colher, com-preender, na medida em que surge, se ergue e
se abre, brilha e se mostra – a fuvsi" (phýsis). É por isso que os primeiros pensadores,
isto é, os fenomenólogos do pensamento grego, foram chamados por Aristóteles de
fusio-lovgoi (physio-lógoi).

I.1.2. FENÔMENO NA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL

I.1.2.1. A irrupção da fenomenologia nas “Investigações Lógicas” (1900/1901).

Edmund Husserl (1859-1938) é o pensador em cujo trabalho, precisamente, nas


suas Logische Untersuchungen (Investigações Lógicas), publicadas em dois volumes
nos anos de 1900 e 1901, faz aparição histórica pela primeira vez a fenomenologia,
entendida como um conceito de método de investigação filosófica. Tal conceito de
método busca dar à filosofia o caráter essencial de uma ciência rigorosa que, por sua
vez, enquanto ontologia universal, possibilite às ciências não-filosóficas uma

3
fundamentação radical e transparente; e que, enquanto modo rigoroso de indagação e
investigação de questões fundamentais, possibilite, na práxis, aos indivíduos e às
comunidades humanas uma existência segundo a verdade e a veracidade.

Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível: da
matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os fundamentos da
matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e mais originária. “A
propósito, isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl começou então não
com qualquer problema imaginado ou trazido de fora, mas, de acordo com o seu
caminho de desenvolvimento científico, ele começou a filosofar sobre o chão que
tinha, isto é, sua meditação filosófica, no sentido da metódica de Brentano, se dirigiu à
matemática”1. Husserl começou a filosofar não adotando esta ou aquela corrente, esta
ou aquela doutrina. “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo, não se deixou
conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas mesmos”2.

A investigação de Husserl, pressionada pelas coisas mesmas, iria conduzi-lo, de


fato, a ultrapassar o domínio da lógica da matemática e até mesmo o domínio de uma
matemática da lógica, no sentido usual quantitativo, fazendo-o entrar em um âmbito
de questões ainda mais originário e universal: “em breve, porém, as questões se
alargaram no âmbito dos princípios (ins Prinzipielle) e as investigações empurraram
para os conceitos fundamentais do pensamento em geral (Fundamentalbegriffen des
Denkens überhaupt) e dos objetos em geral; cresceu a tarefa de uma lógica científica
e, unida a esta, a reflexão sobre os meios e caminhos metódicos da correta sondagem
dos objetos da lógica. Isto significava uma apreensão mais radical daquilo que fora
dado com a psicologia descritiva e, ao mesmo tempo, uma fundamental crítica contra
a confusão contemporânea da postura interrogativa da psicologia genética com a
lógica. Este trabalho junto aos objetos fundamentais da lógica ocupou Husserl por mais
de doze anos. Os primeiro resultados deste trabalho formam o conteúdo da obra que
foi publicada em dois volumes nos anos de 1900 e 1901 com o título ‘Logische
Untersuchungen’ (‘Investigações Lógicas’). Com esta obra veio à primeira irrupção a
investigação fenomenológica. Este tornou-se o livro fundamental da fenomenologia”3.

1
M. Heidegger, PGZ, 29.
2
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
3
M. Heidegger, PGZ, 29-30.

4
O primeiro volume das Investigações Lógicas se intitula “Prolegomena zur
reinen Logik” (Prolegômenos para a lógica pura). Sobre a gênese de tal obra Husserl se
pronuncia no prefácio da primeira edição, de 1900: “As investigações lógicas, cuja
publicação eu começo com estes prolegômenos, surgiram de problemas inevitáveis
que sempre de novo inibiram e finalmente interromperam o progresso de meus
esforços, efetuados durante anos, em torno de um esclarecimento filosófico da
matemática pura. Paralelo às perguntas sobre a origem das intelecções e dos conceitos
fundamentais da matemática aqueles esforços se deparavam também com as difíceis
perguntas do método e da teoria matemática. Aquilo que deveria aparecer
transparente e facilmente compreensível segundo as representações da lógica
tradicional ou em todo o caso da lógica reformada, a saber, a essência racional da
ciência dedutiva com sua unidade formal e metódica simbólica, se me apresentou, no
estudo das ciências dedutivas efetivamente dadas, obscuro e problemático” 4. Na
tentativa de esclarecer a lógica e o lógico é que Husserl irá descobrir um método de
investigação filosófico, que ele vai chamar de fenomenologia.

4
E. Husserl, LU, vol. I, V. No primeiro volume das Investigações Lógicas, Husserl participa do debate
filosófico daquele tempo a respeito do psicologismo. Não podemos, aqui, na brevidade deste curso, expor
este debate e também a participação de Husserl nele. Apenas damos umas poucas indicações. As questões
fundamentais acerca da matemática tinham conduzido Husserl às questões fundamentais acerca da lógica,
tanto num âmbito como no outro ele não encontrara clareza, não obstante todo o respeito de que estas
duas ciências gozavam no contexto das demais ciências, às quais eram apresentadas como modelo de
rigor e de clareza. Husserl, pouco a pouco, fora conduzido aos problemas da teoria do conhecimento e da
lógica em geral. Inicialmente, o caminho que ele percorre para a solução destes problemas é aquele que
então era o mais trilhado, ou seja, aquele que busca uma aproximação às questões da lógica a partir da
abordagem psicológica: “eu parti da convicção reinante de que a psicologia era aquela da qual a lógica em
geral, assim como a lógica das ciências dedutivas, deveria esperar seu esclarecimento filosófico”. Mas tal
procedimento apareceu desde o princípio limitado e duvidoso: “onde se tratava da pergunta pela origem
das representações matemáticas ou da configuração do método prático, que de fato era determinado
psicologicamente, a execução da análise psicológica me parecia clara e instrutiva. Assim que, porém, se
efetuasse uma passagem do contexto psicológico do pensamento à unidade lógica do conteúdo pensado (à
unidade da teoria), não se deixava vir à tona nenhuma reta continuidade e clareza. Tanto mais daí me
inquietava também a dúvida de princípio sobre como a objetividade da matemática e de toda ciência em
geral fosse compatível com uma fundamentação psicológica do lógico”. Husserl pouco a pouco será
constringido a abandonar o caminho dominante do psicologismo e a tomar a direção de “reflexões gerais
de caráter crítico sobre a essência da lógica e sobretudo sobre a relação entre a subjetividade do
conhecimento e a objetividade do conteúdo do conhecimento”. Inicialmente as investigações lógicas
aparecem, portanto, como a tentativa de uma nova fundação da lógica pura e da teoria do conhecimento.
O caminho que Husserl tomará para esta nova fundação partirá da crítica ao caminho que até então era
dominante e que ele mesmo havia trilhado, isto é, o caminho do psicologismo. A crítica do psicologismo
seria, portanto, antes de tudo uma crítica das suas próprias tentativas anteriores e uma compreensão de
suas aporias, juntamente com uma crítica do método dominante de abordar a fundamentação da lógica e
das demais ciências, o método de esclarecer logicamente as ciências dadas através de análises
psicológicas. Neste sentido, a sua crítica do psicologismo remete ao dito de Goethe por Husserl mesmo
recordado: “Man ist gegen nichts strenger als gegen erst abgelegte Irrtümer” (Nunca se é mais rigoroso
contra alguma coisa do que contra os erros que se acabou de deixar).

5
Nos “Prolegômenos”, Husserl chama em causa o princípio, o motivo condutor,
da investigação fenomenológica. Discutindo contra o relativismo (que seria uma das
consequências do psicologismo), Husserl diz: “a ilusão (Täuschung) desaparece assim
que, em vez de se argumentar genericamente, se dirige às coisas mesmas (an die
Sachen selbst)”5. Faz aparição, assim, aquela expressão que deveria se tornar a máxima
da própria investigação fenomenológica: “zu den Sachen selbst!” (às coisas mesmas!).
A investigação filosófica procura verificar se a obviedade dos fundamentos de uma
teoria, doutrina ou ciência é uma evidência originária ou apenas um prejulgamento
irrefletido. Tal investigação é, por conseguinte, enquanto sondagem dos fundamentos,
das pressuposições fundamentais, a busca positiva das coisas mesmas, isto é, do
âmbito fundamental onde o pensamento possa fazer a experiência da autodoação das
coisas em questão no modo da aparição originária das mesmas.

“Coisa” (Sache) significa, aqui, aquilo que está em questão e em discussão, seja
o que for... Não é necessariamente “Ding”, isto é, uma coisa no sentido físico-material
do termo, uma coisa da natureza (Naturding) ou uma coisa de uso (Gebrauchsding),
um artefato humano... Quer dizer: “Sache” tem uma significação ampla, que pode
significar também “Ding” (embora também a significação de Ding varia na sua
envergadura, podendo significar qualquer coisa, ou uma coisa físico-material, da
natureza ou da arte). A palavra “Sache” soa em latim como “res” ou “causa”. Coisa é o
que está em causa, isto é, aquilo que concerne ao humano, que é do seu interesse (cf.
a expressão: “coisa nossa”). O significado originário de “Sache”, em alemão, diz o que
está em causa num litígio, o que está em disputa. É o motivo da disputa. Neste sentido,
“ir às coisas mesmas” quer dizer: ir ao que está em causa numa discussão, numa
investigação compartilhada. Num segundo lugar, “Sache”, coisa, significa o que está
em causa como uma tarefa de alguém (cf. o uso: “isso é coisa para um encanador”). A
coisa é, além disso, um ensejo, uma ocasião, uma oportunidade para uma ação. É
neste sentido que os gregos usavam a palavra “prágma” para “coisa”, o que remete a
“práxis”, ação (Handlung). A coisa é o que enseja uma lida, uma ocupação, um
trabalho, uma ação. “Sache” (coisa) pode significar também um feito, um fato, um
acontecimento, um evento. Outro significado, ainda, de “Sache”, coisa, é o de “causa”
(Ursache) e de fundamento (Grund) de algo, de um estado de coisas (Sachverhalt), de
5
E. Husserl, LU, vol. I, 155.

6
um fato (Tathandlung), etc. – o seu porquê. Por fim, a coisa é “aquilo de que se trata”
num tratamento (Behandlung) teorético, é o tema e a questão de um tratado, por
exemplo. É o que está em discussão (Erörterung). É neste sentido que Husserl usa a
palavra “Sache” (coisa) em “Zu den Sachen selbst” (às coisas mesmas).

As palavras “fenomenologia” e “fenomenológico” aparece no título do segundo


volume das “Investigações Lógicas”, que contém um número de seis distintas
investigações e que apareceu no ano de 1901 com o título “Elemente einer
phänomenologischen Aufklärung der Erkenntnis” – Elementos de um esclarecimento
fenomenológico do conhecimento6. Ele é divido em duas partes. A primeira parte é
intitulada “Untersuchungen zur phänomenologie und Theorie der Erkenntnis”
(Investigações para uma fenomenologia e teoria do conhecimento) e contém cinco
investigações. Mas, atenção, o que Husserl chama de “teoria do conhecimento” aqui
não tem absolutamente nada a ver com o ato de explicar (Erklären), seja no sentido
das ciências empírico-indutivas7, seja naquele das ciências formais-dedutivas 8. Não se
trata de explicar (Erklären), mas sim de esclarecer (Aufklären). No caso do segundo
volume das Investigações Lógicas, o que está em causa é esclarecer o fenômeno do
conhecimento:

Com esta teoria das teorias, a teoria formal que as


esclarece jaz antes de toda teoria empírica; portanto, antes de

6
No ano de 1913 – isto é, no mesmo ano em que Husserl publicou no “Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung” (Anuário para filosofia e investigação fenomenológica) o seu escrito
intitulado Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (Idéias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica), no qual ele procura tematizar de um modo
mais explícito, desenvolvido e completo o sentido, o método e a envergadura filosófica da fenomenologia
– neste mesmo ano, pois, Husserl deu procedimento a uma nova edição, revisada e essencialmente
melhorada, do primeiro volume e da primeira parte do segundo volume, contendo todas as Investigações,
com exceção da Sexta Investigação que, segundo ele, já estaria em boa parte em vias de impressão e que
deveria vir à luz em uma forma radicalmente reelaborada. Mas é somente no ano de 1920 que Husserl,
cedendo às pressões dos “amigos da presente obra”, decide publicar de novo, porém na sua antiga forma,
esta Sexta Investigação, a qual, segundo o próprio Husserl, seria a mais importante em relação à
fenomenologia.
7
“Segundo a nossa concepção a teoria do conhecimento, propriamente falando, não é nenhuma teoria
(Theorie). Ela não é uma ciência, no sentido pregnante de uma unidade proveniente de uma explicação
teorética. Explicar, no sentido da teoria (Erklären im sinne der Theorie), é o ato de fazer
conceitualmente compreensível o particular a partir de uma lei geral, e esta última, de novo, a
partir da lei fundamental. No campo dos fatos, trata-se nisto de conhecer que aquilo que acontece sob
dadas colocações de circunstâncias, acontece necessariamente (notwendig), isto é, segundo leis naturais
(Naturgesetzen)”.
8
“No campo do apriori, de novo, trata-se de apreender conceitualmente a necessidade (Notwendigkeit)
das relações específicas de grau inferior a partir das necessidades gerais mais abrangentes e, em última
instância, a partir das leis de relações as mais primitivas e gerais, que nós chamamos de axiomas” E.
Husserl, LU, vol. II/1, 20-21.

7
toda ciência real explicativa (vor aller erklärender
Realwissenschaft), antes, de um lado, da ciência física da
natureza, de outro, antes da psicologia, e naturalmente
também antes de toda metafísica. Ela não quer explicar
(Erklären), em sentido psicológico ou psicofísico, o
conhecimento, isto é, o evento factual situado na natureza
objetiva; mas sim esclarecer (Aufklären) a idéia do
conhecimento segundo os seus elementos constitutivos,
respectivamente, segundo as suas leis9.

Fenomenologia aparece, assim, como o esclarecimento da ideia, isto é, da


essência, dos elementos constitutivos de um fenômeno. O “lógos” do fenômeno é,
pois, a sua estrutura estruturante, o que o constitui, a sua essência ou ideia.
Fenomenologia é o exercício de uma intelecção, de uma visão penetrante, da essência
do fenômeno que está em causa. Ora, o fenômeno em causa nas Investigações Lógicas
é a lógica, ou melhor, o lógico (isto que a lógica estuda). Nessas Investigações,
portanto, Husserl se propõe investigar a essência dos modos de conhecimento que
entram em questão no exercício da lógica. Trata-se, portanto, de um Einsicht in das
Wesen, de um saber olhar e ver aquilo que de essencial se mostra. Ele diz:

Eu pressuponho que não se queira contentar-se com a


formação da lógica pura no simples modo de nossas disciplinas
matemáticas como um sistema de proposições que cresce na
direção de uma validade ingenuamente objetiva (in naiv-
sachlicher Geltung), mas que, unido a isto, se aspire à clareza
filosófica (philosophische Klarheit) no tocante a estas
proposições, isto é, a uma intelecção que se dirija seja para
dentro da essência (Einsicht in das Wesen) dos modos de
conhecimento que entram em jogo na efetuação e nas
aplicações idealmente possíveis de tais proposições, seja da
essência das validades objetivas e doações de sentido que
essencialmente se constituem com estes modos de
conhecimento10.

As Investigações Lógicas não apresentam uma unidade literária rigorosa, de


modo a poder ser lida como um único livro, no sentido meramente literário. No
entanto, do ponto de vista temático, elas apresentam uma unidade intrínseca
enquanto uma obra constituída de uma cadeia de investigações que, intimamente
concatenadas, remetem umas às outras e, desta forma, se ligam reciprocamente.
Como acena Husserl, nesta concatenação de investigações dá-se “um constante

9
E. Husserl, LU, vol. II/1, 21.
10
E. Husserl, LU, vol. II/1, 2-3.

8
ascender (ein beständiges Emporsteigen) de um nível (Niveau) inferior a um superior,
um trabalhar que se eleva (ein sich Emporarbeiten) rumo a sempre novas intelecções
(Einsichten) lógicas e fenomenológicas, as quais não deixam de todo intactas aquelas
que foram conquistadas precedentemente”11. Também Heidegger, grande admirador e
“amigo” desta obra, observa que “insólito e totalmente contra a maneira usual de
filosofar é o modo de penetração (Durchbringung) e de apropriação (Aneignung) que
esta obra exige. Ela tem um andamento de investigação contínuo; requer uma
presentificação (Vergegenwärtigung) intuitiva explícita, feita passo a passo, e uma
atestação (Ausweisung) que controle aquilo de que se trata” 12. Se tal é o caso é
pertinente a indicação do mesmo Heidegger de que “caso não se queira inverter todo
o sentido das Investigações, não se pode, portanto, simplesmente extrair os resultados
e encaixá-los em um sistema, mas a tendência visa a uma elaboração ininterrupta,
concomitante e compenetrante das coisas tratadas” 13. Com outras palavras, “jaz na
essência das Investigações Lógicas, que elas não possam ser referidas abreviadamente,
mas devam ser cada vez repetidas e percorridas. Toda indicação aproximada do
conteúdo da obra seria, falando fenomenologicamente, uma incompreensão”14.

As Investigações Lógicas são exercícios de uma fenomenologia da lógica. Esta


procura trazer à clareza as “coisas mesmas” da lógica. Quer dizer: ela se propõe “... em
geral, uma vez, tematizar os objetos, com os quais a lógica se ocupa, de tal modo que
uma pesquisa referida a isso, seja posta na possibilidade de trabalhar realmente junto
das coisas em causa – que os objetos específicos desta disciplina sejam trazidos a uma
intuição específica, que os demonstre (ausweisende Anschauung)15. É assim que, no
interior da dinâmica das Investigações Lógicas, surge a fenomenologia enquanto um
método, isto é um modo de tratamento, essencialmente filosófico, de questões
fundamentais, o qual, enquanto tal, não é nem lógica nem psicologia, embora irrompa
historicamente no contexto de uma discussão que envolvia a relação problemática
entre estas duas ciências.

11
E Husserl, LU, vol I, XII.
12
Heidegger, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (GA 20). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 32.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
15
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 50. Ausweisen significa indicar, demonstrar, no sentido de deixar e fazer ver.

9
Também a lógica, enquanto ciência formal de caráter matemático, não pode
prescindir da fenomenologia. É justamente a fenomenologia que “abre (erschliesst) as
‘fontes’ (Quellen) das quais ‘jorram’ (entspringen) os conceitos fundamentais e as leis
ideais da lógica pura”16. Somente através de uma análise fenomenológica é que a
lógica ganha rigor e clareza:

Nós não queremos absolutamente nos dar por


satisfeitos com ‘meras palavras’ (mit ‘blossen Worten’), isto é,
com um entendimento meramente simbólico das palavras,
assim como temos antes de tudo em nossas reflexões sobre o
sentido das leis, que são apresentadas na lógica pura, sobre
“conceitos”, “juízos”, “verdades” e assim por diante, com todas
as suas variadas especificações. Significações que são animadas
só por intuições longínquas, confusas e impróprias, quando são
ao menos intuições, não podem nos bastar. Nós queremos
voltar às ‘coisas mesmas’ (Wir wollen auf die ‘Sachen selbst’
zurückgehen). Nós queremos trazer à evidência, junto a
intuições plenamente desenvolvidas, que isto que aqui se dá
em abstração atualmente efetuada seja verdadeiramente e
realmente aquilo que os significados das palavras, na
expressão de uma lei, intencionam. E do ponto de vista da
prática do conhecimento nós queremos despertar em nós a
disposição de manter firmes os significados em sua irremovível
identidade, através de uma medição, suficientemente
repetida, junto a intuições reproduzíveis (respectivamente,
junto à efetuação intuitiva da abstração)… Através da
especificação dos conceitos confusos e da modificação
oportuna da terminologia, nós conquistamos então também a
desejada ‘clareza e nitidez’ (Klarheit und Deutlichkeit) das
proposições lógicas”17.

Fenomenologia, portanto, é um modo de exercer a prática do conhecimento.


Aqui Husserl caracteriza este modo com algumas indicações elementares: não se
satisfazer com palavras, mas estar atento às suas significações; pôr a prova até que
ponto e em que medida estas significações estão plenas de intuições. Fenomenologia
é, assim, o empenho de ver, de captar em intuições aquilo de que se trata, e tudo isso,
numa perspectiva de intelecção da ideia, da essência, da estrutura estruturante do
fenômeno em causa.

A linguagem (die Sprache) constitui o ponto de partida das Investigações


Lógicas como um todo18. Esta não é entendida somente como o meio, no sentido de
16
E. Husserl, LU, vol. II/1, 3.
17
E. Husserl, LU, vol. II/1, 5-6.
18
Cfr. E. Husserl, LU, vol. II/1, 1.

10
um instrumento de fundamental importância para a lógica, como chegou a reconhecer
John St. Mill, mas como o medium, isto é, o elemento no qual se movem
primordialmente as questões da lógica e que perfaz, permeia, os seus objetos. Antes
de tudo há que se realizar uma análise fenomenológica da linguagem. A lógica, porém,
se aproxima da linguagem, vendo-a antes de tudo como evento de expressão. Mas
aquilo que está em jogo em toda expressão enquanto tal é o seu significado. A relação,
portanto, entre expressão e significado constitui o ponto de partida destas
Investigações.

A lógica, segundo a tradição, tem como tema:


conceito, juízo, conclusões. São algo que se dá ao modo de
significação (etwas Bedeutungsmässiges), que está em
conexão com a expressão linguística (sprachlichen Ausdruck),
que não é algo acidental (Zufälliges). Com efeito, todo pensar e
conhecer, toda pesquisa teorética, sedimenta-se em
“enunciados” (Aussagen)19.

“Expressão e significação” é o tema da primeira Investigação. Para Husserl,


expressões são signos significativos, distintos dos signos indicativos. Numa descrição
fenomenológica da expressão dotada de sentido se podem evidenciar três momentos,
que, no entanto, formam uma unidade intimamente fundida: a aparição física da
expressão, o ato doador de sentido e o ato preenchedor de sentido. Assim, palavras e
proposições são sons articulados animados de sentido. Às expressões são essenciais os
atos que conferem a significação, respectivamente, as intenções de significação. A
estes atos se acrescentam, de modo extra-essencial, os atos que preenchem as
significações, confirmando, reforçando, ilustrando as intenções de significação. Para
que o signo se torne expressão é preciso que lhe seja imposto uma significação.
Husserl fala de emprestar significação, de conferir sentido. Expressões são unidades de
signos e designados (sinais e assinalados) de espécie bem peculiar. Expressões são
sinais significativos. A significação adere ao ato significativo. Com a expressão, que
suscita o ato que confere o sentido, nos orientamos ao objeto. À expressão compete
ter uma significação; na significação é que se constitui a relação com o objeto. “Toda e
qualquer expressão não quer apenas dizer qualquer coisa, mas também diz algo
acerca de qualquer coisa; ela não tem apenas a sua significação, mas refere-se

19
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 53.

11
também a quaisquer objetos”. Assim, significação e referência objetiva se distinguem.
Expressões podem ter a mesma significação, mas objetos diferentes, por um lado, e,
por outro, podem ter significações diferentes, mas o mesmo objeto. Assim,
considerando dois enunciados: “este sendeiro é um cavalo” e “Bucéfalo é um cavalo”,
a expressão um cavalo tem a mesma significação, mas os objetos são diferentes. Por
sua vez, dois nomes podem significar coisas diferentes, mas nomear o mesmo, como
no exemplo: “O vencedor de Iena - O vencido de Waterloo”. Significação e referência
objetiva, no entanto, estão em íntima conexão. A expressão se refere ao objeto por
meio da significação. Uma expressão adquire um referência ao objeto pelo simples
fato de que esta significa algo. Por isso é que dizemos que uma expressão designa ou
denomina algo por meio do seu significado, ou seja, o ato de significar é o modo
determinado de intencionar o objeto em questão, só que justamente este modo de
intencionar, e, portanto, o significado mesmo, pode variar enquanto permanece
idêntica a direção para o objeto. Se considerarmos, pois, os três momentos que se
fundem numa unidade na expressão temos aquilo que, de modo equívoco, se chama o
expressado da expressão. “Os termos em relação – manifestação, significação e
objeto – pertencem essencialmente a toda e qualquer expressão. Em cada uma,
qualquer coisa é manifestada, qualquer coisa é significada e qualquer coisa é nomeada
ou de algum modo designada. E, no discurso equívoco, tudo isto se diz ‘expresso’”.

A idealidade da significação é o tema da segunda Investigação. O psicologismo,


como em geral o naturalismo, é cego para as ideias e a idealidade 20. Husserl retoma
um ensinamento de Brentano, a saber, de que significação (Bedeutung) é, em face à
multiplicidade dos possíveis atos de significação, que podem apreendê-la, uma
unidade ideal (ideale Einheit), uma “species”, contraposta a individualidades concretas
(atos)21. Assim, Husserl concebeu a significação ideal (ideale Bedeutung) como gênero
para as individualidades dos atos que, a cada vez, visam esta significação. Para se falar
de ideia, idealidade, “species”, é preciso realizar uma teoria da abstração. Husserl
retoma uma teoria da abstração que tem influências de Brentano e, de quebra, da
escolástica medieval. Abstrair significa, aqui, prescindir dos elementos individuantes e
individuais da coisa e tomar em consideração o seu tipo, isto é, o seu modo de ser
20
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 67
21
Idem, p. 54.

12
específico. Assim, nesta investigação trata-se somente de “aprender a ver idéias
(Ideen) junto a um tipo (Typus), representado como por exemplo pela idéia
“vermelho”, e fazer clara para si a essência de um tal ver” 22. Na introdução a esta
investigação, Husserl diz:

A relação entre o significado e a expressão que o


significa, respectivamente, e sua coloração significativa é o
mesmo tipo de relação que se dá entre a espécie ‘vermelho’ e
o objeto vermelho da intuição, respectivamente, e o momento
‘vermelho’ que neste se manifesta. Na medida em que nós
intencionamos (meinen) o vermelho in specie, se nos manifesta
um objeto vermelho, e neste sentido nós dirigimos o olhar
para ele ( que nós, todavia, não intencionamos). Ao mesmo
tempo neste objeto se apresenta o momento “vermelho” e do
mesmo modo também aqui nós podemos de novo dizer que
dirigimos o olhar para ele. Mas também este momento, este
traço particular individualmente determinado, nós não o
intencionamos… Enquanto se manifesta o objeto vermelho e,
nele, o momento “vermelho” salientado, nós intencionamos
muito mais o único e idêntico vermelho, e nós o intencionamos
em um modo de consciência de novo gênero, através do qual
justamente se nos torna objetual a espécie em vez do
individual. Podemos transferir, portanto, aquilo que
corresponde neste exemplo, ao significado em sua relação com
a expressão e com o seu significar, indiferentemente se esta é
referida à intuição correspondente ou não”23.

A terceira e a quarta Investigações Lógicas continua aprofundando os


problemas que se dão na esfera do tema “expressão e significação”, com vistas a
preparar as possibilidades de uma “gramática pura”, isto é, não empírica. Elas entram,
com nisso, no cerne da relação entre pensamento e linguagem. A expressão articula
sempre distinções lógicas que se mantém intimamente relacionadas com as distinções
gramaticais operadas no interior de uma língua natural (isto é, que pode ser falada no
acontecimento da conversão humana), graças a um paralelismo entre pensamento e
palavra. É neste momento que Husserl acena para uma distinção que será capital
depois, a saber, entre significação vaga (sem intuição) e significação plena (de
intuição). Ele diz:

Uma vez que subsiste uma propensão natural a buscar


atrás de cada diferença gramatical expressa uma diferença
lógica, em consequência do tosco ir junto de distinções verbais

22
Cf. o que falamos acima sobre ideia e ideação.
23
E. Husserl, LU, vol. II/1, 106-107.

13
e mentais e sobretudo também de formas de palavras e
formas de pensamento, assim se torna, do ponto de vista
lógico, uma importante oportunidade, trazer à claridade
analítica a relação entre expressão e significado, e reconhecer
na regressão do significar vago para o significar
correspondentemente articulado, claro, saturado com a
plenitude do ver exemplificativo no qual este encontra a sua
plenificação, o meio através do qual a pergunta se uma
distinção deva valer como uma distinção lógica ou meramente
gramatical, em cada caso dado, pode ser decidida24.

Aqui Husserl ressalta a importância do “ver exemplificativo”. No método


fenomenológico este ver é essencial. É preciso sempre de novo pôr à prova o discurso
confrontando-o com o que se dá e se mostra intuitivamente, isto é, o que se deixa ver,
atestar. Depois do binômio “expressão e significação”, torna-se importante o binômio
“intenção significante” e “plenificação (ou preenchimento, cumprimento) de
significação”. Entre estes quatro elementos Husserl encontra uma relação
fenomenológica essencial:

Somente uma plena clarificação da relação


fenomenológica essencial (des phänomenologischen
Wesensverhältnis) entre expressão (Ausdruck), significação
(Bedeutung), intenção significante (Bedeutungsintention) e
plenificação de significação (Bedeutungserfüllung) pode
proporcionar-nos a posição intermédia segura e trazer a
relação entre análise de significação e análise gramatical à
clareza exigida (zur erforderlichen Deutlichkeit)25.

As significações ideais se dão para e nos atos, isto é, na realização subjetiva de


atos de significar, vale dizer, em vivências concretas. Nos atos de significação
(Bedeutungsakten), se deixam constatar: 1) atos nos quais tem lugar um compreender
vazio (ein leeres Verstehen); 2) mas tal compreender da significação pode se elaborar,
de modo a transformar-se num compreender que está orientado para o estado de
coisas ou conjuntura visada mesma (vermeinten Sachverhalt selbst) e, assim, torna-se
preenchida, plenificada (erfüllt) por ela.

“Intencionar vazio e plenificação de significação são atos”26. Mas, o que significa


“ato”? Nas Investigações lógicas, atos são idênticos com vivência intencional

24
E. Husserl, LU, vol. II/1, 13-14.
25
E. Husserl, LU, vol. II/1, 14.
26
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 54.

14
(intentionalen Erlebnis). Intencionais são as vivências na medida em que se dirigem a
algo (sich auf etwas richten). Nas Investigações Lógicas, Husserl mantinha a identidade
entre atos e vivências intencionais. Mais tarde, porém, Husserl dirá que há vivências
intencionais que não são atos. São as assim chamadas vivências de fundo
(Hintergrunderlebnisse). Atos são uma espécie de vivências intencionais. São aquelas
vivências intencionais que são caracterizadas pelo ego-cogito explícito.

Das “vivências intencionais e seus ‘conteúdos’” trata a quinta Investigação.

Aos significados in specie correspondem os atos de significar. “As significações


(Bedeutungen) devem jazer em intenções significantes (in Bedeutungsintentionen) que
podem entrar em uma certa relação para com a intuição” 27. Uma intenção significante
alcança a sua forma mais elevada de evidência (Evidenz) através da plenificação
(Erfüllung) que se dá junto a uma intuição (Anschauung).

As vivências (Erlebnisse) do significar devem ser ‘atos’


(Akte) e aquilo que tem o caráter de significado (das
Bedeutungsmässig) em cada ato particular de significar deve
justamente residir na vivência do ato (im Akterlebnis) e não no
objeto (im Gegenstande): isto deve jazer naquilo que o faz uma
vivência ‘intencional’ (‘intentionale), ‘dirigida’ (gerichtete) ao
objeto”28.

Os problemas desta investigação versam em geral sobre o conceito


fenomenológico de consciência (Bewusstsein) que deve ser diferenciado do conceito
psicológico, o conceito fenomenológico de vivência (Erlebnis) que também deve ser
distinguido do conceito vulgar, a caracterização essencial da consciência como vivência
intencional (als intentionales Erlebnis); o modo de ser do objeto intencional e do ato; o
conceito de representação; a doutrina do juízo. Há que se notar que o que Husserl tem
em mente é realizar uma fenomenologia pura das vivências em geral, da qual faz parte
a fenomenologia pura das vivências do pensamento e do conhecimento; essa

tem a ver exclusivamente com as vivências que podem


ser apreendidas e analisadas na pura universalidade da
essência (in reiner Wesensallgemeinheit), não com vivências
empiricamente passíveis de apercepção enquanto fatos reais,
como vivências de homens ou animais que vivenciam alguma
coisa em um mundo fenomênico, posto como fato da

27
E. Husserl, LU, vol. II/1, 343.
28
E. Husserl, LU, vol. II/1, 344.

15
experiência. Ela traz descritivamente à pura expressão, em
conceitos de essência e em enunciados de essência que são
dotados do caráter de lei, as essências diretamente
apreendidas na intuição da essência (Wesensintuition), bem
como as conexões que se fundam puramente nas essências29.

O terceiro volume das Investigações Lógicas traz a sexta Investigação,


culminância de todo este movimento investigativo.

Esta investigação, fenomenologicamente a mais importante, trata antes de


tudo de conceitos gerais, como aqueles de significação (Signifikation) e de intuição
(Intuition); além disso, aprofunda a análise, que é fundamental para o esclarecimento
do conhecimento, das diversas espécies de intuição (Anschauung). A investigação
adentra também no âmbito de problemas referentes a uma fenomenologia dos graus
do conhecimento (phänomenologie der Erkenntnisstufen).

Neste contexto são importantes os conceitos de apreensão (Auffassung) e de


representância (Repräsentation). Se discute, além disso, a questão da evidência
(Evidenz) e da verdade (Wahrheit). A evidência é o conhecimento no sentido pregnante
do termo. É na evidência que se realiza a verdade, enquanto concordância
(Übereinstimmung) entre intentio e intentum, a “adaequatio rei ac intellectus”. A
investigação analisa ainda os diversos conceitos de verdade, bem como de não-
verdade, em particular, de absurdidade. Mas a principal descoberta desta investigação
consiste na diferença entre intuição sensível (sinnliche Anschauung) e intuição
categorial (kategoriale Anschauung).

Para Husserl é verdade que todo o conhecimento começa com os sentidos, mas
isto não significa que todo o conhecimento se opere segundo os sentidos. Todo ato ou
é uma representação ou se funda sobre uma representação. Os atos sensíveis
(sinnliche Akten) são representações; os atos categoriais (kategoriale Akten), por sua
vez, se fundam sobre representações.

Em geral a plenificação intuitiva (intuitive Erfüllung),


portanto também a imaginativa (imaginative), dos atos
categoriais se fundam em atos sensíveis. Porém, nunca a mera
sensibilidade pode oferecer plenificação (Erfüllung) a intenções
categoriais, mais exatamente, a intenções que incluem formas
categoriais; antes, a plenificação jaz cada vez em uma
29
E. Husserl, LU, vol. II/1, 2.

16
sensibilidade que recebeu forma através de atos categoriais.
Ligado a isto está um absolutamente imprescindível
alargamento dos conceitos, originariamente sensíveis, de
intuição (Anschauung) e percepção (Wahrnehmung), o qual
permite de se falar de intuição categorial (kategoriale
Anschauung) e, em especial, de intuição geral (allgemeine
Anschauung)30.

As Investigações Lógicas tiveram uma recepção variada da parte dos diversos


pensadores da época e nem sempre foi compreendida no seu sentido genuíno e
apreendida na sua tendência de fundo.

Dilthey foi o primeiro que reconheceu o significado central das Investigações


Lógicas. “Ele caracterizou estas investigações como o primeiro grande progresso na
filosofia deste a ‘Crítica da razão pura’ de Kant”31. Na verdade, não é casual esta
opinião de Dilthey. Nestas investigações a fenomenologia começa a se pôr em
movimento como uma investigação crítica da razão humana, ou seja, como uma
investigação dos conceitos e das estruturas fundamentais, das fontes e dos limites da
racionalidade humana. Nas Investigações Lógicas a filosofia, enquanto fenomenologia
do lógico em geral na sua logicidade pura e da ciência em geral na sua cientificidade
pura, aparece como a tentativa da razão de clarear a si mesma através de si mesma 32.
Nesta tentativa de esclarecimento do conhecimento (Aufklärung der Erkenntnis) a
própria racionalidade científica é evidenciada nos seus pressupostos e nas suas
condições, não somente reais, mas sobretudo ideais de possibilidade. A razão teorética
e científica aparece como enraizada no chão fecundo e enigmático, vasto e originário,
do pensamento e da linguagem, um terreno difícil de ser sondado, caracterizado por
uma inesgotável riqueza de nuances e de configurações multifacetárias, isto é, para
dizer com a terminologia de Pascal: o esprit de géométrie aparece enraizado no chão
do esprit de finesse.

Natorp, neokantiano da Escola de Marburgo, dedicou uma grande recensão


somente ao primeiro volume da obra, aos Prolegômenos para uma lógica pura, onde o
psicologismo é submetido a uma crítica cerrada. Mas ele nota que para os filósofos
daquela escola a obra trazia pouca novidade. Husserl dizia apenas aquilo que eles já há

30
E. Husserl, LU, vol. II/2, 5- 6.
31
M. Heidegger, PGZ, 30.
32
Cfr. H. Rombach, Phänomenologie des gegenwärtigens Bewusstseins, 19.

17
muito tempo sabiam. Nenhuma atenção foi dedicada ao segundo volume, aquele
decisivo. Para ele, o que se tornou uma opinião corrente, no segundo volume Husserl
teria dado lugar a uma recaída no psicologismo, naquilo contra o qual ele lutara
tenazmente no primeiro volume33.

Na verdade, o próprio Husserl dera margem a esta má interpretação quando,


na introdução do segundo volume, em 1901, dissera que a fenomenologia era
psicologia descritiva. Observa Heidegger que naquele momento Husserl “não era ainda
em condições de dar-se conta daquilo que de fato ele apresentara” ao público 34. As
Investigações Lógicas apresentava algo de novo, que não podia ser medido com os
parâmetros da filosofia da época e que somente pouco a pouco é que foi ficando claro
para o próprio Husserl e para os seus discípulos e companheiros no método da
investigação fenomenológica. Em 1903, porém, na revista “Archiv für systematische
Philosophie” (Arquivo para filosofia sistemática), Husserl retrata-se em relação a esta
autointepretação inganadora que caracterizava a fenomenologia como psicologia
descritiva. A descrição analítica fenomenológica das vivências é exatamente o oposto
da descrição psicológica efetuada com base na percepção interior (innere
Wahrnehmung), a qual está no mesmo plano das descrições das ciências naturais,
baseadas na percepção exterior. Nesta recensão Husserl diz que as descrições
fenomenológicas “não concernem às vivências o a classes de vivências de pessoas
empíricas; essa de fato não sabe e não presume nada de pessoas…, de vivências
minhas ou de outros; sobre coisas deste gênero essa não põe perguntas, não tenta
definições, não faz hipóteses”. Com outras palavras, da descrição fenomenológica das
vivências “ficam completamente excluídas todas as interpretações transcendentes das
datidades imanentes (alle transzendierenden Deutungen der immanenten
Gegebenheiten), também como ‘atividades e estados psíquicos’ do eu real”35.

I.1.2.1.1. O ato ou a vivência intencional como fenômeno em sentido primordial,


pleno e próprio. A intencionalidade.

33
Cfr. M. Heidegger, PGZ, 31.
34
M. Heidegger, PGZ, 31.
35
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, XIII-XIV.

18
No horizonte das Investigações Lógicas, fenômeno é fundamentalmente o
aparecer ou vir à luz do ato ou vivência (Erlebnis) da consciência, em sua
intencionalidade36. Em segundo, lugar, fenômeno é o que, nesse aparecer da vivência
intencional se apresenta, se exibe (o objeto intencional). Nós, usualmente, tendemos a
entender por fenômeno antes de tudo ou quiçá exclusivamente isso que aparece e se
exibe para a consciência a modo de objeto. Mas é importante dar-nos conta de que,
para a fenomenologia husserliana, fenômeno, prioritariamente, é o próprio ato ou
vivência da consciência, na qual e para a qual os objetos intencionais se dão, se
mostram, vêm à luz. Sem a claridade da consciência intencional não se dá nenhum
outro fenômeno.

Falamos de “ato” e de “consciência intencional” e entendemos “ato” como


“consciência intencional”. A palavra ato (Akt) não significa propriamente uma
atividade (Betätigung), uma operação da consciência ou do eu enquanto sujeito
empírico. Tal modo de entender falsificaria a impostação fenomenológica através de
uma interpretação psicológica dúbia, uma vez que traria consigo a pressuposição
inquestionada do esquema epistemológico sujeito-ato-objeto. Aqui há de se entender
ato simplesmente como sinônimo de vivência intencional e, em vez de entender esta
vivência como uma ocorrência que se dá “dentro” de um sujeito que, supostamente,
sairia de si e entraria em relação com um objeto, que está “fora” dele, há de se
entender a vivência como o dado originário da vida intencional ela mesma, como a
referência da consciência ao objeto que, nela, se apresenta, se exibe.

Todo ato, enquanto vivência de consciência, visa a algo, cada vez de um modo
específico. Assim, por exemplo, o ato de perceber, o ato de imaginar, o ato de
recordar, o ato de esperar, o ato de julgar, o ato de amar, o ato de odiar, cada qual
tem um modo próprio de visar, isto é, de ter em mira, aquilo a que ele se dirige. Há,
pois, uma unidade entre a visada (o ter em mira) da consciência e o objeto visado (que
é tido em mira). Isso que é visado, a cada vez, é o objeto intencional. Pouco importa se
este objeto existe, se é fictício, ou mesmo se é absurdo. O que existe pode ser
36
O termo “vivência” é usado na tentativa de traduzir o étimo alemão “Erlebnis”. Este, por sua vez, é o
substantivo do verbo “erleben”, onde o prefixo “er-” corresponde a um outro prefixo, a saber, “ur-”, que
conota originariedade; por sua vez, “leben” significa “viver”: das Leben, substantivo, significa “vida”.
Usualmente se traduz erleben por vivenciar, o que dá a idéia de estar fluindo na experiência da vida.
Portanto, Erlebnis indicaria a espontaneidade da consciência, os diversos modos dela fluir na sua
experiência da vida.

19
somente o ato de visar e não o objeto (por exemplo, numa alucinação, num ato de
imaginar algo, no ato de pensar algo absurdo, etc.). O que existe pode também ser o
que é visado, o objeto intencional, como, por exemplo, quando, estando no eixo
monumental de Brasília, eu percebo a presença “em carne e osso”, corpórea, da
Catedral. Neste caso, tanto o objeto quanto o ato existem. Mas, essencialmente,
pouco importa se o objeto intencional existe ou não, para que o fenômeno primordial
do ato ou da vivência se dê.

A intencionalidade não é uma coordenação de vivências (tomadas como


estados anímicos, interiores) para com outras realidades (tomadas como coisas reais,
exteriores). Toda percepção é percepção de alguma coisa. Mas, o que diríamos da
alucinação, ou de uma ilusão? Não é, neste caso, um relacionamento real com um
objeto real. Mas, se nos atentarmos, veremos que a alucinação é uma percepção
presumida... de alguma coisa. Esta alguma coisa é um pretenso percebido. A
alucinação, bem como a ilusão, é um dirigir-se-a alguma coisa, ainda que nenhum
objeto real esteja de fato aí. Assim, a percepção nela mesma, independente se é
autêntica ou ilusória, ou alucinatória, é intencional. A percepção não extrinsecamente
intencional (no caso de haver um objeto real, físico, coordenado com a vivência
psíquica). Ela é naturalmente (essencialmente) intencional, em todo e qualquer caso,
seja que se trate de uma percepção autêntica, seja que se trate de uma percepção
ilusória. Somente porque a percepção é essencialmente um visar a, um dirigir-se-a, e
porque este visar ou dirigir-se-a é estrutural na vivência da percepção é que a ela pode
faltar um objeto real e, neste caso, configurar-se como uma percepção ilusória ou
como uma alucinação.

Intencionalidade, pois, não quer dizer uma relação entre algo psíquico (interior)
e algo físico (exterior). O ato ou vivência intencional nela mesma exibe a estrutura do
visar a, do dirigir-se-a. A vivência, aqui, não é tomado como um processo psíquico,
como um estado anímico não-intencional, ao qual se acrescenta uma relação com algo
físico, exterior. O ser-intencional não é um acréscimo a, algo acidental, que sobrevém
casualmente à vivência em questão (no caso, a percepção). Trata-se, antes, de algo
essencial, estrutural, para ela. O ser da vivência é um visar a, um dirigir-se-a. Para a
consciência, a datidade é essencialmente a mesma, quer o objeto representado exista

20
ou seja imaginado ou seja absurdo. Eu não me represento Júpiter de outro modo que
represento Tiradentes, a Torre de Babel de outro modo que me represento a Catedral
de Brasília.

Cada vivência intencional é uma forma de consciência-de-alguma coisa (do


objeto intencional). A palavra intenção diz que, nas vivências intencionais, um objeto é
intencionado, ou seja, que há um “tender” para a objetualidade no modo de ser cada
vez próprio da vivência ou do ato 37. Isso não quer dizer outra coisa, porém, que: se se
dá uma vivência determinada, eo ipso é dada também a sua objetualidade e o dar-se
desta objetualidade é de per se conforme ao modo de ser da vivência mesma. Dito de
outro modo: se se dá uma objetualidade, esta se dá sempre de imediato como
objetualidade peculiar de uma determinada vivência, ou seja, de um determinado
ato38. Não se dá primeiramente um ato, e só em seguida este ato tende para este ou
aquele objeto, ou seja, estabelece uma referência para com ele. Também não se dá
primeiramente uma objetualidade que, de repente e a partir de fora, é referida a uma
vivência, a um ato. O que se dá de modo primordial, num só golpe, como que a
constituir a vivência e a sua objetualidade, é a referência intencional, a intenção. Esta
referência é o que faz a vivência ser vivência desta objetualidade e não de uma outra,
ou ainda, é o que faz esta objetualidade ser objetualidade desta vivência e não de uma
outra. Assim, todo perceber é percepção de um percebido, como todo imaginar é
imaginação de um imaginado...; e, vice-versa, todo percebido é o percebido de uma
percepção e todo imaginado o é de um ato de imaginar. Sim, isto é, óbvio! Mas tentar
ver o que se dá no óbvio e como óbvio é o que é difícil...

Cada tipo de ato psíquico possui uma estrutura essencial pré-formada: é, cada
vez, um determinado tipo de referência intencional. Cada ato apreende o seu objeto
de modo diferenciado, todo próprio, o qual é pré-determinado em sua própria
estrutura. Com outras palavras, em cada tipo de ato está em jogo um tipo de
referência diferente e, em cada tipo de referência, o objeto é cunhado, moldado,
configurado de modo diverso. Assim, por exemplo, se eu caminho pela rua e vejo ao
longe uma pessoa que me vem ao encontro, sendo que, de início, aquela pessoa por
37
A palavra “intenção” deriva do latim “intentio”: segundo explicitação de Tomás de Aquino, “intentio,
sicut ipsum nomen sonat, significat ‘in aliud tendere’ (intenção, como o próprio nome diz, significa
‘tender para um outro’) (Summa theologica, I-II, q. 12, aa. I,5; q. 1, a. 2).
38
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 372-373.

21
mim vista me é estranha, é uma pessoa qualquer; se, em seguida, reconheço-a como
sendo um ex-colega de escola, por quem eu nutria uma forte estima; e se, no vai e
vem de uma conversa, percebo que aquela pessoa passou por uma transformação tal,
ao longo dos anos, que ela hoje se tornou desprezível por sua mediocridade, etc.;
então se dá, no fluxo das minhas vivências, tipos de referências diferentes, onde
aquela pessoa se me aparece cunhada, cada vez, numa outra configuração, no modo
de ser uma objetualidade cada vez outra. Quando ao longe apenas vejo aquela pessoa
que me vem ao encontro, aquela pessoa se me aparece como sendo uma pessoa
“apenas vista”. Quando a reconheço como sendo um ex-colega por quem eu nutria,
outrora, uma estima e um afeto de amigo, ela se me aparece como sendo uma pessoa
“amável, amigável”. A sua manifestação, como “apenas vista”, e a sua manifestação,
como “amável”, são bem diversas. De repente aquela pessoa se transforma diante de
meus olhos, o seu aparecimento, até então mais ou menos indiferente, se torna
significativo e importante: é o momento do reconhecimento, do reencontro. Eu
mesmo sou transformado neste encontro. Redesperta em mim aquela simpatia que
antes existia. Eu, que até agora era apenas um transeunte a mais a percorrer aquela
estrada, preocupado em chegar a tal ou tal lugar, agora sou um amigo a conversar com
outro amigo. Assim como cada vivência cunha, configura o objeto num perfil, cada vez
diferente, o faz aparecer, cada vez, num outro modo, assim também cada vivência
cunha o sujeito, o meu eu, numa disposição, cada vez, diferente: eu me altero, no
sentido literal da palavra, isto é, eu me torno, cada vez, outro, permanecendo eu
mesmo.

Continuando a explicitar o exemplo acima, quando eu me dou conta de que


aquela pessoa já não era a mesma, que ela estava mudada, que deixou de ser aquela
pessoa amável e se transformou, ao longo dos anos, numa pessoa medíocre, eu sou
então tomado de tristeza e passo a sentir por aquela pessoa um certo desprezo ou,
quiçá, uma certa piedade. De repente aquela pessoa se me aparece como desprezível
e digna de pena. E eu mesmo me altero, de amigo e próximo, torno-me alguém
distante, dissimulo minha ira ou então a manifesto abertamente. A minha ira, por sua
vez, pode se transformar até mesmo em ódio. E aquela pessoa, que era de início
apenas um “desconhecido” e depois era uma pessoa “amável” se transformou, diante

22
do meu olhar, em uma pessoa “odiável”. Não somente isto: eu mesmo me
transformei, bem como meu próprio olhar. Quando, ao meu olhar, um homem
“amável” se transforma num homem “odiável”, o que se dá não é o fato de que aquele
mesmo homem agora aparece numa outra luz, mas o fato de que aquele mesmo
homem se altera inteiramente, ele é totalmente re-configurado, sua aparição se re-
estrutura de ponta a cabeça, até nos seus traços mínimos. A sua fisionomia, o seu
olhar, a sua mão, a sua roupa, a sua voz, tudo que nele, antes, era-me amável, agora
se me parece odiável. Um homem digno de desprezo, de ódio ou de pena é outro em
relação a um homem digno de estima ou de amizade, ainda que este homem seja a
mesma pessoa. Ele não somente possui outras propriedades caracterológicas, mas ele
é, por assim dizer, de dentro para fora, inteiramente re-constituído39.

I.1.2.1.2. Fenômenos categoriais

A intuição é um simples captar (schlichtes Erfassen) do que é dado em carne e


osso, em pessoa, assim como ele se mostra. Intuir é, simplesmente, ver. Este ver
doador originário, diz Husserl, nas Ideias I, é base da “Vernunft” (Razão), quer da razão
teórica, quer da axiológica, quer da prática. Com efeito, o que está em questão em
todo o comportamento intencional racional é a possibilidade de captação, de
apreensão, do ser real efetivo, respectivamente, do ser verdadeiro. É com base nesta
doação, em que o doado se dá em sua autodatidade, ou melhor, com base na sua
recepção (anehmen) e percepção (vernehmen) que o comportamento intencional
racional pode fundamentar (Begründen) e demonstrar, por meio de um atestar e
documentar (Ausweisen), aquilo que fora presumido (vermeint). Sem o preenchimento
(Erfüllung) de um sentido (Sinn), possibilitado por atos perceptivos, de visão, o pensar
permanece apenas simbólico, isto é, cego, sem visão, sem evidência. A percepção é,
pois, a base dos comportamentos que se atribuem como próprios da razão. Os modos
de presentificação (recordação, imaginação, etc.) são modos menos pregnantes de
oferecer intuição. São legítimos, mas são menos plenificadores e preenchedores do

39
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins, Alber, Freiburg
(Breisgau)/München, 1980, p. 39.

23
que a percepção. Esta é um modo de preenchimento privilegiado. Nas palavras de
Husserl, “o modo intuitivo é um modo de viver o sentido no qual o ‘objeto visado
como tal’ é trazido intuitivamente à consciência, e um caso especialmente eminente
dele é aquele em que o modo intuitivo é justamente doador originário” 40. Trata-se,
aqui, do modo intuitivo da percepção. De fato, é diverso recordar-se de uma paisagem
e ver a paisagem ela mesma em carne e osso, num relacionamento corpo a corpo com
ela. “O sentido na percepção de uma paisagem é preenchido perceptivamente, o
objeto percebido é trazido à consciência no modo do ‘em carne e osso’ com suas
cores, formas etc. (tão logo sejam ‘chamativas’ para a percepção) ” 41. O pensamento
iluminado pela intuição, o significar preenchido pela evidência, têm um caráter
posicional (Setzungscharakter), tético, isto é, um caráter de “Thesis”, pois põem o dado
originário como verdadeiro. Nesta posição, a crença, o ter-por-verdadeiro, alcança o
modo da certeza. Nela, dá-se uma intelecção, isto é, um ver intelectivo (Einsicht).

Esse ver intelectivo é o acontecer da evidência. Ele pode se dirigir tanto à


apreensão do individual, como do universal, tanto do objeto sensível, quanto do
categorial, tanto dos fatos quanto das essências. Pois, para que o preenchimento do
sentido das proposições possa se dar, efetivamente, é necessário que haja não só uma
intuição sensível, mas também uma intuição categorial, isto é, não só uma percepção
do individual, mas também, fundada nesta, uma percepção do categorial, do universal,
do essencial. Há, portanto, aqui, uma dupla concepção de percepção. Em sentido
estrito, percepção é a apreensão do ser individual, temporal. Em sentido amplo,
porém, é a apreensão, a visão, a intuição, a evidência, de estados de coisa, do
universal, do essencial42. Assim, pode-se falar de uma percepção sensível e de uma
percepção categorial, ou seja, de uma captação do real, por um lado, e de uma
captação do ideal, por outro lado. Na percepção sensível constituem-se objetos reais.
Na percepção categorial, por sua vez, constituem-se novas objetualidades, que têm o
caráter da idealidade43.

Temos assim, atos que doam simplesmente objetos, que são sensivelmente
intuíveis e temos ainda atos que doam objetos que não são intuíveis de modo sensível,
40
Ideias I, p. 304 (§ 136).
41
Idem, ibidem.
42
L. U. VI, § 45 no fim.
43
LU VI, § 46.

24
mas apenas de modo intelectivo. Estes são os atos categoriais. Três características,
podem ser atribuídas aos atos categoriais: primeiramente, o ser atos fundados e não
fundantes; em segundo lugar, o seu caráter de serem doadores de objetualidade, isto
é, de ser intuições; em terceiro lugar, neles a objetualidade dos atos simples é doada
concomitantemente44.

A percepção sensível é simples. Ela se dá de um só golpe, por assim dizer, com


um único olhar. Mesmo se ela for uma percepção contínua de uma única e mesma
coisa que, no decurso de sua realização, vai mudando, as intenções parciais que
compõem esta percepção contínua são homogêneas e se fundem todas numa única
percepção (por exemplo, a percepção de um avião que passa no céu). Ela é consciência
do mesmo objeto, que vai se dando, se tornando fenômeno, em diferentes momentos,
com diferentes manifestações45. Aqui é experimentada a mesmidade do objeto. Essa
mesmidade é experimentada por assim dizer operativamente, implicitamente, na
própria realização da percepção. O que é visado, no entanto, neste ato, não é a
mesmidade, a identidade como tal, tematicamente, explicitamente, mas sim o
idêntico. Uma coisa é a consciência do idêntico. Outra coisa, a consciência da
identidade. Isso quer dizer, na percepção sensível é apreendida a coisa mesma, e não,
por exemplo, uma imagem da coisa, e esta coisa mesma como sendo a mesma coisa e
não outra, na variação de suas manifestações. O ato de perceber o idêntico é diverso
do ato de identificação, que é o ato de perceber a identidade, como, no caso da
evidência, de perceber a coincidência, a identidade, do presumir e do intuído. Os atos
de intuição sensível são simples e fundantes, dão o apoio, o fundamento para os atos
de intuição categorial. Os atos de intuição categorial são fundados nos atos de intuição
sensível. Estes são os atos intelectivos. Os objetos da percepção sensível são, nestes
atos, formados de modo novo, são constituídos em uma nova forma. Nisso, eles
permanecem os mesmos. Mas recebem uma nova forma, isto é, uma nova
determinação, que é intelectiva. Muda, aqui, o sentido de apreensão dos objetos46.

Atos de percepção categorial se fundam sobre atos de percepção sensível. Mas,


como caracterizar melhor este servir de fundação dos atos de percepção sensível e o

44
P. 85.
45
LU VI, § 47.
46
§§ 48-49.

25
caráter de ser-fundado dos atos de percepção categorial? Os atos de percepção
sensível são caracterizados pela simplicidade do seu captar. Trata-se, a cada vez, de
um simples captar do ente mesmo, dado em carne e osso, em pessoa. Nesta datidade
em carne e osso, em pessoa, o objeto se mantém doado ele mesmo e como o mesmo.
Na mudança dos sombreamentos (Abschattungen), que se mostram em uma
percepção contínua, ele aparece como o mesmo, o idêntico. Cada singular fase da
percepção no todo da série contínua é em si mesma uma plena percepção da coisa
como sendo uma única e mesma coisa. Em cada momento a coisa toda está aí por ela
mesma e não por meio de outra coisa, como, por exemplo, uma imagem, e, ao mesmo
tempo, como sendo a mesma, a idêntica coisa. Não se trata, aqui, de uma síntese. O
ato de perceber se realiza num único patamar, a conexão das fases perceptivas
acontece como que numa fusão, de tal modo que o que se realiza é, por assim dizer,
uma única percepção, só que uma percepção estendida, continua. A percepção
presenta e presentifica (gegenwärtigt) o seu objeto de um modo simples e imediato
(einfacher und unmittelbarer Weise)47. Este caráter próprio da percepção sensível, de
que as fases da percepção são realizadas em um único patamar de ato (Aktstufe), e
que cada fase da série da percepção é uma percepção plena, é o que pode ser
designado como simplicidade (Schlichtheit) ou unigradualidade (Einstufigkeit) da
percepção. Simplicidade quer dizer uma unidade não fundada, não derivada ou
subsequente. A simplicidade da apreensão da coisa por parte da percepção, neste
sentido, não exclui, porém, que ela seja altamente complexa na estruturação de seus
atos48.

Husserl define o objeto real como sendo o objeto da percepção sensível. Para
ele, é deste sentido de “real” que haurimos o sentido originário de realidade. Um
objeto real é, por definição, um objeto de percepção sensível. Com isso se determina
também o conceito de parte real: “toda parte de um objeto real é uma parte real”.
Esta parte pode ser um pedaço, um membro, um momento, uma forma, etc.
Heidegger, ao expor isso nos seus Prolegômenos, anota que esta definição de objeto
real tem seus limites. E enfatiza que este conceito de real, de realidade, relativo à
percepção sensível, simples, é um conceito bem determinado, que está limitado pela

47
Heidegger, PZG, p. 82. LU, II/2, p. 148.
48
P. 82.

26
análise da percepção e do objeto da percepção. A análise da realidade do mundo, aqui,
é condicionada pela análise da intencionalidade da percepção.

Ao perceber um objeto real apreende-se um todo, embora nem todas as


nuanças deste objeto venham à luz. O sombreamento, com efeito, é um dos
constituintes da percepção sensível. Sombreamento quer dizer: eu intenciono, no
perceber, a coisa na sua totalidade, mas apenas algumas nuanças desta coisa
aparecem, vêm à luz, outras, por assim dizer, ficam na penumbra. Girando em torno
desta coisa, eu tenho a percepção de várias nuanças desta coisa, mas o que eu
intenciono é esta coisa mesma. Eu a intenciono em sua totalidade e mesmidade, não
obstante se deem à apreensão nuanças sombreadas e diferenciações de aspectos
manifestados. O que é intencionado não são as nuanças e os diferentes aspectos, mas
a coisa mesma no seu todo e em sua mesmidade. Ao perceber o objeto real como um
todo, as partes reais são doadas de um modo implícito, sem relevo. No entanto,
podem ser postas em relevo. Um pedaço real, um momento real (uma nota real), uma
forma real pode ser explicitada. Husserl diz: “O conjunto dos objetos, que nas
percepções sensíveis podem ser dados explícita ou implicitamente, constitui a esfera
amplamente tomada dos objetos sensíveis”49.

A simples percepção, respectivamente, o que ela doa – o ente atual, presente,


ele mesmo – pode, por sua vez, servir de chão, ou melhor, de fundamento para a
construção de novas objetualidades, que são correlatos de novos atos, que são os atos
categoriais. Sobre a objetualidade dos objetos do patamar fundamental se erguem e
se constroem as objetualidades dos objetos de um segundo patamar, que são os
objetos de percepção ou de intuição categorial. Correlativamente, com base nos atos
fundantes da percepção simples são erigidos os atos de percepção categorial. Tratam-
se, porém, em ambos os patamares, de estruturações, de formas intencionais, que são
tomadas, cada vez, a modo de eidos, isto é, de estrutura determinante, perfilhante, e
não a modo de ocorrências psíquicas. Não se tratam, portanto, de fatos, de
ocorrências, de decursos, psíquicos. Tratam-se, antes, a cada vez, de estruturas a priori
intencionais dos atos em questão, ou seja, de estruturas do a cada vez ser-direcionado
destes atos para os objetos que lhes são correlatos e próprios. Cada tipo de ato visa

49
LU VI, § 47, p. 151-152.

27
um tipo de ente, ou seja, visa o ente num determinado como (Wie) de sua datidade
(Gegebenheit). Os atos categoriais, fundados, na verdade, dão acesso a um novo tipo
de objetualidade que não é acessível aos atos simples, fundantes. “Este novo
acessibilizar do objeto simplesmente doado designa-se de modo correlativo aos atos
como expressar” (Ausdrücken).

Os atos de intuição categorial abrem um novo patamar de objetualidades. Não


são uma mera repetição formalizada dos atos fundantes e do que eles visam e doam 50.
Dizer que os atos de intuição categorial, que são fundados, abrem de modo novo o que
é doado nos atos fundantes, doadores simples de objetos, significa dizer que os
objetos são explicitados, no modo do ser trazidos à expressão, isto é, comunicados.

A expressão é, pois, o modo de acessibilizar novas objetualidades, que vêm à


luz e se constituem, por meio dos atos categoriais. Já aludimos que os atos categoriais,
que são fundados sobre atos de percepção sensível, abrem de modo novo os objetos
simplesmente já dados na intuição sensível. Estes são assumidos nos atos categoriais
recebendo um novo sentido de apreensão e uma forma de acordo com a qualidade do
ato intencional significacional. Há dois tipos de atos de intuição categorial: atos de
síntese e atos de ideação. Os atos de síntese produzem o “estado de coisas”
(Sachverhalt), que é de natureza ideal. Os atos de ideação produzem a intuição do
universal. Com outras palavras, atos de síntese tornam objetivos os estados de coisa
que são enunciados na enunciação. Os atos de ideação doam um objeto universal, a
saber, a espécie.

O ato categorial, neste caso e neste sentido, traz à datidade uma nova
objetualidade: o estado de coisa. Trata-se, portanto, de uma objetivação
(Vergegenständlichung) categorial. Aqui, a objetivação se realiza como um pôr em
relevo, um destacar e retirar de um relacionamento. Uma objetivação semelhante
acontece ao se trazer à datidade relacionamentos, não mais de todo e partes, todo e
momentos, mas relacionamentos exteriores, que são expressos por meio de
predicações A à direita de B, A maior do que B, A mais claro do que B, A mais alto do
que B, etc. Por exemplo, no caso em que são doados a uma simples mirada dois
cartazes coloridos claros, a e b, pode-se captar a sendo mais claro do que b. Este é um
50
P. 84.

28
relacionamento real, isto é, que se doa como naturalmente, cotidianamente, como um
relacionamento entre duas coisas, prescindindo-se de que qualquer intepretação física
ou fisiológica da cor, que a faz aparecer como objeto (Objekt) de outra objetividade
(Objektivität), a que se constitui no e para o conhecimento científico. Aqui, os dois
cartazes diferentemente coloridos e claros são doados como duas coisas que, por sua
vez, se destacam da prejacência do mundo da vida, como dois objetos (Gegenstände),
no sentido da objetualidade (Gegenständlichkeit) do que é contraposto (Gegenstand),
emergindo na proximidade do mundo circundante mais próximo. O ato da simples
percepção oferece, então, um suporte fático para que se forme um enunciado e se
torne presente e atual o estado de coisas: “A é mais claro do que b”. Neste enunciado,
a é determinado pelo ser-mais-claro-do-que-b. Na proposição estruturam-se dois
membros, sujeito e predicado, que explicitam o relacionamento entre a e b. A se torna
o sujeito, o ser-mais-claro-do-que-b, o predicado.

A é agora assumido sob nova forma, como sujeito de uma predicação. Ele é um
dos membros do relacionamento, da conjuntura, do estado de coisas. O outro
membro, posto como predicado, é ele mesmo uma relação: o ser-mais-claro-do-que-b.
A relação real “mais-claro-do-que-b” já era presente para a percepção sensível, em sua
realidade, como uma propriedade que dizia respeito mesmo à coisa em questão, no
nosso exemplo, a um dos cartazes. Agora, com a predicação, isto é, com o ato do
relacionar predicativo, que é um ato categorial, fundado, vem à datidade, torna-se
acessível, propriamente, o ser-mais-claro-do-que-b de a. A relação real se presenta
agora, na nova objetualidade do membro-predicado, no todo de uma relação não-real,
isto é, de um estado de coisa, com sua natureza ideal. Aqui, portanto, a relação real é
posta em relevo e destacada na relação ideal de um estado de coisas. Ela se torna um
conteúdo no todo da conjuntura do estado de coisas. Realiza-se, assim, uma nova
formação (Formung)51. Entretanto, esta captação do estado de coisas “a é mais claro
do que b” ainda é operativa, não-temática. Outro seria o caso se se dissesse: “este
relacionamento de claridade entre a e b é mais facilmente notável do que aquele entre
c e d”. Neste caso, o ser-mais-claro-do-que é captado tematicamente e expresso com
uma nomeação, em que o relacionamento como tal torna-se o sujeito de um
enunciado. A nomeação ou nominalização é a forma de tornar temático o
51
§ 49, p. 156-159.

29
relacionamento. Há, pois, uma diferença no sentido de apreensão
(Auffassungssinnes), da relação52. Ao se dizer “A é mais claro do que b” a relação é
apreendida de modo operativo. Ao se dizer ““este relacionamento de claridade entre a
e b é mais facilmente notável do que aquele entre c e d” o relacionamento é
apreendido de modo temático.

O que se dá a captar e a apreender é, pois, tanto o real, que diz respeito à coisa
factualmente dada, quanto o não-real, isto é, o estado de coisas em sua natureza ideal.
Na verdade, na percepção natural, cotidiana, esta dupla captação acontece de tal
modo que ambas as captações não andam paralelamente nem são subsequentes, mas
são estruturadas em dois degraus ou patamares, por assim dizer, em que a percepção
simples oferece o fundamento para a intuição categorial e, ao mesmo tempo, a
intuição categorial enforma a intuição simples. É que nossos relacionamentos com o
ente são, via de regra, condicionados pela prevalência do pensamento e da
linguagem53.

Outros tipos de atos sintéticos, dentro do grupo de atos de intuição categorial


são os atos de conjunção e disjunção, cujos correlatos objetuais são, respectivamente,
o “e” e o “ou”. Posto que se perceba sensivelmente uma multiplicidade de objetos: a,
b, c... pode-se conjugar expressamente este objetos em pensando “a + b + c...” e
dizendo “a e b e c...”. Forma-se, assim, a base para a formação de um tipo de conceito
(Begriff) que é o coletivo (Inbegriff). O “e” funda uma nova objetualidade, ideal, que se
funda na primeira, real, e que a torna expressa. Podemos captar e expressar, assim, a
unidade figural de uma multiplicidade, algo assim como um bando de pássaros, uma
turma de estudantes, etc. Este tema da unidade figural de uma multiplicidade,
entrando na psicologia depois de Husserl e graças a ele, é o que deu origem ao tema
da Gestalt (figura) na psicologia. Conjunções e disjunções são, ambos, atos categoriais
sintéticos. Um ato é o do conjugar ou coligir, que traz à datidade as objetualidades
coletivas. Outro é o ato disjuntor, separador, que traz à datidade as objetualidades
disjuntivas. Estas objetualidades dão preenchimento às significações das conjunções
“e” e “ou”, “ambos” e “um dos dois”54.

52
§ 50, p. 159.
53
P. 75; 81; 89.
54
§ 51, p. 159-161.

30
Intuição categorial significa que o categorial é, ele mesmo, uma datidade
(Gegebenheit). É também fenômeno (algo que se mostra). Não é simples forma do
pensamento. É também objeto intencional de pensamento. Tomemos como exemplo a
conjunção “e”. O “e” une expressão com expressão, enunciado com enunciado. Mas
esta união pode ser de diversas naturezas. O “e” pode significar uma adição exterior: 7
e 5 são 12. Pode significar uma ligação intrínseca (interior, interna): Na e CL constituem
NaCL. Pode significar, ainda, subsunção: 7 e 5 são números ímpares. O “e” pode
também significar uma conexão em termos de conteúdo: “César ultrapassou o Rubicão
e derrotou os Gauleses”. O “e” também pode assumir a significação de uma
dependência em termos de conteúdo, isto é, em que não se trata de uma relação
meramente exterior. Este é o caso quando se trata de significar uma condição
(conditio) ou uma causa (causa) ou uma ocasião (occasio) ou ainda um princípio
(principio). Nestes quatro causas está em jogo uma dependência em termos de
conteúdo, mas a cada vez a dependência é diversa. A fenomenologia investiga, pois, a
unidade de atos categoriais, como os atos de síntese, e as formas categoriais que são
seus objetos intencionais. A cada vez vêm à consciência datidades (Gegebenheiten)
diversas. Isso que vem à consciência como datidade é o que nós chamamos de
fenômeno. A conjunção de fatos é expressa na conjunção do “e”. Ela se deixa enunciar
(dizer) no enunciado através do “e”. No cotidiano, nós fazemos uso da língua e da
linguagem, de maneira vaga. Se nos perguntamos o que significa palavrinhas como
estas (e, não, o mesmo, outro, um, muitos, ou) ficamos perplexos. É difícil trazer à fala,
não obstante ou talvez justamente por serem palavras primitivas, elementares. Todo o
conhecer e viver humano se se move nesse âmbito não claro e oscilante da linguagem
elementar das línguas naturais. A fenomenologia põe em relevo a rede de fenômenos
fundamentais cujas experiências vêm à expressão de modo vago, oscilante, em
palavras elementares, ou, como dizia Pascal, palavras primitivas. As formas categoriais
estão entrelaçadas, por assim dizer, nesta rede. Temos categorias fundamentais como
fundamento e consequência, causa e efeito, espaço e tempo, lei e fato, unidade e
diferença... Cotidianamente nós operamos com elas, mas os fenômenos que jazem no
fundo delas não são nem ao menos de partida claros 55. Sabemos o que significam

55
Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg / München: 1980, p.
31-33.

31
enquanto não nos perguntamos. Mas não sabemos se perguntamos. O mesmo vale
para o segundo nível de intuição categorial, ao qual acenamos a seguir.

O segundo tipo de atos de intuição categorial são os atos constituintes de


intuições universais, ou, brevemente, atos de ideação. O ato de ideação também se
constrói sobre a base de uma objetualidade fundante, mas, nele, esta não é visada
propriamente. A ideação é a intuição do universal (Anschauung des Allgemeinen). Ela é
doadora de uma nova objetualidade: a ideia (ideva). A palavra latina “species” é
tradução de eido", o aspecto de alguma coisa, como alguma coisa se deixa e se faz ver,
naquilo que ela, a priori, é e como ela é. O ato da intuição universal doa aquilo que por
primeiro e de modo simples se deixa ver nas coisas. Por exemplo, andando pela
cidade, passeando pelas ruas, eu vejo casas. Vendo casas, eu apreendendo casa como
casa, antes de prestar atenção à individualidade, à diferenciação, de cada uma. Esta
captação de algo como algo, no caso, de casa enquanto casa, já está incluída na
captação das casas. A ideação é aquele tipo de intuição que doa a espécie, isto é, o
universal de individuações. Desde a multiplicidade de casas singulares, na abstração
ideante, é retirada a espécie casa. Husserl fala, com efeito, de abstração ideante (die
ideierende Abstraktion). A abstração, aqui, não consiste num mero destacamento de
um momento dependente em um objeto sensível. Com efeito, em lugar de um
momento dependente, o que é trazido à datidade é a ideia mesma da coisa em
questão, seu tipo mesmo. Percebemos, por exemplo, na cidade, uma multiplicidade de
casas, com suas semelhanças e diferenças. A intuição do universal se realiza com a
identificação de uma única e mesma doação de ser, de uma única e mesma
possibilidade de ser estruturante, para uma multiplicidade de coisas do mesmo tipo.
Dão-se, assim, a perceber, formas formadoras, e não simplesmente formas formadas
das coisas. A ideação é, por assim, dizer a fresta pela qual acontecem os vislumbres
genéticos e genealógicos de entes em constituição, de seus horizontes de
aparecimento e de seus mundos em surgimento. As objetualidades que são doadas na
intuição do universal são doadas atualmente e, nesta doação, acontece realmente um
ver: o universal é doado mesmo e nós o captamos, nós o visamos e o vemos, claro,
com um olhar inteligente, com uma visão intelectiva (Einsicht)56.

56
LU VI, p. 162. § 52.

32
Certamente, o individual é fundante para a captação do universal. Assim, a
partir de um punhado de individuações de vermelho, eu vejo o vermelho. Deste ver
que traz para fora o vermelho a partir dos vermelhos. O vermelho não é este vermelho
aqui ou aquele outro ali. O vermelho não é um vermelho. Também não é,
simplesmente, todos os vermelhos, a totalidade deles. O vermelho é aquela
objetualidade que a ideação deixa ver de modo novo, a ideia mesmo do vermelho, a
unidade idêntica vermelho, unidade que não é nem individual nem coletiva, mas
universal, específica. O individual permanece fundante. Mas, diferentemente da
conjunção, ele não é co-visado. Aqui, no entanto, pelo contrário, a objetualidade
fundante não é tomada no conteúdo do que é visado e intencionado.

Husserl, na segunda das Investigações Lógicas, diz:

Na medida em que nós intencionamos (meinen) o


vermelho in specie, se nos manifesta um objeto vermelho, e
neste sentido nós dirigimos o olhar para ele (que nós, todavia,
não intencionamos). Ao mesmo tempo neste objeto se
apresenta o momento “vermelho” e do mesmo modo também
aqui nós podemos de novo dizer que dirigimos o olhar para
ele. Mas também este momento, este traço particular
individualmente determinado, nós não o intencionamos…
Enquanto se manifesta o objeto vermelho e, nele, o momento
“vermelho” salientado, nós intencionamos muito mais o único
e idêntico vermelho, e nós o intencionamos em um modo de
consciência de novo gênero, através do qual justamente se nos
torna objetual a espécie em vez do individual57.

O representar individual, fundante, visa o este-aqui ou a multiplicidade de


estes-aqui e aqueles-ali, numa certa ótica, quer dizer, numa determinada perspectiva.
Por exemplo, estas esferas em seu ser-igual. O ser-igual das esferas pode ser captado
com um só golpe de vista ou então pode ser constatado mediante uma observação
comparativa. Nestes casos, capta-se as esferas iguais, mas não se capta explicitamente
o ser-igual das esferas. Outra coisa é captar esferas iguais, outra coisa, o captar o ser-
igual das esferas, outra coisa ainda, o captar a igualdade como unidade ideal. Trata-se,
aqui, da unidade ideal da espécie, a qual é doada em cada captar concreto, embora
não seja visada. Assim, a visão do individual ou da multiplicidade serve de base para a
visão do estado de coisas e o estado de coisas serve de base para a intuição do
universal, a ideação. No entanto, ao se captar o ser-vermelho, é indiferente que
57
E. Husserl, LU, vol. II/1, 106-107.

33
individuação de vermelho, isto é, que nuance de vermelho em sua singularidade,
serviu de base para esta intuição. A partir do ser-vermelho se obtém a intuição do
rubor enquanto rubor. Sentados no jardim, alegramo-nos com as rosas vermelhas.
Percebemos as rosas vermelhas, percebemos o ser-vermelho das rosas, percebemos o
rubor enquanto rubor, mas, tudo isso, de uma maneira implícita, silenciosa, enquanto
estamos sentados no jardim, simplesmente descansando no frescor de uma manhã de
domingo, por exemplo. Aqui, o rubor não é captado explicitamente, não é apreendido
tematicamente. Ele não se torna objeto de consideração nem se destaca como algo
que nos é contraposto. A rosa está no jardim e balança ao sabor do vento. O ser-rubro
da rosa, porém, não está no jardim e nem pode balançar ao sabor do vento. No
cotidiano, mesmo se eu falo do rubor das rosas do jardim, eu não os destaco de
maneira temática. O sentido de apreensão é outro. A visão do universal já aconteceu.
Embora não seja tematizada enquanto tal.

Heidegger indica quatro características da abstração ideante: 1. Para que ela


aconteça é preciso que haja um fundamento exemplar, no entanto, ele não é
intencionado; 2. O âmbito a partir do qual se retira a ideia é indiferente; 3. Até mesmo
a relação do teor coisal da ideia com seus possíveis âmbitos é secundário; 4. A unidade
ideal da espécie, do universal, é imutável, isto é, de invariante identidade.

Intuição categorial significa que, quando vamos realizar o preenchimento


(Erfüllung) de um enunciado, por mais simples e elementar que ele seja, há sempre um
excedente de significado. Isso quer dizer: há sempre um excedente em intenções, cuja
atestação (Ausweisung) não pode ser sustentada pela simples intuição sensível ou pela
simples percepção da coisa ou do seu conteúdo “real”, isto é, “coisal”, “objetivo”.
Assim, quando se diz “esta folha é branca”, ou “esta cadeira é amarela e almofadada”,
há objetos de expressão nestas proposições, que não são mostráveis de modo
sensorial. De resto, já o conceito de ser, quer no juízo de existência, quer como cópula,
é algo assim. De que natureza é, pois, a apreensão do ser? Isso fica para uma outra
reflexão. De onde ela origina? Ela é uma excedência.

A origem desta excedência não está, em todo o caso, na reflexão. Seu


fundamento não está nos atos como objetos de reflexão, está, antes, como advertiu
Husserl, nos objetos dos atos mesmos. Husserl declara:

34
Não na reflexão sobre os juízos, ou melhor, sobre os
preenchimentos judicativos, mas nos preenchimentos
judicativos mesmos reside verdadeiramente a origem dos
conceitos de estados de coisa e de ser (no sentido da cópula);
não nestes atos enquanto objetos, mas nos objetos destes atos
encontramos o fundamento da abstração para a realização
destes conceitos (Husserl, 1993, p. 141).

Heidegger também declara que “os momentos do enunciado pleno, para os


quais não há preenchimento na percepção sensível, conservam este preenchimento
por meio da percepção não-sensível – por meio da intuição categorial. O categorial é
constituído pelos momentos, até agora não esclarecidos no seu preenchimento, do
enunciado pleno” (Heidegger, 1994, p. 80-81). A descoberta da intuição categorial
abre, assim, um caminho para pensar a datidade do ser. É o que a fenomenologia,
enquanto ontologia, isto é, enquanto questão do sentido do ser, visa, em última
instância. A consideração sobre a intuição categorial é apenas um primeiro aviar na
direção desta questão.

I.1.2.2. FENÔMENO PURO, ABSOLUTO58.

Fenomenologia é ciência dos fenômenos. Ora, isto não diz nada a respeito da
fenomenologia. Afinal, toda a ciência que se preze é ciência de fenômenos. O que traz
então de novo a fenomenologia? Resposta: um atitude diversa de se relacionar com os
fenômenos. A fenomenologia requer uma mudança de atitude, de posição, de
impostação, no relacionamento com os fenômenos. Trata-se, portanto, de alcançar
uma impostação fenomenológica no relacionamento com os fenômenos. Husserl vai
falar, pois, em Ideias I, de “phänomenologische Einstellung” – impostação
fenomenológica. Trata-se de um modo de se pôr em afinação com os fenômenos. Em
“A Ideia da Fenomenologia”, de 1907, Husserl diz que fenomenologia é uma atitude de
pensamento: a atitude filosófica. É um método filosófico. Husserl sempre foi muito
preocupado com isso. Na introdução às suas “Meditações Cartesianas” ele se compara
a um menino que ganhou de presente um canivete. Mas ele nunca estava contente
com o corte deste canivete. Ele vai afiando, afiando, o canivete, sempre mais. Nunca
58
Cf. Biemel, Walter. L’idée de la phénomenolgie. Em: J.-L. Marion & G. Planty-Bonjour (org.):
Phénomenologie et métaphysique. Paris: PUF, 1984, p. 80-104.

35
está satisfeito. Até se dar conta que, de tanto afiar o canivete, não lhe restava mais
nada de lâmina! Esta “parábola” ilustra bem o que era, em Husserl, a atitude
fenomenológica, a atitude do método filosófico.

A fenomenologia é, para Husserl, uma crítica da razão: teorética, axiológica,


prática. A razão está relacionada, transcendentalmente, a priori, com a realidade
(pensar e ser). A fenomenologia da realidade implica, para ele, numa crítica da razão.
Somente nesta medida é que a fenomenologia se torna também uma teoria do
conhecimento que, como vimos estudando as Investigações Lógicas, não é nenhuma
teoria no sentido de modelo de explicação, mas é teoria no sentido de visão e de
elucidação do fenômeno em questão – no caso, o fenômeno é o conhecimento. O
conhecimento tem uma estrutura intencional. Nesta estrutura perfazem uma unidade:
o ato de conhecer, o sentido do que é conhecido e o objeto de conhecimento. Para
encaminhar a investigação fenomenológica do conhecimento, diz Husserl, é preciso
mudar a nossa atitude, a nossa impostação. Nós nos relacionamos com os fenômenos
numa atitude natural. Nesta atitude pressupomos o mundo como já dado em oposição
a nós, a nossa consciência como aquilo que se oferece numa experiência psicológica.
Temos em mente fatos. No entanto, uma investigação filosófica não tem em mente os
fatos pelos fatos, mas sim a essência dos fatos. Ela não se ocupa apenas
empiricamente com os fenômenos, mas, sobretudo, procura liberar os fenômenos em
sua “pureza transcendental”. Somente uma investigação transcendental, dirá Husserl,
alarga a nossa visão dos fenômenos, que, na atitude natural, costuma ser muito
estreita.

Na atitude natural nós nos impostamos numa visada direta (Geradehin-


Einstellung). Sempre temos em mira os objetos e só os objetos. Não somos capazes de
re-fletir, isto é, de re-flexionar, de nos voltarmos dos objetos para o nosso próprio
relacionamento com eles. Não nos damos conta de que estes objetos nos são doados.
A atitude fenomenológica em vez de considerar os objetos como meramente postos aí,
diante de nós, no mundo, os considera como doados à nossa consciência. O fenômeno,
enquanto fenômeno, acontece nesse ser doado na consciência (Gegebensein im
Bewusstsein). Na consciência e para a consciência, ele é uma doação absoluta. Husserl
fala de “fenômeno puro”, quando o fenômeno é captado na sua pureza transcendental

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(isto é, não empírica). E fala de “fenômeno absoluto” quando o fenômeno é
considerado apenas como fenômeno, isto é, como aparição na e para a consciência. A
“redução fenomenológica” ela considera o fenômeno enquanto fenômeno para a
consciência, como doação que se deixa receber na e pela consciência. A “redução
eidética” procura discernir a pura dinâmica fenomenal essencial das suas apreensões
epifenomenais. A consciência transcendental é aquela estância em que o fenômeno,
na consciência e pela consciência, se constitui em seu sentido (constituição). O objeto
da experiência está continuamente sendo constituído em seu sentido na e pela
consciência. Fenômeno significa tanto o aparecer quanto isso que aparece (o objeto e
o objetivo). É, pois, um conceito dúplice. Usualmente, quando nós falamos de
fenômeno, nós queremos dizer isso que aparece (como objeto para a consciência).
Husserl, porém, quando fala de fenômeno, tem em vista, antes de tudo, o aparecer ele
mesmo (o fenômeno subjetivo)59.

59
Cf. Husserl, E. A ideia da fenomenologia (Vol. II da “Husserliana”). Lisboa: Edições 70, 1989.

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