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2023_1
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
UnB
TEXTO 1
I. OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA
FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL DE E.
HUSSERL
1
cuja voz é medial. Isto quer dizer: não é nem ativa (quando o verbo indica uma ação
praticada pelo sujeito), nem passiva (quando indica ação recebida pelo sujeito), nem
reflexiva (quando indica ação praticada e recebida pelo sujeito). O “medial” não se
refere, assim, a uma voz que está no meio entre o ativo e o passivo. Diz, antes, uma voz
que deixa entender a dinâmica do “medium”, ou seja, do meio, tomando-se esta palavra
na acepção de permeio, ambiência, elemento. É o que pre-jaz a modo de uma
“transcendência imanente”. “Transcendência”, pois, nos perpassa e ultrapassa,
abrangendo, abraçando, englobando a tudo. “Imanência”, pois, permeia e impregna a
tudo, dando-lhe o seu vigor. Para os gregos, o fenômeno se dá, pois, na dinâmica do
medial “vindo à luz” e “mostrando-se”.
O medial Faivnomai (phaínomai) remete, por sua vez, ao ativo faivnw (phaíno).
Já este verbo se diz na forma transitiva (passa a um objeto). Ele quer dizer,
primordialmente, deixar e fazer ver ou aparecer, manifestar, mostrar, trazer à luz, mas
também indicar, fazer conhecer, tornar noto, desvelar, fazer patente, declarar, denunciar,
proclamar.
3
fundamentação radical e transparente; e que, enquanto modo rigoroso de indagação e
investigação de questões fundamentais, possibilite, na práxis, aos indivíduos e às
comunidades humanas uma existência segundo a verdade e a veracidade.
Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível: da
matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os fundamentos da
matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e mais originária. “A
propósito, isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl começou então não
com qualquer problema imaginado ou trazido de fora, mas, de acordo com o seu
caminho de desenvolvimento científico, ele começou a filosofar sobre o chão que
tinha, isto é, sua meditação filosófica, no sentido da metódica de Brentano, se dirigiu à
matemática”1. Husserl começou a filosofar não adotando esta ou aquela corrente, esta
ou aquela doutrina. “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo, não se deixou
conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas mesmos”2.
1
M. Heidegger, PGZ, 29.
2
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
3
M. Heidegger, PGZ, 29-30.
4
O primeiro volume das Investigações Lógicas se intitula “Prolegomena zur
reinen Logik” (Prolegômenos para a lógica pura). Sobre a gênese de tal obra Husserl se
pronuncia no prefácio da primeira edição, de 1900: “As investigações lógicas, cuja
publicação eu começo com estes prolegômenos, surgiram de problemas inevitáveis
que sempre de novo inibiram e finalmente interromperam o progresso de meus
esforços, efetuados durante anos, em torno de um esclarecimento filosófico da
matemática pura. Paralelo às perguntas sobre a origem das intelecções e dos conceitos
fundamentais da matemática aqueles esforços se deparavam também com as difíceis
perguntas do método e da teoria matemática. Aquilo que deveria aparecer
transparente e facilmente compreensível segundo as representações da lógica
tradicional ou em todo o caso da lógica reformada, a saber, a essência racional da
ciência dedutiva com sua unidade formal e metódica simbólica, se me apresentou, no
estudo das ciências dedutivas efetivamente dadas, obscuro e problemático” 4. Na
tentativa de esclarecer a lógica e o lógico é que Husserl irá descobrir um método de
investigação filosófico, que ele vai chamar de fenomenologia.
4
E. Husserl, LU, vol. I, V. No primeiro volume das Investigações Lógicas, Husserl participa do debate
filosófico daquele tempo a respeito do psicologismo. Não podemos, aqui, na brevidade deste curso, expor
este debate e também a participação de Husserl nele. Apenas damos umas poucas indicações. As questões
fundamentais acerca da matemática tinham conduzido Husserl às questões fundamentais acerca da lógica,
tanto num âmbito como no outro ele não encontrara clareza, não obstante todo o respeito de que estas
duas ciências gozavam no contexto das demais ciências, às quais eram apresentadas como modelo de
rigor e de clareza. Husserl, pouco a pouco, fora conduzido aos problemas da teoria do conhecimento e da
lógica em geral. Inicialmente, o caminho que ele percorre para a solução destes problemas é aquele que
então era o mais trilhado, ou seja, aquele que busca uma aproximação às questões da lógica a partir da
abordagem psicológica: “eu parti da convicção reinante de que a psicologia era aquela da qual a lógica em
geral, assim como a lógica das ciências dedutivas, deveria esperar seu esclarecimento filosófico”. Mas tal
procedimento apareceu desde o princípio limitado e duvidoso: “onde se tratava da pergunta pela origem
das representações matemáticas ou da configuração do método prático, que de fato era determinado
psicologicamente, a execução da análise psicológica me parecia clara e instrutiva. Assim que, porém, se
efetuasse uma passagem do contexto psicológico do pensamento à unidade lógica do conteúdo pensado (à
unidade da teoria), não se deixava vir à tona nenhuma reta continuidade e clareza. Tanto mais daí me
inquietava também a dúvida de princípio sobre como a objetividade da matemática e de toda ciência em
geral fosse compatível com uma fundamentação psicológica do lógico”. Husserl pouco a pouco será
constringido a abandonar o caminho dominante do psicologismo e a tomar a direção de “reflexões gerais
de caráter crítico sobre a essência da lógica e sobretudo sobre a relação entre a subjetividade do
conhecimento e a objetividade do conteúdo do conhecimento”. Inicialmente as investigações lógicas
aparecem, portanto, como a tentativa de uma nova fundação da lógica pura e da teoria do conhecimento.
O caminho que Husserl tomará para esta nova fundação partirá da crítica ao caminho que até então era
dominante e que ele mesmo havia trilhado, isto é, o caminho do psicologismo. A crítica do psicologismo
seria, portanto, antes de tudo uma crítica das suas próprias tentativas anteriores e uma compreensão de
suas aporias, juntamente com uma crítica do método dominante de abordar a fundamentação da lógica e
das demais ciências, o método de esclarecer logicamente as ciências dadas através de análises
psicológicas. Neste sentido, a sua crítica do psicologismo remete ao dito de Goethe por Husserl mesmo
recordado: “Man ist gegen nichts strenger als gegen erst abgelegte Irrtümer” (Nunca se é mais rigoroso
contra alguma coisa do que contra os erros que se acabou de deixar).
5
Nos “Prolegômenos”, Husserl chama em causa o princípio, o motivo condutor,
da investigação fenomenológica. Discutindo contra o relativismo (que seria uma das
consequências do psicologismo), Husserl diz: “a ilusão (Täuschung) desaparece assim
que, em vez de se argumentar genericamente, se dirige às coisas mesmas (an die
Sachen selbst)”5. Faz aparição, assim, aquela expressão que deveria se tornar a máxima
da própria investigação fenomenológica: “zu den Sachen selbst!” (às coisas mesmas!).
A investigação filosófica procura verificar se a obviedade dos fundamentos de uma
teoria, doutrina ou ciência é uma evidência originária ou apenas um prejulgamento
irrefletido. Tal investigação é, por conseguinte, enquanto sondagem dos fundamentos,
das pressuposições fundamentais, a busca positiva das coisas mesmas, isto é, do
âmbito fundamental onde o pensamento possa fazer a experiência da autodoação das
coisas em questão no modo da aparição originária das mesmas.
“Coisa” (Sache) significa, aqui, aquilo que está em questão e em discussão, seja
o que for... Não é necessariamente “Ding”, isto é, uma coisa no sentido físico-material
do termo, uma coisa da natureza (Naturding) ou uma coisa de uso (Gebrauchsding),
um artefato humano... Quer dizer: “Sache” tem uma significação ampla, que pode
significar também “Ding” (embora também a significação de Ding varia na sua
envergadura, podendo significar qualquer coisa, ou uma coisa físico-material, da
natureza ou da arte). A palavra “Sache” soa em latim como “res” ou “causa”. Coisa é o
que está em causa, isto é, aquilo que concerne ao humano, que é do seu interesse (cf.
a expressão: “coisa nossa”). O significado originário de “Sache”, em alemão, diz o que
está em causa num litígio, o que está em disputa. É o motivo da disputa. Neste sentido,
“ir às coisas mesmas” quer dizer: ir ao que está em causa numa discussão, numa
investigação compartilhada. Num segundo lugar, “Sache”, coisa, significa o que está
em causa como uma tarefa de alguém (cf. o uso: “isso é coisa para um encanador”). A
coisa é, além disso, um ensejo, uma ocasião, uma oportunidade para uma ação. É
neste sentido que os gregos usavam a palavra “prágma” para “coisa”, o que remete a
“práxis”, ação (Handlung). A coisa é o que enseja uma lida, uma ocupação, um
trabalho, uma ação. “Sache” (coisa) pode significar também um feito, um fato, um
acontecimento, um evento. Outro significado, ainda, de “Sache”, coisa, é o de “causa”
(Ursache) e de fundamento (Grund) de algo, de um estado de coisas (Sachverhalt), de
5
E. Husserl, LU, vol. I, 155.
6
um fato (Tathandlung), etc. – o seu porquê. Por fim, a coisa é “aquilo de que se trata”
num tratamento (Behandlung) teorético, é o tema e a questão de um tratado, por
exemplo. É o que está em discussão (Erörterung). É neste sentido que Husserl usa a
palavra “Sache” (coisa) em “Zu den Sachen selbst” (às coisas mesmas).
6
No ano de 1913 – isto é, no mesmo ano em que Husserl publicou no “Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung” (Anuário para filosofia e investigação fenomenológica) o seu escrito
intitulado Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (Idéias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica), no qual ele procura tematizar de um modo
mais explícito, desenvolvido e completo o sentido, o método e a envergadura filosófica da fenomenologia
– neste mesmo ano, pois, Husserl deu procedimento a uma nova edição, revisada e essencialmente
melhorada, do primeiro volume e da primeira parte do segundo volume, contendo todas as Investigações,
com exceção da Sexta Investigação que, segundo ele, já estaria em boa parte em vias de impressão e que
deveria vir à luz em uma forma radicalmente reelaborada. Mas é somente no ano de 1920 que Husserl,
cedendo às pressões dos “amigos da presente obra”, decide publicar de novo, porém na sua antiga forma,
esta Sexta Investigação, a qual, segundo o próprio Husserl, seria a mais importante em relação à
fenomenologia.
7
“Segundo a nossa concepção a teoria do conhecimento, propriamente falando, não é nenhuma teoria
(Theorie). Ela não é uma ciência, no sentido pregnante de uma unidade proveniente de uma explicação
teorética. Explicar, no sentido da teoria (Erklären im sinne der Theorie), é o ato de fazer
conceitualmente compreensível o particular a partir de uma lei geral, e esta última, de novo, a
partir da lei fundamental. No campo dos fatos, trata-se nisto de conhecer que aquilo que acontece sob
dadas colocações de circunstâncias, acontece necessariamente (notwendig), isto é, segundo leis naturais
(Naturgesetzen)”.
8
“No campo do apriori, de novo, trata-se de apreender conceitualmente a necessidade (Notwendigkeit)
das relações específicas de grau inferior a partir das necessidades gerais mais abrangentes e, em última
instância, a partir das leis de relações as mais primitivas e gerais, que nós chamamos de axiomas” E.
Husserl, LU, vol. II/1, 20-21.
7
toda ciência real explicativa (vor aller erklärender
Realwissenschaft), antes, de um lado, da ciência física da
natureza, de outro, antes da psicologia, e naturalmente
também antes de toda metafísica. Ela não quer explicar
(Erklären), em sentido psicológico ou psicofísico, o
conhecimento, isto é, o evento factual situado na natureza
objetiva; mas sim esclarecer (Aufklären) a idéia do
conhecimento segundo os seus elementos constitutivos,
respectivamente, segundo as suas leis9.
9
E. Husserl, LU, vol. II/1, 21.
10
E. Husserl, LU, vol. II/1, 2-3.
8
ascender (ein beständiges Emporsteigen) de um nível (Niveau) inferior a um superior,
um trabalhar que se eleva (ein sich Emporarbeiten) rumo a sempre novas intelecções
(Einsichten) lógicas e fenomenológicas, as quais não deixam de todo intactas aquelas
que foram conquistadas precedentemente”11. Também Heidegger, grande admirador e
“amigo” desta obra, observa que “insólito e totalmente contra a maneira usual de
filosofar é o modo de penetração (Durchbringung) e de apropriação (Aneignung) que
esta obra exige. Ela tem um andamento de investigação contínuo; requer uma
presentificação (Vergegenwärtigung) intuitiva explícita, feita passo a passo, e uma
atestação (Ausweisung) que controle aquilo de que se trata” 12. Se tal é o caso é
pertinente a indicação do mesmo Heidegger de que “caso não se queira inverter todo
o sentido das Investigações, não se pode, portanto, simplesmente extrair os resultados
e encaixá-los em um sistema, mas a tendência visa a uma elaboração ininterrupta,
concomitante e compenetrante das coisas tratadas” 13. Com outras palavras, “jaz na
essência das Investigações Lógicas, que elas não possam ser referidas abreviadamente,
mas devam ser cada vez repetidas e percorridas. Toda indicação aproximada do
conteúdo da obra seria, falando fenomenologicamente, uma incompreensão”14.
11
E Husserl, LU, vol I, XII.
12
Heidegger, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (GA 20). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 32.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
15
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 50. Ausweisen significa indicar, demonstrar, no sentido de deixar e fazer ver.
9
Também a lógica, enquanto ciência formal de caráter matemático, não pode
prescindir da fenomenologia. É justamente a fenomenologia que “abre (erschliesst) as
‘fontes’ (Quellen) das quais ‘jorram’ (entspringen) os conceitos fundamentais e as leis
ideais da lógica pura”16. Somente através de uma análise fenomenológica é que a
lógica ganha rigor e clareza:
10
um instrumento de fundamental importância para a lógica, como chegou a reconhecer
John St. Mill, mas como o medium, isto é, o elemento no qual se movem
primordialmente as questões da lógica e que perfaz, permeia, os seus objetos. Antes
de tudo há que se realizar uma análise fenomenológica da linguagem. A lógica, porém,
se aproxima da linguagem, vendo-a antes de tudo como evento de expressão. Mas
aquilo que está em jogo em toda expressão enquanto tal é o seu significado. A relação,
portanto, entre expressão e significado constitui o ponto de partida destas
Investigações.
19
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 53.
11
também a quaisquer objetos”. Assim, significação e referência objetiva se distinguem.
Expressões podem ter a mesma significação, mas objetos diferentes, por um lado, e,
por outro, podem ter significações diferentes, mas o mesmo objeto. Assim,
considerando dois enunciados: “este sendeiro é um cavalo” e “Bucéfalo é um cavalo”,
a expressão um cavalo tem a mesma significação, mas os objetos são diferentes. Por
sua vez, dois nomes podem significar coisas diferentes, mas nomear o mesmo, como
no exemplo: “O vencedor de Iena - O vencido de Waterloo”. Significação e referência
objetiva, no entanto, estão em íntima conexão. A expressão se refere ao objeto por
meio da significação. Uma expressão adquire um referência ao objeto pelo simples
fato de que esta significa algo. Por isso é que dizemos que uma expressão designa ou
denomina algo por meio do seu significado, ou seja, o ato de significar é o modo
determinado de intencionar o objeto em questão, só que justamente este modo de
intencionar, e, portanto, o significado mesmo, pode variar enquanto permanece
idêntica a direção para o objeto. Se considerarmos, pois, os três momentos que se
fundem numa unidade na expressão temos aquilo que, de modo equívoco, se chama o
expressado da expressão. “Os termos em relação – manifestação, significação e
objeto – pertencem essencialmente a toda e qualquer expressão. Em cada uma,
qualquer coisa é manifestada, qualquer coisa é significada e qualquer coisa é nomeada
ou de algum modo designada. E, no discurso equívoco, tudo isto se diz ‘expresso’”.
12
específico. Assim, nesta investigação trata-se somente de “aprender a ver idéias
(Ideen) junto a um tipo (Typus), representado como por exemplo pela idéia
“vermelho”, e fazer clara para si a essência de um tal ver” 22. Na introdução a esta
investigação, Husserl diz:
22
Cf. o que falamos acima sobre ideia e ideação.
23
E. Husserl, LU, vol. II/1, 106-107.
13
e mentais e sobretudo também de formas de palavras e
formas de pensamento, assim se torna, do ponto de vista
lógico, uma importante oportunidade, trazer à claridade
analítica a relação entre expressão e significado, e reconhecer
na regressão do significar vago para o significar
correspondentemente articulado, claro, saturado com a
plenitude do ver exemplificativo no qual este encontra a sua
plenificação, o meio através do qual a pergunta se uma
distinção deva valer como uma distinção lógica ou meramente
gramatical, em cada caso dado, pode ser decidida24.
24
E. Husserl, LU, vol. II/1, 13-14.
25
E. Husserl, LU, vol. II/1, 14.
26
Heidegger, M. Einführung in die phänomenologische Forschung (GA 17). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 54.
14
(intentionalen Erlebnis). Intencionais são as vivências na medida em que se dirigem a
algo (sich auf etwas richten). Nas Investigações Lógicas, Husserl mantinha a identidade
entre atos e vivências intencionais. Mais tarde, porém, Husserl dirá que há vivências
intencionais que não são atos. São as assim chamadas vivências de fundo
(Hintergrunderlebnisse). Atos são uma espécie de vivências intencionais. São aquelas
vivências intencionais que são caracterizadas pelo ego-cogito explícito.
27
E. Husserl, LU, vol. II/1, 343.
28
E. Husserl, LU, vol. II/1, 344.
15
experiência. Ela traz descritivamente à pura expressão, em
conceitos de essência e em enunciados de essência que são
dotados do caráter de lei, as essências diretamente
apreendidas na intuição da essência (Wesensintuition), bem
como as conexões que se fundam puramente nas essências29.
Para Husserl é verdade que todo o conhecimento começa com os sentidos, mas
isto não significa que todo o conhecimento se opere segundo os sentidos. Todo ato ou
é uma representação ou se funda sobre uma representação. Os atos sensíveis
(sinnliche Akten) são representações; os atos categoriais (kategoriale Akten), por sua
vez, se fundam sobre representações.
16
sensibilidade que recebeu forma através de atos categoriais.
Ligado a isto está um absolutamente imprescindível
alargamento dos conceitos, originariamente sensíveis, de
intuição (Anschauung) e percepção (Wahrnehmung), o qual
permite de se falar de intuição categorial (kategoriale
Anschauung) e, em especial, de intuição geral (allgemeine
Anschauung)30.
30
E. Husserl, LU, vol. II/2, 5- 6.
31
M. Heidegger, PGZ, 30.
32
Cfr. H. Rombach, Phänomenologie des gegenwärtigens Bewusstseins, 19.
17
muito tempo sabiam. Nenhuma atenção foi dedicada ao segundo volume, aquele
decisivo. Para ele, o que se tornou uma opinião corrente, no segundo volume Husserl
teria dado lugar a uma recaída no psicologismo, naquilo contra o qual ele lutara
tenazmente no primeiro volume33.
33
Cfr. M. Heidegger, PGZ, 31.
34
M. Heidegger, PGZ, 31.
35
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, XIII-XIV.
18
No horizonte das Investigações Lógicas, fenômeno é fundamentalmente o
aparecer ou vir à luz do ato ou vivência (Erlebnis) da consciência, em sua
intencionalidade36. Em segundo, lugar, fenômeno é o que, nesse aparecer da vivência
intencional se apresenta, se exibe (o objeto intencional). Nós, usualmente, tendemos a
entender por fenômeno antes de tudo ou quiçá exclusivamente isso que aparece e se
exibe para a consciência a modo de objeto. Mas é importante dar-nos conta de que,
para a fenomenologia husserliana, fenômeno, prioritariamente, é o próprio ato ou
vivência da consciência, na qual e para a qual os objetos intencionais se dão, se
mostram, vêm à luz. Sem a claridade da consciência intencional não se dá nenhum
outro fenômeno.
Todo ato, enquanto vivência de consciência, visa a algo, cada vez de um modo
específico. Assim, por exemplo, o ato de perceber, o ato de imaginar, o ato de
recordar, o ato de esperar, o ato de julgar, o ato de amar, o ato de odiar, cada qual
tem um modo próprio de visar, isto é, de ter em mira, aquilo a que ele se dirige. Há,
pois, uma unidade entre a visada (o ter em mira) da consciência e o objeto visado (que
é tido em mira). Isso que é visado, a cada vez, é o objeto intencional. Pouco importa se
este objeto existe, se é fictício, ou mesmo se é absurdo. O que existe pode ser
36
O termo “vivência” é usado na tentativa de traduzir o étimo alemão “Erlebnis”. Este, por sua vez, é o
substantivo do verbo “erleben”, onde o prefixo “er-” corresponde a um outro prefixo, a saber, “ur-”, que
conota originariedade; por sua vez, “leben” significa “viver”: das Leben, substantivo, significa “vida”.
Usualmente se traduz erleben por vivenciar, o que dá a idéia de estar fluindo na experiência da vida.
Portanto, Erlebnis indicaria a espontaneidade da consciência, os diversos modos dela fluir na sua
experiência da vida.
19
somente o ato de visar e não o objeto (por exemplo, numa alucinação, num ato de
imaginar algo, no ato de pensar algo absurdo, etc.). O que existe pode também ser o
que é visado, o objeto intencional, como, por exemplo, quando, estando no eixo
monumental de Brasília, eu percebo a presença “em carne e osso”, corpórea, da
Catedral. Neste caso, tanto o objeto quanto o ato existem. Mas, essencialmente,
pouco importa se o objeto intencional existe ou não, para que o fenômeno primordial
do ato ou da vivência se dê.
Intencionalidade, pois, não quer dizer uma relação entre algo psíquico (interior)
e algo físico (exterior). O ato ou vivência intencional nela mesma exibe a estrutura do
visar a, do dirigir-se-a. A vivência, aqui, não é tomado como um processo psíquico,
como um estado anímico não-intencional, ao qual se acrescenta uma relação com algo
físico, exterior. O ser-intencional não é um acréscimo a, algo acidental, que sobrevém
casualmente à vivência em questão (no caso, a percepção). Trata-se, antes, de algo
essencial, estrutural, para ela. O ser da vivência é um visar a, um dirigir-se-a. Para a
consciência, a datidade é essencialmente a mesma, quer o objeto representado exista
20
ou seja imaginado ou seja absurdo. Eu não me represento Júpiter de outro modo que
represento Tiradentes, a Torre de Babel de outro modo que me represento a Catedral
de Brasília.
Cada tipo de ato psíquico possui uma estrutura essencial pré-formada: é, cada
vez, um determinado tipo de referência intencional. Cada ato apreende o seu objeto
de modo diferenciado, todo próprio, o qual é pré-determinado em sua própria
estrutura. Com outras palavras, em cada tipo de ato está em jogo um tipo de
referência diferente e, em cada tipo de referência, o objeto é cunhado, moldado,
configurado de modo diverso. Assim, por exemplo, se eu caminho pela rua e vejo ao
longe uma pessoa que me vem ao encontro, sendo que, de início, aquela pessoa por
37
A palavra “intenção” deriva do latim “intentio”: segundo explicitação de Tomás de Aquino, “intentio,
sicut ipsum nomen sonat, significat ‘in aliud tendere’ (intenção, como o próprio nome diz, significa
‘tender para um outro’) (Summa theologica, I-II, q. 12, aa. I,5; q. 1, a. 2).
38
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 372-373.
21
mim vista me é estranha, é uma pessoa qualquer; se, em seguida, reconheço-a como
sendo um ex-colega de escola, por quem eu nutria uma forte estima; e se, no vai e
vem de uma conversa, percebo que aquela pessoa passou por uma transformação tal,
ao longo dos anos, que ela hoje se tornou desprezível por sua mediocridade, etc.;
então se dá, no fluxo das minhas vivências, tipos de referências diferentes, onde
aquela pessoa se me aparece cunhada, cada vez, numa outra configuração, no modo
de ser uma objetualidade cada vez outra. Quando ao longe apenas vejo aquela pessoa
que me vem ao encontro, aquela pessoa se me aparece como sendo uma pessoa
“apenas vista”. Quando a reconheço como sendo um ex-colega por quem eu nutria,
outrora, uma estima e um afeto de amigo, ela se me aparece como sendo uma pessoa
“amável, amigável”. A sua manifestação, como “apenas vista”, e a sua manifestação,
como “amável”, são bem diversas. De repente aquela pessoa se transforma diante de
meus olhos, o seu aparecimento, até então mais ou menos indiferente, se torna
significativo e importante: é o momento do reconhecimento, do reencontro. Eu
mesmo sou transformado neste encontro. Redesperta em mim aquela simpatia que
antes existia. Eu, que até agora era apenas um transeunte a mais a percorrer aquela
estrada, preocupado em chegar a tal ou tal lugar, agora sou um amigo a conversar com
outro amigo. Assim como cada vivência cunha, configura o objeto num perfil, cada vez
diferente, o faz aparecer, cada vez, num outro modo, assim também cada vivência
cunha o sujeito, o meu eu, numa disposição, cada vez, diferente: eu me altero, no
sentido literal da palavra, isto é, eu me torno, cada vez, outro, permanecendo eu
mesmo.
22
do meu olhar, em uma pessoa “odiável”. Não somente isto: eu mesmo me
transformei, bem como meu próprio olhar. Quando, ao meu olhar, um homem
“amável” se transforma num homem “odiável”, o que se dá não é o fato de que aquele
mesmo homem agora aparece numa outra luz, mas o fato de que aquele mesmo
homem se altera inteiramente, ele é totalmente re-configurado, sua aparição se re-
estrutura de ponta a cabeça, até nos seus traços mínimos. A sua fisionomia, o seu
olhar, a sua mão, a sua roupa, a sua voz, tudo que nele, antes, era-me amável, agora
se me parece odiável. Um homem digno de desprezo, de ódio ou de pena é outro em
relação a um homem digno de estima ou de amizade, ainda que este homem seja a
mesma pessoa. Ele não somente possui outras propriedades caracterológicas, mas ele
é, por assim dizer, de dentro para fora, inteiramente re-constituído39.
39
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins, Alber, Freiburg
(Breisgau)/München, 1980, p. 39.
23
que a percepção. Esta é um modo de preenchimento privilegiado. Nas palavras de
Husserl, “o modo intuitivo é um modo de viver o sentido no qual o ‘objeto visado
como tal’ é trazido intuitivamente à consciência, e um caso especialmente eminente
dele é aquele em que o modo intuitivo é justamente doador originário” 40. Trata-se,
aqui, do modo intuitivo da percepção. De fato, é diverso recordar-se de uma paisagem
e ver a paisagem ela mesma em carne e osso, num relacionamento corpo a corpo com
ela. “O sentido na percepção de uma paisagem é preenchido perceptivamente, o
objeto percebido é trazido à consciência no modo do ‘em carne e osso’ com suas
cores, formas etc. (tão logo sejam ‘chamativas’ para a percepção) ” 41. O pensamento
iluminado pela intuição, o significar preenchido pela evidência, têm um caráter
posicional (Setzungscharakter), tético, isto é, um caráter de “Thesis”, pois põem o dado
originário como verdadeiro. Nesta posição, a crença, o ter-por-verdadeiro, alcança o
modo da certeza. Nela, dá-se uma intelecção, isto é, um ver intelectivo (Einsicht).
Temos assim, atos que doam simplesmente objetos, que são sensivelmente
intuíveis e temos ainda atos que doam objetos que não são intuíveis de modo sensível,
40
Ideias I, p. 304 (§ 136).
41
Idem, ibidem.
42
L. U. VI, § 45 no fim.
43
LU VI, § 46.
24
mas apenas de modo intelectivo. Estes são os atos categoriais. Três características,
podem ser atribuídas aos atos categoriais: primeiramente, o ser atos fundados e não
fundantes; em segundo lugar, o seu caráter de serem doadores de objetualidade, isto
é, de ser intuições; em terceiro lugar, neles a objetualidade dos atos simples é doada
concomitantemente44.
44
P. 85.
45
LU VI, § 47.
46
§§ 48-49.
25
caráter de ser-fundado dos atos de percepção categorial? Os atos de percepção
sensível são caracterizados pela simplicidade do seu captar. Trata-se, a cada vez, de
um simples captar do ente mesmo, dado em carne e osso, em pessoa. Nesta datidade
em carne e osso, em pessoa, o objeto se mantém doado ele mesmo e como o mesmo.
Na mudança dos sombreamentos (Abschattungen), que se mostram em uma
percepção contínua, ele aparece como o mesmo, o idêntico. Cada singular fase da
percepção no todo da série contínua é em si mesma uma plena percepção da coisa
como sendo uma única e mesma coisa. Em cada momento a coisa toda está aí por ela
mesma e não por meio de outra coisa, como, por exemplo, uma imagem, e, ao mesmo
tempo, como sendo a mesma, a idêntica coisa. Não se trata, aqui, de uma síntese. O
ato de perceber se realiza num único patamar, a conexão das fases perceptivas
acontece como que numa fusão, de tal modo que o que se realiza é, por assim dizer,
uma única percepção, só que uma percepção estendida, continua. A percepção
presenta e presentifica (gegenwärtigt) o seu objeto de um modo simples e imediato
(einfacher und unmittelbarer Weise)47. Este caráter próprio da percepção sensível, de
que as fases da percepção são realizadas em um único patamar de ato (Aktstufe), e
que cada fase da série da percepção é uma percepção plena, é o que pode ser
designado como simplicidade (Schlichtheit) ou unigradualidade (Einstufigkeit) da
percepção. Simplicidade quer dizer uma unidade não fundada, não derivada ou
subsequente. A simplicidade da apreensão da coisa por parte da percepção, neste
sentido, não exclui, porém, que ela seja altamente complexa na estruturação de seus
atos48.
Husserl define o objeto real como sendo o objeto da percepção sensível. Para
ele, é deste sentido de “real” que haurimos o sentido originário de realidade. Um
objeto real é, por definição, um objeto de percepção sensível. Com isso se determina
também o conceito de parte real: “toda parte de um objeto real é uma parte real”.
Esta parte pode ser um pedaço, um membro, um momento, uma forma, etc.
Heidegger, ao expor isso nos seus Prolegômenos, anota que esta definição de objeto
real tem seus limites. E enfatiza que este conceito de real, de realidade, relativo à
percepção sensível, simples, é um conceito bem determinado, que está limitado pela
47
Heidegger, PZG, p. 82. LU, II/2, p. 148.
48
P. 82.
26
análise da percepção e do objeto da percepção. A análise da realidade do mundo, aqui,
é condicionada pela análise da intencionalidade da percepção.
49
LU VI, § 47, p. 151-152.
27
um tipo de ente, ou seja, visa o ente num determinado como (Wie) de sua datidade
(Gegebenheit). Os atos categoriais, fundados, na verdade, dão acesso a um novo tipo
de objetualidade que não é acessível aos atos simples, fundantes. “Este novo
acessibilizar do objeto simplesmente doado designa-se de modo correlativo aos atos
como expressar” (Ausdrücken).
O ato categorial, neste caso e neste sentido, traz à datidade uma nova
objetualidade: o estado de coisa. Trata-se, portanto, de uma objetivação
(Vergegenständlichung) categorial. Aqui, a objetivação se realiza como um pôr em
relevo, um destacar e retirar de um relacionamento. Uma objetivação semelhante
acontece ao se trazer à datidade relacionamentos, não mais de todo e partes, todo e
momentos, mas relacionamentos exteriores, que são expressos por meio de
predicações A à direita de B, A maior do que B, A mais claro do que B, A mais alto do
que B, etc. Por exemplo, no caso em que são doados a uma simples mirada dois
cartazes coloridos claros, a e b, pode-se captar a sendo mais claro do que b. Este é um
50
P. 84.
28
relacionamento real, isto é, que se doa como naturalmente, cotidianamente, como um
relacionamento entre duas coisas, prescindindo-se de que qualquer intepretação física
ou fisiológica da cor, que a faz aparecer como objeto (Objekt) de outra objetividade
(Objektivität), a que se constitui no e para o conhecimento científico. Aqui, os dois
cartazes diferentemente coloridos e claros são doados como duas coisas que, por sua
vez, se destacam da prejacência do mundo da vida, como dois objetos (Gegenstände),
no sentido da objetualidade (Gegenständlichkeit) do que é contraposto (Gegenstand),
emergindo na proximidade do mundo circundante mais próximo. O ato da simples
percepção oferece, então, um suporte fático para que se forme um enunciado e se
torne presente e atual o estado de coisas: “A é mais claro do que b”. Neste enunciado,
a é determinado pelo ser-mais-claro-do-que-b. Na proposição estruturam-se dois
membros, sujeito e predicado, que explicitam o relacionamento entre a e b. A se torna
o sujeito, o ser-mais-claro-do-que-b, o predicado.
A é agora assumido sob nova forma, como sujeito de uma predicação. Ele é um
dos membros do relacionamento, da conjuntura, do estado de coisas. O outro
membro, posto como predicado, é ele mesmo uma relação: o ser-mais-claro-do-que-b.
A relação real “mais-claro-do-que-b” já era presente para a percepção sensível, em sua
realidade, como uma propriedade que dizia respeito mesmo à coisa em questão, no
nosso exemplo, a um dos cartazes. Agora, com a predicação, isto é, com o ato do
relacionar predicativo, que é um ato categorial, fundado, vem à datidade, torna-se
acessível, propriamente, o ser-mais-claro-do-que-b de a. A relação real se presenta
agora, na nova objetualidade do membro-predicado, no todo de uma relação não-real,
isto é, de um estado de coisa, com sua natureza ideal. Aqui, portanto, a relação real é
posta em relevo e destacada na relação ideal de um estado de coisas. Ela se torna um
conteúdo no todo da conjuntura do estado de coisas. Realiza-se, assim, uma nova
formação (Formung)51. Entretanto, esta captação do estado de coisas “a é mais claro
do que b” ainda é operativa, não-temática. Outro seria o caso se se dissesse: “este
relacionamento de claridade entre a e b é mais facilmente notável do que aquele entre
c e d”. Neste caso, o ser-mais-claro-do-que é captado tematicamente e expresso com
uma nomeação, em que o relacionamento como tal torna-se o sujeito de um
enunciado. A nomeação ou nominalização é a forma de tornar temático o
51
§ 49, p. 156-159.
29
relacionamento. Há, pois, uma diferença no sentido de apreensão
(Auffassungssinnes), da relação52. Ao se dizer “A é mais claro do que b” a relação é
apreendida de modo operativo. Ao se dizer ““este relacionamento de claridade entre a
e b é mais facilmente notável do que aquele entre c e d” o relacionamento é
apreendido de modo temático.
O que se dá a captar e a apreender é, pois, tanto o real, que diz respeito à coisa
factualmente dada, quanto o não-real, isto é, o estado de coisas em sua natureza ideal.
Na verdade, na percepção natural, cotidiana, esta dupla captação acontece de tal
modo que ambas as captações não andam paralelamente nem são subsequentes, mas
são estruturadas em dois degraus ou patamares, por assim dizer, em que a percepção
simples oferece o fundamento para a intuição categorial e, ao mesmo tempo, a
intuição categorial enforma a intuição simples. É que nossos relacionamentos com o
ente são, via de regra, condicionados pela prevalência do pensamento e da
linguagem53.
52
§ 50, p. 159.
53
P. 75; 81; 89.
54
§ 51, p. 159-161.
30
Intuição categorial significa que o categorial é, ele mesmo, uma datidade
(Gegebenheit). É também fenômeno (algo que se mostra). Não é simples forma do
pensamento. É também objeto intencional de pensamento. Tomemos como exemplo a
conjunção “e”. O “e” une expressão com expressão, enunciado com enunciado. Mas
esta união pode ser de diversas naturezas. O “e” pode significar uma adição exterior: 7
e 5 são 12. Pode significar uma ligação intrínseca (interior, interna): Na e CL constituem
NaCL. Pode significar, ainda, subsunção: 7 e 5 são números ímpares. O “e” pode
também significar uma conexão em termos de conteúdo: “César ultrapassou o Rubicão
e derrotou os Gauleses”. O “e” também pode assumir a significação de uma
dependência em termos de conteúdo, isto é, em que não se trata de uma relação
meramente exterior. Este é o caso quando se trata de significar uma condição
(conditio) ou uma causa (causa) ou uma ocasião (occasio) ou ainda um princípio
(principio). Nestes quatro causas está em jogo uma dependência em termos de
conteúdo, mas a cada vez a dependência é diversa. A fenomenologia investiga, pois, a
unidade de atos categoriais, como os atos de síntese, e as formas categoriais que são
seus objetos intencionais. A cada vez vêm à consciência datidades (Gegebenheiten)
diversas. Isso que vem à consciência como datidade é o que nós chamamos de
fenômeno. A conjunção de fatos é expressa na conjunção do “e”. Ela se deixa enunciar
(dizer) no enunciado através do “e”. No cotidiano, nós fazemos uso da língua e da
linguagem, de maneira vaga. Se nos perguntamos o que significa palavrinhas como
estas (e, não, o mesmo, outro, um, muitos, ou) ficamos perplexos. É difícil trazer à fala,
não obstante ou talvez justamente por serem palavras primitivas, elementares. Todo o
conhecer e viver humano se se move nesse âmbito não claro e oscilante da linguagem
elementar das línguas naturais. A fenomenologia põe em relevo a rede de fenômenos
fundamentais cujas experiências vêm à expressão de modo vago, oscilante, em
palavras elementares, ou, como dizia Pascal, palavras primitivas. As formas categoriais
estão entrelaçadas, por assim dizer, nesta rede. Temos categorias fundamentais como
fundamento e consequência, causa e efeito, espaço e tempo, lei e fato, unidade e
diferença... Cotidianamente nós operamos com elas, mas os fenômenos que jazem no
fundo delas não são nem ao menos de partida claros 55. Sabemos o que significam
55
Rombach, Heinrich. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg / München: 1980, p.
31-33.
31
enquanto não nos perguntamos. Mas não sabemos se perguntamos. O mesmo vale
para o segundo nível de intuição categorial, ao qual acenamos a seguir.
56
LU VI, p. 162. § 52.
32
Certamente, o individual é fundante para a captação do universal. Assim, a
partir de um punhado de individuações de vermelho, eu vejo o vermelho. Deste ver
que traz para fora o vermelho a partir dos vermelhos. O vermelho não é este vermelho
aqui ou aquele outro ali. O vermelho não é um vermelho. Também não é,
simplesmente, todos os vermelhos, a totalidade deles. O vermelho é aquela
objetualidade que a ideação deixa ver de modo novo, a ideia mesmo do vermelho, a
unidade idêntica vermelho, unidade que não é nem individual nem coletiva, mas
universal, específica. O individual permanece fundante. Mas, diferentemente da
conjunção, ele não é co-visado. Aqui, no entanto, pelo contrário, a objetualidade
fundante não é tomada no conteúdo do que é visado e intencionado.
33
individuação de vermelho, isto é, que nuance de vermelho em sua singularidade,
serviu de base para esta intuição. A partir do ser-vermelho se obtém a intuição do
rubor enquanto rubor. Sentados no jardim, alegramo-nos com as rosas vermelhas.
Percebemos as rosas vermelhas, percebemos o ser-vermelho das rosas, percebemos o
rubor enquanto rubor, mas, tudo isso, de uma maneira implícita, silenciosa, enquanto
estamos sentados no jardim, simplesmente descansando no frescor de uma manhã de
domingo, por exemplo. Aqui, o rubor não é captado explicitamente, não é apreendido
tematicamente. Ele não se torna objeto de consideração nem se destaca como algo
que nos é contraposto. A rosa está no jardim e balança ao sabor do vento. O ser-rubro
da rosa, porém, não está no jardim e nem pode balançar ao sabor do vento. No
cotidiano, mesmo se eu falo do rubor das rosas do jardim, eu não os destaco de
maneira temática. O sentido de apreensão é outro. A visão do universal já aconteceu.
Embora não seja tematizada enquanto tal.
34
Não na reflexão sobre os juízos, ou melhor, sobre os
preenchimentos judicativos, mas nos preenchimentos
judicativos mesmos reside verdadeiramente a origem dos
conceitos de estados de coisa e de ser (no sentido da cópula);
não nestes atos enquanto objetos, mas nos objetos destes atos
encontramos o fundamento da abstração para a realização
destes conceitos (Husserl, 1993, p. 141).
Fenomenologia é ciência dos fenômenos. Ora, isto não diz nada a respeito da
fenomenologia. Afinal, toda a ciência que se preze é ciência de fenômenos. O que traz
então de novo a fenomenologia? Resposta: um atitude diversa de se relacionar com os
fenômenos. A fenomenologia requer uma mudança de atitude, de posição, de
impostação, no relacionamento com os fenômenos. Trata-se, portanto, de alcançar
uma impostação fenomenológica no relacionamento com os fenômenos. Husserl vai
falar, pois, em Ideias I, de “phänomenologische Einstellung” – impostação
fenomenológica. Trata-se de um modo de se pôr em afinação com os fenômenos. Em
“A Ideia da Fenomenologia”, de 1907, Husserl diz que fenomenologia é uma atitude de
pensamento: a atitude filosófica. É um método filosófico. Husserl sempre foi muito
preocupado com isso. Na introdução às suas “Meditações Cartesianas” ele se compara
a um menino que ganhou de presente um canivete. Mas ele nunca estava contente
com o corte deste canivete. Ele vai afiando, afiando, o canivete, sempre mais. Nunca
58
Cf. Biemel, Walter. L’idée de la phénomenolgie. Em: J.-L. Marion & G. Planty-Bonjour (org.):
Phénomenologie et métaphysique. Paris: PUF, 1984, p. 80-104.
35
está satisfeito. Até se dar conta que, de tanto afiar o canivete, não lhe restava mais
nada de lâmina! Esta “parábola” ilustra bem o que era, em Husserl, a atitude
fenomenológica, a atitude do método filosófico.
36
(isto é, não empírica). E fala de “fenômeno absoluto” quando o fenômeno é
considerado apenas como fenômeno, isto é, como aparição na e para a consciência. A
“redução fenomenológica” ela considera o fenômeno enquanto fenômeno para a
consciência, como doação que se deixa receber na e pela consciência. A “redução
eidética” procura discernir a pura dinâmica fenomenal essencial das suas apreensões
epifenomenais. A consciência transcendental é aquela estância em que o fenômeno,
na consciência e pela consciência, se constitui em seu sentido (constituição). O objeto
da experiência está continuamente sendo constituído em seu sentido na e pela
consciência. Fenômeno significa tanto o aparecer quanto isso que aparece (o objeto e
o objetivo). É, pois, um conceito dúplice. Usualmente, quando nós falamos de
fenômeno, nós queremos dizer isso que aparece (como objeto para a consciência).
Husserl, porém, quando fala de fenômeno, tem em vista, antes de tudo, o aparecer ele
mesmo (o fenômeno subjetivo)59.
59
Cf. Husserl, E. A ideia da fenomenologia (Vol. II da “Husserliana”). Lisboa: Edições 70, 1989.
37