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IÊ
Resumo Abstract
O propósito deste artigo é apresentar The purpose of this article is to present
reflexões sobre o trabalho com temas some reflections on working with sensi-
sensíveis no contexto do ensino (disci- tive topics within teaching (History
plina de Estágio de Docência em Histó- teaching internship) and research (Pro-
ria) e da pesquisa (dissertação de Mes- fessional Masters in Teaching History
trado Profissional em Ensino de dissertation) contexts. The writing is pre-
História). Apresentamos a escrita na sented in the form of a dialogue written
forma de um diálogo a muitas mãos que by various people in an attempt to un-
busca compreender os sentidos atribuí- derstand the meanings attributed by the
dos pelos atores em relação ao processo actors-in-relation to the process experi-
vivido em aulas de História. Essa forma enced in History classes. This form of
de escrita se sustenta também na con- writing is also supported by the concep-
cepção de que a abordagem de temas tion that dealing with sensitive topics
sensíveis reivindica um registro o mais calls for a pluralistic register, allowing
plural possível, permitindo que diferen- different voices to present themselves in
tes vozes se apresentem no diálogo: a the dialogue: teachers, students, univer-
professora, o professor, alunos/as, aca- sity students and selected authors.
dêmicos/as e autores/as escolhidos/as. Keywords: sensitive issues; History clas-
Palavras-chave: temas sensíveis; aulas de ses; migrations; History teaching.
história; migrações; ensino de história.
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. carmemz.
gil@gmail.com
** Mestre em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS,
Brasil. camargo.jonas@gmail.com
Nota I
tempo suficiente para que outro aluno tomasse a palavra: “Não, cara, meu pai
diz justamente o contrário, que nessa época nada era permitido, nem mesmo
conversar na rua. Tudo era motivo para ser preso e torturado. Não dava pra
discordar do governo”. Agradecida, ela retomou a discussão:
sobre eles, mas, principalmente, porque não há ainda, na maioria dos casos, um
consenso da sociedade sobre o que dizer e como falar sobre esse passado. Em
muitos casos, os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em cur-
so, e diferentes versões ainda estão em disputa – tanto na memória como na his-
tória. (Araujo et al., 2013, p.9)
Benoit Falaize (2014) afirma que, na França, há 20 anos, houve uma “vi-
rada memorial”, quando o ensino de questões sensíveis da História passou a
fazer parte dos debates escolares, públicos e políticos. A sociedade foi chamada
a examinar as omissões ou amnésias nacionais nos conteúdos de História, de
forma que o ensino de temas delicados passou a compor a nova agenda escolar,
na contramão da ordem escolar construída para consolidar a história
nacional.
No Brasil, alguns temas sensíveis seguem na esteira das lutas de diferentes
grupos em busca de legitimidade para suas histórias e memórias, questionando
a homogeneização que marca a ideia de nação. Junto a isso, os grupos buscam
ampliar a representação política, e a luta por direitos faz emergir demandas
identitárias. Ou seja, é uma luta que reivindica lembrar, manter viva uma me-
mória e reparar o silêncio e as simplificações na narrativa histórica. Assim, a
dita unidade nacional tem sido questionada – não sem resistência –, dando
visibilidade a uma sociedade que é multicultural. Tal fenômeno tem provocado
debates sobre o currículo da História ensinada de forma que se possa construir
materiais didáticos, rituais comemorativos e práticas curriculares na perspec-
tiva da justiça e dos direitos humanos.
Emergem, nesse contexto, novas abordagens e conteúdos que promovem
uma ruptura com o passado da História escolar, cuja função primeira no cur-
rículo era moral. Ao mesmo tempo, temos uma situação nova de constrangi-
mento aos professores que orientam suas aulas por demandas do tempo
presente. Acusados de doutrinadores, os professores se veem atacados por
diferentes segmentos sociais como a família, a mídia, as religiões e, também, o
Estado, embora saibamos que a educação voltada para o exercício da cidadania
ativa impõe, necessariamente, o estudo de temas sensíveis e controversos que
ultrapassam a mera inclusão dos problemas do tempo presente nas aulas de
História, conforme orientam os próprios documentos legais.
Sabemos, porém, que nem toda questão sensível para a sociedade ou assim
considerada pela historiografia o é, necessariamente, para os estudantes. Se
alguns temas são controversos pelo conteúdo que abordam, outros apenas o
são em função dos contextos em que são trabalhados, como a escola. Tal como
ocorreu com o comentário de um aluno (“Mas meu pai sempre diz que nessa
época era muito bom...”), ele gera uma controvérsia e se torna uma questão
delicada, seja porque contrapõe os saberes da disciplina, seja porque coloca ao
professor uma dificuldade na abordagem do conteúdo em função das reações
dos alunos. O que fazer nesse caso? Ignorar e seguir a aula tal como estava
previsto? Alguns professores escolhem esse caminho, até mesmo para ganhar
tempo e pensar sobre um encaminhamento adequado.
De certa forma, o comentário suspende a aula enquanto espaço de apre-
sentação dos acontecimentos e desloca o professor para um espaço de decisão:
como seguir a aula de forma a não ficar no relativismo, contrapondo diferentes
opiniões? Como abrir-se ao inesperado, acolher o debate e fugir do consenso
que exclui as dúvidas e as controvérsias? O comentário do aluno é, também,
uma pista para o professor sobre os sentidos construídos pelos alunos a res-
peito do conteúdo que está sendo abordado. Assim, parece que a dificuldade
do professor ao trabalhar com temas sensíveis se associa à compreensão dos
conteúdos e à sua própria postura. Temos, então, uma questão didática, pois
envolve tomar decisões políticas e pedagógicas, e consideramos que a relação
entre ambas é dialética, não de influência mútua.
Mével e Tutiaux-Guillon (2013) indicam três considerações importantes
sobre temas sensíveis nas aulas, visto que não se aborda tais temas com uma
aula expositiva ou a apresentação de alguns documentos. Isso demanda tempo,
estratégia pedagógica, escuta e sensibilidade. São elas:
Foi nesse percurso que seguiu a estagiária quando deparou com o comen-
tário do aluno a respeito das memórias de seu pai sobre a ditadura militar no
Brasil. O caminho escolhido pela estagiária foi o de retomar a análise docu-
mental, refletindo sobre a impossibilidade de se noticiar ou denunciar tais prá-
ticas criminosas do Estado, retomando aspectos da repressão para além das
torturas e prisões. Porém, ficam em aberto as interrogações de Benoit Falaize:
Como falar sobre as feridas aparentes ou simbólicas das populações feridas, sem
ignorar o frio (e necessário) distanciamento dos fatos e dos documentos por ve-
zes em contradição com as memórias tais como elas são transmitidas de geração
em geração e tais como podem expressar‐se em sala de aula? O conceito de “me-
mórias traumáticas” tem sentido? (Falaize, 2014, p.230)
Assim, os temas sensíveis são potentes para ensinar História, pois não
envolvem um ponto de vista universal e, nesse sentido, são desafiadores e re-
levantes. Mas não somente isso. Há outra dimensão de sua abordagem que se
soma à complexidade de seu tratamento em sala de aula: eles envolvem per-
tencimentos, identidades e prioridades em conflito, suscitam emoções.
questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se
entrelaçam na vida social – pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pes-
soas com deficiência, as populações do campo, os de diferentes orientações se-
xuais, os sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em privação de
liberdade – todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira.
(Brasil, 2013, p.16)
Outra recomendação dos autores é abordar “as emoções com assuntos me-
nos sensíveis (escravidão na Antiguidade, guerras de religião no século XVI, uma
catástrofe longínqua...) a fim de preparar estudantes e professor para a gestão
das emoções mais vivas”. Nesse sentido, o trabalho com temas sensíveis/questões
controversas demanda tempo, pois, nesse caso, é “também progredir nas con-
trovérsias que implicam menos os adolescentes (a escravidão antiga é necessária
à cidadania? As guerras de religião são apenas guerras sobre crenças? Essa catás-
trofe poderia ser evitada?) em direção a debates mais avançados”.
Assim, se no caso francês (Mével; Tutiaux-Guillon, 2013; Falaize, 2014) o
ensino de temas sensíveis e questões controversas se volta para pensar em
como falar sobre o horror do sistema de extermínio (como abordar a Shoah
na sala de aula?), no caso brasileiro é pertinente pensar também a pobreza e a
violência. Dito de outra forma, como ensinar em escolas controladas por mi-
lícias, escolas onde qualquer movimento diferente leva os alunos a automati-
camente se jogarem no chão, escolas com toque de recolher, escolas em que o
professor recém-chegado é consolado pelos alunos diante da violência do en-
torno e, finalmente, a escola como o espaço do medo?
A escola pública brasileira está inserida em um contexto sensível em fun-
ção da violência, das desigualdades sociais, das lutas pelo reconhecimento de
grupos invisibilizados na história nacional e, mais recentemente, dos ataques
à profissão docente com projetos reacionários que buscam “vigiar e punir” os
professores. Queremos, portanto, pensar os temas sensíveis com base em ques-
tões vivas para a sociedade, controvérsias na historiografia, temas constrange-
dores para determinados grupos sociais, difíceis no contexto da escola, que
possam, queremos crer, produzir esperança nas salas de aula. Não se trata
somente de outra forma de se aproximar dos conteúdos de História, mas de
considerar os sujeitos para os quais se ensina História e seus contextos de vida,
marcados pela violência e pela desigualdade social, além do contexto de quem
ensina, marcado pelas perseguições e pela desumanização.
Nota II
Sobre uma investigação em andamento…
desesperada por entender o que significaria para sua filha crescer numa socie-
dade racista, as dúvidas se acumularam e eu apenas respondi: “Isso não pode
acontecer. A senhora precisa ir na escola da sua filha e conversar com a direção
e a professora para que tomem uma atitude”. Conto isso à guisa de reflexão
sobre o racismo introjetado na sociedade brasileira, com o qual os professores
precisam aprender a lidar todos os dias. O fato de eu ser professor de História
me pôs diante de um evento que me provocou, incomodou, exigiu respostas e
fez perceber uma nova temática para a pesquisa sobre migrações atuais: o
racismo.
Seleciono dois aspectos da minha prática que me ajudam a pensar o lugar
do professor de História na construção teórica em torno dos temas sensíveis.
Primeiro, o fato de ser professor e pesquisador no momento em que a proble-
mática trazida pela minha entrevistada me foi colocada. Explico: o trabalho
que estava desenvolvendo buscava encontrar testemunhos de migrantes para
ensinar sobre os movimentos migratórios atuais e a presença do direito à mi-
gração e ao refúgio no Brasil. Essa condição de professor pesquisador me levou
à entrevista, e, como algo que me precede, a profissão, vista pelos olhos da
entrevistada, me colocava no lugar de possível detentor da explicação – espe-
rada por ela – do motivo pelo qual sua filha era chamada de escrava. A escra-
vidão é, sim, um tema da alçada dos professores de História, assim como
também o é a relação com jovens e crianças (no caso, a mãe também queria
uma orientação sobre como convencer sua filha a voltar para a escola); contu-
do, a maneira como a questão foi posta trouxe à tona outro aspecto: a presença
do racismo na história do Brasil.
O fato de ser professor e estar diariamente rodeado de estudantes, ter mi-
nhas rotinas estabelecidas e os currículos de cada série praticamente internali-
zados com suas sequências didáticas, cronologias e metodologias desenvolvidas
por mim, meus colegas de profissão, autores de livros didáticos e pesquisadores
das diferentes áreas criou uma espécie de óculos que, de alguma forma, vinham
determinando minha maneira de observar a prática e a docência. A condição de
pesquisador-professor alimentado por pressupostos da educação e da história
possibilita a mim uma percepção diferente dos elementos que compõem a sala
de aula antes naturalizados. Assim, o contato com os migrantes reorientou tanto
minha prática na sala de aula quanto a questão de pesquisa em desenvolvimento,
fazendo emergir o trabalho em torno das questões sensíveis. O que temos aqui,
As diferenças que existem de onde eles vieram e o Brasil são muitas e nos mais
diversos âmbitos, mas principalmente na cultura.
É a Natureza do ser humano ser diferente. Perante questões culturais, de crenças
e hereditariedade, existem milhões de divergências que tornam “as diferenças” um
assunto sensível.
Acreditamos que a mudança da África para o Brasil não foi um processo fácil, por
isso podemos tentar entender um pouco mais sobre a saída de lá e como se deu
isso, pensando também no choque de troca de sociedade ao chegar no Brasil.
Precisamos mudar a nossa visão plana do que são os habitantes/imigrantes do
Senegal e de todo o território africano. Aprender como variam suas culturas, me
parece ser o ponto chave do projeto, visto que abre nosso olhar às suas diferentes
realidades.
caso) coloca para a escola a possibilidade de, por um lado, responder à exigên-
cia feita pela lei do ensino de história da África e afro-brasileira, e, por outro,
preparar os jovens para compreender e responder efetivamente ao intento da
lei de migrações, ambas questões que têm relação com o papel do professor de
História. No entanto, não deixa de ser lamentável que o país precise de leis
para que o respeito a essas histórias seja construído.
Muitos de nós, brasileiros, fomos educados acreditando na democracia
racial e na mistura como uma força identitária presente em todos os brasileiros.
Fomos edificados como nação com base em um discurso em torno da mesti-
çagem e da “contribuição das três raças” para a “civilização brasileira”; contu-
do, vemos o país mergulhado no racismo e na xenofobia, um paradoxo, no
mínimo, curioso: ao mesmo tempo que se forjou como um país das misturas,
o Brasil é um país em que alunos estrangeiros são chamados de negros escravos
dentro de nossas escolas. E, nessa medida, estamos, sim, tratando da defesa dos
direitos humanos e abordando questões sensíveis. No contexto das Leis
10.639/2003 e 11.645/2008, os livros didáticos têm trazido, em seus textos,
elementos da história da África, mas essas histórias necessitam se encontrar
com os novos sujeitos que chegam às mais diversas partes do Brasil, sejam eles
senegaleses, haitianos, angolanos etc. Trabalhar racismo e migrações na pers-
pectiva desses sujeitos recém-chegados que hoje fazem parte de nossa cidade
e reivindicam um espaço de acolhimento e reconhecimento é, também, uma
das finalidades da História ensinada.
Nota III
Em aberto…
Sou cético quanto à ideia de ser um historiador engajado. Penso que escolher
tópicos só porque são os de “nossa época”, porque dizem respeito ao “hoje”, signi-
fica ter uma visão míope e provinciana da história; mesmo porque, o que parece
totalmente distante da atualidade pode se tornar, repentinamente, o seu foco.
Lembro-me vividamente que, em 1969, meus alunos em Roma estavam freneti-
camente interessados em um só evento que acontecera em Turim em 1920: a
ocupação das fábricas pelos operários. Não pensavam em mais nada. E eu, traba-
lhando nessa época sobre a feitiçaria e os benandanti, estava a milhões de anos-
-luz de todos eles. No entanto, pouco tempo depois – e isso eu gosto de recordar
abertamente – nas manifestações de rua, as feministas gritavam: “Tremate, tre-
mate, le stregue son tornate” (“Tremam, tremam, as feiticeiras voltaram”).
(Pallares-Burke, 2000, p.293)
REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Agradecemos a leitura atenta da professora Caroline Pacievitch, cujas abordagens ajuda-
ram a qualificar este texto.
2
Lembrando que a autora fala do contexto da França, onde a liberdade dos professores é
relativa, visto que os currículos são inspecionados.
3
O relatado na Nota II ocorreu no início do trabalho de pesquisa para o Mestrado
Profissional em Ensino de História – ProfHistória. A pesquisa busca encontrar, nas
Resumo Abstract
Este artigo aborda temas socialmente This article discusses socially controver-
controversos e sensíveis no âmbito do sial subjects and sensitive themes in the
ensino de história. As questões social- context of History teaching. Socially
mente vivas se constituem na contempo- keen questions are built nowadays on
raneidade em objetos privilegiados dos History curricula’s privileged objects,
currículos de história, em função, por according to social demands of identity
um lado, das demandas sociais de grupos groups, such as minorities, and move-
identitários e, de outro, dos movimentos ments that seek to restrict the freedom
que buscam interferir na liberdade de en- to teach and the right to learn, which are
sinar e no direito de aprender, direitos guaranteed by the Brazilian Federal
assegurados na Constituição Federal de Constitution of 1988. This study aims to
1988. O artigo quer construir a categoria analyze the category of living past as a
de passado vivo como elemento central central element in History teaching cur-
na constituição de currículos de ensino ricula establishment, thus, we made a
de história e, para isso, vale-se de um du- double movement: productivity of re-
plo movimento: a produtividade dos siduality and remnant concepts, and the
conceitos de residualidade e remanes- connection of History teaching with the
cência, e a decidida conexão da prática field of education about human rights.
docente em história com o campo da We conclude by discussing some school
educação em direitos humanos. Ao final, situations that faced these issues.
discutem-se algumas cenas escolares on- Keywords: residuality; remaining forms;
de tais questões foram enfrentadas. sensitive education.
Palavras-chave: residualidade; remanes-
cência; educação em temas sensíveis.
Revista
Revista História Hoje,História Hoje,
v. 7, nº 13, vol. 7,- 2018
p. 14-33 nº 13
Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis
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O passado considerado diferença nos faz dar um salto do presente para pensar
novos mundos possíveis.
Eis, portanto, duas urgências no ensino de história para os direitos huma-
nos: se, por um lado, compreendemos que precisamos organizar um currículo
ou mesmo uma aula de história que dê conta dos temas desestruturantes da
vida dos jovens e da sociedade brasileira nos tempos atuais – que lhes permita
compreender o que é o presente e como se orientar nele, construir uma iden-
tidade, criar referenciais –, por outro lado, é necessário para a aprendizagem
histórica outro salto, que é pensar a diferença na forma da alteridade. Ou seja,
“aprendo sobre mim mesmo na relação com o outro, mas, sobretudo, aprendo
com o outro a experiência que nunca tive”, e é isso o que permite a movimen-
tação no tempo em direção ao futuro para novas experiências.
Com base nessa dupla preocupação, que nos parece estar resumida no
campo dos direitos humanos e da aprendizagem histórica na maneira da abor-
dagem das questões sensíveis, procuramos apresentar duas questões interiores
a essa dupla preocupação. A primeira consiste em supor que os temas sensíveis
indicam outra maneira de construir a temporalidade. Se pensamos um tema
sensível ancorado na ideia de que o passado é exterior ao presente, não estamos
colocando elementos do campo do sensível para discutir o problema.. Em
nossa concepção, um tema sensível vive do paradoxo temporal: o passado con-
vive com o presente; um passado que não passa; um presente que não deixa de
ser passado. Um tema sensível não pode ser analisado do ponto de vista cro-
nológico, evolucionista, progressivista, como pensaram os iluministas ou como
supõe o eurocentrismo. Para refletir sobre o nazismo é preciso se dar conta de
que ele não é algo do passado, que deve ser estudado com distanciamento, do
ponto de vista metodológico, que nos coloque numa situação de leitores de
algo que nos é exteriorizado. O nazismo é algo que nos indica um paradoxo
temporal: ele é, ao mesmo tempo, passado e presente. Os seus efeitos se esten-
dem no presente e, infelizmente, se estenderão, ainda, ao futuro. O racismo,
decorrente de escravidão de pessoas negras no Brasil, não é algo que passou: é
algo que não passa, não cessa de multiplicar os seus efeitos. Temos aí o para-
doxo temporal: ninguém poderá, simplesmente, ensinar a cronologia da escra-
vidão sem pensar que a escravidão não é outra coisa senão o elemento ao qual
está ligado o processo de colonialidade e estão ligados os processos de racismo
e discriminação que existem em nossa sociedade.
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Faz toda a diferença dar-se conta de que quando penso um tema sensível,
tenho que me abrir; tenho que estar em abertura; tenho que estar despersona-
lizado de todas as determinações que o conhecimento europeu, desde
Descartes, tem instituído para a nossa sociedade. Significa que abandonar tanto
o racionalismo quanto o empirismo; e, sobretudo, abandonar a ideia de que a
cronologia é da própria natureza do tempo e que o pensamento histórico pre-
cisa estar sempre a ela submetido. O mais importante que a história nos ensina
é que não há nada que possa ser universal; nada que possa se colocar como
uma narrativa que abranja todas as outras narrativas. Logo, o tempo cronoló-
gico não é outra coisa senão uma criação – e uma criação perversa; tributária
de uma espécie de colonialidade do tempo (Quijano, 2005),2 de tal modo que
a nossa experiência temporal e as nossas relações com o passado, tem sido
construídas a partir da colonialidade. Desse modo, a história nos informa exa-
tamente que não há uma representação essencial do tempo, não há uma nar-
rativa universal, não há uma narrativa universal, não há uma única forma de
pensar o tempo. A experiência temporal do povo Guarani é absolutamente
incomensurável se partirmos dessa temporalidade europeia e eurocentrada.
A segunda questão que nos auxilia a pensar os temas sensíveis é “apren-
dizagem e experiência”. Estamos propondo que a aprendizagem de um tema
sensível só pode ter sentido se for uma aprendizagem da experiência (Bondía,
2002). Quando aprendemos alguma coisa, do ponto de vista da filosofia an-
terior a Descartes, nos transformarmos com aquilo que aprendemos
(Foucault, 2004). A aprendizagem não é vista como um mero acúmulo de
qualquer coisa, nem de conceitos, nem de informações. A aprendizagem im-
plica uma transformação subjetiva. A abordagem do genocídio indígena no
Brasil pode permitir apenas dizer que ele existiu e discutir as causas desses
processos, dar-lhes datas, informações, fazer levantamentos de documentos
e assim por diante. Se fizermos apenas isso estaremos abordando um passado
frio e disciplinado, exterior, e que é tornado objeto, fato, apartado do sujeito
que conhece (White, 2014).
Até Descartes não havia distinção entre aprendizagem e espiritualidade,
entre aprender e transformar-se como sujeito. Descartes inaugurou, na filoso-
fia, essa ideia de que o sujeito do conhecimento é tão racional que está abso-
lutamente imune às questões da vida e da experiência: conhecer é algo que
permite acumular conceitos e informações. Preferimos seguir a linha da forte
crítica elaborada por Nietzsche e Marx, no século XIX, e pensar que a apren-
dizagem implica transformação de si. O que se precisa pensar é justamente a
ideia de que aprender sobre o genocídio indígena no Brasil não pode ser algo
que o professor simplesmente exponha em aula, como “matéria dada”. Há que
se ter acontecimento nessa aula: que alguém chore, que alguém se espante,
que alguém ache um absurdo, que alguém diga “professor, o senhor não tem
o direito de nos mostrar isso que está nos mostrando! O senhor não tem o
direito, é muito forte, é muito pesado!”. Uma aula de história provoca sensa-
ções, muito mais que simplesmente ensina causas, efeitos e consequências. A
questão que se coloca é que uma aula de história provoca sensações.
Na percepção que temos da história disciplinar, profissional e, por que
não dizer, eurocêntrica, a análise de um fato, a compreensão e a explicação
desse fato, é um modo de enclausurá-lo, analisá-lo, compreendê-lo e explicá-lo
num passado distante. Essa distância é medida não apenas pelo que de estra-
nho o tempo do fato tem em relação ao presente, mas pela enorme distância
entre o objeto e o sujeito do conhecimento. Não se trata de um estranhamento,
mas de uma distância epistemológica. A construção da narrativa envolve duas
entidades opostas, distantes e apartadas: passado/fato/objeto e presente/sujeito.
Esse passado recortado é frio e disciplinado, é tratado como um bibelô pronto
a ser objetificado e individualizado pelo discurso. Dessa relação de absoluta
exterioridade entre passado, objeto, presente e sujeito não se extrai nada de
vida, nada que permita expandir a vida; e expandir a vida é exceder os limites
do presente. Essa forma de conhecer o passado tem sido, por muitos anos,
comum às salas de aula de história e aos livros didáticos. De outro modo, o
passado é vivo, pois não apenas ele insiste no presente, na forma de questões
abertas e sensíveis, como também insiste como acontecimento que provoca
aprendizagens novas. Desse diagrama que construímos podemos visualizar
duas urgências ao ensino de história: as questões sensíveis e a diferença. Diante
dessas duas questões – em verdade uma dupla preocupação – situam-se dois
elementos da aprendizagem histórica: o paradoxo temporal que pensa presente
e passado de uma só vez, e uma aprendizagem da experiência que deixa de
apartar sensibilidade e inteligência, corpo e alma, conhecimento e ética.
Dessa forma, temos um passado vivo que se prende ao presente como
residualidade ou como remanescência, constituindo o ser do paradoxo tem-
poral. As aulas de história se põem a tomar como conteúdo de ensino e
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minutos para que toque a sineta, embora sabendo que terei de voltar outro dia,
pois, com um desempenho assim, não há como me dar por satisfeito com o
trabalho do estagiário. A tarde está perdida. Aí acontece algo que muda tudo.
Uma sirene estridente de polícia se escuta ao longe, vai crescendo, captura a
atenção de todo mundo, logo já vemos a viatura policial da brigada militar
passando em frente à escola. Nos damos conta de que são duas viaturas, na
realidade. Elas reduzem muito a velocidade, a tal obra do outro lado da rua está
cercada por montes de saibro, difícil passar pela frente da escola, penso que
mesmo o meu carro deve estar atrapalhando o trânsito, pois deixei meio atra-
vessado entre calçada e rua. As sirenes não permitem que se escute mais nada,
todo mundo olha, crianças se levantam das cadeiras. A coisa passa, a situação
volta ao que estava antes. E uma aluna afirma – ou pergunta – com voz muito
audível: “estão perseguindo um negro, que nem lá, onde o professor estava fa-
lando, não é?”. Imediatamente a sala fica inundada de observações feitas por
outros alunos, nem consigo anotar tudo, pois são muitas falas ao mesmo tempo,
mas se escutam afirmações como: “Quando entro no supermercado X (grande
rede em Porto Alegre), sempre o fiscal fica me seguindo”. “Na padaria lá na
faixa os outros pegam o pão no balcão e vão pagar no caixa. Quando sou eu,
eles levam o pão ao caixa, eu pago, e só depois eles me entregam o pão”. “A
minha mãe e eu fomos no crediário, e ela deixou a bolsa na cadeira, enquanto
ia beber água no bebedouro, e quando voltou e pegou a bolsa de novo, o guarda
veio perguntar se a bolsa era dela mesmo”. “Eu disse pra minha tia que eu nem
quero mesmo tênis novo no Natal, porque negrão com tênis novo é roubada
na certa, é muita explicação o tempo todo”. A agitação sobe de tom quando
uma aluna diz em voz bem alta “e tem aquela professora querida que falou um
dia que para ser empregada doméstica a gente nem precisava estudar muito, no
nosso caso, emprego era mais importante do que estudo”. O passado ligado à
raça e à escravidão não passou; bastou uma sirene, e ele invadiu a sala. Para meu
espanto, o estagiário se anima, bate palmas, pede atenção, parece que o ligaram
na corrente de 220 volts. Traça uma linha de caneta vermelha dividindo o qua-
dro branco (a única coisa moderna que há nessa sala) e, enquanto escreve, vai
dizendo aos alunos “aqui desse lado, a gente vai fazer uma lista de coisas como
eram antes, antigamente, no tempo da escravidão; e aqui desse outro lado, a
gente vai escrever como é hoje, todo mundo tem que copiar tudo, e depois a
gente vai fazer um debate”. Percebo que a tarde foi salva pela sirene da polícia.
Mais surpreso fico quando os alunos listam os elementos “de antigamente” com
precisão, ou seja, eles haviam escutado e guardado na memória, talvez apenas
não soubessem o que fazer com aquilo. Quando a lista “das coisas de hoje”
começa a ser feita, uma aluna sugere que se faça como em alguns exercícios do
livro, ligue a coluna da direita com a da esquerda. Todo mundo ri e concorda,
os alunos agora estão também conduzindo a aula, o poder se repartiu entre
docente e discentes. A afirmação de antigamente, “trabalhavam e não ganha-
vam salário”, fica ligada por uma seta com a afirmação de hoje, “trabalham e
ganham o salário mais baixo do mercado”. Fazem-se conexões ligadas a local
de moradia, religião, maus tratos, preconceito. Verdade seja dita, tudo é feito
de modo um tanto aligeirado, mas há agora um vigor na sala, um envolvimento,
que contrasta nitidamente com o momento anterior. E assim a aula segue, até
que a sineta da troca de períodos interrompe tudo e os alunos correm para fora.
Alguém falou que a ventania da chuva já dá para ver ao longe, o desejo de qual-
quer pessoa sensata numa tarde dessas é que a chuva comece logo. Um menino
se aproxima de mim e diz com o ar mais zombeteiro que se possa imaginar: “a
gente acha o nosso professor muito massa, mas ele precisa de um empurrão
toda hora, é sempre assim, mas ele é mais legal que a nossa professora. Ela, nem
adianta empurrar mais, ela não anda”. O menino nem espera eu comentar al-
guma coisa, sai empurrando os outros meninos a sua frente, aos gritos de “em-
purra gente, empurra gente”.
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disparador a partir de onde foi possível pensar o presente por uma residuali-
dade medieval entre nós, foram as condenações das práticas sodomitas pela
Inquisição medieval, elemento intimamente ligado à misoginia medieval, re-
síduo igualmente importante nos tempos atuais.5 Trata-se de uma questão
sensível em todos os seus contornos, historicizada na forma da residualidade
e a partir de um disparador que procura não aproximar períodos históricos,
mas perceber práticas que se alongam no tempo fazendo passado.
mas de uma curta listagem de elementos centrais para pensar essa modalidade
de ensino. O primeiro deles é assumir na aula de história que o passado nunca
passou exatamente, ele está vivo e atuante no presente de alunos e professores,
e isso se manifesta de modos muito diversos. O conceito de residualidades é
peça-chave para lidar com esse “passado que nunca passa”, e que, portanto,
ajuda a produzir quem somos no presente. O segundo elemento é pensar que
os temas sensíveis não são dados a priori, não há como construir uma listagem
de temas sensíveis que exista para sempre e propor, então, atividades para cada
um, à moda de uma “lista de conteúdos e suas atividades”. A produção dos
temas sensíveis é fruto de uma relação entre passado e presente, entre o pro-
grama de história e as marcas das culturas juvenis e do contemporâneo. Exige,
então, sensibilidade da parte do professor, e só confirma o ditado de que o bom
professor de história é alguém que mergulha no passado com os pés bem firmes
no presente, e esse presente inclui compreender a atualidade dos alunos. O
terceiro elemento é assumir que os temas sensíveis são atravessados por fortes
divergências de opinião e aceitar isso como constitutivo da aula de história, que
busca mais debate do que propriamente a produção de consensos ou verdades
acabadas do tipo “o que realmente aconteceu na história”. A potência da aula
e a produtividade do ensino de história se revelam no vigor dos debates, no
clima de liberdade de expressão, no respeito aos direitos humanos e na aposta
de que todos saiam transformados em suas identidades (Mouffe, 2003).
Em sintonia com isso, o quarto elemento diz respeito a pensar a aula de
história animada pela noção de modus vivendi, valorizando nela um elemento
fundamental de sua história, que é a disposição para a capacidade de construir
acordos entre indivíduos e grupos cujas opiniões diferem, disposição que en-
tende o espaço público como local de negociação intensa entre projetos dife-
rentes e legítimos (Seffner, 2015). Tal dinâmica vai muito além do que em geral
se afirma sobre a inclusão e a diversidade. Não se trata apenas de “reconhecer”
que o outro é diferente, e “aceitar” que ele seja incluído. Trata-se de realizar
um movimento de forte alcance pedagógico, de colocar-se na posição do outro
e aceitar modificações na sua própria posição tendo em vista a existência do
outro. As narrativas da história deslocam nossas narrativas pessoais, e esse é o
valor de seu estudo, é para isso que se estuda história, e não para simples co-
nhecimento de registros do passado (Albuquerque Júnior, 2016). Um quinto
e último elemento é pensar toda a aula de história como também inserida no
Junho de 2018 29
Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner
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NOTAS
1
Tal estrutura pode ser conhecida no sítio web mantido pela Rede Direitos Humanos, or-
ganização não governamental que atua em estreita sintonia com as políticas públicas da
área. Disponível em: https://goo.gl/Yr17UJ; acesso em: 25 dez. 2017.
2
QUIJANO (2005) elaborou a ideia de colonialidade do poder, com respeito aos processos
de constituição histórica das relações de desigualdade baseada na raça, estabelecidas pelos
europeus desde o processo de colonialismo.
3
Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes, concedida a Rubenita
Moreira (5 e 14 jun. 2006), e lida na Jornada da Residualidade, em 13 de julho de 2006 na
Universidade Federal do Ceará (UFC). O professor Pontes faz parte do Grupo de Estudos
de Residualidade Literária e Cultural (Gerlic), que atua desde 1991 no Curso de Letras/
Departamento de Literatura da UFC.
4
“Por ‘residualidades medievais’ ou ‘reminiscências medievais’ devem-se entender justa-
mente as formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao medievo, altera-
dos e/ou transformados no decurso do tempo. Nesta categoria encontram-se, por exemplo,
as festas, os costumes populares, as tradições orais de cunho folclórico que remontam aos
séculos anteriores ao XV e que preservam algo ainda do momento em que foram criados,
mesmo tendo sofrido acréscimos, adaptações, alterações. Festas como a de Corpus Christi,
as Folias de Reis e a Festa do Divino Espírito Santo, o Natal, e mesmo o Carnaval, foram um
dia ‘medievais’ e persistem, mas não da mesma forma, nem desempenhando os mesmos
papéis na Europa ou em outras partes do mundo para onde foram levadas” (MACEDO,
2011, p.13).
5
Sobre a misoginia medieval, ver BLOCH (1995).
Junho de 2018 33
História e história local: desafios,
limites e possibilidades
History and Local History: Challenges, Limits and Possibilities
Erinaldo Cavalcanti*
Resumo Abstract
Este artigo tem por objetivo ampliar as This article aims to expand the discus-
discussões sobre a chamada história lo- sions about the so-called local History,
cal como objeto de estudo e, também, as an object of study and as a conceptual
como categoria conceitual para o ensino category for the History teaching and
e/ou a historiografia. Almeja, por conse- for its research. Therefore, the article
guinte, problematizar alguns sentidos e aims to problematize some of the mean-
significados que são atribuídos à histó- ings and senses that are attributed to lo-
ria local e demonstrar alguns dos desa- cal History and to show some of the
fios que se apresentam para as diferen- challenges arisen for its different appro-
tes apropriações pelas quais tem sido priations.
mobilizada. Keywords: History; local History; con-
Palavras-chave: História; História local; ceptual contributions.
aportes conceituais.
roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia
fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro fal-
so; a palavra foi feita para dizer. (Ramos, 1962)
Desafios
Por meio dessa leitura interpretativa a história local seria, portanto, uma
“pequena peça” de um organograma maior, e o professor ou pesquisador iria
apresentar em que dimensões ela corresponderia à história nacional. Em outras
palavras, ela seria uma consequência da “história não local”, um prolongamen-
to em dimensões reduzidas e, assim, teria de manter com a “história nacional”
uma relação de causa e efeito. Portanto, aquilo que ocorreu no âmbito nacional
provocou os efeitos e as consequências que determinaram, em dimensões mi-
cro, a configuração da história local.
Esses últimos significados atribuídos ao que se convencionou chamar de
história local parecem se encontrar presentes em todas as outras leituras inter-
pretativas mencionadas anteriormente. Assim, seja entendendo a história local
como uma história “pequena” ou como uma história “do entorno”, como uma
história “coesa e passível de ser estudada em sua totalidade”, uma história
como “consequência de outra história ‘maior’”, é recorrente a interpretação
que associa a história local a um espaço físico-geográfico, em uma relação de
determinação. Ela é, quase sempre, apresentada como determinada por essa
dimensão do espaço. É história local porque é “do bairro”, “da rua”, “da vila”,
“da escola”.
Eu gostaria de ressaltar, todavia, que essas interpretações acerca da cha-
mada história local nem sempre aparecem de maneira explícita, assim como
não estão presentes em todos os trabalhos de professores e/ou autores que
fazem uso da história local como objeto de ensino ou pesquisa. Há importantes
reflexões e relatos de experiência – apresentados em revistas e/ou congressos
– sobre a temática em tela, como demonstra a literatura especializada.
uma forma literária” (Samuel, 1990, p.221). Nesse sentido, os registros docu-
mentais que oferecem esses indícios são potenciais possibilidades de estudo
para se analisar parte do universo polissêmico constitutivo da chamada história
local. O autor chama a atenção para a possibilidade de trabalhos com os jornais
municipais, que seriam importante fonte para o trabalho.
Como meu objetivo é problematizar os desafios do uso da chamada his-
tória local, poderíamos ampliar as discussões e colocar em debate, por exem-
plo, a questão: o que se configura como jornal municipal? Pergunta
aparentemente simples e demasiado óbvia, até. Entretanto, todo periódico é
municipal, pois é produzido em algum município, salvo os jornais do Distrito
Federal. Os jornais Folha de S. Paulo, O Globo e o Diário de Pernambuco, por
exemplo, também são municipais, como o é O Correio Tocantins10 ou o Jornal
Vanguarda.11 Entretanto, as relações políticas e editorais daqueles, diferentes
destes últimos, em termos de produção, circulação, visibilidade e inserção nas
relações sociais, os fazem ultrapassar amplamente as fronteiras municipais.
Nessa dimensão, seria importante compreendermos com clareza o que se en-
tende por jornal municipal. Um periódico cuja circulação se restringe aos li-
mites fronteiriços do município? Uma questão a ser problematizada.
Raphael Samuel apresenta uma grande quantidade de documentos que
possibilitam o estudo do que nomeia como história local. Registros resultantes
de atividades de rádio locais, moedas antigas, cartões-postais e dos dias dos
namorados, cartas pessoais, livros de batismo das paróquias e livros de prêmios
da escola do bairro, para citar alguns exemplos. São registros que, sem dúvida,
oferecem possibilidades de estudo para uma variada gama de objetos.
Entretanto, são colocados em uma perspectiva segundo a qual o local se define,
prioritariamente, pela dimensão espacial de proximidade e tamanho. A rádio
é local por ter um alcance relativamente pequeno e residir no bairro ou na
cidade, também pequenos. O mesmo fundamento serve para pensar os demais
registros documentais apresentados.
Raphael Samuel, ao discutir a diversidade documental que pode alimentar
os estudos sobre a história local, faz referência à categoria de “documento local”.
Nessa dimensão, caberia questionar: o que seria um documento local e, por
extensão, o que seria um documento não local? Quais os princípios e as dimen-
sões que caracterizariam um documento para receber o estatuto de “local”?
Considerações finais
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1
O Encontro ocorreu entre os dias 6 e 8 de março de 2017, no Instituto de Ciência e
Tecnologia do Pará, na cidade de Marabá. Deixo aqui expressos meus agradecimentos aos
organizadores do evento pelo convite: a professora Anna Carolina de Abreu Coelho e o
Grupo de Pesquisa “O local e o global: história, memória e natureza no sul e sudeste do Pará”.
2
Para uma reflexão envolvendo História, ensino e patrimônio, ver CHAVES, 2013;
MATTOZZI, 2008; PELEGRINI; FUNARI, 2008; HARTOG, 2006; ORIÁ, 1998; 2014.
3
Consultar: CHARTIER, 2002; GUIMARÃES, 2012; MORTATTI, 2014; LEOPOLDINO, 2015.
4
Para ampliar as discussões, ver: ALVES, 2005; ASSMAN, 2005; MATTA, 2006; SILVA,
2012.
5
Para expandir as discussões, consultar: GOMES; LUCA, 2013; DELGADO; FERREIRA,
2013; MAGALHÃES; GONTIJO, 2013; MIRANDA, 2013.
6
As referências acerca da história local encontram-se ao longo do texto e na bibliografia do
presente artigo.
7
Sirvo-me aqui das discussões promovidas pelo historiador Carlo Ginzburg acerca do cha-
mado “paradigma indiciário”. Para ampliar as discussões, consultar GINZBURG, 1990.
8
Também podemos encontrar essa linha de interpretação nas reflexões promovidas pelo
geógrafo Milton Santos. Para ele, o espaço é o efeito de um conjunto de múltiplas forças
resultantes das relações humanas no tempo. Nesse sentido, Santos argumenta que “todo
espaço social pode ser objeto de uma análise formal, estrutural e funcional” (SANTOS,
2009, p.55). Ou seja, a concepção conceitual de “espaço”, assim como de “local”, é uma
construção intelectual.
9
Não podemos incorrer, portanto, em afirmações apressadas como se houvesse comple-
mentaridade ou similaridade entre história local e micro-história. É oportuno enfatizar que
a micro-história surgiu, segundo Jacques Revel, “como uma resposta às limitações óbvias
daquelas interpretações da história social, que em sua busca de regularidade, dá proemi-
nência a indicadores supersimples” (REVEL apud LEVI, 2011, p.162). E, para Giovanni
Levi, a micro-história se caracteriza, fundamentalmente, pela “redução de escala, o debate
sobre a racionalidade, a pequena indicação como um paradigma científico, o papel do par-
ticular (não, entretanto, em oposição ao social), a atenção à capacidade receptiva e à narra-
tiva, uma definição específica de contexto e a rejeição do relativismo” (LEVI, 2011, p.162).
10
Jornal produzido na versão impressa e on-line, com sede na cidade de Marabá, Pará. O
jornal foi fundado em 1983 pelo jornalista Mascarenhas Carvalho da Luz, com circulação
quinzenal. Depois, passou a ser semanal e, atualmente, apresenta três edições por semana.
Sua versão on-line encontra-se disponível em: http://www.ctonline.com.br/?inicial; acesso
em: 2 mar. 2017.
11
Jornal produzido na versão impressa e on-line, com sede na cidade de Caruaru,
Pernambuco. O jornal Vanguarda foi fundado em 1932 por José Carlos Florêncio, com
quatro páginas cada exemplar e tiragem inicial de mil exemplares, e circulava pelas princi-
pais cidades do Agreste de Pernambuco e na capital, Recife. Sua versão on-line encontra-se
disponível em: http://www.jornalvanguarda.com.br/v2/index.php; acesso em: 2 mar. 2017.
1 introdução
2 Em razão dos limites deste capítulo, não passaremos em revista esse debate,
no entanto, destacamos, entre os que endossam, os trabalhos de Geovanni
Levi (1992) e Jacques Revel (1998); e, no plano da crítica, o clássico trabalho
de François Dosse (1992).
5 Referências
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RESUMO ABSTRACT
Este texto inscreve-se no debate que atual- This text is part of the debate that curren-
mente tem-se realizado em torno da história tly has been held around t he local history
local como proposta para o ensino de História as a proposal for teaching history in elemen-
no Ensino Fundamental. Nesse sentido, apon- tary school. Therein, that while this perspec-
tou que, embora tal perspectiva seja impor- tive is important to break with traditional
tante para romper com a história tradicional, history, lack of academic studies more
carece de estudos acadêmicos mais especifi- specifically aimed at this “kind” or “approach”
camente voltados para esse “tipo” ou “aborda- the writing of history. Having this state-
gem” da escrita da história. Tendo por hipóte- ment in theory, be appointed to draw up
se essa afirmação, indicou ser relevante a ela- relevant issues that seek to relate the history,
boração de problemas que procurem relacio- historiography and school education, in order
nar história, historiografia e ensino escolar, to understand to what extent the theoreti-
com o objetivo de perceber em que medida as cal and methodological review, carried out
revisões teóricas e metodológicas, realizadas by a significant range of contemporary his-
por uma significativa gama de historiadores torians have allowed rethink concepts of ti-
contemporaneamente, têm permitido repensar me, space, objects and scales of analysis
conceitos de tempo, espaço, objetos e escalas that might form the basis for thinking about
de análises que possam servir de base para local history in theoretical and methodo-
pensar a história local em termos teóricos e logical terms. Along the way, signaled posi-
metodológicos. Nessa procura, sinalizou pó- tive contributions to the new urban history
sitivamente para as contribuições que a nova can offer at this time, highlighting the
história urbana pode oferecer nesse momen- efforts of the French historian Bernard Le-
to, destacando os esforços do historiador fran- petit.
cês Bernard Lepetit.
∗
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Maringá (UEM) / Brasil.
1 Ver Anais do VII Encontro Nacional: Perspectivas do Ensino de História. Nele, encontram-
se os trabalhos do GT1: História local, regional e ensino de História.
SCHIMIDT e CAINELLI, 2004), pode-se afirmar que a história local tem sido
compreendida como “história do lugar”, por vezes, ligada à abordagem da
história regional e/ou à micro-história. Mas também se encontra o
entendimento de que se trata de estratégia ou método de ensino que permite
articular, pedagogicamente, a História do Cotidiano ao espaço local e este ao
nacional (SANTOS, 2002). No entanto, no campo da produção historiográfica, a
“história do lugar” não está ainda suficientemente esclarecida, embora a
localidade ou o lugar tenha se tornado objeto de investigação e ponto de partida
para a produção de conhecimentos sobre o passado.
Assim, o objetivo de pensar em como o ensino de História, sob a
perspectiva local, poderia estar impactando a prática docente com o fim de
avançar as tendências consideradas tradicionais implica, em primeiro lugar,
refletir que história é a história local. Essa reflexão inicial se faz necessária
porque, como se verá, o próprio sentido de História Local coloca os
pesquisadores diante de questões complexas a serem melhores pensadas na
correlação que estabelece com o campo da historiografia como se apresenta na
atualidade.
Europa e no Brasil.
Na referida obra, os autores esforçam-se para elaborar um “método
científico” para a história, de modo que ficassem canonizados os caminhos do
ofício de historiador e a “essência eterna” da disciplina. Estimulados pela busca
da “verdade” e pelo “culto à ciência”, contribuíram para definir narrativas,
legitimar fontes, configurar textos e normatizar a exposição metodológica dos
fatos. Remetida a um contexto intelectual, determinado pelas chamadas ciências
naturais, a obra, ao preconizar um rigoroso método de fazer história, não
suscitou espaço para discussões epistemológicas, uma vez que se entendia que
fazer ciência era revelar a verdade. A esse registro, Prost (2008: 9) indica que,
no cenário francês, “felizmente, essa atitude está em via de mudar”.
No Brasil, os “ecos” da tradição francesa foram sentidos por historiadores
como José Roberto do Amaral Lapa. Em 1981, ao analisar a produção
historiográfica nacional dos anos de 1970, afirmou que, em função dessa
circulação de ideias no país: “[...] o historiador brasileiro no geral foi quase
sempre avesso aos estudos teóricos” (LAPA, 1981, apud GUAZZELLI, 2000, p.
9).
Ao que parece, as décadas de 1980 e 1990, também neste país, foram
marcantes para rever essa tradição, conforme deixa entrever Ângela Maria de
Castro Gomes (2000). A autora, ao tratar da reflexão teórico-metodológica dos
historiadores brasileiros, afirma que se têm caminhado na direção fértil de
“verificar que teoria e empiria estão conectadas, constituindo um todo que faz
sentido” (GOMES, 2000: 21). Informa ainda que os avanços na área exatamente
se correlacionam com o crescimento dos estudos historiográficos que se
vivenciou nas últimas décadas do século XX.
Nesta conjuntura e considerando a tradição francesa presente no país, fica
oportuno afirmar que os debates sobre o ensino de História devem incluir a
reflexão que todos os historiadores contemporâneos estão convidados: pensar
os efeitos epistemológicos de seus trabalhos. Por esse motivo, entende-se que
suscitar reflexões sobre o sentido historiográfico da história local é prudente e
necessário neste momento. Exatamente porque uma definição teórica e
metodológica da história local, por meio dos aportes da historiografia
acadêmica, ainda não tem integrado as preocupações centrais dos historiadores
brasileiros, o que traz dificuldades para a definição clara (e conseguintemente
para o debate) do que tem sido a história local nesse campo de produção de
conhecimentos.
No que se refere à proposta pedagógica por sua vez, a História Local ou do
“lugar” tem ampliado os estudos e relatos de experiências com esses saberes no
espaço escolar sem, contudo, abordar, especificamente, os nexos relacionais
com a historiografia que vem sendo produzida. De forma geral, existe o
consenso, entre os pesquisadores do ensino, de que “o trabalho com a história
local pode produzir a inserção do aluno na comunidade da qual faz parte, criar
suas próprias historicidades e identidade” (SCHIMIDT; CAINELLI, 2004: 113) e
pode possibilitar a compreensão do “[...] entorno do aluno, identificando o
passado sempre presente nos vários espaços de convivência –escola, casa,
comunidade, trabalho e lazer–, e igualmente por situar os problemas
significativos da história do presente” (BITTENCOURT, 2004: 168). Tal
perspectiva pedagógica, entretanto, não permite verificar se é extraída dos
esforços investigativos da produção de conhecimentos construída pelos
historiadores ou daquilo que ela é, enquanto conhecimento produzido com
normas e padrões de cientificidade,2 capaz de explicar do passado socialmente
vivido.
De forma intrigante, no entanto, a proposta de ensino prevê que o
professor assuma papel de pesquisador, com o fim de “munir-se de
conhecimentos preliminares sobre a história local e a abordagem que adota de
modo a aprofundá-los com a turma, participando com ela da produção desse
tipo de conhecimento e da forma de construí-lo” (SANTOS, 2002: 109).
A importância dada ao aspecto operacional a essa perspectiva de ensino
traz para o centro do debate questões de investigação histórica, os campos de
conhecimentos em história e suas relações com o ensino escolar. Isso porque, no
ato pedagógico (aparentemente simples) de localizar, selecionar fontes, por
exemplo, cruzam-se vários saberes referentes, quer ao trabalho com o arquivo,
quer às técnicas de leitura, à análise e interpretação dessas fontes; ação que
suscita debate e investigação, já que exige “selecionar” com base em critérios
teóricos e metodológicos válidos para esse campo de conhecimentos. Essa
interdependência de saberes e práticas sugere que é importante desenvolver
2 Sobre as questões de cientificidade em história, apoiamo-nos em Certau (2006), para quem a
história é um conhecimento cujos resultados são passíveis de serem confirmados, postos à
prova.
Embora o crescente interesse pela história local não tenha acompanhado uma
correspondente reflexão teórica e metodológica sobre ela, em que o professor
possa apoiar suas decisões, entende-se que esse interesse pela localidade faz-se,
em grande medida, pela rejeição dos recortes temporais e espaciais
considerados tradicionais.
É possível afirmar que a história local se redefine no contexto das
mudanças historiográficas, as quais trazem para a cena novas temporalidades, o
interesse pelo cotidiano e por outros sujeitos históricos decorrentes também da
atual aproximação e fértil diálogo da história com a antropologia e a geografia
como áreas de conhecimento. Aliás, parece ser exatamente esse diálogo
disciplinar que faz com que o historiador possa trabalhar com conceitos de mais
de um campo de conhecimento. Mais claramente: o historiador é um
profissional do campo das ciências sociais, muito preocupado com a
periodização e o movimento constante do tempo num determinado espaço; de
forma que “[...] promove uma união muito particular entre saberes
disciplinares, bem como uma união entre seu objeto de estudo e os conceitos
escolhidos, sob o signo da temporalidade” (GOMES, 2000: 20).
Para a reflexão sobre o sentido da história local, essa observação é
significativamente instigante, porque, como quer indicar a epígrafe que abre
esta discussão, perguntar sobre o que é uma região, um território ou um lugar,
na aferição histórica do conceito é ambíguo e depende do conjunto das
produções historiográficas realizadas num determinado tempo e espaço.
De acordo com Bittencourt (2004: 171), o geógrafo Milton Santos
apresentou importantes contribuições para a definição de lugar. Na sua
interpretação, “cada lugar tem suas especificidades e precisa ser entendido por
meio da série de elementos que o compõe e de suas funções”. Nesse sentido, um
dos conceitos básicos e fundamentais a ser mais bem explicitado é a
identificação do conceito de espaço no trato com a história local. Esse elemento
permite introduzir uma reflexão sobre a localidade no debate historiográfico,
tendo como eixo para essa reflexão as mudanças na chamada “História
Regional”. Conforme Albuquerque:
O questionamento da região, como idéia fixa, passaria pela crítica da
História, que participou desta cristalização identitária, pela retirada
das fronteiras do espaço historiográfico, porque o nacional e o regional
não seriam critérios de validação de uma produção historiográfica,
nem referenciais pertinentes para fundar uma epistemologia. (apud
Considerações finais
Bibliografia
BITTENCOURT, Circe. M. F. Ensino de história: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2004.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. História. Brasília, DF: MEC, 1996.
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VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 3. ed. Brasília, DF: UNB, 1995.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Gestão e Avaliação da Educação Superior
(MPPGAV) - Centro de Educação (CE)/Universidade Federal da Paraíba (UFPB . E-mail: palomacborba@gmail.com
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Gestão e Avaliação da Educação Superior
(MPPGAV - Centro de Educação (CE)/Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: alanpb@hotmail.com
Resumo:
A pesquisa, de caráter qualitativo, apresenta uma breve descrição histórica das universidades públicas
brasileiras e seu contexto político-econômico, relacionando a conjuntura desse desenvolvimento com a
gerência de políticas públicas de educação superior no país, sobretudo, da evolução do Programa de
Educação Tutorial - PET, uma política criada em 1979 e voltada para qualificação da graduação em
instituições de educação superiores públicas e privadas. A proposta é apontar como o progresso do PET se
relaciona com as situações sociais e políticas a partir da década de 70, considerando também as influências
do pensar universitário das décadas anteriores. Com base na estratégia metodológica da pesquisa
bibliográfica e documental, o trabalhou utiliza como referência as fases descritas por Marilena Chauí
(Universidade Funcional, Universidade de Resultados e Universidade Operacional) como norte para análise.
Além disso, compreendendo a educação como bem público e, estando as demais instâncias e atores dos
processos de gestão envolvidos nesta condição, a universidade é reconhecida como parte orgânica da
sociedade e, como tal, ao tempo que é influenciada, também influencia a sociedade nos desafios da
construção de um fazer universitário comprometido com processos científicos, culturais, políticos e
econômicos socialmente responsáveis.
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INTRODUÇÃO
METODOLOGIA
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graduação. Para tal, o trabalho contextualizará, baseando-se em pesquisa bibliográfica e
documental, os aspectos históricos, sociais e econômicos das já citadas fases com o processo de
evolução e transformação do Programa, discutindo e problematizando os elementos que se
relacionaram e influenciaram tal mudança.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mais alguns destaques da educação brasileira, sobretudo da educação superior, dos anos 30
aos anos 60 do século XX contribuirão para o entendimento dessa fragilidade. Nos anos 30, a
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acentuada centralização política, legitimada pela promulgação da segunda Constituição Republicana
em 1934, influenciou na principal reforma educacional desta época: a Reforma Campos (FÁVERO,
2006).
Esta década tutelou muita das principais políticas de educação, incluindo as que atingem o
Ensino Superior. Dentre elas, cabe destacar a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, a
promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras e a criação do Conselho Nacional de
Educação. Mesmo com as críticas ao modelo “fragmentado e profissionalizante das instituições
brasileiras de ensino superior” (PAULA, 2009, p.74), havia os que o defendessem como atribuição
prioritária da universidade, em detrimento do desenvolvimento da pesquisa científica, mantendo o
padrão de um modelo napoleônico de universidade, com primazia profissionalizante, atendendo as
necessidades do Estado centralizador. Vale lembrar que a Reformar Campos primava pela
indissociabilidade entre ensino e pesquisa nas universidades, e objetivava traçar diretrizes para
adequar a educação à modernização do país, com especial cuidado à formação de elites e na
instrução profissional. O estímulo à privatização era uma realidade, ficando a educação pública
destinada a camada da população que não pudesse arcar com os custos da formação privada
(VIEIRA, 2007), inclusive constando no texto da Constituição de 1937 a livre iniciativa particular
para promoção da arte, da ciência e do ensino.
Nesse formato, tem-se ainda a instituição do sistema de Cátedras e a concessão de uma
autonomia relativa às universidades. No caminho inverso, a idealização e criação da Universidade
de São Paulo (USP) levanta a bandeira de uma instituição baseada na concepção alemã de
universidade, de caráter Liberal. A USP será um dos principais canais de discussões sobre a
importância de uma universidade voltada à formação científica, mas ainda carregando o viés elitista
de universidade. Além da formação profissional, estava comprometida com “um saber livre e
desinteressado, capaz de contribuir para o progresso da nacionalidade em formação e para o
enriquecimento da educação” (PAULA, 2009, p.74).
A redemocratização do país e suas nuances de caráter liberal inaugurará o período da
universidade brasileira no chamado “Pós-45”, que encerra o período de Getúlio Vargas no poder e
põe fim ao Estado Novo. Nas décadas seguintes, são registradas lutas e iniciativas em prol de uma
autonomia universitária real, além da massiva multiplicação das universidades ainda que com
superioridade profissionalizante. Com isso, criou-se uma falsa ideia de democratização da
universidade, que se refletia no acelerado crescimento econômico do país vivido nos anos 50 por
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conta da industrialização, além de os debates acerca da precarização da educação superior serem
recorrentes, participando a sociedade, docentes e, também, os estudantes.
Já na intervenção militar, após 1964, o país apresentará a Lei n. 5540/68 que trata da reforma
universitária. Com influência latente da concepção norte-americana de universidade, as instituições
universitárias brasileiras, a partir de então, adequaram-se, impositivamente, a um sistema
declaradamente voltado aos interesses capitalistas e centralizadores. Dessa forma, houve a
necessidade das instituições responderem às demandas do mercado e a abertura à proliferação de
instituições privadas de nível superior e fragmentação da gestão, criando abismos entre as
atividades fim e as atividades meio, além da massiva expansão de vagas, numa perspectiva
excludente e não democrática. Nesse contexto, a influência do modelo norte-americano de pensar a
educação universitária dominou a nova estrutura política do Brasil a partir de 1964.
A ditadura imposta na intervenção do governo dos militares seguia a cartilha do mundo
capitalista, com grande intervenção do Estado na economia, além de suntuosos investimentos
nacionais em programas de crescimentos estruturais, muitos creditados pelos Estados Unidos, a fim
de captar indústrias de capitais estrangeiros. O crescimento econômico, a diminuição do
desemprego e o aumento do Produto Interno Bruto são alguns dos elementos que influenciaram na
massificação de vagas do ensino superior, abrindo também portas à oferta de vagas no setor
privado.
A ampliação dessas vagas não tinha relação com um projeto social de democratização e
promoção de uma educação de qualidade para todos. Este ainda era consequência do processo de
industrialização vivido desde o início da década de 50. Diante do Milagre Econômico, fase da
economia brasileira dos anos 60 que também contou com o endividamento externo e altos índices
de inflação, o país tratou de moldar o sistema educacional no sentido de atender as necessidades
políticas-econômicas, promovendo reformas na educação no sentido de atender as demandas do
mercado. Saviani destaca que a orientação geral da perspectiva do governo militar para a educação,
apontava para a profissionalização do nível médio e a integração da graduação com a formação
tecnológica (SAVIANI, 2008).
Especialmente na educação superior, a influência estadunidense foi oficializada através do
acordo firmado entre o Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento, o acordo MEC-USAID. Mesmo com as grandes intervenções dos movimentos
populares e de organizações da sociedade civil do início dos anos 60, que promoveram extensos
debates e ações em prol de uma educação de qualidade para todos, em 1968, na presidência de
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Costa e Silva, a lei n. 5.540 que trata da reforma universitária, foi apresentada ao país
desconsiderando muito dos anseios de uma educação de formação humanista.
Além disso, o relatório produzido pelo consultor americano Rudolph Atcon, em que baseou
suas intervenções no formato Teacher´s College, predominante nos Estados Unidos, trouxe muitas
mudanças no formato das universidades brasileiras. Dentre elas, a extinção do sistema de cátedras, a
fragmentação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e a consequente criação dos centros,
departamentalização e subordinação diretamente à administração central, gestão baseada na
eficiência e eficácia empresarial como, dentre outras, os investimentos na pós-graduação. Também
se viu a aglutinação de faculdades em universidades, o vestibular classificatório e a facilitação, por
parte do governo, de processos de autorização de cursos superiores, especialmente na demanda
privada (MULLER, 2003).
Marilena Chauí, quando falou sobre a greve deflagrada na USP em 2014, prestou análise
sobre os tipos de instituições universitárias públicas que se desenharam desde a década de 1970 até
a atualidade. Ela identificou três categorias: a Universidade Funcional, a Universidade de
Resultados e a Universidade Operacional. Entre outros pontos da discussão de Chauí (2014),
destacamos para este estudo, além das categorias de universidade que tutelaram a conjuntura do
PET, a definição da necessidade de se conceber instituições universitárias públicas como instâncias
eminentes de prática social e, com isso, que se vista da condição de instituição, ou seja, “significa
que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa.”
(CHAUÍ, 2014, p.02).
O PET foi idealizado em 1979, no limiar da Universidade Funcional da década de 70, ou
seja, na conjuntura da expansão das vagas de educação superior para fins de sustentação político-
ideológica da classe média ao governo dos militares, com promessas de ascensão social via diploma
universitário. Ainda no contexto da expansão das universidades no início dos anos 80, o perfil
primeiro do Programa, que iniciou seus trabalhos batizado como Programa Especial de
Treinamento, cumpria o atendimento de superação de deficiências na formação acadêmica no
intuito de garantir clientela para ações de pesquisa e pós graduação. A massificação da educação
superior fez do PET o responsável por formar grupos de elite acadêmica na graduação (MULLER,
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2003). Era a perspectiva meritocrática e de treinamento como filosofia do Programa que espelhava
o contexto de instabilidade que passavam as Universidades naquele período:
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Sem destoar de outras políticas, com o sucateamento vivido pelas universidades públicas
brasileiras na Reforma Gerencial dos anos de 1990 e da política de privatizações, já com advento da
Universidade Operacional voltada para lógica da eficácia organizacional e comprometida com
processos de gestão baseados na produtividade (CHAUÍ, 2014), o PET sofreu grandes
instabilidades e ameaças de extinção. Dada a situação, a fim de levantar informações relevantes
sobre a pertinência do Programa, no governo FHC, a CAPES, através do NUPES/USP (Núcleo de
Pesquisa do Ensino Superior da Universidade de São Paulo), realizou pesquisas, coordenada pela
Professora Elizabeth Balbachevsky, para avaliar as atividades do Programa.
O PET atingia seu objetivo ao garantir maior envolvimento dos seus bolsistas com as
atividades de Ensino na graduação quando comparado aos programas de iniciação científica,
voltados exclusivamente à pesquisa, refletindo em relevante melhora do desempenho dos alunos de
graduação e a qualificação dos cursos. Como bem analisado por Balbachevsky, em avaliação
publicada no INFOCAPES (1998), o PET garantiu aos seus bolsistas uma formação mais
abrangente, revelando expressivo aproveitamento das atividades acadêmicas e maior envolvimento
na graduação, principalmente quando comparado aos participantes de programas de iniciação
científica. Além do envolvimento nas atividades de Ensino, o resultado da avaliação destaca maior
participação também nas atividades de Extensão e Pesquisa.
Além da avaliação da CAPES, paralelamente, o Ministério de Educação contrata uma
empresa de consultoria para também realizar uma avaliação das atividades PET. Ambas chegaram a
resultados satisfatórios, mas mesmo assim não foram suficientes para manter a continuidade desta
política pública, inaugurando, em 1997, o processo de desativação do PET. Inicialmente, isto
ocorreu com a diminuição em 50% das verbas e de números de bolsistas por grupo. Neste ano, o
país já contava com 317 grupos PET distribuídos em 59 IES do país (MÜLLER apud BARBOSA
et.al., 2013).
Como resposta a crise institucional e a possível extinção desta política, membros do
Programa em instituições de graduação de todo o Brasil se organizaram e articularam o Movimento
em Defesa do PET que, segundo MULLER, estava comprometido não só com a manutenção do
Programa, mas também com a qualificação da educação superior no país. As lutas e os movimentos
pela permanência do PET desenharam o caráter político do Programa, fortalecendo suas bases e
impulsionando a continuidade de suas atividades.
Em 1999, o Ofício Circular emitido pelas CAPES às IES determinava o fim das atividades
petianas até o dia 31 de dezembro daquele mesmo ano. Em ato de resistência e fortalecimento do
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Programa, também em 1999, foi criada a Comissão Executiva Nacional do PET (CENAPET). A
figura desta instância, que objetivava também, politicamente, articular melhor os atores, estabeleceu
um diálogo com o governo federal e, junto com o Congresso Nacional, foi possível derrubar a
decisão de extinção do Programa.
O PET acabou passando por reestruturações desde então, principalmente ao que tange a
filosofia e objetivos do Programa: a construção ideológica de sua proposta não estava mais baseada
na perspectiva do treinamento, mas da criação de situações de aprendizagem que desenvolvessem
habilidades para soluções de problemas da atualidade, estimulando uma postura crítica do estudante
diante do mundo que o cerca. As origens do PET como um programa de treinamento não cabia mais
no direcionamento que os próprios atores do programava almejavam, que é o de desenvolver
práticas pedagógicas interdisciplinares e integradas de ensino, de pesquisa e de extensão, em
contraste com métodos de memorização e reprodução de informações.
A própria luta em defesa do Programa, entendido como um instrumento de garantia de
qualidade da educação superior envolveu os estudantes e o cumprimento de seus papéis de cidadãos
incentivando-os a participarem criticamente e, tal processo, refletiu na própria identidade do PET:
“A formação política dos alunos do programa, como sujeitos de decisões, evidencia-se nos
processos interativos com diferentes comunidades e temas” (LAFFIN, 2007, p. 28).
Administrativamente, a partir dos anos 2000, o PET passou a ser gerido pela SESu/MEC.
Contudo, a instabilidade da permanência do Programa ainda era pauta de discussão, já que a
suspensão de pagamentos de tutores e atraso de bolsas de estudantes abalavam a continuidade das
atividades. Em um contínuo processo de fortalecimento, pós 1998, o programa foi se desenhando, e
crescendo, principalmente quando o “Programa Conexões de Saberes” se fundiu ao PET,
aumentando ainda mais o espaço da interdisciplinaridade e estreitamento do Programa com o
atendimento de demandas de correções de desigualdades. Em 2003, já com 295 grupos em todo o
país, O PET é rebatizado, agora como Programa de Educação Tutorial, em atendimento a nova
perspectiva de intervenção na graduação, considerando a indissociabilidade entre o ensino, a
pesquisa e a extensão.
Finalmente, em 2005, o PET ganha respaldo legal, sendo oficialmente instituído pela Lei nº
11.180/2005. Além disso, outros documentos regulamentadores também foram publicados, a fim de
definir questões administrativas, de avaliação, de acompanhamento e de unidade nacional,
definindo o PET como um programa vinculado à Pró-Reitoria de Graduação, composto por um
conjunto de grupos de no máximo 12 estudantes cada, acompanhado por um tutor que estimula a
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participação do grupo a desenvolver ações, de forma articulada, de ensino, pesquisa e extensão,
oportunizando experiências que ampliem conhecimentos numa perspectiva de cooperação mútua,
superando os padrões engessados em didáticas conteudistas de reprodução da informação (BRASIL,
2006). Vale salientar que a construção da nova identidade do PET foi construída coletivamente.
Além das lutas e movimentos pela permanência do PET, os Fóruns, Encontros Regionais e
Encontros Nacionais sediaram debates e assembleias de onde eram propostos e votados os
encaminhamentos para o Programa. Os resultados destes foram incorporados pela SESu e refletidos
no arcabouço legal desta política.
Atualmente, a maior parte dos grupos PET está concentrada na região Sudeste, com 276
grupos, seguido pela região Nordeste, com 213. No Brasil, ao todo, soma-se 842 grupos
(CENAPET, 2015).
CONCLUSÃO
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competitivo no mercado, tendo o forte incremento do setor privado, segundo os parâmetros de
avaliação e controle dos organismos multilaterais internacionais, pressionando os Estados a aplicar
estratégias empresariais para gerir as políticas públicas.
Tal conjuntura sócio-político-econômica, construída ao longo do processo político e
histórico do Brasil, fez com que o programa propagasse uma marca elitista de captação dos
melhores, frente à massificação das vagas na graduação que não oferecia condições de sucesso a
todos os ingressantes dos cursos e, também, ao consequente sucateamento da educação superior
pública, ocorrido principalmente na década de 90.
A apropriação dessa política pela comunidade acadêmica, principalmente pelos próprios
membros do PET, imprimiu uma marca de excelência no desempenho dos bolsistas do Programa,
refletindo também na melhoria do próprio curso, já que as atividades elaboradas e aplicadas pelos
grupos, atingiam os demais estudantes não só no ensino, mas também nas áreas de pesquisa e
extensão. A proposta inicial de ser o PET uma política de treinamento para a pós-graduação não
cabia mais na própria estrutura que era executada pelos integrantes. A perspectiva de reforço apenas
para um seleto grupo de notáveis foi superada e, em seu lugar, dominaram atividades de articulação
entre a formação acadêmica e o mundo do trabalho, de amplo entendimento do estudante em sua
multidiversidade cultural e social, pensadas para contribuir com a formação cidadão, científica e
profissional da graduação por meio de práticas inovadoras que questione modelos dominantes e
fomente práticas libertadoras, contribuindo para uma aprendizagem significativa, que vão além do
domínio de conteúdos sistematizados. A orientação tutorial, não mais de treinamento, adequou esta
política ao que ela de fato propunha e executava: “articulação na formação em suas diferentes áreas,
contribuindo sobre maneira para a melhoria do sistema de ensino superior, pelo fomento de práticas
inovadoras e de repercussão social” (LAFFIN, 2007, p.24).
Sendo assim, o PET, entendido como uma política pública educacional exitosa, que superou
e sobreviveu as pressões dos ditames econômicos de uma educação produtivista, se configura como
uma importante ferramenta na construção de um pensar universitário que entenda o seu papel no
desenvolvimento social, científico e cultural da nação, entendendo que é pela universidade que
passam os caminhos que levam a real democratização do conhecimento.
REFERÊNCIAS
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BALBACHEVSKY, Elizabeth. O Programa Especial de Treinamento – PET/CAPES – e a
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CHAUÍ, Marilena. Contra a universidade operacional: a greve de 2014. São Paulo, 2014.
RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. 3ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
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VIEIRA, Sofia Lerche. A educação nas constituições brasileiras: texto e contexto. In Revista
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TOSTA, Rosa Maria. (et al.). Programa de Educação Tutorial (PET): Uma alternativa para a
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<http://www.psicolatina.org/08/programa.html> Acesso em: 10/07/2015.
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Ensino-pesquisa-extensão
Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de
indissociabilidade na pós-graduação
(UFPB),1 matriculados nas disciplinas de estágio de geral. Cumpre, portanto, considerar brevemente esse
docência I e estágio de docência II, realizamos um debate para melhor entender por quê, apesar de ideal,
exercício da indissociabilidade entre ensino, pesquisa a pretendida indissociabilidade muitas vezes não se
e extensão. Ele é apresentado neste texto como a ex- verifica na prática.
periência de um diálogo interdisciplinar que buscou Como ressalta Silva (2000), as relações entre
relacionar saberes, o científico e o de educadores e edu- ensino, pesquisa e extensão decorrem dos conflitos
candos de uma escola pública, com vistas à produção em torno da definição da identidade e do papel da
de conhecimento acerca da articulação entre relações universidade ao longo da história. Por sua vez, Mag-
de gênero, violência e jogos eletrônicos. nani (2002) indica que, nesses quase duzentos anos de
Envolvidos nessa experiência, pudemos refletir ensino superior no Brasil, pouco a pouco a legislação
um pouco acerca das práticas universitárias, muitas educacional registrou o esforço por transformar o mo-
delas isoladas ou, no máximo, duais. Defendemos delo de transmissão de conhecimento em um modelo
assim, duas ideias centrais: a primeira delas é de que de produção e transmissão do saber científico, aliando
a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão pesquisa e ensino, como decorrência das pressões por
ainda não é levada em conta na prática de muitos democratização do acesso às universidades. Mais
docentes, seja porque na graduação a ênfase recai recentemente ainda, a extensão surge como terceiro
sobre o ensino, ou porque na pós-graduação acentua- elemento do fazer acadêmico, resposta às críticas e
se a pesquisa. A segunda ideia, decorrente de nossa pressões sofridas pela universidade, oriundas de seto-
experiência, é de que o estágio de docência na pós- res e demandas sociais (Silva, 2000). Ensino, pesquisa
graduação é uma excelente oportunidade de praticar a e extensão aparecem, então, ao final do século XX,
indissociabilidade defendida. A apresentação de nossa unidos pelo princípio constitucional da indissociabi-
experiência pretende demonstrar esse argumento. lidade antes citado.
Mal esse princípio foi postulado, porém, já se
O conhecimento científico e a viu alvo de flexibilizações que denunciam, também
indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão no entender de Magnani (2002), tanto a fragilidade da
como eixo da ação e da reflexão universitária associação entre essas funções, quanto, por trás dessa
debilidade, o processo de elitização que atravessa a
Tratar de indissociabilidade na universidade história da universidade brasileira. Como afirma a
é considerar necessariamente dois vetores de um própria autora acerca da divisão social reforçada pela
debate: de um lado, as relações entre universidade, seleção escolar – mantida historicamente pela univer-
ensino, pesquisa e extensão; e, de outro, confluindo sidade brasileira ao destinar apenas aos filhos da elite
para a formulação de uma tridimensionalidade ideal os cursos de maior status e mais alto custo (Medicina,
da educação superior, as relações entre o conheci- Engenharia e Direito, por exemplo) –, “constata-se
mento científico e aquele produzido culturalmente a prevalência do caráter elitista presente desde os
pelos diferentes grupos que compõem a sociedade em primórdios da criação do ensino superior brasileiro
no século XIX” (Magnani, 2002, p. 13). Mais até que
1
Na grade curricular dos cursos de mestrado e doutorado do legalmente flexibilizado, contudo, o princípio termina
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, incluem-se, por ser pouco considerado na prática.
como disciplinas obrigatórias, os estágios de docência I e II, que Ora, Castro (2004) mostra que a história da
consistem no exercício da docência pelo pós-graduando, super- indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão tem
visionado por seu orientador de pesquisa, durante dois semestres como pano de fundo a história mesma das relações
letivos. No caso dos autores, a docência foi exercida de modo arti- entre conhecimento científico e demandas sociais.
culado às atividades de extensão e pesquisa descritas neste artigo. Historicamente, o conhecimento científico tornou-se
uma forma de conhecimento privilegiada, pela grande Nessa direção, são necessárias transformações
importância que adquiriu para a vida das sociedades acadêmicas. Se consideradas as mudanças apontadas
contemporâneas. Segundo Santos (2004, p. 17), é por Pereira Júnior (2005) para o caso brasileiro, inicial-
possível dizer que, mente a pesquisa científica promoveu o florescimento
de uma comunidade que – com a implantação tardia
[...] desde sempre, as formas privilegiadas de conhecimento, das universidades e demais instituições de pesquisa
quaisquer que elas tenham sido, num dado momento histó- – vem crescendo em três etapas: procurou-se, inicial-
rico e numa dada sociedade, foram objeto de debate sobre mente, aprender a fazer ciência, não se hesitando em
a sua natureza, as suas potencialidades, os seus limites e o eventualmente “reinventar a roda” como forma de
seu contributo para o bem-estar da sociedade. desenvolver uma competência local. Depois, em outra
etapa que se estende até os dias atuais, os cientistas, ge-
Tanto é que o próprio Santos (2004), além de ralmente já agrupados nas universidades, promovem a
Escobar (2004), Mignolo (2004), Mora-Osejo e Borda criação e a consolidação do sistema de pós-graduação,
(2004), Meneses (2004) e Visvanathan (2004) con- formando uma nova geração de mestres e doutores
sideram essa prevalência do conhecimento científico para alcançar, em vários grupos de pesquisa, o nível
ocidental uma espécie de “injustiça cognitiva” em ca- de excelência científica: revela-se, assim, a busca de
ráter global. Nesse sentido, a crítica desses autores à padrões de qualidade e excelência nos trabalhos de
pretensa superioridade do modelo tradicional de ciência pesquisa com publicações direcionadas para periódi-
sublinha “o carácter simultaneamente local e total do cos de primeira linha.
conhecimento” (Escobar, 2004, p. 640), advogando uma Embora tudo pareça estar correto, tais padrões
valorização do conhecimento prático, situado na (e pro- foram definidos de modo descontextualizado. Como
duzido pela) experiência comunitária, de modo a opor-se consequência, em sua grande maioria esses trabalhos
a uma espécie de “colonialidade” que, no plano cultural não estão concatenados com esforços no sentido da
e epistemológico, deu continuidade à colonização nos promoção do desenvolvimento social, como é o caso
países periféricos (Mignolo, 2004). Um exemplo dessa brasileiro. Ou seja, em grande parte ainda se produz
colonização cultural dá-se na Índia, onde “a ciência se um conhecimento desligado das necessidades popu-
apropria e reserva para si a patente dos saberes campo- lares cotidianas. Segundo Santos (2004, p. 40), tal
neses”, sem que “haja um reconhecimento espitémico tendência não seria exclusiva da universidade brasi-
do estatuto desses saberes” (Visvanathan, 2004, p. 768), leira: “o conhecimento universitário [...] foi, ao longo
de modo a favorecer uma visão capaz de acolher “tanto do século XX, um conhecimento predominantemente
a sabedoria da ciência normal como as perspectivas das disciplinar, cuja autonomia impôs um processo de pro-
mundivisões excêntricas, dissidentes, marginais, vulne- dução relativamente descontextualizado em relação às
ráveis e alternativas” (idem, ibidem, p. 771). premências do quotidiano das sociedades”. Valendo-se
Diante dessa tensão entre o modelo tradicional de de uma expressão usada pelo mesmo autor, gerou-se
ciência e a valorização crescente dos saberes práticos um conhecimento “para inglês ver”.
produzidos pelas diferentes populações, intensifica-se A terceira etapa, que seria a ideal e que se busca
a preocupação com o papel social das universidades. atingir, alia à competência científica e tecnológica um
Nas palavras de Mora-Osejo e Borda (2004, p. 720), vetor pragmático, ao direcionar as investigações para
“precisa-se de universidades participativas, com- projetos e parcerias que viabilizem o desenvolvimento.
prometidas com o bem comum, em especial com as Esse é um aspecto que já vem sendo considerado na
urgências das comunidades de base [...]”, de modo a aprovação de projetos por algumas agências finan-
favorecer a substituição de “definições discriminató- ciadoras, como o Conselho Nacional de Desenvolvi-
rias entre o acadêmico e o popular”. mento Científico e Tecnológico – o que aponta para a
emergência do novo modelo. Segundo Santos (2004, dominação, de invasão cultural. O diálogo é igual-
p. 29), aconteceu “uma passagem do conhecimento mente enfatizado por Santos como princípio básico
universitário para o conhecimento pluriversitário”. para que a universidade passe a cumprir o seu papel
O conhecimento “pluriversitário”, nas palavras de agência formadora: é, portanto, uma inspiração
do autor, distingue-se do conhecimento produzido fundamental da indissociabilidade.
anteriormente por ser “contextual na medida em que A perspectiva de um conhecimento “pluriversi-
o princípio organizador da sua produção é a aplicação tário” não beneficia apenas as comunidades que têm
que lhe pode ser dada” (Santos, 2004, p. 30). Como seus saberes levados em conta. Como bem mostram
essa aplicação acontece além dos muros universitá- os autores citados, particularmente Santos (2004),
rios, a formulação dos problemas, a determinação a própria universidade se renova nesse processo. O
para resolvê-los e os critérios adotados para o traba- ensino é, provavelmente, o melhor exemplo dessa
lho resultam de “uma partilha entre pesquisadores e renovação, à medida que, integrado ao conhecimen-
utilizadores” (idem, ibidem, p. 30). Ainda na opinião to produzido através da pesquisa e aos anseios da
de Santos, o conhecimento característico do século sociedade considerados nas atividades de extensão,
XXI, “é um conhecimento transdisciplinar que, pela ganha em relevância e significado para a comunidade
sua própria contextualização, obriga a um diálogo ou universitária. Desse modo, ensinar termina por ser
confronto com outros tipos de conhecimento” (idem, uma atividade que, ao mediar a pesquisa e a extensão,
ibidem, p. 41). enriquece-se e amadurece nesse processo: o professor
Ora, a relação com alguns desses outros conheci- universitário, ao integrar seu ensino à pesquisa e à
mentos pode ser engendrada na atividade de extensão, extensão, mantém-se atualizado e conectado com as
que se achega ao conhecimento prático, assimilado transformações mais recentes que o conhecimento
culturalmente e desenvolvido para responder a de- científico provoca ou mesmo sofre na sua relação com
mandas da vida cotidiana. Não à toa, segundo autores a sociedade, além de formar novos pesquisadores,
como Gurgel (1986), Fagundes (1986) e Botomé críticos e comprometidos com a intervenção social.
(1996), a preocupação com a extensão universitária Logo, não há pesquisa nem extensão universitária que
nasceu com as universidades populares na Europa, que não desemboquem no ensino.
tinham como objetivo disseminar os conhecimentos Conscientes das particularidades que carac-
técnicos, eminentemente associados a práticas social- terizam cada uma das três funções universitárias,
mente relevantes. Esse movimento pelas universidades entendemos a indissociabilidade de ensino, pesquisa
populares, no entanto, foi criticado por Gramsci, que e extensão como um catalisador do conhecimento
apontou a falta de organicidade, seja de pensamento “pluriversitário”, que permite, conforme Santos (2004,
filosófico, seja de solidez organizativa e de centrali- p. 31), “a inserção da universidade na sociedade e a
zação cultural (Melo Neto, 2002). inserção desta na universidade”. Logo, a indissociabi-
Paulo Freire (1980) trouxe uma reflexão con- lidade pode ser entendida como um princípio orienta-
ceitual importante para a extensão, quando publicou dor da universidade nascido sob o influxo dos debates
o ensaio Extensão ou Comunicação?. Ele defendeu que estabelecem o lugar da universidade no seio da
a extensão como uma situação educativa, em que sociedade em geral, recebendo, daí, uma nítida influên-
educadores e educandos assumem o papel de sujeitos cia daquela terceira tendência sugerida por Pereira
cognoscentes, mediatizados pelo objeto que desejam Júnior (2005) – a de um conhecimento científico em
(ambos) conhecer. Para Freire, ou se dá um processo diálogo permanente com as demandas sociais. Por isso,
de extensão dialógico, ou então se corre o risco de também se apresenta como princípio básico em que
trabalhar com uma interpretação ingênua da realidade, o diálogo defendido por Freire é potencializado pela
quando não fosse explicitamente um instrumento de revolução das tecnologias, informação e comunicação,
permitindo um diálogo que, nas palavras de Santos No caso da pós-graduação, em particular, graças
(2004), substitui a unilateralidade pela interatividade. à prerrogativa com que se trata a pesquisa, pode-se
Com isso, naturalmente, insistimos que a exten- também dizer que muitos ainda se encontram na
são não seja tratada como uma tarefa compulsória, mas mesma etapa de produção universitária, de sorte que a
antes, à semelhança do que ocorre com a pesquisa, uma indissociabilidade ainda é uma meta a ser perseguida.
atividade que decorre naturalmente desse compromis- A ênfase, em muitos casos compreensível, atribuída
so social de uma instituição orientada pela superação naturalmente à pesquisa, deveria realçar ainda mais
das distâncias entre os saberes científico e popular. as possibilidades de articulação com o ensino e a ex-
Assim, enquadradas pelo princípio da indissociabili- tensão – e não contribuir para a dissociação entre os
dade, a extensão e a pesquisa tornam-se consequências fazeres que constitucionalmente fixam a identidade
naturais da docência, referências para que o ensino não da universidade no Brasil.
se torne abstrato nem desligado das realidades locais, Em decorrência disso, a extensão termina por
como pretendem os autores já citados. ser relegada a um lugar secundário na pós-graduação,
Outra vantagem decorrente da articulação entre contribuindo para práticas de pesquisa e ensino dis-
ensino, pesquisa e extensão é o reconhecimento dos sociadas da realidade. Ora, na verdade a extensão
limites e peculiaridades de cada uma dessas três ativi- apresenta-se como uma estrada de mão dupla (Melo
dades. Nem toda pesquisa consiste em extensão, pois Neto, 2003), pela qual há uma troca entre os conhe-
o conhecimento produzido pode ser encarcerado no cimentos universitários e os comunitários, diante das
debate teórico ou ser desenvolvido com objetivos que reais necessidades, anseios e aspirações sociais, inter-
não sejam aqueles das populações que participaram na câmbio esse em que a universidade é positivamente
investigação. Já a extensão, caso seja orientada pela provocada, influenciada e fortalecida.
concepção da superioridade do saber científico em Como afirma Castro (2004, p. 14), a extensão
relação aos saberes produzidos pelos grupos atendidos,
também pode incorrer no erro de fechar os olhos para [...] se coloca como um espaço estratégico para promover
esses últimos saberes e manter a separação entre o que práticas integradas entre as várias áreas do conhecimento.
Visvanathan (2004) chamou, por um lado, de ciência; Para isso é necessário criar mecanismos que favoreçam a
e, por outro, de mundivisões alternativas. aproximação de diferentes sujeitos, favorecendo a multi-
É então precisamente o princípio de indisso- disciplinaridade; potencializa, através do contato de vários
ciabilidade ensino-pesquisa-extensão que garante a indivíduos, o desenvolvimento de uma consciência cidadã e
pretendida integração desses saberes com a ciência, as humana, e assim a formação de sujeitos de mudança, capazes
características particulares de cada uma das três ativi- de se colocar no mundo com uma postura mais ativa e crítica.
dades acadêmicas e a permanente articulação entre elas. A extensão trabalha no sentido de transformação social.
A partir desse breve percurso em torno do debate
sobre indissociabilidade, por um lado, e as relações Desconsiderar a extensão – excluindo-a das ativi-
entre ciência e realidade social, por outro, entende-se dades de ensino e pesquisa na pós-graduação – é não só
melhor por que a indissociabilidade ainda não é uma promover a dissociação que fere a indissociabilidade
orientação reconhecida sistematicamente por todos e reproduz um velho modelo acadêmico como perder
na educação superior, permanecendo como um ideal um vasto e indispensável terreno de descobertas e
a ser perseguido: o modelo universitário muitas vezes aprendizagens que, acima de tudo, situa as ciências
praticado na educação superior ainda é aquele próprio no seu justo lugar de saberes a serviço do ser humano,
do momento de afirmação e consolidação do saber histórica e socialmente compreendido. Menosprezar
científico, típico de uma estrutura ainda não eminen- a extensão ou reduzi-la ao ensino e à pesquisa (Silva,
temente dialogal (Pereira Júnior, 2005). 2000) é também negar as várias contradições que atra-
vessam o interior da universidade, desde suas origens O alunado provinha, na sua maioria, do próprio
até as transformações recentes. bairro e dos bairros circunvizinhos: por conta desse
Mesmo num contexto universitário ainda não grupo, segundo a avaliação da direção, a escola tinha
totalmente “pluriversitário”, o melhor está em ser como maiores problemas a violência vivida pelo
possível exercitar a indissociabilidade, inclusive na alunado e por ele reproduzida no interior da unidade
pós-graduação. O estágio de docência é propício de ensino, as questões relativas à educação moral, à
para isso, pois conduz o aluno para atividades em conduta sexual e à falta de requisitos cognitivos para
que o ensino abre-se ao conhecimento dos educandos, a aprendizagem.
numa situação que pode perfeitamente ocorrer além Nosso trabalho teve a duração de dez meses, no
dos muros acadêmicos, sem que se perca a dimensão período compreendido entre maio de 2004 e março de
investigativa que norteia a pesquisa. É o que preten- 2005. Por considerarmos as possibilidades de articula-
demos demonstrar, com o caso de nossa experiência ção entre os conhecimentos sobre relações de gênero,
no estágio de docência apresentada a seguir. jogos eletrônicos e violência na escola, objetivamos
gerar com os participantes, teórica e praticamente,
Um exercício em direção à indissociabilidade: conhecimentos sobre aquelas articulações possíveis
o estágio docente de pós-graduação numa que pudessem ser incorporados ao desenvolvimento
escola pública em João Pessoa curricular e às aprendizagens individuais, tanto do
professorado quanto do alunado, com a realização de
É Castro (2004, p. 14) quem afirma: “no caso três oficinas pedagógicas – duas com o professorado
da extensão, o que percebemos é que ela produz e uma com o alunado – que versassem sobre as arti-
conhecimento a partir da experiência e, assim, tem culações temáticas pretendidas.
capacidade de narrar sobre o seu fazer”. Narrar uma Assim, em maio de 2004, ao sabermos de uma
experiência implica pensá-la. Considerando que nossa demanda de assessoria que a escola havia feito à uni-
reflexão fundamenta-se sobre essa experiência, cum- versidade, preparamos um projeto de extensão que,
pre relatá-la sumariamente, a fim de que seja possível propondo uma articulação entre nossas investigações
compreender o cenário e o processo sobre os quais se doutorais e aquela de nossa orientadora, constituía-se
situa nossa discussão. de três dimensões: a pesquisa, com que começaríamos
Por dois semestres, na condição de alunos do nossa intervenção, a fim de sabermos o que pensavam
doutorado em educação da UFPB, procuramos aplicar professorado e alunado acerca da temática que propú-
o princípio da indissociabilidade ensino-pesquisa- nhamos; o ensino, em torno do qual se organizariam
extensão nas atividades que realizamos no estágio de as oficinas pedagógicas (como uma das atividades
docência em uma escola pública municipal, a serviço concernentes à primeira parte de nosso estágio de
de uma comunidade de baixa renda da periferia da docência doutoral); e a extensão, caracterizada não
cidade de João Pessoa. Em 2004, o estabelecimento só pela natureza extramuros universitários da ativi-
de ensino contava com uma equipa composta por di- dade como pela proposta de prestação de um serviço
retora, vice-diretora, trinta e dois professores e 1.070 demandado pelo professorado daquela escola – e, a
alunos, distribuídos desde a alfabetização à oitava partir dele, útil ao alunado e à comunidade escolar.
série, além de uma turma de aceleração e de Educação Buscávamos, acima de tudo, o diálogo com
de Jovens e Adultos (ciclos 1 e 2), à noite. A unidade aqueles alunos e professores, de modo a fazê-los
de ensino, enquanto lá estivemos, não tinha supervi- mais participantes de seu cotidiano. Mais que levar
sores, orientadores, psicólogos ou assistentes sociais. ideias prontas, queríamos saber o que eles e elas,
O professorado participava de encontros de formação como atores de seu cotidiano, tinham a nos falar e o
continuada, promovidos pela Secretaria Municipal de que poderíamos juntos construir, pelo momento de
Educação até o ano de 2004. oficinas pedagógicas.
A pesquisa foi, então, o ponto de partida da exten- complementa o cenário em que, em grau crescente
são. Com a construção e aplicação de dois questioná- de abrangência, os âmbitos familiar, comunitário e
rios (um para o professorado e outro para o alunado), midiático aparecem como articulados numa teoria
coletamos dados que nos subsidiaram no planejamento sobre a cultura de violência.
das oficinas. Tais questionários tiveram como objetivo Nessa articulação, não se percebia o lugar da
identificar o nível de conhecimento sobre (e contato escola, por não ser reconhecida como produtora de
com) as temáticas lançadas na atividade de extensão, a violência ou por seus valores ideais serem avessos a
saber: os jogos eletrônicos como recurso pedagógico e ela. A escola era vista apenas como palco de reprodu-
a formação de competência para a gestão e prevenção ção de violência, não de sua produção – esquecendo-
da violência na escola (objetos de pesquisa, respecti- se os docentes de que, com suas especificidades, a
vamente, da autora e do autor deste artigo). escola também participa ativamente dos processos de
Os questionários aplicados a vinte e três profes- violência, seja para fomentá-los, seja para preveni-los
sores continham vinte e oito questões (abertas e fecha- (Ortega & Del Rey, 2002).
das), distribuídas em três partes; as perguntas foram A temática dos jogos eletrônicos, por sua vez,
formuladas para definir o perfil do respondente, sua não era percebida pelo professorado como relevante
experiência com jogos eletrônicos e com a violência para a escola. Entretanto, as respostas do alunado ao
na escola, bem como suas dificuldades e demandas questionário a ele destinado não só afirmaram a im-
relativas ao planejamento escolar e à educação acerca portância dessa temática – atravessada que está pela
das relações de gênero na escola (demanda inicial dos discussão em torno da sexualidade e das relações de
professores). Os questionários aplicados a quarenta gênero – como apontaram para o fato de que, através
e dois alunos continham quatorze questões (abertas do jogo, são reproduzidas relações de poder entre ho-
e fechadas) que visavam definir o perfil do respon- mens e mulheres, por meio de um padrão social de in-
dente, sua experiência com jogos eletrônicos e com a clusão/exclusão apontado por Elias e Scotson (2000).
violência na escola, bem como sua percepção sobre Ao analisar as respostas dos alunos da escola para a
as relações de gênero na escola. pergunta “Quem joga mais: meninos ou meninas?”4
Os dados obtidos mostraram-nos que, no tocante
às temáticas de nossos interesses, apenas a da violência
Desse modo, o ambiente é hostil, e nele as famílias eram represen-
era percebida pelo professorado como um problema
tadas também como violentas.
presente na escola, demandando soluções para o que
4
Algumas das respostas do alunado são bem ilustrativas: “Eu
seria uma banalização das situações de violência
acho quem joga mais são os meninos”, “tem menina que joga no
interpessoal consideradas menos graves.2 As causas
shopping center, mas elas são sapato [gíria de caráter pejorativo
apresentadas para a violência na escola revelaram
para denominar uma lésbica]”; “Eles sabem mais que as meni-
hipóteses socioambientais implícitas, particularmen-
nas”, “Só vejo meninos jogando no Playstation”. Os meninos,
te de caráter psicológico.3 A referência à televisão
como grupo estabelecido, intitulavam-se os melhores jogadores,
como os que sabem, defendem aquele espaço como só deles. As
2
Particularmente as agressões morais, verbais, sobre as quais meninas constituíam o grupo novo que estava entrando naquele
escreveram os próprios professores: “é normal”, “tem em qualquer espaço, tornando-se assim ameaça ao poder dos já estabelecidos.
escola”, “sem consequência grave”. Considerados “melhores”, se sentem dotados de uma espécie de
3
A família e a exposição a mídias violentas são consideradas virtude que é compartilhada pelos membros de seu grupo e que
responsáveis pela conduta violenta do alunado. Este último aspecto falta aos outros (no caso, às meninas). Por outro lado, as meninas
explicativo permitiu pensar na relação entre escola e comunidade. afirmam que “a mãe não deixa”, ali é um espaço “só para homem,
O bairro em que se situa a escola era visto como perigoso, graças à porque menina não é para jogar”. As meninas menosprezam-se,
ação de gangues organizadas em torno do tráfico de entorpecentes. considerando-se com menos habilidade para jogar.
constatamos que, no que tange aos jogos eletrônicos, transformação social” (Melo Neto, 2003, p. 15).
eles são uma prática que, tal qual a violência, reafirma Após uma visita de avaliação dos trabalhos, em
dentro e fora da escola relações desiguais, cabendo à dezembro de 2004, percebemos em janeiro de 2005
escola a tarefa de questionar os valores e as práticas a possibilidade de continuarmos nosso estágio de
que circulam com os jogos e a violência. docência na escola, graças ao convite da direção para
Ora, foi exatamente para pôr em questão essas participarmos do momento de planejamento escolar,
relações, reconhecidas ou não pela escola, que pro- no início de fevereiro. O pedido inicial (“ajuda no
movemos as oficinas pedagógicas em 2004. Plane- planejamento”) convidou-nos a nova pesquisa, a fim
jadas a partir dos resultados obtidos com a pesquisa de sabermos, desta feita, quais as demandas próprias
durante os meses de maio a julho e executadas entre àquele momento do ano letivo e em que medida pode-
12 e 14 de julho, as oficinas inspiraram-se no tema ríamos ajudar o professorado a lidar com elas.
das Olimpíadas (que estavam para ocorrer, à época) Elaboramos novo questionário, a fim de compor
e desenvolveram o lema “Eles, Elas: Elos na Escola”, o perfil e a experiência profissional do professorado e
a fim de articular (“elos”) a temática das relações de conhecer detalhadamente suas demandas de assesso-
gênero (“eles, elas”) detectada na pesquisa com o ria para o planejamento, aprofundando então nossos
universo escolar (“na escola”). conhecimentos sobre aquele grupo.
Tais oficinas tiveram caráter nitidamente associado Destacamos aqui apenas os dados mais relevantes
às atividades de ensino, momento em que pretendemos, dessa segunda pesquisa: considerando que o quadro
na condição de estagiários em docência, apresentar, docente participante das pesquisas foi majoritaria-
sob nova roupagem, facetas não exploradas (como era mente mantido, houve possibilidade de articulação
o caso dos jogos) ou banalizadas (como era o caso da entre a pesquisa de 2004 e a de 2005. Uma quase total
violência) no cotidiano do alunado, demonstrando, so- ausência de contato com computadores, internet ou
bretudo para o professorado, ser possível incorporá-las jogos eletrônicos ajudou a entender por que o profes-
às atividades de ensino promovidas na escola, através de sorado não tinha estabelecido qualquer relação entre
temas transversais ao currículo (como ética e orientação os jogos e a vida na escola. Além disso, as reações
sexual). Pretendemos, assim, contribuir com a formação que o professorado afirmou experimentar diante da
continuada dos educadores da escola. violência na escola (tristeza, sobretudo, e calma como
O planejamento, a execução e o material pro- condição para a intervenção com vistas à solução do
duzido pelo professorado e pelo alunado durante as conflito pelo diálogo, a conversa entre agressor/a e
oficinas, assim como dois jogos eletrônicos idealizados agredido/a) foram mais bem compreendidas quando se
especialmente para uso na escola foram compilados reconheceu que elas indicaram ser a agressão moral o
entre agosto e novembro de 2004, em um CD-ROM tipo de violência mais significativamente provocador
produzido por nós como resultado desse trabalho, de reação do professorado, não só por ser percebido
oferecido à escola e a algumas outras unidades da rede como o mais frequente, mas por não implicar neces-
municipal de ensino em novembro de 2004 como for- sariamente riscos à vida nem recurso à força física.
ma de multiplicação das aprendizagens lá realizadas; As dificuldades apontadas quando da realização
ele visou também intervir no cotidiano da escola aten- do planejamento indicaram, em particular, problemas
dida, assumindo assim o caráter de recurso didático em executar os planos de curso (46,7%), por razões
(Moita e Andrade, 2004). Completou-se, desse modo, que as outras variáveis apontadas pelo professorado
o caráter dialogal próprio à extensão, entendida como – carência de material e de livros, dificuldades em ge-
“um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se renciar a relação entre plano e tempo de sua execução,
constitui a partir da realidade e sobre essa realidade distância entre os planos escolares e a vida do alunado
objetiva, produzindo conhecimentos que visam à (o qual se tornaria desmotivado) – ajudam a esclarecer.
As demandas do professorado revelaram, por fim, e educadoras da rede pública de ensino fundamental
a necessidade de um aprofundamento docente no que – caracterizada por lacunas e por problemas, mas tam-
se refere ao uso de jogos, de dinâmicas e de atividades bém por sucessos e realizações em meio a condições
lúdicas para a apresentação de conteúdos formais e de materiais e pedagógicas adversas.
temáticas transversais na escola, associada à demanda
por material didático. A indissociabilidade na pós-graduação
Como tínhamos sido chamados para ajudar no não é só possível: é necessária
planejamento, foram as demandas mais especifica-
mente relativas a esse momento que determinaram Como se discutiu, a indissociabilidade pesquisa-
os rumos da etapa dedicada ao ensino nas atividades extensão-ensino convoca os professores universitários
de extensão em 2005: a partir delas, foi planejada à articulação de saberes. Ora, isso é particularmente
e organizada uma oficina pedagógica intitulada importante para os que atuam na pós-graduação,
“Vivendo e aprendendo”, enfocando a temática da pois devem ensinar a pesquisar. O reconhecimento
formação ética na escola, por meio de três dinâmicas da indissociabilidade deveria promover uma nítida
de grupo, escolhidas por serem também utilizáveis articulação entre aquelas três atividades acadêmicas,
em sala de aula pelo professorado participante. Re- em que o professor da pós-graduação, como orienta-
alizada em 22 de fevereiro de 2005, a oficina pro- dor, tem papel de motivador, supervisor e avaliador
porcionou às participantes (apenas mulheres, desta de todo o processo de pesquisa em que se encontram
feita) descobertas em relação à semelhança entre suas seus alunos, ajudando-os a enxergar nessa atividade
condutas nas dinâmicas e as condutas do alunado uma ética balizada pelo bem-estar das comunidades
sob seus cuidados, bem como a discussão acerca da envolvidas nas pesquisas.
possibilidade de aplicar as temáticas transversais aos Não obstante, não é isso que se dá. Um dos efeitos
conteúdos curriculares – incluindo aí as experiências da inobservância do princípio de indissociabilidade
e as práticas do alunado.5 pelos professores da pós-graduação é o esquecimento
Entendemos que a oficina realizada em 2005 dessa ética científica, que se torna evidente na des-
também pode ser caracterizada como um projeto rea- confiança entre as comunidades que participam da
lizado no interior dessa atividade de assessoria que, investigação e o pesquisador em formação, a provocar
articulando ensino, pesquisa e extensão, atendeu, no um distanciamento entre os resultados da pesquisa e
que tange ao ensino, à necessidade de treinamento das sua aplicação na vida da população: parece-nos que
professoras e ao cumprimento das atividades concer- os professores orientadores têm responsabilidade
nentes a nosso estágio de docência. É essa articulação decisiva nessa falha.
entre ensino, pesquisa e extensão que entendemos ser Assim, por mais proclamado que seja, o princípio
possível e necessária, pois, mais uma vez buscando da indissociabilidade entre pesquisa, extensão e ensino
pôr em prática o princípio da imbricação entre ensino, termina por ser esquecido na prática universitária, tal
pesquisa e extensão universitários, aproxima-se um como ocorre na pós-graduação. É frequente que os
pouco mais da realidade local vivida pelos educadores pós-graduandos sejam encontrados apenas nas salas de
aula da graduação (no caso dos mestrandos) e da pós-
5
O feedback apresentado por algumas delas dá conta desse graduação (no caso dos doutorandos), esquecendo-se
efeito: “Adorei as dinâmicas trabalhadas neste encontro, pois bene- de que, além das salas de aula universitárias, é possível
ficiam todos os conteúdos de sala de aula”; “Foi muito importante – e necessário – também encontrar campo de estágio
para nossos conteúdos serem aplicados”; “Gostei, foi de acordo docente fora dos muros acadêmicos.
com nossa necessidade!”; “Eu adorei essa oficina e realmente Essa prática, que continua a reproduzir-se, está
aproveitarei tudo o que eu aprendi hoje. Obrigada!”. estruturada sobre uma clara hierarquia: se a graduação
tornou-se o lugar do ensino, a pós-graduação tornou- Como pretendemos mostrar, a assessoria desen-
se o da pesquisa, sendo que tanto a extensão quanto o volvida junto à escola referida demandou de nós a
ensino são considerados tarefas inferiores à pesquisa. pesquisa, para que conhecêssemos a realidade com
Na pós-graduação, a extensão é relegada, como se não que trabalharíamos: a pesquisa pode ser considerada,
pertencesse àquela indissociável articulação sobre a assim, usando ainda a imagem de Valêncio (2000), a
qual se fundamenta a universidade brasileira. Corro- voz desse outro constituído pela realidade social. Se
bora essa análise a posição de Valêncio, que afirma: não levássemos em conta essa voz, nada teríamos a
“Os ‘competentes’ em pesquisa e pós-graduação dizer que pudesse ser efetivamente assimilável pelo
proclamam-se superiores aos que se dedicam ao ensino professorado e pelo alunado da escola. E mais: a pes-
de graduação e abandonam essa atividade para dispor quisa gerou publicações que socializaram alguns dos
de mais tempo para a produção científica”, de modo conhecimentos produzidos na experiência.
que se criam “desprezos de mão dupla” (Valêncio, Demandou, também, o ensino – posto que tínha-
2000, p. 75), a distanciar ensino de pesquisa, pesquisa mos algo a falar para esse outro. Nossa intervenção
de extensão, extensão de ensino, numa prática que docente, nesse sentido, buscou ressaltar certos va-
contraria o princípio da indissociabilidade. lores tacitamente presentes nas práticas docentes e
Ora, a mesma autora indica que as tensões inter- discentes: por que os jogos não fariam parte da vida
nas à universidade remetem à questão da legitimação da escola, se alunos e alunas (aqueles bem mais que
da educação superior no diálogo com a sociedade em estas) jogam? Como o professorado poderia tratar da
que (e para que) surge a academia. No que tange à violência na escola sem incluir-se como possível agen-
extensão, em particular, a indissociabilidade oferece te legitimador de violência, reproduzindo inconscien-
à formação discente um espaço capaz de “permitir a temente estereótipos opressivos, como os de gênero?
atualização dos conteúdos programáticos e simultane- Buscou, igualmente, fornecer material e experiên-
amente embasar os novos profissionais numa ética de cia para os/as docentes aprenderem meios de incluir
cidadania” (idem, ibidem, p. 79). Pesquisa, ensino e a ludicidade no seu ensino, a fim de trabalhar melhor.
extensão articulam-se, destarte, na formação acadêmi- Como manter motivado o alunado para a aprendiza-
ca, de modo a promover uma consciência profissional gem dos conteúdos quando falta a formação docente
eticamente fundamentada e empiricamente atualizada. acerca de métodos para diversificar o ensino?
Esse ideal apontado pela autora é capaz de rever- Assim, o ensino consistiu de ocasiões para a refle-
ter o quadro real de apartação entre ensino, pesquisa e xão e a (re)construção de conceitos e valores em que
extensão? Acreditamos que sim, se for tomado cons- estavam mergulhados o alunado e o professorado, mas
cientemente como eixo orientador dos trabalhos uni- também para a aprendizagem de técnicas pedagógicas
versitários. Em nosso caso, enquanto pós-graduandos, capazes de tornar a aprendizagem dos conteúdos mais
acreditamos que o estágio de docência consiste numa prazerosa, numa perspectiva mais dialogal, reflexiva e
oportunidade particularmente fecunda para o exercício criativa, a fim de ressignificar suas práticas. Ao evitar
da indissociabilidade. métodos tradicionais de transmissão de conteúdo,
Esse estágio por nós descrito pode servir como procuramos discutir, com didáticas mais dinâmicas,
bom exemplo para tanto: realizado fora dos muros as temáticas selecionadas: elas evocaram diferentes
universitários, buscando “uma reelaboração compar- fatores relacionados à prática daqueles professores
tilhada do mundo aspirado, refletivo e vivido” (idem, e professoras – fatores esses que, por vezes contra-
ibidem, p. 79) na relação entre universidade e socie- ditórios, emergiram de sorte a enriquecer o processo
dade, ele nos conduziu à articulação entre pesquisa, de ensino e aprendizagem naquela escola, já que se
ensino e extensão numa partilha de saberes entre passou a considerar toda a complexidade das relações
pesquisadores e utilizadores (Santos, 2004). implicadas nas práticas docentes. Vemos nisso o que
Woods (1995) afirma acerca da necessidade de alar- CASTRO, Luciana Maria Cerqueira. A universidade, a extensão
gar as opções metodológicas e epistemológicas para universitária e a produção de conhecimentos emancipadores. In:
que o ensino, cada vez menos conformista, seja mais REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27., Caxambu, 2004. Anais...
criativo e dinâmico. Caxambu: ANPEd, 2004. Disponível em: <http://www.anped.org.
Tal pensamento foi inspirador para a assessoria, br/reunioes/27/inicio. htm>. Acesso em: 10 dez. 2004.
que exigiu de nós, ainda mais, sermos capazes de con- ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders:
ceber, organizar e executar projetos de extensão que sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comuni-
atendessem, pontual e localmente, certas demandas de dade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
formação do professorado e de reflexão do alunado. ESCOBAR, Arturo. Actores, redes e novos produtores de conhe-
Diferentemente dos “ressentimentos de mão dupla”, a cimento: os movimentos sociais e a transição paradigmática nas
extensão apareceu, nesse contexto, tanto como decor- ciências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento
rência natural do ensino e da pesquisa quanto como prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p.
fonte para ambos (já que, sem as demandas da escola, 639-666.
não haveria pesquisa nem ensino, em nosso caso). FAGUNDES, José. Universidade e compromisso social: extensão,
Daí afirmarmos a necessidade da indissociabi- limites e perspectivas. Campinas: Editora UNICAMP, 1986.
lidade na pós-graduação. A extensão e o ensino não FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 5. ed. Rio de Janeiro:
são acessórios à pesquisa, mas continuações naturais Paz e Terra, 1980.
dela, se a produção científica do conhecimento quiser GURGEL, Roberto Mauro. Extensão universitária: comunicação
ser efetiva e intervir para modificar a realidade estu- ou domesticação? São Paulo: Cortez/Autores Associados; Forta-
dada – voltando a enriquecer-se, nesse processo, por leza: UFC, 1986.
dela alimentar-se continuamente. Donde não haver MAGNANI, Ivetti. Ensino, pesquisa, extensão e a nova tipologia
relevância social da pesquisa sem a indissociabilidade. do ensino superior brasileiro. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED,
O ensino na pós-graduação também se alimenta 25., Caxambu, 2002. Anais... Caxambu: ANPEd, 2002. Disponível
da extensão e a ela serve. Cremos ser nossa experiência em: <http://www2.uerj.br/~anped11>. Acesso em: 25 maio 2005.
também uma prova disso, pois, como pós-graduandos MELO NETO, José Francisco. Extensão Universitária: bases
extensionistas, tínhamos certo conhecimento a ofere- ontológicas. João Pessoa: Editora Universitária, 2002.
cer – particularmente aquele produzido em torno das . Extensão universitária e produção do conhecimento.
relações de gênero, da competência para prevenir Revista da ADUF/PB, n. 9, p. 13-17, jan./jun. 2003.
ou gerir a violência na escola, dos jogos eletrônicos MENESES, Maria Paula Guttierrez. Agentes do conhecimento? A
e do recurso a dinâmicas de grupo para o ensino de consultoria e a produção do conhecimento em Moçambique. In:
temáticas transversais. Mas tal conhecimento só se SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente
efetivou quando foi posto à prova da avaliação de para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 721-756.
quem iria utilizá-lo – o professorado da escola, em MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”:
nossa experiência. colonidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade
O estágio de docência parece-nos, por conseguin- epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conheci-
te, uma rica (e ainda não suficientemente explorada) mento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.
oportunidade para o exercício da indissociabilidade p. 667-710.
das atividades acadêmicas na pós-graduação. MOITA, Filomena M. Gonçalves da Silva Cordeiro; ANDRADE,
Fernando Cézar Bezerra. Eles, elas: elos na escola. João Pessoa:
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E-mail: frazec@uol.com.br
FILOMENA MARIA GONÇALVES DA SILVA CORDEI- Recebido em abril de 2008
RO MOITA, doutora em educação pela Universidade Federal da Aprovado em abril de 2009
of children’s social networks in a comprensión contextual y no como más violência e jogos eletrônicos. Defende-
community on the outskirts of the un “modismo educativo”, esta pesquisa se que a indissociabilidade entre en-
city of Recife investigó las prácticas y eventos de sino, pesquisa e extensão ainda não é
In the diagnoses and guiding letramento en una comunidad de levada em conta na prática de muitos
documents on public policies in la ciudad de Recife a partir de los docentes, seja porque na graduação
education, children coming from low- momentos de interacción de los niños dá-se ênfase ao ensino, seja porque
income communities are commonly con la escrita, bajo la óptica de sus na pós-graduação a ênfase incide na
associated with the idea of school redes sociales de origen común. La pesquisa. Argumenta-se, ainda, que o
failure. Believing that the discussion perspectiva metodológica se caracterizó estágio de docência na pós-graduação é
on literacy only makes sense if it is por la aplicación del mapa de redes con uma excelente oportunidade de praticar
approached taking as its starting point los niños, entrevistas y observaciones. a indissociabilidade defendida.
conditions that make possible their El reconocimiento de las prácticas de Palavras-chave: indissociabilidade
contextual understanding and not as letramento constituye redefiniciones en entre ensino, pesquisa e extensão; pós-
yet another “educative vogue”, this las situaciones de interacción, pues, a graduação; estágio de docência.
research investigated the practices medida que los niños pasan a confiar
Teaching, researching and extension:
and events of literacy in a community en el “otro”, construyen un factor de
an experience of linking in the
in the city of Recife based on moments valorización que los lleva a considerar
Brazilian post-graduation
of interaction of children with the que es significativo participar de los
It is argued that the connection
written word, from the perspective eventos en que la lectura y la escrita
between the activities of teaching,
of the social networks to which they son cruciales para hacer sentido en sus
researching and extension as a
belong. The methodological approach relaciones sociales.
guiding principle to the quality of
was characterised by the application Palabras claves: redes sociales;
the superior education. Although we
of the map of networks with children, letramento; medios populares.
consider the important links that can
interviews and observations. The
be established between only two of
recognition of literacy practices Filomena Maria Gonçalves da Silva those activities, we argue that the
constitute redefinitions in situations of Cordeiro Moita e articulation of those three activities
interaction, because, as the children Fernando Cézar Bezerra de Andrade prevents isolated practices verified in
begin to trust in the “other”, they build
Ensino-pesquisa-extensão: um superior education. Guided by that
a valuation factor which leads them to
exercício de indissociabilidade na principle, as post-graduation students,
consider that it is meaningful to take
pós-graduação we accomplished an intervention in
part in events in which reading and
Discute-se a indissociabilidade ensino- a public local school in João Pessoa
writing are crucial for making sense of
pesquisa-extensão como princípio (PB). That intervention is presented
their social relations.
orientador da qualidade da produção in this text as an experience that
Key words: social networks; literacy;
universitária. Embora se reconheça aimed to link scientific discoveries
popular environments.
a importância de articulações duais and the educators’ and students’
Prácticas y eventos de letramento (entre ensino e pesquisa, pesquisa e understanding about the articulation
en medios populares; un análisis de extensão ou extensão e ensino), defen- of gender relationships, violence
las redes sociales de niños de una de-se um princípio que impede redu- and electronic games in school. Two
comunidad de la periferia de la cionismos verificados nas atividades central ideas are supported: first, the
ciudad de Recife universitárias. Guiados por essa com- connection between teaching, research
En los diagnósticos y documentos preensão, durante o estágio de docên- and extension is not still taken into
orientadores de las políticas públicas cia, os autores realizaram um exercício account in practice of many professors
de educación, los niños provenientes da indissociabilidade, que consistiu in universities, either because in the
de comunidades de bajo poder numa experiência visando a relacionar graduation the emphasis is on teaching,
adquisitivo es común asociarlos a la o conhecimento científico e o saber de or because in post graduation the
idea de fracaso escolar. Creyendo que educadores e educandos de uma escola emphasis is on research. Secondly, post
la discusión sobre el letramento sólo pública em João Pessoa (PB), a fim graduation is an excellent occasion to
tiene sentido si fuera abordada a partir de produzir conhecimento acerca da practice the connection between the
de condiciones que hagan posible su articulação entre relações de gênero, three academic activities.
Key words: connection between de la Educación de la República understand its present configuration;
academic activities; teaching, research Argentina (CTERA) the process of the teaching work; and
and extension; post graduation. Inserido nos debates a respeito da di- the importance of the gender in order
cotomia entre “proletarização” e “pro- to compose the existing representations
Enseñanza-investigación-extensión:
fissionalidade” do trabalho docente, o on the occupation. The results indicate
práctica de la inseparabilidad en la
texto destaca significados oferecidos that, in the elaboration of union
pos-graduación
por dirigentes da CTERA aos concei- members, there is no contradiction
Se discute la inseparabilidad
tos de “trabalhador em educação” e between being a worker and seeking
enseñanza-investigación-extensión
de “profissional docente”. Os dados the professionality. The defense of
como un principio orientador de la
foram obtidos por meio de entrevistas the identity of the education worker
calidad de la producción universitaria.
semiestruturadas, realizadas com um articulates the fight against the
Aunque se reconozca la importancia de
homem e duas mulheres. O referencial removal of working rights and the
articulaciones duales (entre enseñanza
sustenta-se em análises que interpretam protagonic role of the teachers in the
e investigación, investigación y
a gênese da ocupação como forma development of educational projects.
extensión o extensión y enseñanza),
de compreender sua atual configura- Key words: teaching work; teacher
se defiende un principio que impide
ção; o processo de trabalho docente; unionism; teacher professionality
los reduccionismos verificados
e a importância do gênero para tecer education; workers; CTERA.
en las actividades universitarias.
as representações existentes sobre a
Guiados por esa comprensión, “Discutir educación es discutir
ocupação. Os resultados indicam que,
durante la práctica de docencia, los trabajo docente”: el trabajo
na elaboração dos sindicalistas, não
autores realizaron un ejercicio de docente según sindicalistas de la
há contradição entre ser trabalhador e
inseparabilidad, que consistió en una Confederación de Trabajadores
buscar a profissionalidade. A defesa da
experiencia enfocando relacionar de la Educación de la República
identidade de trabalhador em educação
el conocimiento científico y el saber Argentina (CTERA)
articula a luta contra a retirada de direi-
de educadores y educandos de una Formando parte de los debates
tos trabalhistas e o papel protagonista
escuela pública en João Pessoa (PB), acerca de la dicotomía entre
do professorado no desenvolvimento
a fin de obtener conocimiento acerca “proletarización” y “profesionalidad”
de projetos educacionais.
de la articulación entre relaciones de del trabajo docente, este artículo
Palavras-chave: trabalho docente;
género, violencia y juegos electrónicos. destaca significados ofrecidos por
sindicalismo docente; profissionalidade
Se defiende que la inseparabilidad sindicalistas pertenecientes a la
docente; trabalhadores em educação;
entre enseñanza, investigación y CTERA a los conceptos de “trabajador
CTERA.
extensión aún no se toma en cuenta de la educación” y “profesional
en la práctica de muchos docentes, “Discussing education is discussing docente”. Los datos fueron
sea porque en la graduación se da the teaching work”: the teaching obtenidos por medio de entrevistas
énfasis a la enseñanza, sea porque work according to Confederación semiestructuradas, realizadas con
en la pos-graduación el énfasis cae de Trabajadores de la Educación de un hombre y dos mujeres. El marco
en la investigación. Se argumenta, la República Argentina (CTERA) teórico está basado en análisis que
además, que la práctica de docencia coordinators interpretan la génesis del oficio
en la pos-graduación es una excelente Inserted in the debates como forma de comprender su actual
oportunidad para practicar la concerning the dichotomy configuración; el proceso de trabajo
inseparabilidad defendida. between “proletarianization” and docente; y la importancia del género
Palabras-claves: inseparabilidad entre “professionality” of the teaching para construir las representaciones
enseñanza; investigación y extensión; work, the text highlights meaning existentes sobre el oficio. Se constata
pos-graduación; práctica de docencia. offered by the CTERA coordinators to que, para los sindicalistas, no hay
the concepts of “education workers” contradicción entre ser trabajador y
Márcia Ondina Vieira Ferreira and of “teaching professional”. The buscar la profesionalidad. La defensa
data were obtained through semi- de la identidad de trabajador de la
“Discutir educação é discutir structured interviews, done with a educación articula la lucha en contra
trabalho docente”: o trabalho man and two women. The referential is de la reducción de derechos laborales
docente segundo dirigentes da based on analysis which interpret the y el protagonismo del profesorado en
Confederación de Trabajadores genesis of the occupation as a way to el desarrollo de proyectos educativos.