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DO

SS

Ensino de história e temas sensíveis:


abordagens teórico-metodológicas
Teaching of History and Sensitive Topics:
Theoretical-Methodological Approaches
Carmem Zeli de Vargas Gil*
Jonas Camargo Eugenio**

Resumo Abstract
O propósito deste artigo é apresentar The purpose of this article is to present
reflexões sobre o trabalho com temas some reflections on working with sensi-
sensíveis no contexto do ensino (disci- tive topics within teaching (History
plina de Estágio de Docência em Histó- teaching internship) and research (Pro-
ria) e da pesquisa (dissertação de Mes- fessional Masters in Teaching History
trado Profissional em Ensino de dissertation) contexts. The writing is pre-
História). Apresentamos a escrita na sented in the form of a dialogue written
forma de um diálogo a muitas mãos que by various people in an attempt to un-
busca compreender os sentidos atribuí- derstand the meanings attributed by the
dos pelos atores em relação ao processo actors-in-relation to the process experi-
vivido em aulas de História. Essa forma enced in History classes. This form of
de escrita se sustenta também na con- writing is also supported by the concep-
cepção de que a abordagem de temas tion that dealing with sensitive topics
sensíveis reivindica um registro o mais calls for a pluralistic register, allowing
plural possível, permitindo que diferen- different voices to present themselves in
tes vozes se apresentem no diálogo: a the dialogue: teachers, students, univer-
professora, o professor, alunos/as, aca- sity students and selected authors.
dêmicos/as e autores/as escolhidos/as. Keywords: sensitive issues; History clas-
Palavras-chave: temas sensíveis; aulas de ses; migrations; History teaching.
história; migrações; ensino de história.

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. carmemz.
gil@gmail.com
** Mestre em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS,
Brasil. camargo.jonas@gmail.com

Revista História Hoje, v. 7, nº 13, p. 139-159 - 2018


Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

Temas sensíveis e aulas de História

Este artigo1 reúne três propósitos: primeiro, indicar algumas indagações


a respeito de temas sensíveis no contexto da formação de professores de
História, com base em vivências relacionadas ao Curso de História da UFRGS;
segundo, compartilhar uma experiência de pesquisa com alunos da Educação
Básica, abordando um tema considerado sensível pela produção acadêmica e
parte da sociedade brasileira: o preconceito e as migrações atuais de senegaleses
no Rio Grande do Sul; terceiro, pensar, com base nos dois pontos anteriores,
as finalidades da História na escola. A investigação foi realizada e orientada
pelos autores deste texto, no âmbito do Mestrado Profissional em Ensino de
História da UFRGS. Na trama das vivências em docência, pesquisa e orienta-
ção, emergem algumas inquietações que compartilhamos nesta escrita a muitas
mãos. Buscaremos sintetizar nossas ideias em três notas:

Nota I

Entrar em contato com a história das ditaduras de segurança nacional instaura-


das na América Latina, percebendo a violência praticada deliberadamente pelos
Estados através da documentação de Carlos Gutierrez, amplia a dimensão do
terror vivido pelas vítimas. Nesse momento, quando os estudantes percebem o
desespero de Gutierrez e a forma pela qual pode evitar sua prisão e retorno ao
Brasil, surgem tensionamentos, comentários, reflexões. Antes mesmo dos enca-
minhamentos finais da oficina, quando os estudantes respondem algumas per-
guntas para esquematizar o que conseguiram compreender a partir dos debates e
análises das documentações, fui interpelada por esta conclusão: “Para alguém
sofrer todas essas sevícias, não poderia haver Direitos Humanos?”. Tão logo o
grupo começou a problematizar esse questionamento, o mesmo estudante pros-
seguiu: “Mas meu pai sempre diz que nessa época era muito bom, era só não
andar na rua, não se meter em confusão. Nessa época não tinha corrupção, nem
bandidagem como a gente vê hoje”. (Cardoso, 2016)

Escolhemos começar esta nota com reflexões de uma professora em for-


mação que, em determinado momento de seu estágio, se viu em uma situação
que lhe exigia mudar a rota, reunir informações e tentar estabelecer um diálogo
com as certezas de seu aluno. Impactada com a afirmação, ela ficou em silêncio

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tempo suficiente para que outro aluno tomasse a palavra: “Não, cara, meu pai
diz justamente o contrário, que nessa época nada era permitido, nem mesmo
conversar na rua. Tudo era motivo para ser preso e torturado. Não dava pra
discordar do governo”. Agradecida, ela retomou a discussão:

Num primeiro momento, senti dificuldade em contra-argumentar com o aluno


que defendia as memórias do pai em apologia ao período ditatorial, contando
com a ajuda da professora orientadora do estágio, que assistia à oficina e propôs
indagações. O caminho encontrado para dar vazão ao embate de memórias e
percepções previamente constituídas foi, justamente, retomar a análise docu-
mental, refletindo sobre a impossibilidade de se noticiar ou denunciar tais práti-
cas criminosas do Estado, retomando aspectos da repressão para além das
torturas e prisões.

No exercício cotidiano da docência, sempre pode surgir uma afirmação


de aluno que faz a professora questionar sua preparação para o exercício da
profissão. Um tema gera uma controvérsia e se torna mais sensível do que já
é, indicando a necessidade de interrogar: Quais são esses temas? Para quem
são sensíveis? Com que fins abordá-los em aulas de História? São sensíveis em
si, ou se tornam sensíveis dependendo do encaminhamento do professor e das
necessidades dos alunos?
Na escola, não só no Brasil (falamos aqui na América Latina), por muito
tempo teve relevância uma História oficial com a qual se intentou construir
um sentido de identidade para o projeto de nação em curso, cuja meta era
formar o patriota defensor dos valores universais “branco, católico e masculi-
no”. Portanto, tradicionalmente, o ensino da História legitimou as pretensões
dos dirigentes políticos. Hoje, vivemos em uma tensão permanente para não
ensinar uma história universalista, centrada em homens, etnocêntrica, elitista
e preocupada com os objetivos políticos dos acontecimentos. Cada vez mais a
escola é chamada a ensinar o trauma, a injustiça, o preconceito e o sofrimento
de forma que alunos e professores possam se encontrar com os debates que se
apresentam na produção da história. Acreditamos que a História escolar pode
contribuir no tensionamento das condições que tornaram possíveis o racismo,
a violência e a desigualdade e, a partir disso, permitir a reflexão sobre o que
nos configura hoje como nação.

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O que é uma questão sensível? Mével e Tutiaux-Guillon (2013) dizem que


as escolhas didáticas são escolhas políticas e que a liberdade do professor é a
de fazer escolhas.2 Os autores indicam que, desde a década de 1990, o debate
nomeia os temas sensíveis como: “questões quentes”, “sensíveis” ou “difíceis”,
“vivas” ou “controversas”, “socialmente vivas”... Em outro texto, Tutiaux-
-Guillon define questão sensível como aquela carregada de emoções, politica-
mente sensível, intelectualmente complexa e importante para o presente e o
futuro em comum. Geralmente, implica o confronto de valores e interesses e
pode ser, para um grupo, um constrangimento na tomada de decisões. Talvez
fosse interessante abordar os temas sensíveis com a especificidade de estarem
relacionados à violação de direitos humanos, embora uma questão pode ser
controversa exatamente por isso. Mas um tema pode gerar controvérsia sem,
necessariamente, envolver situações extremas de violência.
Nesse sentido, Benoit Falaize (2014, p.228), inspirado nos estudos de
Legardez e Simonneaux (2006), informa que um tema de ensino é vivo quando
é uma questão para a sociedade, presente nas mídias e objeto de controvérsia,
quando está relacionado aos debates da disciplina ou, ainda, quando determi-
nada questão é “delicada em sala de aula, quando o próprio professor pode ser
colocado em dificuldade no que diz respeito aos conhecimentos necessários
para ensinar, ou em função das reações dos alunos”.
Já Verena Alberti (2014, p.2) cita o relatório da Associação de História da
Inglaterra sobre o ensino de temas sensíveis ou controversos para destacar que
sua abordagem implica o reconhecimento de injustiças que foram cometidas
no passado contra pessoas ou grupos, provocando o choque de diferentes ver-
sões do passado ensinado na sala de aula com memórias familiares ou comu-
nitárias: “observa-se que estamos no terreno das memórias em disputa, que
tem na escola um de seus palcos políticos talvez mais evidentes”.
O conceito de passado sensível também nos ajuda a ampliar a abordagem
de temas sensíveis ou controversos no ensino. Para os autores, um passado
pode ser sensível em razão

do autoritarismo (como as ditaduras militares no Brasil e na América Latina); ou


por elementos discriminatórios e racistas (como o governo de apartheid da
África do Sul); ou por um passado marcado por violência traumática (como atos
de genocídio e guerra civil). São temas sensíveis não apenas porque é difícil falar

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sobre eles, mas, principalmente, porque não há ainda, na maioria dos casos, um
consenso da sociedade sobre o que dizer e como falar sobre esse passado. Em
muitos casos, os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em cur-
so, e diferentes versões ainda estão em disputa – tanto na memória como na his-
tória. (Araujo et al., 2013, p.9)

Benoit Falaize (2014) afirma que, na França, há 20 anos, houve uma “vi-
rada memorial”, quando o ensino de questões sensíveis da História passou a
fazer parte dos debates escolares, públicos e políticos. A sociedade foi chamada
a examinar as omissões ou amnésias nacionais nos conteúdos de História, de
forma que o ensino de temas delicados passou a compor a nova agenda escolar,
na contramão da ordem escolar construída para consolidar a história
nacional.
No Brasil, alguns temas sensíveis seguem na esteira das lutas de diferentes
grupos em busca de legitimidade para suas histórias e memórias, questionando
a homogeneização que marca a ideia de nação. Junto a isso, os grupos buscam
ampliar a representação política, e a luta por direitos faz emergir demandas
identitárias. Ou seja, é uma luta que reivindica lembrar, manter viva uma me-
mória e reparar o silêncio e as simplificações na narrativa histórica. Assim, a
dita unidade nacional tem sido questionada – não sem resistência –, dando
visibilidade a uma sociedade que é multicultural. Tal fenômeno tem provocado
debates sobre o currículo da História ensinada de forma que se possa construir
materiais didáticos, rituais comemorativos e práticas curriculares na perspec-
tiva da justiça e dos direitos humanos.
Emergem, nesse contexto, novas abordagens e conteúdos que promovem
uma ruptura com o passado da História escolar, cuja função primeira no cur-
rículo era moral. Ao mesmo tempo, temos uma situação nova de constrangi-
mento aos professores que orientam suas aulas por demandas do tempo
presente. Acusados de doutrinadores, os professores se veem atacados por
diferentes segmentos sociais como a família, a mídia, as religiões e, também, o
Estado, embora saibamos que a educação voltada para o exercício da cidadania
ativa impõe, necessariamente, o estudo de temas sensíveis e controversos que
ultrapassam a mera inclusão dos problemas do tempo presente nas aulas de
História, conforme orientam os próprios documentos legais.

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Sabemos, porém, que nem toda questão sensível para a sociedade ou assim
considerada pela historiografia o é, necessariamente, para os estudantes. Se
alguns temas são controversos pelo conteúdo que abordam, outros apenas o
são em função dos contextos em que são trabalhados, como a escola. Tal como
ocorreu com o comentário de um aluno (“Mas meu pai sempre diz que nessa
época era muito bom...”), ele gera uma controvérsia e se torna uma questão
delicada, seja porque contrapõe os saberes da disciplina, seja porque coloca ao
professor uma dificuldade na abordagem do conteúdo em função das reações
dos alunos. O que fazer nesse caso? Ignorar e seguir a aula tal como estava
previsto? Alguns professores escolhem esse caminho, até mesmo para ganhar
tempo e pensar sobre um encaminhamento adequado.
De certa forma, o comentário suspende a aula enquanto espaço de apre-
sentação dos acontecimentos e desloca o professor para um espaço de decisão:
como seguir a aula de forma a não ficar no relativismo, contrapondo diferentes
opiniões? Como abrir-se ao inesperado, acolher o debate e fugir do consenso
que exclui as dúvidas e as controvérsias? O comentário do aluno é, também,
uma pista para o professor sobre os sentidos construídos pelos alunos a res-
peito do conteúdo que está sendo abordado. Assim, parece que a dificuldade
do professor ao trabalhar com temas sensíveis se associa à compreensão dos
conteúdos e à sua própria postura. Temos, então, uma questão didática, pois
envolve tomar decisões políticas e pedagógicas, e consideramos que a relação
entre ambas é dialética, não de influência mútua.
Mével e Tutiaux-Guillon (2013) indicam três considerações importantes
sobre temas sensíveis nas aulas, visto que não se aborda tais temas com uma
aula expositiva ou a apresentação de alguns documentos. Isso demanda tempo,
estratégia pedagógica, escuta e sensibilidade. São elas:

1. Ancorar as discussões nos saberes das disciplinas. No caso das aulas de


História, os autores indagam como o historiador lida com as controvérsias,
visto que os saberes produzidos pelos historiadores são atravessados por ques-
tões controversas. A proposta é a reconstrução da problemática mediante a
seleção, classificação e interpretação de evidências para que o aluno realize a
investigação e construa, então, uma versão a partir do que foi estudado. Isso
implica não só assumir uma posição diante de um fato e construir uma reflexão

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argumentada, mas também aprender com e sobre a investigação histórica.


Segundo os autores

o estudante desenvolve suas competências, particularmente sua capacidade de


gerir informações diversas, por vezes contraditórias, vindas de um dossiê docu-
mental, e aprende a pesar os argumentos em sua natureza (quais saberes, qual sua
origem, seriam crenças, são convicções?) ou em seus fundamentos (reivindica-
ções, objetivos, posição social ou política?). (Mével; Tutiaux-Guillon, 2013, p.82,
trad. nossa)

Foi nesse percurso que seguiu a estagiária quando deparou com o comen-
tário do aluno a respeito das memórias de seu pai sobre a ditadura militar no
Brasil. O caminho escolhido pela estagiária foi o de retomar a análise docu-
mental, refletindo sobre a impossibilidade de se noticiar ou denunciar tais prá-
ticas criminosas do Estado, retomando aspectos da repressão para além das
torturas e prisões. Porém, ficam em aberto as interrogações de Benoit Falaize:

Como falar sobre as feridas aparentes ou simbólicas das populações feridas, sem
ignorar o frio (e necessário) distanciamento dos fatos e dos documentos por ve-
zes em contradição com as memórias tais como elas são transmitidas de geração
em geração e tais como podem expressar‐se em sala de aula? O conceito de “me-
mórias traumáticas” tem sentido? (Falaize, 2014, p.230)

Assim, os temas sensíveis são potentes para ensinar História, pois não
envolvem um ponto de vista universal e, nesse sentido, são desafiadores e re-
levantes. Mas não somente isso. Há outra dimensão de sua abordagem que se
soma à complexidade de seu tratamento em sala de aula: eles envolvem per-
tencimentos, identidades e prioridades em conflito, suscitam emoções.

2. Organizar o trabalho na aula tendo a controvérsia como estratégia di-


dática e, com isso, abrir mão da aprendizagem como certeza, da aula como
exposição organizada de conteúdos e da concepção de estudantes como aque-
les que não têm conhecimentos para o debate. Ao organizar o trabalho peda-
gógico, os autores recomendam que a controvérsia científica se torne rotina
na sala de aula, propiciando ao aluno espaço para a exploração de diferentes
facetas de um problema e o debate argumentado, diferente daquele que impõe

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a defesa de um ponto de vista predefinido para cada participante, visto que o


importante é a reflexão argumentada. Para Mével e Tutiaux-Guillon (2013),
abordar controvérsias significa inventar outra sala de aula de História, mais
interessada nas implicações do passado no presente: “abrir a sala de aula às
controvérsias é partir de conflitos situados em seus contextos e entrar numa
verdadeira pesquisa sobre os saberes (daí a questão: por que eles estão acessí-
veis, disponíveis?) e sobre seus usos públicos”.
No caso brasileiro, temos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Básica, documento que reúne uma série de resoluções e pareceres,
organiza o trabalho pedagógico na escola e, portanto, aponta a necessidade
urgente de inclusão no currículo de

questões de classe, gênero, raça, etnia, geração, constituídas por categorias que se
entrelaçam na vida social – pobres, mulheres, afrodescendentes, indígenas, pes-
soas com deficiência, as populações do campo, os de diferentes orientações se-
xuais, os sujeitos albergados, aqueles em situação de rua, em privação de
liberdade – todos que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira.
(Brasil, 2013, p.16)

Mas há projetos tramitando na Câmara dos Deputados (PLS 193/2016,


PL 1411/2015 e PL 867/2015) – escolho não escrever o nome aqui – que tentam
excluir das salas de aula discussões sobre homossexualidade e gênero, consi-
derados “conteúdos conflituosos” com as convicções religiosas ou morais das
famílias. Desafios postos ao fazer docente hoje! Tempos difíceis.

3. Estudar estratégias para considerar as emoções que são mobilizadas na


abordagem de questões sensíveis. No século XX, parece que a História ganhou
ares de tragédia com tantos acontecimentos que causaram sofrimento indivi-
dual, familiar e coletivo. E o século XXI se anuncia com o grande deslocamento
populacional que vem ocorrendo no mundo e traz consigo elementos traumá-
ticos para o presente. Diante disso, como ensinar História sem mobilizar emo-
ções? Ou como integrar essa dimensão na preparação das aulas com temas
sensíveis? Para Mével e Tutiaux-Guillon (2013, p.81, trad. nossa),

Duas formas de trabalho merecem ser evocadas: a primeira consiste em identifi-


car com os estudantes as emoções que emergem na aula (cólera, empatia,

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piedade, vergonha, admiração, ansiedade, compaixão, culpa, medo, exasperação,


humilhação, desprezo, rancor, ressentimento etc.) e que constituem uma objeti-
vação das emoções, primeiro passo para se colocar à distância ... Pode-se perse-
guir este questionamento: tal emoção permite compreender melhor esse assunto?
Ou, ao contrário, ela dificulta a busca de explicação?

Outra recomendação dos autores é abordar “as emoções com assuntos me-
nos sensíveis (escravidão na Antiguidade, guerras de religião no século XVI, uma
catástrofe longínqua...) a fim de preparar estudantes e professor para a gestão
das emoções mais vivas”. Nesse sentido, o trabalho com temas sensíveis/questões
controversas demanda tempo, pois, nesse caso, é “também progredir nas con-
trovérsias que implicam menos os adolescentes (a escravidão antiga é necessária
à cidadania? As guerras de religião são apenas guerras sobre crenças? Essa catás-
trofe poderia ser evitada?) em direção a debates mais avançados”.
Assim, se no caso francês (Mével; Tutiaux-Guillon, 2013; Falaize, 2014) o
ensino de temas sensíveis e questões controversas se volta para pensar em
como falar sobre o horror do sistema de extermínio (como abordar a Shoah
na sala de aula?), no caso brasileiro é pertinente pensar também a pobreza e a
violência. Dito de outra forma, como ensinar em escolas controladas por mi-
lícias, escolas onde qualquer movimento diferente leva os alunos a automati-
camente se jogarem no chão, escolas com toque de recolher, escolas em que o
professor recém-chegado é consolado pelos alunos diante da violência do en-
torno e, finalmente, a escola como o espaço do medo?
A escola pública brasileira está inserida em um contexto sensível em fun-
ção da violência, das desigualdades sociais, das lutas pelo reconhecimento de
grupos invisibilizados na história nacional e, mais recentemente, dos ataques
à profissão docente com projetos reacionários que buscam “vigiar e punir” os
professores. Queremos, portanto, pensar os temas sensíveis com base em ques-
tões vivas para a sociedade, controvérsias na historiografia, temas constrange-
dores para determinados grupos sociais, difíceis no contexto da escola, que
possam, queremos crer, produzir esperança nas salas de aula. Não se trata
somente de outra forma de se aproximar dos conteúdos de História, mas de
considerar os sujeitos para os quais se ensina História e seus contextos de vida,
marcados pela violência e pela desigualdade social, além do contexto de quem
ensina, marcado pelas perseguições e pela desumanização.

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Nota II
Sobre uma investigação em andamento…

Após diversos contatos com a comunidade da Lomba do Pinheiro, buscando en-


contrar entre os migrantes haitianos atendidos pelos frades franciscanos alguns
que estivessem dispostos a conversar comigo para o meu projeto de mestrado, fui
apresentado à Karina. A assistente social da paróquia havia me dito apenas sua
idade, 37 anos, e que era mãe de duas meninas. Na proposta metodológica que eu
então desenvolvia, aquele seria o primeiro contato, sem gravação, apenas para
que explicasse como pretendia desenvolver o trabalho e estabelecesse um primei-
ro vínculo. Ao final da conversa rápida, ela, muito tímida, questionou se eu podia
ajudá-la em uma questão. Já com lágrimas nos olhos e misturando o português
ao espanhol, dirigindo-se a mim como professor, ela contou que sua filha mais
velha não queria mais ir à escola, que chorava todos os dias e se recusava a ir, pois
seus colegas a estavam chamando de negra escrava. “O que é isso, professor? Por
que estão chamando ela assim?” 3

Alguns aspectos desse pequeno, porém potente evento, apareceram para


mim como cernes do que pretendo discutir acerca dos temas sensíveis e do
ensino de História. Estão ligados ao papel do professor e a um tipo de racismo
que, embora reflita antigas questões, atinge novos sujeitos e traz para a escola
uma problemática diferente no que tange à abordagem de temas sensíveis.
Opto, portanto, por dialogar aqui com estes dois aspectos: a) o papel do pro-
fessor na abordagem de temas sensíveis; e b) as migrações atuais como tema
sensível no contexto de uma investigação em curso no âmbito do Mestrado
Profissional em Ensino de História da UFRGS.
No meu diário de campo do dia da entrevista há esta nota, feita ainda no
trajeto para casa: “O que significa ser professor diante da história da Karina?
Que importância há nesse lugar que a fez acreditar que eu seria capaz de res-
pondê-la?” E ainda: “Por que todas as respostas que me ocorreram no mo-
mento da pergunta eram respostas racistas?”. Sim, porque me ocorreram
respostas como “no Brasil, os negros foram escravizados”, ou ainda “no Brasil
é assim mesmo, o racismo existe desde sempre”.
Do ponto de vista intelectual, eu jamais defenderia qualquer das minhas
respostas como válidas, pois naturalizam ou simplificam ao extremo a questão
do racismo, mas diante daquela pergunta, da busca por uma razão, da tentativa

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Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

desesperada por entender o que significaria para sua filha crescer numa socie-
dade racista, as dúvidas se acumularam e eu apenas respondi: “Isso não pode
acontecer. A senhora precisa ir na escola da sua filha e conversar com a direção
e a professora para que tomem uma atitude”. Conto isso à guisa de reflexão
sobre o racismo introjetado na sociedade brasileira, com o qual os professores
precisam aprender a lidar todos os dias. O fato de eu ser professor de História
me pôs diante de um evento que me provocou, incomodou, exigiu respostas e
fez perceber uma nova temática para a pesquisa sobre migrações atuais: o
racismo.
Seleciono dois aspectos da minha prática que me ajudam a pensar o lugar
do professor de História na construção teórica em torno dos temas sensíveis.
Primeiro, o fato de ser professor e pesquisador no momento em que a proble-
mática trazida pela minha entrevistada me foi colocada. Explico: o trabalho
que estava desenvolvendo buscava encontrar testemunhos de migrantes para
ensinar sobre os movimentos migratórios atuais e a presença do direito à mi-
gração e ao refúgio no Brasil. Essa condição de professor pesquisador me levou
à entrevista, e, como algo que me precede, a profissão, vista pelos olhos da
entrevistada, me colocava no lugar de possível detentor da explicação – espe-
rada por ela – do motivo pelo qual sua filha era chamada de escrava. A escra-
vidão é, sim, um tema da alçada dos professores de História, assim como
também o é a relação com jovens e crianças (no caso, a mãe também queria
uma orientação sobre como convencer sua filha a voltar para a escola); contu-
do, a maneira como a questão foi posta trouxe à tona outro aspecto: a presença
do racismo na história do Brasil.
O fato de ser professor e estar diariamente rodeado de estudantes, ter mi-
nhas rotinas estabelecidas e os currículos de cada série praticamente internali-
zados com suas sequências didáticas, cronologias e metodologias desenvolvidas
por mim, meus colegas de profissão, autores de livros didáticos e pesquisadores
das diferentes áreas criou uma espécie de óculos que, de alguma forma, vinham
determinando minha maneira de observar a prática e a docência. A condição de
pesquisador-professor alimentado por pressupostos da educação e da história
possibilita a mim uma percepção diferente dos elementos que compõem a sala
de aula antes naturalizados. Assim, o contato com os migrantes reorientou tanto
minha prática na sala de aula quanto a questão de pesquisa em desenvolvimento,
fazendo emergir o trabalho em torno das questões sensíveis. O que temos aqui,

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Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

portanto, é a base para o trabalho no ProfHistória, uma busca por potencializar


o campo do Ensino de História de maneira que a pesquisa e a prática docente
possam andar juntas e indiquem as transformações a que a disciplina se propõe:
formar cidadãos, mais do que patriotas.
A investigação em curso para o Mestrado Profissional mudou de rumo
depois do encontro com a Karina. Compreendi, dentre outras coisas, que não
queria apenas ouvir e gravar histórias para então transformá-las em textos que
seriam entregues aos meus alunos. Faltaria, nesse processo, algo muito impor-
tante: a corporeidade de quem fala, pois o que me transformou como pesqui-
sador, o que me colocou na situação entre constrangido e sem resposta foi a
presença de uma mulher negra relatando sua história – e essa foi uma vivência
que compreendi ser fundamental para partilhar com meus alunos, visto que o
trabalho com temas sensíveis indica a necessidade de romper com as aulas
expositivas e pautadas na vida idealizada dos personagens históricos.
Com os alunos, construí uma proposta abordando as migrações atuais e
o racismo de modo que todos fossem agentes dos conhecimentos, proporcio-
nando debates nos quais eles entravam em contato com os senegaleses, pois
apenas ler suas histórias nos parecera menos potente do que promover encon-
tros em que tanto os jovens (brasileiros, brancos e, na sua maioria, de classe
média) quanto os senegaleses (e eu como professor) pudessem dialogar, dis-
cordar e construir referências sobre a migração, a história do Brasil e do
Senegal e os desafios que os deslocamentos promovem na vida das pessoas. Fui
compreendendo que, no trabalho com temas sensíveis, o contato entre os di-
ferentes atores é central em qualquer proposta de estudo e demanda tempo.
Destaca-se, aqui, o projeto comentado por Nina Simon e inicialmente conce-
bido na Dinamarca, em 2000, como forma de envolver os jovens no diálogo
sobre a violência (Simon, s.d.). Os organizadores descreveram a Biblioteca
Humana como “uma ferramenta para promover a convivência pacífica e apro-
ximar as pessoas no respeito mútuo e cuidadoso pela dignidade humana do
indivíduo”. Tal como numa biblioteca, o visitante examina um catálogo e fica
com um “livro” durante um período. A diferença em relação a outras biblio-
tecas é que os livros da Biblioteca Humana são pessoas que representam grupos
alvo de preconceitos e vítimas de discriminação social: “o ‘leitor’ da biblioteca
pode ser qualquer pessoa que esteja pronta para falar com seu próprio precon-
ceito e estereótipo e queira passar uma hora nessa experiência”.4

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Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

O relato de Karina me fez refletir muito e modificar o rumo da investiga-


ção em curso, construindo outros contornos para a investigação, que se apre-
senta hoje com referenciais teóricos que relacionam o ensino de História à
emergência dos temas sensíveis, controversos e vinculados aos direitos huma-
nos, conforme citados na primeira parte deste texto. Percebi que, normalmen-
te, quando lemos relatos de pesquisas orais, aquela máxima de “dar voz” que
sempre aparece e que não pretendo discutir aqui se limita a uma voz sem
aparência, sem corpo. Compreendi que aquela voz negra tem um corpo, uma
cor e um gênero, não podia ser um relato lido na tela de um computador ou
em uma folha de papel. O caminho metodológico que passei a utilizar no tra-
balho pressupõe o encontro, a troca e a aprendizagem mútua entre meus alu-
nos e os migrantes que antes eu pretendia entrevistar, cujos relatos eu pretendia
gravar e apresentar à turma na forma de entrevistas transcritas com questões
problematizadoras. A abordagem de um tema que se apresentava como sensí-
vel não poderia ser dessa forma. Era preciso pensar outra maneira de fazer a
aula, outras estratégias para transformar a sala de aula em um espaço plural
diante das interpretações unívocas e eurocêntricas do currículo.
Assim, a investigação mudou também em sua dimensão educativa: de um
site que iria apresentar aos meus alunos as histórias dos migrantes para um curso
Histórias de um Brasil Migrante, planejado e efetivado com os alunos. A pro-
posta do curso se constitui em encontros nos quais os alunos apresentam temas
de história do Brasil relacionados com seus interesses e ouvem as histórias que
os senegaleses contam sobre suas vidas e a decisão de migrar.
Um dos momentos mais importantes da construção do curso foi o debate
com os estudantes para construir os seus objetivos. Decidimos que, durante a
preparação das etapas, iríamos nos encontrar semanalmente para estudar e en-
caminhar as demandas de trabalho no tocante ao curso e seus desdobramentos.
Para iniciarmos o debate, propus aos estudantes um levantamento dos conceitos
e ideias presentes em seus imaginários em torno da África e dos africanos. Como
resultado, o que surgiu foram as ideias difundidas amplamente pelos meios de
comunicação e, muitas vezes, reforçadas pelo contexto escolar: um continente
marcado exclusivamente pela fome e pela guerra (surgiram referências a ONGs,
como Médicos Sem Fronteiras) e pela natureza exuberante.
Elencamos, então, os temas que abordaríamos a partir daqueles indicados
pelos senegaleses, e entre eles figuraram a escravidão no Brasil, o ensino de

Junho de 2018 151


Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

história da África e a diáspora. Há uma anotação no meu diário de campo que


diz: “a surpresa deles ao compreenderem o conceito de diáspora foi emocio-
nante, principalmente quando uma comenta: ‘hoje, para mim, foi muito espe-
cial, estou me sentindo muito feliz por entender que também sou um pouco
africana, não somente negra, mas africana’”. Anotei rapidamente essa fala da
estudante negra que encontrou, na aula, um elemento de sua ancestralidade.
Percebi que abordar as migrações era também aprender/ensinar sobre as iden-
tidades de jovens negros na medida em que o contato com o outro permite
uma reflexão e um olhar sobre si que subverte o lugar comumente dado à
África nos currículos de História e a traz para o presente, na pele, no discurso
e na identidade.
Todo o trabalho, ao longo da pesquisa, baseou-se nos encontros semanais
com os estudantes participantes. Para a construção dos objetivos e da meto-
dologia do curso a ser dado para os senegaleses, discutimos quais seriam, para
os alunos, as questões relevantes. Propus, então, que pensassem por alguns
instantes nestas questões: “Para este nosso curso, quais questões vocês imagi-
nam que serão as mais difíceis de lidar? Quais são os pontos sensíveis da nossa
relação com os migrantes?”.
Na abordagem do tema migrações/racismo como sensível emergiram al-
guns conceitos que sintetizavam os pensamentos dos estudantes: Despedida,
Racismo, Mudança, Choque Cultural, Diferenças, Culturas, Crenças e Geração.
Agregando as palavras por proximidade de sentido, construímos três grupos:
Racismo, Mudança e Diferença. Solicitei que cada um justificasse a razão pela
qual considerava aquele grupo de palavras semanticamente próximas como
sensível para o curso que estávamos criando, no intuito de identificar, com
eles, o conceito de questão sensível. A seguir, algumas das opiniões escritas
pelos alunos nas atividades de formação para o trabalho com os migrantes:

Racismo é um ponto sensível, pois é uma questão muito presente na sociedade; é


algo com que se tira o respeito à pessoa, mesmo quando está em um processo de
“encaixar-se” na sociedade.
Racismo faz qualquer pessoa se sentir deslocada, passar por isso, sendo imigrante
deve ser muito pior, pois apenas por ser um imigrante eles já devem se sentir meio
deslocados. É um ponto sensível porque além de todas as conturbações de ser
imigrante, ainda são submetidos a passar por isso.

152 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

As diferenças que existem de onde eles vieram e o Brasil são muitas e nos mais
diversos âmbitos, mas principalmente na cultura.
É a Natureza do ser humano ser diferente. Perante questões culturais, de crenças
e hereditariedade, existem milhões de divergências que tornam “as diferenças” um
assunto sensível.
Acreditamos que a mudança da África para o Brasil não foi um processo fácil, por
isso podemos tentar entender um pouco mais sobre a saída de lá e como se deu
isso, pensando também no choque de troca de sociedade ao chegar no Brasil.
Precisamos mudar a nossa visão plana do que são os habitantes/imigrantes do
Senegal e de todo o território africano. Aprender como variam suas culturas, me
parece ser o ponto chave do projeto, visto que abre nosso olhar às suas diferentes
realidades.

O racismo presente na escola e sofrido por meninos e meninas, diaria-


mente, tem hoje outro agravante, que é a xenofobia. Tais aspectos aparecem
também nas escritas dos alunos apresentadas acima. O português com sotaque
(sotaque de quem não é lusófono e está aprendendo a nova língua – caso dos
senegaleses e grande parte dos migrantes), a cor da pele e os traços culturais
diversos são rechaçados por pessoas que convivem com esses sujeitos no coti-
diano. Os senegaleses falam da violência sofrida nas ruas (em diversos dos seus
relatos aparecem situações como transeuntes que chutam as mercadorias ven-
didas por eles e até acusações de roubo); os haitianos, como a Karina, falam da
discriminação sofrida na comunidade onde vivem – assim, a escola assume
lugar importante nisso tudo, uma vez que é lá que o preconceito acontece, mas
também é lá que se tenta combatê-lo. As leis que tornam as questões étnico-
-raciais obrigatórias para toda a educação e os projetos daí derivados são exem-
plos de como a escola se caracteriza como espaço de contradições.
O processo de conhecer e criar vínculos com os migrantes do Senegal
despertou algumas perguntas acerca de sua presença no Brasil e em Porto
Alegre. Algumas delas, como a razão pela qual escolheram o país e a rota feita
para chegar ao Brasil, são as perguntas que tanto eu como os alunos fizemos
já nos primeiros encontros. O encarte “Imigração Africana no Brasil” da revista
Semana da África na UFRGS 5 apresenta alguns dados que ajudam a pensar
tais questões. Quanto às rotas, há diversas, mas a mais utilizada é a que sai de
Dakar, com escalas em Casablanca e Madri, rumo a Quito. Dali, atravessam a

Junho de 2018 153


Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

Bolívia, entrando no Brasil pelo Acre. Ao contrário do que a concentração de


senegaleses, sobretudo no centro da cidade, pode sugerir, eles representam um
número menor de imigrantes africanos no Brasil (6,7%) do que os angolanos
(27,3%) e os sul-africanos (11%), por exemplo. Contudo, no Rio Grande do
Sul, eles representam 43% da presença imigrante africana, uma concentração
que se deve à boa estrutura e à organização que encontram na capital gaúcha,
onde a associação senegalesa, com órgãos governamentais (Justiça Federal,
Defensoria Pública), Igrejas e universidades (Grupo de Assessoria a Imigrantes
e a Refugiados – Gaire), tem desenvolvido um trabalho de acolhimento, com
aulas de português, e encaminhado para sua documentação e inserção no mer-
cado de trabalho. Com o aumento do desemprego após 2015, há um grupo
grande vivendo do comércio informal.
A condição de migrante na atualidade tem colocado às sociedades a ques-
tão com que deparei após a pergunta geradora deste relato: o racismo que fi-
gura como um fantasma nunca exorcizado no Ocidente. O que propus para o
curso (parte do meu projeto de mestrado) e que ainda estou analisando é:
como esses sujeitos que optam por migrar, por se deslocarem numa perspec-
tiva diferente daquela que aprendemos na escola (do “imigrante” que sai do
seu lugar sem a possibilidade do retorno), hoje deparam com o racismo como
uma barreira que impede o exercício do seu direito de imigrante estrangeiro?
Os relatos que ouvimos dos senegaleses trazem inconformismo por verem que
portugueses e espanhóis, que são grupos com tantos indivíduos imigrantes no
Brasil, não são acusados de estarem aqui “roubando empregos”.
A partir do curso “Histórias de um Brasil Migrante” a escola tem recebido
os senegaleses para palestras, debates e conversas com estudantes, pais e pro-
fessores, ampliando os encontros e desencontros com sujeitos que hoje são
parte da paisagem urbana da cidade de Porto Alegre, porém invisibilizados
pelo racismo.
O Brasil caminhou, nos últimos anos, no sentido de garantir que a escola
abordasse a temática dos africanos e afro-brasileiros numa perspectiva de edu-
cação antirracista. A legislação que torna o ensino de história da África e afro-
-brasileira é uma conquista dos movimentos negros que não exclui em essência
os imigrantes. Afora isso, a legislação acerca dos migrantes (Lei nº 13.445, de
24 maio 2017), sancionada em 2017, amplia direitos e propõe o combate à
xenofobia e à discriminação. Trabalhar com imigrantes senegaleses (no meu

154 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

caso) coloca para a escola a possibilidade de, por um lado, responder à exigên-
cia feita pela lei do ensino de história da África e afro-brasileira, e, por outro,
preparar os jovens para compreender e responder efetivamente ao intento da
lei de migrações, ambas questões que têm relação com o papel do professor de
História. No entanto, não deixa de ser lamentável que o país precise de leis
para que o respeito a essas histórias seja construído.
Muitos de nós, brasileiros, fomos educados acreditando na democracia
racial e na mistura como uma força identitária presente em todos os brasileiros.
Fomos edificados como nação com base em um discurso em torno da mesti-
çagem e da “contribuição das três raças” para a “civilização brasileira”; contu-
do, vemos o país mergulhado no racismo e na xenofobia, um paradoxo, no
mínimo, curioso: ao mesmo tempo que se forjou como um país das misturas,
o Brasil é um país em que alunos estrangeiros são chamados de negros escravos
dentro de nossas escolas. E, nessa medida, estamos, sim, tratando da defesa dos
direitos humanos e abordando questões sensíveis. No contexto das Leis
10.639/2003 e 11.645/2008, os livros didáticos têm trazido, em seus textos,
elementos da história da África, mas essas histórias necessitam se encontrar
com os novos sujeitos que chegam às mais diversas partes do Brasil, sejam eles
senegaleses, haitianos, angolanos etc. Trabalhar racismo e migrações na pers-
pectiva desses sujeitos recém-chegados que hoje fazem parte de nossa cidade
e reivindicam um espaço de acolhimento e reconhecimento é, também, uma
das finalidades da História ensinada.

Nota III
Em aberto…

O propósito deste artigo foi apresentar nossas inquietações sobre o trabalho


com temas sensíveis na formação de professores de História inspirados em nos-
sas vivências em ensino e pesquisa. A pergunta que nos acompanha nesses es-
paços de experiência diz respeito às finalidades da História escolar, que, sabemos,
se transformou substancialmente nos últimos 20 anos, embora Chervel já tenha
anunciado que muitos estudos foram empreendidos para compreender os con-
teúdos e os objetivos das disciplinas escolares, e muito poucas investigações para
se saber do funcionamento de uma disciplina (Chervel, 1990, p.183).

Junho de 2018 155


Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

No caso da História, queremos crer que os Mestrados Profissionais em


Ensino de História poderão contribuir para desvendar o que ocorre nas salas
de aula. A disciplina é constituída por um conjunto de normas e orientações
pedagógicas, mas, acima de tudo, por tudo o que os professores e os alunos
praticam em sala de aula. Tanto as normas quanto as orientações pedagógicas
e as práticas mudam no decorrer dos tempos. Ao longo do século XIX, a
História se definiu como disciplina escolar ao mesmo tempo que o Estado
assumiu a administração da educação e, nesse contexto, a escola foi chamada
a transmitir os valores da nacionalidade, e ao ensino de História coube o papel
de incutir o amor à pátria.
Para dar conta de sua finalidade, construiu-se, no âmbito da História
escolar, um conjunto de práticas que, década após década, ensinou o passado
para uniformizar. Nos anos ditatoriais (mas não só) imperou uma pedagogia
da “neutralidade” freando o estudo de questões polêmicas. Atualmente, no
contexto da elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a pró-
pria disciplina de História, na Educação Básica, foi considerada polêmica, ten-
do sua finalidade questionada por representantes do Estado, das famílias, de
religiões, de movimentos sociais e de historiadores.
Inspirados em Chervel (1990) e Julia (2001), parece-nos que trabalhar
com temas sensíveis e questões controversas em sala de aula afirma outra fi-
nalidade para a História como disciplina escolar, diferente daquela para a qual
foi instituída inicialmente. Queremos crer que isso é parte do compromisso
com a formação cidadã. Talvez não seja mais aquela propalada em outras dé-
cadas, de formar o aluno crítico que não se deixa enganar pela mídia e por
opiniões produzidas fora do âmbito acadêmico, embora comprometida a par-
ticipação no debate público. Trata-se de uma cidadania que chama a respon-
sabilidade com a justiça, com a defesa dos direitos humanos e com vida no
planeta, para que as pessoas possam viver juntas de forma saudável e generosa.
Daí, talvez, a relevância da abordagem dos temas sensíveis, vivos e controver-
sos nas salas de aula.
Porém, não há consenso sobre as finalidades da História ensinada: con-
tribuir para que os homens possam viver melhor (Bloch, 1997), pensar histo-
ricamente (Vilar, 1997), recuperar a dimensão coletiva das histórias individuais
(Hobsbawm, 1998) e tantas outras respostas, embora nos pareça pertinente
concluir com as palavras de Ginzburg, que ampliam essa abordagem:

156 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

Sou cético quanto à ideia de ser um historiador engajado. Penso que escolher
tópicos só porque são os de “nossa época”, porque dizem respeito ao “hoje”, signi-
fica ter uma visão míope e provinciana da história; mesmo porque, o que parece
totalmente distante da atualidade pode se tornar, repentinamente, o seu foco.
Lembro-me vividamente que, em 1969, meus alunos em Roma estavam freneti-
camente interessados em um só evento que acontecera em Turim em 1920: a
ocupação das fábricas pelos operários. Não pensavam em mais nada. E eu, traba-
lhando nessa época sobre a feitiçaria e os benandanti, estava a milhões de anos-
-luz de todos eles. No entanto, pouco tempo depois – e isso eu gosto de recordar
abertamente – nas manifestações de rua, as feministas gritavam: “Tremate, tre-
mate, le stregue son tornate” (“Tremam, tremam, as feiticeiras voltaram”).
(Pallares-Burke, 2000, p.293)

Com isso, queremos reafirmar que não defendemos um ensino de História


como instrumento de conscientização política. Para deixar a questão em aber-
to, lembremos aqui um grande pesquisador do Ensino de História: “la finalidad
última de la enseñanza de la historia ... ha de preparar al alumnado para que
construya sus propios conocimientos, se ubique en su mundo y esté preparado
para intervenir en él de manera democrática” (Pagés, 2002, p.258). Mesmo que
os alunos nos perguntem todos os dias “para que serve estudar este conteúdo?”,
“não foi bem assim, professor?”, “como o senhor explica isso?”, esse conheci-
mento precisa, de alguma forma, edificar, tornar as pessoas melhores em si e
em suas relações. Quem sabe, então, incluir, entre as finalidades do ensino da
História, o edificar-se?

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Palestra. In: IV COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURAL


E SENSIBILIDADES, 4., 17 a 21 nov. 2014, Caicó, RN. Caicó: Centro de Ensino
Superior do Seridó (Ceres), Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), 2014.
ARAUJO, Maria Paula; SILVA, Izabel P. da; SANTOS, Desirree dos R. (Org.) Ditadura
militar e democracia no Brasil: história, imagem e testemunho. Rio de Janeiro:
Ponteio, 2013.
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Europa-América, 1997.

Junho de 2018 157


Carmem Zeli de Vargas Gil e Jonas Camargo Eugenio

BRASIL. Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Básica (SEB),


Diretoria de Currículos e Educação Integral (DICEI). Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Básica. Brasília, 2013.
CARDOSO, Marília Blanco. “Então não existia Direitos Humanos?” Reflexões sobre a
construção do conhecimento na experiência de Educação Patrimonial. (Artigo
apresentado para a conclusão da disciplina de Estágio de Docência em História III
– Educação patrimonial, 2016. Disponível no acervo do Laboratório de Ensino de
História e Educação da UFRGS, Porto Alegre, RS).
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de
pesquisa. Teoria & Educação, v.2, p.177-229, 1990.
FALAIZE, Benoit. O ensino de temas controversos na escola francesa: os novos funda-
mentos da história escolar na França? Trad. Fabrício Coelho. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v.6, n.11, p.224‐253, jan./abr. 2014.
GINZBURG, Carlo. Entrevista. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. As muitas fa-
ces da história: nove entrevistas. São Paulo: Unesp, 2000. p.269-304.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de
História da Educação, v.1, p.9-43, 2001.
LEGARDEZ, Alain; SIMONNEAUX, Laurence. L’école à l’épreuve de la actualité: en-
seigner les questions vives. Paris: ESF, 2006.
MÉVEL, Yannick; TUTIAUX-GUILLON, Nicole. Didactique et enseignement de
l’Historie-géographie au Collège et au Lycée. Paris: Publibook, 2013.
PAGÉS, Joan. Aprender Enseñar Historia y Ciencias Sociales: el currículo y la didácti-
ca de las Ciencias Sociales. Pensamiento Educativo, v.30, p.255-260, jul. 2002.
SIMON, Nina. The Participatory Museum. s.d. Disponível em: www.participatorymu-
seum.org/; acesso em: 2 abr. 2017.
VILAR, Pierre. Pensar historicamente. Barcelona: Crítica, 1997.

NOTAS
1
Agradecemos a leitura atenta da professora Caroline Pacievitch, cujas abordagens ajuda-
ram a qualificar este texto.
2
Lembrando que a autora fala do contexto da França, onde a liberdade dos professores é
relativa, visto que os currículos são inspecionados.
3
O relatado na Nota II ocorreu no início do trabalho de pesquisa para o Mestrado
Profissional em Ensino de História – ProfHistória. A pesquisa busca encontrar, nas

158 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de história e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas

trajetórias de migrantes, o ensino de questões sensíveis. O trabalho é desenvolvido com a


colaboração de nove estudantes da Educação Básica que propõem, com o seu professor, um
curso de quatro encontros sobre a história do Brasil para migrantes senegaleses. O encon-
tro promovido pelo curso produz os aprendizados em torno das questões sensíveis. Uma
das recomendações feitas pelo Programa de Pós-Graduação (PPG), em que esta proposta
se insere, é de que apresentemos a dimensão educativa da pesquisa (o “produto”) a ser uti-
lizada e analisada durante o Mestrado, em consonância com nosso trabalho na Educação
Básica. É na condição de professor pesquisador que pesquiso a própria prática em um cam-
po de experiências como o do ensino de História e que falo a respeito do projeto “Histórias
de um Brasil Migrante – Curso de História do Brasil para migrantes senegaleses”. Ao me
lançar sobre a pergunta “como as histórias de migrantes ensinam sobre questões sensíveis?”,
entendo que há uma variedade de aprendizados que tocam meus alunos em noções de
mundo e de projetos de vida variados, mas que são fundamentais para a experiência da ci-
dadania ampla, ciosa dos direitos alheios, das diversidades e do respeito às diferenças. Por
isso, considero-as questões sensíveis.
4
“The ‘reader’ of the library can be anybody who is ready to talk with his or her own preju-
dice and stereotype and wants to spend an hour of time on this experience”. Disponível em:
http://www.participatorymuseum.org/read.
5
Disponível em: https://issuu.com/deds-ufrgs/docs/encarte_revista_semana_da_frica_n

Artigo recebido em 31 de janeiro de 2018. Aprovado em 27 de agosto de 2018.

Junho de 2018 159


Ê
S SI
DO

Ensino de História: passados vivos


e educação em questões sensíveis
Teaching History: Living Pasts and
Education on Sensitive Issues
Nilton Mullet Pereira*
Fernando Seffner**

Resumo Abstract
Este artigo aborda temas socialmente This article discusses socially controver-
controversos e sensíveis no âmbito do sial subjects and sensitive themes in the
ensino de história. As questões social- context of History teaching. Socially
mente vivas se constituem na contempo- keen questions are built nowadays on
raneidade em objetos privilegiados dos History curricula’s privileged objects,
currículos de história, em função, por according to social demands of identity
um lado, das demandas sociais de grupos groups, such as minorities, and move-
identitários e, de outro, dos movimentos ments that seek to restrict the freedom
que buscam interferir na liberdade de en- to teach and the right to learn, which are
sinar e no direito de aprender, direitos guaranteed by the Brazilian Federal
assegurados na Constituição Federal de Constitution of 1988. This study aims to
1988. O artigo quer construir a categoria analyze the category of living past as a
de passado vivo como elemento central central element in History teaching cur-
na constituição de currículos de ensino ricula establishment, thus, we made a
de história e, para isso, vale-se de um du- double movement: productivity of re-
plo movimento: a produtividade dos siduality and remnant concepts, and the
conceitos de residualidade e remanes- connection of History teaching with the
cência, e a decidida conexão da prática field of education about human rights.
docente em história com o campo da We conclude by discussing some school
educação em direitos humanos. Ao final, situations that faced these issues.
discutem-se algumas cenas escolares on- Keywords: residuality; remaining forms;
de tais questões foram enfrentadas. sensitive education.
Palavras-chave: residualidade; remanes-
cência; educação em temas sensíveis.

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Educação, Departamento


de Ensino e Currículo. Porto Alegre, RS, Brasil. niltonmp.pead@gmail.com
** Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Educação, Programa de
Pós-Graduação em Educação. Porto Alegre, RS, Brasil. fernandoseffner@gmail.com

Revista
Revista História Hoje,História Hoje,
v. 7, nº 13, vol. 7,- 2018
p. 14-33 nº 13
Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

1. Das estratégias de produtividade do ensino de história

Um dos modos de saber da produtividade do ensino de história é estabe-


lecer conexões com outros campos de pesquisa e ensino e com estratégias di-
versas de aprendizagem. Com isso conhecemos melhor as características do
próprio campo analisado, bem como nos desafiamos a perceber sua produti-
vidade diante das questões contemporâneas, das diferentes tradições teóricas,
dos novos desafios das políticas públicas de formação docente, das marcas
próprias das culturas juvenis e das novidades da historiografia. É o que temos
feito em uma já longa trajetória de ocupação com o ensino de história.
Um esforço frutífero e antigo foi pensar a docência de história na conexão
com as tarefas da leitura e da escrita na escola, como se pode ver em Seffner e
Pereira (2008) e em Seffner (1998). A formação de professores(as) de história
também tem sido alvo de nossas investigações. Analisamos a potencialidade
do ensino de história em uma bem-sucedida política pública de formação do-
cente inicial – o Pibid – em Seffner et al. (2016), e apresentamos e refletimos
sobre as atividades realizadas no âmbito do projeto em Meinerz et al. (2013).
Pensando a formação docente continuada, novamente nos indagamos
sobre as possibilidades da docência em história nos mestrados profissionais,
em Gil et al. (2017). Investimento de fôlego tem sido feito para conhecer as
possibilidades do uso de jogos para lecionar história, como se pode ver em
Giacomoni e Pereira (2013). A problematização de temas canônicos no ensino
de história na ótica das representações culturais contemporâneas foi objeto de
Pereira (2017a), ao pensar as apropriações do medievo nos dias atuais.
Problematizar as consequências, para as práticas docentes de história, dos nu-
merosos documentos oficiais regulatórios que nos últimos anos têm sido pro-
duzidos pelo Governo Federal foi propósito da análise em Pereira e Rodrigues
(2017), tomando como objeto a Base Nacional Comum Curricular.
A abordagem de temas socialmente controversos e sensíveis no âmbito
do ensino de história já ocupou nossa atenção em produções como as de
Pereira e Gitz (2013), com o tema do Holocausto na sala de aula; Gil e Seffner
(2016), com a questão do diálogo da prática docente em história com as marcas
das culturas juvenis no ensino médio; Seffner e Picchetti (2016), ao abordar as
questões de gênero e sexualidade – objeto de acentuado pânico moral nos dias
atuais quando de sua abordagem em sala de aula; Seffner (2016), ao abordar a

Junho de 2018 15
Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

escola como espaço público e o professor como um adulto de referência, não


necessariamente em sintonia com as demandas oriundas das famílias e das
religiões; Seffner (2017a), ao lidar com o delicado tema da liberdade de ensinar
e do direito de aprender nas aulas de história; e em Seffner (2017b), ao analisar
as demandas e organização cotidiana dos alunos e alunas que ocuparam as
escolas públicas do Rio Grande do Sul no ano de 2016. Ainda nesse diapasão
dos temas sensíveis e questões controversas, pensar o ensino de história em
uma conjuntura de resistência foi objeto de análise em Pereira (2017b), tra-
zendo à luz possibilidades e oportunidades para a prática docente de história
diante do ambiente político atual.
As chamadas questões socialmente vivas se constituem em objetos privi-
legiados dos currículos de história, por um lado, em função das demandas
sociais de grupos identitários e, por outro, pelos constantes ataques por que
passam professores que se dedicam a dar atenção ao passado vivo. Em sintonia
com a trajetória apresentada de modo resumido e com os desafios do tempo
presente, este artigo pretende construir o conceito de passado vivo como ele-
mento central na constituição de currículos de história na América Latina, na
contemporaneidade. A ideia de passado vivo nos remete ao elemento da colo-
nialidade que se revela uma continuidade na vida dos povos latino-americanos,
em particular, dos brasileiros. Objetivamos trabalhar com o conceito de resi-
dualidades, no sentido de pensar um currículo de história voltado aos temas
sensíveis e às questões socialmente vivas. A docência em geral e em história,
em particular, estão sob a mira de grupos e movimentos que procuram ques-
tionar o caráter ético e político da educação e da formação do historiador.
Nesse sentido, torna-se necessário uma reafirmação dos aspectos éticos e po-
líticos das narrativas e das formas de expressão do conhecimento de que os
professores se utilizam para criar e recriar conceitos históricos em sala de aula.
Isso implica também abrir os currículos para os passados vivos e sensíveis,
problematizando os marcadores tradicionais e eurocentrados de representar
o tempo.
O objetivo deste artigo é se ocupar do modo como construímos narrativas
e utilizamos formas de expressão dos passados sensíveis e vivos nas aulas de
história, demonstrados mediante exemplos extraídos da prática cotidiana de
orientadores de estágio docente em história. Trata-se de pensar a temporali-
dade histórica nas salas de aula, a partir dos conceitos de residualidade e

16 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

remanscência, dando-lhe os contornos éticos e políticos que possam permitir


pensar os passados vivos e sensíveis e colocá-los na forma de conteúdo da aula
de História. Na esteira dessa discussão, pretendemos desenvolver o conceito
de passado vivo, sob a inspiração da filosofia foucaultiana e da noção de pas-
sado prático de Hayden White, de maneira a propor que um encontro com um
passado vivo consiste num movimento de aprendizagem ética que implica uma
relação consigo mesmo.
O aspecto ético se refere, justamente, aos efeitos esperados do ensino, na
medida em que o ato de ensinar faz um recorte no passado, e este se dá em
função das demandas do presente (Jenkins, 2001). Os objetivos de docência
estão implicados num processo de representação que tem efeitos no modo
como as novas gerações olharão para si mesmas, para o seu mundo e para os
outros. O caráter ético do ensino de história está justamente no processo de
construção de si mesmo como sujeito de um olhar, como subjetividade mar-
cada por se permitir realizar uma determinada interpretação do passado e, ao
mesmo tempo, do seu lugar no presente. Estudar os passados sensíveis não
significa apresentar ao aluno um conteúdo disciplinado e frio (White, 1995),
mas colocá-lo diante de algo que desperta indignação frente à injustiça e a
violação dos direitos humanos. A escrita da história sobre esses passados e seu
ensino não são atitudes desinteressadas, mas voltadas ao futuro – um futuro
de tolerância, de reconciliação com a justiça e com os direitos.
Cabe uma palavra, aqui, sobre a preocupação deste artigo e do ensino de
história com o campo da educação em direitos humanos. A aproximação que
desejamos entre a educação em história e em direitos humanos não é fortuita,
pelo contrário, atende a um conjunto de dispositivos legais que, a partir da
Constituição Federal de 1988, indicaram essa obrigatoriedade. Fruto mais vi-
sível para o campo escolar desse percurso das políticas públicas em direitos
humanos foram dois atos do Executivo federal fazendo cumprir disposições
da legislação: a promulgação do Plano Nacional de Educação em Direi­
tos Humanos (Brasil, 2006) e das Diretrizes Nacionais da Educação em
Direitos Humanos (Brasil, 2013). Mas há uma extensa legislação nos níveis
estadual e municipal que indica essa obrigatoriedade. Em particular, os estados
constituíram Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos (CEEDH)
a partir da instalação dos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos. Essa
estrutura alcança todas as unidades da Federação.1 Como resultado desse

Junho de 2018 17
Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

investimento, temos a produção e visibilidade de numerosas experiências pe-


dagógicas, realizadas por professores e alunos com diferentes temas no guarda-
-chuva da educação em direitos humanos e em muitas e diferentes realidades
e contextos culturais e educacionais do país. Parte da produção pode ser vista
nas premiações anuais do Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos
e do Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos “Óscar
Arnulfo Romero”. Ao pensar o ensino de história como produtor de uma
educação em temas sensíveis necessariamente alargamos o diálogo acerca dessa
prática com a educação em direitos humanos.
Os direitos humanos têm seu documento legal internacional mais conhe-
cido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada no
plenário das Nações Unidas, e que completa 70 anos em 2018 (ONU, 2009).
Muitas décadas depois, a partir de iniciativas promovidas por vários países e
por órgãos de cooperação bilateral e multilateral, as Nações Unidas lançaram
o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos e um Plano de
Ação (ONU, 2006). O Brasil é signatário de todas essas iniciativas e, em sinto-
nia com elas, desenvolveu políticas públicas e documentos oficiais próprios,
tendo também integrado em seu ordenamento jurídico esses documentos in-
ternacionais com força de lei. Em cada país a educação em direitos humanos
tomou cores próprias, a depender dos desafios culturais, políticos e sociais de
cada contexto. Vale lembrar que aqui no Brasil a adesão a essa regulamentação
internacional aconteceu quando o país avançava em termos de densidade de-
mocrática, tendo saído do período de ditadura militar e proclamado a chamada
Constituição Cidadã em 1988, a Carta Magna que mais direitos sociais contém
em toda a nossa história.
Desse modo, nossas diretrizes para a educação em direitos humanos no
ambiente escolar se amparam tanto em princípios constitucionais quanto em
metas desenhadas para alcance pela sociedade: a dignidade humana enquanto
direito básico da vida assegurado a qualquer cidadão/ã brasileiro/a e definida
como direito humano no texto constitucional de 1988; a igualdade de direitos
pensada como terreno oportuno para a vida em sociedade e com justiça social
e como dever de garantia pelo Estado e pelas políticas públicas; o reconheci-
mento e a valorização das diferenças e das diversidades, implicando um debate
analítico de cada contexto e adoção de mecanismos jurídicos que tomem em
conta os diferentes marcadores sociais da diferença que podem vir a produzir

18 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

situações de desigualdade; a laicidade do Estado – princípio constitucional


expresso na Constituição Federal de 1988 e que busca assegurar que o Estado
não promoverá nenhuma religião em particular, mas zelará para que cada um
possa professar o culto que mais lhe pareça adequado, em sintonia com as li-
berdades laicas (liberdade de consciência, liberdade de expressão e liberdade
de crença, todas elas constando em nossa Carta Magna); a obrigatoriedade do
exercício da gestão democrática nas políticas públicas de educação e que deve
também estar expresso no cotidiano escolar e se encontra garantido tanto no
texto constitucional quando nas ordenações do Plano Nacional de Educação
e em legislações estaduais e municipais dali derivadas (Gomes, 2015); a trans-
versalidade, a vivência e a globalidade, orientando a construção de ações pe-
dagógicas da educação em direitos humanos que podem tanto se alocar em
uma disciplina específica, como fazer parte de projetos colaborativos interdis-
ciplinares; e a sustentabilidade socioambiental, percebida como garantia de
futuro para a sociedade e para o planeta.
É sobre essa plataforma legal que avançamos neste artigo, com conside-
rações em torno da produtividade do ensino de história quando busca dar
conta da educação em temas sensíveis, e o faz orientado pelos princípios da
educação em direitos humanos. Como historiadores, assumimos que não se po-
de falar de uma natureza humana anterior à história e à cultura, que se poderia
localizar, identificar e definir por si mesma, para dali extrair direitos, deveres
e contornos humanos que valeriam desde sempre e para sempre. Mas assumi-
mos que, para o momento histórico-político-cultural em que vivemos, há um
­conjunto de princípios fundamentais ligados à dignidade humana e as me­
lhores políticas para fazer viver e alargar as condições de vida com igualdade
de oportunidades e direito à formação integral. A educação escolar – e a his-
tória como seu importante componente disciplinar – não pode estar alheia a
esses propósitos. Vale lembrar que nos dias de hoje ainda temos no Brasil um
longo caminho para assegurar uma vida em sociedade e no cotidiano escolar
em que duas preocupações presentes em 1948, quando foi aprovada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, possam ser consideradas como
bem equacionadas: o direito ao mais amplo exercício da liberdade de expressão
e de viver sem sentir medo, por parte de alunos e professores. O ensino de
história tem parcela importante de responsabilidade e possibilidade de reverter
esses dois traços culturais tão presentes no ordenamento social brasileiro.

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Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

Feitas essas considerações de caráter mais geral e introdutório, encaminhamos


agora nossa escrita para o terreno propriamente das práticas docentes em his-
tória, discutindo os conceitos de passado vivo, residualidade e remanescência,
para chegar então a uma definição estratégica e pedagógica do que entendemos
por educação em temas sensíveis. A partir disso vamos apresentar e analisar
cenas do cotidiano de aulas de história em que se expressam tensões em torno
do que nos propusemos a dialogar.

2. Sobre o passado vivo: residualidade e remanescência

Pensar um currículo de história para escola básica sem levar em conside-


ração os temas desestruturantes e sensíveis é continuar a pensar um currículo
eurocêntrico, cronológico, dominante, branco, heterossexual e racista. Dito de
outro modo, consiste numa submissão da aula de História a um passado morto
e objetificado. Situamos o debate neste artigo, ao contrário, em torno da ideia
de passado vivo, que tem a ver com a insistência de um passado que não passa
e que, desse modo, desestrutura a temporalidade progressiva e evolucionista
da História eurocentrada.
Supor um passado vivo implica pensar duas urgências que se apresentam
hoje ao ensino de história: as questões sensíveis e a diferença. As questões
sensíveis nos deslocam e nos colocam no lugar de alguém que aborda o pre-
sente ao mesmo tempo que pensa o passado. São questões que nos levam a
discutir o pertencimento e a necessidade que os jovens têm de se reconhecer
numa história determinada, de olhar para si mesmos e se autoafirmarem. Ao
mesmo tempo, entendemos pensar a diferença na forma da experiência.
Quando estudamos um passado que não se relaciona com o nosso presente,
de nenhum modo estamos estudando alguma coisa absolutamente apartada
da vida de cada um de nós. Ao contrário, significa olhar para um passado
distante do nosso presente, do ponto de vista da relação de pertencimento que
temos com ele, e sentirmos um estranhamento, de tal forma que este nos per-
mita abrirmo-nos a uma experiência alheia, nova, inusitada, que nos desloca
do presente e nos leva ao futuro. Esse outro elemento que não é do pertenci-
mento, mas sim do estranhamento, também é frutífero para o ensino de his-
tória e para a vida, porque nos leva a pensar o passado tendo um uso que
permite problematizar o presente e imaginar experiências ainda imprevisíveis.

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Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

O passado considerado diferença nos faz dar um salto do presente para pensar
novos mundos possíveis.
Eis, portanto, duas urgências no ensino de história para os direitos huma-
nos: se, por um lado, compreendemos que precisamos organizar um currículo
ou mesmo uma aula de história que dê conta dos temas desestruturantes da
vida dos jovens e da sociedade brasileira nos tempos atuais – que lhes permita
compreender o que é o presente e como se orientar nele, construir uma iden-
tidade, criar referenciais –, por outro lado, é necessário para a aprendizagem
histórica outro salto, que é pensar a diferença na forma da alteridade. Ou seja,
“aprendo sobre mim mesmo na relação com o outro, mas, sobretudo, aprendo
com o outro a experiência que nunca tive”, e é isso o que permite a movimen-
tação no tempo em direção ao futuro para novas experiências.
Com base nessa dupla preocupação, que nos parece estar resumida no
campo dos direitos humanos e da aprendizagem histórica na maneira da abor-
dagem das questões sensíveis, procuramos apresentar duas questões interiores
a essa dupla preocupação. A primeira consiste em supor que os temas sensíveis
indicam outra maneira de construir a temporalidade. Se pensamos um tema
sensível ancorado na ideia de que o passado é exterior ao presente, não estamos
colocando elementos do campo do sensível para discutir o problema.. Em
nossa concepção, um tema sensível vive do paradoxo temporal: o passado con-
vive com o presente; um passado que não passa; um presente que não deixa de
ser passado. Um tema sensível não pode ser analisado do ponto de vista cro-
nológico, evolucionista, progressivista, como pensaram os iluministas ou como
supõe o eurocentrismo. Para refletir sobre o nazismo é preciso se dar conta de
que ele não é algo do passado, que deve ser estudado com distanciamento, do
ponto de vista metodológico, que nos coloque numa situação de leitores de
algo que nos é exteriorizado. O nazismo é algo que nos indica um paradoxo
temporal: ele é, ao mesmo tempo, passado e presente. Os seus efeitos se esten-
dem no presente e, infelizmente, se estenderão, ainda, ao futuro. O racismo,
decorrente de escravidão de pessoas negras no Brasil, não é algo que passou: é
algo que não passa, não cessa de multiplicar os seus efeitos. Temos aí o para-
doxo temporal: ninguém poderá, simplesmente, ensinar a cronologia da escra-
vidão sem pensar que a escravidão não é outra coisa senão o elemento ao qual
está ligado o processo de colonialidade e estão ligados os processos de racismo
e discriminação que existem em nossa sociedade.

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Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

Faz toda a diferença dar-se conta de que quando penso um tema sensível,
tenho que me abrir; tenho que estar em abertura; tenho que estar despersona-
lizado de todas as determinações que o conhecimento europeu, desde
Descartes, tem instituído para a nossa sociedade. Significa que abandonar tanto
o racionalismo quanto o empirismo; e, sobretudo, abandonar a ideia de que a
cronologia é da própria natureza do tempo e que o pensamento histórico pre-
cisa estar sempre a ela submetido. O mais importante que a história nos ensina
é que não há nada que possa ser universal; nada que possa se colocar como
uma narrativa que abranja todas as outras narrativas. Logo, o tempo cronoló-
gico não é outra coisa senão uma criação – e uma criação perversa; tributária
de uma espécie de colonialidade do tempo (Quijano, 2005),2 de tal modo que
a nossa experiência temporal e as nossas relações com o passado, tem sido
construídas a partir da colonialidade. Desse modo, a história nos informa exa-
tamente que não há uma representação essencial do tempo, não há uma nar-
rativa universal, não há uma narrativa universal, não há uma única forma de
pensar o tempo. A experiência temporal do povo Guarani é absolutamente
incomensurável se partirmos dessa temporalidade europeia e eurocentrada.
A segunda questão que nos auxilia a pensar os temas sensíveis é “apren-
dizagem e experiência”. Estamos propondo que a aprendizagem de um tema
sensível só pode ter sentido se for uma aprendizagem da experiência (Bondía,
2002). Quando aprendemos alguma coisa, do ponto de vista da filosofia an-
terior a Descartes, nos transformarmos com aquilo que aprendemos
(Foucault, 2004). A aprendizagem não é vista como um mero acúmulo de
qualquer coisa, nem de conceitos, nem de informações. A aprendizagem im-
plica uma transformação subjetiva. A abordagem do genocídio indígena no
Brasil pode permitir apenas dizer que ele existiu e discutir as causas desses
processos, dar-lhes datas, informações, fazer levantamentos de documentos
e assim por diante. Se fizermos apenas isso estaremos abordando um passado
frio e disciplinado, exterior, e que é tornado objeto, fato, apartado do sujeito
que conhece (White, 2014).
Até Descartes não havia distinção entre aprendizagem e espiritualidade,
entre aprender e transformar-se como sujeito. Descartes inaugurou, na filoso-
fia, essa ideia de que o sujeito do conhecimento é tão racional que está abso-
lutamente imune às questões da vida e da experiência: conhecer é algo que
permite acumular conceitos e informações. Preferimos seguir a linha da forte

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Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

crítica elaborada por Nietzsche e Marx, no século XIX, e pensar que a apren-
dizagem implica transformação de si. O que se precisa pensar é justamente a
ideia de que aprender sobre o genocídio indígena no Brasil não pode ser algo
que o professor simplesmente exponha em aula, como “matéria dada”. Há que
se ter acontecimento nessa aula: que alguém chore, que alguém se espante,
que alguém ache um absurdo, que alguém diga “professor, o senhor não tem
o direito de nos mostrar isso que está nos mostrando! O senhor não tem o
direito, é muito forte, é muito pesado!”. Uma aula de história provoca sensa-
ções, muito mais que simplesmente ensina causas, efeitos e consequências. A
questão que se coloca é que uma aula de história provoca sensações.
Na percepção que temos da história disciplinar, profissional e, por que
não dizer, eurocêntrica, a análise de um fato, a compreensão e a explicação
desse fato, é um modo de enclausurá-lo, analisá-lo, compreendê-lo e explicá-lo
num passado distante. Essa distância é medida não apenas pelo que de estra-
nho o tempo do fato tem em relação ao presente, mas pela enorme distância
entre o objeto e o sujeito do conhecimento. Não se trata de um estranhamento,
mas de uma distância epistemológica. A construção da narrativa envolve duas
entidades opostas, distantes e apartadas: passado/fato/objeto e presente/sujeito.
Esse passado recortado é frio e disciplinado, é tratado como um bibelô pronto
a ser objetificado e individualizado pelo discurso. Dessa relação de absoluta
exterioridade entre passado, objeto, presente e sujeito não se extrai nada de
vida, nada que permita expandir a vida; e expandir a vida é exceder os limites
do presente. Essa forma de conhecer o passado tem sido, por muitos anos,
comum às salas de aula de história e aos livros didáticos. De outro modo, o
passado é vivo, pois não apenas ele insiste no presente, na forma de questões
abertas e sensíveis, como também insiste como acontecimento que provoca
aprendizagens novas. Desse diagrama que construímos podemos visualizar
duas urgências ao ensino de história: as questões sensíveis e a diferença. Diante
dessas duas questões – em verdade uma dupla preocupação – situam-se dois
elementos da aprendizagem histórica: o paradoxo temporal que pensa presente
e passado de uma só vez, e uma aprendizagem da experiência que deixa de
apartar sensibilidade e inteligência, corpo e alma, conhecimento e ética.
Dessa forma, temos um passado vivo que se prende ao presente como
residualidade ou como remanescência, constituindo o ser do paradoxo tem-
poral. As aulas de história se põem a tomar como conteúdo de ensino e

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aprendizagem as residualidades do passado que não passam, que se estendem


ao presente e que habitam a memória, constituindo experiências. A seguir
queremos pensar diversas dessas residualidades e remanescências, ou seja, so-
brevivências do passado que se instalam na história e na memória e que insis-
tem e nos fazem ver as experiências como virtualidade atuais.
A teoria das residualidades é um roubo que fazemos dos estudos medie-
vais, que se propõe a pensar as permanências e as insistências de elementos do
pensamento medieval na atualidade. Como afirma Pontes (Informação
Verbal): “Quando falo de resíduo, digo remanescência; se pronuncio resíduo,
refiro-me a sobrevivência … resíduo é aquilo que remanesce de uma época
para outra e tem a força de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura. O
resíduo é dotado de extremo vigor. Não se confunde com o antigo”.3 Fizemos
uma livre apropriação do conceito para pensar a residualidade como a mate-
rialidade do paradoxo temporal. O passado insiste, mas na qualidade de pas-
sado, contínuo fluxo que passa, nunca é o mesmo de um momento para o
outro. Desse modo, sobrevivem resíduos que se atualizam no presente, guar-
dando em torno de si uma virtualidade que a prende ao passado. Remanescer,
nesse sentido, é fazer subsistir o passado no presente. Se os estudos medievais
se debruçam sobre elementos da mentalidade medieval (Macedo, 2011),4 da
literatura e das práticas sociais, e buscam seu modo de ser no presente, o que
procuramos são passados residuais que insistem em se manter vivos pela sua
própria vitalidade, uma vez que seu caráter de abertura e de infinitude os torna
ao mesmo tempo passado e presente.
A preferência pela teoria das residualidades e das remanescências, e não
pela ideia de permanência, diz respeito ao fato de que a noção de permanência
parece se relacionar com algo fixo, inalterável, que permaneceu, mas quere-
mos, ao contrário, pensar nas diversas apropriações que historicamente se
deram com esses passados que insistem no presente.

3. O ensino dos passados vivos em articulação


com a educação em temas sensíveis

Um passado vivo em sala de aula constitui-se dos dois elementos já de-


moradamente descritos neste artigo: a noção de que um passado vivo continua
a fluir ao mesmo tempo que o presente, e a ideia de que sua aprendizagem se

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Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

dá na forma de uma experiência. O que descreveremos a seguir são aconteci-


mentos de salas de aula da escola básica nos quais se pode ver a passagem de
um passado vivo que provocou experiências nos estudantes, permitindo uma
aprendizagem sobre e com os direitos humanos.

3.1 Raça: o passado entra estridente pela janela

Tarde escaldante em Porto Alegre, o pouco vento que circula traz ar de


tempestade e chuva que se avizinham. Escola de ensino fundamental, Zona
Leste de Porto Alegre, periferia urbana, não muito distante da região do sam-
bódromo, já final do ano letivo. Sentado no fundo da sala, observo o estagiário.
Nada está andando muito bem por aqui. Barulho de uma obra na rua logo em
frente à escola. Gritaria excessiva de crianças no pátio. Esta turma tem aulas em um
prédio ainda de madeira. Tudo range no chão quando alguém caminha ou
simplesmente se mexe na cadeira. Há uma dispersão geral no ar. Eu mesmo
estou suando e entediado. Aula muito tradicional sobre escravidão no Brasil.
Fatos, algumas gravuras de dois livros grandes de pinturas do Debret, datas,
nomes, cidades, relato de situações de opressão no trabalho, de censura na vida
religiosa, depoimento dramático da separação de mães e filhos no porto de
chegada no Rio de Janeiro, histórias de fuga de negros e perseguição pelos
feitores. Muita falação, mas nenhuma conexão à situação da população negra
no Brasil contemporâneo. Tudo ficou lá atrás, na colônia brasileira, e parece
não afetar a vida de ninguém aqui. O estagiário se preparou, coisas interessantes
são ditas por ele, mas são chicotadas no mar, não deixam marca nenhuma na
classe de jovens. Na sala, o alunado é predominantemente negro ou pardo, e
todos com certeza pobres. O estagiário é um rapaz muito jovem, muito bonito,
e loiro. Ninguém faz pergunta nenhuma, todos tentam ficar em silêncio; pro-
cedendo assim, querem ajudar o estagiário, nota-se que têm simpatia por ele,
mas não conseguem estabelecer um diálogo. Ele se esforça para que os alunos
participem, está muito nervoso, e eu tenho uma parcela importante de culpa
nisso, pois estou aqui como supervisor do estágio. Me apresentei à classe de
alunos dizendo claramente que estava ali para avaliar o trabalho docente do
estagiário, não tenho como dizer outra coisa, é essa a minha tarefa. Solicitei a
colaboração dos alunos e alunas para o sucesso da aula e sentei no fundo, como
sempre, com o bloco de anotações na frente. Sempre que escrevo algo no bloco,
percebo que os alunos e alunas olham com curiosidade. Já estou contando os

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Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

minutos para que toque a sineta, embora sabendo que terei de voltar outro dia,
pois, com um desempenho assim, não há como me dar por satisfeito com o
trabalho do estagiário. A tarde está perdida. Aí acontece algo que muda tudo.
Uma sirene estridente de polícia se escuta ao longe, vai crescendo, captura a
atenção de todo mundo, logo já vemos a viatura policial da brigada militar
passando em frente à escola. Nos damos conta de que são duas viaturas, na
realidade. Elas reduzem muito a velocidade, a tal obra do outro lado da rua está
cercada por montes de saibro, difícil passar pela frente da escola, penso que
mesmo o meu carro deve estar atrapalhando o trânsito, pois deixei meio atra-
vessado entre calçada e rua. As sirenes não permitem que se escute mais nada,
todo mundo olha, crianças se levantam das cadeiras. A coisa passa, a situação
volta ao que estava antes. E uma aluna afirma – ou pergunta – com voz muito
audível: “estão perseguindo um negro, que nem lá, onde o professor estava fa-
lando, não é?”. Imediatamente a sala fica inundada de observações feitas por
outros alunos, nem consigo anotar tudo, pois são muitas falas ao mesmo tempo,
mas se escutam afirmações como: “Quando entro no supermercado X (grande
rede em Porto Alegre), sempre o fiscal fica me seguindo”. “Na padaria lá na
faixa os outros pegam o pão no balcão e vão pagar no caixa. Quando sou eu,
eles levam o pão ao caixa, eu pago, e só depois eles me entregam o pão”. “A
minha mãe e eu fomos no crediário, e ela deixou a bolsa na cadeira, enquanto
ia beber água no bebedouro, e quando voltou e pegou a bolsa de novo, o guarda
veio perguntar se a bolsa era dela mesmo”. “Eu disse pra minha tia que eu nem
quero mesmo tênis novo no Natal, porque negrão com tênis novo é roubada
na certa, é muita explicação o tempo todo”. A agitação sobe de tom quando
uma aluna diz em voz bem alta “e tem aquela professora querida que falou um
dia que para ser empregada doméstica a gente nem precisava estudar muito, no
nosso caso, emprego era mais importante do que estudo”. O passado ligado à
raça e à escravidão não passou; bastou uma sirene, e ele invadiu a sala. Para meu
espanto, o estagiário se anima, bate palmas, pede atenção, parece que o ligaram
na corrente de 220 volts. Traça uma linha de caneta vermelha dividindo o qua-
dro branco (a única coisa moderna que há nessa sala) e, enquanto escreve, vai
dizendo aos alunos “aqui desse lado, a gente vai fazer uma lista de coisas como
eram antes, antigamente, no tempo da escravidão; e aqui desse outro lado, a
gente vai escrever como é hoje, todo mundo tem que copiar tudo, e depois a
gente vai fazer um debate”. Percebo que a tarde foi salva pela sirene da polícia.

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Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

Mais surpreso fico quando os alunos listam os elementos “de antigamente” com
precisão, ou seja, eles haviam escutado e guardado na memória, talvez apenas
não soubessem o que fazer com aquilo. Quando a lista “das coisas de hoje”
começa a ser feita, uma aluna sugere que se faça como em alguns exercícios do
livro, ligue a coluna da direita com a da esquerda. Todo mundo ri e concorda,
os alunos agora estão também conduzindo a aula, o poder se repartiu entre
docente e discentes. A afirmação de antigamente, “trabalhavam e não ganha-
vam salário”, fica ligada por uma seta com a afirmação de hoje, “trabalham e
ganham o salário mais baixo do mercado”. Fazem-se conexões ligadas a local
de moradia, religião, maus tratos, preconceito. Verdade seja dita, tudo é feito
de modo um tanto aligeirado, mas há agora um vigor na sala, um envolvimento,
que contrasta nitidamente com o momento anterior. E assim a aula segue, até
que a sineta da troca de períodos interrompe tudo e os alunos correm para fora.
Alguém falou que a ventania da chuva já dá para ver ao longe, o desejo de qual-
quer pessoa sensata numa tarde dessas é que a chuva comece logo. Um menino
se aproxima de mim e diz com o ar mais zombeteiro que se possa imaginar: “a
gente acha o nosso professor muito massa, mas ele precisa de um empurrão
toda hora, é sempre assim, mas ele é mais legal que a nossa professora. Ela, nem
adianta empurrar mais, ela não anda”. O menino nem espera eu comentar al-
guma coisa, sai empurrando os outros meninos a sua frente, aos gritos de “em-
purra gente, empurra gente”.

3.2 Homofobia como residualidade medieval

Evidentemente, o termo homofobia não se aplica ao passado medieval.


Nem mesmo supor a existência de uma legislação que pudesse tornar crime
tal prática. Entretanto, resíduos de uma prática que se ocupou de estabelecer
um lugar para o outro em função de sua identidade de gênero ou de suas prá-
ticas sexuais parece se desprender das circunstâncias e do contexto da vida dos
medievais do Ocidente e inserir-se na atualidade, sob outras roupagens, com
outros objetivos, como singularidade que se mede pela sua extensão na atua-
lidade. Desse modo, foi possível, em um estudo que preservou as particulari-
dades de cada período, da Idade Média ocidental e da atualidade da sociedade
brasileira, pensar a questão dos direitos, da tolerância, das diferenças e de uma
questão bem particular do nosso mundo hoje, a homofobia, por meio de um
estudo sobre a sodomia e a bruxaria na Idade Média. A porta de entrada, o

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Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner

disparador a partir de onde foi possível pensar o presente por uma residuali-
dade medieval entre nós, foram as condenações das práticas sodomitas pela
Inquisição medieval, elemento intimamente ligado à misoginia medieval, re-
síduo igualmente importante nos tempos atuais.5 Trata-se de uma questão
sensível em todos os seus contornos, historicizada na forma da residualidade
e a partir de um disparador que procura não aproximar períodos históricos,
mas perceber práticas que se alongam no tempo fazendo passado.

3.3 O Nazismo como atualidade

Estudar o nazismo como um passado que não cessa de insistir no presen-


te, tem implicações éticas e políticas, pois seu estudo permite aprender e pensar
novas experiências de vida sem o nazismo e suas mazelas. Uma atividade es-
colar perguntou aos alunos, em primeiro lugar, quando o Nazismo existiu, e
todos foram rápidos em afirmar que foi no século XX, na época da Segunda
Guerra Mundial. O exercício implicava provocados os alunos com perguntas
sobre se existe hoje, no século XXI, intolerância, racismo, condenação do outro
em função de sua singularidade, enfim; e todas as respostas eram que sim, tudo
isso existia. Foi nesse momento que os estudantes puderam perceber que o
Nazismo e tudo do que ele é constituído ainda existe, aliás, teria existido antes
dele. Aos alunos foi proposto discutir como seria o mundo hoje se o Nazismo
não tivesse existido. O que mais importou foi que os alunos passaram a ver o
nazifascismo como algo que não passou, que reside como memória e como
prática (foram exemplificadas várias dessas práticas) em nossa sociedade. Para
finalizar a atividade, foi colocada uma pergunta no quadro: “E se o Nazismo e
o que o constitui nunca tivessem existido, como seria o nosso mundo?”. As
respostas foram variadas. Mas o importante é que a pergunta moveu a aula de
história para o campo da ética, da compreensão do que somos e do que que-
remos ser neste mundo e, além disso, permitiu aos alunos visualizarem alter-
nativas, pensar alternativas que não aconteceram e que poderiam ainda
acontecer num futuro imprevisível.
Em sintonia com a exposição teórica e a narrativa de situações escolares
expostas, concluímos este texto propondo uma espécie de conceituação, que
reconhecemos ainda em construção, do que entendemos por educação em te-
mas sensíveis no ensino de história, em estreita articulação com a noção de
ensino dos passados vivos. Não se trata propriamente de uma conceituação,

28 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

mas de uma curta listagem de elementos centrais para pensar essa modalidade
de ensino. O primeiro deles é assumir na aula de história que o passado nunca
passou exatamente, ele está vivo e atuante no presente de alunos e professores,
e isso se manifesta de modos muito diversos. O conceito de residualidades é
peça-chave para lidar com esse “passado que nunca passa”, e que, portanto,
ajuda a produzir quem somos no presente. O segundo elemento é pensar que
os temas sensíveis não são dados a priori, não há como construir uma listagem
de temas sensíveis que exista para sempre e propor, então, atividades para cada
um, à moda de uma “lista de conteúdos e suas atividades”. A produção dos
temas sensíveis é fruto de uma relação entre passado e presente, entre o pro-
grama de história e as marcas das culturas juvenis e do contemporâneo. Exige,
então, sensibilidade da parte do professor, e só confirma o ditado de que o bom
professor de história é alguém que mergulha no passado com os pés bem firmes
no presente, e esse presente inclui compreender a atualidade dos alunos. O
terceiro elemento é assumir que os temas sensíveis são atravessados por fortes
divergências de opinião e aceitar isso como constitutivo da aula de história, que
busca mais debate do que propriamente a produção de consensos ou verdades
acabadas do tipo “o que realmente aconteceu na história”. A potência da aula
e a produtividade do ensino de história se revelam no vigor dos debates, no
clima de liberdade de expressão, no respeito aos direitos humanos e na aposta
de que todos saiam transformados em suas identidades (Mouffe, 2003).
Em sintonia com isso, o quarto elemento diz respeito a pensar a aula de
história animada pela noção de modus vivendi, valorizando nela um elemento
fundamental de sua história, que é a disposição para a capacidade de construir
acordos entre indivíduos e grupos cujas opiniões diferem, disposição que en-
tende o espaço público como local de negociação intensa entre projetos dife-
rentes e legítimos (Seffner, 2015). Tal dinâmica vai muito além do que em geral
se afirma sobre a inclusão e a diversidade. Não se trata apenas de “reconhecer”
que o outro é diferente, e “aceitar” que ele seja incluído. Trata-se de realizar
um movimento de forte alcance pedagógico, de colocar-se na posição do outro
e aceitar modificações na sua própria posição tendo em vista a existência do
outro. As narrativas da história deslocam nossas narrativas pessoais, e esse é o
valor de seu estudo, é para isso que se estuda história, e não para simples co-
nhecimento de registros do passado (Albuquerque Júnior, 2016). Um quinto
e último elemento é pensar toda a aula de história como também inserida no

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campo da educação em direitos humanos, tal como apresentamos na introdu-


ção deste artigo, e devidamente amparada em legislação educacional brasileira
e em consensos internacionais. Para os tempos atuais, essa é a aula de história
que nos parece fazer diferença.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. de. Regimes de historicidade: como se alimen-


tar de narrativas temporais através do ensino de história. In: GABRIEL, Carmen
Teresa; MONTEIRO, Ana Maria; MARTINS, Marcus Leonardo B. (Org.)
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NOTAS
1
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ganização não governamental que atua em estreita sintonia com as políticas públicas da
área. Disponível em: https://goo.gl/Yr17UJ; acesso em: 25 dez. 2017.
2
QUIJANO (2005) elaborou a ideia de colonialidade do poder, com respeito aos processos
de constituição histórica das relações de desigualdade baseada na raça, estabelecidas pelos
europeus desde o processo de colonialismo.
3
Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes, concedida a Rubenita
Moreira (5 e 14 jun. 2006), e lida na Jornada da Residualidade, em 13 de julho de 2006 na
Universidade Federal do Ceará (UFC). O professor Pontes faz parte do Grupo de Estudos
de Residualidade Literária e Cultural (Gerlic), que atua desde 1991 no Curso de Letras/
Departamento de Literatura da UFC.
4
“Por ‘residualidades medievais’ ou ‘reminiscências medievais’ devem-se entender justa-
mente as formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao medievo, altera-
dos e/ou transformados no decurso do tempo. Nesta categoria encontram-se, por exemplo,

32 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


Ensino de História: passados vivos e educação em questões sensíveis

as festas, os costumes populares, as tradições orais de cunho folclórico que remontam aos
séculos anteriores ao XV e que preservam algo ainda do momento em que foram criados,
mesmo tendo sofrido acréscimos, adaptações, alterações. Festas como a de Corpus Christi,
as Folias de Reis e a Festa do Divino Espírito Santo, o Natal, e mesmo o Carnaval, foram um
dia ‘medievais’ e persistem, mas não da mesma forma, nem desempenhando os mesmos
papéis na Europa ou em outras partes do mundo para onde foram levadas” (MACEDO,
2011, p.13).
5
Sobre a misoginia medieval, ver BLOCH (1995).

Artigo recebido em 3 de janeiro de 2018. Aprovado em 27 de agosto de 2018.

Junho de 2018 33
História e história local: desafios,
limites e possibilidades
History and Local History: Challenges, Limits and Possibilities
Erinaldo Cavalcanti*

Resumo Abstract
Este artigo tem por objetivo ampliar as This article aims to expand the discus-
discussões sobre a chamada história lo- sions about the so-called local History,
cal como objeto de estudo e, também, as an object of study and as a conceptual
como categoria conceitual para o ensino category for the History teaching and
e/ou a historiografia. Almeja, por conse- for its research. Therefore, the article
guinte, problematizar alguns sentidos e aims to problematize some of the mean-
significados que são atribuídos à histó- ings and senses that are attributed to lo-
ria local e demonstrar alguns dos desa- cal History and to show some of the
fios que se apresentam para as diferen- challenges arisen for its different appro-
tes apropriações pelas quais tem sido priations.
mobilizada. Keywords: History; local History; con-
Palavras-chave: História; História local; ceptual contributions.
aportes conceituais.

O escritor Graciliano Ramos, ao se referir ao processo de produção da es-


crita, faz uma analogia entre o ato de escrever e o ofício das lavadeiras de roupas
do estado de Alagoas:

Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem


em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na
beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a
torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam,
dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou
na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do
pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a

* Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor Adjunto da


Faculdade de História e do mestrado interdisciplinar da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (Unifesspa). Marabá, PA, Brasil. ericontadordehistorias@gmail.com

Revista História Hoje, v. 7, nº 13, p. 272-292 - 2018


História e história local: desafios, limites e possibilidades

roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia
fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro fal-
so; a palavra foi feita para dizer. (Ramos, 1962)

Tomando como inspiração e desafio essa “exegese” de Graciliano Ramos,


gostaria de iniciar as reflexões mencionando o lugar da produção para o qual
essas palavras foram “lavadas” e, sobretudo, pôr em destaque a importância e
o cuidado com o manuseio dos significados das palavras, pois, como ressaltou
o escritor alagoano, “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro
falso; a palavra foi feita para dizer” (Ramos, 1962).
Uma parte deste texto foi construída para ser apresentada no I Encontro
de História do Sul e Sudeste do Pará, cuja temática central foi: “O local e global:
o lugar dos direitos na sociedade globalizada”.1 Nessa dimensão, ele apresenta
as marcas também desse “local”. Outro espaço que também grafou marcas
neste texto diz respeito às reflexões vivenciadas na disciplina “Prática
Curricular Continuada I: ensino de história local e regional”, que lecionei no
curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (Unifesspa).
O tempo – e suas distintas temporalidades – tem sido apropriado e mo-
bilizado de diferentes maneiras pela ciência histórica. Os usos do passado,
apropriados no presente pela História e seu ensino, têm se modificado subs-
tancialmente em diferentes sentidos e direções. Diferentes estratégias de pes-
quisa e ensino têm mobilizado distintos vestígios das experiências temporais
como metodologias de estudo e/ou objeto de trabalho. Nesse movimento,
insere-se uma rica variedade de trabalhos que versa acerca das relações entre
História, ensino e patrimônio;2 História, ensino e literatura;3 ensino de história
e novas tecnologias da informação;4 História, ensino e tempo presente5 e
História, ensino e história local,6 para citar apenas alguns.
Essas diferentes apropriações se constituem, por conseguinte, em distintas
maneiras de ler e interpretar o tempo por meio dos indícios, dos sinais e ves-
tígios7 que são mobilizados. Nesse sentido, eu gostaria de expandir o debate
acerca de uma dessas dimensões com o objetivo de contribuir e ampliar as
reflexões. Para tanto, centrarei as discussões, problematizando alguns desafios
sobre os usos da chamada história local para sua apropriação no campo do
ensino e no campo da pesquisa historiográfica.

Junho de 2018 273


Erinaldo Cavalcanti

O “Local” como espaço de problematização

Há uma citação bastante conhecida do filósofo e matemático francês


Blaise Pascal: “Uma cidade, um campo, de longe são uma cidade e um campo,
mas à medida que nos aproximamos, são casas, árvores, telhas, folhas, capins,
formigas, pernas de formigas, até o infinito. Tudo isso está envolto no nome
campo” (Pascal, apud Gonçalves, 2007, p.175).
Essa citação de Pascal nos coloca uma série de possibilidades para pensar
nas discussões que o “local” pode suscitar para os debates envolvendo sua
apropriação pela História e seu Ensino. O que se entende por local? Local em
relação a quê? Para quem? O que é local para uns pode, igualmente, ser global
para outros. O reordenamento na vida de famílias que são afetadas pelas ati-
vidades da mineração, no sul do estado do Pará, por exemplo, trata-se de uma
questão local? Se estivermos falando de trabalhadores e trabalhadoras que vi-
vem em uma vila que foi afetada pelas ações da extração do minério, podería-
mos afirmar que se trata de uma história local?
Em que dimensões seria uma história local, já que essas histórias são cons-
truídas, atravessadas, redirecionadas e ressignificadas com os desdobramentos
da extração de minério, atividade desenvolvida com todas as relações de poder
do chamado capitalismo globalizado? Em que dimensões poderíamos nomeá-
-la de história local, haja vista que sua configuração é resultante de diferentes
forças, atores e empresas ligadas ao mercado internacional da mineração?
Nesse sentido, onde estabelecer as demarcações? Como e até onde instituir os
limites e as fronteiras, mesmo sendo estas móveis e elásticas? Há como precisar
onde termina a história local e começa a história “não local” ou história global?
Até que ponto e como o local e o global se articulam e se interconectam?
As discussões que aqui apresento não pretendem “inventar a roda” no
âmbito dos debates que envolvem a chamada história local e suas relações com
a História e seu ensino. Se servirem para demonstrar a complexidade exigida
para tornar inteligível seu uso, terá atingido seu objetivo. Nesse sentido, irei
revisitar alguns debates promovidos por estudiosos que se dedicaram a estudar
a história local, sobretudo nos diálogos estabelecidos com o ensino de História.
Nesse percurso, levantarei algumas indagações para as quais não tenho respos-
tas, senão, outros questionamentos.

274 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

Nessa dimensão, gostaria de trazer à discussão alguns sentidos atribuídos


à palavra “local”. A etimologia da palavra nos leva ao latim localis. Sua grafia
– que pareceria um plural, embora não o seja – já sugere evitarmos apreendê-la
ou aprisioná-la em um sentido singular. Sugere que ela desfruta de significados
plurais. Ou seja, o local, desde a gestação de sua grafia, é um espaço conceitual
polissêmico; é um lugar polifônico. No conhecido dicionário Aurélio, a palavra
“local” encontra-se experimentada como sinônimo de “lugar”. De maneira
mais detalhada, o primeiro significado atribuído a “local” diz respeito a um
sentido “relativo a determinado lugar”. Assim, os significados de “local” estão
embrionariamente ligados a uma concepção de lugar e, nessa relação, “lugar”
está indissociável de espaço. Ou seja, ao falarmos de local, estamos, concomi-
tantemente, falando de espaço.
Para o sociólogo e urbanista francês Alain Bourdin (2001), o “local” é um
lugar de sociabilidades, marcado pela proximidade e pela contiguidade das
relações entre os sujeitos que as estabelecem. Nessa perspectiva, a “dimensão
do local” permite ampliar e compreender a relação entre espaço e ação, ou
pensar e problematizar o espaço como lugar de ação, o que coloca, por conse-
guinte, a relação sujeito/espaço no centro das discussões. Nesse sentido, o “lo-
cal” seria um recorte eleito por aquele que desejasse refletir sobre as
experiências dos sujeitos em espaços sociais delimitados. Portanto, o local,
nessa acepção, está sendo instituído pelo professor/pesquisador.8 É ele o sujeito
autor desse espaço conceitual.
Por essa linha de raciocínio, é oportuno trazer Michel de Certeau à dis-
cussão quando ele afirma que a relação que liga “as discussões aos lugares” é
uma ação propriamente do historiador. Em suas palavras, “o gesto que liga as
‘ideias’ aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador. Compreender,
para ele, é analisar, em termos localizáveis, o material que cada método ins-
taurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência” (Certeau, 2007,
p.65, grifo no original).
Diante do exposto, cabe questionar: seria “local” um conceito? Se a res-
posta for “sim”, em que consistirá, então, uma “história local”? Em que se
distinguiria de uma “história não local”? Se a resposta for “não”, em quais
circunstâncias caberia o uso da expressão “história local”?
Acredito ser importante, primeiramente, termos clareza sobre o que en-
tendemos pelo conceito de “local” e, sobretudo, por “história local”. Não se

Junho de 2018 275


Erinaldo Cavalcanti

trata, portanto, de mera retórica a discussão em tela. Pelo contrário. Trata-se


de problematizar esses conceitos e compreender seus significados para, assim,
podermos manuseá-los de forma coerente e, por conseguinte, direcionar seus
usos de maneira a fazer-se dizer o que precisa ser dito, como destacou
Graciliano Ramos.
Nesse movimento, parece-me oportuno trazer à discussão as análises pro-
movidas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck acerca da história dos
conceitos. Seja como método ou disciplina, a história dos conceitos, para ele,
se encarrega de problematizar a crítica “com particular empenho de expressões
fundamentais de conceito social ou político” (Koselleck, 2006, p.103).
Um conceito encontra-se intimamente ligado a uma palavra, mas nem
toda palavra está ligada, necessariamente, a um conceito. Koselleck, ao discor-
rer acerca da relação palavra-conceito e conceito-palavra, destaca que “con-
ceitos sociais e políticos contêm uma exigência concreta de generalização ao
mesmo tempo que são sempre polissêmicos” (Koselleck, 2006, p.108). Por esse
ângulo de percepção, os conceitos são detentores de uma polissemia de senti-
dos e possuem a capacidade de agregar uma multiplicidade de significados.
Paradoxalmente, contêm um caráter homogeneizante, para usar de emprésti-
mo as palavras desse autor.
Um conceito não é forjado sem lutas, disputas e trocas, sejam essas polí-
ticas ou semânticas. Assim, a formação processual dos conceitos representa,
antes de tudo, lutas políticas que legitimam posições, demarcam espaços, ins-
tituem direitos e significados; os conceitos são forjados em um tenso campo
de forças. A “batalha semântica”, segundo Reinhart Koselleck, “para definir ou
impor posições políticas e sociais em virtude das definições está presente, sem
dúvida, em todas as épocas de crise registradas em fontes escritas” (Koselleck,
2006, p.102). Em outras palavras, entender como os conceitos são forjados é
compreender as lutas políticas pelas lentes das disputas semânticas.
Nesse sentido, irei problematizar algumas dimensões que concorrem para
atribuir significados à chamada história local e, por conseguinte, demonstrar
os desafios do seu uso conceitual, o que não inviabiliza sua utilização, diga-se
de imediato.
As discussões acerca da história local não são recentes e aparecem nas
reformas curriculares de 1930, como destaca Maria Auxiliadora Schmidt
(2007). Estavam presentes, também, no Parecer 853 do Conselho Federal de

276 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

Educação de 1971, quando faz referência à história local como um recurso


didático. Aquele documento que agregava as atividades de geografia e história
“privilegiava o estudo do mais próximo e mais simples deslocando-se depois
para o mais distante e mais complexo” (Schmidt, 2007, p.188). Em 1990, os
Parâmetros Curriculares voltam a tratar da história local, sendo ela apropriada
“como um dos eixos temáticos dos conteúdos de todas as séries iniciais da
escola fundamental e como perspectiva metodológica em todas as séries da es-
cola básica” (2007, p.189).
A professora e historiadora Circe Bittencourt, por sua vez, ressalta que “a
história local tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar
a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente
nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer
– igualmente por situar os problemas significativos da história do presente”
(Bittencourt, 2009, p.168). Seguindo sua reflexão, ela destaca, todavia, os cui-
dados para evitar que a história local não reproduza em escala menor a mesma
narrativa de uma história feita pelos “grandes” e “importantes” personagens
do poder político e das classes dominantes locais. Nesse sentido, é importante
que a história local não se limite a reproduzir, em dimensões micro, o estudo
da vida e das atividades de prefeitos e demais autoridades de determinado
lugar, por exemplo. Para evitar essas armadilhas, “é preciso identificar o enfo-
que e a abordagem de uma história local que crie vínculos com a memória
familiar, do trabalho, da migração, das festas...” (Bittencourt, 2009, p.169).

Desafios

Desafio 1: História local como “história pequena”

Um dos desafios que se apresentam na utilização do conceito de história


local diz respeito a um conjunto de significados que a institui em uma relação
de oposição aos considerados grandes fatos ou acontecimentos. Nesse sentido,
a história local seria, por excelência, uma “história pequena”, ou história
miúda. Não pequena em importância ou significado, diga-se à exaustão. Por
“história pequena” me refiro a uma dada leitura que sugere uma interpretação
pela qual uma história (ou várias histórias) é apreendida e percebida pela ex-
tensão espacial de seus desdobramentos; que não excederia grandes limites

Junho de 2018 277


Erinaldo Cavalcanti

geográficos. O conhecimento de existência dessa história não ultrapassaria


grandes alcances, além dos imediatos limites no espaço físico onde ocorrera.
Para a historiadora Márcia Gonçalves, a diversificação que configura o
que se identifica e se reconhece como local é marcada pela multiplicidade de
sentidos e variações. Ela ressalta que “o local pode ser associado a uma aldeia,
a uma cidade, a um bairro, a uma instituição – escolas, universidades, hospitais
– e, como escolha por vezes recorrente, a um espaço político administrativo,
como distrito, freguesia, paróquia, municipalidades” (Gonçalves, 2007, p.177).
Por essas lentes interpretativas, a história local se constituiria, principal-
mente, em uma espécie de “acontecimento pequeno”, circunscrita a uma limi-
tação espacial, sobretudo porque os relatos sobre sua ocorrência ficariam quase
sempre reduzidos a uma pequena dimensão geográfica. Essa interpretação nos
coloca uma série de desafios. Podemos afirmar que as histórias de um bairro
da cidade de Marabá (PA) – ou de qualquer outra cidade – podem ser consi-
deradas como história local com base em quê? As histórias de uma rua pode-
riam ser consideradas como local em relação às histórias do bairro? Nessa
relação, como seriam classificadas as histórias do bairro? A mesma interpre-
tação poderá ser estendida para a relação bairro/cidade, cidade/município,
município/estado, estado/país, e assim por diante. Nessa perspectiva, o que e
como definir como local? Talvez seja esse o maior desafio.
Trazer essas problematizações não implica que a questão esteja solucio-
nada. Longe disso. Até porque também não teríamos, ainda, elementos que
definiriam os fundamentos para classificar uma história como pequena, como
miúda. Qual o referente e quais os fundamentos epistemológicos para assim
classificar uma história, um acontecimento?

Desafio 2: História local como “história do entorno”

Outro desafio reside na interpretação em que se apreende a chamada


história local como uma “história do entorno”. Por esse ângulo de percepção,
a história local seria uma história “próxima”, não só no espaço, mas também
no tempo. Porém, próxima a quem ou ao quê? Uma história do entorno de
quem e do quê?
Circe Bittencourt chama a atenção para essa questão e destaca que “é co-
mum falar de história local como a história do entorno, do mais próximo, do
bairro ou da cidade” (Bittencourt, 2009, p.171). Nessa dimensão, tratar-se-ia

278 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

de um acontecimento próximo ao professor/pesquisador, na medida em que


esse conhece as pessoas, as histórias do bairro, da rua, da aldeia? Seria essa uma
história local porque se acha relativamente próxima ao professor e/ou pesqui-
sador quando se encontra nas cercanias do objeto estudado e mantém, com ele,
relações de pertencimento? Ou seria uma história em que os acontecimentos
estudados encontram-se próximos no tempo, quando a história estudada ou
ensinada, além de ser a ela atribuída uma concepção de “pequena” (porque do
bairro ou da rua, por exemplo), seria local também porque os atores protago-
nistas são contemporâneos aos/às pesquisadores/as e emprestam suas memórias
como objeto e fonte das pesquisas que desenvolvemos?
Os trabalhos que versam acerca da chamada história local – no ensino ou
na pesquisa (ou em ambos) – fazem uso recorrente da memória. Nessa pers-
pectiva, demonstram que a história local e a memória se encontram interco-
nectadas, sobretudo quando esta se constitui como fonte documental e/ou
objeto de pesquisa daquela. Para Circe Bittencourt (2009, p.169), “a questão
da memória impõe-se por ser a base da identidade, e é pela memória que se
chega à história local”, mesmo que muitos trabalhos, enfatiza ela, se constituam
mais como um trabalho de memória do que de História.
Entretanto, essa reflexão da professora Circe Bittencourt precisa ser ana-
lisada com cautela para evitar análises apressadas, sobretudo quando ela refere
que “pela memória se chega à história local” (Bittencourt, 2009, p.169). Cautela
no sentido de evitar uma interpretação segundo a qual a história local estaria
em um dado lugar e seria descoberta pelas veredas da memória. Ou seja, é
importante evitar qualquer leitura que compreenda a existência, a priori, da
história local, como se ela “se encontrasse lá”, pronta e definida, à espera do
professor/pesquisador para desbravá-la, descortiná-la e, assim, fazê-la aparecer.
Nada mais enganoso. Não existe essa história local que aguarda ser descoberta
pelo professor/pesquisador. Nem tampouco há caminhos preestabelecidos,
predefinidos, que garantam ter acesso a essa ou àquela história.
Essa concepção que institui a história local como uma história próxima
– ou do entorno – pode implicar uma interpretação reducionista do que seria
local e, por extensão, história local. Para a professora e historiadora Maria
Auxiliadora Schmidt, essa leitura interpretativa pode se tornar “mais grave
ao se levar em consideração os perigos do anacronismo – o desenvolvimento
de perspectivas etnocêntricas, reducionistas, localistas, bem como o perigo

Junho de 2018 279


Erinaldo Cavalcanti

de identificação do local com o mais próximo, o mais conhecido, estabele­


cendo-se uma relação mecânica entre o mais próximo e o mais conhecido”
(Schmidt, 2007, p.190).
Se concordarmos que o “local” é, por excelência, o espaço de experiências
da vida cotidiana de homens e mulheres, e, por conseguinte, o lugar de atuação
de diferentes sujeitos, esse se torna, portanto, um espaço privilegiado para
problematizar as relações homem/espaço, conforme defende Alain Bourdin
(2001). Por essa leitura interpretativa, o local como campo de microrrelações
entre homens/homens e homens/espaço, o conceito de redução de escala de
observação, proposto pela micro-história, pode se apresentar como uma fer-
ramenta metodológica viável ao seu estudo. Concepção também defendida
pela professora Márcia Gonçalves (2007). Para ela, as análises do “local” pro-
porcionam outros efeitos de conhecimento nas diferentes especificidades, des-
locam hierarquias e sobreposições entre nacional e regional e possibilitam
repensar as relações entre as categorias centro/periferia.
Entretanto, não podemos fazer aproximações rápidas que levem a con-
clusões superficiais, como se já existissem aproximações estabelecidas a priori
entre micro-história e história local. É oportuno destacar, como ressaltou
Giovanni Levi, que “para a micro-história, a redução da escala é um procedi-
mento analítico, que pode ser aplicado em qualquer lugar, independentemente
das dimensões do objeto analisado” (Levi, 2011, p.139). Ou seja, a micro-his-
tória não é definida por um objeto específico, nem por suas microdimensões,
como costuma ser representada a história local – como uma história “pequena”
ou do “entorno”, para citar apenas esses dois significados que a ela são
atribuídos.9

Desafio 3: História local como conjunto coeso e diminuto


de relações, passível de ser estudada em sua “totalidade”

Outro desafio resulta da concepção que compreende a história local como


um conjunto coeso e diminuto de relações e, por isso, seria possível estudá-la
em sua totalidade. Não é difícil encontrarmos reflexões que fazem uso da cha-
mada história local – sobretudo quando a temática de ensino ou pesquisa é um
bairro, uma comunidade ou uma vila, por exemplo – por meio de objetos de
ensino ou pesquisa, como se esses se constituíssem, praticamente, sem

280 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

conflitos. Às vezes, os conflitos aparecem de forma suavizada ou minimizada,


como se nas relações de poder, nesses espaços estudados, inexistissem con-
frontos, disputas, alianças e enfrentamentos. São leituras que, talvez, por apre-
enderem o que se denomina história local como algo “pequeno”, com sujeitos
ligados por laços de pertencimentos, representam-na como histórias cujas
relações seriam marcadas, predominantemente, pela harmonia das relações.
Por conseguinte, essa ilusão da ausência de conflito, às vezes, desdobra-se em
narrativas que têm a pretensão de dar conta da totalidade das relações envol-
vidas nas histórias ensinadas e/ou pesquisadas.
A compreensão de que é possível estudar a chamada história local em sua
“totalidade” pode concorrer para análises generalizadoras. Por extensão, pode
contribuir para que certos comportamentos de atores ou de parcelas específicas
de segmentos sociais sejam associados de modo como se fossem extensivos a
todas as relações dos grupos sociais envolvidos. As análises do historiador
Samuel Raphael podem contribuir para evitarmos certas generalizações. Para
ele, o pesquisador “poderá escolher como ponto de partida algum elemento da
vida que seja, por si só, limitado tanto no tempo como no espaço, mas usado
como uma janela para o mundo” (Raphael, 1990, p.229). Essa sugestão pode
evitar a ideia de generalização, que não raro se atribui à comunidade ou à lo-
calidade, como se determinadas dimensões, aspectos ou circunstâncias pre-
sentes em certos relatos de memória, ou em outro documento, representassem
um todo das relações. Talvez por ser apreendido como algo “menor” em di-
mensões espaciais, credita-se ao estudo do local a possibilidade de ser ele ana-
lisado em totalidade. Erro crasso.
Essa dimensão, por conseguinte, desdobra-se em outra, qual seja, a con-
cepção que apresenta a possibilidade de se compreender a chamada história
local estudando-a isoladamente. Schmidt chama a atenção para os cuidados
em evitar que a história local seja apreendida como se fosse autoexplicativa em
si mesma, ou seja, como se para compreender o que se denomina história local
bastasse o estudo ou pesquisa dela mesma, desconsiderando as redes de rela-
ções em que os acontecimentos são construídos, sobretudo no chamado mun-
do globalizado. Nessa dimensão, a autora ressalta que “é importante observar
que uma realidade local não contém, em si mesma, as chaves de sua própria
explicação” (Schmidt, 2007, p.190).

Junho de 2018 281


Erinaldo Cavalcanti

Desafio 4: História local determinada pelo espaço geográfico

Se a história local possibilita uma proximidade entre sujeitos – sejam eles


professor/pesquisador ou estudantes nas relações com os objetos de ensino ou
pesquisa –, parece que a ela ainda se atribui certa concepção que a institui
como determinada pelo espaço geográfico. Parece-me que as discussões sobre
“local” e, por conseguinte, sobre a história local, ficam, predominantemente,
sob a égide da dimensão espacial, circunscrita aos limites físico-geográficos –
quase sempre apreendidos como pequenos, como já ressaltado.
Nessa dimensão, a história local se constituiria como uma “história espa-
cial”, especialmente pequena, compreendendo espaço como sinônimo de “lo-
cal”. Essa dimensão seria sua marca de distinção. Entretanto, não podemos
esquecer que toda experiência é espacial. As pesquisas que desenvolvemos
analisam objetos sobre acontecimentos diversos que ocorreram em algum lo-
cal, independentemente do conceito que adotemos. Os temas que trabalhamos
em sala de aula, os assuntos/conteúdos que ensinamos, versam sobre repre-
sentações acerca de acontecimentos que ocorreram em algum espaço, em al-
gum local.
Não existe, portanto, experiência/acontecimento fora de um espaço, fora
de um lugar, fora de um local. Talvez o fato de que a expressão “história local”
contenha uma palavra que é sinônima de espaço (“local”) direcione certa con-
cepção que atribui àquele conceito uma dada interpretação que o institui de
maneira que a chamada história local seja tutelada ou condicionada pela di-
mensão espacial. Entretanto, o que institui que um acontecimento seja consi-
derado local não é a dimensão do espaço, nem a dimensão do tamanho, pois
quem institui a dimensão, a legitimidade, o reconhecimento e a representação
é a dimensão política do acontecimento.

Desafio 5: História local como uma extensão e um


desdobramento da história “não local” (nacional?)

Essa interpretação apreende e representa a história local como uma ex-


tensão, um desdobramento de uma história “não local” (história nacional?),
como se fosse peça de um quebra-cabeça. Nessa dimensão, ela teria de se cons-
tituir e se apresentar de forma harmônica e, assim, permitir o “encaixe” na
história maior.

282 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

Por meio dessa leitura interpretativa a história local seria, portanto, uma
“pequena peça” de um organograma maior, e o professor ou pesquisador iria
apresentar em que dimensões ela corresponderia à história nacional. Em outras
palavras, ela seria uma consequência da “história não local”, um prolongamen-
to em dimensões reduzidas e, assim, teria de manter com a “história nacional”
uma relação de causa e efeito. Portanto, aquilo que ocorreu no âmbito nacional
provocou os efeitos e as consequências que determinaram, em dimensões mi-
cro, a configuração da história local.
Esses últimos significados atribuídos ao que se convencionou chamar de
história local parecem se encontrar presentes em todas as outras leituras inter-
pretativas mencionadas anteriormente. Assim, seja entendendo a história local
como uma história “pequena” ou como uma história “do entorno”, como uma
história “coesa e passível de ser estudada em sua totalidade”, uma história
como “consequência de outra história ‘maior’”, é recorrente a interpretação
que associa a história local a um espaço físico-geográfico, em uma relação de
determinação. Ela é, quase sempre, apresentada como determinada por essa
dimensão do espaço. É história local porque é “do bairro”, “da rua”, “da vila”,
“da escola”.
Eu gostaria de ressaltar, todavia, que essas interpretações acerca da cha-
mada história local nem sempre aparecem de maneira explícita, assim como
não estão presentes em todos os trabalhos de professores e/ou autores que
fazem uso da história local como objeto de ensino ou pesquisa. Há importantes
reflexões e relatos de experiência – apresentados em revistas e/ou congressos
– sobre a temática em tela, como demonstra a literatura especializada.

História local: objetos, documentos e abordagens

O historiador Raphael Samuel apresenta uma discussão problematizando


as possibilidades de trabalho que envolvem a chamada história local na relação
com a história oral. Nessa dimensão, ele destaca que a história local dá ao
pesquisador uma ideia muito mais imediata do passado. Os indícios das expe-
riências do passado apresentam suas faces na esquina, na rua, na padaria.
Anunciam seu som no mercado, e apresentam suas impressões nos grafites das
paredes amareladas pela presença do tempo. Nas palavras do autor, a “história
local tem também a força popular, tanto como uma atividade, quanto como

Junho de 2018 283


Erinaldo Cavalcanti

uma forma literária” (Samuel, 1990, p.221). Nesse sentido, os registros docu-
mentais que oferecem esses indícios são potenciais possibilidades de estudo
para se analisar parte do universo polissêmico constitutivo da chamada história
local. O autor chama a atenção para a possibilidade de trabalhos com os jornais
municipais, que seriam importante fonte para o trabalho.
Como meu objetivo é problematizar os desafios do uso da chamada his-
tória local, poderíamos ampliar as discussões e colocar em debate, por exem-
plo, a questão: o que se configura como jornal municipal? Pergunta
aparentemente simples e demasiado óbvia, até. Entretanto, todo periódico é
municipal, pois é produzido em algum município, salvo os jornais do Distrito
Federal. Os jornais Folha de S. Paulo, O Globo e o Diário de Pernambuco, por
exemplo, também são municipais, como o é O Correio Tocantins10 ou o Jornal
Vanguarda.11 Entretanto, as relações políticas e editorais daqueles, diferentes
destes últimos, em termos de produção, circulação, visibilidade e inserção nas
relações sociais, os fazem ultrapassar amplamente as fronteiras municipais.
Nessa dimensão, seria importante compreendermos com clareza o que se en-
tende por jornal municipal. Um periódico cuja circulação se restringe aos li-
mites fronteiriços do município? Uma questão a ser problematizada.
Raphael Samuel apresenta uma grande quantidade de documentos que
possibilitam o estudo do que nomeia como história local. Registros resultantes
de atividades de rádio locais, moedas antigas, cartões-postais e dos dias dos
namorados, cartas pessoais, livros de batismo das paróquias e livros de prêmios
da escola do bairro, para citar alguns exemplos. São registros que, sem dúvida,
oferecem possibilidades de estudo para uma variada gama de objetos.
Entretanto, são colocados em uma perspectiva segundo a qual o local se define,
prioritariamente, pela dimensão espacial de proximidade e tamanho. A rádio
é local por ter um alcance relativamente pequeno e residir no bairro ou na
cidade, também pequenos. O mesmo fundamento serve para pensar os demais
registros documentais apresentados.
Raphael Samuel, ao discutir a diversidade documental que pode alimentar
os estudos sobre a história local, faz referência à categoria de “documento local”.
Nessa dimensão, caberia questionar: o que seria um documento local e, por
extensão, o que seria um documento não local? Quais os princípios e as dimen-
sões que caracterizariam um documento para receber o estatuto de “local”?

284 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

Nos documentos oficiais, como os registros dos governos municipais –


seguindo a linha de raciocínio do historiador Raphael Samuel, e apreendendo
“municipal” como categoria análoga à de “local” (o que implicaria uma série
de outros desafios) –, a concepção do que é ser “local” traz consigo, de maneira
mais perceptível, além dos aspectos físico/espacial, a dimensão política.
Aqueles registros como leis, projetos de leis, resoluções e decretos, entre ou-
tros, fazem referência aos limites – em termos de extensão e aplicabilidade –
definidos politicamente acerca do campo de atuação do referido governo.
Limites que são reconhecidos institucionalmente. Limites que apontam o raio
de abrangência do poder e a atuação de um governo local. Entretanto, isso não
significa dizer que as ressonâncias de ações executadas no âmbito municipal
(ou local) não afetam espaços para além das fronteiras geográficas instituídas
pelos limites políticos de um município.
Como venho tentando demonstrar, uma das principais dificuldades en-
frentadas em relação à história local diz respeito à própria noção de história
local, como também destacou Raphael Samuel. Para ele, essa dificuldade reside
no fato de que o local é pensado “como uma entidade distinta e separada, que
pode ser estudada como um conjunto cultural” (Samuel, 1990, p.227). Assim,
a localidade é vista como um fenômeno único e homogêneo.
O espaço – seja ele nomeado como local ou global – é uma construção
política e simbólica, antes de ser físico-geográfica, porque são as práticas políticas
e as relações de poder que nomeiam, inventariam e produzem sentido, visibili-
dade e reconhecimento do espaço físico. O Congresso Nacional, do ponto de
vista físico, é um prédio local, mas as relações que lá se praticam, sua importância
e seu reconhecimento político o tornam nacional. Por esse ângulo de percepção,
podemos questionar, por exemplo, que a Queda da Bastilha, ocorrida na França
em 14 de julho de 1789, foi um acontecimento local, pois ocorreu no bairro de
Saint-Antoine, no município de Paris. Entretanto, sua dimensão política, cons-
truída de forma relacional e heterogênea, sem determinismos a priori, sem prog-
nósticos estabelecidos, tornou possível que seus desdobramentos ultrapassassem
os limites do bairro, da cidade e do país. Dessa forma, aquele acontecimento
ocorrido em um bairro da cidade de Paris, de maneira gradativa, passou a ser
compreendido e apreendido como fazendo parte da História, sem a necessidade
de nele ser inserido ou eliminado o adjetivo “local”.

Junho de 2018 285


Erinaldo Cavalcanti

Talvez a estratégia viável a ser experienciada consista em ter-se clareza do


objeto de ensino ou pesquisa e dos recursos documentais disponíveis e, assim,
definir o que é possível configurar como localidade – ou local – ou comunida-
de, seja qual for o conceito adotado. Com isso, não partir do conceito definido
como “categoria estrangeira”, pensada por historiadores que estudaram objetos
de investigação distintos dos nossos, em uma tentativa de enquadrar o conceito
pré-fabricado no objeto analisado ou ensinado.
Nessa dimensão, talvez o percurso pudesse ser experimentado no sentido
inverso. O que os documentos permitem entender e configurar como local?
Até onde eles permitem ir? Em termos de discussões sobre o espaço, poder-
-se-ia colocar a questão desta maneira: para compreender meu objeto de
­investigação ou de ensino, até onde posso considerá-lo como “local”? Até os
limites da rua? Do bairro? Da minha cidade? Os documentos mobiliza-
dos para pesquisar ou ensinar o objeto específico podem sugerir pistas, indí-
cios pa­ra essas questões. Como os homens e mulheres se colocam no tempo
em relação a essas questões? Como se apropriam e representam? Como inven-
tam, nomeiam e atuam nessas práticas e relações que inventariam o local?
Como ressaltam Ossana (1994) e Schmidt (2007), levantar essas questões pode
contribuir para que a chamada história local se constitua em experiência que
amplie uma reflexão histórica compreendida como plural e heterogênea, po-
tencializando suas singularidades para compreender as formas de atuação do
homem no tempo e no espaço.
Mesmo que façamos esse percurso objeto/documento/conceito, ainda não
resolveremos os desafios que o uso do conceito “história local” pode suscitar.
O que definir como “local”? Com base em quê? Quais os critérios usados para
instituir como história local a história que praticamos?

Considerações finais

Diante dos desafios, ao invés de tentarmos definir a configuração de uma


história local e assim estabelecer seus limites e demarcações, talvez pudéssemos
pensar em compreender a “dimensão local da História” com que trabalhamos;
dos acontecimentos que pesquisamos; das histórias que ensinamos. Ou seja,
estaríamos trabalhando, pesquisando ou ensinando História, porém, preocu-
pados em compreender sua configuração local.

286 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

A configuração local da história, do meu ponto de vista, em nada se apro-


xima daquelas acepções atribuídas à história local. Ela não é uma peça menor
que tem a necessidade de corresponder às dimensões da “história nacional”
– ou qualquer que seja o nome que a ela se atribua –, como se dela fosse um
apêndice. Uma vez tendo clareza sobre o que se compreende pela dimensão
local da história, poderemos entender que as relações de poder, praticadas em
dada configuração entendida como local, dispõem de forças e práticas que,
mesmo mantendo estreitos diálogos com outras relações e outras práticas –
ditas nacionais ou globais – não estão submetidas a elas em uma relação de
determinação.
A configuração local da história mantém relações de proximidade com a
chamada história nacional, mas, também, de distanciamento. Ela é construída
por práticas e relações da chamada história local, nacional e global; essas são
relações de força, cuja composição não é de fácil distinção. Isso significa reco-
nhecer que não podemos esperar encontrar, em dada configuração da dimen-
são local da História, um recorte em miniatura da história nacional ou global,
mesmo que encontremos traços e sinais semelhantes. Em outras palavras, a
dimensão local da História não é um simples e diminuto pedaço de uma his-
tória maior. Não é a consequência daquilo que teria ocorrido na história na-
cional. Se as tintas com as quais se pinta a dimensão local da História são
análogas às que desenham as experiências da chamada história nacional, a
tonalidade pode sofrer variação, e a tela, assim, ganhar outros tons, outros
traçados e, por que não, outras cores. Entretanto, não podemos tampouco
esperar que a dimensão local se constitua como uma história independente ou
alheia ao que se passa em dada dimensão macro das relações de poder que
constroem, historicamente, as experiências, como se não existissem, entre as
dimensões local e nacional, pressões, abalos e ressonâncias.
Acredito que problematizar as “dimensões locais da história” pode con-
tribuir para evitarmos certos reducionismos. Ou seja, o professor pode ensinar/
estudar/pesquisar a história do bairro, da rua e da cidade – onde se encontra
a escola, por exemplo –, sem a necessidade de enquadrar os acontecimentos,
ou compreendê-los pelas lentes de uma “história local” como convencional-
mente costuma ser apreendida. Em outras palavras, é possível ensinar os con-
teúdos que representam as experiências históricas próximas ao universo de
vivência dos estudantes sem limitar as reflexões a uma interpretação que

Junho de 2018 287


Erinaldo Cavalcanti

compreenda os acontecimentos da chamada “história local” como se fossem


determinados pelas dimensões espaciais ou resultantes de uma “história
maior”, ou nacional, se quisermos.
O professor pode deslocar o ângulo de percepção movido pelo fundamen-
to básico da Ciência Histórica ao compreender que as experiências são singu-
lares no tempo e no espaço. Que a construção histórica dos acontecimentos da
rua, do bairro ou da cidade não está determinada pelas forças externas de uma
história supostamente nacional ou global. Pode potencializar a interpretação
mostrando que os homens e mulheres que habitam os espaços onde as histórias
são construídas são sujeitos que atuam e interferem na construção e nos des-
dobramentos das experiências. Que fazem escolhas, constroem redes de socia-
bilidades, criam sindicatos, associações de bairro, que têm poder e tensionam
as relações, interferindo no processo de construção das histórias.
O professor pode transitar pelos documentos, resultantes das experiências
compartilhadas pelos estudantes, como cartas, fotografias, diários, coleções de
discos, álbuns de família. Pode também fazer uma pesquisa sobre os blogs ou
perfis de redes sociais – compreendendo-os como documentos – criados pelos
próprios estudantes ou os mais acessados por eles, e pontuar questões relativas
aos diferentes suportes materiais pelos quais os homens e mulheres registram
suas histórias em diferentes experiências de tempo.
Seguindo essa linha de interpretação, o professor pode da mesma forma
explorar os conteúdos registrados nesses diferentes documentos, além de en-
tender as distintas formas de preservação e armazenamento dos dados. Pode
potencializar, por conseguinte, a interpretação ao mostrar as tecnologias dis-
poníveis em cada momento a partir dos indícios que as fontes usadas permi-
tem. Pode igualmente demonstrar e compreender as diferentes maneiras e
técnicas pelas quais os homens registram suas experiências.
Preocupado em compreender a “configuração local da história”, o pro-
fessor pode explorar as singularidades da história ensinada – ou pesquisada
– pontuando as diferenças e/ou semelhanças com outras histórias que também
convivem no mesmo bairro ou cidade. Pode pontuar as diferenças e semelhan-
ças construídas no tempo e percebidas, por exemplo, nas mudanças arquite-
tônicas das casas, das ruas, das sinalizações em vias públicas, na construção de
rotas de transportes públicos, na construção de escolas, hospitais e universi-
dades. Pode direcionar as reflexões para entender que as histórias ensinadas

288 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


História e história local: desafios, limites e possibilidades

e/ou pesquisadas, por serem construídas em determinado espaço, não cabem


naquelas concepções que geralmente representam a chamada história local.
Diante do narrado, apenas iniciamos os trabalhos com a “lavagem da
roupa”. Estamos, por assim dizer, nas primeiras lavagens e, como disse
Graciliano Ramos, é preciso, ainda, lavar e esfregar outras vezes, pôr anil, tor-
cer, lavar mais uma vez, enxaguar, torcer e estender a roupa lavada. Nessa
perspectiva, deve-se reconhecer que ainda temos muito que avançar na escrita
e na reflexão acerca das relações que envolvem a História e a história local. Até
a “escrita ficar limpa e ser pendurada no varal para secar”, ainda temos muito
trabalho à frente. Uma atividade complexa diante das tensões, dos desafios e
das relações estabelecidas para quem se aventura a “lavar esse tipo de roupa”.
Ou seja, para quem escreve e/ou ensina a história, já que, nesse ato, as palavras
não podem servir de enfeites, de ilustrações. Elas precisam dizer aquilo que
necessita ser dito. Nesse sentido a importância em problematizar alguns sen-
tidos e significados que são atribuídos à história local, e em demonstrar alguns
dos desafios que se apresentam para as diferentes apropriações pelas quais essa
história tem sido mobilizada.

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NOTAS
1
O Encontro ocorreu entre os dias 6 e 8 de março de 2017, no Instituto de Ciência e
Tecnologia do Pará, na cidade de Marabá. Deixo aqui expressos meus agradecimentos aos
organizadores do evento pelo convite: a professora Anna Carolina de Abreu Coelho e o
Grupo de Pesquisa “O local e o global: história, memória e natureza no sul e sudeste do Pará”.
2
Para uma reflexão envolvendo História, ensino e patrimônio, ver CHAVES, 2013;
MATTOZZI, 2008; PELEGRINI; FUNARI, 2008; HARTOG, 2006; ORIÁ, 1998; 2014.
3
Consultar: CHARTIER, 2002; GUIMARÃES, 2012; MORTATTI, 2014; LEOPOLDINO, 2015.

Junho de 2018 291


Erinaldo Cavalcanti

4
Para ampliar as discussões, ver: ALVES, 2005; ASSMAN, 2005; MATTA, 2006; SILVA,
2012.
5
Para expandir as discussões, consultar: GOMES; LUCA, 2013; DELGADO; FERREIRA,
2013; MAGALHÃES; GONTIJO, 2013; MIRANDA, 2013.
6
As referências acerca da história local encontram-se ao longo do texto e na bibliografia do
presente artigo.
7
Sirvo-me aqui das discussões promovidas pelo historiador Carlo Ginzburg acerca do cha-
mado “paradigma indiciário”. Para ampliar as discussões, consultar GINZBURG, 1990.
8
Também podemos encontrar essa linha de interpretação nas reflexões promovidas pelo
geógrafo Milton Santos. Para ele, o espaço é o efeito de um conjunto de múltiplas forças
resultantes das relações humanas no tempo. Nesse sentido, Santos argumenta que “todo
espaço social pode ser objeto de uma análise formal, estrutural e funcional” (SANTOS,
2009, p.55). Ou seja, a concepção conceitual de “espaço”, assim como de “local”, é uma
construção intelectual.
9
Não podemos incorrer, portanto, em afirmações apressadas como se houvesse comple-
mentaridade ou similaridade entre história local e micro-história. É oportuno enfatizar que
a micro-história surgiu, segundo Jacques Revel, “como uma resposta às limitações óbvias
daquelas interpretações da história social, que em sua busca de regularidade, dá proemi-
nência a indicadores supersimples” (REVEL apud LEVI, 2011, p.162). E, para Giovanni
Levi, a micro-história se caracteriza, fundamentalmente, pela “redução de escala, o debate
sobre a racionalidade, a pequena indicação como um paradigma científico, o papel do par-
ticular (não, entretanto, em oposição ao social), a atenção à capacidade receptiva e à narra-
tiva, uma definição específica de contexto e a rejeição do relativismo” (LEVI, 2011, p.162).
10
Jornal produzido na versão impressa e on-line, com sede na cidade de Marabá, Pará. O
jornal foi fundado em 1983 pelo jornalista Mascarenhas Carvalho da Luz, com circulação
quinzenal. Depois, passou a ser semanal e, atualmente, apresenta três edições por semana.
Sua versão on-line encontra-se disponível em: http://www.ctonline.com.br/?inicial; acesso
em: 2 mar. 2017.
11
Jornal produzido na versão impressa e on-line, com sede na cidade de Caruaru,
Pernambuco. O jornal Vanguarda foi fundado em 1932 por José Carlos Florêncio, com
quatro páginas cada exemplar e tiragem inicial de mil exemplares, e circulava pelas princi-
pais cidades do Agreste de Pernambuco e na capital, Recife. Sua versão on-line encontra-se
disponível em: http://www.jornalvanguarda.com.br/v2/index.php; acesso em: 2 mar. 2017.

Artigo recebido em 20 de julho de 2017. Aprovado em 15 de junho de 2018.

292 Revista História Hoje, vol. 7, nº 13


129

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES


Aluno do Pós-doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte desenvol-
vendo o projeto O ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL NAS ESCOLAS DO VALE DO JAGUARIBE DEMARCANDO
SENTIDOS sob a supervisão da Professora Dra Maria Inês Sucupira Stamatto. Possui graduação em
História pela Universidade Federal do Ceará (1991), mestrado em História pela Universidade Federal
de Pernambuco (1995) e doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2002).
Atualmente é professor Adjunto L da Universidade Estadual do Ceará, atuando na Faculdade de
Filosofia Dom Aureliano Matos – FAFIDAM/UECE. Professor do Mestrado Acadêmico Intercampi em
Educação e Ensino – MAIE. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Regional
do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: História do Ceará; Sertão; Cidade, Cultura
e Poder; História e Memória da Educação; História Local; Ensino de História; Memória e Patrimônio.
E-mail: <olivenor@hotmail.com>.

MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(1979), graduação em Bacharelado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(1981), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986), dou-
torado em História – Études des Sociétés Latinoaméricaines – Universite de Paris III (Sorbonne-
Nouvelle) (1992) e pós-doutorado em Educação – Université du Québéc à Montreal UQAM (1999).
Atualmente é associado IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase em História da Educação Brasileira, atuando principalmente nos se-
guintes temas: Historia da Educacao, Ensino de História, Livro Didático e Educacão do Rio Grande
do Norte.
E-mail: <stamattoines@gmail.com>.
131

1 introdução

A temática que preside a escrita deste capítulo compreende,


como o próprio título anuncia, a relação entre história local e
ensino de História. A importância de nos voltarmos, mesmo que
de forma breve, para a referida temática, encontra sentido na
própria necessidade de estabelecermos, do ponto de vista teóri-
co-metodológico, alguns níveis de compreensão acerca do que se
convencionou chamar de história local e a sua consequente rela-
ção com o ensino de História. Buscando, pois, atingir os objeti-
vos impostos a este capítulo, ele será desenvolvido com base em
três tópicos de discussão: no primeiro, direcionamos nossas re-
flexões para a chamada história local, buscando inferir, do pon-
to de vista teórico-metodológico, como esta é concebida pelos
historiadores, além da sua relação com o ensino de História; no
segundo, de maneira mais propositiva, reunimos algumas expe-
riências acadêmicas1 consumidoras, em boa medida, da propos-
ta de indissociabilidade entre o ensino e a pesquisa; no terceiro
tópico, estabeleceremos alguns níveis de compreensão acerca do
ensino de história local nas escolas do Vale do Jaguaribe.

2 História local: novos sentidos para superarmos


velhas perspectivas

Desde as últimas décadas do século XX, desenha-se nova


paisagem historiográfica, caracterizada pela diversidade de te-

1 Vivenciadas junto aos alunos de História da Faculdade de Filosofia Dom Au-


reliano Matos – FAFIDAM, campus da Universidade Estadual do Ceará –
UECE, com sede na cidade de Limoeiro do Norte, Ceará.

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


132

mas e abordagens, cuja densidade se faz sentir numa produção


de estudos que fogem, por assim dizer, das macroabordagens, ao
mesmo tempo em que se espraia na direção de outras margens
que possam favorecer a demarcação de novas perspectivas de in-
terpretação do local.
Nesse cenário de valorização dos modelos de abordagem
voltados para o específico, o micro, para as singularidades, os
historiadores se dividem em endosso e crítica.2 Dentro dessa
nova paisagem historiográfica, além da chamada Nova Histó-
ria Cultural, é inegável a contribuição do pensamento pós-mo-
derno para a reflexão dos historiadores, na medida em que os
impelem à busca do local e do contingente em vez do universal,
tão-somente. Desprezando a ideia de continuidade, que supos-
tamente possibilitaria ao historiador alcançar a totalidade do
conhecimento histórico, a perspectiva pós-moderna sinaliza na
direção das incertezas, das descontinuidades, das rupturas, em
lugar, portanto, das grandes narrativas marcadas pela pretensa
“objetividade” que alicerça o pensamento moderno.
Nas primeiras décadas do século XXI, ante a repercussão
das novas perspectivas de produção do conhecimento no âmbito
das Ciências Humanas, notórias são as necessidades de mudan-
ças, teórico-metodológicas, nos estilos de se escrever e ensinar a
História.
Apesar do célere processo de globalização que vivemos,
e no ensejo das necessidades há pouco referidas, faz-se impera-
tivo buscar compreender a diversidade das organizações espa-
ciais, haja vista a persistência, nos espaços regionais e locais, de
um conjunto de diferenças que precisam ser interpretadas com
suporte nos novos parâmetros epistemológicos. Nesse mesmo

2 Em razão dos limites deste capítulo, não passaremos em revista esse debate,
no entanto, destacamos, entre os que endossam, os trabalhos de Geovanni
Levi (1992) e Jacques Revel (1998); e, no plano da crítica, o clássico trabalho
de François Dosse (1992).

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


133

contexto, de tentativas de padronização de comportamentos e


costumes, bem como de integração territorial, é cada vez mais
evidente a entrada em cena dos mais diversos grupos de mino-
rias pontualmente reunidos desde motivações étnicas, sexuais,
religiosas, entre outras. Portanto, como objeto de estudo, o local,
em toda a sua complexidade, tem, cada vez mais, ganhado des-
taque (FAGUNDES, 2006).
Ante toda sua complexidade, o regional e o local não po-
dem apenas ser tomados como complementares ou reafirmação
da história nacional, nem muito menos como sendo, um ou
outro dos modelos, mais verdadeiro. Se a perspectiva do local
representa, por um lado, um avanço em relação às tendências
ditas tradicionais, por outro, essa perspectiva de abordagem ain-
da carece de reflexões mais densas, no campo da historiografia,
acerca do que concebemos como história local e dos sentidos
que a ela atribuímos. Como um veio importante dessa discussão,
do ponto de vista teórico-metodológico, o espaço não pode ser
pensado por ele próprio, mas, desde conjunto de eventos e ce-
nas que, numa dada temporalidade, forja tramas, redes, relações,
constituindo panoramas e montando paisagens móveis (ALBU-
QUERQUE JR., 2010).
Não podemos, portanto, desconsiderar os inúmeros equí-
vocos que se acham vinculados à definição dos espaços compre-
endidos como local ou regional. Para Durval Muniz de Albu-
querque Jr., a ideia de região deve contemplar, como elemento
demarcador de sua existência, a dimensão do discurso, associa-
do a imagens, valores, além, é claro, dos estereótipos criados es-
pecialmente pela mídia.3 No contexto do mundo globalizado, no
entanto, não devemos considerar tarefa fácil a definição do que
venha a ser global e regional. Por essa razão, torna-se fundamen-

3 Durval Muniz, em A Invenção do Nordeste (1999) e outras artes, discute, de


maneira instigante, os estereótipos que demarcam à região Nordeste do Brasil
como sendo o lugar da seca e da miséria.

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


134

tal fazermos uma reflexão acerca de como a chamada história


local é, do ponto de vista teórico-metodológico, concebida.
Num modelo de abordagem mais ampla, a história local é
concebida com base em pressupostos que lhes atribui a condição
de um território circunscrito, acomodado dentro de semelhanças
geográficas, administrativas, de formação histórica ou de expe-
riências socioculturais. Demarcada dentro e com suporte em al-
guns referentes naturais, sociais, entre outras práticas e represen-
tações que lhes são características, a região ou o local contrasta
com os objetos de uma história mais ampla (HAAS JR., 2009).
Segundo Durval Muniz (2008), desde os historiadores li-
gados à tradição da Escola dos Annales, mediante seus estudos
chamados de monografias regionais, é possível inferirmos acerca
das regras metodológicas que balizariam os estudos de História
regional e local. Dentro das referidas regras, três percursos de-
veriam ser feitos pelos historiadores. O primeiro diz respeito à
caracterização do espaço escolhido para estudo pelo historiador
regional; o segundo percurso seria compreendido pelo estudo da
demografia de uma dada região, ou seja, suas formas de ocupa-
ção humana; no terceiro percurso, o historiador prestaria toda
a atenção aos conteúdos culturais que dariam singularidade e
sentido ao próprio recorte regional, de modo a exprimir toda a
sua suposta originalidade.
No que se refere ao primeiro dos três percursos, uma pro-
posição se faz necessária, para efeito de reflexão: o historiador
escolhe ou demarca um determinado espaço? Se considerarmos
que o historiador escolhe, compreenderemos que o dado espa-
ço preexiste ao texto produzido pelo historiador, cuja tarefa se
resumiria em descrevê-lo, relatá-lo. Dentro dessa concepção, o
espaço não passaria de um mero cenário, o qual congregaria to-
dos os acontecimentos históricos, assumindo, ainda, uma con-
dição passiva na construção da história. Contrapondo-se a essa
noção de espaço, o chamado historiador regional, assim como o

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


135

professor de História em suas aulas e, sobretudo, nas atividades


de pesquisa junto aos seus alunos do ensino fundamental e mé-
dio, deve tomar o espaço, ou a região, por ele demarcado, como
acontecimento histórico. Portanto, a historicidade dos espaços
não estaria nos elementos que compõem a sua natureza, mas, na
relação, fundante, do homem com a natureza (ALUQUERQUE
JR., 2008, p. 3,4).
Ao pensarmos o espaço não como algo preexistente, mas,
como acontecimento histórico, devemos enfatizar que esta pos-
tura teórico-metodológica nos leva a abordar a historicidade dos
espaços, privilegiando muito mais as rupturas e descontinuida-
des, do que enfatizando as permanências e continuidades, cuja
dinâmica do tempo parece ser, sempre, lenta e fria. No mundo
contemporâneo, o tempo se caracteriza justamente por sua dinâ-
mica tão afeita às mudanças em todos os níveis da vida cotidiana,
um tempo veloz e quente, no dizer de Durval Muniz (2008, p.6).
No segundo percurso, compreendido pelas formas de ocu-
pação humana, oportuno se faz estudar o espaço local/regional
desde várias hierarquias e divisões sociais, econômicas ou polí-
ticas que alimentam e potencializam os mais diversos conflitos,
cuja estabilização provoca a criação de aparatos jurídicos e nor-
mativos igualmente responsáveis por outras maneiras de carto-
grar o espaço, compondo, assim, uma geografia dos poderes e
da vigilância.
Apresentadas estas questões norteadoras de uma nova
escrita da História regional ou local, ela passa a ser concebida
como um trabalho de elaboração, de ressignificação, atualiza-
ção, invenção ou reinvenção do regional ou do local, ou seja,
rompe, da maneira mais densa possível, com a ideia de que a
escrita da História se expressaria, tão-somente, num trabalho de
reapresentação da região, de explicação daquilo que fora defini-
do como regional. Dentro desta perspectiva, o trabalho do his-
toriador não é de apresentar o passado em toda a sua essência,

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


136

mas de recriá-lo desde os referentes do presente, sempre prenhes


de expectativa, de significação, de leitura mobilizadora de novos
enredos, novas tramas, novas artes de ver e dizer do e sobre o
passado.
Quando buscamos a historicidade do espaço, compreen-
dido como acontecimento histórico, inferimos que ela se elabora
na distância e na diferença que nos for possível produzir entre
passado e presente. Este entendimento nos impõe a tarefa de nos
distanciar do passado em vez de buscarmos dele nos aproximar.
Distanciamos-nos do passado para, no presente, retrabalhá-lo
com vistas a atribuir-lhe sentido para nosso tempo e não para
buscarmos aquilo que é irrecuperável, ou seja, o sentido que o
passado teve para seu próprio tempo.
Portanto, fazer história regional não é tão simplesmente
fazer repercutir uma dada identidade regional, mas, sobretudo,
atribuir, com origem na inspiração do nosso tempo presente,
uma nova visibilidade e uma nova dizibilidade, considerando,
todavia, que esta inspiração não é homogênea, unitária (ALBU-
QUERQUE JR., 2008, p.9).
Ao trabalhar com a História regional ou local, seja na sua
prática de pesquisador, seja na sua vivência como professor do
ensino fundamental e médio, cabe ao historiador tomar como
objeto de seu questionamento a própria identidade atribuída ao
recorte espacial por ele estudado, colocando em suspeita, exata-
mente, sua suposta existência óbvia. É preciso, pois, em primeiro
lugar, desnaturalizar o espaço regional em análise. A identidade
da região ou do local torna-se, assim, o próprio problema do es-
tudo. Essa atitude teórico-metodológica muito contribuirá para
que o historiador não transforme seu trabalho num estatuto de
comprometimento com os discursos, narrativas e forças políticas
e sociais que dão sustentação ao recorte regional por ele estu-
dado. Se tomarmos como pressuposto a ideia de que o espaço é
resultado de um processo histórico, ele não poderá permanecer

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


137

idêntico a si mesmo, condição inexorável para manutenção do


discurso da identidade. Precisamos, portanto, assim como já fa-
zemos com a noção de tempo, atribuir maior importância aos
espaços tomados como objeto de nossas pesquisas.

3 A pesquisa monográfica e a produção da História


local: as experiências

Dentro do conjunto de nossas atividades docentes, por via


do ensino e da pesquisa, temos, de maneira efetiva, buscado en-
curtar as distâncias que, não raro, ocorre entre professores e alu-
nos, realidade nada favorável ao processo de formação dos gra-
duandos em todos os níveis, desde a formação acadêmico-profis-
sional, fundamentada na e pela construção do conhecimento, até
a disseminação de valores humanos que devem consubstanciar
as práticas dos indivíduos no seu viver cotidiano e profissional.
Favorecer e reforçar o binômio ensino-pesquisa como veio
alimentador da formação acadêmica dos graduandos em His-
tória, valorizando, nas disciplinas curriculares, tanto os exercí-
cios de prática docentes, os chamados EPD,4 quanto a prática da
pesquisa, procurando, ao mesmo tempo, transformar em textos,
sobretudo os resultados das atividades de pesquisa, para serem
publicados no formato de livros e catálogo de pesquisa.
Portanto, ao materializar, por assim dizer, as experiências
de ensino-pesquisa dentro de uma política de publicação5, insti-

4 Expressão cunhada pela Profª Drª Suzana Capelo Borges, do colegiado de


Pedagogia da FAFIDAM/UECE. Referida professora, nas disciplinas que
ministra, também desenvolve a atividade nomeada de Exercício de prática
Docente, cujo objetivo é possibilitar, em qualquer disciplina, a formação do-
cente dos nossos graduandos dentro de uma metodologia na qual se procura
valorizar os acertos e os aspectos observados como carentes de orientação.
5 CHAVES, Olivenor Souza (Org.). Vale do Jaguaribe: Histórias e Culturas. Cam-
pina Grande: Ed. Da UFCG; Fortaleza: LUXPRINT OFF SET, 2008; CHA-
VES, Olivenor Souza (Org.). Vale do Jaguaribe: Autos do Passado. Fortaleza:
Expressão Gráfica e Editora, 2010; CHAVES, José Olivenor Souza; SILVA,

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


138

tuída no âmbito do ensino de graduação, completamos a tríade


ensino, pesquisa e extensão, imprimindo sentido social às ati-
vidades através do diálogo entre a universidade e a sociedade.
Assim, buscamos “devolver”, sobretudo à comunidade escolar,
especialmente aos professores e alunos da rede de ensino funda-
mental e médio, os conhecimentos historiográficos produzidos
por alunos do curso de História sob nossa orientação.
Por contemplar diversas realidades históricas, os textos
monográficos transformados em capítulos de livros têm por ob-
jetivo despertar o interesse de professores e alunos para o estudo
e a reflexão acerca da história local no âmbito dos ensinos funda-
mental e médio. Embora os trabalhos levados ao público escolar,
no seu conjunto, não contemplem, de maneira plena, todos os
argumentos teórico-metodológicos, anteriormente apresentados,
eles têm por prerrogativa possibilitar, ao referido público escolar,
o contato com várias outras abordagens da História mediante
as mais distintas linguagens, evidenciando, assim, algumas das
novas concepções teóricas e metodológicas que servem de refe-
rência aos historiadores contemporâneos.
Dentre as publicações, destacamos, especialmente, os li-
vros Vale do Jaguaribe: histórias e culturas e Vale do Jaguaribe: Au-
tos do Passado, cujos conteúdos representam a reunião de várias
pesquisas desenvolvidas em parceria com os alunos da gradua-
ção em História da FAFIDAM/UECE. Ao publicarmos os dois
livros, mais do que contribuir com a escrita da História do Vale
do Jaguaribe, como assim é denominada a região locus de nossas

Gláubia Cristiane Arruda; ANDRADE, Maria Lucélia de. (Organizadores).


Catálogo de Fontes Históricas – Registros Paroquiais de Batismo, Casamento e Óbito:
Documentos para a História do Vale do Jaguaribe. Fortaleza: EdUECE, 2010.
ISBN: 978-85-7826-049-1; CHAVES, José Olivenor Souza. A disciplina de
Metodologia do Ensino de História: Descobrindo o valor e o prazer de pes-
quisar, estudar e ensinar História. In. Muito Além do Saber e do Ensinar: Teoria
e Prática no Ensino de História do Vale do Jaguaribe. / José Olivenor Souza
Chaves [Organizador]. – Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


139

pesquisas, tínhamos por intenção possibilitar à sociedade jagua-


ribana, especialmente professores e alunos da rede de ensino fun-
damental e médio, o acesso a um conjunto de novas abordagens
e de novas interpretações acerca da história local, enriquecen-
do, assim, as possibilidades de leitura do passado compreendido
dentro, e a partir, de sua relação com o presente.
De maneira geral, em seus níveis de abordagens, os textos
historiográficos apresentam, além de um conjunto de fontes, que
representam indícios do passado, os locais onde aqueles que se
interessam pela História do Vale do Jaguaribe poderão desenvol-
ver mais pesquisas. Entre os principais arquivos tomados como
locus de nossas pesquisas, destacamos os Arquivos da Diocese de
Limoeiro do Norte – ADLN, da Câmara Municipal, dos cartó-
rios e fóruns, da Biblioteca Municipal Dr. João Eduardo Neto,
na cidade de Limoeiro do Norte, entre outras instituições que
guardam importantes acervos de documentação histórica à es-
pera de pesquisadores ávidos por conhecer um pouco mais das
trilhas e tramas do passado desta importante porção do território
cearense. Entre as fontes pesquisadas em alguns dos referidos ar-
quivos, destacamos: no ADLN, as séries documentais referentes
aos assentos de batismo, casamento e óbito, cujo valor históri-
co de seus registros abrange os séculos XVIII, XIX e XX; nos
arquivos da Câmara e da Biblioteca Municipal de Limoeiro do
Norte, dispomos de um rico acervo de documentos camarários,
especialmente de livros de atas que nos remetem às últimas dé-
cadas do século XIX e ao século XX; além de livros de registros
de casamento civil, batismo e óbitos, de processos, crimes e in-
ventários post-mortem, salvaguardados nos arquivos dos cartórios
e fóruns municipais.
Não obstante a riqueza documental disposta nos vários
arquivos que, bem ou mal, preservam valiosos vestígios do passa-
do, foi-nos, também, imprescindível tomar a memória de grupos
sociais e, de maneira mais ampla, a memória da gente comum,

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


140

como rica fonte de pesquisa histórica que, densamente, nos pos-


sibilita percorrer caminhos que muito nos revelam acerca dos
modos de vida, das experiências sociais e culturais, das sensibili-
dades e sentidos que as pessoas guardam do passado individual
e coletivo. Ao privilegiar a riqueza da fonte oral, não buscamos
construir o que poderíamos chamar de histórias de origem, aque-
las que, normalmente, tendem a ir ao encontro do “fundador”
do lugar, nem muito menos foi nosso objetivo escriturar diversas
outras histórias eivadas pelo desejo de preservação da memória
dos principais ícones políticos que fizeram parte da história dos
espaços esquadrinhados pelas pesquisas. De maneira ampla, po-
demos dizer que o conjunto das pesquisas privilegiou as narra-
tivas ricamente demarcadas pelos enredos e tramas das práticas
cotidianas, sumariamente carregadas de sentidos e sentimentos.
Sendo assim, não tivemos por interesse eleger nenhum relato de
memória como sendo, ele próprio, o registro da história, o teste-
munho verdadeiro para tudo o que foi narrado, pois, no processo
de produção dos relatos de memória, estas, quase sempre emer-
gem carregadas das mais distintas versões, que fazem variar, de
narrador para narrador, uma pluralidade de fatos marcados,
muitas vezes, pela imaginação consumida, e consumidora, de
sonhos e desejos, fantasias e lendas.
Portanto, o conteúdo historiográfico disposto nos dois li-
vros, há pouco mencionados, compreende um largo período da
história da região do Vale do Jaguaribe, na medida em que re-
monta ao final do século XVII, quando trata do processo de co-
lonização da região, passando pela segunda metade dos séculos
XVIII e XIX, para concentrar, na centúria passada, sua maior
atenção. No conjunto dos capítulos que compõem as duas obras,
variadas abordagens são expressas numa série de temáticas que,
de maneira calidoscópica, dão conta de uma rica historicidade,
espaciotemporal, da região ora referida. Entre as temáticas, cha-
mamos atenção para as que, de maneira mais direta, abordam

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


141

os índios, escravos e ciganos; o sertão e a cidade; o trabalho e o


lazer; a economia; o poder político e a religiosidade; a saúde e
as doenças; o gênero; a migração, entre outras interpretadas com
suporte no diálogo direto com a Antropologia.
Do ponto de vista teórico-metodológico, destacamos,
entre outros quesitos, a capacidade intelectual dos autores de
inventariar e interpretar conteúdos empíricos, amparados em
fundamentos teóricos decisivos no processo de construção das
tramas e narrativas historiográficas. Em suas análises e interpre-
tações, cada autor, utilizando-se de um vocabulário pertinente
ao discurso historiográfico, fez uso das mais diversas fontes de
pesquisa, buscando, em cada uma delas, indícios para a obser-
vação e a interpretação da experiência histórica. Para isso, por
meio de linguagens e abordagens diversas, analisaram, de manei-
ra mais ampla, as relações e tensões entre as ações dos sujeitos
e as determinações do processo histórico, percebendo a histori-
cidade das manifestações sociais e culturais. Em alguns textos,
os autores assumiram, pontualmente, o desafio de perceber as
relações entre as esferas – cultural, econômica, política, social...
– integrantes de um mesmo contexto histórico. Em outros textos,
articulados desde a metodologia da chamada História Oral, os
autores buscaram engendrar experiências de vida como elemen-
tos que nos possibilitam inferir acerca do histórico, com amparo
na dimensão subjetiva do conhecimento.
Portanto, compreendendo que a temporalidade do histó-
rico não se resume a uma simples sucessão cronológica, pois é
sumariamente carregada de continuidades, descontinuidades,
rupturas e ritmos diferentes, não tivemos em nenhum dos nos-
sos trabalhos a pretensão de concebê-los como sendo, por assim
dizer, a história total do Vale do Jaguaribe, antes, sim, percursos
de uma história plural. Amparado por esta compreensão, tive-
mos duplo objetivo: o primeiro – construir novas singularidades
dentro da pluralidade de sentidos que é a História, tornando-a,

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


142

assim, cada vez mais inusitada; o segundo é contribuir para a


melhoria da qualidade do ensino de História oferecido por nos-
sas escolas públicas e particulares, especialmente as localizadas
na região do Vale do Jaguaribe.
De maneira mais direta, podemos inferir que fora sempre
nosso propósito dispor, para os professores dos níveis fundamen-
tal e médio, conteúdos de nossa História, de modo a favorecê
-los no desenvolvimento de suas reflexões e, ao mesmo tempo,
tomá-los como conhecimento a ser submetido, na sala de aula,
à reflexão crítica de seus alunos; pensando, pois, a formação do
professor alinhada à formação do pesquisador, sendo ambas as
exigências de um mesmo processo, uma vez que o bom professor
necessita está fundamentado numa boa aquisição de conteúdos
historiográficos e teórico-metodológicos, os quais, com seguran-
ça, darão a ele a indispensável habilidade para transformar seus
instrumentos de trabalho, sobretudo o livro didático, o mais clás-
sico de todos, em material de produção e crítica do conhecimen-
to histórico.
Considerando, pois, as inovações teórico-metodológicas
processadas no âmbito das Ciências Humanas, especialmente
na área de História, conforme abordamos no primeiro tópico
deste capítulo, destacamos a necessidade de as escolas adotarem
outra concepção que leve em conta, cada vez mais, a preocupa-
ção com a chamada história local, embora esta não seja garantia
para rompermos com a transposição, pura e simples, de conte-
údos previamente definidos, não sendo, portanto, garantia para
a superação de nenhum modelo de abordagem tradicional da
História.
Embora ressaltemos a importância da história local para
o ensino de História, valorizando, na pesquisa de graduação, as
temáticas voltadas para a História local, temos a clara compreen-
são de que os jovens estudantes/pesquisadores não devem ficar
restritos aos conteúdos tidos como local ou regional, podendo,

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


143

estes, definir, como objeto de estudo, qualquer outra temática


que diga respeito a outros espaços-lugares de maneira a constru-
írem fecundos níveis de compreensão acerca das temáticas por
eles abordadas. Embora tenhamos essa compreensão, dentro de
minha prática docente, como professor das disciplinas de Teorias
da História, Metodologia e Prática da Pesquisa Histórica, pro-
curado incentivar os alunos a buscarem recortar temáticas que
possam favorecer a produção de uma historiografia que privi-
legie a historicidade dos espaços locais, favorecendo, assim, a
construção de objetos de estudo que possam alimentar, em todos
os seus matizes, a reflexão histórica entre professores e alunos do
ensino fundamental e médio.

4 O ensino de História local nas escolas do Vale do


Jaguaribe

Neste tópico, destacamos nosso interesse em estabelecer


alguns níveis de compreensão acerca do ensino de História local
nas escolas do Vale do Jaguaribe. Para isto, se faz necessário,
em primeiro lugar, inferirmos se a História local é tomada como
objeto de reflexão e ensino pelos professores, para, em seguida,
refletir sobre as possibilidades de se romper com um modelo de
ensino globalizante e, por conseguinte, negador das particulari-
dades e das especificidades do local. É preciso considerarmos,
desde já, que não queremos propor um ensino de História ci-
mentado nos limites de um estreito localismo, mas um saber his-
tórico produzido no âmbito da escola que possa considerar as
especificidades do local dentro de um processo de articulação
com outras dimensões espaciais.
Entre os historiadores brasileiros vários são os que tomam
o ensino de História como objeto de suas pesquisas, de suas re-
flexões, construindo, assim, importantes eixos de reflexão acerca
da temática. Um desses eixos resultou na valorização da História

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


144

local, de tal maneira que podemos ler, nas propostas curriculares


nacionais, os reflexos do “investimento” teórico-metodológico
empreendido com apoio nesse modelo de abordagem.
Segundo Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli,
(2004), de acordo com os PCN’s, para o ensino fundamental
(1997-1998) e para o ensino médio (1999), as atividades relacio-
nadas com o estudo do meio e da localidade são entendidas como
renovadoras para o ensino de História, ao mesmo tempo em que
são fundamentais para o desenvolvimento da aprendizagem.
Ainda conforme Schmidt e Cainelli (2004), no entanto,
não podemos ter a falsa ilusão de que o estudo da realidade ime-
diata é a única e importante fonte de motivação do conhecimen-
to, por possibilitar uma série de novas problematizações. Sendo
assim, ao propormos o uso da história local no ensino de Histó-
ria, o professor precisa refletir sobre dois importantes pontos: 1)
a necessidade de observar que uma realidade local não contém,
em si mesma, a chave de sua explicação; 2) deve fazê-lo inferir
que, ao tratar o ensino da História local como indicador da cons-
trução de identidade, faz-se necessário considerá-la dentro e com
base em marcos de referência relacionais.
Chamamos atenção para as duas questões ora expostas
por entendermos que a chamada História local, em termos de
aprendizagem e concepções, tem-se apresentado, para o ensi-
no de História, bastante problemática, sobretudo em razão dos
possíveis anacronismos, desenvolvimento de perspectivas etno-
cêntricas, reducionista e localista. No conjunto dos riscos mais
evidentes, pode-se, ainda, confundir o local com o mais próximo
e o mais conhecido. Por outro lado, como estratégia pedagógi-
ca, a História local pode promover a construção e compreensão
do conhecimento histórico em articulação com os interesses do
aluno, possibilitando o desenvolvimento de atividades vincula-
das à vida cotidiana. Dentro dessa estratégia pedagógica, é im-
prescindível saber articular os temas trabalhados em sala de aula

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


145

com o ambiente local e mais próximo dos alunos. Portanto, ao se


trabalhar os conteúdos de uma história temática, faz-se indispen-
sável o estabelecimento, de forma contínua, sistemática e sempre
criativa, da articulação entre os conteúdos da História local, da
nacional e da universal.
Considerando que o ensino da História tem como um dos
grandes objetivos contribuir para que o aluno conheça e aprenda
a valorizar o patrimônio histórico, urbano e rural, de sua locali-
dade, de seu país e do mundo, Schmidt e Cainelli (2004) desta-
cam a História local como importante estratégia de aprendiza-
gem, na medida em que pode melhor favorecer a apropriação
do conhecimento histórico desde a integração entre os conteú-
dos recortados e o conjunto do conhecimento. Tomando, pois, a
História local como estratégia de aprendizagem, as duas autoras
apresentam algumas das possibilidades mais fecundas dentro do
processo de formação do aluno: a inserção deste na comunidade
em que reside e a criação/construção de sua historicidade e iden-
tidade; o despertar de atitudes investigativas com base em seu co-
tidiano; a possibilidade de se construir percursos de análise dos
variados níveis da realidade – econômico, político, social e cultu-
ral; a percepção das mudanças, dos conflitos, das permanências;
a construção, enfim, de uma história mais plural, que possibilite,
por assim dizer, a multiplicidade de vozes dos diferentes sujeitos
da História.
Embora as bibliotecas das escolas públicas municipais e
estaduais tenham em seus acervos as duas obras comentadas no
tópico anterior – Vale do Jaguaribe: histórias e culturas e Vale do
Jaguaribe: autos do passado, a História local ou regional não é,
de maneira mais dinâmica, tomada como conteúdo das aulas de
História, conforme nos foi possível inferir por ocasião de uma
pesquisa realizada na disciplina Metodologia do Ensino de His-
tória, por mim ministrada no semestre 2009.1, no curso de His-
tória da FAFIDAM/UECE. Do ponto de vista metodológico,

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


146

nos foi possível transformar a referida disciplina num laboratório


de pesquisa, para que os alunos nela matriculados melhor pudes-
sem ter a oportunidade de conhecer e problematizar um pouco
da realidade do ensino de História nas escolas públicas do Vale
do Jaguaribe.
Assim, por meio de uma atividade de iniciação à pesqui-
sa, tivemos por intenção aproximar o aluno de licenciatura da
prática efetiva do magistério nos ensinos fundamental e médio,
onde, provavelmente, muitos iriam se inserir na qualidade de
profissionais.
Divididos em pequenos grupos, desde sua cidade de ori-
6
gem, cada aluno teve total liberdade para definir a escola e o
nível de ensino em que realizariam a atividade de pesquisa. Ape-
sar das principais diretrizes do trabalho já terem sido capturadas
na leitura dos textos teóricos, cada aluno/pesquisador já estava
orientado para buscar perceber, no locus da pesquisa, ou seja, em
cada escola, as particularidades, o que havia de singular no con-
texto da sala de aula e no processo de ensino-aprendizagem. De
maneira ampla, podemos dizer que o objetivo da referida ativi-
dade de pesquisa era perceber em que medida o que havia sido
estudado se aproximava, por assim dizer, da realidade observada
nas salas de aula do ensino fundamental e médio.
Depois de concluída a atividade de pesquisa, os alunos/
pesquisadores tiveram por meta produzir relatórios da pesquisa,
os quais serviriam como instrumentos para debatermos, na sala
de aula, um pouco da realidade do ensino de História nos níveis
fundamental e médio. Entre as temáticas que mais se destacaram
podemos especificar as que diziam respeito ao compromisso e
6 Com sede na cidade de Limoeiro do Norte, região do Baixo Jaguaribe, a FA-
FIDAM é uma das unidades da Universidade Estadual do Ceará – UECE, lo-
calizada no interior do Estado. A FAFIDAM congrega alunos dos mais diver-
sos municípios do Vale do Jaguaribe. As cidades contempladas nessa pesquisa
foram: Limoeiro do Norte, Morada Nova, Alto Santo, São João do Jaguaribe,
Quixeré, Jaguaruana, além do distrito de Flores, no Município de Russas.

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147

às habilidades do professor no exercício de sua prática docente;


o uso do livro didático e das novas tecnologias de ensino; o co-
tidiano da sala de aula e os métodos de avaliação no ensino de
História; a metodologia de ensino empregada pelos professores
e a utilização de recursos didáticos; a relação entre livro didático
e recursos tecnológicos; e, finalmente, a prática da pesquisa e do
ensino de História local ou regional.
A prática da pesquisa e do ensino de História local ou re-
gional, no entanto, não foi uma realidade amplamente consta-
tada dentro do processo de ensino-aprendizagem. Embora não
tenha sido feito um inventário das razões, não nos parece difícil
inferir que falta aos professores, do ponto de vista teórico-meto-
dológico, uma formação mais sólida que lhes possa favorecer no
desenvolvimento de atividades de pesquisa ou de interpretação
dos processos históricos, tomando como referentes de análise as-
pectos da História local ou regional, de modo a romper com um
modelo de ensino no qual a História é apresentada de maneira li-
near, sacralizada, sem que se valorizem a reflexão crítica e a plu-
ralidade de sentidos que devem alimentar o estudo da História.
Apesar do tímido esforço que temos feito para possibilitar
aos professores e alunos do ensino fundamental e médio o acesso
a conteúdos de História local ou regional, eles ainda se ressen-
tem do vazio historiográfico característico desse modelo de abor-
dagem. Embora possamos encontrar, em praticamente todos os
municípios da região do Vale do Jaguaribe, pelo menos uma obra
publicada abordando aspectos da História local, nenhuma delas
se acha construída dentro do rigor que a pesquisa histórica exige,
refletido, sobretudo, nos aspectos teórico-metodológicos e narrati-
vos do fazer historiográfico. De maneira geral, os chamados “me-
morialistas”, imbuídos do desejo de “resgatar” o passado, prio-
rizam em seus escritos aspectos políticos, religiosos e de grupos
familiares que mais se destacaram na cena municipal, respeitando,
quase sempre, a cronologia referente aos eventos e personagens.

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


148

Percebe-se, ainda, neste modelo de escrita da História, um intenso


vínculo afetivo com o local sobre o qual se escreve, o que muito
favorece, e potencializa, a idealização do passado, mesmo tendo
como referentes eventos por eles presenciados ou “preservados”
pela memória familiar e/ou coletiva. A idealização do passado,
urdida ao vínculo afetivo, faz com que os relatos de memória ten-
dam a ressaltar um conjunto de características positivas relaciona-
das aos espaços locais, de modo a controlar qualquer enredo ou
trama do passado que não se coaduna com as supostas qualidades
atribuídas ao local. Assim, em seus relatos ou escritos, selecionam
“evidências” empíricas valorativas para a confirmação de uma de-
terminada representação do passado local.
Mesmo não dispondo de uma vasta e instigante bibliogra-
fia que pudesse contemplar várias narrativas históricas acerca da
história local ou regional, cabe ao professor da rede de ensino
fundamental e médio desenvolver atividades de pesquisa, embo-
ra não lhe seja possível levar a efeito todo o rigor teórico-meto-
dológico que agencia a pesquisa acadêmica.
Sendo assim, dentro do processo de ensino-aprendizagem,
referente aos níveis fundamental e médio, o professor deverá as-
sumir o desafio da indissociabilidade de ensino e pesquisa como
um veio para qualificar, ainda mais, a sua prática docente, pro-
fissional. Para que a relação entre o ensino e a pesquisa aconteça
de maneira satisfatória, é preciso, no entanto, que o professor
procure, entre outros procedimentos, relacionar o conteúdo das
aulas e o cotidiano dos alunos. Sendo conhecedor da realidade
em que vivem seus alunos, ficará mais fácil fazê-los perceber a
necessidade de estudar e compreender a História por meio do es-
paço vivido. O estudo da História da cidade, do bairro, constitui-
se, portanto, uma importante ferramenta para a construção da
identidade dos alunos, despertando, em cada um deles, a capaci-
dade para saber interpretar um determinado processo histórico
vivido pela comunidade onde se acha inserido.

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149

Outra questão importante, ainda com relação à aborda-


gem da História local ou regional, diz respeito a uma melhor
compreensão acerca das noções de sujeito histórico e de cidada-
nia. A problematização de ambas as noções favorecerá ao aluno
o despertar de uma consciência preservacionista, de modo a fazê
-lo sentir-se, cada vez mais, responsável por qualquer patrimônio
histórico, especialmente aqueles que dizem respeito ao bairro e à
cidade onde moram.
Ao envolver os alunos em um determinado projeto de pes-
quisa, voltado para a História local, o professor estará, por con-
seguinte, dando um importante passo para, junto com seus alu-
nos, transpor as fronteiras da escola e, em meio aos enredos do
cotidiano, tomados por muitos fluxos temporais, construir novas
maneiras de se ler e interpretar a História com base nos referen-
tes empíricos evidenciados nos trabalhos de pesquisa. Portanto,
mais do que superar a monotonia das aulas e a acomodação dos
alunos, a prática da pesquisa, localizada nos espaços de vivên-
cia dos alunos, poderá significar, também, excelente oportuni-
dade para professor e alunos perceberem que a História não se
apresenta presa a uma só verdade, pois é sempre marcada pela
descontinuidade, pela ruptura, fugindo, assim, de qualquer pers-
pectiva que a tome como continuidade, que a busque em toda a
sua essência.
Impelido por essa concepção de História, se faz imperio-
so, ainda, ressaltar que, no mundo, nenhum outro espaço, que
não seja o das práticas cotidianas, se exibe tão rico de possibi-
lidades de leitura e de entendimento da hiperfragmentação que
caracteriza o viver hodierno. Sendo assim, a relação entre ensino
e pesquisa, forjada nos espaços representativos do viver cotidia-
no dos alunos, certamente favorecerá a compreensão, por parte
dos professores, da necessidade de se romper com as perspectivas
conceituais voltadas para a busca de uma razão única, de um
sentido único, de uma história total. Embora seja indispensável

HISTÓRIA LOCAL E O ENSINO DE HISTÓRIA


150

buscarmos compreender o que se acha estabelecido dentro da


estrutura social, não podemos perder de vista tudo aquilo que,
de alguma maneira, rompe com a estrutura, sobretudo, o que é
simbolicamente criado a partir da ação efetiva do ser humano.
No momento ora vivido, marcado por intensa renova-
ção paradigmática, na qual a noção de verdade deixa de ter um
sentido absoluto, o professor de História deve, cada vez mais,
construir sua autonomia intelectual, de modo a favorecê-lo den-
tro do processo de suas práticas educativas e, de maneira mais
particular, como possibilidade para tornar a História local uma
temática mais presente nos conteúdos/atividades desenvolvidos
nas escolas de ensino fundamental e médio.

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743-758 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

JOSÉ OLIVENOR SOUZA CHAVES • MARIA INÊS SUCUPIRA STAMATTO


História local, historiografia e ensino:
sobre as relações entre teoria e metodologia no ensino de
história

Local history, historiography and teaching:


about the relationship between theory and methodology in teaching
history

Maria Aparecida Leopoldino Tursi Toledo∗

RESUMO ABSTRACT
Este texto inscreve-se no debate que atual- This text is part of the debate that curren-
mente tem-se realizado em torno da história tly has been held around t he local history
local como proposta para o ensino de História as a proposal for teaching history in elemen-
no Ensino Fundamental. Nesse sentido, apon- tary school. Therein, that while this perspec-
tou que, embora tal perspectiva seja impor- tive is important to break with traditional
tante para romper com a história tradicional, history, lack of academic studies more
carece de estudos acadêmicos mais especifi- specifically aimed at this “kind” or “approach”
camente voltados para esse “tipo” ou “aborda- the writing of history. Having this state-
gem” da escrita da história. Tendo por hipóte- ment in theory, be appointed to draw up
se essa afirmação, indicou ser relevante a ela- relevant issues that seek to relate the history,
boração de problemas que procurem relacio- historiography and school education, in order
nar história, historiografia e ensino escolar, to understand to what extent the theoreti-
com o objetivo de perceber em que medida as cal and methodological review, carried out
revisões teóricas e metodológicas, realizadas by a significant range of contemporary his-
por uma significativa gama de historiadores torians have allowed rethink concepts of ti-
contemporaneamente, têm permitido repensar me, space, objects and scales of analysis
conceitos de tempo, espaço, objetos e escalas that might form the basis for thinking about
de análises que possam servir de base para local history in theoretical and methodo-
pensar a história local em termos teóricos e logical terms. Along the way, signaled posi-
metodológicos. Nessa procura, sinalizou pó- tive contributions to the new urban history
sitivamente para as contribuições que a nova can offer at this time, highlighting the
história urbana pode oferecer nesse momen- efforts of the French historian Bernard Le-
to, destacando os esforços do historiador fran- petit.
cês Bernard Lepetit.

PALAVRAS-CHAVE: História Local, Ensino de KEYWORDS: Local History; Teaching History;


História, Metodologia do Ensino de História. Teaching Methodology of History.

Definir aspectos teóricos e encaminhamentos metodológicos para o en-


sino de História é uma exigência que, à primeira vista, parece-nos uma
questão óbvia para professores que atuam nesse campo disciplinar. Afinal, ter
um respaldo teórico e um método de ensino para o trato com conteúdos


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Maringá (UEM) / Brasil.

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758


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História local, historiografia e ensino: sobre as relações entre teoria e metodologia...

escolares é o mínimo que se espera encontrar nos cursos de formação de


professores. No entanto, quando pensada nas relações que se estabelecem entre
história –entendida como produção de conhecimentos realizados pelo histo-
riador– e ensino –atividade escolar realizada cotidianamente por professores e
alunos com os conteúdos da História–, a suposta obviedade toma dimensões
mais complexas. Complexidade que nem sempre é possível ser tratada nos
cursos de graduação, dado ao espaço que as chamadas “disciplinas pedagógicas”
ou as “metodologias do ensino” ocupam na grade curricular dos cursos de
formação. O reconhecimento desse fato tem sido amplamente discutido entre os
pesquisadores do ensino de História no Brasil, fundamentalmente a partir da
década de 1980, quando volta esta disciplina no lugar dos Estudos Sociais.
Nesse particular –território em que este trabalho pretende se situar–,
verifica-se que os debates têm incorporado discussões sobre espacialidades
locais e temporalidades cotidianas que se acham superpostas em momentos
históricos específicos.1 Em parte, pela expansão desses recortes na historiografia
nacional e, em parte, por responder às atuais diretrizes curriculares, a História
Local tem crescido nas produções nacionais e organizado eixos temáticos para o
ensino na escola fundamental, indicando o quanto as questões teóricas vêm
ampliando o debate sobre a produção e o ensino de conhecimentos em história
no país nas últimas décadas. A propósito de exemplificação, cita-se a proposta
curricular dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
O ensino de História proposto pelos PCNs para o 1º e 2º ciclos –Ensino
Fundamental– está organizado a partir da ideia de que “conhecer as muitas
histórias de outros tempos, relacionadas ao espaço em que vivem, e de outros
espaços, possibilita aos alunos compreenderem a si mesmos e a vida coletiva de
que fazem parte” (BRASIL, 1996: 43-44). Para tanto, deve se realizar por meio
da construção da história do lugar.
O estudo do local, como é entendido pelos PCNs, é feito com base em dois
eixos de análise temporal: os movimentos da população que vive na localidade
(chegada dos primeiros moradores, imigração e emigração), cujas informações
devem ser coletadas por intermédio de entrevistas e depoimentos dos atores
locais; e o cotidiano dos grupos sociais presentes na localidade, visando

1 Ver Anais do VII Encontro Nacional: Perspectivas do Ensino de História. Nele, encontram-
se os trabalhos do GT1: História local, regional e ensino de História.

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 744


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encaminhar o trabalho escolar para a construção do conhecimento do passado


ao valorizar a memória local.
No que se refere aos conteúdos a serem trabalhados no decorrer do ano
letivo, o documento sugere que venham, em parte, desses depoimentos,
geralmente a serem coletados pelos alunos. Para atingir esse objetivo, indica
começar as atividades com problemas que girem em torno de questões como:
origem da família do aluno, período em que chegaram ao lugar, condições de
trabalho e valores culturais dos grupos sociais. Espera-se que nesses
depoimentos estejam contidas as respostas acerca das seguintes indagações: “de
onde vim” ou “de onde minha família veio” (Migração), “onde trabalho” e “como
trabalho” ou “como trabalhava” (Trabalho), “como vivo”, quais os “nossos
costumes” (Cotidiano), “como festejamos e brincamos” (Festas), entre outros
elementos que podem estar presentes nos relatos (BRASIL, 1996: 53-55).
Nas propostas temáticas, encontram-se, ainda, temas ligados aos aspectos
urbanos da localidade, como, por exemplo, “transporte”, “moradia”;
“planejamento urbanístico”, que aparecem diretamente vinculados à migração e
às formas de organização do espaço local e da temporalidade cotidiana. Tais
indicações permitem afirmar que a história local e do cotidiano é o núcleo dos
estudos históricos nesse período da escolaridade das crianças brasileiras.
Para o desdobramento metodológico desse núcleo, a construção da
historicidade do local deve realizar-se por intermédio das atividades
professorais (de pesquisa e ensino) com a participação dos alunos e seus
familiares. Por meio dessa ação, espera-se que o conceito de localidade “assuma
uma materialidade espacial de relações sociais vivenciadas” (BRASIL, 1996: 77).
A história local, visível como proposta para o ensino de História e aceita
em boa medida entre os envolvidos com o tema, pode permitir romper com a
história tradicional e superar, em qualidade de saber histórico, os Estudos
Sociais, uma vez que permite romper com a prática de transposição de
conteúdos pré-estabelecidos para o estudo regulado do passado nacional.
Entende-se, no entanto, que a história local carece de estudos acadêmicos mais
especificamente voltados para esse “tipo” ou “abordagem” da escrita da história
e para a compreensão de como se relaciona teoricamente com o ensino escolar.
Isso porque, pela forma como o debate tem se apresentado, atualmente,
entre pesquisadores brasileiros do ensino de História (BITTENCOURT, 2004;

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 745


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História local, historiografia e ensino: sobre as relações entre teoria e metodologia...

SCHIMIDT e CAINELLI, 2004), pode-se afirmar que a história local tem sido
compreendida como “história do lugar”, por vezes, ligada à abordagem da
história regional e/ou à micro-história. Mas também se encontra o
entendimento de que se trata de estratégia ou método de ensino que permite
articular, pedagogicamente, a História do Cotidiano ao espaço local e este ao
nacional (SANTOS, 2002). No entanto, no campo da produção historiográfica, a
“história do lugar” não está ainda suficientemente esclarecida, embora a
localidade ou o lugar tenha se tornado objeto de investigação e ponto de partida
para a produção de conhecimentos sobre o passado.
Assim, o objetivo de pensar em como o ensino de História, sob a
perspectiva local, poderia estar impactando a prática docente com o fim de
avançar as tendências consideradas tradicionais implica, em primeiro lugar,
refletir que história é a história local. Essa reflexão inicial se faz necessária
porque, como se verá, o próprio sentido de História Local coloca os
pesquisadores diante de questões complexas a serem melhores pensadas na
correlação que estabelece com o campo da historiografia como se apresenta na
atualidade.

História local: os parâmetros teóricos são importantes?

Com efeito, a formação dos estudantes em história inclui [...]


o ensino de historiografia ou de epistemologia que, através
de diferentes abordagens, visa suscitar um olhar crítico
sobre o que se faz quando se pretende fazer história.
Antoine Prost (2008: 7).

A epígrafe é citada não para confirmar o feitio positivo da resposta à


indagação que se sugere, mas para lembrar que, como aponta Prost, o ensino de
História inscreve-se em uma tradição secular da qual a experiência histórica
brasileira é tributária: o “fazer história” remete a um metódico escrito pensado
como curso, na Sorbonne, por Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, e
publicado, em 1897, com o título Introduction aux études historiques. Em
outras palavras, preocupados em ensinar como fazer história sem delongas, os
autores franceses definiram, em grande medida, os caminhos da “operação
historiográfica”, que foram, também em grande medida, aceitos secularmente
sem muitas controvérsias no decorrer do século XIX e XX em muitos países da

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 746


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História local, historiografia e ensino: sobre as relações entre teoria e metodologia...

Europa e no Brasil.
Na referida obra, os autores esforçam-se para elaborar um “método
científico” para a história, de modo que ficassem canonizados os caminhos do
ofício de historiador e a “essência eterna” da disciplina. Estimulados pela busca
da “verdade” e pelo “culto à ciência”, contribuíram para definir narrativas,
legitimar fontes, configurar textos e normatizar a exposição metodológica dos
fatos. Remetida a um contexto intelectual, determinado pelas chamadas ciências
naturais, a obra, ao preconizar um rigoroso método de fazer história, não
suscitou espaço para discussões epistemológicas, uma vez que se entendia que
fazer ciência era revelar a verdade. A esse registro, Prost (2008: 9) indica que,
no cenário francês, “felizmente, essa atitude está em via de mudar”.
No Brasil, os “ecos” da tradição francesa foram sentidos por historiadores
como José Roberto do Amaral Lapa. Em 1981, ao analisar a produção
historiográfica nacional dos anos de 1970, afirmou que, em função dessa
circulação de ideias no país: “[...] o historiador brasileiro no geral foi quase
sempre avesso aos estudos teóricos” (LAPA, 1981, apud GUAZZELLI, 2000, p.
9).
Ao que parece, as décadas de 1980 e 1990, também neste país, foram
marcantes para rever essa tradição, conforme deixa entrever Ângela Maria de
Castro Gomes (2000). A autora, ao tratar da reflexão teórico-metodológica dos
historiadores brasileiros, afirma que se têm caminhado na direção fértil de
“verificar que teoria e empiria estão conectadas, constituindo um todo que faz
sentido” (GOMES, 2000: 21). Informa ainda que os avanços na área exatamente
se correlacionam com o crescimento dos estudos historiográficos que se
vivenciou nas últimas décadas do século XX.
Nesta conjuntura e considerando a tradição francesa presente no país, fica
oportuno afirmar que os debates sobre o ensino de História devem incluir a
reflexão que todos os historiadores contemporâneos estão convidados: pensar
os efeitos epistemológicos de seus trabalhos. Por esse motivo, entende-se que
suscitar reflexões sobre o sentido historiográfico da história local é prudente e
necessário neste momento. Exatamente porque uma definição teórica e
metodológica da história local, por meio dos aportes da historiografia
acadêmica, ainda não tem integrado as preocupações centrais dos historiadores
brasileiros, o que traz dificuldades para a definição clara (e conseguintemente

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para o debate) do que tem sido a história local nesse campo de produção de
conhecimentos.
No que se refere à proposta pedagógica por sua vez, a História Local ou do
“lugar” tem ampliado os estudos e relatos de experiências com esses saberes no
espaço escolar sem, contudo, abordar, especificamente, os nexos relacionais
com a historiografia que vem sendo produzida. De forma geral, existe o
consenso, entre os pesquisadores do ensino, de que “o trabalho com a história
local pode produzir a inserção do aluno na comunidade da qual faz parte, criar
suas próprias historicidades e identidade” (SCHIMIDT; CAINELLI, 2004: 113) e
pode possibilitar a compreensão do “[...] entorno do aluno, identificando o
passado sempre presente nos vários espaços de convivência –escola, casa,
comunidade, trabalho e lazer–, e igualmente por situar os problemas
significativos da história do presente” (BITTENCOURT, 2004: 168). Tal
perspectiva pedagógica, entretanto, não permite verificar se é extraída dos
esforços investigativos da produção de conhecimentos construída pelos
historiadores ou daquilo que ela é, enquanto conhecimento produzido com
normas e padrões de cientificidade,2 capaz de explicar do passado socialmente
vivido.
De forma intrigante, no entanto, a proposta de ensino prevê que o
professor assuma papel de pesquisador, com o fim de “munir-se de
conhecimentos preliminares sobre a história local e a abordagem que adota de
modo a aprofundá-los com a turma, participando com ela da produção desse
tipo de conhecimento e da forma de construí-lo” (SANTOS, 2002: 109).
A importância dada ao aspecto operacional a essa perspectiva de ensino
traz para o centro do debate questões de investigação histórica, os campos de
conhecimentos em história e suas relações com o ensino escolar. Isso porque, no
ato pedagógico (aparentemente simples) de localizar, selecionar fontes, por
exemplo, cruzam-se vários saberes referentes, quer ao trabalho com o arquivo,
quer às técnicas de leitura, à análise e interpretação dessas fontes; ação que
suscita debate e investigação, já que exige “selecionar” com base em critérios
teóricos e metodológicos válidos para esse campo de conhecimentos. Essa
interdependência de saberes e práticas sugere que é importante desenvolver
2 Sobre as questões de cientificidade em história, apoiamo-nos em Certau (2006), para quem a
história é um conhecimento cujos resultados são passíveis de serem confirmados, postos à
prova.

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reflexões que incorporem estudos para além da “justificativa pedagógica” do uso


escolar da história local.
Eis porque a indagação e a epígrafe que se coloca no início deste tópico
são pertinentes para a discussão que se propõe neste texto: apontar para a
necessária reflexão de conceitos como espaço, região, local “quando se pretende
fazer história” local na contemporaneidade.

Historiografia local e ensino: encontros e cotejos de conceitos

Quando nasce a Europa? Eis uma pergunta ambígua,


uma vez que pode referir-se, indistintamente, ao primeiro
assentamento humano que povoou o espaço geográfico que
hoje chamamos assim, à aparição de formas culturais
próprias ou ao surgimento de uma consciência coletiva que
acabou dando seu nome atual ao espaço, a quem vive nele e a
sua cultura...
Josep Fontana (2005: 9)

Nos últimos anos, tal como demonstram as numerosas obras que se


esforçam em delimitar os objetos e métodos da escrita da História (CERTAU,
2006; GINZBURG, 2001; VEYNE, 1995; WHITE, 2008; DOSSE, 2003), a
produção do conhecimento histórico se tornou um dos campos mais vigorosos e
debatidos do âmbito histórico internacional e com forte circulação entre os
historiadores brasileiros. Tais teóricos se basearam em uma série de suspeitas
sobre, por exemplo, a cientificidade do saber histórico, dos recortes marcados
pelos estudos centrados no Estado-Nação, delimitando sujeitos, temas,
determinados documentos e recortes temporais.
As tentativas de repensar o fazer do historiador marcaram essa geração de
intelectuais e tornaram possível entender que “antes de saber o que a história
diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela”
(CERTEAU, 2006: 76, grifo do autor). Em outras palavras, é preciso reconhecer
os efeitos sociais na prática historiográfica dos que produzem conhecimentos
sobre o passado e sobre o seu próprio sentido na vida individual e social em
determinado momento histórico.
Dessa forma, contemporaneamente, vivem-se revisões teóricas e
metodológicas realizadas por uma significativa gama de historiadores que tem
permitido repensar conceitos de tempo, espaço, objetos e escalas de análises.

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Embora o crescente interesse pela história local não tenha acompanhado uma
correspondente reflexão teórica e metodológica sobre ela, em que o professor
possa apoiar suas decisões, entende-se que esse interesse pela localidade faz-se,
em grande medida, pela rejeição dos recortes temporais e espaciais
considerados tradicionais.
É possível afirmar que a história local se redefine no contexto das
mudanças historiográficas, as quais trazem para a cena novas temporalidades, o
interesse pelo cotidiano e por outros sujeitos históricos decorrentes também da
atual aproximação e fértil diálogo da história com a antropologia e a geografia
como áreas de conhecimento. Aliás, parece ser exatamente esse diálogo
disciplinar que faz com que o historiador possa trabalhar com conceitos de mais
de um campo de conhecimento. Mais claramente: o historiador é um
profissional do campo das ciências sociais, muito preocupado com a
periodização e o movimento constante do tempo num determinado espaço; de
forma que “[...] promove uma união muito particular entre saberes
disciplinares, bem como uma união entre seu objeto de estudo e os conceitos
escolhidos, sob o signo da temporalidade” (GOMES, 2000: 20).
Para a reflexão sobre o sentido da história local, essa observação é
significativamente instigante, porque, como quer indicar a epígrafe que abre
esta discussão, perguntar sobre o que é uma região, um território ou um lugar,
na aferição histórica do conceito é ambíguo e depende do conjunto das
produções historiográficas realizadas num determinado tempo e espaço.
De acordo com Bittencourt (2004: 171), o geógrafo Milton Santos
apresentou importantes contribuições para a definição de lugar. Na sua
interpretação, “cada lugar tem suas especificidades e precisa ser entendido por
meio da série de elementos que o compõe e de suas funções”. Nesse sentido, um
dos conceitos básicos e fundamentais a ser mais bem explicitado é a
identificação do conceito de espaço no trato com a história local. Esse elemento
permite introduzir uma reflexão sobre a localidade no debate historiográfico,
tendo como eixo para essa reflexão as mudanças na chamada “História
Regional”. Conforme Albuquerque:
O questionamento da região, como idéia fixa, passaria pela crítica da
História, que participou desta cristalização identitária, pela retirada
das fronteiras do espaço historiográfico, porque o nacional e o regional
não seriam critérios de validação de uma produção historiográfica,
nem referenciais pertinentes para fundar uma epistemologia. (apud

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NEVES, 2002: 60).

Também Mattos (1987), ao problematizar o conceito de região, destacou


que essa ideia não se restringe aos limites administrativos como os das
capitanias, províncias e estados no Brasil (conforme o recorte temporal
preferido), nem se referencia no fato de um grupo de indivíduos habitar o
mesmo território, porque essas práticas não estabelecem, necessariamente,
redes de relações sociais, nem desenvolvem consciência de pertencimento a
universo comum, embora uma região se firme sobre uma base territorial. Para
Mattos, se a região localiza-se num espaço –o Alto Sertão da Bahia, por
exemplo–, este se distinguiria mais por ser socialmente construído que por suas
características naturais; da mesma forma, se a região situa-se no tempo, este se
destacaria mais como um determinado tempo histórico –o tempo da relação
colonial– que por sua localização meramente cronológica. Nessas
circunstâncias, a delimitação espaço-temporal existiria enquanto materialização
de limites a partir das relações sociais (NEVES, 2002).
Dessa maneira, entende-se que, no curso dessa dinâmica, os
conhecimentos históricos da localidade devem estar relacionados, de forma que
eles tornam possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e
problemáticas que dizem respeito às relações sociais que se quer conhecer.
Nesse sentido, a história local é entendida aqui como uma modalidade de
estudos históricos que, ao operar em diferentes escalas de análises, contribui
para a construção de processos interpretativos sobre as diferentes formas de
como os atores sociais se constituem historicamente. Ou seja, interessa-se pelos
modos de viver, coletivos e individuais, dos sujeitos e grupos sociais situados em
espaços que são coletivamente construídos e representados, na
contemporaneidade, pelo poder político e econômico, sob a forma estrutural de
“bairros” e “cidades”.
Esta preliminar definição de história local leva em conta a historicidade do
conceito na forma que vem sendo tratado pela historiografia contemporânea.
Nesse sentido, toma algumas pistas já anunciadas por Francisco Ribeiro da Silva
(2008) no que toca aos objetivos, à metodologia e às ambições teóricas da
história da localidade e, no que se refere às reflexões sobre a investigação das
cidades, as contribuições de Bernard Lepetit (2001).
Das anotações de Silva (2008), entende-se ser necessário,

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metodologicamente, adentrar em um conjunto de práticas sociais vinculadas a


experiências históricas que são trazidas à tona pelas mais diversas fontes dos
arquivos locais, sinalizando para a possibilidade de indicar que a história local
assume, a princípio, algumas características básicas:
1. É uma história que parte da situação presente para se reportar ao
passado;
2. Embora também se faça no trato com dados quantitativos, é uma
história mais qualitativa do que quantitativa;
3. É uma história setorial e limitada nas suas ambições de
generalizações, embora possa oferecer elementos para a confirmação
de hipóteses mais gerais;
4. É uma história concreta que, através da aproximação da vida
cotidiana e do conhecimento empírico, busca atingir mediações com
outros espaços e temporalidades sociais;
5. É uma história de caráter monográfico. Tende a produzir menos
esforços de síntese do processo histórico nacional, pretendendo-se
mais monográfica, mais atenta ao tratamento das fontes e às questões
de método.

Assim, se, na pesquisa histórica, a importância do documento varia


conforme o objetivo e o método empregado, nos procedimentos da
historiografia local, isso é pressuposto, uma vez que sua escrita exige recursos
específicos a depender dos tipos de documentos existentes e de suas condições
de preservação para a investigação da malha urbana que foi se formando em
determinado espaço. Por esse motivo, um dos primeiros caminhos a serem
trilhados pelo historiador é conhecer os arquivos e os acervos que a cidade
dispõe e definir o local tendo por fundamentos a seleção de fontes.3
Tais observações são relacionadas aos estudos de Lepetit sobre a história
urbana, porque esse campo de estudos historiográficos se ocupa do trajeto
assumido pelas cidades em suas relações com a formação do espaço e as
sociabilidades que nele vão se apresentando. Ao pensar a cidade, o autor
permite pensar junto a malha urbana e territorial que socialmente vão se
formando nos espaços coletivos, “enfocando-a ainda como um observatório das

3 Sobre o conceito de região ver: Graça Filho (2009).

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relações entre os homens, onde passados diversos se encontram” (SALGUEIRO,


2001: 15).
Lepetit contribui significativamente para pensar conceitos relacionados à
história local, uma vez que entende ser a cidade um objeto complexo que, para
ser apreendido em diferentes temporalidades, necessita do cruzamento e
confronto de fontes, bem como das interrogações das ciências humanas. Nesse
sentido, conforme se verifica no item abaixo, estas reflexões indicam que a
história urbana traz contribuições valiosas, por intermédio dos conceitos que
utiliza e dos empréstimos metodológicos que faz de outras áreas de
conhecimento, para se estudar a história local em suas relações com o ensino
escolar, tendo a cidade como objeto privilegiado da análise.

História local e cidade:


contribuições da História Urbana para o ensino da localidade

Ronald Raminelli (1997: 195), ao estudar os motivos pelos quais a História


Urbana recebe ampla atenção dos pesquisadores brasileiros, indica que um dos
principais motivos seria que a cidade, como objeto de conhecimento dos espaços
de sociabilidade, apresenta-se, na contemporaneidade, como o “locus e
expressões acabadas das formas da vida social”. Informa que “o crescimento e
proliferação de cidades marcaram profundamente a história europeia do século
XIX, quando se presenciou uma grande alteração da vida urbana em cidades
como Londres e Paris” (RAMINELLI, 1997: 185), permitindo que estudiosos
(Simmel; Lukács; Adorno; Benjamin) percebessem melhor as relações entre
cidade e modernidade.
Em seu artigo, afirma que os estudos de Simmel partem do princípio de
que “o real exprime-se nos detalhes da vida cotidiana, revelando inúmeros
aspectos das complexas relações sociais”. Assim, “a cidade, por conseguinte,
reúne detalhes preciosos sobre o real”. Ela é também, na apreciação de Simmel,
“um fato cultural, um caldeirão de impressões, de sentimentos, de desejos e de
frustrações”. Para anotar outra perspectiva analítica da cidade, cita Friedrich
Engels, para quem a metrópole, pela alta concentração populacional, tornou os
“[...] homens subjugados aos milagres da civilização e tiranizados pelos
desagradáveis e fastiosos arroubos da multidão”. No estudo de Raminelli,
encontra-se ainda a afirmativa de que os escritos de Walter Benjamin também

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inspiraram vários pesquisadores dedicados à compreensão da cidade como


espaço da modernidade, ao recorrer à literatura do século XIX para pensar as
transformações provocadas por ela. Na mescla filosófica da literatura e projetos
urbanísticos, Benjamin teria traçado “uma história das idéias no mundo
sacudido pelas inovações capitalistas” (RAMINELLI, 1997: 198).
Esses estudos, segundo o autor, foram fundamentais para que se chegasse
à cidade como objeto de análise histórica e suas abordagens teriam aceitação
entre os historiadores latino-americanos por abordar as mesmas questões do
crescimento urbano: planejamento das cidades, aumento populacional,
imigração, migração, transporte, comércio.
A cidade, nos diferentes aspectos da produção do conhecimento histórico
específico e das formas de entendimento de suas tramas relacionais com outros
espaços e tempos históricos, torna-se um objeto privilegiado de pesquisa
histórica, na qual se destaca o papel das experiências sociais como definidoras
dos espaços de sociabilidade. Esses contornos reflexivos permitem articular
historiografia local com história da localidade e selecionar eixos de estudos no
ensino de História. É nesse sentido que se ressalta a importância de Bernard
Lepetit (1948-1996).
A autora brasileira Heliana Angotti Salgueiro é estudiosa das obras deste
pesquisador. Na coletânea Por uma nova Historia Urbana (2001), apresenta o
ex-professor na Ecoles dês Hautes Etudes em Sciences Sociales de Paris e
anuncia que a vasta obra do historiador francês trouxe, na sua compreensão,
uma grande contribuição para as contemporâneas maneiras de escrever a
história. Afirma que, tendo sido membro da revista Annales desde 1988, Lepetit
abriu diálogo com a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Antropologia e a
Arquitetura, num momento de mudanças significativas da historiografia
francesa, renovando os estudos urbanos.
Sem pretensões de ousar um balanço historiográfico de sua obra
plural e inacabada, chamo a atenção apenas para alguns eixos
de analise que se destacam em seus inúmeros artigos e livros: a
CIDADE e o ESPACO, este sempre presente [...] e confrontado
ao TEMPO, a gênese do TERRITÓRIO, das aglomerações e da
população; [...] seguem a organização das REDES URBANAS e a
construção e a interpretação de REPRESENTAÇÕES
ESPACIAIS, em que pensar a cidade significa pensar junto a
malha urbana e territorial, enfocando-a ainda como um
observatório das relações entre os homens [...]. (SALGUEIRO,
2001: 15).

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Seguindo as pistas deixadas pela autora, é possível afirmar então que, ao


tratar da posição do historiador frente a seu objeto, Lepetit destaca a
pertinência do recorte como questão central para tornar viável uma
interpretação histórica do local. Ao eleger a cidade e o espaço como eixos
analíticos, a localidade é construída tendo por base o cruzamento de fontes de
natureza diversa e em vários níveis de articulações, dialogando com outros
estudos já realizados sobre a formação urbana que se quer compreender. Em
síntese, sua importância para a História Urbana advém desses conceitos que
organizam os principais eixos de seu pensamento: as cidades e o espaço em
relação às categorias temporais e com escalas de observação variadas, com
destaque para a trajetória dos atores sociais.
Nesse sentido, a história local pode ser escrita por meio da construção
coerente de relações nas quais a cidade é desconstruída analiticamente para
entendê-la a partir de questões parciais, colocadas frente a suas múltiplas
dimensões: sociais, econômicas, políticas e culturais. Ou seja, por intermédio
dos estudos de Lepetit, é possível tecer especial atenção para as situações locais,
buscando a relação indissociável “entre os grupos sociais e a configuração
material das cidades”, chamando a atenção para “os limites das relações
imediatas entre espaço e sociedade, território e comunidade” e, enfim, avançar
na perspectiva de “estudar o engajamento das sociedades urbanas no presente
das cidades ou as modalidades de reutilização das formas urbanas do passado
[...]” (SALGUEIRO, 2001: 19).
Estas indicações sugerem que o trabalho escolar com a história local pode,
à medida que as pessoas são ouvidas (conforme é sugestão dos PCNs), realizar
uma bibliografia sobre a cidade, explorada através de fontes diversas, como:
jornais, publicações historiográficas e fotos; de forma que se possa desencadear
um processo de apropriação numa rede complexa de inter-relações. Neste
processo, articulam-se a atividade social dos indivíduos e sua percepção da
historicidade do local, recortando e deslocando problemas socioculturais na
construção da relação entre as experiências locais no tempo e a construção do
relato histórico consciente de seus resultados epistemológicos.

Considerações finais

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Este texto inscreve-se no debate que atualmente tem-se realizado em torno


da história local como proposta para o ensino de História no Ensino
Fundamental. Nesse sentido, apontou que, embora tal perspectiva seja
importante para romper com a história tradicional, carece de estudos
acadêmicos mais especificamente voltados para esse “tipo” ou “abordagem” da
escrita da história.
Tendo por hipótese essa afirmação, indicou ser relevante a elaboração de
problemas que procurem relacionar história, historiografia e ensino escolar,
com o objetivo de perceber em que medida as revisões teóricas e metodológicas,
realizadas por uma significativa gama de historiadores contemporaneamente,
têm permitido repensar conceitos de tempo, espaço, objetos e escalas de
análises que possam servir de base para pensar a história local em termos
teóricos e metodológicos.
Nessa procura, sinalizou positivamente para as contribuições que a nova
história urbana pode oferecer nesse momento, destacando os esforços do
historiador francês Bernard Lepetit. Para esse autor, a cidade, como objeto de
análise, pede uma análise interdisciplinar e de confrontação das interrogações
que as ciências humanas dirigem a ela. Entende-se que tal perspectiva analítica
pode permitir estudos históricos da localidade, definindo o que é localidade,
região, território, povoado, etc. Conceitos operantes da narrativa da história
urbana que, ao serem cotejados interdisciplinarmente, possibilitam maior
fecundidade da articulação dos diferentes níveis de observação realizados pelo
cruzamento criterioso das fontes e pela centralidade das análises nas ações dos
atores sociais.
Ao refletir sobre questões de teoria e metodologia do ensino em História, o
texto não pretendeu tratar especificamente da obra nem apresentar o autor, mas
sinalizar para a importância dos eixos analíticos (a cidade, o espaço, o tempo)
que Lepetit acolhe para seus estudos sobre o urbano para a reflexão da história
local. Encerram-se essas preliminares articulações teóricas afirmando que, por
intermédio dessas opções metodológicas da pesquisa em história urbana, é
possível, no debate sobre o ensino da História Local, avançar nas investigações e
propostas de usos pedagógicos da história local nesse ensino na escola
fundamental.

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 756


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NEVES, Erivaldo F. História regional e local: fragmentação e recomposição da
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RAMINELLI, Roland. História urbana. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS,
Ronaldo. Domínios da história: teoria e método. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
SALGUEIRO, Heliana. A. Apresentação. IN: LEPETIT, Bernard. Por uma nova
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Universidade de São Paulo, 2001.
SANTOS. Joaquim. J. M. dos. História do lugar: um método de ensino e
pesquisa, para as escolas de nível médio e fundamental. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9, nº 1, pp. 105-124, jan.-abr. 2002.
SCHMIDT, Maria A.; CAINELLI, Marlene. Ensinar história. São Paulo:
Sciopione, 2004. (Pensamento e Ação no Magistério).
SILVA, F. R. História local: objetivos, métodos e fontes. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3226.pdf>. Acesso em: 01/11/2008.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 3. ed. Brasília, DF: UNB, 1995.

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 757


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WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São


Paulo: Edusp, 2008.

Colaboração recebida em 02/04/2010 e aprovada em 04/07/2010.

Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 743-758 758


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POLÍTICAS DE QUALIFICAÇÃO DA GRADUAÇÃO: O PROGRAMA DE
EDUCAÇÃO TUTORIAL

Flávia Paloma Cabral Borba(1); Alan Leite Moreira(2)

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Gestão e Avaliação da Educação Superior
(MPPGAV) - Centro de Educação (CE)/Universidade Federal da Paraíba (UFPB . E-mail: palomacborba@gmail.com
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Gestão e Avaliação da Educação Superior
(MPPGAV - Centro de Educação (CE)/Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: alanpb@hotmail.com

Resumo:

A pesquisa, de caráter qualitativo, apresenta uma breve descrição histórica das universidades públicas
brasileiras e seu contexto político-econômico, relacionando a conjuntura desse desenvolvimento com a
gerência de políticas públicas de educação superior no país, sobretudo, da evolução do Programa de
Educação Tutorial - PET, uma política criada em 1979 e voltada para qualificação da graduação em
instituições de educação superiores públicas e privadas. A proposta é apontar como o progresso do PET se
relaciona com as situações sociais e políticas a partir da década de 70, considerando também as influências
do pensar universitário das décadas anteriores. Com base na estratégia metodológica da pesquisa
bibliográfica e documental, o trabalhou utiliza como referência as fases descritas por Marilena Chauí
(Universidade Funcional, Universidade de Resultados e Universidade Operacional) como norte para análise.
Além disso, compreendendo a educação como bem público e, estando as demais instâncias e atores dos
processos de gestão envolvidos nesta condição, a universidade é reconhecida como parte orgânica da
sociedade e, como tal, ao tempo que é influenciada, também influencia a sociedade nos desafios da
construção de um fazer universitário comprometido com processos científicos, culturais, políticos e
econômicos socialmente responsáveis.

Palavras-chave:, Programa de Educação Tutorial, políticas públicas educacionais, qualificação da


graduação, universidade e sociedade.

(83) 3322.3222
contato@conedu.com.br
www.conedu.com.br
INTRODUÇÃO

O Programa de Educação Tutorial (PET) é, atualmente, uma política pública de educação


superior gerida pela Secretaria de Educação Superior (SESu/MEC). O PET contempla estudantes
de graduação de todas as áreas do conhecimento, de instituições públicas e privadas, organizados
em grupos, interdisciplinares ou não, acompanhados por professores Tutores, desenvolvendo
indissociavelmente atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão. Atua como uma importante de
qualificação dos cursos de graduação em 109 (CENAPET, 2015) instituições de educação superior
brasileiras.
A estruturação desse programa caminhou junto com o desenvolvimento das universidades
desde o final da década de 70, imprimindo a influência das celeumas da educação superior no País.
Seu histórico de resistência e luta contra a descaracterização de suas atividades e sua peculiar
participação no cenário das políticas educacionais de educação superior do país, foi também
bandeira de luta pela qualificação de uma graduação comprometida com experiências acadêmicas
inovadoras e capazes de superar modelos universitários não associados à promoção da educação
como bem público.
A pesquisa em tela se propõe a descrever os pontos chave do avanço do PET juntamente
com os processos conjunturais vividos pela universidade pública brasileira desde 1970, orientando-
se pelas fases descritas por Marilena Chauí (2014), que classifica as universidades dos anos 70
como Funcional, dos anos 80 como de Resultados e as atuais como Operacional.
A pertinência desse estudo se justifica pela necessidade de pensar estratégias de
operacionalização de políticas públicas educacionais que considere suas especificidades e sua
condição dinâmica que, no PET, condensa características de uma política ampla e comprometida
com a formação global do alunado numa perspectiva de compromisso social.

METODOLOGIA

Considerando os objetivos pretendidos, apresenta-se uma análise dessa transição,


percebendo a radical mudança na formatação dessa política que superou o estigma de um programa
de graduação elitista de seleção e treinamento dos melhores alunos para alcançar a pós-graduação, e
se consolidou como um Programa acadêmico comprometido com ações que conjuga
direcionamentos para a melhoria da qualidade da graduação, envolvendo as dimensões do Ensino,
da Pesquisa e da Extensão e participando como estruturante de políticas públicas de qualificação da

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graduação. Para tal, o trabalho contextualizará, baseando-se em pesquisa bibliográfica e
documental, os aspectos históricos, sociais e econômicos das já citadas fases com o processo de
evolução e transformação do Programa, discutindo e problematizando os elementos que se
relacionaram e influenciaram tal mudança.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A universidade brasileira – Uma construção ideológica plural

A construção do pensamento educacional está fortemente ligada aos processos ideológicos


de construção de nação, que aconteceram de formas variadas em diversos países. No Brasil, a lógica
dos processos educacionais vinculou-se ao ideal de dominação, próprios da concepção hegemônica
da relação colonizador/colonizado. Esse fator foi determinante para a ausência da manutenção de
um processo educacional restrito e pontual, sem grandes investimentos.
Em 1808, com chegada da corte portuguesa na colônia, instaurou-se a necessidade de
adequar o Brasil à nova configuração de sede metropolitana. Esse episódio trouxe a efetivação dos
cursos superiores de caráter profissionalizante, destacando a influência do modelo francês de
organização estrutural da educação superior, que se orienta por “escolas isoladas de cunho
profissionalizante, com dissociação entre ensino e pesquisa” (PAULA, 2009, p.73), sendo
característicos a condição de fragmentação institucional e o enfoque nos cursos de Direito,
Engenharia e Medicina.
Essas poucas linhas do contexto da pré-institucionalização da universidade pública,
finalmente instituída em 1920 (FÁVERO, 2006), não tem por intento dar conta de uma análise
minuciosa da criação das universidades no país. Eis sua principal intenção: entender a bagagem
ideológica que a formação do pensamento universitário brasileiro recebeu nos primeiros séculos
pós- colonização. A vinculação da educação brasileira a projetos político-econômicos pontuais e
transitórios faz Darcy Ribeiro concluir sobre a frágil construção de universidade pública brasileira,
dizendo que

até agora na América Latina, as universidades atuaram especialmente como agentes da


manutenção da ordem instituída ou, no máximo, da modernização reflexa de suas
sociedades (RIBEIRO, 1978, p.78).

Mais alguns destaques da educação brasileira, sobretudo da educação superior, dos anos 30
aos anos 60 do século XX contribuirão para o entendimento dessa fragilidade. Nos anos 30, a

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acentuada centralização política, legitimada pela promulgação da segunda Constituição Republicana
em 1934, influenciou na principal reforma educacional desta época: a Reforma Campos (FÁVERO,
2006).
Esta década tutelou muita das principais políticas de educação, incluindo as que atingem o
Ensino Superior. Dentre elas, cabe destacar a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, a
promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras e a criação do Conselho Nacional de
Educação. Mesmo com as críticas ao modelo “fragmentado e profissionalizante das instituições
brasileiras de ensino superior” (PAULA, 2009, p.74), havia os que o defendessem como atribuição
prioritária da universidade, em detrimento do desenvolvimento da pesquisa científica, mantendo o
padrão de um modelo napoleônico de universidade, com primazia profissionalizante, atendendo as
necessidades do Estado centralizador. Vale lembrar que a Reformar Campos primava pela
indissociabilidade entre ensino e pesquisa nas universidades, e objetivava traçar diretrizes para
adequar a educação à modernização do país, com especial cuidado à formação de elites e na
instrução profissional. O estímulo à privatização era uma realidade, ficando a educação pública
destinada a camada da população que não pudesse arcar com os custos da formação privada
(VIEIRA, 2007), inclusive constando no texto da Constituição de 1937 a livre iniciativa particular
para promoção da arte, da ciência e do ensino.
Nesse formato, tem-se ainda a instituição do sistema de Cátedras e a concessão de uma
autonomia relativa às universidades. No caminho inverso, a idealização e criação da Universidade
de São Paulo (USP) levanta a bandeira de uma instituição baseada na concepção alemã de
universidade, de caráter Liberal. A USP será um dos principais canais de discussões sobre a
importância de uma universidade voltada à formação científica, mas ainda carregando o viés elitista
de universidade. Além da formação profissional, estava comprometida com “um saber livre e
desinteressado, capaz de contribuir para o progresso da nacionalidade em formação e para o
enriquecimento da educação” (PAULA, 2009, p.74).
A redemocratização do país e suas nuances de caráter liberal inaugurará o período da
universidade brasileira no chamado “Pós-45”, que encerra o período de Getúlio Vargas no poder e
põe fim ao Estado Novo. Nas décadas seguintes, são registradas lutas e iniciativas em prol de uma
autonomia universitária real, além da massiva multiplicação das universidades ainda que com
superioridade profissionalizante. Com isso, criou-se uma falsa ideia de democratização da
universidade, que se refletia no acelerado crescimento econômico do país vivido nos anos 50 por

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conta da industrialização, além de os debates acerca da precarização da educação superior serem
recorrentes, participando a sociedade, docentes e, também, os estudantes.
Já na intervenção militar, após 1964, o país apresentará a Lei n. 5540/68 que trata da reforma
universitária. Com influência latente da concepção norte-americana de universidade, as instituições
universitárias brasileiras, a partir de então, adequaram-se, impositivamente, a um sistema
declaradamente voltado aos interesses capitalistas e centralizadores. Dessa forma, houve a
necessidade das instituições responderem às demandas do mercado e a abertura à proliferação de
instituições privadas de nível superior e fragmentação da gestão, criando abismos entre as
atividades fim e as atividades meio, além da massiva expansão de vagas, numa perspectiva
excludente e não democrática. Nesse contexto, a influência do modelo norte-americano de pensar a
educação universitária dominou a nova estrutura política do Brasil a partir de 1964.
A ditadura imposta na intervenção do governo dos militares seguia a cartilha do mundo
capitalista, com grande intervenção do Estado na economia, além de suntuosos investimentos
nacionais em programas de crescimentos estruturais, muitos creditados pelos Estados Unidos, a fim
de captar indústrias de capitais estrangeiros. O crescimento econômico, a diminuição do
desemprego e o aumento do Produto Interno Bruto são alguns dos elementos que influenciaram na
massificação de vagas do ensino superior, abrindo também portas à oferta de vagas no setor
privado.
A ampliação dessas vagas não tinha relação com um projeto social de democratização e
promoção de uma educação de qualidade para todos. Este ainda era consequência do processo de
industrialização vivido desde o início da década de 50. Diante do Milagre Econômico, fase da
economia brasileira dos anos 60 que também contou com o endividamento externo e altos índices
de inflação, o país tratou de moldar o sistema educacional no sentido de atender as necessidades
políticas-econômicas, promovendo reformas na educação no sentido de atender as demandas do
mercado. Saviani destaca que a orientação geral da perspectiva do governo militar para a educação,
apontava para a profissionalização do nível médio e a integração da graduação com a formação
tecnológica (SAVIANI, 2008).
Especialmente na educação superior, a influência estadunidense foi oficializada através do
acordo firmado entre o Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento, o acordo MEC-USAID. Mesmo com as grandes intervenções dos movimentos
populares e de organizações da sociedade civil do início dos anos 60, que promoveram extensos
debates e ações em prol de uma educação de qualidade para todos, em 1968, na presidência de

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Costa e Silva, a lei n. 5.540 que trata da reforma universitária, foi apresentada ao país
desconsiderando muito dos anseios de uma educação de formação humanista.
Além disso, o relatório produzido pelo consultor americano Rudolph Atcon, em que baseou
suas intervenções no formato Teacher´s College, predominante nos Estados Unidos, trouxe muitas
mudanças no formato das universidades brasileiras. Dentre elas, a extinção do sistema de cátedras, a
fragmentação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras e a consequente criação dos centros,
departamentalização e subordinação diretamente à administração central, gestão baseada na
eficiência e eficácia empresarial como, dentre outras, os investimentos na pós-graduação. Também
se viu a aglutinação de faculdades em universidades, o vestibular classificatório e a facilitação, por
parte do governo, de processos de autorização de cursos superiores, especialmente na demanda
privada (MULLER, 2003).

O programa de Educação Tutorial - da Universidade Funcional a Universidade Operacional.

Marilena Chauí, quando falou sobre a greve deflagrada na USP em 2014, prestou análise
sobre os tipos de instituições universitárias públicas que se desenharam desde a década de 1970 até
a atualidade. Ela identificou três categorias: a Universidade Funcional, a Universidade de
Resultados e a Universidade Operacional. Entre outros pontos da discussão de Chauí (2014),
destacamos para este estudo, além das categorias de universidade que tutelaram a conjuntura do
PET, a definição da necessidade de se conceber instituições universitárias públicas como instâncias
eminentes de prática social e, com isso, que se vista da condição de instituição, ou seja, “significa
que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa.”
(CHAUÍ, 2014, p.02).
O PET foi idealizado em 1979, no limiar da Universidade Funcional da década de 70, ou
seja, na conjuntura da expansão das vagas de educação superior para fins de sustentação político-
ideológica da classe média ao governo dos militares, com promessas de ascensão social via diploma
universitário. Ainda no contexto da expansão das universidades no início dos anos 80, o perfil
primeiro do Programa, que iniciou seus trabalhos batizado como Programa Especial de
Treinamento, cumpria o atendimento de superação de deficiências na formação acadêmica no
intuito de garantir clientela para ações de pesquisa e pós graduação. A massificação da educação
superior fez do PET o responsável por formar grupos de elite acadêmica na graduação (MULLER,

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2003). Era a perspectiva meritocrática e de treinamento como filosofia do Programa que espelhava
o contexto de instabilidade que passavam as Universidades naquele período:

As Universidades de um modo geral enfrentavam problemas para atingir adequadamente a


todos os alunos devido a restrições financeiras, e sua expansão não estava sendo
acompanhada pela melhoria da qualidade (TOSTA et al, 2006, p.?).

A primeira década do programa aconteceu junto com a Universidade de Resultados, nos


anos 80, e ainda representava em maioria as condições da década anterior, com destaque para as
parcerias das universidades com as empresas privadas que direcionavam as pesquisas produzidas
pelas IES aos seus interesses: “Eram os empregos e a utilidade imediata das pesquisas que
garantiam à universidade sua apresentação pública como portadora de resultados” (CHAUÍ, 2014,
p.04).
Trabalhando as condições impostas pelo seu contexto, o Programa começou a avançar no
sentido da sobreposição dos estigmas que carregava em sua idealização e, entre o período de 1985 a
1987. Observou-se a melhora no gerenciamento a nível institucional do Programa, principalmente
pelos investimentos aplicados pela CAPES, instância responsável pela gestão do Programa nesse
período; o fortalecimento da relação entre os professores envolvidos com o PET, com troca de
experiências e formalização de encontro para discussão dos rumos e direcionamentos do Programa
e, já como ação consequente, a elaboração de normas específicas sobre o funcionamento dos
grupos, garantindo o nivelamento das atividades e o cumprimento de ações que fossem além das
questões de treinamento para pós-graduação e, também, o acompanhamento sistemático dos grupos
nas IES por meio de pareceres técnicos e relatórios de atividades (DESSEN, 1995).
Ainda nos anos 80, o PET ampliou o número de instituições contempladas pelo Programa,
em instituições públicas e privadas, porém, a predominância se manteve com as instituições
públicas da esfera federal (DESSEN, 1995). Mesmo sendo o principal objetivo do PET a melhoria
da qualidade do ensino superior, compondo grupos de estudos para estudantes com bom rendimento
acadêmico sob a orientação de um professor tutor, sua proposta era frágil por atender apenas uma
pequena demanda e limitar-se às atividades academicistas. Contudo, esta realidade foi se
transformando na medida em que os grupos ganhavam força e espaço político.
A partir de 1990, devidamente regulamentado, integra aos objetivos do PET contribuir com
a política de diversidade e ações afirmativas, além do desenvolvimento de sua principal
característica, que é a composição de atividades sob o princípio da indissociabilidade entre o
Ensino, a Pesquisa e a Extensão.

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Sem destoar de outras políticas, com o sucateamento vivido pelas universidades públicas
brasileiras na Reforma Gerencial dos anos de 1990 e da política de privatizações, já com advento da
Universidade Operacional voltada para lógica da eficácia organizacional e comprometida com
processos de gestão baseados na produtividade (CHAUÍ, 2014), o PET sofreu grandes
instabilidades e ameaças de extinção. Dada a situação, a fim de levantar informações relevantes
sobre a pertinência do Programa, no governo FHC, a CAPES, através do NUPES/USP (Núcleo de
Pesquisa do Ensino Superior da Universidade de São Paulo), realizou pesquisas, coordenada pela
Professora Elizabeth Balbachevsky, para avaliar as atividades do Programa.
O PET atingia seu objetivo ao garantir maior envolvimento dos seus bolsistas com as
atividades de Ensino na graduação quando comparado aos programas de iniciação científica,
voltados exclusivamente à pesquisa, refletindo em relevante melhora do desempenho dos alunos de
graduação e a qualificação dos cursos. Como bem analisado por Balbachevsky, em avaliação
publicada no INFOCAPES (1998), o PET garantiu aos seus bolsistas uma formação mais
abrangente, revelando expressivo aproveitamento das atividades acadêmicas e maior envolvimento
na graduação, principalmente quando comparado aos participantes de programas de iniciação
científica. Além do envolvimento nas atividades de Ensino, o resultado da avaliação destaca maior
participação também nas atividades de Extensão e Pesquisa.
Além da avaliação da CAPES, paralelamente, o Ministério de Educação contrata uma
empresa de consultoria para também realizar uma avaliação das atividades PET. Ambas chegaram a
resultados satisfatórios, mas mesmo assim não foram suficientes para manter a continuidade desta
política pública, inaugurando, em 1997, o processo de desativação do PET. Inicialmente, isto
ocorreu com a diminuição em 50% das verbas e de números de bolsistas por grupo. Neste ano, o
país já contava com 317 grupos PET distribuídos em 59 IES do país (MÜLLER apud BARBOSA
et.al., 2013).
Como resposta a crise institucional e a possível extinção desta política, membros do
Programa em instituições de graduação de todo o Brasil se organizaram e articularam o Movimento
em Defesa do PET que, segundo MULLER, estava comprometido não só com a manutenção do
Programa, mas também com a qualificação da educação superior no país. As lutas e os movimentos
pela permanência do PET desenharam o caráter político do Programa, fortalecendo suas bases e
impulsionando a continuidade de suas atividades.
Em 1999, o Ofício Circular emitido pelas CAPES às IES determinava o fim das atividades
petianas até o dia 31 de dezembro daquele mesmo ano. Em ato de resistência e fortalecimento do

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Programa, também em 1999, foi criada a Comissão Executiva Nacional do PET (CENAPET). A
figura desta instância, que objetivava também, politicamente, articular melhor os atores, estabeleceu
um diálogo com o governo federal e, junto com o Congresso Nacional, foi possível derrubar a
decisão de extinção do Programa.
O PET acabou passando por reestruturações desde então, principalmente ao que tange a
filosofia e objetivos do Programa: a construção ideológica de sua proposta não estava mais baseada
na perspectiva do treinamento, mas da criação de situações de aprendizagem que desenvolvessem
habilidades para soluções de problemas da atualidade, estimulando uma postura crítica do estudante
diante do mundo que o cerca. As origens do PET como um programa de treinamento não cabia mais
no direcionamento que os próprios atores do programava almejavam, que é o de desenvolver
práticas pedagógicas interdisciplinares e integradas de ensino, de pesquisa e de extensão, em
contraste com métodos de memorização e reprodução de informações.
A própria luta em defesa do Programa, entendido como um instrumento de garantia de
qualidade da educação superior envolveu os estudantes e o cumprimento de seus papéis de cidadãos
incentivando-os a participarem criticamente e, tal processo, refletiu na própria identidade do PET:
“A formação política dos alunos do programa, como sujeitos de decisões, evidencia-se nos
processos interativos com diferentes comunidades e temas” (LAFFIN, 2007, p. 28).
Administrativamente, a partir dos anos 2000, o PET passou a ser gerido pela SESu/MEC.
Contudo, a instabilidade da permanência do Programa ainda era pauta de discussão, já que a
suspensão de pagamentos de tutores e atraso de bolsas de estudantes abalavam a continuidade das
atividades. Em um contínuo processo de fortalecimento, pós 1998, o programa foi se desenhando, e
crescendo, principalmente quando o “Programa Conexões de Saberes” se fundiu ao PET,
aumentando ainda mais o espaço da interdisciplinaridade e estreitamento do Programa com o
atendimento de demandas de correções de desigualdades. Em 2003, já com 295 grupos em todo o
país, O PET é rebatizado, agora como Programa de Educação Tutorial, em atendimento a nova
perspectiva de intervenção na graduação, considerando a indissociabilidade entre o ensino, a
pesquisa e a extensão.
Finalmente, em 2005, o PET ganha respaldo legal, sendo oficialmente instituído pela Lei nº
11.180/2005. Além disso, outros documentos regulamentadores também foram publicados, a fim de
definir questões administrativas, de avaliação, de acompanhamento e de unidade nacional,
definindo o PET como um programa vinculado à Pró-Reitoria de Graduação, composto por um
conjunto de grupos de no máximo 12 estudantes cada, acompanhado por um tutor que estimula a

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participação do grupo a desenvolver ações, de forma articulada, de ensino, pesquisa e extensão,
oportunizando experiências que ampliem conhecimentos numa perspectiva de cooperação mútua,
superando os padrões engessados em didáticas conteudistas de reprodução da informação (BRASIL,
2006). Vale salientar que a construção da nova identidade do PET foi construída coletivamente.
Além das lutas e movimentos pela permanência do PET, os Fóruns, Encontros Regionais e
Encontros Nacionais sediaram debates e assembleias de onde eram propostos e votados os
encaminhamentos para o Programa. Os resultados destes foram incorporados pela SESu e refletidos
no arcabouço legal desta política.
Atualmente, a maior parte dos grupos PET está concentrada na região Sudeste, com 276
grupos, seguido pela região Nordeste, com 213. No Brasil, ao todo, soma-se 842 grupos
(CENAPET, 2015).

CONCLUSÃO

A história da formação das universidades confunde-se com o processo político-econômico


de seu tempo. Mesmo sempre em busca da formação de sua identidade e de autonomia, a educação
superior tendia a ser um reforço das ideias que dominavam determinado contexto conjuntural.
No Brasil, a construção da Universidade foi marcada pela promoção pontual da educação
técnica, servido ao caráter da produção capitalista, sendo a partir de uma perspectiva de
modernização que, então, as universidades, controladas pelo Estado, são vinculadas a ideia de
fomentadora da ciência e da tecnologia. Tal mudança dar-se, principalmente, pelo viés globalizado
que permeia os direcionamentos da economia neoliberal. Sabendo-se que o processo de
globalização aconteceu de formas distintas nas diferentes nações, também o acesso à educação
marcou áreas dicotômicas. Na educação superior, as privatizações e massificação do acesso às
universidades públicas desassociado de um projeto que acompanhasse o crescimento e garantisse a
qualidade, promoveu uma falsa ideia de democratização e inclusão, fato este que evidenciou nas
instituições de ensino superior relevante heterogeneidade, produzindo instituições acadêmicas com
perfis específicos para determinados públicos.
Dada a situação de precarização da educação superior, por iniciativa da CAPES, foi criado o
PET, no compromisso de atendimento a uma necessidade específica dos cursos de graduação das
instituições de educação superior públicas do país, frente a uma política de expansão que não
carregava em si o carisma do acesso democrático, tão pouco a garantia na qualidade da educação,
com predomínio da lógica produtiva, no intuito de habilitar e dar condições para interagir de modo

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competitivo no mercado, tendo o forte incremento do setor privado, segundo os parâmetros de
avaliação e controle dos organismos multilaterais internacionais, pressionando os Estados a aplicar
estratégias empresariais para gerir as políticas públicas.
Tal conjuntura sócio-político-econômica, construída ao longo do processo político e
histórico do Brasil, fez com que o programa propagasse uma marca elitista de captação dos
melhores, frente à massificação das vagas na graduação que não oferecia condições de sucesso a
todos os ingressantes dos cursos e, também, ao consequente sucateamento da educação superior
pública, ocorrido principalmente na década de 90.
A apropriação dessa política pela comunidade acadêmica, principalmente pelos próprios
membros do PET, imprimiu uma marca de excelência no desempenho dos bolsistas do Programa,
refletindo também na melhoria do próprio curso, já que as atividades elaboradas e aplicadas pelos
grupos, atingiam os demais estudantes não só no ensino, mas também nas áreas de pesquisa e
extensão. A proposta inicial de ser o PET uma política de treinamento para a pós-graduação não
cabia mais na própria estrutura que era executada pelos integrantes. A perspectiva de reforço apenas
para um seleto grupo de notáveis foi superada e, em seu lugar, dominaram atividades de articulação
entre a formação acadêmica e o mundo do trabalho, de amplo entendimento do estudante em sua
multidiversidade cultural e social, pensadas para contribuir com a formação cidadão, científica e
profissional da graduação por meio de práticas inovadoras que questione modelos dominantes e
fomente práticas libertadoras, contribuindo para uma aprendizagem significativa, que vão além do
domínio de conteúdos sistematizados. A orientação tutorial, não mais de treinamento, adequou esta
política ao que ela de fato propunha e executava: “articulação na formação em suas diferentes áreas,
contribuindo sobre maneira para a melhoria do sistema de ensino superior, pelo fomento de práticas
inovadoras e de repercussão social” (LAFFIN, 2007, p.24).
Sendo assim, o PET, entendido como uma política pública educacional exitosa, que superou
e sobreviveu as pressões dos ditames econômicos de uma educação produtivista, se configura como
uma importante ferramenta na construção de um pensar universitário que entenda o seu papel no
desenvolvimento social, científico e cultural da nação, entendendo que é pela universidade que
passam os caminhos que levam a real democratização do conhecimento.

REFERÊNCIAS

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BALBACHEVSKY, Elizabeth. O Programa Especial de Treinamento – PET/CAPES – e a
graduação no ensino superior brasileiro. In: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (Brasil).
INFOCAPES – Boletim Informativo. Vol.6, N.02, abr./jun. 1998. p. 6-23.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação superior. Manual de orientações


básicas – Programa de Educação Tutorial. Brasília, 2006. Disponível em: <www.mec.gov.br/pet>
Acesso em: 31/07/2015.

CENAPET. Dados sobre o Programa de Educação Tutorial – PET atualizados em abril de 2015.
Disponível em: <https://cenapet.files.wordpress.com/2015/03/dados-pet-20151.pdf> Acesso em:
31/07/2015.

CHAUÍ, Marilena. Contra a universidade operacional: a greve de 2014. São Paulo, 2014.

DESSEN, Maria Auxiliadora. O Programa especial de treinamento – PET: evolução e perspectivas


futuras. In Didática, São Paulo, 1995, p.27-79.

FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. A universidade no Brasil: das origens à Reforma


Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n 28, p 17-36, 2006.

LAFFIN, Marcos. Princípios explicativos do Programa de Educação Tutorial. In Programa de


Educação Tutorial: Estratégia para o desenvolvimento da graduação. Brasília: Ministério da
Educação, 2007.

MULLER, Angélica. Qualidade no ensino superior: a luta em defesa do programa especial de


treinamento. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

PAULA, Maria de Fátima de. A formação Universitária no Brasil: concepções e influências.


Avaliação, Campinas; Sorocaba, SP, v. 14, n. 1, p. 71-84, mar. 2009

RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. 3ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

SAVIANI, Dermeval. O Legado Educacional do Regime Militar. Cad. Cedes, Capinas, Vol. 28,
n.76, p.291 – 312, set./dez. 2008.

VIEIRA, Sofia Lerche. A educação nas constituições brasileiras: texto e contexto. In Revista
brasileira de estudos pedagógicos. V. 88, n. 219, p. 291-309, mai/ago. Brasília: 2007.

TOSTA, Rosa Maria. (et al.). Programa de Educação Tutorial (PET): Uma alternativa para a
melhoria da graduação. Psicol.Am.Lat., México, N 8, nov.2006. Disponível em:
<http://www.psicolatina.org/08/programa.html> Acesso em: 10/07/2015.

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Ensino-pesquisa-extensão

Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de
indissociabilidade na pós-graduação

Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita


Universidade Estadual da Paraíba, Departamento de Letras e Educação

Fernando Cézar Bezerra de Andrade


Universidade Federal da Paraíba, Departamento de Fundamentação da Educação

Introdução à pesquisa, seja ainda à extensão. Assim, se conside-


rados apenas em relações duais, a articulação entre
De acordo com a legislação, o tripé formado pelo o ensino e a extensão aponta para uma formação
ensino, pela pesquisa e pela extensão constitui o eixo que se preocupa com os problemas da sociedade
fundamental da Universidade brasileira e não pode contemporânea, mas carece da pesquisa, responsável
ser compartimentado. O artigo 207 da Constituição pela produção do conhecimento científico. Por sua
Brasileira de 1988 dispõe que “as universidades [...] vez, se associados o ensino e a pesquisa, ganha-se
obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre terreno em frentes como a tecnologia, por exemplo,
ensino, pesquisa e extensão”. Equiparadas, essas mas se incorre no risco de perder a compreensão
funções básicas merecem igualdade em tratamento ético-político-social conferida quando se pensa no
por parte das instituições de ensino superior, que, do destinatário final desse saber científico (a socieda-
contrário, violarão o preceito legal. de). Enfim, quando a (com frequência esquecida)
Este texto dedica-se a discutir a indissociabilidade articulação entre extensão e pesquisa exclui o ensi-
em que se assenta a universidade, o que exige, no nível no, perde-se a dimensão formativa que dá sentido à
mais abrangente de análise, sempre uma perspectiva universidade.
ternária que inclua as atividades de ensino, pesquisa Embora se reconheça a importância dessas arti-
e extensão, entre as quais, como numa “santíssima culações duais, o que aqui se defende é um princípio
trindade”, há igual importância e íntima unidade. A que, se posto em ação, impede os reducionismos que
indissociabilidade é um princípio orientador da qua- se verificam na prática universitária: ou se enfatiza a
lidade da produção universitária, porque afirma como produção do novo saber, ou a intervenção nos proces-
necessária a tridimensionalidade do fazer universitário sos sociais, ou ainda a transmissão de conhecimentos
autônomo, competente e ético. na formação profissional.
Ora, a universidade tem sido palco de análises Foi com essa compreensão que, como doutoran-
e debates que têm dado destaque seja ao ensino, seja dos em educação da Universidade Federal da Paraíba

Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009 269


Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita e Fernando Cézar Bezerra de Andrade

(UFPB),1 matriculados nas disciplinas de estágio de geral. Cumpre, portanto, considerar brevemente esse
docência I e estágio de docência II, realizamos um debate para melhor entender por quê, apesar de ideal,
exercício da indissociabilidade entre ensino, pesquisa a pretendida indissociabilidade muitas vezes não se
e extensão. Ele é apresentado neste texto como a ex- verifica na prática.
periência de um diálogo interdisciplinar que buscou Como ressalta Silva (2000), as relações entre
relacionar saberes, o científico e o de educadores e edu- ensino, pesquisa e extensão decorrem dos conflitos
candos de uma escola pública, com vistas à produção em torno da definição da identidade e do papel da
de conhecimento acerca da articulação entre relações universidade ao longo da história. Por sua vez, Mag-
de gênero, violência e jogos eletrônicos. nani (2002) indica que, nesses quase duzentos anos de
Envolvidos nessa experiência, pudemos refletir ensino superior no Brasil, pouco a pouco a legislação
um pouco acerca das práticas universitárias, muitas educacional registrou o esforço por transformar o mo-
delas isoladas ou, no máximo, duais. Defendemos delo de transmissão de conhecimento em um modelo
assim, duas ideias centrais: a primeira delas é de que de produção e transmissão do saber científico, aliando
a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão pesquisa e ensino, como decorrência das pressões por
ainda não é levada em conta na prática de muitos democratização do acesso às universidades. Mais
docentes, seja porque na graduação a ênfase recai recentemente ainda, a extensão surge como terceiro
sobre o ensino, ou porque na pós-graduação acentua- elemento do fazer acadêmico, resposta às críticas e
se a pesquisa. A segunda ideia, decorrente de nossa pressões sofridas pela universidade, oriundas de seto-
experiência, é de que o estágio de docência na pós- res e demandas sociais (Silva, 2000). Ensino, pesquisa
graduação é uma excelente oportunidade de praticar a e extensão aparecem, então, ao final do século XX,
indissociabilidade defendida. A apresentação de nossa unidos pelo princípio constitucional da indissociabi-
experiência pretende demonstrar esse argumento. lidade antes citado.
Mal esse princípio foi postulado, porém, já se
O conhecimento científico e a viu alvo de flexibilizações que denunciam, também
indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão no entender de Magnani (2002), tanto a fragilidade da
como eixo da ação e da reflexão universitária associação entre essas funções, quanto, por trás dessa
debilidade, o processo de elitização que atravessa a
Tratar de indissociabilidade na universidade história da universidade brasileira. Como afirma a
é considerar necessariamente dois vetores de um própria autora acerca da divisão social reforçada pela
debate: de um lado, as relações entre universidade, seleção escolar – mantida historicamente pela univer-
ensino, pesquisa e extensão; e, de outro, confluindo sidade brasileira ao destinar apenas aos filhos da elite
para a formulação de uma tridimensionalidade ideal os cursos de maior status e mais alto custo (Medicina,
da educação superior, as relações entre o conheci- Engenharia e Direito, por exemplo) –, “constata-se
mento científico e aquele produzido culturalmente a prevalência do caráter elitista presente desde os
pelos diferentes grupos que compõem a sociedade em primórdios da criação do ensino superior brasileiro
no século XIX” (Magnani, 2002, p. 13). Mais até que
1
Na grade curricular dos cursos de mestrado e doutorado do legalmente flexibilizado, contudo, o princípio termina
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, incluem-se, por ser pouco considerado na prática.
como disciplinas obrigatórias, os estágios de docência I e II, que Ora, Castro (2004) mostra que a história da
consistem no exercício da docência pelo pós-graduando, super- indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão tem
visionado por seu orientador de pesquisa, durante dois semestres como pano de fundo a história mesma das relações
letivos. No caso dos autores, a docência foi exercida de modo arti- entre conhecimento científico e demandas sociais.
culado às atividades de extensão e pesquisa descritas neste artigo. Historicamente, o conhecimento científico tornou-se

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Ensino-pesquisa-extensão

uma forma de conhecimento privilegiada, pela grande Nessa direção, são necessárias transformações
importância que adquiriu para a vida das sociedades acadêmicas. Se consideradas as mudanças apontadas
contemporâneas. Segundo Santos (2004, p. 17), é por Pereira Júnior (2005) para o caso brasileiro, inicial-
possível dizer que, mente a pesquisa científica promoveu o florescimento
de uma comunidade que – com a implantação tardia
[...] desde sempre, as formas privilegiadas de conhecimento, das universidades e demais instituições de pesquisa
quaisquer que elas tenham sido, num dado momento histó- – vem crescendo em três etapas: procurou-se, inicial-
rico e numa dada sociedade, foram objeto de debate sobre mente, aprender a fazer ciência, não se hesitando em
a sua natureza, as suas potencialidades, os seus limites e o eventualmente “reinventar a roda” como forma de
seu contributo para o bem-estar da sociedade. desenvolver uma competência local. Depois, em outra
etapa que se estende até os dias atuais, os cientistas, ge-
Tanto é que o próprio Santos (2004), além de ralmente já agrupados nas universidades, promovem a
Escobar (2004), Mignolo (2004), Mora-Osejo e Borda criação e a consolidação do sistema de pós-graduação,
(2004), Meneses (2004) e Visvanathan (2004) con- formando uma nova geração de mestres e doutores
sideram essa prevalência do conhecimento científico para alcançar, em vários grupos de pesquisa, o nível
ocidental uma espécie de “injustiça cognitiva” em ca- de excelência científica: revela-se, assim, a busca de
ráter global. Nesse sentido, a crítica desses autores à padrões de qualidade e excelência nos trabalhos de
pretensa superioridade do modelo tradicional de ciência pesquisa com publicações direcionadas para periódi-
sublinha “o carácter simultaneamente local e total do cos de primeira linha.
conhecimento” (Escobar, 2004, p. 640), advogando uma Embora tudo pareça estar correto, tais padrões
valorização do conhecimento prático, situado na (e pro- foram definidos de modo descontextualizado. Como
duzido pela) experiência comunitária, de modo a opor-se consequência, em sua grande maioria esses trabalhos
a uma espécie de “colonialidade” que, no plano cultural não estão concatenados com esforços no sentido da
e epistemológico, deu continuidade à colonização nos promoção do desenvolvimento social, como é o caso
países periféricos (Mignolo, 2004). Um exemplo dessa brasileiro. Ou seja, em grande parte ainda se produz
colonização cultural dá-se na Índia, onde “a ciência se um conhecimento desligado das necessidades popu-
apropria e reserva para si a patente dos saberes campo- lares cotidianas. Segundo Santos (2004, p. 40), tal
neses”, sem que “haja um reconhecimento espitémico tendência não seria exclusiva da universidade brasi-
do estatuto desses saberes” (Visvanathan, 2004, p. 768), leira: “o conhecimento universitário [...] foi, ao longo
de modo a favorecer uma visão capaz de acolher “tanto do século XX, um conhecimento predominantemente
a sabedoria da ciência normal como as perspectivas das disciplinar, cuja autonomia impôs um processo de pro-
mundivisões excêntricas, dissidentes, marginais, vulne- dução relativamente descontextualizado em relação às
ráveis e alternativas” (idem, ibidem, p. 771). premências do quotidiano das sociedades”. Valendo-se
Diante dessa tensão entre o modelo tradicional de de uma expressão usada pelo mesmo autor, gerou-se
ciência e a valorização crescente dos saberes práticos um conhecimento “para inglês ver”.
produzidos pelas diferentes populações, intensifica-se A terceira etapa, que seria a ideal e que se busca
a preocupação com o papel social das universidades. atingir, alia à competência científica e tecnológica um
Nas palavras de Mora-Osejo e Borda (2004, p. 720), vetor pragmático, ao direcionar as investigações para
“precisa-se de universidades participativas, com- projetos e parcerias que viabilizem o desenvolvimento.
prometidas com o bem comum, em especial com as Esse é um aspecto que já vem sendo considerado na
urgências das comunidades de base [...]”, de modo a aprovação de projetos por algumas agências finan-
favorecer a substituição de “definições discriminató- ciadoras, como o Conselho Nacional de Desenvolvi-
rias entre o acadêmico e o popular”. mento Científico e Tecnológico – o que aponta para a

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emergência do novo modelo. Segundo Santos (2004, dominação, de invasão cultural. O diálogo é igual-
p. 29), aconteceu “uma passagem do conhecimento mente enfatizado por Santos como princípio básico
universitário para o conhecimento pluriversitário”. para que a universidade passe a cumprir o seu papel
O conhecimento “pluriversitário”, nas palavras de agência formadora: é, portanto, uma inspiração
do autor, distingue-se do conhecimento produzido fundamental da indissociabilidade.
anteriormente por ser “contextual na medida em que A perspectiva de um conhecimento “pluriversi-
o princípio organizador da sua produção é a aplicação tário” não beneficia apenas as comunidades que têm
que lhe pode ser dada” (Santos, 2004, p. 30). Como seus saberes levados em conta. Como bem mostram
essa aplicação acontece além dos muros universitá- os autores citados, particularmente Santos (2004),
rios, a formulação dos problemas, a determinação a própria universidade se renova nesse processo. O
para resolvê-los e os critérios adotados para o traba- ensino é, provavelmente, o melhor exemplo dessa
lho resultam de “uma partilha entre pesquisadores e renovação, à medida que, integrado ao conhecimen-
utilizadores” (idem, ibidem, p. 30). Ainda na opinião to produzido através da pesquisa e aos anseios da
de Santos, o conhecimento característico do século sociedade considerados nas atividades de extensão,
XXI, “é um conhecimento transdisciplinar que, pela ganha em relevância e significado para a comunidade
sua própria contextualização, obriga a um diálogo ou universitária. Desse modo, ensinar termina por ser
confronto com outros tipos de conhecimento” (idem, uma atividade que, ao mediar a pesquisa e a extensão,
ibidem, p. 41). enriquece-se e amadurece nesse processo: o professor
Ora, a relação com alguns desses outros conheci- universitário, ao integrar seu ensino à pesquisa e à
mentos pode ser engendrada na atividade de extensão, extensão, mantém-se atualizado e conectado com as
que se achega ao conhecimento prático, assimilado transformações mais recentes que o conhecimento
culturalmente e desenvolvido para responder a de- científico provoca ou mesmo sofre na sua relação com
mandas da vida cotidiana. Não à toa, segundo autores a sociedade, além de formar novos pesquisadores,
como Gurgel (1986), Fagundes (1986) e Botomé críticos e comprometidos com a intervenção social.
(1996), a preocupação com a extensão universitária Logo, não há pesquisa nem extensão universitária que
nasceu com as universidades populares na Europa, que não desemboquem no ensino.
tinham como objetivo disseminar os conhecimentos Conscientes das particularidades que carac-
técnicos, eminentemente associados a práticas social- terizam cada uma das três funções universitárias,
mente relevantes. Esse movimento pelas universidades entendemos a indissociabilidade de ensino, pesquisa
populares, no entanto, foi criticado por Gramsci, que e extensão como um catalisador do conhecimento
apontou a falta de organicidade, seja de pensamento “pluriversitário”, que permite, conforme Santos (2004,
filosófico, seja de solidez organizativa e de centrali- p. 31), “a inserção da universidade na sociedade e a
zação cultural (Melo Neto, 2002). inserção desta na universidade”. Logo, a indissociabi-
Paulo Freire (1980) trouxe uma reflexão con- lidade pode ser entendida como um princípio orienta-
ceitual importante para a extensão, quando publicou dor da universidade nascido sob o influxo dos debates
o ensaio Extensão ou Comunicação?. Ele defendeu que estabelecem o lugar da universidade no seio da
a extensão como uma situação educativa, em que sociedade em geral, recebendo, daí, uma nítida influên-
educadores e educandos assumem o papel de sujeitos cia daquela terceira tendência sugerida por Pereira
cognoscentes, mediatizados pelo objeto que desejam Júnior (2005) – a de um conhecimento científico em
(ambos) conhecer. Para Freire, ou se dá um processo diálogo permanente com as demandas sociais. Por isso,
de extensão dialógico, ou então se corre o risco de também se apresenta como princípio básico em que
trabalhar com uma interpretação ingênua da realidade, o diálogo defendido por Freire é potencializado pela
quando não fosse explicitamente um instrumento de revolução das tecnologias, informação e comunicação,

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Ensino-pesquisa-extensão

permitindo um diálogo que, nas palavras de Santos No caso da pós-graduação, em particular, graças
(2004), substitui a unilateralidade pela interatividade. à prerrogativa com que se trata a pesquisa, pode-se
Com isso, naturalmente, insistimos que a exten- também dizer que muitos ainda se encontram na
são não seja tratada como uma tarefa compulsória, mas mesma etapa de produção universitária, de sorte que a
antes, à semelhança do que ocorre com a pesquisa, uma indissociabilidade ainda é uma meta a ser perseguida.
atividade que decorre naturalmente desse compromis- A ênfase, em muitos casos compreensível, atribuída
so social de uma instituição orientada pela superação naturalmente à pesquisa, deveria realçar ainda mais
das distâncias entre os saberes científico e popular. as possibilidades de articulação com o ensino e a ex-
Assim, enquadradas pelo princípio da indissociabili- tensão – e não contribuir para a dissociação entre os
dade, a extensão e a pesquisa tornam-se consequências fazeres que constitucionalmente fixam a identidade
naturais da docência, referências para que o ensino não da universidade no Brasil.
se torne abstrato nem desligado das realidades locais, Em decorrência disso, a extensão termina por
como pretendem os autores já citados. ser relegada a um lugar secundário na pós-graduação,
Outra vantagem decorrente da articulação entre contribuindo para práticas de pesquisa e ensino dis-
ensino, pesquisa e extensão é o reconhecimento dos sociadas da realidade. Ora, na verdade a extensão
limites e peculiaridades de cada uma dessas três ativi- apresenta-se como uma estrada de mão dupla (Melo
dades. Nem toda pesquisa consiste em extensão, pois Neto, 2003), pela qual há uma troca entre os conhe-
o conhecimento produzido pode ser encarcerado no cimentos universitários e os comunitários, diante das
debate teórico ou ser desenvolvido com objetivos que reais necessidades, anseios e aspirações sociais, inter-
não sejam aqueles das populações que participaram na câmbio esse em que a universidade é positivamente
investigação. Já a extensão, caso seja orientada pela provocada, influenciada e fortalecida.
concepção da superioridade do saber científico em Como afirma Castro (2004, p. 14), a extensão
relação aos saberes produzidos pelos grupos atendidos,
também pode incorrer no erro de fechar os olhos para [...] se coloca como um espaço estratégico para promover
esses últimos saberes e manter a separação entre o que práticas integradas entre as várias áreas do conhecimento.
Visvanathan (2004) chamou, por um lado, de ciência; Para isso é necessário criar mecanismos que favoreçam a
e, por outro, de mundivisões alternativas. aproximação de diferentes sujeitos, favorecendo a multi-
É então precisamente o princípio de indisso- disciplinaridade; potencializa, através do contato de vários
ciabilidade ensino-pesquisa-extensão que garante a indivíduos, o desenvolvimento de uma consciência cidadã e
pretendida integração desses saberes com a ciência, as humana, e assim a formação de sujeitos de mudança, capazes
características particulares de cada uma das três ativi- de se colocar no mundo com uma postura mais ativa e crítica.
dades acadêmicas e a permanente articulação entre elas. A extensão trabalha no sentido de transformação social.
A partir desse breve percurso em torno do debate
sobre indissociabilidade, por um lado, e as relações Desconsiderar a extensão – excluindo-a das ativi-
entre ciência e realidade social, por outro, entende-se dades de ensino e pesquisa na pós-graduação – é não só
melhor por que a indissociabilidade ainda não é uma promover a dissociação que fere a indissociabilidade
orientação reconhecida sistematicamente por todos e reproduz um velho modelo acadêmico como perder
na educação superior, permanecendo como um ideal um vasto e indispensável terreno de descobertas e
a ser perseguido: o modelo universitário muitas vezes aprendizagens que, acima de tudo, situa as ciências
praticado na educação superior ainda é aquele próprio no seu justo lugar de saberes a serviço do ser humano,
do momento de afirmação e consolidação do saber histórica e socialmente compreendido. Menosprezar
científico, típico de uma estrutura ainda não eminen- a extensão ou reduzi-la ao ensino e à pesquisa (Silva,
temente dialogal (Pereira Júnior, 2005). 2000) é também negar as várias contradições que atra-

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vessam o interior da universidade, desde suas origens O alunado provinha, na sua maioria, do próprio
até as transformações recentes. bairro e dos bairros circunvizinhos: por conta desse
Mesmo num contexto universitário ainda não grupo, segundo a avaliação da direção, a escola tinha
totalmente “pluriversitário”, o melhor está em ser como maiores problemas a violência vivida pelo
possível exercitar a indissociabilidade, inclusive na alunado e por ele reproduzida no interior da unidade
pós-graduação. O estágio de docência é propício de ensino, as questões relativas à educação moral, à
para isso, pois conduz o aluno para atividades em conduta sexual e à falta de requisitos cognitivos para
que o ensino abre-se ao conhecimento dos educandos, a aprendizagem.
numa situação que pode perfeitamente ocorrer além Nosso trabalho teve a duração de dez meses, no
dos muros acadêmicos, sem que se perca a dimensão período compreendido entre maio de 2004 e março de
investigativa que norteia a pesquisa. É o que preten- 2005. Por considerarmos as possibilidades de articula-
demos demonstrar, com o caso de nossa experiência ção entre os conhecimentos sobre relações de gênero,
no estágio de docência apresentada a seguir. jogos eletrônicos e violência na escola, objetivamos
gerar com os participantes, teórica e praticamente,
Um exercício em direção à indissociabilidade: conhecimentos sobre aquelas articulações possíveis
o estágio docente de pós-graduação numa que pudessem ser incorporados ao desenvolvimento
escola pública em João Pessoa curricular e às aprendizagens individuais, tanto do
professorado quanto do alunado, com a realização de
É Castro (2004, p. 14) quem afirma: “no caso três oficinas pedagógicas – duas com o professorado
da extensão, o que percebemos é que ela produz e uma com o alunado – que versassem sobre as arti-
conhecimento a partir da experiência e, assim, tem culações temáticas pretendidas.
capacidade de narrar sobre o seu fazer”. Narrar uma Assim, em maio de 2004, ao sabermos de uma
experiência implica pensá-la. Considerando que nossa demanda de assessoria que a escola havia feito à uni-
reflexão fundamenta-se sobre essa experiência, cum- versidade, preparamos um projeto de extensão que,
pre relatá-la sumariamente, a fim de que seja possível propondo uma articulação entre nossas investigações
compreender o cenário e o processo sobre os quais se doutorais e aquela de nossa orientadora, constituía-se
situa nossa discussão. de três dimensões: a pesquisa, com que começaríamos
Por dois semestres, na condição de alunos do nossa intervenção, a fim de sabermos o que pensavam
doutorado em educação da UFPB, procuramos aplicar professorado e alunado acerca da temática que propú-
o princípio da indissociabilidade ensino-pesquisa- nhamos; o ensino, em torno do qual se organizariam
extensão nas atividades que realizamos no estágio de as oficinas pedagógicas (como uma das atividades
docência em uma escola pública municipal, a serviço concernentes à primeira parte de nosso estágio de
de uma comunidade de baixa renda da periferia da docência doutoral); e a extensão, caracterizada não
cidade de João Pessoa. Em 2004, o estabelecimento só pela natureza extramuros universitários da ativi-
de ensino contava com uma equipa composta por di- dade como pela proposta de prestação de um serviço
retora, vice-diretora, trinta e dois professores e 1.070 demandado pelo professorado daquela escola – e, a
alunos, distribuídos desde a alfabetização à oitava partir dele, útil ao alunado e à comunidade escolar.
série, além de uma turma de aceleração e de Educação Buscávamos, acima de tudo, o diálogo com
de Jovens e Adultos (ciclos 1 e 2), à noite. A unidade aqueles alunos e professores, de modo a fazê-los
de ensino, enquanto lá estivemos, não tinha supervi- mais participantes de seu cotidiano. Mais que levar
sores, orientadores, psicólogos ou assistentes sociais. ideias prontas, queríamos saber o que eles e elas,
O professorado participava de encontros de formação como atores de seu cotidiano, tinham a nos falar e o
continuada, promovidos pela Secretaria Municipal de que poderíamos juntos construir, pelo momento de
Educação até o ano de 2004. oficinas pedagógicas.

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Ensino-pesquisa-extensão

A pesquisa foi, então, o ponto de partida da exten- complementa o cenário em que, em grau crescente
são. Com a construção e aplicação de dois questioná- de abrangência, os âmbitos familiar, comunitário e
rios (um para o professorado e outro para o alunado), midiático aparecem como articulados numa teoria
coletamos dados que nos subsidiaram no planejamento sobre a cultura de violência.
das oficinas. Tais questionários tiveram como objetivo Nessa articulação, não se percebia o lugar da
identificar o nível de conhecimento sobre (e contato escola, por não ser reconhecida como produtora de
com) as temáticas lançadas na atividade de extensão, a violência ou por seus valores ideais serem avessos a
saber: os jogos eletrônicos como recurso pedagógico e ela. A escola era vista apenas como palco de reprodu-
a formação de competência para a gestão e prevenção ção de violência, não de sua produção – esquecendo-
da violência na escola (objetos de pesquisa, respecti- se os docentes de que, com suas especificidades, a
vamente, da autora e do autor deste artigo). escola também participa ativamente dos processos de
Os questionários aplicados a vinte e três profes- violência, seja para fomentá-los, seja para preveni-los
sores continham vinte e oito questões (abertas e fecha- (Ortega & Del Rey, 2002).
das), distribuídas em três partes; as perguntas foram A temática dos jogos eletrônicos, por sua vez,
formuladas para definir o perfil do respondente, sua não era percebida pelo professorado como relevante
experiência com jogos eletrônicos e com a violência para a escola. Entretanto, as respostas do alunado ao
na escola, bem como suas dificuldades e demandas questionário a ele destinado não só afirmaram a im-
relativas ao planejamento escolar e à educação acerca portância dessa temática – atravessada que está pela
das relações de gênero na escola (demanda inicial dos discussão em torno da sexualidade e das relações de
professores). Os questionários aplicados a quarenta gênero – como apontaram para o fato de que, através
e dois alunos continham quatorze questões (abertas do jogo, são reproduzidas relações de poder entre ho-
e fechadas) que visavam definir o perfil do respon- mens e mulheres, por meio de um padrão social de in-
dente, sua experiência com jogos eletrônicos e com a clusão/exclusão apontado por Elias e Scotson (2000).
violência na escola, bem como sua percepção sobre Ao analisar as respostas dos alunos da escola para a
as relações de gênero na escola. pergunta “Quem joga mais: meninos ou meninas?”4
Os dados obtidos mostraram-nos que, no tocante
às temáticas de nossos interesses, apenas a da violência
Desse modo, o ambiente é hostil, e nele as famílias eram represen-
era percebida pelo professorado como um problema
tadas também como violentas.
presente na escola, demandando soluções para o que
4
Algumas das respostas do alunado são bem ilustrativas: “Eu
seria uma banalização das situações de violência
acho quem joga mais são os meninos”, “tem menina que joga no
interpessoal consideradas menos graves.2 As causas
shopping center, mas elas são sapato [gíria de caráter pejorativo
apresentadas para a violência na escola revelaram
para denominar uma lésbica]”; “Eles sabem mais que as meni-
hipóteses socioambientais implícitas, particularmen-
nas”, “Só vejo meninos jogando no Playstation”. Os meninos,
te de caráter psicológico.3 A referência à televisão
como grupo estabelecido, intitulavam-se os melhores jogadores,
como os que sabem, defendem aquele espaço como só deles. As
2
Particularmente as agressões morais, verbais, sobre as quais meninas constituíam o grupo novo que estava entrando naquele
escreveram os próprios professores: “é normal”, “tem em qualquer espaço, tornando-se assim ameaça ao poder dos já estabelecidos.
escola”, “sem consequência grave”. Considerados “melhores”, se sentem dotados de uma espécie de
3
A família e a exposição a mídias violentas são consideradas virtude que é compartilhada pelos membros de seu grupo e que
responsáveis pela conduta violenta do alunado. Este último aspecto falta aos outros (no caso, às meninas). Por outro lado, as meninas
explicativo permitiu pensar na relação entre escola e comunidade. afirmam que “a mãe não deixa”, ali é um espaço “só para homem,
O bairro em que se situa a escola era visto como perigoso, graças à porque menina não é para jogar”. As meninas menosprezam-se,
ação de gangues organizadas em torno do tráfico de entorpecentes. considerando-se com menos habilidade para jogar.

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Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita e Fernando Cézar Bezerra de Andrade

constatamos que, no que tange aos jogos eletrônicos, transformação social” (Melo Neto, 2003, p. 15).
eles são uma prática que, tal qual a violência, reafirma Após uma visita de avaliação dos trabalhos, em
dentro e fora da escola relações desiguais, cabendo à dezembro de 2004, percebemos em janeiro de 2005
escola a tarefa de questionar os valores e as práticas a possibilidade de continuarmos nosso estágio de
que circulam com os jogos e a violência. docência na escola, graças ao convite da direção para
Ora, foi exatamente para pôr em questão essas participarmos do momento de planejamento escolar,
relações, reconhecidas ou não pela escola, que pro- no início de fevereiro. O pedido inicial (“ajuda no
movemos as oficinas pedagógicas em 2004. Plane- planejamento”) convidou-nos a nova pesquisa, a fim
jadas a partir dos resultados obtidos com a pesquisa de sabermos, desta feita, quais as demandas próprias
durante os meses de maio a julho e executadas entre àquele momento do ano letivo e em que medida pode-
12 e 14 de julho, as oficinas inspiraram-se no tema ríamos ajudar o professorado a lidar com elas.
das Olimpíadas (que estavam para ocorrer, à época) Elaboramos novo questionário, a fim de compor
e desenvolveram o lema “Eles, Elas: Elos na Escola”, o perfil e a experiência profissional do professorado e
a fim de articular (“elos”) a temática das relações de conhecer detalhadamente suas demandas de assesso-
gênero (“eles, elas”) detectada na pesquisa com o ria para o planejamento, aprofundando então nossos
universo escolar (“na escola”). conhecimentos sobre aquele grupo.
Tais oficinas tiveram caráter nitidamente associado Destacamos aqui apenas os dados mais relevantes
às atividades de ensino, momento em que pretendemos, dessa segunda pesquisa: considerando que o quadro
na condição de estagiários em docência, apresentar, docente participante das pesquisas foi majoritaria-
sob nova roupagem, facetas não exploradas (como era mente mantido, houve possibilidade de articulação
o caso dos jogos) ou banalizadas (como era o caso da entre a pesquisa de 2004 e a de 2005. Uma quase total
violência) no cotidiano do alunado, demonstrando, so- ausência de contato com computadores, internet ou
bretudo para o professorado, ser possível incorporá-las jogos eletrônicos ajudou a entender por que o profes-
às atividades de ensino promovidas na escola, através de sorado não tinha estabelecido qualquer relação entre
temas transversais ao currículo (como ética e orientação os jogos e a vida na escola. Além disso, as reações
sexual). Pretendemos, assim, contribuir com a formação que o professorado afirmou experimentar diante da
continuada dos educadores da escola. violência na escola (tristeza, sobretudo, e calma como
O planejamento, a execução e o material pro- condição para a intervenção com vistas à solução do
duzido pelo professorado e pelo alunado durante as conflito pelo diálogo, a conversa entre agressor/a e
oficinas, assim como dois jogos eletrônicos idealizados agredido/a) foram mais bem compreendidas quando se
especialmente para uso na escola foram compilados reconheceu que elas indicaram ser a agressão moral o
entre agosto e novembro de 2004, em um CD-ROM tipo de violência mais significativamente provocador
produzido por nós como resultado desse trabalho, de reação do professorado, não só por ser percebido
oferecido à escola e a algumas outras unidades da rede como o mais frequente, mas por não implicar neces-
municipal de ensino em novembro de 2004 como for- sariamente riscos à vida nem recurso à força física.
ma de multiplicação das aprendizagens lá realizadas; As dificuldades apontadas quando da realização
ele visou também intervir no cotidiano da escola aten- do planejamento indicaram, em particular, problemas
dida, assumindo assim o caráter de recurso didático em executar os planos de curso (46,7%), por razões
(Moita e Andrade, 2004). Completou-se, desse modo, que as outras variáveis apontadas pelo professorado
o caráter dialogal próprio à extensão, entendida como – carência de material e de livros, dificuldades em ge-
“um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se renciar a relação entre plano e tempo de sua execução,
constitui a partir da realidade e sobre essa realidade distância entre os planos escolares e a vida do alunado
objetiva, produzindo conhecimentos que visam à (o qual se tornaria desmotivado) – ajudam a esclarecer.

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Ensino-pesquisa-extensão

As demandas do professorado revelaram, por fim, e educadoras da rede pública de ensino fundamental
a necessidade de um aprofundamento docente no que – caracterizada por lacunas e por problemas, mas tam-
se refere ao uso de jogos, de dinâmicas e de atividades bém por sucessos e realizações em meio a condições
lúdicas para a apresentação de conteúdos formais e de materiais e pedagógicas adversas.
temáticas transversais na escola, associada à demanda
por material didático. A indissociabilidade na pós-graduação
Como tínhamos sido chamados para ajudar no não é só possível: é necessária
planejamento, foram as demandas mais especifica-
mente relativas a esse momento que determinaram Como se discutiu, a indissociabilidade pesquisa-
os rumos da etapa dedicada ao ensino nas atividades extensão-ensino convoca os professores universitários
de extensão em 2005: a partir delas, foi planejada à articulação de saberes. Ora, isso é particularmente
e organizada uma oficina pedagógica intitulada importante para os que atuam na pós-graduação,
“Vivendo e aprendendo”, enfocando a temática da pois devem ensinar a pesquisar. O reconhecimento
formação ética na escola, por meio de três dinâmicas da indissociabilidade deveria promover uma nítida
de grupo, escolhidas por serem também utilizáveis articulação entre aquelas três atividades acadêmicas,
em sala de aula pelo professorado participante. Re- em que o professor da pós-graduação, como orienta-
alizada em 22 de fevereiro de 2005, a oficina pro- dor, tem papel de motivador, supervisor e avaliador
porcionou às participantes (apenas mulheres, desta de todo o processo de pesquisa em que se encontram
feita) descobertas em relação à semelhança entre suas seus alunos, ajudando-os a enxergar nessa atividade
condutas nas dinâmicas e as condutas do alunado uma ética balizada pelo bem-estar das comunidades
sob seus cuidados, bem como a discussão acerca da envolvidas nas pesquisas.
possibilidade de aplicar as temáticas transversais aos Não obstante, não é isso que se dá. Um dos efeitos
conteúdos curriculares – incluindo aí as experiências da inobservância do princípio de indissociabilidade
e as práticas do alunado.5 pelos professores da pós-graduação é o esquecimento
Entendemos que a oficina realizada em 2005 dessa ética científica, que se torna evidente na des-
também pode ser caracterizada como um projeto rea- confiança entre as comunidades que participam da
lizado no interior dessa atividade de assessoria que, investigação e o pesquisador em formação, a provocar
articulando ensino, pesquisa e extensão, atendeu, no um distanciamento entre os resultados da pesquisa e
que tange ao ensino, à necessidade de treinamento das sua aplicação na vida da população: parece-nos que
professoras e ao cumprimento das atividades concer- os professores orientadores têm responsabilidade
nentes a nosso estágio de docência. É essa articulação decisiva nessa falha.
entre ensino, pesquisa e extensão que entendemos ser Assim, por mais proclamado que seja, o princípio
possível e necessária, pois, mais uma vez buscando da indissociabilidade entre pesquisa, extensão e ensino
pôr em prática o princípio da imbricação entre ensino, termina por ser esquecido na prática universitária, tal
pesquisa e extensão universitários, aproxima-se um como ocorre na pós-graduação. É frequente que os
pouco mais da realidade local vivida pelos educadores pós-graduandos sejam encontrados apenas nas salas de
aula da graduação (no caso dos mestrandos) e da pós-
5
O feedback apresentado por algumas delas dá conta desse graduação (no caso dos doutorandos), esquecendo-se
efeito: “Adorei as dinâmicas trabalhadas neste encontro, pois bene- de que, além das salas de aula universitárias, é possível
ficiam todos os conteúdos de sala de aula”; “Foi muito importante – e necessário – também encontrar campo de estágio
para nossos conteúdos serem aplicados”; “Gostei, foi de acordo docente fora dos muros acadêmicos.
com nossa necessidade!”; “Eu adorei essa oficina e realmente Essa prática, que continua a reproduzir-se, está
aproveitarei tudo o que eu aprendi hoje. Obrigada!”. estruturada sobre uma clara hierarquia: se a graduação

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Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita e Fernando Cézar Bezerra de Andrade

tornou-se o lugar do ensino, a pós-graduação tornou- Como pretendemos mostrar, a assessoria desen-
se o da pesquisa, sendo que tanto a extensão quanto o volvida junto à escola referida demandou de nós a
ensino são considerados tarefas inferiores à pesquisa. pesquisa, para que conhecêssemos a realidade com
Na pós-graduação, a extensão é relegada, como se não que trabalharíamos: a pesquisa pode ser considerada,
pertencesse àquela indissociável articulação sobre a assim, usando ainda a imagem de Valêncio (2000), a
qual se fundamenta a universidade brasileira. Corro- voz desse outro constituído pela realidade social. Se
bora essa análise a posição de Valêncio, que afirma: não levássemos em conta essa voz, nada teríamos a
“Os ‘competentes’ em pesquisa e pós-graduação dizer que pudesse ser efetivamente assimilável pelo
proclamam-se superiores aos que se dedicam ao ensino professorado e pelo alunado da escola. E mais: a pes-
de graduação e abandonam essa atividade para dispor quisa gerou publicações que socializaram alguns dos
de mais tempo para a produção científica”, de modo conhecimentos produzidos na experiência.
que se criam “desprezos de mão dupla” (Valêncio, Demandou, também, o ensino – posto que tínha-
2000, p. 75), a distanciar ensino de pesquisa, pesquisa mos algo a falar para esse outro. Nossa intervenção
de extensão, extensão de ensino, numa prática que docente, nesse sentido, buscou ressaltar certos va-
contraria o princípio da indissociabilidade. lores tacitamente presentes nas práticas docentes e
Ora, a mesma autora indica que as tensões inter- discentes: por que os jogos não fariam parte da vida
nas à universidade remetem à questão da legitimação da escola, se alunos e alunas (aqueles bem mais que
da educação superior no diálogo com a sociedade em estas) jogam? Como o professorado poderia tratar da
que (e para que) surge a academia. No que tange à violência na escola sem incluir-se como possível agen-
extensão, em particular, a indissociabilidade oferece te legitimador de violência, reproduzindo inconscien-
à formação discente um espaço capaz de “permitir a temente estereótipos opressivos, como os de gênero?
atualização dos conteúdos programáticos e simultane- Buscou, igualmente, fornecer material e experiên-
amente embasar os novos profissionais numa ética de cia para os/as docentes aprenderem meios de incluir
cidadania” (idem, ibidem, p. 79). Pesquisa, ensino e a ludicidade no seu ensino, a fim de trabalhar melhor.
extensão articulam-se, destarte, na formação acadêmi- Como manter motivado o alunado para a aprendiza-
ca, de modo a promover uma consciência profissional gem dos conteúdos quando falta a formação docente
eticamente fundamentada e empiricamente atualizada. acerca de métodos para diversificar o ensino?
Esse ideal apontado pela autora é capaz de rever- Assim, o ensino consistiu de ocasiões para a refle-
ter o quadro real de apartação entre ensino, pesquisa e xão e a (re)construção de conceitos e valores em que
extensão? Acreditamos que sim, se for tomado cons- estavam mergulhados o alunado e o professorado, mas
cientemente como eixo orientador dos trabalhos uni- também para a aprendizagem de técnicas pedagógicas
versitários. Em nosso caso, enquanto pós-graduandos, capazes de tornar a aprendizagem dos conteúdos mais
acreditamos que o estágio de docência consiste numa prazerosa, numa perspectiva mais dialogal, reflexiva e
oportunidade particularmente fecunda para o exercício criativa, a fim de ressignificar suas práticas. Ao evitar
da indissociabilidade. métodos tradicionais de transmissão de conteúdo,
Esse estágio por nós descrito pode servir como procuramos discutir, com didáticas mais dinâmicas,
bom exemplo para tanto: realizado fora dos muros as temáticas selecionadas: elas evocaram diferentes
universitários, buscando “uma reelaboração compar- fatores relacionados à prática daqueles professores
tilhada do mundo aspirado, refletivo e vivido” (idem, e professoras – fatores esses que, por vezes contra-
ibidem, p. 79) na relação entre universidade e socie- ditórios, emergiram de sorte a enriquecer o processo
dade, ele nos conduziu à articulação entre pesquisa, de ensino e aprendizagem naquela escola, já que se
ensino e extensão numa partilha de saberes entre passou a considerar toda a complexidade das relações
pesquisadores e utilizadores (Santos, 2004). implicadas nas práticas docentes. Vemos nisso o que

278 Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009


Ensino-pesquisa-extensão

Woods (1995) afirma acerca da necessidade de alar- CASTRO, Luciana Maria Cerqueira. A universidade, a extensão
gar as opções metodológicas e epistemológicas para universitária e a produção de conhecimentos emancipadores. In:
que o ensino, cada vez menos conformista, seja mais REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27., Caxambu, 2004. Anais...
criativo e dinâmico. Caxambu: ANPEd, 2004. Disponível em: <http://www.anped.org.
Tal pensamento foi inspirador para a assessoria, br/reunioes/27/inicio. htm>. Acesso em: 10 dez. 2004.
que exigiu de nós, ainda mais, sermos capazes de con- ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders:
ceber, organizar e executar projetos de extensão que sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comuni-
atendessem, pontual e localmente, certas demandas de dade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
formação do professorado e de reflexão do alunado. ESCOBAR, Arturo. Actores, redes e novos produtores de conhe-
Diferentemente dos “ressentimentos de mão dupla”, a cimento: os movimentos sociais e a transição paradigmática nas
extensão apareceu, nesse contexto, tanto como decor- ciências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento
rência natural do ensino e da pesquisa quanto como prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p.
fonte para ambos (já que, sem as demandas da escola, 639-666.
não haveria pesquisa nem ensino, em nosso caso). FAGUNDES, José. Universidade e compromisso social: extensão,
Daí afirmarmos a necessidade da indissociabi- limites e perspectivas. Campinas: Editora UNICAMP, 1986.
lidade na pós-graduação. A extensão e o ensino não FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 5. ed. Rio de Janeiro:
são acessórios à pesquisa, mas continuações naturais Paz e Terra, 1980.
dela, se a produção científica do conhecimento quiser GURGEL, Roberto Mauro. Extensão universitária: comunicação
ser efetiva e intervir para modificar a realidade estu- ou domesticação? São Paulo: Cortez/Autores Associados; Forta-
dada – voltando a enriquecer-se, nesse processo, por leza: UFC, 1986.
dela alimentar-se continuamente. Donde não haver MAGNANI, Ivetti. Ensino, pesquisa, extensão e a nova tipologia
relevância social da pesquisa sem a indissociabilidade. do ensino superior brasileiro. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED,
O ensino na pós-graduação também se alimenta 25., Caxambu, 2002. Anais... Caxambu: ANPEd, 2002. Disponível
da extensão e a ela serve. Cremos ser nossa experiência em: <http://www2.uerj.br/~anped11>. Acesso em: 25 maio 2005.
também uma prova disso, pois, como pós-graduandos MELO NETO, José Francisco. Extensão Universitária: bases
extensionistas, tínhamos certo conhecimento a ofere- ontológicas. João Pessoa: Editora Universitária, 2002.
cer – particularmente aquele produzido em torno das . Extensão universitária e produção do conhecimento.
relações de gênero, da competência para prevenir Revista da ADUF/PB, n. 9, p. 13-17, jan./jun. 2003.
ou gerir a violência na escola, dos jogos eletrônicos MENESES, Maria Paula Guttierrez. Agentes do conhecimento? A
e do recurso a dinâmicas de grupo para o ensino de consultoria e a produção do conhecimento em Moçambique. In:
temáticas transversais. Mas tal conhecimento só se SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente
efetivou quando foi posto à prova da avaliação de para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 721-756.
quem iria utilizá-lo – o professorado da escola, em MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da “ciência”:
nossa experiência. colonidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade
O estágio de docência parece-nos, por conseguin- epistémica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conheci-
te, uma rica (e ainda não suficientemente explorada) mento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.
oportunidade para o exercício da indissociabilidade p. 667-710.
das atividades acadêmicas na pós-graduação. MOITA, Filomena M. Gonçalves da Silva Cordeiro; ANDRADE,
Fernando Cézar Bezerra. Eles, elas: elos na escola. João Pessoa:
Referências bibliográficas Moita/Andrade, 2004. 1 CD-ROM.
MORA-OSEJO, Luis Eduardo; BORDA, Orlando Fals. A supe-
BOTOMÉ, Silvio Paulo. Pesquisa alienada e ensino alienante: ração do eurocentrismo. Enriquecimento do saber sistémico e
o equívoco da extensão universitária. Petrópolis: Vozes, 1996. endógeno sobre nosso contexto tropical. In: SANTOS, Boaventura

Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009 279


Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita e Fernando Cézar Bezerra de Andrade

de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. Paraíba (UFPB), é professora no Departamento de Letras e Edu-
São Paulo: Cortez, 2004. p. 711-720. cação da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicações
ORTEGA, Rosário; DEL REY, Rosário. Estratégias educativas recentes: Game on: os jogos eletrônicos na escola e na vida da
para a prevenção da violência. Brasília: UNESCO/UCB, 2002. geração arroba (São Paulo: Alínea, 2007) e organizadora de Jogos
PEREIRA JÚNIOR, Alfredo. A universidade pública e os desafios eletrônicos: construindo novas trilhas (Campina Grande: EDUEP,
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SANTOS, Boaventura Sousa. A universidade no século XXI. São “Second life: estudo correlacional de interface virtual e estratégias
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extensão universitária? In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 23., FERNANDO CÉZAR BEZERRA DE ANDRADE, doutor
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VALÊNCIO, Norma Felicidade Lopes da Silva. A indissociabili- tamento de Fundamentação da Educação. Publicações recentes:
dade entre ensino/pesquisa/extensão: verdades e mentiras sobre o Competência para fazer face à violência: definindo a competência
pensar e o fazer da Universidade Pública no Brasil. Proposta, n. inter-relacional do(a) educador(a) no manejo da violência na escola
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WOODS, Peter. Aspectos sociais da criatividade do professor. Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)/Conselho
In: NÓVOA, António (Org.). Profissão professor. Porto: Porto Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq):
Editora, 1995. “Competência inter-relacional e percepção de violência na escola”.
E-mail: frazec@uol.com.br
FILOMENA MARIA GONÇALVES DA SILVA CORDEI- Recebido em abril de 2008
RO MOITA, doutora em educação pela Universidade Federal da Aprovado em abril de 2009

280 Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009


Resumos /Abstracts/Resumens

of children’s social networks in a comprensión contextual y no como más violência e jogos eletrônicos. Defende-
community on the outskirts of the un “modismo educativo”, esta pesquisa se que a indissociabilidade entre en-
city of Recife investigó las prácticas y eventos de sino, pesquisa e extensão ainda não é
In the diagnoses and guiding letramento en una comunidad de levada em conta na prática de muitos
documents on public policies in la ciudad de Recife a partir de los docentes, seja porque na graduação
education, children coming from low- momentos de interacción de los niños dá-se ênfase ao ensino, seja porque
income communities are commonly con la escrita, bajo la óptica de sus na pós-graduação a ênfase incide na
associated with the idea of school redes sociales de origen común. La pesquisa. Argumenta-se, ainda, que o
failure. Believing that the discussion perspectiva metodológica se caracterizó estágio de docência na pós-graduação é
on literacy only makes sense if it is por la aplicación del mapa de redes con uma excelente oportunidade de praticar
approached taking as its starting point los niños, entrevistas y observaciones. a indissociabilidade defendida.
conditions that make possible their El reconocimiento de las prácticas de Palavras-chave: indissociabilidade
contextual understanding and not as letramento constituye redefiniciones en entre ensino, pesquisa e extensão; pós-
yet another “educative vogue”, this las situaciones de interacción, pues, a graduação; estágio de docência.
research investigated the practices medida que los niños pasan a confiar
Teaching, researching and extension:
and events of literacy in a community en el “otro”, construyen un factor de
an experience of linking in the
in the city of Recife based on moments valorización que los lleva a considerar
Brazilian post-graduation
of interaction of children with the que es significativo participar de los
It is argued that the connection
written word, from the perspective eventos en que la lectura y la escrita
between the activities of teaching,
of the social networks to which they son cruciales para hacer sentido en sus
researching and extension as a
belong. The methodological approach relaciones sociales.
guiding principle to the quality of
was characterised by the application Palabras claves: redes sociales;
the superior education. Although we
of the map of networks with children, letramento; medios populares.
consider the important links that can
interviews and observations. The
be established between only two of
recognition of literacy practices Filomena Maria Gonçalves da Silva those activities, we argue that the
constitute redefinitions in situations of Cordeiro Moita e articulation of those three activities
interaction, because, as the children Fernando Cézar Bezerra de Andrade prevents isolated practices verified in
begin to trust in the “other”, they build
Ensino-pesquisa-extensão: um superior education. Guided by that
a valuation factor which leads them to
exercício de indissociabilidade na principle, as post-graduation students,
consider that it is meaningful to take
pós-graduação we accomplished an intervention in
part in events in which reading and
Discute-se a indissociabilidade ensino- a public local school in João Pessoa
writing are crucial for making sense of
pesquisa-extensão como princípio (PB). That intervention is presented
their social relations.
orientador da qualidade da produção in this text as an experience that
Key words: social networks; literacy;
universitária. Embora se reconheça aimed to link scientific discoveries
popular environments.
a importância de articulações duais and the educators’ and students’
Prácticas y eventos de letramento (entre ensino e pesquisa, pesquisa e understanding about the articulation
en medios populares; un análisis de extensão ou extensão e ensino), defen- of gender relationships, violence
las redes sociales de niños de una de-se um princípio que impede redu- and electronic games in school. Two
comunidad de la periferia de la cionismos verificados nas atividades central ideas are supported: first, the
ciudad de Recife universitárias. Guiados por essa com- connection between teaching, research
En los diagnósticos y documentos preensão, durante o estágio de docên- and extension is not still taken into
orientadores de las políticas públicas cia, os autores realizaram um exercício account in practice of many professors
de educación, los niños provenientes da indissociabilidade, que consistiu in universities, either because in the
de comunidades de bajo poder numa experiência visando a relacionar graduation the emphasis is on teaching,
adquisitivo es común asociarlos a la o conhecimento científico e o saber de or because in post graduation the
idea de fracaso escolar. Creyendo que educadores e educandos de uma escola emphasis is on research. Secondly, post
la discusión sobre el letramento sólo pública em João Pessoa (PB), a fim graduation is an excellent occasion to
tiene sentido si fuera abordada a partir de produzir conhecimento acerca da practice the connection between the
de condiciones que hagan posible su articulação entre relações de gênero, three academic activities.

392 Revista Brasileira de Educação v. 14 n. 41 maio/ago. 2009


Resumos/Abstracts/Resumens

Key words: connection between de la Educación de la República understand its present configuration;
academic activities; teaching, research Argentina (CTERA) the process of the teaching work; and
and extension; post graduation. Inserido nos debates a respeito da di- the importance of the gender in order
cotomia entre “proletarização” e “pro- to compose the existing representations
Enseñanza-investigación-extensión:
fissionalidade” do trabalho docente, o on the occupation. The results indicate
práctica de la inseparabilidad en la
texto destaca significados oferecidos that, in the elaboration of union
pos-graduación
por dirigentes da CTERA aos concei- members, there is no contradiction
Se discute la inseparabilidad
tos de “trabalhador em educação” e between being a worker and seeking
enseñanza-investigación-extensión
de “profissional docente”. Os dados the professionality. The defense of
como un principio orientador de la
foram obtidos por meio de entrevistas the identity of the education worker
calidad de la producción universitaria.
semiestruturadas, realizadas com um articulates the fight against the
Aunque se reconozca la importancia de
homem e duas mulheres. O referencial removal of working rights and the
articulaciones duales (entre enseñanza
sustenta-se em análises que interpretam protagonic role of the teachers in the
e investigación, investigación y
a gênese da ocupação como forma development of educational projects.
extensión o extensión y enseñanza),
de compreender sua atual configura- Key words: teaching work; teacher
se defiende un principio que impide
ção; o processo de trabalho docente; unionism; teacher professionality
los reduccionismos verificados
e a importância do gênero para tecer education; workers; CTERA.
en las actividades universitarias.
as representações existentes sobre a
Guiados por esa comprensión, “Discutir educación es discutir
ocupação. Os resultados indicam que,
durante la práctica de docencia, los trabajo docente”: el trabajo
na elaboração dos sindicalistas, não
autores realizaron un ejercicio de docente según sindicalistas de la
há contradição entre ser trabalhador e
inseparabilidad, que consistió en una Confederación de Trabajadores
buscar a profissionalidade. A defesa da
experiencia enfocando relacionar de la Educación de la República
identidade de trabalhador em educação
el conocimiento científico y el saber Argentina (CTERA)
articula a luta contra a retirada de direi-
de educadores y educandos de una Formando parte de los debates
tos trabalhistas e o papel protagonista
escuela pública en João Pessoa (PB), acerca de la dicotomía entre
do professorado no desenvolvimento
a fin de obtener conocimiento acerca “proletarización” y “profesionalidad”
de projetos educacionais.
de la articulación entre relaciones de del trabajo docente, este artículo
Palavras-chave: trabalho docente;
género, violencia y juegos electrónicos. destaca significados ofrecidos por
sindicalismo docente; profissionalidade
Se defiende que la inseparabilidad sindicalistas pertenecientes a la
docente; trabalhadores em educação;
entre enseñanza, investigación y CTERA a los conceptos de “trabajador
CTERA.
extensión aún no se toma en cuenta de la educación” y “profesional
en la práctica de muchos docentes, “Discussing education is discussing docente”. Los datos fueron
sea porque en la graduación se da the teaching work”: the teaching obtenidos por medio de entrevistas
énfasis a la enseñanza, sea porque work according to Confederación semiestructuradas, realizadas con
en la pos-graduación el énfasis cae de Trabajadores de la Educación de un hombre y dos mujeres. El marco
en la investigación. Se argumenta, la República Argentina (CTERA) teórico está basado en análisis que
además, que la práctica de docencia coordinators interpretan la génesis del oficio
en la pos-graduación es una excelente Inserted in the debates como forma de comprender su actual
oportunidad para practicar la concerning the dichotomy configuración; el proceso de trabajo
inseparabilidad defendida. between “proletarianization” and docente; y la importancia del género
Palabras-claves: inseparabilidad entre “professionality” of the teaching para construir las representaciones
enseñanza; investigación y extensión; work, the text highlights meaning existentes sobre el oficio. Se constata
pos-graduación; práctica de docencia. offered by the CTERA coordinators to que, para los sindicalistas, no hay
the concepts of “education workers” contradicción entre ser trabajador y
Márcia Ondina Vieira Ferreira and of “teaching professional”. The buscar la profesionalidad. La defensa
data were obtained through semi- de la identidad de trabajador de la
“Discutir educação é discutir structured interviews, done with a educación articula la lucha en contra
trabalho docente”: o trabalho man and two women. The referential is de la reducción de derechos laborales
docente segundo dirigentes da based on analysis which interpret the y el protagonismo del profesorado en
Confederación de Trabajadores genesis of the occupation as a way to el desarrollo de proyectos educativos.

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