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País: Portugal Cores: Cor

Period.: Diária Área: 25,70 x 31,00 cm²

ID: 86055598 19-04-2020 Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 2

CULTURA

Um livro de oração p
O Livro de Horas de D. João II, descoberto numa colecção
particular, está agora a ser estudado. Encomendado pelo
Príncipe Perfeito, que antes de ser rei já se ocupava da
exploração marítima, tem um calendário a ela adequado
de Horas do Príncipe Perfeito. Este (Maria Adelaide Miranda, Del-
História tipo de livro tão ao gosto das elites dos mira Espada Custódio e Carlos
Lucinda Canelas séculos XV e XVI, por regra ricamen- Manuel Pereira Fontes), do
te ilustrado com iluminuras da vida Centro Interuniversitário de
Um homem muito inteligente, de uma de Cristo, da Virgem Maria e dos san- História das Ciências (Henri-
perspicácia extraordinária e com um tos, foi criado no século VIII e desti- que Leitão e José Madruga Car-
apurado sentido político. Profunda- nava-se à devoção privada dos leigos valho) e do de Estudos Clássi-
mente religioso, como era comum (crentes não religiosos). Incluía, para cos da Faculdade de Letras
entre os monarcas europeus do seu isso, um calendário anual de festas (Aires Augusto Nascimento),
tempo, sabia rodear-se de bons con- ambos da Universidade de Lis-
selheiros e tinha uma personalidade boa, é absolutamente singular.
fortíssima, que não deixava indiferen-
tes aqueles que com ele conviviam, “Verdadeira raridade”
pelo menos a avaliar pelos relatos que Com 115X80mm (formato de
do seu reinado fazem secretários e bolso), executado em velino,
cronistas. “Pelo que nos contam Gar- Não é habitual ter com mais de 200 fólios e 22 ilu-
cia de Resende e outros, podemos minuras de página inteira (falta-
dizer que as pessoas Æcavam impres- num livro de lhe apenas uma), é uma “verda-
sionadas com o rei e consideravam devoção privada deira raridade”, porque foi
um privilégio privar com ele”, diz o encomendado por um rei, está
historiador Francisco Contente um calendário escrito em latim e português,
Domingues, ao concluir um retrato com informação inclui um “calendário de rigor
sumário de D. João II, o Príncipe Per- cientíÆco” e, ao que tudo indica,
feito, Ægura decisiva do projecto de astronómica [certa] é de produção nacional, explica
exploração marítima português na Henrique Leitão Delmira Custódio. A juntar a tudo
segunda metade do século XV. Historiador de ciência isto está o facto de o dito calendário ções”, diz esta investigadora na área ta da mão de Ortiz de Vilhegas, conhe-
Antecessor de D. Manuel I, o ter sido feito por D. Diogo Ortiz de da história de arte que se especializou cido como o Calçadilha por referência
monarca a quem a maioria associa os litúrgicas e salmos, e organizava o Vilhegas (nome aportuguesado), um em manuscritos iluminados. “É o fac- à localidade perto de Cáceres onde
Descobrimentos, D. João II (1455-1495) ritual das orações ao longo do dia, matemático e prelado castelhano que to de sabermos, pela inscrição no nasceu, em 1457, e do carácter “não
foi um homem-chave na chamada atribuindo-lhes horas, ou melhor, chegou ao país em 1476 na comitiva calendário do livro, que é ele o seu usual” do calendário incluído neste
primeira globalização, tendo chegado momentos especíÆcos. da princesa D. Joana, a sobrinha e autor e que o encomendante é o rei, Livro de Horas.
a ver Bartolomeu Dias contornar o Tendo todas estas características segunda mulher de Afonso V, e que de quem era muito próximo, que nos “Não é habitual ter num livro de
Cabo da Boa Esperança em 1488, gerais que o equiparam a um comum viria a desempenhar importantes permite dizer que foi feito de propó- devoção privada, para usar na intimi-
ligando os oceanos Atlântico e Índico Livro de Horas, o que está agora a ser funções na corte de outros dois reis sito para D. João II e a seu pedido.” dade, um calendário com informação
e deixando aberto o caminho maríti- estudado por uma equipa multidisci- de Portugal, D. João II e D. Manuel I. A dita inscrição — “composto pelo astronómica precisa, que corrige as
mo para a Índia passando pelo sul do plinar que reúne, entre outros, inves- “Vilhegas é um grande cosmógrafo, lece[n]ciado calcadilha per mandado posições dos números de ouro, liga-
continente africano, trajecto cumpri- tigadores do Instituto de Estudos um astrónomo, a trabalhar numa cor- Del rei ao meridiano e ladeza de dos à lua”, explica Henrique Leitão,
do pela primeira vez por Vasco da Medievais da Universidade Nova te que é um epicentro das navega-
avega- Lixboa o anno de 1483” — dá-nos con- historiador de ciência que faz parte
Gama pouco depois da morte do
monarca (1497-98).
É por estas e por outras razões que
a identiÆcação de qualquer documen-
to potencialmente associado a D. João
II suscita a curiosidade dos historia-
dores e em se tratando, como aqui,
de um Livro de Horas, também dos
historiadores de arte.
Foi em meados de Março que o
semanário Expresso noticiou que
investigadores do Instituto de Estudos
Medievais (IEM) da Universidade
Nova de Lisboa (UNL) tinham identi-
Æcado em Setembro do ano passado
e numa colecção particular portugue-
sa aquele que acreditavam ser o Livro
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ara um rei navegador


do grupo de investigadores dado, diz o investigador. Francisco embora não consiga ainda identiÆcá- em contacto com o dono deste livro
que estuda este manuscrito Contente Domingues concorda, mas los. “Agora temos de voltar a passar a de orações com mais de 500 anos e
iluminado, núcleo que já fez faz questão de relativizar o papel da pente Æno toda a iluminura feita não pôde, por isso, averiguar se ten-
a sua transcrição e identiÆcou chamada “junta de matemáticos” durante o reinado de D. João II. E tal- ciona vendê-lo, nem sequer se terá já
vários dos proprietários que (Ortiz de Vilhegas, e os mestres José vez nunca venhamos a saber quem mandado avaliá-lo. Sabe, no entanto,
teve desde que foi composto, Vizinho e Rodrigo das Pedras Negras) são os artistas deste livro.” que até ao momento a Direcção-Geral
há quase 540 anos. a quem D. João II conÆou a tarefa de Há na maioria destas iluminuras do Património Cultural (DGPC), enti-
Recorrendo aos seus avaliar a proposta de exploração dos uma linha negra muito precisa que dade a que pertence o MNAA, insti-
conhecimentos de astrono- mares de Cristóvão Colombo, que em parece estar lá para corrigir a Ægura, tuição que seria um destino possível
mia e matemática, o prelado 1492 e ao serviço da concorrência (os o desenho, acrescenta esta investiga- para este volume caso o Estado viesse
castelhano vai ao pormenor reis católicos, Fernando e Isabel) aca- dora do IEM. E isso acontece porque a comprá-lo, ainda não recebeu qual-
de levar em conta as coorde- bou por descobrir a América quando pode ter sido feito por um mestre e quer proposta de aquisição. A Torre
nadas da cidade de Lisboa se julgava a caminho da Índia. um aprendiz. “Neste livro há correc- do Tombo (TT), serviço dependente
para colocar as fases da lua “Não existe uma estrutura formal ções, o que não existe, por exemplo, da Direcção-Geral do Livro, Arquivos
nos dias certos, algo que não com aquilo a que hoje chamaríamos nas Perfeitíssimas Horas da Rainha D. e Bibliotecas (DGLAB), outra das
é feito num calendário litúr- cientistas, matemáticos, na corte de Leonor, Livro de Horas da mulher de moradas prováveis, também não.
gico tradicional e que tem D. João II. O que existe, como noutras, D. João II, uma obra Çamenga. Não “Não tivemos qualquer contacto do
implicações na data em que são conselheiros. Ortiz é um dos tendo a mesma qualidade, o livro do proprietário ou de outra pessoa em
se celebra a Páscoa, acres- astrólogos do rei — os seus conheci- seu nome”, diz Silvestre Lacerda, res-
centa o historiador. mentos dos astros também são usa- ponsável máximo da DGLAB e, por
“O que acontecia com um dos com intuitos divinatórios. Tudo inerência, director da Torre do Tom-
calendário tradicional é que se mistura porque a ciência como bo, o mais importante dos arquivos
dizia que a lua ia estar cheia hoje a vemos não existia. O próprio nacionais. “De qualquer forma, seria
no dia tal e saía-se à rua e não [matemático] Pedro Nunes foi astró- mais lógico que a compra de um volu-
estava ainda — a observação logo de D. João III”, diz Contente Grande interesse me desta natureza fosse proposta à
astronómica contrariava o Domingues, lembrando que D. João Biblioteca Nacional [de Portugal,
calendário. Ora, o Ortiz faz II dava grande importância às nave- histórico por ter BNP], para onde, aliás, já transferi-
um calendário em que uma gações, mas não mais do que a outros sido feito para D. mos Livros de Horas da colecção da
e outra coisa coincidem. Põe aspectos da governação do reino, em Torre do Tombo.” Até à hora do fecho
as luas nos dias certos, como particular o que dizia respeito à suces- João II, com um desta edição não foi, no entanto, pos-
aliás já se fazia nos calendá- são depois da morte do seu herdeiro bispo-cosmógrafo sível obter esclarecimentos de Inês
rios usados pelos marinhei- natural, o príncipe Afonso, num aci- Cordeiro, directora da BPN.
ros, pelos navegadores”, diz dente envolto em conspirações. pouco estudado Seja como for, tanto Joaquim Cae-
Henrique Leitão, acrescentan- Seja como for, acredita Delmira Joaquim Caetano tano como Silvestre Lacerda dizem
“Temos aqui do que Portugal é o único reino euro- Custódio, o estudo do Livro de Horas Director do MNAA que a obra poderá vir a revelar-se
22 iluminuras, peu que já em meados do século XV do monarca poderá trazer informa- muito interessante, sobretudo do
e isso é como ter leva matemáticos e astrónomos nas ção preciosa sobre o seu reinado, em rei mostra-nos que há em Portugal ponto de vista documental. “Só ven-
uma pequena sala embarcações da exploração oceânica. particular no domínio das artes, já uma prática da iluminura já em fase do ao pormenor saberemos”, diz o
de exposições Ortiz de Vilhegas, que foi bispo de que se sabe muito pouco sobre o de consolidação que leva a que mais director da TT. “É preciso esperar
com 22 pinturas Tânger, de Ceuta e de Viseu, homem mecenato cultural do monarca. tarde se atinja o nível que vemos na pelo estudo aprofundado.”
que nunca de conÆança de D. João II (sentou-se “Temos aqui 22 iluminuras, e isso é Leitura Nova [colectânea de cópias de “As imagens que se conhecem dos
tínhamos à mesa nas negociações do Tratado como ter uma pequena sala de expo- documentos oÆciais iluminada que D. jornais não servem para avaliar a qua-
visto”, diz a de Tordesilhas que dividiu o mundo sições com 22 pinturas que nunca Manuel I manda fazer em 1504 e que lidade artística do livro. Para isso, é
investigadora conhecido e por conhecer entre as tínhamos visto”, diz a investigadora, tem António de Holanda, artista edu- preciso tê-lo à frente, analisá-lo, e eu
Delmira Custódio duas coroas ibéricas) e de D. Manuel que para já chegou à conclusão, com cado nos Países Baixos, entre os auto- ainda não o vi”, diz o director do
I, perceptor do futuro D. João III, tem Adelaide Miranda, de que elas saem res] e no Livro de Horas dito de D. MNAA. “Do que já li, parece-me ter,
um percurso que devia ser mais estu- das mãos de pelo menos dois artistas, Manuel [1517-c.1551, hoje no Museu acima de tudo, um grande interesse
Nacional de Arte Antiga (MNAA)]. Isso histórico por ter sido feito para D. João
não acontece do nada.” II, com a participação de um bispo-
cosmógrafo ainda pouco estudado.”
Estará à venda? Por que razão quis este poderoso
Paulo de Cantos, actual proprietário monarca um livro de orações feito em
do códice agora em estudo, herdou Portugal quando a sua mulher, tam-
do avô o nome e um extenso acervo bém como ele neta de D. Duarte,
bibliográÆco por catalogar, contou o importava os seus, artisticamente
Expresso em Março, e muito provavel- muito superiores? Por que razão quis
mente não fazia ideia de que o peque- que nele houvesse um calendário com
no Livro de Horas pertencera a D. a precisão do dos navegadores? E o
João II. Paulo de Cantos, designer que pode este livro dizer-nos sobre a
modernista que foi sócio da galeria- arte em Portugal no Æm do século XV?
alfarrabista Biblarte, em Lisboa, pon- Estas e outras perguntas poderão
to de encontro de poetas e artistas, encontrar resposta em breve.
morreu em 1979, talvez sem o saber.
O PÚBLICO não conseguiu entrar lucinda.canelas@publico.pt

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