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VERA MONTEIRO
Professora da Pós-Graduação Lato Sensu e do Mestrado Profissional
da FGV Direito SP.
Doutora em Direito pela USP e Mestre em Direito pela PUC/SP.
Professora da sbdp.
1. Introdução
Isso explica por que grande parte da doutrina teoriza sobre a oposição entre
contratos administrativos e os contratos privados celebrados pela Administração. O
objetivo dela é afirmar que os primeiros, porque destinados à defesa do interesse
público, seriam marcados pelo sinal da autoridade, enquanto nos segundos tais poderes
não apareceriam.
O poder reconhecido ao Estado nas suas relações contratuais, como explica essa
antiga teoria sobre o contrato administrativo, seria, assim, incompatível com o regime
contratual comum. As conhecidas cláusulas exorbitantes seriam derrogatórias desse
direito, fazendo surgir um direito especial aplicável aos contratos administrativos, o
qual incidiria mesmo na ausência de previsão em lei ou no instrumento contratual. A
existência de prerrogativas derivaria, segundo a referida teoria, ou do próprio sistema
jurídico, que protege as atividades públicas, ou de cláusulas estabelecidas nos próprios
contratos. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, as prerrogativas “tanto
poderiam ser colhidas nos textos que diretamente regulem a matéria – quando existentes
– como deduzidas dos princípios vetores de certas atividades públicas. Vale dizer: ou se
reputam implícitas, seja na ordenação normativa, seja no bojo do contrato, ou estão
realmente explícitas na lei ou em cláusula expressa no contrato”.1
A Lei Geral de Licitações e Contratações (lei 8.666/93), por sua vez, pareceu
haver positivado essa teoria ao fixar o regime jurídico dos contratos administrativos em
seu art. 58.4 A mesma lei ainda tratou da parcial inoponibilidade ao Estado da exceção
1
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de direito administrativo. São Paulo:
Malheiros, 27ª ed., 2010, p. 606.
2
Caio Tácito fez amplo estudo sobre a origem na literatura (especialmente francesa) das
características clássicas do contrato administrativo em “Contrato administrativo”, in TÁCITO, Caio,
Temas de direito público (estudos e pareceres). Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 617.
3
MEDAUAR, Odete, O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2ª ed., 2003, pp. 207-208.
4
“Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à
Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: I – modificá-los, unilateralmente, para melhor
2
do contrato não cumprido, regulando mais um elemento que seria típico do regime
público dos contratos administrativos no art. 78, inc. XV (segundo o dispositivo,
constitui motivo para rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos
devidos pelo poder público decorrentes de contratos administrativos).
É diante desse contexto normativo que se colocam as dúvidas que este estudo
pretende responder: Quais os direitos que empresas que celebram contratos com poder
público têm diante de situação de sistemática inadimplência pública? Cabe-lhes
aguardar, passivamente, os 90 dias que a lei dá ao poder público antes de poderem pedir
a rescisão?
3
De igual modo, não haveria dificuldade em se reconhecer a legitimidade de a parte
lesada recusar-se a prorrogá-lo, ao fim da vigência do contrato.
Houve época, no Brasil, em que, não havendo regra legal específica a respeito,
se discutia se as empresas contratadas pela administração pública teriam legitimidade
para suspender a execução dos contratos quando houvesse inadimplência estatal. O
argumento para afastar a exceção do contrato não cumprido nessas relações jurídicas era
principiológico, baseado na ideia de supremacia do interesse público sobre o interesse
privado. Para assegurar a continuidade de certas atividades e empreendimentos
relevantes ao interesse público, os contratados deveriam executar seus contratos mesmo
que a administração não estivesse cumprindo sua parte. Para essa linha de pensamento,
o particular contratado, diante da falta de pagamento da administração pública, só
poderia, ao final do contrato, pleitear perdas e danos.
Mas era controvertida essa solução, de, nas avenças envolvendo a administração
pública, simplesmente excluir a aplicação da exceção do contrato não cumprido. De um
lado porque, caso fosse rigorosamente adotada, poderia conduzir à inviabilidade da
contratação de particulares para a realização de certos objetivos estatais, especialmente
daqueles que demandassem maiores investimentos. Seria potencialmente inviável
encontrar particulares dispostos a assumir o risco de financiar integralmente certos
empreendimentos (grandes obras, por exemplo), sempre que o poder público se tornasse
inadimplente. Diante do risco concreto de inadimplência estatal, possivelmente não
existiriam interessados (ao menos sérios) em contratar com a administração pública.
5
“Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato: (...) XV – o atraso superior a 90
(noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou
fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave
perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do
cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.
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obrigações. A lei 8.666/96 (art. 78, XV) não permite que o estado atrase pagamentos
por 90 dias impunemente. Afirmar o contrário seria ampliar, pela via da interpretação, e
contra a própria ideia de contrato, o condicionamento posto na lei. Mas como a
interpretação usual do dispositivo é no sentido de que a administração pública tem sim o
direito de não pagar por 90 dias sem correr o risco de suspensão das prestações, o
presente estudo analisará os cenários que decorreriam dessa suposta restrição, por força
da qual a opção pela suspensão do contrato só poderia ser exercida pelo contratado após
90 dias de atraso nos pagamentos.6
Mas é importante que se diga que não há razão, na natureza das coisas, para que
a administração tenha o privilégio de receber as prestações contratadas sem fazer os
pagamentos tempestivos aos particulares prestadores de serviços ou fornecedores de
bens.
6
Para ilustrar essa interpretação chamada de usual, veja-se a seguinte decisão do STJ: “Se a
Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o
contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela
jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.” (REsp nº 910.802/RJ, 2ª
Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. em 3.6.2008).
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em lei, é que seria exigível do contratado privado a continuidade na execução do
pactuado mesmo com o atraso no pagamento pela administração.
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“Art. 39. O contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no
caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial
especialmente intentada para esse fim.
Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, os serviços prestados pela
concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em
julgado”.
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“Art. 6º (...). § 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em
situação de emergência ou após prévio aviso, quando: (...) II – por inadimplemento do usuário,
considerado o interesse da coletividade”.
6
Quando houver atraso de pagamento por parte da administração, os contratados
podem legitimamente suspender a execução de seus contratos.
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“Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita á vigência dos respectivos
créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: (...) II - a prestação de serviços a serem executados
de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas
a obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração, limitada a 60 (sessenta) meses;
(...) IV – ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração
estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato;”.
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descumpre suas obrigações contratuais. A recusa, nessa hipótese, tem evidente justa
causa.
Vale esclarecer que, a qualquer momento, é lícito que as partes formulem acordo
para a solução amigável dos débitos. A faculdade de transigir é inerente à capacidade
para contratar, que ambas as partes possuem. Uma hipótese é a de se consolidar a dívida
existente e se fazer um parcelamento, para pagamento gradual. A medida é lícita e
benéfica para a empresa estatal, não dependente de autorização legal específica. Em
havendo parcelamento, o direito previsto no art. 5º, caput, da lei 8.666/93 (direito ao
recebimento na ordem cronológica das datas das exigibilidades das obrigações) continua
a existir para o contratado, com a simples diferença, decorrente da alteração do contrato
pelo acordo, quanto às datas de exigibilidade, que serão as novas, previstas no acordo.
O exercício regular de um direito, por ente privado, não pode ser causa de sua
responsabilização patrimonial. Assim, se a lei confere a qualquer contratado da
administração pública o direito de suspender a execução do contrato ou de não
prorrogá-lo e não renová-lo, não é possível afirmar que os eventuais prejudicados com a
medida tenham o direito de acionar o contratado para ressarcir prejuízos. Aliás, o direito
de suspender a execução, para ser exercido, independe de decisão judicial. A própria
legislação brasileira já confere o direito de suspender a execução do contrato, ou de não
prorrogá-lo ou não renová-lo, aos contratados da administração pública em geral.
Nesse contexto, a providência efetiva que o privado tem de adotar para ressalvar
sua responsabilidade se resume à coleta de elementos para demonstrar que,
efetivamente, deu plena execução aos contratos até seu término ou suspensão. Para
tanto, é relevante documentar os procedimentos adotados pela empresa até o momento
da interrupção de suas atividades. Ela pode até mesmo fazer notificação circunstanciada
do poder público contratante, informando-o quanto ao estado de inadimplência e ao
propósito da descontinuidade da relação jurídica, caso os pagamentos em aberto não
sejam regularizados.
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A legislação brasileira prevê hipóteses gerais nas quais é em tese cabível uma
medida interventiva estatal sobre agentes privados, buscando assegurar o interesse
público. As situações, contudo, são muito excepcionais e não abrangem a situação aqui
em análise.
Mas essa previsão legal abarca apenas situações em que o contratado esteja
inadimplente e, por esse motivo, a administração tenha de lançar mão desse poder
interventivo para o objetivo específico de “apuração de faltas contratuais pelo
contratado”. Não se aplica tal prerrogativa, portanto, para situações em que a
administração seja a parte inadimplente.
10
“Art. 5º. (...) XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar
de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”.
11
CRETELLA JÚNIOR, José, Do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 190.
12
ENTERRÍA, Eduardo García de e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Direito
Administrativo, vol. II, (rev. técnico, Carlos Ari Sundfeld). São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos
Tribunais, 2014, pp. 150-1.
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de comoção intestina e estado de sítio (art. 1º).13 Embora seja hipótese extrema, tais
requisições dão direito à remuneração dos fornecedores dos meios de aprovisionamento
ou transporte (art. 5º).14 Outro exemplo relevante já consolidado no direito pátrio
envolve a requisição de bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população. Tal
medida, prevista no decreto-lei nº 2, de 14 de janeiro de 1966, autoriza a administração
federal (então representada pela SUNAB) a requisitar bens ou serviços essenciais à
população, quando assim exigir o interesse público (art. 1º). A medida de intervenção
gera perda de receita aos requisitados (titulares dos bens ou serviços), de modo que há
previsão de pagamento de preço pelo requisitante, de acordo com os valores
previamente fixados com base no comportamento normal do mercado (§ 1º do art. 1º).15
Todavia, para o que aqui interessa, basta a constatação de que não existe, no
Brasil, disposição legal genérica autorizando a administração contratante a fazer a
requisição administrativa dos bens ou dos serviços do contratado que, sofrendo a
inadimplência do poder público, tiver decidido exercer seu direito à suspensão ou à
rescisão do contrato. Mesmo porque uma norma com tal amplitude seria inadmissível,
pois teria o efeito prático de dar ao estado inadimplente poderes incompatíveis com o
necessário equilíbrio que deve existir entre o público e o privado.
Nos casos em que a contratante seja uma empresa estatal que explora atividade
econômica, pode-se assumir que ela não se sujeita às normas protetivas de direito
público contidas na lei 8.666/93. Assim, não é exigível que seus fornecedores se
sujeitem à regra de aplicação restrita da exceção do contrato não cumprido, tal como
13
“Art. 1º São permitidas as requisições de tudo quanto for indispensável para completar os
meios de aprovisionamento e transporte das forças armadas de terra ou mar, quando, total ou
parcialmente, mobilizadas, em virtude do estado de guerra ou em consequência de comoção intestina e
estado de sitio”.
14
“Art. 5º Todos os fornecimentos feitos em virtude de requisições dão direito á indemnização
correspondente ao valor do dano ou prejuízo por elas causado ao requisitado”.
15
“Art. 1º A Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB), na qualidade de órgão
incumbido de aplicar a legislação de intervenção do Estado no domínio econômico, poderá, quando assim
exigir o interesse público, requisitar bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população. § 1º Os
proprietários dos bens ou serviços requisitados na forma deste artigo serão indenizados em dinheiro, de
acordo com os preços previamente fixados pela Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB),
com base no comportamento normal do mercado”.
10
vem sendo interpretada. Para encampar tal premissa jurídica, o ideal é introduzir uma
cláusula expressa nos contratos das empresas estatais, autorizando o contratado a
suspender sua execução caso ocorra atraso, ainda que de apenas um mês, nos
pagamentos devidos.
Outro mecanismo que pode ser adotado é a previsão de que o contratante repasse
antecipadamente algumas parcelas de pagamento a um agente fiducial (instituição
financeira), incumbido de pagar o contratado na medida em que os contratos sejam
executados.
Referida solução se mostra preferível a uma outra alternativa, que seria a simples
previsão de antecipação de pagamento em contratos públicos. É que há notória
resistência por parte dos órgãos de controle em aceitar, nas contratações administrativas
em geral, que uma entidade estatal venha a efetivar pagamentos antes da execução da
parcela correspondente. Nesse contexto, embora seja viável juridicamente defender a
legalidade da previsão de uma antecipação de pagamento, parece medida menos
arriscada prever, no contrato, a intermediação de entidade financeira, como agente
fiducial, para garantir o pagamento.
5. Conclusão
11
previstas na legislação quanto às suas condições, formalidades, controle e quanto ao seu
próprio conteúdo.
16
MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias, “Mecanismos de consenso no direito
administrativo”, in MARQUES NETO, Floriano de Azevedo e ARAGÃO, Alexandre Santos de, Direito
administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 344.
12