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Publicado em: Revista do Advogado. São Paulo, publicação da AASP. Ano XXXVI, n.º 131, p. 31-41.

ISSN 0101-7497, out., 2016.

DIREITOS DO CONTRATADO DIANTE DA INADIMPLÊNCIA DO PODER


PÚBLICO CONTRATANTE

CARLOS ARI SUNDFELD


Professor Titular da FGV Direito SP.
Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP.
Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público – sbdp.

JACINTHO ARRUDA CÂMARA


Professor da Faculdade de Direito da PUC/SP
e da Pós-graduação Lato Sensu da FGV Direito SP.
Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP.
Vice-Presidente da sbdp.

VERA MONTEIRO
Professora da Pós-Graduação Lato Sensu e do Mestrado Profissional
da FGV Direito SP.
Doutora em Direito pela USP e Mestre em Direito pela PUC/SP.
Professora da sbdp.

1. Introdução

Uma teoria, elaborada na primeira metade do século XX e amplamente


reproduzida nas décadas seguintes, deixou um traço que marca até os dias de hoje as
relações jurídicas com os particulares: a afirmação de um regime jurídico especial, dito
de direito público, nas relações contratuais com o Estado. Como consequência desse
regime especial, o Estado teria a faculdade de alterar a extensão e as características das
prestações estabelecidas no contrato em que ele é contratante, baseado em um poder de
autoridade que nada teria de contratual.

Isso explica por que grande parte da doutrina teoriza sobre a oposição entre
contratos administrativos e os contratos privados celebrados pela Administração. O
objetivo dela é afirmar que os primeiros, porque destinados à defesa do interesse
público, seriam marcados pelo sinal da autoridade, enquanto nos segundos tais poderes
não apareceriam.

O poder reconhecido ao Estado nas suas relações contratuais, como explica essa
antiga teoria sobre o contrato administrativo, seria, assim, incompatível com o regime
contratual comum. As conhecidas cláusulas exorbitantes seriam derrogatórias desse
direito, fazendo surgir um direito especial aplicável aos contratos administrativos, o
qual incidiria mesmo na ausência de previsão em lei ou no instrumento contratual. A
existência de prerrogativas derivaria, segundo a referida teoria, ou do próprio sistema
jurídico, que protege as atividades públicas, ou de cláusulas estabelecidas nos próprios
contratos. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, as prerrogativas “tanto
poderiam ser colhidas nos textos que diretamente regulem a matéria – quando existentes
– como deduzidas dos princípios vetores de certas atividades públicas. Vale dizer: ou se
reputam implícitas, seja na ordenação normativa, seja no bojo do contrato, ou estão
realmente explícitas na lei ou em cláusula expressa no contrato”.1

Assim, o direito especial, peculiar do regime do contrato administrativo, giraria


em torno da supremacia de uma das partes (o Estado), que representaria a prevalência
do interesse público sobre os particulares. Como consequência, estaria legitimada a
possibilidade de instabilização da relação por meio do exercício de um poder de
autoridade, o qual se manifestaria pela presunção de legitimidade de seus atos, pelo
amplo controle e fiscalização na execução do contrato, pela possibilidade de alteração
unilateral da extensão e características do objeto do contrato, pela possibilidade de
rescisão unilateral do contrato, pela possibilidade de ocupação provisória de bens e
serviços, pela vedação à invocação da exceção do contrato não cumprido pelo
contratado (a não ser em alguns casos expressamente autorizados) e, finalmente, pela
possibilidade de impor sanções ao privado. O conjunto de tais poderes é conhecido
como cláusulas exorbitantes.2

Odete Medauar resume a teoria francesa do contrato administrativo, própria do


início do século XX, no seguinte trecho: “A concepção do contrato regido pelo direito
administrativo acabou por firmar-se, separando-se de preceitos tradicionais da teoria do
contrato privado, como a igualdade entre as partes e a intangibilidade da vontade inicial
das mesmas; formou-se a teoria de um contrato diferenciado do modelo privado, de um
contrato em que a Administração contratante dispõe de certas prerrogativas para
assegurar o atendimento do interesse geral, sem o sacrifício dos interesses pecuniários
do particular contratado. As cláusulas exorbitantes, assim denominadas na concepção
francesa porque se distanciavam dos preceitos vigentes para os contratos privados,
permitiam à Administração a modificação unilateral do contrato, desde que assegurada a
equação financeira do contrato; possibilitavam a rescisão unilateral; conferiam à
Administração amplo controle e acompanhamento da execução do contrato e o direito
de impor sanções ao particular contratado, e impedia que este invocasse a exceptio non
adimpleti contractus a sua favor. Com essas linhas básicas, difundiu-se a teoria do
contrato administrativo na Europa ocidental continental e na América Latina, inclusive
no Brasil. A partir de então e durante algumas décadas, nenhum elemento novo afetou
as bases assentadas; os tipos contratuais, em número restrito, pouco variaram; e parecia
predominar a atividade administrativa por atos unilaterais; as formas contratuais
ocupavam pequena parte do panorama da Administração”.3

A Lei Geral de Licitações e Contratações (lei 8.666/93), por sua vez, pareceu
haver positivado essa teoria ao fixar o regime jurídico dos contratos administrativos em
seu art. 58.4 A mesma lei ainda tratou da parcial inoponibilidade ao Estado da exceção

1
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de direito administrativo. São Paulo:
Malheiros, 27ª ed., 2010, p. 606.
2
Caio Tácito fez amplo estudo sobre a origem na literatura (especialmente francesa) das
características clássicas do contrato administrativo em “Contrato administrativo”, in TÁCITO, Caio,
Temas de direito público (estudos e pareceres). Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 617.
3
MEDAUAR, Odete, O direito administrativo em evolução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2ª ed., 2003, pp. 207-208.
4
“Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à
Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: I – modificá-los, unilateralmente, para melhor

2
do contrato não cumprido, regulando mais um elemento que seria típico do regime
público dos contratos administrativos no art. 78, inc. XV (segundo o dispositivo,
constitui motivo para rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos
devidos pelo poder público decorrentes de contratos administrativos).

Em contraposição aos poderes públicos em matéria de contratos administrativos,


o sistema legal brasileiro assegurou o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro em
favor do contratado, inclusive para fazer frente à desigualdade na relação. É o que
determinou a própria Constituição Federal de 1988 (art. 37, XXI), ao fixar que as obras,
serviços, compras e alienações serão contratadas com “cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta”. E a lei 8.666/93,
nos artigos 58, §§ 1º e 2º; 65, II, “d”; e 65 §§ 5º e 6º.

É diante desse contexto normativo que se colocam as dúvidas que este estudo
pretende responder: Quais os direitos que empresas que celebram contratos com poder
público têm diante de situação de sistemática inadimplência pública? Cabe-lhes
aguardar, passivamente, os 90 dias que a lei dá ao poder público antes de poderem pedir
a rescisão?

2. Quais as consequências da inadimplência do poder público contratante?

Fosse mera relação comercial entre duas empresas quaisquer, o problema da


inadimplência da contratante seria, do ponto de vista jurídico, relativamente simples de
solucionar. Com o inadimplemento sistemático da contratante, a parte contratada
poderia invocar a clássica regra da “exceção do contrato não cumprido” que, em
resumo, propugna: se uma das partes não cumprir a obrigação contratualmente
assumida, a outra parte se vê liberada do cumprimento da respectiva contraprestação.

adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; II – rescindi-los,


unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta lei; III – fiscalizar-lhes a execução;
IV – aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste; V – nos casos de serviços
essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do
contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo
contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo”.
Na verdade, o tema já era tratado dessa forma em norma federal desde o decreto-lei 2.300, de 21
de novembro de 1986, que normatizava as licitações e contratos da administração pública federal, antes
de ser revogado pela lei 8.666/93. Segundo seu art. 48, o regime jurídico dos contratos administrativos
conferia à administração as prerrogativas de modificação e extinção unilateral, fiscalização e aplicação de
sanções. No Estado de São Paulo, a lei 89, de 27 de dezembro de 1972, também estabelecia casos de
alteração unilateral do contrato pela administração pública (art. 48).
Como prova de que essa concepção de há muito tempo está arraigada entre administrativistas
brasileiros, lembre-se que LOPES MEIRELLES, Hely, na primeira edição de seu Licitação e contrato
administrativo (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, pp. 182-183), ao tratar dos contratos em que a
administração pública é uma das partes contratantes, já se referia à “supremacia de poder para fixar as
condições iniciais do ajuste” e à “presença da Administração com privilégio administrativo na relação
contratual”. Ambos seriam elementos tipificadores do contrato administrativo, capaz de distingui-lo do
contrato privado. Conforme escreveu o autor, “Dessa posição privilegiada surgem as chamadas cláusulas
exorbitantes do direito comum e a faculdade implícita de alteração e de rescisão unilateral do contrato,
nos limites exigidos pelo interesse público. Tais são os traços marcantes do contrato administrativo,
negado por alguns, mas afirmado pela imensa maioria dos publicistas modernos que reconhecem à
Administração o poder de contratar no regime do direito público, bem diversificado no direito privado”.

3
De igual modo, não haveria dificuldade em se reconhecer a legitimidade de a parte
lesada recusar-se a prorrogá-lo, ao fim da vigência do contrato.

Houve época, no Brasil, em que, não havendo regra legal específica a respeito,
se discutia se as empresas contratadas pela administração pública teriam legitimidade
para suspender a execução dos contratos quando houvesse inadimplência estatal. O
argumento para afastar a exceção do contrato não cumprido nessas relações jurídicas era
principiológico, baseado na ideia de supremacia do interesse público sobre o interesse
privado. Para assegurar a continuidade de certas atividades e empreendimentos
relevantes ao interesse público, os contratados deveriam executar seus contratos mesmo
que a administração não estivesse cumprindo sua parte. Para essa linha de pensamento,
o particular contratado, diante da falta de pagamento da administração pública, só
poderia, ao final do contrato, pleitear perdas e danos.

Mas era controvertida essa solução, de, nas avenças envolvendo a administração
pública, simplesmente excluir a aplicação da exceção do contrato não cumprido. De um
lado porque, caso fosse rigorosamente adotada, poderia conduzir à inviabilidade da
contratação de particulares para a realização de certos objetivos estatais, especialmente
daqueles que demandassem maiores investimentos. Seria potencialmente inviável
encontrar particulares dispostos a assumir o risco de financiar integralmente certos
empreendimentos (grandes obras, por exemplo), sempre que o poder público se tornasse
inadimplente. Diante do risco concreto de inadimplência estatal, possivelmente não
existiriam interessados (ao menos sérios) em contratar com a administração pública.

De outro lado, ainda que os particulares assumissem o risco, a consequência


direta desse regime jurídico seria o aumento dos custos incorridos pela administração. É
que os contratados, diante da contingência de serem obrigados a executar todo o
contrato sem o recebimento das contraprestações, naturalmente embutiriam esse risco
no preço de suas propostas, acrescendo um custo adicional.

Em uma tentativa de solucionar o embate de visões quanto ao tema então


presente no debate acadêmico, a lei 8.666/93 veio a admitir expressamente que os
contratados suspendessem a execução dos contratos, em caso de atraso nos pagamentos
da administração pública.

De acordo com a interpretação mais usual da lei, só após 90 dias de atraso no


pagamento, o contratado pode optar entre requerer a rescisão do contrato ou suspender
sua execução (art. 78, XV)5. Parece-nos que a leitura correta do dispositivo é no sentido
de que o prazo de 90 dias é condição apenas para a rescisão contratual, não para a
suspensão. O art. 78 trata de hipóteses de rescisão contratual, e seu inc. XV condiciona
tão somente o direito de, em caso de atraso nos pagamentos, o particular requerer a
extinção definitiva do contrato. O dispositivo não condiciona nem limita de modo
expresso o direito, próprio da “exceção do contrato não cumprido”, de suspensão
unilateral da execução até que o poder público regularize o cumprimento de suas

5
“Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato: (...) XV – o atraso superior a 90
(noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou
fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave
perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do
cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação”.

4
obrigações. A lei 8.666/96 (art. 78, XV) não permite que o estado atrase pagamentos
por 90 dias impunemente. Afirmar o contrário seria ampliar, pela via da interpretação, e
contra a própria ideia de contrato, o condicionamento posto na lei. Mas como a
interpretação usual do dispositivo é no sentido de que a administração pública tem sim o
direito de não pagar por 90 dias sem correr o risco de suspensão das prestações, o
presente estudo analisará os cenários que decorreriam dessa suposta restrição, por força
da qual a opção pela suspensão do contrato só poderia ser exercida pelo contratado após
90 dias de atraso nos pagamentos.6

A mera suspensão da execução contratual, diferentemente do que ocorre com a


rescisão, é medida a ser tomada direta e unilateralmente pelo contratado. Optar entre o
pedido de rescisão contratual ou a suspensão de sua execução é assunto que depende da
exclusiva avaliação empresarial do contratado.

O legislador, segundo a interpretação mais difundida da matéria, embora


equivocada, impôs a quem contrata com a administração pública o ônus de manter a
execução do contrato por até 90 dias após o início do atraso no pagamento. Em
contrapartida, autorizou expressamente a suspensão de sua execução quando superado
referido lapso.

De qualquer modo, mesmo nessa visão o escopo do contrato não importa. A


administração deve, no trimestre que a lei lhe concede, providenciar alguma solução
para efetuar o pagamento devido e, se for o caso, providenciar a paralisação de obras,
serviços ou fornecimentos objeto de contratos inadimplentes. O particular, de acordo
com a lei, não está obrigado a permanecer executando contrato com atraso no
pagamento devido pela administração, pelo menos quando esse atraso for superior a 90
dias.

Mas é importante que se diga que não há razão, na natureza das coisas, para que
a administração tenha o privilégio de receber as prestações contratadas sem fazer os
pagamentos tempestivos aos particulares prestadores de serviços ou fornecedores de
bens.

Mesmo quando o objeto contratual é fundamental para viabilizar o


funcionamento de estruturas públicas — como em contratos de fornecimento de
material hospitalar, de remédios, de merenda escolar, de combustível, entre outros —
pela lógica contratual básica não faz sentido imaginar que o contratado privado esteja
obrigado a manter o fornecimento se a administração pública atrasa reiteradamente o
pagamento.

A única ressalva admitida em lei – à aplicação, pelo contratado, da exceção do


contrato não cumprido – abarca situações de extrema excepcionalidade, em que a
inadimplência da administração derive de “calamidade pública, grave perturbação da
ordem interna ou guerra” (art. 78, XV, in fine). Apenas nessas situações, bem delineadas

6
Para ilustrar essa interpretação chamada de usual, veja-se a seguinte decisão do STJ: “Se a
Administração Pública deixou de efetuar os pagamentos devidos por mais de 90 (noventa) dias, pode o
contratado, licitamente, suspender a execução do contrato, sendo desnecessária, nessa hipótese, a tutela
jurisdicional porque o art. 78, XV, da Lei 8.666/93 lhe garante tal direito.” (REsp nº 910.802/RJ, 2ª
Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. em 3.6.2008).

5
em lei, é que seria exigível do contratado privado a continuidade na execução do
pactuado mesmo com o atraso no pagamento pela administração.

Mas nada disso se vislumbra no caso de atraso no pagamento decorrente de


simples crise financeira da entidade administrativa contratante. Trata-se da causa mais
comum a provocar atrasos de pagamento pela administração pública brasileira e que, até
por isso, não foi excluída da incidência da regra legal que admite a exceção do contrato
não cumprido nas contratações públicas.

Quando a legislação impôs ao particular o ônus de cumprimento do contrato,


mesmo diante da inadimplência da administração pública, o fez de maneira expressa. A
única previsão nesse sentido que parece no direito brasileiro abarca os contratos de
concessão de serviço público, sujeitos à Lei Geral de Concessões e Permissões de
Serviços Públicos (lei 8.987/95). Em tais avenças, mesmo diante da inadimplência da
administração pública (poder concedente), o contratado (concessionário) só poderá
deixar de executar integralmente o contrato, isto é, de prestar o serviço público
concedido, após decisão judicial transitada em julgado, que rescinda o contrato de
concessão (art. 39, parágrafo único, da lei 8.987/95).7

É importante lembrar que, nos contratos de concessão comum, a remuneração do


concessionário não é suportada pela administração, mas sim pelos usuários dos serviços
públicos. Assim, a inadimplência da administração não afeta, pelo menos de modo
absoluto, as receitas do concessionário. O dever de manter a prestação ao menos do
núcleo dos serviços na hipótese de inadimplemento do poder concedente, portanto, não
é equivalente a impor, ao contratado dos contratos administrativos ordinários da lei
8.666/93, o dever de prestar o serviço sem receber a correspondente remuneração da
administração pública.

Aliás, a mesma lei 8.987/95 autoriza o concessionário a interromper a prestação


dos serviços na hipótese de inadimplência dos usuários (art. 6º, § 3º, II), desobrigando-
o, com isso, a permanecer oferecendo serviços quando seus clientes (usuários) não
estiverem pagando devidamente por eles.8 Admite-se, portanto, a aplicação da regra da
exceção do contrato não cumprido na relação estabelecida entre concessionário e
usuário.

O particular que não recebe tem o direito de suspender imediatamente a


execução do contrato administrativo. Não há, no ordenamento jurídico brasileiro, regra
que imponha a particulares o ônus de permanecer indefinidamente executando contratos
administrativos quando não estiverem recebendo suas devidas contraprestações.

7
“Art. 39. O contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no
caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação judicial
especialmente intentada para esse fim.
Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, os serviços prestados pela
concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial transitada em
julgado”.
8
“Art. 6º (...). § 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em
situação de emergência ou após prévio aviso, quando: (...) II – por inadimplemento do usuário,
considerado o interesse da coletividade”.

6
Quando houver atraso de pagamento por parte da administração, os contratados
podem legitimamente suspender a execução de seus contratos.

Nos contratos de prestação continuada envolvendo entidades da administração


pública é praxe firmar contratos com a possibilidade de prorrogação periódica até certo
limite de tempo. Tal prática encontra respaldo na própria lei 8.666/93, que admite a
prorrogação periódica de contratos de prestação continuada por até 60 meses (art. 57, II)
e de aluguel de equipamentos e de utilização de programas de informática por até 48
meses (art. 57, IV).9

Em tais contratações, a cada período de vigência do contrato (geralmente de 12


meses), as partes decidem se prorrogam o vínculo ou se deixam que ele se extinga ao
final do prazo em curso. Se o contrato, por exemplo, tiver prazo de vigência de 12
meses, embora exista autorização para prorrogação por até 60 ou 48 meses, a extensão
do prazo dependerá de novos acordos. Sem o interesse mútuo na continuidade da
avença, o prazo máximo admitido em lei não será atingido.

Se a legislação autoriza o particular a optar pela suspensão da execução do


contrato em face do inadimplemento da administração pública, o que dizer da decisão
de, ao final de seu prazo de vigência, não prorrogar ou renovar o vínculo? Parece
evidente que a empresa contratada, diante do sistemático estado de inadimplemento de
seu contratante, pode legitimamente recusar-se a fazê-lo.

É natural que a administração pública, devido ao dever geral de motivar seus


atos, apresente motivação para justificar a decisão de prorrogar ou não seus contratos. O
particular contratado, embora não se sujeite às mesmas normas e princípios que dirigem
a administração pública, também pode expor seus motivos para eventual recusa.
Motivar razoavelmente sua decisão por não manter o contrato, quando tal opção se
mostra juridicamente viável, decorre do próprio compromisso de boa-fé entre as partes
contratantes.

O atraso sistemático dos pagamentos devidos pela administração contratante é


motivo suficiente e razoável para justificar a decisão de o particular não prorrogar ou
renovar um contrato. Se em tais hipóteses (o atraso no pagamento), o mais grave lhe é
garantido em lei (a rescisão ou a suspensão do contrato), também lhe é facultada a
opção mais suave de apenas deixar de prorrogar ou renovar o vínculo.

Nenhuma empresa privada tem o dever jurídico de contratar com o poder


público. Contratações são fruto do exercício de liberdade empresarial. Assim, tanto a
prorrogação de contratos como a celebração de novos contratos em continuidade são
faculdades, não obrigações, do particular. A recusa em prorrogar ou renovar sequer
precisa ser por ele motivada por razões excepcionais: é tudo questão de interesse
empresarial ou não. Se assim é, o direito de não prorrogar ou de não renovar será ainda
mais cristalino quando exercido diante de um contratante que sistematicamente

9
“Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita á vigência dos respectivos
créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: (...) II - a prestação de serviços a serem executados
de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas
a obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração, limitada a 60 (sessenta) meses;
(...) IV – ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração
estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato;”.

7
descumpre suas obrigações contratuais. A recusa, nessa hipótese, tem evidente justa
causa.

Em suma: diante do quadro de inadimplência sistemática do ente público


contratante perante um privado, mostra-se juridicamente viável tanto a suspensão desses
contratos, quanto a recusa de sua prorrogação ou renovação, quando chegarem a seu
termo.

Vale esclarecer que, a qualquer momento, é lícito que as partes formulem acordo
para a solução amigável dos débitos. A faculdade de transigir é inerente à capacidade
para contratar, que ambas as partes possuem. Uma hipótese é a de se consolidar a dívida
existente e se fazer um parcelamento, para pagamento gradual. A medida é lícita e
benéfica para a empresa estatal, não dependente de autorização legal específica. Em
havendo parcelamento, o direito previsto no art. 5º, caput, da lei 8.666/93 (direito ao
recebimento na ordem cronológica das datas das exigibilidades das obrigações) continua
a existir para o contratado, com a simples diferença, decorrente da alteração do contrato
pelo acordo, quanto às datas de exigibilidade, que serão as novas, previstas no acordo.

3. Quais as consequências da interrupção da execução contratual?

A interrupção de contratos que envolvem atividades relevantes para a sociedade,


como o fornecimento de remédios ou a coleta de lixo urbano, geram alguma
responsabilidade ao contratado, em razão dos danos que porventura a suspensão venha a
causar? A resposta é negativa, pois a causa desses eventuais prejuízos não seria a
conduta da empresa contratada (supondo que ela venha cumprindo rigorosamente o
pactuado), mas sim o inadimplemento sistemático e contínuo do poder público.

O exercício regular de um direito, por ente privado, não pode ser causa de sua
responsabilização patrimonial. Assim, se a lei confere a qualquer contratado da
administração pública o direito de suspender a execução do contrato ou de não
prorrogá-lo e não renová-lo, não é possível afirmar que os eventuais prejudicados com a
medida tenham o direito de acionar o contratado para ressarcir prejuízos. Aliás, o direito
de suspender a execução, para ser exercido, independe de decisão judicial. A própria
legislação brasileira já confere o direito de suspender a execução do contrato, ou de não
prorrogá-lo ou não renová-lo, aos contratados da administração pública em geral.

Nesse contexto, a providência efetiva que o privado tem de adotar para ressalvar
sua responsabilidade se resume à coleta de elementos para demonstrar que,
efetivamente, deu plena execução aos contratos até seu término ou suspensão. Para
tanto, é relevante documentar os procedimentos adotados pela empresa até o momento
da interrupção de suas atividades. Ela pode até mesmo fazer notificação circunstanciada
do poder público contratante, informando-o quanto ao estado de inadimplência e ao
propósito da descontinuidade da relação jurídica, caso os pagamentos em aberto não
sejam regularizados.

Diante da situação concreta gerada pela suspensão do contrato, teria o poder


público como impor ao contratado, sem base contratual, a continuidade da prestação do
serviço ou da atividade contratada, alegando proteção ao interesse público envolvido?

8
A legislação brasileira prevê hipóteses gerais nas quais é em tese cabível uma
medida interventiva estatal sobre agentes privados, buscando assegurar o interesse
público. As situações, contudo, são muito excepcionais e não abrangem a situação aqui
em análise.

Uma dessas hipóteses está encartada na própria lei 8.666/93. Envolve a


prerrogativa de a administração pública “ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis,
pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato”, nos casos de rescisão de contrato
que tenha como objeto “serviços essenciais” (art. 58, V).

Mas essa previsão legal abarca apenas situações em que o contratado esteja
inadimplente e, por esse motivo, a administração tenha de lançar mão desse poder
interventivo para o objetivo específico de “apuração de faltas contratuais pelo
contratado”. Não se aplica tal prerrogativa, portanto, para situações em que a
administração seja a parte inadimplente.

A outra hipótese a ser cogitada, pelo menos teoricamente, seria a de o poder


público fazer uma “requisição” dos bens ou serviços do contratado. A requisição tem
previsão constitucional (art. 5º, XXV) e viabiliza o uso temporário de bens particulares,
mediante pagamento de indenização posterior, nos casos de “iminente perigo público”.10

A doutrina aceita a figura da requisição tanto de bens como de serviços. Há,


contudo, necessidade de previsão legal para viabilizar a medida. Para Cretella Júnior “o
instituto da requisição, que se apoia no sacrifício privado, em prol do interesse público,
apresenta-se na prática como o procedimento unilateral da Administração tendente a
exigir do particular a prestação de serviços e bens dirigidos à satisfação de interesses
coletivos.” (grifo do original).11 Trata-se, na terminologia de Eduardo García de Enterría
e Tomás-Ramón Fernández, de imposição enquadrada entre as prestações
compulsórias, que são medidas administrativas de gravame sobre a situação jurídica dos
particulares. Segundo os autores, tais prestações podem ser pessoais ou reais, conforme
consistam em um serviço (pessoal) ou na entrega de uma coisa (real). As prestações
compulsórias de caráter pessoal, isto é, as requisições administrativas de serviço, por
sua vez, podem ser civis ou militares, de acordo com a finalidade a que se destinam.
Tais requisições de serviços têm caráter oneroso para o requisitante.12

É possível encontrar exemplos consolidados de requisição administrativa de


serviços na legislação brasileira. Um deles, semelhante a vários exemplos citados na
literatura internacional, é o das requisições militares. A lei 4.263, de 14 de janeiro de
1921, previu as requisições, em favor das forças armadas, de meios de
aprovisionamento e de transporte, em virtude de estado de guerra ou em consequência

10
“Art. 5º. (...) XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar
de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;”.
11
CRETELLA JÚNIOR, José, Do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 190.
12
ENTERRÍA, Eduardo García de e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Direito
Administrativo, vol. II, (rev. técnico, Carlos Ari Sundfeld). São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos
Tribunais, 2014, pp. 150-1.

9
de comoção intestina e estado de sítio (art. 1º).13 Embora seja hipótese extrema, tais
requisições dão direito à remuneração dos fornecedores dos meios de aprovisionamento
ou transporte (art. 5º).14 Outro exemplo relevante já consolidado no direito pátrio
envolve a requisição de bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população. Tal
medida, prevista no decreto-lei nº 2, de 14 de janeiro de 1966, autoriza a administração
federal (então representada pela SUNAB) a requisitar bens ou serviços essenciais à
população, quando assim exigir o interesse público (art. 1º). A medida de intervenção
gera perda de receita aos requisitados (titulares dos bens ou serviços), de modo que há
previsão de pagamento de preço pelo requisitante, de acordo com os valores
previamente fixados com base no comportamento normal do mercado (§ 1º do art. 1º).15

Todavia, para o que aqui interessa, basta a constatação de que não existe, no
Brasil, disposição legal genérica autorizando a administração contratante a fazer a
requisição administrativa dos bens ou dos serviços do contratado que, sofrendo a
inadimplência do poder público, tiver decidido exercer seu direito à suspensão ou à
rescisão do contrato. Mesmo porque uma norma com tal amplitude seria inadmissível,
pois teria o efeito prático de dar ao estado inadimplente poderes incompatíveis com o
necessário equilíbrio que deve existir entre o público e o privado.

4. Quais são as alternativas para mitigação de riscos de inadimplemento do poder


público contratante?

Se é que a lei de fato a prevê, a obrigação de o particular arcar com 90 dias de


execução contratual, sem nada receber, até que possa suspender a execução do contrato
(solução que não é ideal, pois não elimina o prejuízo já incorrido), isso impõe um
elevado ônus para o contratado.

É possível, porém, conceber modelos de contratação que reduzam esse risco.


Um deles é a redução expressa do prazo para a suspensão da execução do contrato em
caso de atraso de pagamento. O outro é a previsão de instrumento garantidor dos
pagamentos devidos pelo poder público.

Nos casos em que a contratante seja uma empresa estatal que explora atividade
econômica, pode-se assumir que ela não se sujeita às normas protetivas de direito
público contidas na lei 8.666/93. Assim, não é exigível que seus fornecedores se
sujeitem à regra de aplicação restrita da exceção do contrato não cumprido, tal como

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“Art. 1º São permitidas as requisições de tudo quanto for indispensável para completar os
meios de aprovisionamento e transporte das forças armadas de terra ou mar, quando, total ou
parcialmente, mobilizadas, em virtude do estado de guerra ou em consequência de comoção intestina e
estado de sitio”.
14
“Art. 5º Todos os fornecimentos feitos em virtude de requisições dão direito á indemnização
correspondente ao valor do dano ou prejuízo por elas causado ao requisitado”.
15
“Art. 1º A Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB), na qualidade de órgão
incumbido de aplicar a legislação de intervenção do Estado no domínio econômico, poderá, quando assim
exigir o interesse público, requisitar bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população. § 1º Os
proprietários dos bens ou serviços requisitados na forma deste artigo serão indenizados em dinheiro, de
acordo com os preços previamente fixados pela Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB),
com base no comportamento normal do mercado”.

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vem sendo interpretada. Para encampar tal premissa jurídica, o ideal é introduzir uma
cláusula expressa nos contratos das empresas estatais, autorizando o contratado a
suspender sua execução caso ocorra atraso, ainda que de apenas um mês, nos
pagamentos devidos.

Já quanto à pactuação de um mecanismo garantidor dos pagamentos devidos


pelo poder público, a vantagem dessa medida é a de preservar a funcionalidade da
contratação e, mesmo assim, proteger o contratado do risco de inadimplência.

A lei 8.666/93 prevê genericamente que os contratos trarão cláusulas que


estabeleçam “as garantias oferecidas para assegurar sua plena execução, quando
exigidas” (art. 55, VI). Tais garantias podem ser exigidas de quaisquer das partes, em
função dos riscos assumidos, de modo que é legítimo que os contratos públicos incluam
uma garantia que assegure os pagamentos devidos especificamente pelo poder público.
Atende a tal finalidade, por exemplo, a contratação de fiança bancária pelo contratante
público, que seja suficiente para garantir os pagamentos.

Outro mecanismo que pode ser adotado é a previsão de que o contratante repasse
antecipadamente algumas parcelas de pagamento a um agente fiducial (instituição
financeira), incumbido de pagar o contratado na medida em que os contratos sejam
executados.

Cada contrato pode estabelecer, por exemplo, a obrigação de o poder público


contratante depositar em instituição financeira o correspondente a 4 parcelas de
pagamento, obrigando-o ainda a recompor esse valor mês a mês. A instituição
financeira irá liberando os pagamentos ao contratado mediante apresentação de ordem
de pagamento emitida pelo contratante, dando conta da execução contratual. Assim,
caso o contratante público deixe de realizar a recomposição do depósito fiducial, o
contratado ainda terá assegurados pelo menos três meses de recebimento. O simples
atraso no depósito caracterizará a inadimplência do poder público e, com isso, o
contratado poderá suspender a execução do contrato tão logo não haja mais recursos na
conta garantidora do pagamento.

Referida solução se mostra preferível a uma outra alternativa, que seria a simples
previsão de antecipação de pagamento em contratos públicos. É que há notória
resistência por parte dos órgãos de controle em aceitar, nas contratações administrativas
em geral, que uma entidade estatal venha a efetivar pagamentos antes da execução da
parcela correspondente. Nesse contexto, embora seja viável juridicamente defender a
legalidade da previsão de uma antecipação de pagamento, parece medida menos
arriscada prever, no contrato, a intermediação de entidade financeira, como agente
fiducial, para garantir o pagamento.

5. Conclusão

O contrato administrativo não é sinônimo de poder de autoridade. Não se duvida


que, a partir da Constituição Federal, ele receba algum tipo de influência de um
conjunto de princípios (entre eles os da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência), além de estar sujeito, em certos casos, a regras próprias

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previstas na legislação quanto às suas condições, formalidades, controle e quanto ao seu
próprio conteúdo.

Mas é um erro assumir que um regime de prerrogativas em favor do poder


público contratante (inclusive a prerrogativa de atrasar pagamentos) seja natural. Como
bem alerta Fernando Dias Menezes de Almeida, o regime de prerrogativas tende a
perpetuar uma especial desatenção do órgão público contratante com relação às
especificidades do caso concreto, uniformizando, assim, um padrão de negociação
teórico que estimula: a) a ineficiência da administração (pois ela pode alterar ou
rescindir os contratos unilateralmente); b) a geração de contratos mais onerosos
(decorrente da incerteza gerada pelas cláusulas exorbitantes); c) a legitimação de
práticas autoritárias (em razão de medidas unilaterais); d) um ambiente propício para
desvios em relação à probidade administrativa, no curso da execução dos contratos (ao
atender a interesses que nada têm a ver com a boa execução do contrato).16

O excesso de prerrogativas em contratos públicos é incompatível com relações


seguras e duradouras. Não é, pois, da natureza do contrato administrativo que o poder
público tenha o privilégio de atrasar pagamentos e, mesmo assim, continue a receber as
prestações contratadas. O equilíbrio da relação entre as partes contratantes é uma
característica a ser perseguida nos contratos comuns e também nos contratos
administrativos.

Assim, é preciso interpretar de modo astuto as regras da lei 8.666/93 que


atribuam prerrogativas ao poder público contratante, evitando assim eventual
instabilidade desmedida nas relações contratuais. Além disso, é legítimo e necessário
prever expressamente medidas protetivas do particular contratado.

16
MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias, “Mecanismos de consenso no direito
administrativo”, in MARQUES NETO, Floriano de Azevedo e ARAGÃO, Alexandre Santos de, Direito
administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 344.

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