Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo:
O presente artigo aborda um tema estratégico para ampliação da competitividade brasileira: a
Hidrovia. Nos 500 anos de história, esse submodal de transportes foi preterido várias vezes.
Inicialmente, foi trocado pelo modal ferroviário e, posteriormente, nas opções pelo rodoviário. Por esse
motivo, desperdiçaram-se grandes oportunidades de conquistar maior desenvolvimento ao país. O
resultado foi a obtenção de uma matriz de transportes de cargas seriamente desequilibrada, que
aumenta o preço do frete, o número de acidentes e polui o meio ambiente. É preciso urgentemente
corrigir essa distorção. Nesse sentido, desenvolveu-se uma analogia da evolução da navegação
verde-amarela com a visão de Alvin Toffler, visionário que classificou as transformações da
humanidade em três ondas. Conclui-se que, também na hidrovia, convivem simultaneamente três
ondas evolutivas e desiguais. Por meio dessa análise é possível revisar seu histórico, conhecer a
situação atual e as perspectivas de mudanças nesse segmento. Possibilita a reflexão e estimula a
ação de atores públicos e privados para equalização desses desníveis, com indicativos de modos de
aproveitamento das potencialidades aquaviárias do país, e, por consequência, busca contribuir de
forma efetiva para colocar o Brasil num lugar de destaque no cenário internacional.
Ao final do período imperial, estava quase imigrantes atendeu aos objetivos de substituir
completa a transformação da frota mercante a força de trabalho escravo, agora livre, pelo
para a propulsão a vapor. As estruturas como trabalho assalariado, e de promover a
capitanias dos portos, repartições de faróis e ocupação do território.
hidrográficas já eram atuantes. A política
imperial de concessões possibilitou a criação No início do século XX, é criado o Ministério
de inúmeras empresas de navegação em de Viação e Obras Públicas – MVOP. Nessa
diversas bacias hidrográficas brasileiras, época, ocorre um fato marcante para a
algumas das quais subsistiram à concorrência hidrovia e para o intermodalismo dos
de armadores estrangeiros (GEIPOT, 2001). transportes. Trata-se da insólita obra da
ferrovia Madeira-Mamoré. Famosa pelo
Por outro lado, o incremento do tráfego naval e número de pessoas que morreram vencidas
portuário expôs as fragilidades da pelos mosquitos e outras mazelas da selva
infraestrutura do setor. Havia grande demanda amazônica e também por ter levado à falência
por pessoal especializado na navegação a o industrial norte-americano Percival Farquhar.
vapor. A guerra do Paraguai impulsionou a Com o objetivo de preservar a soberania na
marinha nacional. A Marinha de guerra serviu região e, de quebra, dinamizar a navegação
como fonte principal de formação técnica para nos rios da Amazônia, o governo brasileiro
a Marinha mercante. pagou a construção desta ferrovia, em
decorrência do acordo Brasil-Bolívia pela
Na primeira República, os governos negociação de terras (Tratado de Petrópolis de
buscam a reorganização econômica e 1903) que hoje compõem o Estado do Acre
infraestrutural do setor hidroviário e surge o (MRE, 1904).
primeiro plano oficial integrado de transportes,
com uma visão de aproveitamento de grandes A estrada de ferro, disposta na selva entre
rios nacionais como vias naturais de os dois rios que lhe deram o nome,
navegação fluvial. Entre eles, o Rio São proporcionaria à Bolívia uma saída estratégica
Francisco, os sistemas Araguaia-Tocantins e para o Atlântico, por meio de rios brasileiros,
Guaporé-Madeira. Previam-se articulações abrindo as portas de sua economia para o
com as malhas ferroviárias norte-nordeste e comércio internacional. Após cinco anos de
centro-sul. Todavia, o auge da ferrovia árduos esforços e percalços, em 1912, a obra
influencia esse planejamento e substitui as foi finalizada. Porém, até mesmo a
interconexões fluviais por novas linhas férreas inauguração do empreendimento foi ofuscada
(Coimbra,1974, apud GEIPOT, 2001). Uma pela conclusão conjunta com outra grande
ação com resultados duvidosos, uma vez que obra da época: o Canal do Panamá. Além das
os trilhos apresentavam bitolas de tamanhos vidas que se perderam, o projeto da ferrovia
variados, seguiam os caminhos do açúcar e do “afundou”, juntamente com a perspectiva de
café, muitas vezes tortuosos e isolados, sem expansão das hidrovias amazônicas (Governo
muita integração entre si ou mesmo com do RS, 2010).
outros modais. Também nesse período,
começam a entrar no país os primeiros Por outro lado, a navegação costeira e
automóveis. Um fato que, mais tarde, viria a se oceânica “ia a todo o vapor”. Vivia-se uma fase
constituir no pivô de um processo de de “glamour” nas viagens transatlânticas, com
reorientação das políticas públicas de as noites de gala e a vida ociosa a bordo de
transportes. navios que faziam linhas regulares para
Europa e outros destinos do globo. Todavia, as
Em paralelo, a navegação de cabotagem e guerras mundiais abalaram profundamente
de longo curso se desenvolvera bastante nas esse período de ouro. A Marinha mercante foi
últimas décadas, mas ainda necessitava de bastante reduzida em função dos confrontos.
capital para o crescimento e ampliação dos Várias embarcações foram torpedeadas e
serviços. Com os altos e baixos enfrentados afundadas por submarinos alemães, o que
pelas empresas de navegação, o Estado precipitou a entrada do Brasil no segundo
brasileiro decide investir numa grande conflito bélico internacional.
organização denominada Lloyd Brasileiro.
Também surgia a Companhia Nacional de No começo da década de 30, a situação da
Navegação Costeira, fundada por Henrique navegação não era melhor que a da ferrovia. A
Lage, outro grande empreendedor brasileiro. A grande empresa mercante, o Lloyd Brasileiro,
navegação marítima permitiu a imigração de apresentava a frota e a administração bastante
europeus e asiáticos. A chegada dos deteriorada. Muitos portos apresentavam
3
7°Seminário de Transporte e Desenvolvimento Hidroviário Interior, Porto Alegre, 5 e 6 de Outubro de 2011
4
7°Seminário de Transporte e Desenvolvimento Hidroviário Interior, Porto Alegre, 5 e 6 de Outubro de 2011
5
7°Seminário de Transporte e Desenvolvimento Hidroviário Interior, Porto Alegre, 5 e 6 de Outubro de 2011
8.630, 1993), a de concessões (Lei Federal nº bastante para abrir mão de um status e invadir
8.987, 1995), a das águas (Lei Federal nº o futuro em busca de um adicional
9.433, 1997), a do petróleo (Lei Federal nº compensador. A única maneira de gerar
9478, 1997)e as de criação de Agências confiança na ponte que separa as duas
Reguladoras Federais, entre outras. Após a situações é envolver e comprometer, em sua
virada do século XXI, citam-se ainda, em concepção e construção, as pessoas que
especial, as leis de criação da Agência precisam atravessá-la.
Nacional de Transportes Aquaviários -
ANTAQ, (Lei Federal nº 10.233, 2001), e da No aspecto da participação e controle
Secretaria Especial de Portos - SEP, (Lei social na regulação vale ressaltar a
Federal nº 11.518, 2007). Tais diplomas intensificação do uso e fortalecimento dos
constituem marcos fundamentais para setores institutos de consultas, audiências públicas,
estratégicos. ouvidorias e outras estruturas de proteção aos
usuários dos serviços públicos. Tais
Da análise dos referidos fatores são mecanismos ampliam as possibilidades de
evidenciadas contribuições importantes. No acesso do cidadão e da sociedade organizada
caso dos vetores do desenvolvimento, verifica- aos processos regulatórios, cujos canais,
se a influência de diversos aspectos positivos, virtuais ou presenciais, devem ser cada vez
entre os quais a estabilidade institucional e mais transparentes e democráticos.
econômica do país, o crescimento da corrente
de comércio nacional e internacional, a No que se refere às ações regulatórias, há
demanda por uma infraestrutura portuária e que se destacar o esforço da ANTAQ na
hidroviária com serviços de qualidade e de elaboração de normas e na fiscalização de
custo reduzido, maior rigor no trato das temas sensíveis do setor, a exemplo do
questões ambientais e usuários mais transporte de passageiros, de cargas, de
exigentes quanto à qualidade dos serviços instalações portuárias públicas, de estações
públicos prestados. de transbordo de cargas, de arrendamentos
em portos públicos e terminais privativos, entre
Na questão do planejamento, a visão de outros. Tais ações necessitam ser
Estado começa a sobrepor-se a de governos e intensificadas, em conformidade com sua
substitui a cultura do “imediatismo” da gestão missão precípua de cumprir e fazer cumprir a
pela definição de planos de médio e longo legislação.
prazo. Como exemplos, têm-se o Programa
Nacional de Logística e Transportes – PNLT e Nesse contexto, analisando-se a questão
os Programas de Aceleração do Crescimento do conflito de interesses a partir da figura do
– PAC I e II. Nesse trilhar, o PNLT apresenta “triângulo da regulação“ é fundamental o
uma visão de futuro para um Brasil em três posicionamento da ANTAQ ao centro e
tempos 2007, 2015 e 2022. Propõe equidistante dos seus polos, constituídos pelos
intervenções públicas e privadas na operadores e prestadores dos serviços, numa
infraestrutura e na organização dos das três pontas, pelos usuários e
transportes, com orientação à intermodalidade consumidores finais numa outra extremidade
e racionalidade da matriz de transportes. e, por fim, pelos órgãos de Governo, na
condição de Poder Concedente da exploração
Por sua vez, os programas de aceleração das atividades portuárias e aquaviária. Nessa
prevêem investimentos pesados em diversos configuração, cabe a Agência harmonizar,
setores. Na área de transportes, os planos preservado o interesse público, os interesses
contemplam a expansão das malhas entre regulados e usuários, com atenção
rodoviárias e ferroviárias e sua integração com especial ao caráter hipossuficiente deste
portos, hidrovias e aeroportos (MT, 2010). último. A lei também lhe determina a atribuição
de impedir situações que configurem
Quando se fala em planejamento competição imperfeita ou mesmo infrações da
estratégico vale considerar uma premissa ordem econômica.
denominada Ponte das Mudanças. Com base
nessa idéia, o planejamento de uma mudança Em relação às ações para desenvolvimento
se dá quando um grupo, órgão ou empresa do setor, vale destacar as iniciativas da
imagina uma situação desejada e que, por ser Agência para sensibilizar atores públicos e
diferente da atual, exige a construção de uma privados sobre o potencial aquaviário do Brasil,
ponte entre as duas. Para atravessá-la, as traduzidas na realização de seminários
pessoas envolvidas precisam confiar nela o nacionais e internacionais (ANTAQ, 2009).
6
7°Seminário de Transporte e Desenvolvimento Hidroviário Interior, Porto Alegre, 5 e 6 de Outubro de 2011
Para a troca de experiências externas foram transporte irracional e ineficiente, gerando uma
escolhidos países com adiantado nível de matriz de transporte de cargas que drena
desenvolvimento tecnológico, econômico e competitividade do produto brasileiro. Eleva o
ambiental no uso de hidrovias, a exemplo da frete e, a cada ano, milhares de vítimas,
Holanda, Bélgica e EUA. muitas delas fatais, engrossam as estatísticas
de acidentes rodoviários. As cifras consumidas
No plano interno, os eventos têm buscado o no atendimento, tratamento e recuperação
envolvimento de partes interessadas da desses acidentados poderiam ser direcionadas
sociedade nas áreas de influência das para reforçar os ainda limitados investimentos
hidrovias brasileiras, de representantes das em políticas públicas setoriais.
três esferas de governo e de entidades da
administração pública. Tais fóruns abrem Apesar da resistência de décadas, essa
espaço para a reflexão, discussão e adoção visão começa a dar espaço à ideia de que os
das melhores práticas de aproveitamento modais não são excludentes e devem ser
destes potenciais, ampliando a visão dos pensados com base em conceitos de
formuladores de políticas públicas, de complementaridade e integração. Tais
autoridades, de investidores, de reguladores, conceitos passam a nortear o planejamento no
de entidades não governamentais e da setor de transportes, direcionando esforços
sociedade em geral. para adequação e expansão dos sistemas
viários existentes.
Na linha da ruptura de paradigmas, é
importante destacar a Lei das Águas, por dar Por esse ângulo, o modal rodoviário é
ênfase ao princípio de que a gestão e o colocado em seu devido lugar, ou seja, no
planejamento dos recursos hídricos no Brasil carregamento e distribuição de ponta, nos
devem ser feitos sob o prisma do uso múltiplo. terminais de integração e transbordo, no
Esta nova ótica se opõe ao predomínio dos transporte de cargas de maior valor específico
empreendimentos hidrelétricos sobre as a distâncias pequenas e médias e, na
demais formas de utilização da água, e busca distribuição urbana e metropolitana. Nessa
harmonizar os vários interesses a partir da nova cultura, resgata-se a prioridade e a
integração de políticas setoriais (ANA, 2005). importância dos modais ferroviário e
aquaviário. Sabe-se que, comparativamente, o
Desse modo, começa-se a romper uma transporte sobre a água é o mais econômico e
cultura que, via de regra, desconsiderava o sustentável entre todos os meios. Apresenta
potencial de outras aplicações da bacia, a maior capacidade de carga, manutenção mais
exemplo do transporte hidroviário, da migração barata, vida útil mais longa. Uma embarcação
de peixes, da irrigação e de outros. carregada na hidrovia pode significar centenas
de caminhões a menos na rodovia, reduzindo
Essa discussão vem amadurecendo e já a poluição e os acidentes.
permeia diversas instituições por meio de
projeto de lei em tramitação no Congresso Todos esses fatores, combinados, moldam
Nacional (Projeto de Lei 3009-B, 1997). Se um ambiente favorável ao desenvolvimento
aprovada, a lei tornará obrigatória a avaliação dessa nova onda, no qual já se percebe um
prévia do potencial de navegação no recurso novo modo de ver e priorizar o modal
hídrico nos estudos de empreendimentos aquaviário. Vale citar que 2010 foi eleito o “ano
hidrelétricos. A finalidade é estabelecer das hidrovias” por autoridades do Ministério
medidas mitigadoras à construção de dos Transportes (Alerta em Rede, 2010). No
barragens, a exemplo da instalação de eclusas entanto, apesar desse cenário, ainda não se
para transpor desníveis nos rios, de modo a vislumbrou um fato concreto, um marco
não inviabilizar o transporte hidroviário, além significativo que demonstre a evolução para
de outros mecanismos de proteção da fauna. um novo patamar. Surge, então, o
Vale ressaltar que a obra de uma eclusa, questionamento acerca do que poderia ser
quando planejada e executada em conjunto caracterizado como a “terceira onda da
com o empreendimento hidrelétrico, torna-se hidrovia”? Essa resposta está imbricada com
significativamente mais econômica. uma pergunta que não quer calar: Por que um
país continental, que possui 29 mil quilômetros
Ainda nessa linha, outro paradigma que de vias naturalmente navegáveis, com a
precisa ser rompido refere-se ao predomínio possibilidade de extensão para 63 mil km, se
do “rodoviarismo” sobre os outros modais. incluídas as águas flúvio-lacustre, aproveita
Essa ênfase criou uma infraestrutura de economicamente apenas 13 mil km ?
7
7°Seminário de Transporte e Desenvolvimento Hidroviário Interior, Porto Alegre, 5 e 6 de Outubro de 2011
11