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Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 040639
Nº Convencional: JSTJ00001384
Relator: MANSO PRETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA GRAVE
EXCESSO DE VELOCIDADE
MANOBRA PERIGOSA
Nº do Documento: SJ199003210406393
Data do Acordão: 21-03-1990
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N395 ANO1990 PAG286
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM.
Legislação Nacional: CE54 ARTIGO 59.
CP82 ARTIGO 43 ARTIGO 73.
Sumário : O paragrafo final do artigo 59 do Codigo da Estrada constitui um caso de culpa grave que se deduz da sua ligação ao caso da alinea b), com a
exigencia dos pressupostos de excesso de velocidade ou da pratica de manobras perigosas ai especificadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - Pelo Tribunal Judicial de Coimbra (4 Juizo) foi julgado e condenado A, casado, engenheiro civil, nascido em 17/10/55, como autor material de
um crime de homicidio por negligencia previsto e punido pelo artigo 59, alinea b) do Codigo da Estrada e da contravenção ao artigo 5, n. 2 do
mesmo diploma, na pena de seis meses de prisão, substituida por multa a razão de 500 escudos por dia, e em seis meses de multa, a mesma taxa, e,
em alternativa de toda a multa, em oito meses de prisão, pena esta correspondente ao aludido crime, e na multa de 1000 escudos pela
contravenção.
O Tribunal condenou ainda o arguido na inibição de conduzir veiculos automoveis pelo periodo de seis meses, nos termos do artigo 61, n. 2, alinea
b) do referido codigo.
Da sentença da 1 instancia interpuseram recurso para a Relação de Coimbra o ilustre Magistrado do Ministerio Publico e o arguido, sendo certo
que o recurso deste foi interposto fora do prazo legal, pelo que se declarou a sua deserção.
Ao recurso do Ministerio Publico foi concedido provimento e, em consequencia, alterada a decisão recorrida com a condenação do arguido na
pena de sete meses de prisão (efectiva), a que acresceu a inibição de conduzir por igual periodo de tempo.
Do acordão da 2 instancia recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, alegando, em sintese: a) A definição de culpa grave e um conceito de
direito que tem de ser aferido da materia de facto. b) O artigo 59 do Codigo da Estrada fixa dois requisitos autonomos para a sua definição nas
alineas a) e b), e, para a sua verificação nos termos desta alinea b), tera de acrescer uma habitual improcedencia do causador do acidente. c) Não
age com culpa grave o condutor do acidente que e julgado condutor habitualmente prudente e previdente. d) O ultimo paragrafo do artigo 59 do
Codigo da Estrada não faz parte da alinea b) do mesmo artigo e nasceu da opção por uma solução intermedia na repressão dos casos de homicidio
resultantes de acidentes de viação: nem tão branda como aquela que decorre da mera culpa, nem tão intensa como aquela que tera de corresponder
aos casos de culpa grave. e) As exigencias de prevenção de infracções rodoviarias não determinam a aplicação da pena de prisão efectiva ao
agente julgado habitualmente condutor prudente e cauteloso. f) Face as circunstancias concretas do caso e tendo em atenção o bom
comportamento do arguido, a ausencia de antecedentes criminais, o facto de ser um condutor habitualmente prudente e cauteloso, a aplicação da
pena de multa e suficiente para atingir os fins de prevenção de infracções identicas. g) Se assim se não entender, sempre sera de suspender a
execução da pena de prisão, atendendo a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto, bem
como as circunstancias do proprio facto (a via estava excepcionalmente em obras). h) Deve, portanto, ser revogado o acordão recorrido,
substituindo-se a prisão por multa ou suspendendo-se a execução daquela.
O recorrente juntou douto parecer subscrito por dois Mestres de Direito.
Contra-alegou o Excelentissimo Magistrado do Ministerio Publico na Relação que opina no sentido de não provimento do recurso, posição esta
que tem o apoio do Excelentissimo Procurador Geral Adjunto neste Supremo.
II - Tudo visto:
1. Vem apurada pelas instancias a seguinte materia de facto.
Em 8 de Abril de 1987, cerca das 20,30 horas, ja fazia noite, o reu conduzia o veiculo automovel ligeiro misto, com a matricula HS-26-35,
pertencente a firma "B, Lda", com sede em Coimbra, pela faixa descendente, lado Norte, da referida arteria , ou seja, no sentido Nascente-Poente.
Em sentido oposto, e por aquela mesma faixa de rodagem, circulava o veiculo ligeiro de passageiros, com a matricula CS-65-60, conduzido pelo
seu dono, C, com o qual e na sua parte lateral esquerda o veiculo conduzido pelo reus embateu frontalmente.
Em virtude dessa colisão, sofreu o C as lesões traumaticas descritas no relatorio de autopsia junto aos autos, que foram causa necessaria e directa
da sua morte.
A referida Avenida tem duas faixas de rodagem separadas por uma outra ajardinada, processando-se o transito, num unico sentido, por cada uma
daquelas faixas de rodagem: pela do lado Norte, os veiculos que circulam (como acontecia com o reu) de Nascente para Poente; pela faixa de
rodagem do lado Sul, os veiculos que circulam no sentido Poente-Nascente.
Porem, a data do acidente dos autos, a faixa de rodagem do lado Sul (ascendente) encontrava-se em obras numa parte do seu traçado e por isso
estava vedada ao transito nesse mesmo troço, processando-se a circulação de viaturas unicamente pela faixa de rodagem do lado Norte.
Isso mesmo estava devidamente assinalado por placas indicativas de que a circulação se fazia nos dois sentidos pela faixa do lado Norte, e que a
velocidade estava limitada a 40 km/hora, placas essas colocadas a entrada do troço em obras, atento o sentido descendente, que era o do reu.
Este, que se deslocava diariamente, no exercicio da sua profissão de engenheiro, para Vila Nova de Poiares, onde a empresa para quem trabalhava
possuia o seu estaleiro", passava regularmente pela dita Avenida, e por isso sabia da existencia das obras e que, por via delas, o transito de viaturas
se processava, tão so, pela faixa de rodagem descendente, no percurso afectado por essas obras.
Apesar disso, o reu, porque conduzia o referido veiculo desatento, ocupou, inopinadamente, o lado esquerdo da via, atento o sentido por si
seguido, no troço onde o transito se processava nos dois sentidos, e por isso foi colidir, nas circunstancias ja referidas, com a viatura do C, que
circulava pelo lado direito da mesma via, atento o sentido por si seguido.
Não se apurou a que velocidade circulava o reu.
O reu e condutor habitualmente prudente e previdente.
Da profissão de engenheiro civil que exerce aufere o arguido o vencimento mensal de 60000 escudos, recebendo 26000 escudos de ajudas de
custo, tambem por mes.
A viuva da vitima ja foi indemnizada dos prejuizos sofridos em virtude do acidente.
2. Exposta a materia de facto apurada, cumpre apreciar o objecto do recurso, circunscrito a questão da sanção concreta a aplicar.
Ninguem neste processo põe em causa que o preceito que preve e pune o homicidio de que se trata e o artigo 59 do Codigo da Estrada, e
justamente na sua parte final: "No caso da alinea b) - excesso de velocidade na pratica de manobras perigosas, nos termos da parte final do n. 1 do
artigo 61 - quando não se trate de condutor habitualmente imprudente, a pena sera a de prisão de seis meses a dois anos e multa correspondente".
Tem-se discutido, porem, e discute-se mais uma vez aqui, se a norma transcrita integra um caso de culpa grave, porquanto o artigo 59, na sua parte
inicial, pune a culpa grave com pena mais elevada (prisão de um a tres anos e multa correspondente), apontando expressamente os seus requisitos
nas alineas a) e b), sendo certo que a referida norma exclui da sua previsão o caso de não se tratar de condutor habitualmente imprudente.
Apesar da tecnica imperfeita utilizada na redacção do artigo 59, a jurisprudencia deste Supremo e no sentido de que a parte ou paragrafo final do
mesmo constitui ainda um caso de culpa grave, o que se deduz da sua ligação ao caso da alinea b), com a exigencia dos pressupostos do excesso
de velocidade ou da pratica de manobras perigosas, ai especificados.
E, na verdade, a verificação de qualquer destes pressupostos - independentemente da imprevidencia habitual do condutor - e, em principio,
reveladora de uma culpa ou imprudencia grave, temeraria, qualificada ou grosseira, que justifica uma punição mais grave dentro dos quadros da
negligencia (conferir o artigo 136, n. 2 do Codigo Penal e Direito Criminal, I, pagina 430, nota 2, de Eduardo Correia com a colaboração de
Figueiredo Dias).
Em qualquer destes casos, a perigosidade do facto ilicito e elevada, e assim a lei a considera, punindo-o com uma pena agravada (relativamente a
pena cominada no Codigo Penal de 1886, artigo 368).
Mas, tendo esta questão interesse, não menor interesse reveste a questão da aplicação da pena aos casos concretos (individualização), sabendo-se
que os seus limites minimo e maximo se encontram fixados na lei e que e entre tais limites que deve ser determinada a medida concreta da pena,
apelando ao criterio da culpa, com a sua função fundamentadora e limitadora, e os criterios da prevenção - especial e geral (artigo 72 do Codigo
Penal).
Para o efeito, ter-se-a em atenção as circunstancias a que alude o n. 2 do mesmo artigo, aferidas pelo julgador segundo criterios valorativos
objectivos, libertando-se o que na pratica nem sempre sucede - de concepções pessoais, de simpatias ou emoções, susceptiveis de conduzir a
inconveniente substituição do programa normativo pelo seu proprio programa (conferir Criminologia pagina 550, de Figueiredo Dias e Costa
Andrade).
Descendo ao caso sub-judice, verifica-se que e elevado o grau de ilicitude do facto e graves as suas consequencias, encontrando-se, todavia,
satisfeita a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais correspondentes.
Quanto a intensidade da negligencia, ponto da maior importancia, constata-se, atraves da verdade processual adquirida, que o arguido invadiu a
parte esquerda da faixa de rodagem inopinadamente e, por isso, foi colidir com a viatura conduzida pela vitima, o que leva a concluir que ele não
passou a circular nessa faixa com persistencia, disso se apercebendo ou devendo aperceber-se, pondo em perigo a vida de outros utentes da via,
mas tão so nela penetrou, por desatenção momentanea, logo colidindo com a viatura da vitima. Sera, pois, caso de culpa menos intensa a justificar
um menor juizo etico-social de desvalor.
Por outro lado, a existencia de obras na via que obrigava a utilização de uma so faixa nos dois sentidos de transito, embora do conhecimento do
arguido, não constitui circunstancia indiferente ao acidente, segundo a experiencia comum, facilitando a ocorrencia de acidentes quando se não
tomem cuidados redobrados, acostumado como estava o arguido a utilizar toda a faixa antes das obras. facto, mostrando a materia de facto
apurada tratar-se de um engenheiro civil, com familia constituida, delinquente primario e condutor habitualmente prudente e previdente.
Tambem se ve que o facto ilicito teve lugar em 8 de Abril de 1987, pelo que, dentro de poucos dias, se completam tres anos sobre a data do
acidente, sem que o arguido tivesse contribuido maldosamente para o protelamento do processo, tendo decorrido assim, apos aquela data, um
apreciavel periodo de tempo, que, se não justifica uma atenuação especial da pena, (conferir artigo 73 n. 2, alinea d) do Codigo Penal) serve para
reduzir esta em alguma medida. Com efeito, a necessidade de reprovação foi-se diluindo com o tempo e a pendencia do processo envolve
certamente sofrimento para o arguido. Nestes termos, cre-se, tal como se entendeu na 1 instancia, que a pena de prisão deve ser fixada em seis
meses de prisão.
Não porque se considere que este limite e o unico razoavel, mas porque o julgador, tendo presente todo o sistema relativo a aplicação das penas, e
com vista a uma possivel pena de substituição, se encontra como que espartilhado por aquele, devendo proceder de modo a alcançar a solução
mais adequada perante as exigencias dos fins das penas.
Ora, no caso concreto, e reduzida a necessidade de ressocialização, dadas as condições pessoais do agente e ser um condutor habitualmente
prudente e previdente, e, por outro lado, aquela apontada pena e bastante para a afirmação da validade do direito (defesa da ordem juridica).
Resta averiguar se a indicada pena de prisão pode e deve ser substituida por uma pena de substituição, nomeadamente a pena de multa ou a de
suspensão de execução da pena.
Dispõe, a este proposito, o artigo 43 n. 1 do Codigo Penal: "A pena de prisão não inferior a seis meses sera substituida pelo numero de dias de
multa correspondente, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir a pratica de futuros crimes".
A substituição da prisão não superior a seis meses e assim imposta por este preceito, a menos que esteja contra-indicada em face das exigencias da
prevenção especial e da prevenção geral de defesa da ordem juridica.
Visando aquela a ressocialização do delinquente, ja ficou referido o reduzido grau da correspondente necessidade; e quanto a esta, a reprovação
publica inerente a pena de substituição e o castigo que ela envolve, aplicada num processo criminal e em audiencia solene, satisfazem o
sentimento juridico da comunidade.
Executar, no caso concreto, uma pena de prisão de curta duração por um facto culposo, ainda que grave, ocorrido ha tres anos, seria uma solução
não justificavel, quer do ponto de vista individual (ressocialização) quer do ponto de vista da consciencia juridica da comunidade.
Não se desconhece que ha sistemas que não prescindem da execução da pena de curta duração, dada a sua eficacia intimidativa, em certas zonas
da criminalidade (acidentes rodoviarios e crimes contra a economia, por exemplo). Mas não parece ser esse o caso do nosso direito, considerado
como um todo, ondem valem com intensidade, os principios da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiaridade no dominio das sanções
criminais, a menos que, como e obvio, existem prementes necessidades de ressocialização, o que não e o caso.
III - Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o dito acordão recorrido na parte em que aplicou uma pena de
prisão efectiva, a fim de substituir a sentença da 1 instancia que impos ao arguido a pena de prisão por seis meses, substituida por multa
correspondente, nos termos do n. 1 do artigo 43 do Codigo Penal, a taxa de 500 escudos por dia, e em seis meses de multa, a mesma taxa, com a
alternativa da multa global em oito meses de prisão, convertendo-se a multa de 1000 escudos pela contravenção e a inibição de conduzir pelo
periodo de seis meses.
Não e devido imposto de justiça.
Manso Preto,
Maia Gonçalves,
Jose Saraiva.

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