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de açúcar da
duração do período colonial de um grupo de senhores de enge-
nho e lavradores de cana-de-açúcar. Este artigo apresenta resul-
tados parciais de uma investigação de doutorado.
DOI: 10.1590/TEM-1980-542X2022v2801010
178-197
A
sociedade vem enfrentando conflitos e inquietações pautadas nas relações antropo-
cêntricas sobre o espaço natural (Rodrigues, 2009; Yeager et al., 2011). Trata-se de
uma profunda crise ecológica, expressão de um desequilíbrio da representação hu-
mana em relação à natureza (Stroh, 2004). No centro dessas questões está a perda dos
ecossistemas naturais, da biodiversidade e dos serviços ambientais. A Mata Atlântica nor-
destina – que tem início no norte do rio São Francisco e estende-se pelo litoral dos estados
de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte (Barreto, 2013, p. 18) – se destaca
dentre os ecossistemas brasileiros como o mais ameaçado pelas perdas florestais (Tabarelli
et al., 2006). Outro agravante à garantia de perpetuidade dessas florestas encontra-se no
fato de a maior parte estar sob a tutela privada sem proteção formal. Quase toda a floresta
remanescente em questão está dentro de propriedades particulares, notadamente em poder
das grandes usinas produtoras de açúcar e álcool, derivados da cana-de-açúcar, a Saccharum
officinarum (Uchôa Neto, Tabarelli, 2002).
A origem da degradação do bioma da Mata Atlântica nordestina é antiga e essa degradação
se intensificou ao longo do período colonial, quando europeus, especialmente os portugueses,
se assentaram e instalaram os primeiros núcleos urbanos e as plantações de cana-de-açúcar
para a produção do “ouro branco”, isto é, do açúcar, como têm demonstrado as pesquisas de
vários historiadores, biólogos, geógrafos, entre outros cientistas (Ferlini, 1986; Schwartz, 1988;
Pádua, 2002; Warren, 2011; Cabral, 2014; Barreto, 2013; Barreto, Drummond, 2016).
A reflexão acerca das relações do meio social com a paisagem natural não é algo novo.
Grandes nomes da historiografia brasileira, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Ho-
landa e Caio Prado Júnior, ainda na primeira metade do século XX, tomaram o meio am-
biente como personagem ativo na construção histórica da sociedade brasileira.1
Todavia, essas relevantes reflexões e pesquisas sobre o impacto da produção açucareira
não tiveram como foco profundo de análise as relações entre as dinâmicas sociais patrimo-
niais do período colonial e os processos ecológicos. Para compreender tais dinâmicas emer-
ge a necessidade de entendimento de como o ambiente natural influenciou os fatores eco-
nômicos, socioculturais e biofísicos na área atualmente conhecida como Mata Atlântica
nordestina – especialmente na capitania de Pernambuco – no período colonial.
Assim, este artigo analisará a organização espacial e as possibilidades geradas pelo am-
biente natural, que facilitou a fixação dos colonizadores e o desenvolvimento da atividade
açucareira por meio do plantio da cana-de-açúcar. Acredita-se que o domínio do potencial
natural do ambiente propiciou não somente o desenvolvimento da atividade açucareira, mas
também a consolidação de um grupo de produtores de açúcar, a nobreza da terra, ao longo
dos séculos XVI, XVII e XVIII.
1
O papel do ambiente nas interpretações desses três autores foi analisado no seguinte estudo: Barreto, Lopes, Vital (2017).
1570 (1) 23 1 - - - 24
1583 (2) 66 - - - - 66
1612 (3) 90 10 12 1 - 113
1629 (4) 150 18 24 - - 192
1630-1654 (5) 118 22 20 2 - 162
1655 (6) 109 - - - - 109
1710 (7) - - - - - 2463
1749 (8) 202 28 - 4 - 234
1760-1777 (9) 297 56 324 6 - 391
1777 (10) 318 51 42 14 5
87 6
512
Fontes: (1) Gandavo, 2008, p. 35; (2) Cardim,1939, p. 291-295; (3) Moreno, 1955, p. 175;(4) Cadenaapud Mauro, 1997, p. 255; (5)
Mello, 2012; (6) Mello,2004, p. 233-244; (7) Antonil, 2001, p. 178; (8) Informação..., 1908, p. 477-478; (9) AHU, Cód. 1821, doc. 10,
fls. 20-26; doc. 11, fls. 26-30; (10) Ideia..., 1918, p. 1-112.
2
Em 1546, o donatário de Pernambuco, Duarte Coelho, informava ao rei que os engenhos se encontravam espalhados
pela capitania. Há ainda estudiosos que afirmam que a primeira feitoria de Pernambuco data de 1516, embora sem boas
comprovações (Costa, 1983, p. 84).
3
Acredita-se que esse número, apontado por Antonil em 1710, acerca dos engenhos de Pernambuco, tendo em vista o
número de engenhos existentes nessa capitania no período anterior e posterior, seja exagerado. Possivelmente tal nú-
mero inclui os engenhos das capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.
4
Dos quais cinco eram engenhocas.
5
Dos quais 11 eram engenhocas que produziam apenas mel de cana-de-açúcar e rapadura.
6
Tratava-se de engenhos de fabricação de mel de cana-de-açúcar e rapadura, os quais quase não produziam açúcar.
7
A atividade açucareira continua até a atualidade, sendo os estados de Pernambuco e Alagoas responsáveis por mais
de 7% de toda a cana-de-açúcar cultivada no Brasil (Nocelli et al., 2017, p. 23).
8
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), “Carta Régia (cópia) da rainha regente D. Luísa de Gusmão proibindo a abertura
de novos engenhos no Recôncavo da Bahia em lugares prejudiciais à lenha e à cana-de-açúcar”, Bahia, Cx. 2, doc. 123.
AHU, “Parecer do Conselho Ultramarino sobre o levantamento de novos engenhos no Estado do Brasil, recomendando
que o vice-rei daquele Estado, conde de Óbidos, faça todas as diligências possíveis para informar a respeito da viabilida-
de da criação desses novos engenhos sem prejuízo dos que ali já existem, atendendo aos gastos que tal representaria
com as despesas em terras, escravos, gados, canaviais e lenha”, Brasil, Cx. 1, doc. 62. AHU, “Alvará do príncipe regente [D.
Pedro], proibindo a partir daquele momento a construção de novos engenhos de açúcar no Brasil, sem licença dos go-
vernadores das capitanias”, Brasil, Cx. 1, doc. 94.
Fonte: Elaborados pela autora a partir de: Informação... (1908, p. 477-478) e Ideia... (1918, p. 1-112).
9
AHU, Pernambuco, Cx. 73, doc. 6140, “Carta dos oficiais da Câmara de Olinda ao rei [D. José I], sobre o envio de um
manifesto dos fabricantes de açúcar indignados com a nova Mesa da Inspeção”.
10
AHU, Pernambuco, Cx. 73, doc. 6140. AHU, “Carta dos senhores de engenho sobre a injustiça de os punir sobre as alte-
rações da qualidade de diminuição dos pesos das caixas do açúcar”, Pernambuco, Cx. 108, doc. 8364.
11
AHU, Pernambuco, Cx. 108, doc. 8364.
12
DECRETO sobre o que deve pagar o açúcar nas Alfândegas desse reino. 27 de janeiro de 1751. Coleção dos regimentos
reais. Fls. 86-87. In: Projeto “O governo dos outros: imaginários políticos no Império português”. Disponível em: http://www.
governodosoutros.ics.ul.pt/imagens_livros/20_sistema_regimentos/vol_ii/0086.jpg. Acesso em: set. 2020.
13
Observou-se na capitania da Bahia em meados do século XVIII, a produção de quase todas as qualidades de açúcar
arroladas pelo mencionado decreto de 1751 que regulou os preços do gênero.
14
AHU, “Carta (2ª via) do [governador da capitania de Pernambuco], Félix José Machado [de Mendonça Eça Castro e
Vasconcelos], ao rei [D. João V], sobre um bando que lançou com relação às marcações das caixas de açúcar”, Pernam-
buco, Cx. 26, doc. 2356.
15
AHU, Pernambuco, Cx. 73, doc. 6140.
16
AHU, Pernambuco, Cx. 108, doc. 8364.
17
AHU, Pernambuco, Cx. 108, doc. 8364. AHU, Pernambuco, Cx. 128, doc. 9744, “Ofício do [governador da capitania de
Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre
o inverno chuvoso que prejudicou a plantação da cana e a safra”.
18
AHU, Pernambuco, Cx. 108, doc. 8364.
Diante da importância da terra como fator de produção, fato que certamente implicou
em disputa por recursos naturais, questiona-se em quais capitanias e freguesias as famílias
da nobreza da terra tiveram propriedades e como estas colaboraram para a sua reprodução
biossocial. Antes de mais, é necessário analisar como ocorreu a evolução da produção do
açúcar por meio da expansão da ocupação das principais freguesias produtoras de açúcar
nas Capitanias do Norte entre os séculos XVII e XVIII.
Essa análise irá incidir, sobretudo, na comparação entre os períodos de 1630-1654 e 1760-
1777, pois para estes há dados suficientes para analisar os engenhos das capitanias de Per-
nambuco, Itamaracá e Paraíba por freguesia e elucidar algumas questões. Para verificar o
número de engenho por freguesia para o primeiro período utilizou-se do levantamento
organizado por Evaldo Cabral de Mello (2012), no qual consta o histórico da posse dos
engenhos existentes durante o domínio holandês. Para tanto, Mello utilizou-se de uma
série de documentos portugueses e da WIC – como relação dos engenhos, registros de en-
tradas e saídas do porto do Recife, relação das dívidas, e ainda as Denunciações e Confissões
de Pernambuco acerca das verificações e inquirições do Tribunal do Santo Ofício –; além de
mapas e cronistas holandeses, e várias obras luso-brasileiras sobre os conflitos do período.
Para o segundo período utilzaram-se listas nominais de senhores de engenhos de açúcar
das Capitanias do Norte elaboradas pela Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e
Paraíba (1760-1780) nos seguintes anos: 1760-1761 – levantamento realizado devido ao esta-
belecimento da Companhia; e 1777 – levantamento dos engenhos criados nas Capitanias do
Norte no ano de fundação da Companhia até o referido ano.
19
Foram contabilizados somente os engenhos em atividade, ou seja, os “moentes”. Não foram adicionados na tabela os
engenhos que por diferentes motivos encontravam-se fora de atividade, chamados de “fogo morto”. Essa relação de
engenhos indica que existiam 39 engenhos de fogo morto em Pernambuco, e sete em Itamaracá.
20
Dos quais cinco eram engenhocas.
21
Dos quais cinco eram engenhocas.
22
As freguesias Muribeca, Cabo e Ipojuca pertenceram à jurisdição de Olinda até o ano da criação da vila do Recife em
1710, quando esta passou a ser detentora de tal jurisdição (Souza, 2009, p. 81-96).
23
Trata-se da descendência de Joana de Albuquerque, quinta filha que Jerônimo de Albuquerque teve com a índia taba-
jara Maria do Espírito Santo Arcoverde.
24
Trata-se da descendência de Cristóvão de Albuquerque, terceiro filho de Jerônimo de Albuquerque com dona Filipa
de Melo, sua segunda união.
A família Camelo Pessoa teve metade de seus engenhos (3) situados na freguesia da
Várzea, Pernambuco, onde ainda arrendou um engenho, o que evidencia o interesse da fa-
mília pela localidade. Os demais engenhos da família (3) situavam-se nas freguesias do
Cabo e São Lourenço da Mata, ambas em Pernambuco, e ainda em Goiana, Itamaracá. A
família Carneiro da Cunha, durante a primeira metade do século XVII, concentrou seus dois
engenhos na freguesia de Ipojuca, Pernambuco. Mas, a partir de meados do século XVII,
passou a estabelecer um sólido patrimônio na freguesia da Várzea, Pernambuco, onde de-
25
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (CGPP), Liv. 481, n° 559; Liv.
485, fls. 85-86.
26
Thomas Piketty (2014, p. 565-636), mesmo para a sociedade atual, apontou a desigualdade como fruto de intensos
processos históricos e da continuidade da acumulação de capital e de seus rendimentos, tendo destacado o papel
fundamental da herança para acumulação a longo prazo.
Considerações finais
Referências
ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting land (org.). Metamorfoses florestais: culturas, ecologias e as
into property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th transformações históricas da Mata Atlântica. Curitiba:
century. Tese (Doutorado em História), Johns Prismas, 2016.
Hopkins University. Baltimore, 2007. BARRETO, Cristiane Gomes; LOPES, Márcia Hele-
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por na; VITAL, André Vasques. O papel do ambiente no
suas drogas e minas. Lisboa: Comissão Nacional para pensamento social brasileiro: contribuições a partir
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e
2001. Caio Prado Júnior. História Revista (Goiânia). v. 22, n.
BARRETO, Cristiane Gomes. Devastação e proteção da 2, p. 45-63, 2017.
Mata Atlântica nordestina: formação da paisagem e políticas CABRAL, Diogo de Carvalho. Na presença da floresta:
ambientais. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Mata Atlântica e história colonial. Rio de Janeiro: Gara-
Sustentável), Universidade de Brasília. Brasília, 2013. mond Universitária, 2014.
BARRETO, Cristiane Gomes; DRUMMOND, José CALDEIRA, João Luís Picão. O morgadio e a expansão
Augusto. Com açúcar e sem afeto: a cana e a devas- no Brasil. Lisboa: Tribuna, 2007.
tação da Mata Atlântica Nordestina. In: CABRAL, CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2ª
Diogo de Carvalho; BUSTAMANTE, Ana Goulart ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1939.