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“Pois sob Luís XIV a corte não era apenas o centro essencial e determinante da sociedade.
Como o rei não aprovava, por motivos que serão discutidos mais tarde, a fragmentação do
convívio social e a constituição de círculos fora da corte — embora fosse impossível evitá-los
totalmente —, a vida social concentrava-se em grande medida na própria corte.” (p.97)
“Sob o reinado de Luís XV, o centro de gravidade deslocou-se de tais palácios para os hotéis,
as residências de aristocratas da corte que não eram príncipes. Mas isso de modo algum
diminuiu a importância da corte como centro. Nela, todas as engrenagens da sociedade
acabavam se juntando; nela se decidiam ainda a posição, a reputação e, até certo ponto, os
rendimentos dos cortesãos.” (p.97)
“Com o frágil reinado de Luís XVI, e o aumento da riqueza nas mãos dos burgueses, a corte
foi perdendo sua importância como centro social. A "boa sociedade" dispersou-se ainda mais,
sem que suas fronteiras com as camadas inferiores desaparecessem totalmente; elas apenas
ficaram mais difíceis de apreender para quem observa em retrospectiva. Até que finalmente as
tempestades da Revolução detonaram toda a estrutura.” (p.98)
“É na corte de Luís XIV que efetivamente se forma e constitui a nova sociedade de corte.
Conclui-se então definitivamente um processo que já estava em marcha havia muito tempo: os
cavaleiros e os epígonos cortesãos da cavalaria tornam-se enfim, de modo definitivo,
cortesãos no sentido próprio da expressão, indivíduos cuja existência social (e, com bastante
freqüência, sua renda) depende de seu prestígio, de sua posição na corte e no seio da
sociedade de corte.” (p.98)
“Todo esse complexo — com suas alas e pátios, com suas centenas de appartements, milhares
de salas, com suas passagens grandes e pequenas, claras e sombrias — constitui portanto, ao
menos na época de Luís XIV, a residência autêntica da corte e da sociedade de corte.” (p.100)
“As cerimônias do quarto de Luís XIV são citadas com bastante freqüência. Mas não basta
enxergá-las como mera curiosidade, como uma peça empoeirada de museu histórico, em que
o observador se surpreende apenas com o estranho e o exótico. Aqui, trata-se de trazê-las à
vida passo a passo, de modo que possamos tornar compreensível sua constituição e
funcionalidade na figuração de corte, da qual elas apresentam uma incisão, e com isso o
caráter e as atitudes dos indivíduos que formam tal figuração e por ela são marcados.” (100)
“O que mais salta aos olhos nessa cerimônia é a meticulosa exatidão da organização. Mas,
como vemos, não se trata de uma organização racional no sentido moderno, apesar da
exatidão com que cada movimento é estabelecido previamente, e sim de um tipo de
organização em que cada atitude revela um sinal de prestígio, simbolizando a divisão de poder
da época.” (p.102)
“O rei aproveitava suas atividades mais particulares para marcar as diferenças de nível,
distribuindo suas distinções, provas de favorecimento ou de desagrado. Com isso, fica
esclarecida a pergunta: a etiqueta tinha uma função simbólica de grande importância na
estrutura dessa sociedade e dessa forma de governo. É necessário avançar um pouco mais no
exame do âmbito da vida de corte para tornar tal função visível, assim como seus diferentes
papéis para o rei e para a nobreza.” (p.102)
“O fato de o rei despir sua camisa noturna e vestir sua camisa do dia era, sem dúvida, uma
atividade necessária; mas ela ganhou imediatamente um outro sentido no contexto social. O
rei fazia disso um privilégio para os nobres presentes, que os distinguia diante dos outros.”
(p.102)
“O ato se tornava, assim como no caso do pátio do castelo ou dos adornos da casa de um
nobre, um fetiche de prestígio. Servia como indicador da posição do indivíduo no frágil
equilíbrio de poder entre os diversos cortesãos, equilíbrio controlado pelo rei. O valor de uso,
a utilidade indireta que se ligava a todas essas atitudes, acabava desaparecendo ou tornando-se
bastante insignificante. O que dava a tais atos seu significado grandioso, sério e grave era tão-
somente a importância que eles atribuíam aos participantes no seio da sociedade de corte, a
posição de poder relativa a cada um, o nível e a dignidade que manifestavam.” (p.102-103)
“Uma vez que a hierarquia dos privilégios foi criada segundo os parâmetros da etiqueta, esta
passou a ser mantida apenas pela competição dos indivíduos envolvidos em tal dinâmica,
privilegiados por ela e compreensivelmente preocupados em preservar cada um dos seus
pequenos privilégios e o poder que eles conferiam.” (p.103)
“Na época de Luís XVI e Maria Antonieta observava-se mais ou menos a mesma etiqueta do
reinado de Luís XIV. Todos os membros da corte, desde o rei e a rainha até os nobres de
diferentes categorias, suportaram-na por muito tempo a contragosto. Temos bastantes
testemunhos de como ela perdeu toda a sua dignidade no decorrer do processo de diluição
antes mencionado. Apesar disso, foi preservada plenamente até a Revolução, pois desistir dela
teria significado — tanto para o rei quanto para o criado de quarto — um abandono dos
privilégios, uma perda de poder e de prestígio.” (p.103)
“(...) a etiqueta e o cerimonial tornaram-se cada vez mais um perpetuum mobile espectral, que
em função disso existia e se movia com total autonomia em relação ao valor utilitário
imediato, como que impelido por um motor inesgotável, pela competição dos homens
envolvidos em busca de status e poder — tanto entre si quanto em relação à massa dos
excluídos — e por sua necessidade de um prestígio claramente delimitado.” (p.104)
“Se todos cumpriam a etiqueta contrariados, não podiam romper com elas; e não só porque o
rei exigia a sua manutenção, mas porque a existência social dos indivíduos envolvidos estava
ligada a ela.” (p.104)
“Romper suas correntes significava ao mesmo tempo, para os nobres da corte, o rompimento
de sua condição aristocrática.” (p.105)
“Ele não se atém unicamente à ordem hierárquica tradicional. A etiqueta apresenta uma certa
margem de manobra de que ele se serve, segundo lhe convém, para determinar o grau de
prestígio das pessoas na corte; e isso mesmo em assuntos de pouca importância.” (p.106)
“A "racionalidade" da corte, se podemos chamar assim, não recebe o seu caráter específico,
como a racionalidade científica, nem em função do esforço pelo conhecimento e controle de
fenômenos naturais exteriores ao humano, nem em função do planejamento calculado da
estratégia na concorrência pelo poder econômico, como a racionalidade burguesa. Como
vimos, seu caráter específico deriva, em primeiro lugar, do planejamento calculado da
estratégia de comportamento em relação a possíveis perdas e ganhos de status e prestígio sob
a pressão de uma competição contínua pelo poder.” (p.110)
“(...) o ponto de partida não são muitos indivíduos singulares, mas a figuração que formam
entre si. A partir dessa perspectiva, não é difícil entender a perfeita conveniência das atitudes,
o cálculo preciso dos gestos, a nuance das palavras, em suma, a forma de específica
racionalidade que se tornou uma espécie de segunda natureza dos membros dessa sociedade.
Eles sabiam exercer essa racionalidade sem esforço, com elegância — e de fato ela era
indispensável —, assim como o controle das emoções exigido por esse exercício, como
instrumentos da disputa na concorrência por prestígio e status.” (p.110)
“Em toda "boa sociedade", ou seja, em toda sociedade com tendência a se segregar e destacar
dos campos sociais circundantes (por exemplo, em toda sociedade aristocrática e patrícia),
esse isolamento, esse pertencimento à "boa sociedade" estão entre os fundamentos
constitutivos tanto da identidade pessoal como da existência social.” (p.111)
“A opinião social tem, em outras palavras, uma importância e função bem diferentes das que
desempenham numa sociedade burguesa mais ampla. Ela funda a existência.” (p.112)
“Ao ter seu reconhecimento como membro recusado pela "boa sociedade", perdia-se a
"honra" perdendo assim uma parcela constitutiva de sua identidade pessoal. De fato, era
comum um nobre trocar sua vida pela "honra", preferir morrer a deixar de pertencer à sua
sociedade, o que significava deixar de se destacar da massa circundante. Sem essa distinção
sua vida não tinha sentido, ao passo que o poder da sociedade dos privilegiados permanecia
intacto.” (p.112)
“Ora, tudo o que desempenhava um papel na relação entre os homens convertia-se em chance
de prestígio nessa sociedade: o nível social, o cargo herdado e a antigüidade da "casa".
Convertia-se em chances de prestígio o dinheiro que alguém possuía ou ganhava. O
favorecimento do rei, a influência sobre a sua amante ou sobre os ministros, a participação em
uma determinada "panelinha" a liderança no exército, o esprit, as boas maneiras, a beleza do
rosto etc., tudo isso convertia-se em chance de prestígio, combinando-se no homem singular e
determinando seu lugar na hierarquia inerente à sociedade de corte.” (p.117)
“A prudência e a reserva são alguns dos traços dominantes no trato com as pessoas na corte.
Justamente porque todo relacionamento nessa sociedade é duradouro, uma única manifestação
impensada também pode ter efeitos duradouros. Os profissionais burgueses, por sua vez,
costumam agir em função de um fim precisamente delimitado no tempo e definido em termos
materiais. O interesse que o outro desperta está direta ou indiretamente associado a um
determinado valor material, presente em todo encontro, e só secundariamente ele interessa
como pessoa.” (p.125)
A racionalidade industrial, profissional e burguesa tem sua origem nas coerções das
interdependências econômicas; com elas, o que se torna calculável, em primeira instância, são
as chances de poder baseadas no capital privado ou público. A racionalidade de corte se
constitui a partir das coerções da interdependência social das elites; ela serve para tornar
calculável, em primeiro lugar, as pessoas e as chances de prestígio como instrumentos de
poder. (127)
“Assinalemos enfim que o racionalismo intelectual consciente dos séculos XVII e XVIII, que
costuma ser designado com uma palavra imprecisa como "Iluminismo" (Aufklãrung), não
deve ser entendido, de modo algum, somente no contexto da racionalidade burguesa e
capitalista, já que existem fortes vínculos entre ele e a racionalidade de corte. Esses vínculos
podem ser vistos facilmente em Leibniz, por exemplo. Mas em Voltaire também se estabelece
sem dificuldade essa ligação com a racionalidade de corte.” (p.128)
“Para quem fazia parte das camadas dominantes do Ancien Regime, a elegância da atitude e o
bom gosto — produtos elaborados de uma tradição social e possibilitados por sua existência
como rentiers — tornavam-se obrigatórios, para a aceitação e a ascensão em uma sociedade
regida pela convenção social e pela competição por prestígio.” (p.129)