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Raiter

(Trilologo)

De Gabriel Penner
Tradução: Ronei Vieira

Personagens

R1: Passado
R2: Presente
R3: Futuro

(Três personagens, duas mulheres e um homem, ou vice-versa ou vice-versa


da vice-versa. Vestidos iguais. Preferentemente de preto. Com camiseta ou
camisa com um colarinho alto. Uma das personagens está com os cabelos
raspados. Cada personagem deve ser construída tendo como base as
capacidades e INCAPACIDADES, máximas e mínimas, físicas e psíquicas.
Essas devem ser desenvolvidas a partir do interjogo entre a direção e os atores
e atrizes. Eles representam a mesma personagem-vida contada em diferentes
versões temporais. Solilóquios frontais com momentos corais e discussões.
Eles estão justapostos física e linguisticamente. Passado, presente e futuro
confluem em uma estética de movimento e tempo. Há presenças animais que
cruzam a estética: as personagens recorrem a uma ANIMALIDADE
MECÂNICA. A voz do papagaio como signo da repetição da palavra, o
movimento do touro como situação de franqueza...
A cor azul banha todo o palco, semeando um efeito noturno por meio das
luzes. É necessário um jogo de intensidades que vai se estabilizando
lentamente. No palco, há duas cadeiras ou bancos ou um único banco, uma
máquina de escrever, um barril e um "touro mecânico" ou simulador de sela.
As duas personagens masculinas/femininas estão sentadas nas cadeiras ou
bancos com seus cabelos cheios ou compridos. Elas podem estar de frente ou
de costas para o público. A personagem masculina/feminina entra e com um
par de tesouras e uma lâmina de barbear começa a raspá-las/os. Sem
palavras. Isto deve ser filmado na primeira apresentação e permanecerá como
o início das próximas apresentações, sendo reproduzido na parte de trás do
palco).
(Escuridão total)
(Uma luz iluminará a seu tempo, o rosto de cada personagem acompanhado de
sua intervenção textual)
R1: Eu era Raiter.
R2: Meu sobrenome é Raiter.
R3: Me chamarão Raiter.
R1: Comecei a fumar aos14 anos, foi na praia, esse fumo tinha sabor.
R2: Estou parando de fumar. Quer dizer, já não fumo mais, lavo minhas mãos
obsessivamente.
R3: A senhora que vende cigarros morrerá atendendo no quiosque da praça.
Ela olhará para mim pela última vez, enquanto entrega meu troco, apenas
algumas moedas que colocarei no bolso, irei embora, deixando o sol em seus
olhos acinzentados.
(Os três se abraçam e se agacham juntos. Luz sobre essa imagem)
CORO: Deus é uma IDEIA VAGA de homens vagos.
(A partir daqui a imagem gira em torno do palco ou pode se desfazer)
R1: Existi, como uma língua materna, mais do que isso, como o corpo de uma
mãe que foi me deixando. (Imitando a voz da mãe) "Adeus filhoooo" E eu
escrevi, fui escritura, dia e noite, perdido na perda.
R2: (Movimento acelerado e contínuo de uma perna) Gestos, eu sou gestos,
trejeitos, apenas um homem disfarçando trejeitos em seu lugar, eu estou
sendo, vendo, movendo.
R3: O futuro será silêncio, um fio avançará e será cortado, não haverá mais
labirinto.
R1: Para trás, voltar, DESCANSAR NA REDE, eu desci e subi, caí na merda.
R2: Vozes, vozes, são minhas vozes. Já. Calma.
CORO: Que coisa? Como coisa? Por que coisa? (Eles repetem)
R3: (Imitando uma campainha) Ding don, das ding, o silêncio irá saldar minhas
dívidas. Ding, don, das ding...das ding, das ding, das ding, das ding, das ding.1

1
Das Ding em alemão: A coisa. Também pode ser entendido como a “mesma coisa” ou a “última
realidade”
(Eles vão até o barril e entram nele)
R2: O que está surgindo?
R1: Tudo tem sido tão urgente!
R3: Será, será, será, serei, sempre serei INDIGENTE.
CORO: Pessoas em conservas! (Três vezes
(Eles saem do barril)
(Os três personagens realizam ações cotidianas)
R1: (Cortando suas unhas) Eu compliquei tudo. Tive dois filhos e muitas
ausências. Eu raspei as marcas que deixaram em mim e não soube esperar a
minha vez. Fracassei, fracassei, fracassei, fracassei, fracassei...
R2: (Ajoelhando-se, juntando seus cabelos em uma sacola) O FRACASSO é
luminoso. Esclarece. Resistência. Fracassar é resistir!
R3: (aproximando-se da máquina de escrever) Sim, é claro, a náusea do
fracasso invadirá minhas teclas.
R2: Raiter, o que está fazendo? Você está proibido de escrever, as mãos são
condutoras de ANGÚSTIA.
R3: (Movendo suas mãos como se estivesse enrolando algo) O papel
higiênico, viverá perseguido, submetido ao papel higiênico, que limpará as
manchas. O mundo te acusará, mas este, esta coisa, COISIFICARÁ. A
escritura será sempre suja.
R1: (gesto de parafusar com a mão no ar) Por que eu não troquei a lâmpada?

(R1 e R3 confrontam um ao outro com seus respectivos gestos)

R2: O que está acontecendo!


Papel!
Lâmpada!
Rolo!
Raio!
Agora acontece que, aqui, que agora, que sim, que são, sou, somos criaturas
patéticas e tristes, algo como uma MÁQUINA DE POESIA AMARGA que mete
a dentada no pescoço do mundo, sou, somos, são (Ele vai agarrar os outros
pelo pescoço), instrumentos que se deixam viver ou se deixam morrer...
R3: O que...o que...o que...o que... o que poderei, quem sabe, talvez,
possivelmente eu me canse de tudo isso. Serei uma criança na velhice.
R1: Lembrei-me de meus 72 anos frescos, deliciosos, quando fui.
R2: Outra vez. Esse hábito de merda de fazer do futuro um passado.
R3: Vou fazer meu tricô ao invés disso...
R2: Você o quê?
R3: Vou TECER as aranhas onde as teias vão crescer.
R2: Você não vê, futurás tudo, você fala de lá, você pensa que está adiante,
acima, você tem um ar de superioridade.
R3: Ah, Sr. Presente! Pura continuidade. Vai esquecer tudo isso, vai se perder,
vai se inventar e TE ESPERAREI. Você não saberá, não saberemos nem as
iniciais...
CORO: ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-ERRE-
ERRE-ERRE-ERRE!
(Explosão. Todos caem no chão. Corpo no chão).
R1: O que foi isso? O que aconteceu?
(Todos olham uns para os outros desorbitados)
CORO: Tivemos Alzheimer!
R3: Seremos uma demência acelerada, esqueceremos os disfarces cotidianos,
não haverá máscaras, definitivamente não seremos na FELICIDADE.
R2: Estamos todos em Alzheimer! Que grande cidade!
CORO: A luz do pensamento que não deixa pensar!
R1: A máscara era um luxo da saúde, eu quis dizer, a pessoa doente nunca
mentiu. Sim, o teorema foi definido: autenticidade como doença.
R3: PARRHESIA!2
(Eles se levantam em desespero e começam a gritar, correr, pular)
CORO: Para o touro! Para o touro! Para o touro!
(Os três arrastam um touro mecânico em direção ao centro do palco. Eles
começam a correr em torno dele como se estivessem jogando o jogo das
cadeiras).
R3: Eu vou subir e declamar! DESFINGIREI!

2
Em grego faz referência a virtude de usar a palavra para dizer a verdade. Está vinculado a dizer tudo
sem limites, falar guiado pela franqueza absoluta, inclusive em relação a si mesmo.
R2: Parrhesia! Ah não! É meu. Quero me mover com franqueza. Minha
verdade, minha verdade mecânica!
R1: Vocês me ouviram? Parrhesia! Eu era o Raiter, o cavaleiro desbocado.
(Ele pula sobre o touro e inicia um movimento feroz e em ziguezague)
(Os outros dois olham para ele por um momento e depois um vai para o barril,
o outro para a máquina de escrever ou fica dando voltas).
R3: (Desapontado) É possível servir a sinceridade?
A quem?
Virá outro homem por trás da culpa?
R2: (Profético) Há noites que incendeiam com uma flecha.
Deixa!
Deixe-me!
Deixe-o!
R1: (Falando rapidamente) Eu era o PAI de meu pai, o julgava, perdi suas
pegadas, matei todos os meus amigos querendo mudá-los, eu ri da pureza
como um louco, não aceitei, não escutei ninguém, fui paranóico, egoísta,
orgulhoso, SOBERBO, doce. (Soberba doce) Parrhesia, parrhesia, parrhesia!
(Confusão entre as palavras Raiter e parrhesia) Eu era teimoso, TEIMOSO,
teimoso, teimoso eu era. O que se esperava de mim? Desesperava de mim...
Es/des/es/es/es/des/es/es/es/es/es/es/es/es/des.... (O corpo convulsiona até
cair fora do palco)
(R2 e R3 olham para o corpo caído, depois um para o outro. Um deles retira
uma toalha de mesa do barril e a estende perto de R1, há três copos ou rolhas
e três abacates ou frutas de caroço).
R2: (Segurando um copo) Viene!
R3: (Levantando outro copo) Por venir!
R1: (Bebe um brinde) Vino!3
(Levantam os abacates como em um ritual de celebração)
R2: (Levantando a fruta)
Nós somos isto!
O mundo no mundo!
Nada nítido!

3
N.T. A opção por manter em espanhol se dá pelo jogo que o autor faz com a palavra “vino”, que é tanto
uma conjugação do verbo vir quanto significa vinho.
(Todos dividem a fruta ao meio)
CORO: Ponto cego do DESASSOSSEGO!
(Eles retiram os caroços e os rolam pelo chão. Cada personagem persegue
uma caroço, discursos ininteligíveis de preferência associados com as palavras
passado, futuro e presente ou Raiter-Parrhesia).
R3: (Em um arrebatamento R3 monta o touro mecânico) Parhesia! Não terei
dentes, não terei casa, não terei nada! Jamais farei o mesmo, nunca serei o
mesmo! ABOMINAREI o que fiz! Infelizes aqueles que dirão: (voz imposta) "Se
eu nascesse de novo, eu faria o mesmo". Devemos ter cuidado com a
repetição do repetido!
R2: O cuidado de se é NÃO. (Repete várias vezes acompanhando com
movimentos robóticos, precisos, como uma máquina).
(R3 desce do touro mecânico. Está confuso, atordoado).
R1: (Como se estivesse semeando algo) Éramos uma caravana, as vidas
convergiam em pessoas, sementes de grama espalhadas no ar.
R2: Estão todas aqui, eu as vejo, eu as toco (Abraçando o ar) Esta consciência
da inconsciência é tudo que eu tenho. Toda escritura tem um destino!
R1: Porque chegou quem a enviou.
R3: Qual será o sentido do destino?
CORO: Anagrama!
R1: De que foi feita a história da minha vida? Quantos dias, pães e páginas
foram necessários?
R2: (R2 pega um frasco, olha para ele, sacode-o) Sem comprimidos!
Consciência entorpecida!
R3: Estaremos sempre chegando.
R1: Apenas três dias, três gestos inúteis...
(Os três começam a realizar exercícios físicos, gerando uma máquina ginástica
com formas rotineiras e respirações sincronizadas, uma percussão corporal,
um teatro físico é priorizado).
(Após alguns minutos prolongados, eles começam a emitir palavras a partir
desta situação).
R3: O ESTILO vai atravessar o corpo.
R1: (Cantando uma canção infantil)
Uma faca fez um corte,
uma faca corta um gomo,
uma faca rasgou o véu...
R3: Sempre terei um bisturi.
R2: (Enfatizando o N)
Ninguém tem nada.
Ninguém tende nada.
Ninguém entende nada.
Ninguém em nada.
Ninguém de nada.
(Interrupção dos exercícios)
CORO: Mimesis, Mimesis, Mimesis!
R1: (Começa a realizar movimentos cotidianos identificáveis) Nós nos
entregamos à imitação, buscando a singularidade na cópia fiel, traçando
comportamentos, estipulando formas com um LÁPIS QUEBRADO.
R3: (imita rigorosamente R1 simulando a voz do papagaio) Vamos repetir:
Raiter...Raiter...até que os ossos não possam se juntar....
Raiter... Raiter... até que os ossos não possam se soldar...
Raiter...Raiter...até que os ossos não possam se dar...
R2: (Também imita) O problema é a fome. (Olhando uma vez para R1 e outra
vez para R3) A primeira, segunda e terceira pessoas desaparecem na
continuidade. A questão é o desejo... carregar com o talento de desejar... A
INFIDELIDADE: aqui está a arte... Protagoras4, está aí? Você estava errado:
não é o Homem, é a Fome a medida de todas as coisas.
R3: Fome de... (completar o ator/atriz)
R1: Fome de... (completar o ator/atriz)
R2: Fome de... (completar o ator/atriz)
(Repita o jogo com cânone de voz tantas vezes quanto a respiração do jogo
exigir)
R2: E se tudo isso fosse uma citação ou, ainda, uma citação entre aspas ou
uma NOTA DE RODAPÉ DA VIDA?

4
Sofista, que estava comprometido com o relativismo de valores e conhecimentos. De acordo com seu
pensamento, não existe uma verdade universal e objetiva. Seus "Discursos Demolidores" começam com a
frase que o fez transcender: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são, na medida em que são,
e das que não são, na medida em que não são". Nascido em Abdera por volta de 490 AC, ele viveu em
Atenas e na Sicília. Platão escreveu um diálogo com seu nome.
(R1 e R3 começam a despir R2)
R1 e R2: (Eles substituem a roupa preta por uma branca) A roupa é o destino.
R2: Tenho febre gelada.
R1: A fome do homem.
R3: Salto no vazio.
CORO: (Vozes de papagaio em atraso/atraso/efeito eco)
Fé de (R) erratas...
Fé de (R) erratas...
Fé de (R) erratas...

//////FIM/////

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