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ARTIGO

Trauma pélvico
◗ Avaliação, imobilização e manejo de
pacientes com fraturas pélvicas
BETO SOARES/ESTÚDIO BOOM

Os mecanismos de lesão mais asso- lisão no trânsito (pedestre, motociclista, da Lesão), instabilidade do anel pélvi-
ciados a fraturas do anel pélvico de- veículo motorizado, ciclista) e encarce- co, tamanho e contaminação da ferida
vem-se a impacto de alta energia, como ramento em veículos, conforme citam aberta, lesão retal, desvio fecal, núme-
queda de altura, prática de esportes, co- Arvieux C. et al. e Perkins Z. B. et al. ro de unidades sanguíneas transfundi-
Segundo Costantini T. W. et al., 10 a das, AIS (Abbreviated Injury Scale/Esca-
Jade Fonsêca Ottoni de Carvalho - Mestre em Enfermagem; 15% dos pacientes com fraturas pélvi- la Abreviada de Lesões) e déficit focal
Especialista em Urgência e Trauma; Docente do Curso de Enfer-
magem do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF
cas chegam ao pronto-socorro em es- na admissão.
jadeottoni@gmail.com tado de choque e um terço deles morre, O manejo específico é focado na he-
com alguns estudos apresentando taxa mostasia, estabilização da pelve e mane-
Wesley Pinto da Silva - Mestre em Ensino em Ciências da Saú-
de e Meio Ambiente; Especialista em Enfermagem em Urgência de mortalidade de 32%. Além disto, a jo de outras lesões associadas, incluindo
e Emergência; Oficial Enfermeiro do Corpo de Bombeiros Militar presença de fratura de pelve é um mar- as que envolvem órgãos intrapélvicos.
do Estado do Rio de Janeiro
cador de maior gravidade e pior prog- O sangramento associado a fraturas
Naiara Rezende Souza - Especialista em Urgência e Emergên- nóstico em vítimas de trauma fechado, pélvicas geralmente vem de superfí-
cia e em Enfermagem do Trabalho; Enfermeira Intervencionista
no SAMU CISSUL e SAMU CISURG
de acordo com M. C. R. Filho et al. cies ósseas, plexos venosos pré-sacrais
Conforme Perkins Z. B. et al. e Grotz e lombares, e apenas 15-20% de lesões
Eric Rosa Pereira - Mestre em Enfermagem; Docente na M. R. W. et al., a maioria das mortes arteriais, explicam Seneviratne R. W. et
Fundação Técnico Educacional Souza Marques- FTESM e no
Centro Universitário UNIABEU ocorre no dia do trauma e os princi- al. e Pascarella R. et al.
pais fatores associados à mortalidade Lesões pélvicas complexas estão en-
Fábio José de Almeida Guilherme - Mestre em Enfermagem;
Professor Adjunto Mestre na Universidade UNIGRANRIO; Oficial
são aumento da idade, ISS (Injury Se- tre as lesões mais perigosas e mortais
Enfermeiro da Força Aérea Brasileira verity Score/Pontuação de Gravidade relacionadas ao trauma. Existem dife-
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rentes sistemas de classificação, alguns
são baseados no mecanismo da lesão,
alguns nos padrões anatômicos e ou-
tros focados na instabilidade resultante
que requer fixação operatória. De acor-
do com Coccolini F. et al., o manejo de
pacientes com trauma pélvico visa res-
tabelecer definitivamente a homeosta-
se e a fisiopatologia normal associada à
estabilidade mecânica do anel pélvico.

TIPOS DE LESÕES
Como apontam Burgess A. R. et al.,
entre os diferentes padrões de fratu-
ra que afetam o anel pélvico, cada um
tem uma probabilidade de sangramen-
to diferente. Não existe associação de-
finitiva entre padrão de fratura e san-
gramento, mas alguns padrões como
APC III estão associados a uma maior
taxa de transfusão, de acordo com al- mente o uso de líquidos administrados anel pélvico hemodinamicamente está-
guns estudos. anteriormente a transfusões de sangue veis VS e CM; e lesões pélvicas graves
Conforme os autores Costantini T. W. e racionalizou o uso de concentrado (WSES grau IV), qualquer lesão no anel
et al., Burgess A. R. et al., Goslings J. C. de hemácias e plasma fresco congelado pélvico hemodinamicamente instável.
et al. e Blackmore C. C. et al., as lesões (razão 2:1), começando nas primeiras Quando um paciente traumatizado
no nível do anel pélvico podem criar horas após a lesão, explicam Perkins estiver em um ambiente seguro, a ava-
instabilidade do próprio anel e, conse- Z. B. et al. liação e ressuscitação sistemática po-
quente, aumento do volume interno. Segundo Coccolini F. et al., o mane- dem começar. De acordo com Rajab
Este aumento de volume, principal- jo do trauma requer uma avaliação da T. K., Weaver M. J. e Havens J. M., du-
mente nas lesões em “livro aberto”, as- lesão anatômica e de seus efeitos fisio- rante a pesquisa primária, o manejo das
sociadas ao tecido mole e à ruptura vas- lógicos. A definição do ATLS (Advanced vias aéreas, a ventilação e o início do
cular, facilita o aumento da hemorragia Trauma Life Support) considera “instá- suporte hemodinâmico têm prioridade.
no espaço retroperitoneal, reduzindo o vel” o paciente com: pressão arterial < Para Rajab T. K., Weaver M. J., Havens
efeito de tamponamento (o anel pélvico 90 mmHg e frequência cardíaca > 120 J. M. e Lee C. e Porter K., a pelve de-
pode conter até alguns litros de sangue) bpm, com evidência de vasoconstrição ve ser abordada como parte da avalia-
e pode causar uma alteração no estado da pele (fria, úmida, com diminuição do ção secundária; a história do paciente
hemodinâmico. reenchimento capilar), nível alterado de deve esclarecer o mecanismo da lesão,
A definição de um protocolo de he- consciência e/ou falta de ar. incluindo a direção do vetor de força,
morragia massiva reduziu significativa- A Classificação da WSES (World So- de modo a identificar uma potencial
ciety of Emergency fratura pélvica.
Surgery/Sociedade Com frequência é observada ainda
Mundial de Cirur- a orientação da prática de pressionar
gia de Emergên- (“springing”) a pelve para identificação
cia) divide as lesões de sensibilidade ou instabilidade como
do anel pélvico em um indicador de fratura pélvica e, por-
três classes: lesões tanto, uma fonte de hemorragia inter-
leves (WSES grau na. Segundo Macleod M., Powell J. N.
I), lesões no anel e Frcs C., diversos métodos de pressão
pélvico hemodina- da pelve foram descritos: a maioria en-
micamente estáveis volve compressão ou movimentação do
APC I, LC I; lesões local da fratura.
pélvicas modera- No entanto, atualmente se acredita
das (WSES grau que estes testes não são confiáveis, de-
II), lesões no anel tectando apenas grandes perturbações
pélvico hemodina- pélvicas e gerando risco de desaloja-
micamente estáveis mento de coágulos e promoção de mais
APC II - III e LC perda de sangue, conforme explicam
II – III e WSES Lee C. e Porter K. Um estudo clássi-
grau III, lesões no co que analisou pacientes com trauma
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contuso (excluindo lesões múltiplas) ponde, a pelve não deve ser palpada pacientes em risco.
constatou que a pressão/movimenta- em busca de sensibilidade ou instabi- De acordo com Coccolini F. et al., é
ção da pelve tinha uma especificidade lidade, a fratura pélvica deve ser assu- recomendada a aplicação de compres-
de 71% e uma sensibilidade de 59%, mida como presente e rotineiramente são pélvica externa não invasiva co-
sugerindo que o uso rotineiro desse imobilizada. mo estratégia precoce para estabilizar
exame deveria ser abandonado, cita o anel pélvico e diminuir a quantidade
Grant P. T. TRATAMENTO de hemorragia pélvica, na fase inicial
Durante o exame físico, são suges- Na determinação da estratégia ideal da ressuscitação, com nível de reco-
tivos de lesão pélvica significativa: de- de tratamento, a classificação anatômi- mendação 1A.
formidade, hematomas ou edema sobre ca das lesões deve ser complementada Este é o método mais rápido, fácil e
as proeminências ósseas, púbis, períneo pelo estado hemodinâmico e agravos amplamente disponível para reduzir o
ou bolsa escrotal; assimetria de compri- associados. Conforme Coccolini F. et sangramento e estabilizar uma fratura
mento de membros inferiores ou defor- al., a descrição anatômica das lesões da pelve. As cintas comerciais estão dis-
midade rotacional de um de um deles do anel pélvico é fundamental no al- poníveis, mas podem ser improvisadas
(sem fratura nessa extremidade). Feri- goritmo de manejo, mas não definiti- com lençóis. A aplicação do dispositivo
das em região pélvica ou sangramento va; as primeiras decisões são baseadas reduz o volume pélvico e, portanto, o
do reto, vagina ou uretra podem indi- principalmente nas condições clínicas espaço disponível para o sangramen-
car uma fratura aberta, porém, déficits e nas lesões associadas, e menos nas to. Segundo Coccolini F. et al. e Toth
neurológicos em membros inferiores fraturas em si. L. et al., embora alguns tipos de fratu-
raramente estão presentes. Em geral, Com base na classificação de lesões ras pélvicas não apresentem melhora
sangramento retal ou vaginal discre- da WSES foi proposto o algoritmo de e em algumas lesões por compressão
to ou próstata alta não serão detecta- tratamento, apresentado na Figura 2. lateral a deformidade possa aumentar,
dos no ambiente pré-hospitalar, como Segundo Coccolini F. et al., o manejo não foi associado ao uso da cinta ris-
apontam Rajab T. K. e Lee C. do trauma pélvico, assim como para to- cos que possam contraindicar sua uti-
De acordo com Lee C. e Porter K., dos os demais pacientes politraumatiza- lização rotineira.
o paciente cooperativo, orientado e dos, precisa ter como foco o tratamen- Um estudo comparando o uso de uma
alerta, sem lesão de distração, deve ser to também dos efeitos fisiológicos da cinta pélvica comercial e de lençol não
questionado sobre a presença de dor na lesão. Estudos indicam que um proto- mostrou diferenças no movimento da
área pélvica, incluindo a região lombar colo de fixação externa pélvica precoce hemipelve, lesionada durante a aplica-
(avaliação da articulação sacroilíaca), em conjunto com estabilização pélvica ção dos dispositivos. Conforme Prasarn
virilha e quadril, com imobilização ro- preperitoneal e subsequente angioem- M. L. et al., durante a transferência do
tineira da pelve para qualquer respos- bolização em pacientes com hemorra- leito, a rolagem em bloco e a elevação
ta positiva. gia contínua resulta em uma melhora da cabeceira da cama, não houve dife-
Segundo os autores, no caso de um significativa na sobrevida de hemorra- renças significativas nos deslocamentos
paciente traumatizado que não res- gia exsanguinante retroperitoneal, em observados quando a pelve foi imobili-
zada com um lençol ou com uma cin-
ta. Porém, é considerado que as cintas
pélvicas são mais efetivas no controle
de hemorragia, quando comparadas ao
lençol, explicam Coccolini F. et al.
Estes dispositivos devem ser removi-
dos logo que possível, de acordo com a
estabilidade do paciente, e substituídos
por fixação pélvica externa ou estabi-
lização pélvica definitiva, se indicado.
Não há evidências na literatura, mes-
mo com baixo nível de recomendação,
que sugiram a utilização de outros mé-
todos improvisados, como KED (Ken-
drik Extrication Device) invertido ou ta-
las moldáveis.
De acordo com Rajab T. K., Weaver
M. J. e Havens J. M., a posição adequa-
da da cinta pélvica deve ser ao redor
do trocânter e da sínfise púbica para
aplicar pressão, de modo a reduzir a
fratura pélvica e aduzir membros infe-
riores para diminuir o volume interno
pélvico. Para Coccolini F. et al., a cinta
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vicos sejam redu- Estratégias de gerenciamento agudo
zidos. O objetivo para lesões pélvicas com choque he-
é fornecer a força morrágico associado incluem: oclusão
concêntrica primá- ressuscitadora da aorta por balão endo-
ria da circunferên- vascular (REBOA - Resuscitative Endovas-
cia, no nível dos tro- cular Balloon Occlusion of the Aorta) (Figu-
cânteres. Conforme ra 3), para pacientes graves em conjunto
Rajab T. K., Weaver com ressuscitação guiada por point-of-care
M. J. e Havens J. M., para coagulopatia pós-lesão.
as extremidades do
lençol devem ser CONCLUSÃO
fixadas com pin- A fixação pélvica externa proporcio-
ças Kelly, apontadas na estabilidade temporária do anel pél-
lateralmente para vico e deve ser utilizada como adjuvan-
evitar beliscar a pe- te no controle precoce da hemorragia,
le. Se não houver em vítimas de trauma pélvico hemodi-
pinças disponíveis, namicamente instáveis. A angioembo-
as extremidades do lização é uma medida efetiva para con-
lençol podem ser trole de hemorragia em pacientes com
amarradas em um sangramento pélvico retroperitoneal de
nó. origem arterial. A fixação cirúrgica pél-
deve ser cuidadosamente aplicada em Estas técnicas são contraindicadas vica definitiva é indicada quando há ins-
pacientes gestantes ou idosos. quando outras lesões com risco de vi- tabilidade do anel pélvico posterior pa-
Sempre que possível, a remoção da da são prioritárias, como aquelas que ra redução anatômica da fratura e fixa-
prancha longa rígida reduz significati- afetam as vias aéreas, respiração ou ção interna. Os padrões típicos de lesão
vamente potenciais lesões por pressão. circulação do paciente. Também é im- que requerem fixação cirúrgica incluem
Algumas complicações podem ocorrer portante diferenciar os mecanismos de lesão rotacionalmente instável (APC-II,
caso a cinta não seja removida quando lesão de alta energia, dos mecanismos LC-II) e/ou fraturas verticalmente ins-
possível ou caso esteja muito apertada: de lesão de baixa energia. Segundo Ra- táveis do anel pélvico (APC-III, LC-III,
ela não deve ser mantida por mais de 24 jab T. K., Weaver M. J. e Havens J. M., VS, CM). A fixação cirúrgica de sínfise
a 48 horas. Segundo Hedrick-Thomp- pacientes com osteoporose com queda púbica representa a modalidade de es-
son J. K., necrose tissular e lesões por da própria altura podem fraturar facil- colha para correção de lesões em “livro
pressão podem ser agravadas por apli- mente a pelve, mas, estas fraturas rara- aberto” com diástase de sínfise púbica
cação contínua de pressão acima de mente perturbam a vasculatura local. > 2,5 cm (APC-II, APC-III).
9,3 kPa, por mais de duas a três horas. Sendo assim, a aplicação destes dispo-
No caso do uso de lençol, uma vez sitivos é contraindicada em pacientes
que esteja posicionado, as extremidades com fraturas pélvicas de baixa energia,
devem ser cruzadas anteriormente e pu- pois pode causar mais danos aos ossos Leia bibliografia completa no site
xadas firmemente até que os ossos pél- osteoporóticos. www.revistaemergencia.com.br

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