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cirurgia do trauma – cirurgia plástica – ortopedia

volume 3

cirurgia do trauma
cirurgia plástica
ortopedia
CIRURGIA DO TRAUMA

André Oliveira Paggiaro


Eduardo Bertolli
José Américo Bacchi Hora
CAPÍTULO

1
Atendimento inicial ao politraumatizado
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

gio Americano de Cirurgiões, por meio do seu Comitê de


Pontos essenciais Trauma, criou uma padronização de condutas hoje seguida
- Triagem no atendimento de múltiplas vítimas; em vários países, inclusive o Brasil. O Suporte Avançado de
- Avaliação inicial e suas etapas. Vida no Trauma (Advanced Life Trauma Support – ATLS®)
visa sistematizar as condutas no atendimento desses pa-
1. Introdução cientes, com base no reconhecimento e no tratamento das
lesões com maior risco à vida. Neste e nos demais capítulos,
Os traumatismos são a principal causa de mortalidade seguiremos as condutas preconizadas no ATLS®.
nas faixas etárias mais jovens, acarretando consequências
econômicas e sociais devastadoras em nosso meio. No Bra- 2. Triagem
sil, estima-se que 140.000 pessoas morrem por ano, e o tri-
plo desse número tem algum tipo de sequela permanente. São comuns situações de desastres com múltiplas vítimas.
Por esses motivos, o trauma é considerado uma “doença”, Nesses casos, torna-se necessária a triagem destas, classifican-
com a peculiaridade de ser a única totalmente evitável, com do-as de acordo com a gravidade das lesões. Isso permitirá o
medidas governamentais ou apenas comportamentais. atendimento pré-hospitalar adequado e a otimização dos re-
Classicamente, a mortalidade no trauma segue um pa- cursos humanos e estruturais para o atendimento.
drão trimodal conforme proposto por Trunkey em 1982 (Fi- Na fase pré-hospitalar, costumam-se utilizar escalas ou
gura 1). O 1º pico responde por 50% dos óbitos e ocorre de escores para estratificar as vítimas segundo a gravidade.
segundos a minutos após o trauma, decorrente de lesões gra- Uma das mais utilizadas, o START (Simple Triage And Rapid
ves de difícil tratamento, contra as quais a prevenção primá- Treatment), utiliza como parâmetros clínicos a capacidade
ria é a melhor conduta. O 2º pico, nas primeiras horas após de locomoção, respiração, enchimento capilar e nível de
o evento traumático, corresponde a 30% dos óbitos e pode consciência de acordo com um algoritmo (Figura 2). Os pa-
ser evitado por meio de um atendimento inicial adequado. cientes são então classificados em cores de acordo com a
Por fim, o 3º pico, de dias a semanas após o evento, decorre gravidade: verdes (estáveis, podem aguardar atendimento);
de complicações sistêmicas e responde pelos 20% restantes. amarelos (potencialmente graves, mas sem risco de mor-
te nas próximas 2 horas); vermelhos (graves, com risco de
morte nas próximas 2 horas); e pretos (óbito).

Figura 1 - Distribuição trimodal dos óbitos por trauma, segundo


Trunkey

No início dos anos 1980, com o objetivo de melhorar o


atendimento inicial aos doentes politraumatizados, o Colé- Figura 2 - START

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CI RUR G I A D O TRAU M A

Cabe também à equipe do pré-hospitalar e de regula- Na vida prática, essas etapas podem ser realizadas si-
ção médica determinar as chamadas zonas quente, morna multaneamente. Entretanto, o socorrista que conduz o
e fria. Zona quente é o epicentro do acidente, e deve-se evi- atendimento deve ter em mente que a sequência deve ser
tar o excesso de pessoas e recursos nessa região pelo risco respeitada. Ou seja, só se passa para o próximo passo (a
de novos eventos adversos. Zona morna é a região segura próxima “letra”) após o anterior ser completamente resol-
mais próxima do evento, onde deve ser montado o posto vido. Ao término do atendimento, o doente deverá ser re-
médico avançado para tratamento inicial das vítimas mais avaliado.
graves. A zona fria é uma região mais segura, onde se deve
concentrar a maior parte dos recursos humanos e materiais A - Manutenção das vias aéreas com controle da
para o atendimento. coluna cervical
Uma vez estabelecida a gravidade das vítimas, é impor- A permeabilidade das vias aéreas é a 1ª medida do
tante avaliar se os recursos humanos e estruturais são sufi- atendimento. Pacientes com respiração ruidosa ou roncos,
cientes para atender todos os pacientes. Quando o número
e os inconscientes apresentam maior risco de comprome-
de vítimas excede a capacidade de atendimento, as vítimas
timento da via aérea. A presença de corpos estranhos e de
com maiores chances de sobrevivência são atendidas prio-
fraturas faciais, mandibulares e traqueolaríngeas também
ritariamente, pois seu atendimento demanda menor gas-
podem comprometer a perviedade das vias aéreas.
to de tempo, de equipamentos, de recursos e de pessoal.
A retirada de corpos estranhos e a realização de mano-
Quando o número de vítimas não excede a capacidade de
bras simples para a estabilização das vias aéreas, como a ele-
atendimento, os pacientes com maior risco e considerados
vação do queixo (chin lift) e a anteriorização da mandíbula
mais graves serão atendidos primeiramente.
(jaw thrust), devem ser feitas imediatamente, sempre com
É importante ressaltar que crianças, idosos e gestantes
proteção da coluna cervical (Figura 3). Em alguns casos, essas
apresentam peculiaridades, mas não são, per se, prioridade
medidas não são suficientes para garantirem uma via aérea
no atendimento em situações de múltiplas vítimas.
pérvia, e será necessária uma via aérea definitiva, através de
intubação oro ou nasotraqueal ou de cricotireoidostomia.
3. Avaliação inicial
A avaliação inicial do doente politraumatizado, de acor-
do com o ATLS®, é um processo dinâmico no qual as lesões
são diagnosticadas e tratadas simultaneamente. Dessa ma-
neira, a falta de um diagnóstico definitivo não impede a in-
dicação do tratamento adequado.
Didaticamente, a avaliação inicial pode ser dividida em
etapas:
- Exame primário e reanimação;
- Medidas auxiliares ao exame primário;
- Exame secundário e história;
- Medidas auxiliares ao exame secundário; Figura 3 - Estabilização das vias aéreas: (A) chin lift e (B) jaw trust;
- Reavaliação e monitorização contínua; no chin lift, deve-se evitar a extensão cervical

- Cuidados definitivos. Todo paciente com traumatismo fechado acima da cla-


vícula, com alteração do nível de consciência ou vítima de
4. Exame primário e reanimação – o ABC- trauma multissistêmico, deve ser considerado portador
de lesão da coluna cervical até que se prove o contrário.
DE do trauma Logo, torna-se necessária a estabilização da coluna cervical,
Durante o exame primário, o socorrista deverá identifi- seja pelo uso de dispositivos como o colar rígido, seja por
car e tratar as lesões com risco iminente de morte. O ATLS® manobras manuais simples. Isso previne a lesão medular
propõe um atendimento padronizado, cuja sequência se- iatrogênica, nos casos de lesão óssea ou ligamentar; ou a
gue o método mnemônico do ABCDE do trauma. Assim, piora de traumatismo medular preexistente, nos casos de
instituiu-se esta sequência no atendimento ao politrauma- instabilidade cervical. Durante o atendimento inicial, o ob-
tizado: jetivo é estabilizar a coluna e não diagnosticar o traumatis-
- A: vias aéreas com proteção da coluna cervical (Airway); mo raquimedular.
- B: respiração e ventilação (Breathing);
- C: circulação com controle da hemorragia (Circulation); B - Respiração e ventilação
- D: incapacidade, estado neurológico (Disability); A permeabilidade das vias aéreas não significa ventila-
- E: exposição com controle do ambiente (Exposure). ção adequada. Após a obtenção e a certificação da perme-

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AT E N D I M E N T O I N I C I A L A O P O L I T R A U M AT I Z A D O

abilidade das vias aéreas, são necessários a integridade e o que recebem pontuações (Tabela 2). A pontuação mínima é
bom funcionamento dos pulmões, da parede torácica e do 3, e a máxima, 15, sendo classificado como comatoso todo
diafragma para que ocorra a correção da hipóxia por meio paciente com escore <9. Quando um paciente apresenta re-
da hematose adequada.

CIRURGIA DO TRAUMA
baixamento do nível de consciência, é necessário revisar as
Nesta fase do atendimento, é importante identificar e vias aéreas, ventilação, oxigenação e perfusão, pois altera-
tratar as lesões com risco imediato à vida do paciente (Ta- ções nessas funções vitais podem comprometer o nível de
bela 1). O diagnóstico dessas condições é clínico e deman- consciência. Todo paciente em coma tem indicação de via
da tratamento imediato. Independente da lesão, todo poli- aérea definitiva.
traumatizado deve receber oxigênio suplementar, e sempre
que possível, a saturação deve ser medida continuamente Tabela 2 - Escala de coma de Glasgow
por meio de oxímetro de pulso. Espontânea 4
Tabela 1 - Lesões com risco imediato à vida Ao estímulo verbal 3
Abertura ocular (O)
- Obstrução de vias aéreas; Ao estímulo doloroso 2
- Pneumotórax hipertensivo; Sem resposta 1
- Hemotórax maciço; Obedece a comandos 6

- Tamponamento cardíaco; Localiza dor 5


Flexão normal (retirada) 4
- Tórax flácido com contusão pulmonar. Melhor resposta motora (M)
Flexão anormal (decorticação) 3
C - Circulação com controle da hemorragia Extensão (descerebração) 2
Sem resposta (flacidez) 1
A perda sanguínea é a principal causa de mortes evitá-
veis por trauma. Todo paciente politraumatizado com hi- Orientado 5
potensão e taquicardia deve ser considerado hipovolêmico Confuso 4
até que se prove o contrário. A avaliação hemodinâmica Melhor resposta verbal (V) Palavras inapropriadas 3
baseia-se em parâmetros clínicos como frequência cardía- Sons incompreensíveis 2
ca, pressão arterial, diurese e nível de consciência. Sem resposta 1
As hemorragias externas devem ser identificadas e con-
troladas durante o exame primário, preferencialmente, por Déficits neurológicos, como plegias, podem ser relata-
meio de compressão direta. A reposição volêmica, quando dos, mas o exame neurológico pormenorizado deve ser re-
indicada, deve ser precoce. Preconiza-se a inserção de 2 ca- alizado apenas durante o exame secundário.
teteres de grosso calibre nas veias periféricas, com coleta
de amostra de sangue para tipagem e exames como dosa- E - Exposição com controle do ambiente
gem de hemoglobina e hematócrito (importantes para ava-
liação de pacientes que cursam com perda volêmica), HCG Durante a fase inicial, o paciente deverá ser despido
(gonadotrofina coriônica humana – para excluir ou confir- para avaliação do dorso, períneo e extremidades. É impor-
mar gestação), eletrólitos (para avaliação de desequilíbrio tante adotar medidas necessárias para a prevenção da hi-
hidroeletrolítico), amilasemia (quando aumentada, sugere potermia, como a utilização de cobertores, mantas térmicas
lesão pancreática), gasometria arterial (para avaliação da e fluidos aquecidos.
qualidade de ventilação), seguidos da infusão de fluidos
com soluções cristaloides aquecidas; dentre as quais, a de 5. Medidas auxiliares à avaliação primária
Ringer lactato é a preferida. A temperatura ideal é de 39°C,
a fim de evitar a hipotermia, altamente deletéria ao pacien- Durante o exame primário, o socorrista deve usar, sem-
te vítima de trauma. pre que possível, medidas que auxiliem a avaliação e a mo-
No caso de sangramentos intracavitários, especialmen- nitorização do doente. Na avaliação primária, o socorrista
te hemorragias abdominais, a reposição volêmica pode não precisa determinar se será necessário transferir o paciente
ser suficiente, e a cirurgia deverá ser indicada. para o hospital onde será realizado o tratamento definitivo.

D - Avaliação neurológica A - Monitorização não invasiva


Nesta fase do atendimento, realiza-se um exame neuro- Todos os politraumatizados, durante sua avaliação ini-
lógico rápido, priorizando a investigação do nível de consci- cial, devem ter monitorizados o traçado eletrocardiográfico
ência e do tamanho e da reatividade das pupilas. e a saturação de oxigênio com oxímetro de pulso. A gaso-
Preconiza-se a avaliação do nível de consciência pela metria pode ser avaliada na amostra de sangue colhida no
Escala de Coma de Glasgow (ECG). Trata-se de um méto- exame primário. Se possível, também deve ser feita a ava-
do facilmente exequível, baseado em 3 parâmetros clínicos liação da pressão arterial.

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CI RUR G I A D O TRAU M A

B - Cateterização urinária e gástrica somente após o exame primário, e o sucesso das medidas
de reanimação, com normalização das funções vitais.
A diurese é o principal parâmetro para a avaliação da
resposta à expansão volêmica. Logo, a cateterização vesi- A - História
cal deve ser realizada em todos os traumatizados, exceto
na suspeita de lesão uretral. Suspeita-se de lesão uretral Toda a história deve incluir o mecanismo do trauma, a
quando há sangue no meato peniano, equimose perineal, presença de outras vítimas no local e os dados locais colhi-
sangue no escroto, deslocamento cranial da próstata ou fra- dos pela equipe de resgate pré-hospitalar, dados que po-
tura pélvica. dem fornecer importantes informações acerca da energia
A distensão gástrica pode levar a reflexos vagais em cinética e do potencial de gravidade do trauma. Se houver
crianças, além de aumentar o risco de vômitos e de bron- familiares, também deverão ser consultados, para forne-
coaspiração. A passagem de sonda gástrica está indicada cerem informações úteis. Há um método mnemônico para
principalmente a pacientes em ventilação mecânica ou com que a história clínica possa ser “AMPLA”:
trauma abdominal. A colocação da mesma sonda está con- A: Alergia.
traindicada na suspeita de fratura de base do crânio e da M: Medicamentos.
lâmina crivosa, pela possibilidade de penetração da sonda
P: Passado médico, “prenhez”.
na cavidade craniana (Figura 4). Nestes casos, opta-se pela
passagem de sonda orogástrica. L: Líquidos e sólidos ingeridos.
A: Ambiente do trauma.

B - Exame físico
Pode ser definido como um exame físico pormenoriza-
do da cabeça aos pés. Há uma frase que resume o procedi-
mento nesta etapa: “dedos e tubos em todos os orifícios”.
Pode-se dividir o exame físico pormenorizado nos seguintes
seguimentos: cabeça, face e pescoço; tórax; abdome, perí-
neo, reto e vagina; sistema musculoesquelético; e exame
neurológico completo.

C - Medidas auxiliares, radiografias e procedi-


mentos diagnósticos
Agora, com o doente estável hemodinamicamente, é
possível realizar todos os exames complementares neces-
sários para o diagnóstico das lesões traumáticas específicas
Figura 4 - Fratura da base do crânio com colocação de SNG no crânio dos diversos órgãos e aparelhos, como tomografias, radio-
C - Radiografias e procedimentos diagnósticos grafias contrastadas e de extremidades, endoscopias e ul-
trassonografias.
Algumas radiografias podem ser realizadas durante o
processo de reanimação, na própria sala de emergência.
As chamadas radiografias da avaliação inicial incluem as 7. Reavaliação, monitorização contínua e
radiografias de bacia e tórax na incidência anteroposterior, cuidados definitivos
além da coluna cervical em perfil. Tais exames radiológicos
A monitorização dos sinais vitais deve ser contínua, por
podem ser realizados ao final da avaliação primária, após a
meio de exame físico seriado. Em caso de alteração de al-
estabilização hemodinâmica do paciente, juntamente com
gum parâmetro, o doente deverá ser sempre reavaliado,
os demais procedimentos diagnósticos necessários.
respeitando o ABCDE do trauma.
Ultrassonografia de abdome direcionada ao trauma
Após o término das avaliações, a vítima de trauma deve-
(FAST) e lavado peritoneal também podem ser utilizados na
rá ser encaminhada para o tratamento específico de suas le-
avaliação de pacientes chocados que necessitem de pesqui-
sões. No caso de o hospital onde ocorreu a avaliação inicial
sa de sangramento intraperitoneal. Tomografias e demais
não dispor dos recursos necessários para o tratamento, o
exames devem ser realizados após a estabilização completa
paciente deverá ser transferido para o local com condições
do indivíduo.
de oferecer o tratamento completo. A transferência não
deve ser retardada pela realização de exames diagnósticos,
6. Avaliação secundária e nenhum politraumatizado deve ser transportado sem a
A avaliação secundária consiste na história detalhada e presença de um médico, que por sua vez deverá continuar
no exame pormenorizado do paciente. Deverá ser realizada com a reavaliação contínua durante o transporte.

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AT E N D I M E N T O I N I C I A L A O P O L I T R A U M AT I Z A D O

O registro no prontuário de todas as etapas do aten-


dimento, alterações clínicas e resultados de exames é de
suma importância e deverá ser realizado pelo médico que
conduziu o caso. Evidências forenses devem ser comunica-

CIRURGIA DO TRAUMA
das às autoridades responsáveis.

8. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao politraumatizado deve ser padronizado de
acordo com a gravidade das lesões;
- Situações com múltiplas vítimas exigem uma triagem e a
definição da capacidade dos recursos estruturais e humanos;
- O exame primário deve seguir o ABCDE do trauma = vias aéreas
com proteção da coluna cervical, respiração, circulação e controle
da hemorragia, avaliação neurológica, exposição e controle do
ambiente;
- Nenhuma etapa pode ser antecipada antes que a anterior
esteja resolvida. O doente deve ser constantemente reavaliado,
sempre seguindo o ABCDE;
- A transferência deve ser precoce, para um local capaz de
fornecer tratamento adequado.

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SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

2
Vias aéreas e ventilação
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

alteração do nível de consciência ou comprometimento das


Pontos essenciais vias aéreas ou da ventilação.
- Avaliação inicial das vias aéreas; Inconscientes por trauma cranioencefálico (TCE), com
- Indicações de via aérea definitiva; sensório diminuído por abuso de álcool ou drogas, e aque-
- Tipos de via aérea definitiva. les portadores de lesões torácicas que impedem uma ade-
quada ventilação necessitam de uma via aérea definitiva.
1. Introdução Caso o doente apresente vômitos, há um risco significativo
de aspiração do conteúdo gástrico. Nesse caso, devem ser
Vias aéreas e ventilação são as prioridades no atendi- realizadas a aspiração da orofaringe e a rotação do doente
mento do politraumatizado. O fator que pode levar mais ra- para a posição de decúbito lateral. Se os vômitos forem re-
pidamente a vítima de trauma à morte é a oferta inadequa- correntes e não houve exclusão da hipótese de lesão da co-
da de oxigênio aos tecidos, principalmente ao cérebro. Para luna cervical, também deverá ser considerada a intubação
evitá-la, devem-se garantir a via aérea protegida e desobs- com o intuito de proteger a via aérea.
truída e a ventilação adequada. A todos os doentes trauma- Deve-se fornecer oxigênio num fluxo de 10 a 12L/min,
tizados, deve ser administrado oxigênio suplementar. Não por meio de máscara facial com reservatório de oxigênio
se deve esquecer de que, nessa fase do atendimento, é pre- bem adaptada. A avaliação da oxigenação é realizada pela
ciso garantir a proteção da coluna cervical. oximetria de pulso, que mede continuamente a saturação
de oxigênio no sangue arterial. Para a sua verificação, é ne-
2. Vias aéreas cessário manter uma perfusão periférica adequada.
A permeabilidade da via aérea deve ser avaliada inicial- Uma via aérea pérvia não é sinônimo de ventilação ade-
mente no atendimento e reavaliada com frequência. Seu quada. A ventilação pode estar comprometida por obstru-
comprometimento pode ser súbito e completo, insidioso e ção das vias aéreas, trauma de tórax, alteração do nível de
progressivo ou recorrente. consciência e lesões raquimedulares.
Taquipneia, respiração ruidosa, alteração do nível de
consciência e sangue na orofaringe podem ser sinais de 3. Etiologia
comprometimento das vias aéreas.
Tabela 1 - Sinais de obstrução das vias aéreas A - Trauma de face
Observação
Agitação (sugere hipóxia), torpor (sugere hiper- Em geral, é acompanhado de sangramento, aumento de
capnia), cianose, tiragem e uso de musculatura secreções e avulsões dentárias, colaborando para a obstru-
do doente
acessória para ventilação. ção das vias aéreas. Fraturas da mandíbula causam perda do
Respiração ruidosa, roncos, gorgolejos, estridor suporte normal da língua. Os doentes apresentam sinais de
Ausculta (sinais de obstrução parcial da laringe ou da farin- obstrução, principalmente em posição supina. Nesse caso,
ge), rouquidão (obstrução funcional da laringe). é fundamental a aspiração das vias aéreas, e, dependendo
Posicionamento anormal da traqueia no pescoço, da situação, pode ser necessária uma via aérea definitiva.
Palpação
crepitações.

Durante a avaliação inicial, o doente capaz de falar ga-


B - Trauma cervical
rante que, no momento, sua via aérea está pérvia. Portanto, Lesões por instrumentos penetrantes que causem he-
deve-se inicialmente estimular a resposta verbal. A incapa- morragia podem deslocar e obstruir as vias aéreas. Pode
cidade de resposta ou respostas inapropriadas pode sugerir ocorrer lesão direta da laringe ou da traqueia, com obstru-

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VIAS AÉREAS E VENTILAÇÃO

ção e sangramento. Nesses casos, é necessário um acesso gulos do maxilar inferior e (C) uso de cânula orofaríngea (Guedel),
definitivo imediato às vias. que deve ser inserida por trás da língua. Não deve ser usada em
Hematomas cervicais também podem expandir e com- doente consciente, pois pode provocar engasgo e vômito
primir a traqueia. Quando isso ocorre, a indicação de via

CIRURGIA DO TRAUMA
aérea definitiva deve ser precoce, para evitar complicações B - Via aérea definitiva
ou dificuldades técnicas.
Define-se como via aérea definitiva a presença de um
C - Trauma de laringe dispositivo com balonete (cuff) insuflado na traqueia, co-
A tríade clínica na fratura de laringe é composta de rou- nectado a um sistema de ventilação assistida e uma fonte
quidão, enfisema de subcutâneo e fratura palpável. Trata-se de oxigênio a 100%. Existem 3 tipos de via aérea definitiva:
de uma lesão rara. Quando presente, deve-se tentar a intu- sonda orotraqueal, sonda nasotraqueal e via aérea cirúrgica
bação orotraqueal cuidadosa, possivelmente com o auxílio (cricotireoidostomia e traqueostomia). Indica-se a via aérea
de um fibroscópio flexível. Se isso não for possível, ou na in- definitiva a todo paciente incapaz de manter a permeabili-
disponibilidade do método, será uma das poucas condições dade das vias aéreas (Tabela 2).
em que se indica a traqueostomia de emergência. Tabela 2 - Indicações de via aérea definitiva
- Apneia;
4. Tratamento - Proteção das vias aéreas contra aspiração por vômitos ou sangue;
Todo doente politraumatizado necessita de suporte de - TCE com escala de coma de Glasgow ≤8;
oxigênio. Durante a avaliação inicial, o socorrista deve ava- - Risco de obstrução por lesão de traqueia ou laringe, hematoma
cervical ou retrofaríngeo, estridor;
liar se são necessárias manobras para a manutenção das
- Fraturas maxilofaciais graves;
vias aéreas ou se é preciso assegurar uma via aérea defi-
- Convulsão persistente;
nitiva. Vale ressaltar a importância da proteção da coluna
- Incapacidade de manter oxigenação com máscara de O2;
cervical na fase inicial do atendimento.
- Necessidade de ventilação: paralisia neuromuscular, movimen-
tos respiratórios inadequados, TCE grave com necessidade de
A - Técnicas de manutenção das vias aéreas hiperventilação.
Em doentes com rebaixamento do nível de consciência, a) Intubação endotraqueal
a queda da língua pode ser responsável pela obstrução da
O médico deve optar pela intubação orotraqueal ou
via aérea. Há 4 manobras que podem ser utilizadas nessa
pela nasotraqueal, conforme sua experiência. A intubação
situação (Figura 1): a elevação do queixo (chin lift), a pro-
nasotraqueal é contraindicada aos doentes em apneia ou
trusão da mandíbula (jaw trust) e o uso de cânulas naso
com TCE em que há a suspeita de trauma da base do crânio.
ou orofaríngeas (cânulas de Guedel). Inicialmente, coloca-
Deve-se sempre atentar para a possibilidade de lesão cervi-
-se a cânula orofaríngea voltada para o palato duro e, de-
cal durante a intubação.
pois, deve-se girá-la conforme mostrado na Figura. Apesar
Para confirmar o correto posicionamento da sonda, de-
de proteger da queda da língua, ela desencadeia reflexo de
vem-se auscultar ambos os hemitórax e a região epigástrica
vômito e é mal tolerada no consciente. Apesar de ser mais
(a intubação do esôfago resultará em borborigmos auscul-
bem tolerada, a cânula nasofaríngea é pouco utilizada por
tados no epigástrio). O método mais fidedigno de confirma-
não permitir uma proteção adequada da queda da língua.
ção da intubação é a dosagem de CO2 expirado. A sonda de
intubação deve ser adequadamente fixada, e sempre que o
doente for mobilizado, a fixação e o correto posicionamen-
to deverão ser checados. A 1ª conduta diante daqueles que
chegam intubados ao hospital é confirmar a posição correta
do tubo (realizar o “A”).
Como a maioria dos pacientes vítimas de trauma não
está em jejum, o socorrista precisa estar familiarizado com
a sequência de intubação rápida. A sequência consiste em
pré-oxigenar com oxigênio a 100%, comprimir a cartilagem
cricoide, administrar 1 a 2mg/kg de succinilcolina IV e, após
o relaxamento, realizar intubação orotraqueal. O balão é in-
suflado, e a posição da cânula, confirmada antes de iniciar
a ventilação.
b) Via aérea cirúrgica
Figura 1 - (A) Elevação do mento sem realizar hiperextensão do É indicada aos casos de impossibilidade de intubação da
pescoço; (B) anteriorização da mandíbula pela preensão dos ân- traqueia como edema de glote, fratura de laringe e hemor-

7
CI RUR G I A D O TRAU M A

ragia orofaríngea grave (Figura 2). A cricotireoidostomia é o A traqueostomia não deve ser realizada durante o aten-
procedimento de escolha na emergência, exceto em crian- dimento inicial do politraumatizado, salvo nas 2 situações
ças menores de 12 anos, para não causar lesão da cartila- apresentadas: menores de 12 anos e trauma de laringe.
gem cricoide, estrutura fundamental nessa faixa etária para Nas demais situações, preconiza-se que a traqueostomia
a sustentação da laringe. seja realizada no centro cirúrgico, após a estabilização do
paciente, como nas circunstâncias em que se pretende ven-
tilação mecânica por tempo prolongado.

5. Resumo
Quadro-resumo
- Garantir a permeabilidade das vias aéreas e a ventilação
adequada é prioridade no atendimento do politraumatizado;
- Todo doente com risco de comprometimento da via aérea
necessita de uma via aérea definitiva. A 1ª opção é a intubação
traqueal;
Figura 2 - Via aérea
- Na impossibilidade da intubação, realiza-se a
A cricotireoidostomia pode ser cirúrgica ou por punção. cricotireoidostomia. Só se realiza a traqueostomia na sala de
emergência em situações especiais;
No 1º caso (Figura 3), realiza-se uma incisão na pele sobre
a membrana cricotireoidiana, podendo ser longitudinal ou - Durante toda avaliação das vias aéreas, deve-se proteger a
coluna cervical.
transversa. Em seguida, incisa-se a membrana cricotireoi-
diana que será dilatada com uma pinça hemostática para
introdução de cânula de traqueostomia de pequeno calibre
(5 ou 7mm).

Figura 3 - Cricotireoidostomia cirúrgica

No procedimento por punção (Figura 4), é feita a inser-


ção de uma agulha na membrana cricotireoidiana. Deve ser
conectada a uma fonte de oxigênio a 15L/min, realizando
insuflação intermitente. Capaz de oxigenar o doente por
30 a 45 minutos, esse tipo de método ventilatório pode ser
utilizado como ponte antes da cricotireoidostomia cirúrgica
nos pacientes em apneia.

Figura 4 - Cricotireoidostomia por punção

8
CAPÍTULO

3
Trauma torácico
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

aérea permeável não garante uma boa ventilação, e, nesse


Pontos essenciais contexto, as lesões torácicas devem ser diagnosticadas e
- Avaliação inicial; tratadas no exame primário.
- Lesões com risco imediato à vida; Didaticamente, dividem-se as lesões torácicas naquelas
- Outras lesões torácicas. com risco imediato de morte, que devem ser diagnosticadas
e tratadas durante a avaliação primária; nas que apresentam
1. Introdução risco à vida, mas que podem ser tratadas no exame secundá-
rio; e nas demais lesões sem risco de vida (Tabela 1).
O trauma torácico responde por 20 a 25% das mor-
tes em politraumatizados. Entretanto, 85% das vítimas de Tabela 1 - Lesões torácicas
trauma de tórax podem ser tratadas adequadamente com Lesões com risco de vida
suporte respiratório, analgesia e drenagem pleural (Figura 1 - Pneumotórax hipertensivo.
1). Dessa maneira, é necessária toracotomia em cerca de
2 - Pneumotórax aberto.
15% dos casos. As mortes precoces, ainda no local do trau-
Exame 3 - Tórax instável.
ma, acontecem, principalmente, por contusão miocárdica e
primário
ruptura de aorta. 4 - Hemotórax maciço.
5 - Tamponamento cardíaco.
1 - Pneumotórax simples.
2 - Hemotórax.
3 - Contusão pulmonar.

Exame 4 - Lesões da árvore traqueobrônquica.


secundário 5 - Traumatismo cardíaco contuso.
6 - Ferimento transfixante do mediastino.
7 - Ruptura diafragmática.
8 - Ruptura da aorta.
1 - Enfisema subcutâneo.

Outras 2 - Lesões torácicas por esmagamento.


lesões 3 - Fraturas de costela, esterno e escápulas.
Figura 1 - Drenagem pleural: deve ser realizada no 5º espaço inter-
4 - Ruptura esofágica por contusão.
costal, linha axilar média, com incisão na borda superior da costela
inferior, evitando, assim, a lesão do plexo intercostal. O dreno deve
ser conectado a um “selo d’água”, que funciona como válvula A cianose pode ser um sinal tardio, e sua ausência não
significa perfusão adequada. Na avaliação circulatória, é
2. Avaliação inicial importante a monitoração eletrocardiográfica da vítima de
traumatismo torácico com risco de contusão miocárdica,
A avaliação das vítimas de traumas torácicos segue as pois podem ocorrer arritmias, frequentemente associadas
mesmas prioridades do ATLS®, sendo a via aérea a 1ª etapa à hipóxia e à acidose. O doente pode apresentar Atividade
do tratamento, com a proteção da coluna cervical. Uma via Elétrica Sem Pulso (AESP), que acontece em casos de tam-

9
CI RUR G I A D O TRAU M A

ponamentos cardíacos, pneumotórax hipertensivo, hipovo- da traqueia (Figura 3). Dessa forma, há menor resistência
lemia profunda e ruptura cardíaca. A avaliação neurológica à entrada de ar por esse orifício. A entrada de ar no espa-
e a exposição seguem as condutas habituais. ço pleural leva a um colabamento do pulmão e só cessa
Entre as medidas complementares ao exame primário, quando a pressão intrapleural se equilibra com a pressão
o raio x de tórax em incidência anteroposterior pode forne- atmosférica. A ventilação fica prejudicada, com consequen-
cer informações importantes. Entretanto, as condições com te hipóxia e hipercapnia. Ocorrem também diminuição do
risco imediato de morte são de diagnóstico clínico e não de- retorno venoso e hipotensão.
vem esperar pela radiografia para confirmação diagnóstica.

3. Lesões com risco imediato de morte

A - Pneumotórax hipertensivo
Ocorre quando há um vazamento de ar para o espaço
pleural por um sistema de “válvula unidirecional”. Progres-
sivamente, acontece o colapso do pulmão com deslocamen-
to do mediastino para o lado oposto, levando à diminuição
do retorno venoso e à compressão do pulmão contralate-
ral (Figura 2A). O óbito, nesses casos, acontece justamente
pela interrupção do retorno venoso pelos vasos da base.

Figura 3 - Pneumotórax aberto

Clinicamente, observam-se traumatopneia (saída de ar


pelo ferimento torácico), desconforto respiratório e sinais
de instabilidade hemodinâmica. O tratamento inicial requer
Figura 2 - Pneumotórax hipertensivo: (A) raio x evidenciando
transparência de todo o hemitórax direito, com desvio da traqueia
a realização do chamado curativo de 3 pontas, que consiste
e do mediastino para a esquerda; esse raio x não deveria existir, em um curativo quadrangular fixado em 3 lados, que passa
uma vez que o diagnóstico do pneumotórax hipertensivo é clínico; a funcionar como válvula unidirecional, permitindo a saída
(B) local onde deve ser realizada a toracocentese descompressiva do ar durante a expiração e colabando na inspiração, impe-
dindo a entrada de ar no espaço pleural. Um erro poderá
O diagnóstico do pneumotórax hipertensivo é clínico, acontecer se o curativo for fixado nos 4 lados, e, nesse caso,
e seu tratamento nunca deve ser postergado à espera de o doente evoluirá com pneumotórax hipertensivo.
confirmação radiológica. O doente queixa-se de dor toráci- A seguir, drena-se o tórax afetado no 5º espaço inter-
ca e desconforto respiratório. Ao exame físico, observam- costal. Após a estabilização do doente, deve-se realizar o
-se taquidispneia, taquicardia, hipotensão e distensão das tratamento definitivo, com síntese cirúrgica da lesão na pa-
veias cervicais. O exame torácico mostra desvio da traqueia, rede torácica.
ausência de murmúrio vesicular e timpanismo à percussão
do lado afetado. C - Tórax flácido com contusão pulmonar
O tratamento imediato consiste na toracocentese des-
Também conhecido como tórax instável. Ocorre pela
compressiva, que é realizada com a inserção de uma agulha
perda da continuidade de um segmento da parede to-
calibrosa no 2º espaço intercostal, na linha hemiclavicular
rácica com o restante do arcabouço ósseo. Para tanto, é
do lado afetado, o que transforma o pneumotórax hiperten-
necessário haver fratura de 2 ou mais costelas em pelo
sivo em simples (Figura 2B). O tratamento definitivo consis-
menos 2 pontos. A origem desse tipo de ferimento é um
te em drenagem torácica no 5º espaço intercostal, entre a
traumatismo de alta energia, que leva à lesão importante
linha axilar anterior e a média.
do parênquima pulmonar, resultando em hipóxia grave. A
repercussão maior decorre da contusão pulmonar grave
B - Pneumotórax aberto e da dor, que restringe a movimentação respiratória, le-
Por definição, acontece nos casos de ferimento da pa- vando a complicações respiratórias mecânicas e de trocas
rede torácica com diâmetro maior que 2/3 do diâmetro gasosas.

10
TRAUMA TORÁCICO

Define-se hemotórax maciço como o acúmulo de mais


de 1.500mL de sangue na cavidade pleural (Figura 5). É mais
frequentemente causado por ferimentos penetrantes que
ocasionam lesão em vasos sistêmicos e hilares. Pode haver

CIRURGIA DO TRAUMA
pneumotórax associado.
O diagnóstico também é eminentemente clínico, não
sendo necessária a confirmação radiológica. Além dos si-
nais de choque e da insuficiência respiratória, o exame físi-
co revela ausência de murmúrio vesicular do lado afetado.
Diferentemente do pneumotórax hipertensivo, há macicez
à percussão.
Para tratamento, realiza-se reposição volêmica agressi-
va, com cristaloide e sangue. A cavidade torácica é descom-
primida com a drenagem de tórax. Se estiver disponível o
Figura 4 - Respiração paradoxal no tórax flácido
equipamento necessário, será possível realizar autotransfu-
O quadro clínico típico é de movimentos torácicos assi- são do sangue aspirado. Indica-se toracotomia de urgência
métricos e descoordenados (movimento paradoxal), o que em caso de drenagem imediata >1.500mL de sangue ou
acarreta dificuldade respiratória e dessaturação. Observa- >200mL/h nas 2 a 4 horas seguintes à drenagem.
-se crepitação à palpação das costelas, e a dor torácica é
intensa (Figura 4). E - Tamponamento cardíaco
O doente deve receber oxigênio suplementar, reposição
volêmica adequada e analgesia. A ventilação muitas vezes
é inadequada, em razão da dor causada pelas fraturas, por
esse motivo é importante uma analgesia adequada. Se o
doente apresentar insuficiência respiratória, poderá ser ne-
cessária a ventilação mecânica (Tabela 2).
Tabela 2 - Critérios de indicação de ventilação mecânica
FR >35 ou <8irpm
pCO2 >55mmHg
Figura 6 - Tamponamento cardíaco: (A) acúmulo de sangue no
pO2 <60mmHg com FiO2 >50
pericárdio, visualizado pelo ultrassom – extraído de www.trauma.
Relação PO2/FiO2 <300 org; (B) pericardiocentese ou punção de Marphan
Shunt >0,2
Ocorre por um acúmulo de sangue no saco pericárdi-
D - Hemotórax maciço co, estrutura inelástica, levando à compressão cardíaca,
ao comprometimento do retorno venoso e ao choque car-
diogênico (Figura 6A). É mais frequentemente causado por
ferimentos penetrantes, porém pode ocorrer por trauma
contuso. A cavidade mais comumente lesada é o ventrículo
direito, por sua localização mais anterior.
A apresentação clássica é descrita como tríade de Beck,
entretanto ela está presente em apenas 30% dos casos.
Caracteriza-se por pulso paradoxal (diminuição da PAS
>10mmHg durante inspiração espontânea), abafamento de
bulhas cardíacas e estase jugular (não ocorre em caso de
hipovolemia significativa). Outros sinais são o de Kussmaul
(aumento da pressão venosa na inspiração espontânea) e a
Atividade Elétrica Sem Pulso (AESP).
Se for realizada uma ultrassonografia na sala de emer-
gência, será possível avaliar a presença de líquido no saco
pericárdico (Figura 6A). O exame que dá diagnóstico de cer-
Figura 5 - Hemotórax maciço: observar a opacidade ocupando 2/3 teza é o ecocardiograma, porém dificilmente está disponí-
do hemitórax esquerdo, com desvio da traqueia para o lado direi- vel no serviço de emergência.
to. Assim, como no caso de pneumotórax hipertensivo, esse raio x Em caso de suspeita clínica, está indicada pericardiocen-
não deveria existir, pois o diagnóstico é clínico tese na sala de emergência (Figura 6B). O doente deve estar

11
CI RUR G I A D O TRAU M A

monitorizado para que seja realizada a punção subxifóidea. trauma penetrante ou contuso (nesse último, geralmente
Quando a agulha toca o epicárdio, ocorre arritmia ou au- em razão de vazamento de ar por laceração pulmonar). Em
mento de voltagem da onda “T” no eletrocardiograma. A 90% dos casos, o ar vem do parênquima pulmonar ou da
punção será positiva se houver aspiração de sangue não parede torácica, enquanto os 10% restantes vêm de lesões
coagulado presente no saco pericárdico, sendo indicada a de esôfago, traqueia e brônquios.
toracotomia. O sangue não coagulado decorre da presença Observa-se diminuição do murmúrio vesicular no lado
de substâncias anticoagulantes no saco pericárdico. Após a afetado, podendo haver hipertimpanismo à percussão. O
retirada da agulha, deixa-se o cateter que a envolvia (Gelco) diagnóstico pode ser feito ou confirmado com uma radio-
conectado a uma torneira de 3 vias para eventuais retiradas grafia de tórax em expiração, bem mais sensível que em
de sangue que porventura se acumule novamente, até que inspiração, para o pneumotórax.
se realize a toracotomia.
Por vezes, o tamponamento pode ser progressivo e
não se manifestar no início do quadro. Nesse caso, pode-
-se fazer o diagnóstico por uma janela pericárdica subxifói-
dea, com o paciente sob anestesia geral no bloco cirúrgico,
ou por via transdiafragmática, se o doente for submetido
à laparotomia. A sensibilidade da janela é de 100% para o
diagnóstico de lesão cardíaca. Em se confirmando a lesão
cardíaca, o acesso pode se dar por esternotomia ou toraco-
tomia esquerda.
O socorrista deve estar alerta para ferimentos penetran-
tes na zona de Ziedler, a qual tem como limite superior o
Figura 8 - Pneumotórax simples: (A) raio x mostrando a aumento
2º espaço intercostal, inferior, o 10º espaço intercostal, me- da transparência, o que caracteriza a presença de ar no espaço
dial, o paraesternal direito e lateral a linha axilar anterior pleural e (B) destaque do ar no espaço pleural
esquerda (Figura 7A). A importância dessa zona está na epi-
demiologia do ferimento cardíaco: 70% dos ferimentos car- Drenagem de tórax é o tratamento em todos os casos
díacos acontecem por ferimentos penetrantes nesta zona. de pneumotórax traumático e deve ser realizado no 4º ou
Dado igualmente importante é que, dos ferimentos da zona no 5º espaço intercostal anterior à linha axilar média, adap-
de Ziedler, só 30% apresentam ferimento cardíaco. tado ao sistema de selo d’água. O tratamento conservador,
Indivíduos que chegam ao pronto-socorro com ferimen- comum no pequeno pneumotórax espontâneo, deve ser
to na zona de Ziedler merecem atenção especial. Se chega- evitado no traumático, sendo proibido no paciente que será
rem com estabilidade hemodinâmica, deverão ser subme- submetido à ventilação sob pressão positiva. Doentes com
tidos à janela pericárdica no centro cirúrgico. Se chegarem
pneumotórax que necessitem de transporte aéreo também
instáveis hemodinamicamente, terão indicação de toraco-
devem ser drenados previamente.
tomia, preferencialmente no centro cirúrgico, caso as con-
dições do paciente a permitirem (Figura 7B).
B - Hemotórax

Figura 7 - (A) Limites da zona de Ziedler e (B) reparo de lesão do


ventrículo direito por toracotomia após ferimento por arma branca

4. Lesões diagnosticadas no exame se-


cundário
A - Pneumotórax simples
Figura 9 - Hemopneumotórax: observar a opacidade no terço infe-
Resulta da entrada de ar no espaço pleural, entre as rior do hemitórax esquerdo; também há aumento da transparên-
pleuras visceral e parietal (Figura 8), e pode ocorrer por cia, sugerindo pneumotórax associado

12
TRAUMA TORÁCICO

Ocorre por laceração pulmonar, ruptura de um vaso in- PEEP, pressão positiva das vias aéreas em valores supra-at-
tercostal ou da artéria mamária interna, ou fratura-luxação mosféricos no final da expiração, é benéfica, pois aumenta
da coluna torácica. A maioria dos sangramentos é autolimi- o recrutamento alveolar e melhora a capacidade residual
tada e não necessita de tratamento cirúrgico hemostático funcional, as trocas gasosas e a hipoxemia. É fundamental

CIRURGIA DO TRAUMA
específico, apenas de drenagem pleural, em 85% dos ca- a restrição de líquidos intravenosos após a estabilização he-
sos. O hemotórax pode ser classificado em pequeno (300 a modinâmica.
500mL), médio (500 a 1.500mL) e grande ou maciço (acima
de 1.500mL). D - Lesão da árvore traqueobrônquica
Clinicamente, há diminuição do murmúrio vesicular do
lado afetado com discreta macicez à percussão. O raio x de Trata-se de um tipo incomum de lesão, que costuma
tórax evidencia hemotórax a partir de 200mL de volume. passar despercebido no exame inicial. As lesões mais fre-
O tratamento consiste na drenagem de tórax, que remove quentes ocorrem próximas à carina no trauma contuso (por
o sangue, monitoriza o sangramento e diminui o risco de exemplo, a avulsão do brônquio-fonte direito). Acarreta alta
formação de coágulo. Haverá indicação de toracotomia se mortalidade, geralmente no local do acidente.
houver drenagem inicial acima de 1.500mL de sangue ou Os sinais e sintomas podem ser inespecíficos como
superior a 200mL de sangue por hora nas 2 a 4 horas sub- dispneia, cianose, hemoptise, enfisema de subcutâneo e
sequentes. O tratamento conservador não é recomendado, dispneia. Pode haver associação a fraturas de costela e es-
pois, se o hemotórax não for drenado precocemente, ha- terno, e o pneumotórax é um achado comum. O principal
verá risco de evoluir para um hemotórax coagulado e até elemento clínico para diagnóstico é o grande vazamento de
empiema. ar após drenagem torácica. O diagnóstico é confirmado por
broncoscopia. Mais recentemente, tem sido utilizada a TC
C - Contusão pulmonar multislice, por ser menos invasiva.
Em doentes com insuficiência respiratória, pode ser
Trata-se da lesão torácica potencialmente letal mais necessária a intubação seletiva do pulmão oposto ao lado
comum (Figura 10), especialmente perigosa nos idosos, da lesão. A intubação pode ser difícil, em razão de hema-
cuja reserva funcional pulmonar é menor. A insuficiência tomas, lesões orofaríngeas associadas ou lesão traqueo-
respiratória desenvolve-se progressivamente e decorre de brônquica. Nesses casos, indica-se a intervenção cirúrgica
hemorragia e edema do parênquima pulmonar, levando à imediata.
hipóxia. Aos doentes estáveis, o tratamento cirúrgico pode ser
postergado até a diminuição do processo inflamatório local
e do edema. Em lesões menores que 1/3 do diâmetro da
traqueia e em lesões brônquicas, pode-se optar por trata-
mento conservador. Lesões maiores que 1/3 do diâmetro
da traqueia geralmente são tratadas com reparo primário.
Lesões maiores de traqueia, carina e brônquio-fonte direito
deverão ser tratadas por toracotomia.

E - Contusão cardíaca
Pode ocorrer lesão cardíaca no trauma fechado, por
contusão da musculatura cardíaca, ruptura de câmara
Figura 10 - (A) Raio x de tórax com contusão pulmonar e (B) desta-
(em geral, apresentam tamponamento cardíaco) ou lace-
que para a presença de fratura de costela, muitas vezes associada ração de válvula, em 15 a 20% dos traumatismos de tórax
aos casos de contusão graves, mais frequentemente em associação à fratura de
esterno. A lesão mais frequente é a do ventrículo direi-
O quadro clínico é de insuficiência respiratória. O raio x to, que se encontra mais próximo ao esterno em posição
de tórax inicial pode ser normal e, após 24 a 48 horas, evi- anterior.
denciar área de contusão, sendo a Tomografia Computado- Ocorrem desconforto torácico e hipotensão. Ao ECG,
rizada (TC) de tórax o exame indicado para melhor avaliação estão presentes extrassístoles ventriculares múltiplas, ta-
da área de contusão pulmonar. Uma complicação possível quicardia sinusal, fibrilação atrial, bloqueio de ramo (prin-
é a pneumonia, que é mais frequente em idosos e doentes cipalmente à direita) e alteração dos segmentos ST e onda
com DPOC. T. Pode ser realizado um ecocardiograma para avaliação
O doente deve ser monitorizado com oximetria, gaso- diagnóstica e dosagem dos níveis de CKMB. O doente deve
metria arterial e ECG. Se a insuficiência respiratória for im- permanecer sob monitoração eletrocardiográfica por, pelo
portante (PaO2 <65mmHg, SatO2 <90%), estará indicada a menos, 24 horas, devido ao risco de desenvolvimento de
ventilação mecânica com pressão positiva. A utilização de arritmias.

13
CI RUR G I A D O TRAU M A

F - Ruptura traumática da aorta Outros exames que auxiliam o diagnóstico são a tomogra-
fia de tórax simples ou multislice com contraste (que isolada-
mente pode fornecer o diagnóstico de certeza), a angiotomo-
grafia e o ecocardiograma transesofágico. Por serem menos
invasivos e mais acessíveis, os exames tomográficos são bem
mais solicitados que a arteriografia. O tratamento pode ser
feito por cirurgia convencional ou intravascular.

G - Ruptura traumática do diafragma


A incidência é semelhante do lado direito (mais grave,
normalmente com óbito na cena do acidente) e esquerdo
(mais comum nos serviços de urgência). Nos traumas con-
tusos, em geral, ocorrem rupturas radiais grandes com her-
niação (Figura 12). As lesões por trauma penetrante acarre-
tam, em sua maioria, perfurações pequenas que resultam
Figura 11 - Alargamento do mediastino por rotura da aorta: obser-
var alargamento do mediastino superior 6cm, apagamento do bo-
em hérnias diafragmáticas tardias.
tão aórtico com obliteração da janela aortopulmonar, boné apical Além da história clínica, o doente pode apresentar dor
e desvio do brônquio-fonte esquerdo para baixo torácica e sinais de insuficiência respiratória. Apesar de ser
raro, é possível auscultar ruídos hidroaéreos no tórax quan-
A maioria das vítimas com ruptura da aorta morre no
do há herniação de vísceras ocas. Alguns sinais radiológicos
local do trauma. As que chegam ao pronto-socorro apre-
sugestivos são elevação, irregularidade ou obliteração do
sentam lesões incompletas, mais comumente próximas ao
diafragma, densidade de partes moles acima do diafragma
ligamento arterial (ligamento de Botallo), apresentando
(“pneumotórax loculado”), desvio de mediastino para o
hematoma restrito ao mediastino. Se houver hipotensão,
lado oposto e derrame pleural.
provavelmente decorrerá do sangramento de outro local, e
Para aumentar a sensibilidade diagnóstica, é possível
não do da aorta, que certamente causaria o óbito.
A cinemática do trauma é importante nesses casos. Ge- passar uma SNG e realizar raio x de tórax para visualizá-la na
ralmente, há história de trauma por desaceleração, como nas cavidade torácica. Pode-se fazer tal exame com contraste
quedas de altura, ejeção de veículo ou grandes colisões au- injetado pela sonda. Entretanto, nem mesmo a ressonância
tomobilísticas. A radiografia de tórax, apesar de normal em 1 magnética pode fornecer o diagnóstico definitivo; somente
a 2% dos casos, é importante para o diagnóstico (Figura 11). a toracoscopia ou a laparoscopia o fazem. O tratamento é
sempre cirúrgico, com a redução da hérnia e a correção do
Tabela 3 - Sinais radiográficos sugestivos de rotura de aorta torácica diafragma com sutura primária nas lesões menores ou utili-
- Alargamento do mediastino ≥6cm em pessoas com menos de zação de prótese (tela) nos ferimentos maiores.
60 anos e ≥8cm em pessoas com mais de 60 anos (sinal mais
comum);
- Boné apical;
- Apagamento do contorno aórtico;
- Obliteração da janela aortopulmonar;
- Rebaixamento do brônquio-fonte esquerdo;
- Alargamento linha periespinhal;
- Hemotórax esquerdo;
- Fratura dos 2 primeiros arcos costais;
- Fratura de escápula;
- Desvio da traqueia para a direita;
- Desvio SNG (sonda nasogástrica) para a direita;
- Alargamento da linha peritraqueal.

Em caso de alteração radiográfica sugestiva, deve-se re- Figura 12 - Hérnia diafragmática esquerda: (A) raio x de tórax com
petir a radiografia em posição ortostática (se as condições nível hidroaéreo no hemitórax esquerdo; (B) intraoperatório com
do paciente a permitirem). Se permanecer o alargamento, grande abaulamento do diafragma esquerdo; (C) estômago após
estará indicada a arteriografia, ainda o método diagnóstico redução do conteúdo herniado, com grande necrose de grande
padrão, que evidencia lesão em apenas 3% dos traumatiza- curvatura e (D) gastrectomia total após a redução e a correção
dos com alargamento do mediastino. do diafragma

14
TRAUMA TORÁCICO

H - Ferimento transfixante de mediastino cessitar de ventilação mecânica, será prudente realizar a


drenagem de tórax, pelo risco de desenvolver pneumotórax
Este ferimento pode causar lesões de coração, grandes
hipertensivo.
vasos, árvore traqueobrônquica ou esôfago. O diagnóstico

CIRURGIA DO TRAUMA
é feito pela presença de orifício de entrada em um hemotó-
rax e saída no outro, ou presença do projétil ao raio x no he-
motórax contralateral ao do orifício de entrada. A presença
de enfisema de mediastino sugere lesão esofágica ou tra-
queobrônquica, e hematoma de mediastino ou extrapleural
apical sugere lesão traumática de grandes vasos.
Os pacientes com instabilidade hemodinâmica devem
ser encaminhados ao centro cirúrgico, assim como aque-
les que preenchem os critérios de toracotomia de emer-
gência. Aos pacientes estáveis, a TC contrastada de tórax
ou, preferencialmente, a angiotomografia, é o exame de
escolha para a avaliação diagnóstica inicial, associada ou
não ao ecocardiograma, reservando-se a endoscopia ou o
esofagograma e a arteriografia para aqueles com suspei-
ta tomográfica de lesão esofágica ou vascular, respectiva-
mente (Figura 13). Figura 14 - TC de tórax evidenciando enfisema subcutâneo, prin-
A mortalidade dessas lesões é de 20%, e 50% dos do- cipalmente à esquerda; há também derrame pleural à esquerda
entes são admitidos instáveis. A maioria dos estáveis terá
avaliação diagnóstica positiva, que indica uma intervenção
cirúrgica. O tratamento dessas lesões varia de acordo com a B - Lesões torácicas por esmagamento (asfixia
situação hemodinâmica do paciente e as estruturas lesadas. traumática)
O paciente com este tipo de trauma apresentará pleto-
ra no tronco, na face e nos membros superiores; além de
petéquias secundárias à compressão aguda e transitória da
veia cava superior. Podem estar presentes edema maciço e
até edema cerebral.

C - Ruptura esofágica por contusão


É uma lesão bastante rara que acontece em casos de
golpe de forte intensidade no abdome superior, levando à
explosão do conteúdo gástrico no esôfago. O diagnóstico
é feito por esofagoscopia ou esofagografia. Para tratamen-
to, realiza-se ampla drenagem pleural e mediastinal. A le-
são esofágica pode ser suturada; porém, se houver mais
de 24 horas da lesão, será indicada derivação por esofa-
gostomia.

D - Fraturas de costela, esterno e escápula


A presença de lesão associada a essas fraturas é fre-
quente. As de esterno estão associadas a contusões mio-
cárdicas e a traumatismos raquimedulares e cranioencefáli-
cos; as de costelas inferiores, associam-se à lesão de órgãos
intraperitoneais; as de escápula, às lesões de vias aéreas,
Figura 13 - Tratamento das lesões transfixantes do mediastino
grandes vasos ou contusão pulmonar pela alta energia en-
5. Outras lesões torácicas volvida.
Essas fraturas causam dor, que restringe os movimentos
respiratórios, prejudicando a ventilação, e tosse. Há risco
A - Enfisema subcutâneo aumentado de desenvolvimento de atelectasias e pneumo-
Pode ocorrer por lesão de via aérea, laceração pulmo- nia. O tratamento consiste em alívio da dor. Em relação às
nar ou, raramente, explosão (Figura 14). Se o doente ne- fraturas, é conservador.

15
CI RUR G I A D O TRAU M A

6. Toracotomia de reanimação (realizada


na sala de emergência)
Classicamente, é indicada às vítimas de lesão penetran-
te, preferencialmente por arma branca, com parada cardí-
aca presenciada. Não é indicada para traumas contusos ou
que não tenham sinais de vida após 5 minutos de RCP. Os
pacientes com maior possibilidade de sobrevida são aque-
les com parada decorrente de tamponamento cardíaco, por
traumatismo penetrante.

Figura 15 - Toracotomia de reanimação

Realiza-se uma toracotomia anterior esquerda após in-


tubação traqueal (Figura 14). A toracotomia permite evacu-
ação de tamponamento cardíaco, controle de hemorragias
intratorácicas, massagem cardíaca aberta e clampeamento
da aorta descendente. As taxas de sucesso são baixas em
diversas casuísticas.

7. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao doente com trauma de tórax segue as
prioridades do ATLS®;
- Apesar da alta mortalidade, cerca de 85% dos casos são
tratados apenas com drenagem pleural;
- Pneumotórax hipertensivo, hemotórax maciço, pneumotórax
aberto, tórax flácido e tamponamento cardíaco são lesões com
risco imediato à vida e devem ser diagnosticadas e tratadas no
exame primário.

16
CAPÍTULO

4
Choque
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais
- Tipos de choque;
- Classes de choque hipovolêmico;
- Tratamento do doente com choque hemorrágico.

1. Definição
Define-se choque como a situação em que há perfusão
orgânica e oxigenação tecidual inadequadas. No doente
politraumatizado, a causa mais comum de choque é a hi-
povolemia decorrente da hemorragia. Logo, toda vítima de
trauma que se apresente fria e taquicárdica está em choque Figura 1 - Fisiopatologia do choque
até que se prove o contrário.

2. Fisiologia 3. Diagnóstico
Os primeiros sinais clínicos do choque são taquicardia e
A resposta inicial do organismo diante da perda san-
vasoconstrição cutânea, que se manifestam como pele fria
guínea consiste em vasoconstrição periférica (circulação
e pegajosa. A FC normalmente é maior em recém-nascidos,
cutânea, muscular e visceral), na tentativa de preservar a diminuindo progressivamente até a idade adulta. Assim,
perfusão de órgãos nobres (rins, coração e cérebro). Ocorre valores considerados normais para crianças e adolescentes
também um aumento da Frequência Cardíaca (FC), com o não são os mesmos em adultos (Tabela 1).
intuito de manter o débito cardíaco. Na maioria das vezes, a
taquicardia é o sinal mais precoce do choque. Tabela 1 - Frequência cardíaca considerada taquicardia conforme
a idade
A vasoconstrição e o aumento da FC decorrem da libe-
ração de catecolaminas endógenas, que aumentam a resis- Lactente >160bpm
tência vascular sistêmica. Inicialmente, com a vasoconstri- Pré-escolar >140bpm
ção e o aumento da FC, a Pressão Arterial (PA) permanece Puberdade >120bpm
inalterada. Se a perda sanguínea persistir, sem que haja re- Adulto >100bpm
posição, o paciente apresentará hipotensão. Se o processo
Após a taquicardia, o próximo sinal hemodinâmico é a
não for revertido, ocorrerão, em sequência, lesão celular
diminuição da pressão de pulso, que é a diferença entre as
progressiva, agravamento do edema tecidual e morte ce-
pressões sistólica e diastólica. A queda da Pressão Arterial
lular. Esse processo é resultante da perda sanguínea e da Sistêmica (PAS) ocorre em uma fase mais tardia do choque.
hipoperfusão. Em razão dos mecanismos compensatórios já expostos, a
Outros tipos de choque serão discutidos posteriormen- diminuição da PAS acontece após perda de pelo menos 30%
te neste capítulo, mas apesar de diferentes mecanismos, da volemia.
a resposta final acaba sendo semelhante. A fisiopatologia A estimulação adrenérgica causa sudorese e deixa a
dos diferentes tipos de choque pode ser representada na pele fria e pegajosa. Há redução do fluxo urinário levando
Figura 1. à oligúria e anúria. O doente apresenta ainda taquipneia,

17
CI RUR G I A D O TRAU M A

com alteração do nível de consciência que varia desde con- Tabela 3 - Diagnóstico: sinais clínicos
fusão mental até coma, quando há perda volêmica superior Hipovolê- Cardiogê- Neurogê-
Séptico
a 50% da volemia. mico nico nico
Estase Sem Sem Sem
Distendida
4. Etiologia jugular estase estase estase
Cor da
No trauma, divide-se a etiologia do choque em hemor- Pálida Rosada Pálida Rosada
pele
rágica e não hemorrágica, sendo o choque hemorrágico o
mais comum, responsável por 90% dos casos. As causas de Tempe-
choque não hemorrágico são menos frequentes, porém se ratura da Fria Quente Fria Quente
pele
deve suspeitar delas como diagnóstico diferencial nos casos
em que não há resposta clínica com as medidas iniciais. Aumen-
FC Aumentada Aumentada Aumentada
tada
A - Tipos de choques não hemorrágicos Sensório Ansiedade
Ansieda-
Ansiedade Ansiedade
de
a) Choque cardiogênico Diurese Diminuída Diminuída Diminuída Diminuída
Consiste na falência do mecanismo de bomba do cora-
ção, causando uma diminuição da pós-carga. Pode ser cau- B - Choque hemorrágico
sado por contusão miocárdica, tamponamento cardíaco, Hemorragia consiste em perda aguda de volume sanguí-
embolia gasosa e infarto agudo do miocárdio associado ao neo. O sangue é responsável por 7% do peso corpóreo nos
trauma. Normalmente, a FC estará normal, com hipoten- adultos e, nas crianças, por 8 a 9%, sempre considerando o
são. peso ideal do paciente. Dessa maneira, um adulto de 70kg
b) Choque neurogênico tem, aproximadamente, 5L de sangue.
Acontece na lesão medular, e a hipotensão decorre da Todo doente traumatizado em choque, até que se prove
perda do tônus simpático, que causa diminuição da resis- o contrário, deve ser conduzido como vítima de choque hi-
tência vascular periférica, levando à queda da PA. O efeito povolêmico. É possível estimar o percentual volêmico per-
é acentuado pela hipovolemia. Se o doente não apresen- dido por meio de parâmetros clínicos (Tabela 4). A partir
tar hipovolemia, o quadro clínico do choque neurogêni- disso, orienta-se a reposição volêmica, que deve ser moni-
co será de hipotensão sem taquicardia ou vasoconstrição torizada pela melhora desses parâmetros.
cutânea. É útil lembrar que fraturas e lesões de partes moles
podem ser responsáveis por alterações hemodinâmicas.
c) Choque séptico A perda sanguínea local pode ser volumosa. Em fratu-
É raro na admissão do doente traumatizado e possível ras de ossos longos, úmero e tíbia, há perda de cerca de
em paciente com contaminação peritoneal por conteúdo 750mL de sangue. Fraturas de fêmur podem sangrar até
intestinal, que demora algumas horas para chegar ao hospi- 2.000mL. Em fraturas de bacia, vários litros de sangue
tal. O doente apresenta-se, inicialmente, com volume circu- podem acumular-se no retroperitônio. A lesão de partes
lante normal, discreto aumento da FC, pele rósea e quente, moles acarreta, também, edema local com perda adicio-
discreta queda pressórica e pulso cheio. Com a evolução do nal de líquido, diminuindo ainda mais o volume intravas-
choque, o quadro clínico torna-se semelhante ao do cho- cular.
que hipovolêmico. Tabela 4 - Classificação do choque hemorrágico
É possível determinar o tipo de choque com base em
Classe I Classe II Classe III Classe IV
parâmetros clínicos e hemodinâmicos (Tabelas 2 e 3).
Perda sanguí- 1.500 a
Até 750 750 a 1.500 >2.000
Tabela 2 - Diagnóstico: resposta hemodinâmica nea (mL) 2.000
Hipovolê- Cardiogê- Perda sanguí-
Séptico Neurogênico nea (% volume Até 15% 15 a 30% 30 a 40% >40%
mico nico
Inicial sanguíneo)
Débito
Diminuído alto, tar- Diminuído Aumentado Frequência de
cardíaco <100 >100 >120 >140
dio baixo pulso (bpm)
RVS Aumentada Diminuída Aumentada Diminuída Pressão arte- Diminu- Diminu-
Normal Normal
Aumen- rial ída ída
Volemia Diminuída Aumentada Normal
tada Normal ou
Pressão de Diminu- Diminu-
Pré- aumen- Diminuída
Diminuída Diminuída Aumentada Diminuída pulso ída ída
-carga tada

18
CHOQUE

Classe I Classe II Classe III Classe IV le do quadro hemorrágico), amilase, beta-HCG e eventuais
Frequência exames toxicológicos.
respiratória 14 a 20 20 a 30 30 a 40 >35 A passagem de cateter venoso central não deve ser rea-
lizada no atendimento inicial, pois, além de consistir em um

CIRURGIA DO TRAUMA
(irpm)
Oligo/
acesso longo e fino, apresenta o risco de punção iatrogênica
Diurese (mL/h) >30 20 a 30 5 a 15 com pneumotórax ou hematoma de carótida. Na impossibi-
anúria
lidade de acesso periférico, as dissecções venosas (fleboto-
Modera-
Estado mental
Levemen-
damente
Ansioso, Confuso, mias) devem ser realizadas. Em crianças menores de 6 anos,
te ansioso confuso letárgico é possível realizar o acesso intraósseo, que deverá ser uti-
ansioso
lizado apenas durante a reanimação. A punção é realizada
Crista- Crista-
Reposição na superfície anteromedial da tíbia, de 1 a 3cm abaixo da
Cristaloide Cristaloide loide e loide e
volêmica tuberosidade tibial.
sangue sangue
Para a reposição volêmica, devem ser utilizadas solu-
ções cristaloides isotônicas aquecidas, preferencialmente a
5. Avaliação inicial do paciente com cho- 39°C. O Ringer lactato é a solução preferencial por apresen-
que hemorrágico tar composição mais semelhante à do plasma humano (Ta-
bela 5). Mesmo assim, há risco de acidose hiperclorêmica,
O doente traumatizado em choque é sempre tratado
principalmente em doentes com insuficiência renal.
inicialmente como hipovolêmico, com o objetivo de resta-
belecer a perfusão orgânica e celular com sangue adequa- Tabela 5 - Principais soluções utilizadas na prática diária, compa-
damente oxigenado. O princípio básico a ser seguido é o de radas com o plasma e o sangue total
interromper o sangramento e repor as perdas de volume. É Calo-
importante lembrar que, durante o atendimento inicial, as Solução Na+ K+ Cl- HCO3- Ca++ Mg++
rias
prioridades são seguidas conforme o ABCDE.
Solução
Durante a avaliação de via aérea, deve-se lembrar sem- fisioló- 154 - 154 - - - -
pre do fornecimento de oxigênio suplementar, para manter gica
os níveis de saturação de hemoglobina acima de 95%. A
Ringer
avaliação neurológica do doente em choque provavelmen- 130 4 109 28 3 - -
lactato
te estará alterada e não implicará necessariamente lesões
intracranianas, podendo refletir apenas a perfusão inade- Glicose
- - - - - - 200
quada do cérebro. a 5%
A dilatação gástrica pode ser causa de hipotensão inex- Glicose
- - - - - - 400
plicada ou de arritmias cardíacas, por estímulo vagal. Está a 10%
frequentemente presente no traumatizado, principalmente Plasma 142 5 105 27 5 3 -
na criança, e torna difícil o tratamento do choque, além de Sangue
elevar o risco de aspiração do conteúdo gástrico. Deve-se 75 2 50 14 3 2 -
total
passar uma sonda nasogástrica ou orogástrica, para des-
compressão, e aspirá-la para remover o conteúdo gástri- É importante lembrar que 2/3 da “água corporal” estão
co. Em todo traumatizado, deverá ser colocada uma sonda no intracelular, e apenas 1/3 no extracelular. Do volume ex-
urinária para monitoração contínua da diurese e avaliação tracelular, apenas 1/3 fica no espaço intravascular, ficando
da presença de hematúria, exceto em caso de suspeita de os 2/3 restantes no espaço intercelular. Daí a regra “3 para
traumatismo uretral. 1”, ou seja, para cada 3L de volume reposto, apenas 1L vai
para o intravascular. Assim, com base no quadro clínico,
6. Tratamento do choque hemorrágico estima-se a perda sanguínea, sendo necessária a reposição
de 3 vezes esse valor.
A 1ª etapa no tratamento das hemorragias é o controle
Dessa maneira, o volume inicial a ser infundido, rapida-
do sangramento. Hemorragias externas devem ser compri-
mente, é de 2.000mL no adulto e de 20mL/kg na criança. As
midas ou tratadas com elevação do membro. O uso de tor-
decisões terapêuticas seguintes são baseadas na resposta
niquetes deve ser restrito ao intra-hospitalar e desde que
seja possível controlar o tempo em que o membro fica gar- do doente à reposição volêmica inicial. O principal parâme-
roteado. Medidas hemostáticas como suturas não devem tro para avaliar a reposição volêmica é a diurese. A reposi-
ser realizadas durante o exame primário. ção adequada de volume deve restabelecer, no adulto, o
A reposição volêmica, quando indicada, deve ser preco- débito urinário de aproximadamente 0,5mL/kg/h. Na crian-
ce. Preconiza-se a punção de 2 acessos venosos periféricos, ça de 0 a 3 anos, o objetivo é uma diurese de 2mL/kg/h; na
já que o fluxo de líquido será maior quanto mais curto e de 3 a 5 anos, de 1mL/kg/h; e na criança entre 5 e 12 anos,
calibroso for o cateter (Lei de Poiseuille). No ato da pun- espera-se atingir de 0,5 a 1mL/kg/h. A resposta à reposição
ção, deve ser colhida uma amostra de sangue para tipagem, volêmica inicial pode ser rápida, transitória ou mínima, ou
dosagem de hemoglobina, hematócrito (úteis para contro- ausente (Tabela 6).

19
CI RUR G I A D O TRAU M A

Tabela 6 - Respostas à reposição volêmica 7. Ciladas no atendimento de doentes


Resposta Sem
rápida
Resposta transitória
resposta com choque
Retorno Melhora transitória, Conti- Algumas situações podem confundir o socorrista no mo-
Sinais vitais ao nor- recidiva dos sinais de nuam mento de diagnosticar o choque hipovolêmico. Na maioria
mal choque anormais
das vezes, são situações em que as manifestações clínicas
Mínima
Perda sanguí- Moderada e persistente Grave demoram a surgir e o diagnóstico de choque é subestimado.
(10 a
nea (20 a 40%) (>40%)
20%)
Necessidade
A - Idade
de mais crista- Baixa Alta Alta Doentes idosos apresentam menor atividade simpá-
loide tica, em virtude de um déficit de resposta dos receptores
Necessidade
Baixa Moderada ou alta Imediata às catecolaminas, e podem não apresentar aumento da FC.
de sangue
Além disso, a doença oclusiva aterosclerótica torna os ór-
Necessidade Muito
Possível Provável gãos vitais extremamente sensíveis à diminuição do fluxo
de cirurgia provável
sanguíneo. A utilização frequente de medicações crônicas
Os doentes com resposta transitória apresentam san- deve ser lembrada: os diuréticos causam depleção crônica
gramento persistente ou reanimação inadequada até o mo- de volume, e o uso de beta-bloqueadores pode mascarar os
mento. Os doentes com resposta mínima ou ausente pro- sinais de choque. Neste caso, deve-se utilizar monitoração
vavelmente necessitam de intervenção cirúrgica imediata invasiva mais precocemente.
para controle hemorrágico, porém devem ser lembradas as
causas de choque não hemorrágico, como o cardiogênico B - Atletas
por contusão cardíaca ou tamponamento e o pneumotórax
hipertensivo, como causa do choque que não responde à Apresentam volume sanguíneo aumentado em 15 a
reposição volêmica. 20%, e débito cardíaco aumentado em até 6 vezes, além de
FC normal na faixa de 50bpm. Esses doentes apresentam
A - Reposição de sangue capacidade compensatória maior à perda sanguínea e pou-
O sangue deve ser reposto na forma de concentrado de cas manifestações de hipovolemia.
hemácias. O objetivo é aumentar a capacidade de trans- C - Gravidez
porte de oxigênio do volume intravascular. Está indicada a
transfusão em doentes com perda estimada >30% do volu- Há hipervolemia fisiológica, sendo necessária maior
me sanguíneo total. perda sanguínea para manifestar anormalidades de perfu-
Idealmente, devem ser realizadas provas cruzadas, uti- são, tanto para a mãe quanto para o feto.
lizando sangue com tipo específico ABO e Rh. Quando não
estiver disponível o tipo específico ou não houver tempo, D - Medicamentos e marca-passo
deve-se utilizar sangue tipo O, e em mulheres em idade fér- Os bloqueadores beta-adrenérgicos e os bloqueadores
til, Rh negativo. de canais de cálcio alteram significativamente a resposta
B - Avaliação invasiva hemodinâmica à hemorragia. Portadores de marca-passo
cardíaco não apresentam aumento da FC em virtude da per-
A principal causa de resposta inadequada ao tratamento da sanguínea. Deve ser realizada monitoração da PVC para
de choque é a hemorragia oculta ou não diagnosticada. Os orientar a reposição volêmica.
doentes idosos e os portadores de choque de causa não he-
morrágica devem ser transferidos para unidade de terapia 8. Resumo
intensiva para adequada monitorização, inclusive da Pres-
são Venosa Central (PVC), cujos valores podem indicar: Quadro-resumo
- PVC inicial alta: DPOC, vasoconstrição generalizada, - Choque significa perfusão inadequada com baixa oxigenação
reposição volêmica rápida, uso de vasopressores; tecidual. No trauma, todo paciente frio e taquicárdico está em
- PVC baixa: perda volêmica contínua; choque, até que se prove o contrário;
- Aumento rápido da PVC: reposição volêmica completa - Todo choque em doente politraumatizado é hipovolêmico até
ou função cardíaca comprometida; que se prove o contrário;
- Aumento excessivo da PVC: hipertransfusão, disfunção - O tratamento dos pacientes com choque segue as prioridades
cardíaca, tamponamento cardíaco ou pneumotórax. do ATLS®. A 1ª medida é o controle da hemorragia, seguido da
reposição volêmica adequada;
No paciente com suspeita de sangramento intracavitá- - O melhor parâmetro para avaliar a resposta à reposição
rio, principalmente abdominal, que não responde às medi- volêmica é a diurese;
das de reanimação, a avaliação pelo cirurgião deve ser pre- - Idosos, atletas, gestantes ou usuários de determinadas
coce, pois muitas vezes o controle da hemorragia só será medicações podem ter o diagnóstico de choque subestimado.
obtido na laparotomia exploradora.

20
CAPÍTULO

5
Trauma abdominal
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais aos sinais sugestivos dessas lesões para não retardar o tra-
tamento definitivo.
- Avaliação inicial; Define-se como abdome anterior a área entre a linha
transmamilar superiormente, os ligamentos inguinais e a sínfi-
- Exames complementares: FAST x lavado peritoneal se púbica inferiormente, e as linhas axilares anteriores, lateral-
diagnóstico x tomografia computadorizada; mente. Pode ser dividido em 9 regiões: região de hipocôndrios
- Indicações de cirurgia. direito e esquerdo, região epigástrica, região de flancos direito
e esquerdo, região mesogástrica, região ilíaca direita e esquer-
1. Introdução da e região hipogástrica (Figura 1). Há, ainda, outra divisão em
quadrantes: quadrantes superiores direito e esquerdo e qua-
O abdome é sede frequente de lesões traumáticas, tan- drantes inferiores direito e esquerdo. Do ponto de vista inter-
to contusas como penetrantes, muitas das quais necessita- no, o abdome possui 3 compartimentos distintos: a cavidade
rão de tratamento cirúrgico. O socorrista deve estar atento peritoneal, o retroperitônio e a pelve (Figura 1).

Figura 1 - (A) Limites externos do abdome e (B) divisão interna

21
CI RUR G I A D O TRAU M A

2. Mecanismos de trauma cranial da próstata no toque retal, estará contraindicada a


sondagem vesical e deverá ser realizada uretrocistografia
O trauma contuso ou fechado compreende as lesões retrógrada após a estabilização hemodinâmica.
por compressão, esmagamento, cisalhamento ou desacele- Se, durante a avaliação inicial, o paciente apresentar
ração. Os acidentes automobilísticos são responsáveis por dados que indiquem necessidade de cirurgia e não houver
60% dos traumatismos abdominais fechados. As vísceras cirurgião no serviço, a transferência deverá ser rápida, e,
parenquimatosas são mais frequentemente acometidas, para o centro de trauma que poderá oferecer tratamento
sendo mais comuns as lesões do baço (de 25 a 45%) e do adequado.
fígado.
Os traumas penetrantes podem ser causados por projé-
teis de armas de fogo (FPAF) ou por arma branca (FAB). Cerca 4. Exames diagnósticos
de 80% dos FPAFs causam lesões abdominais significativas,
o que acontece em apenas 20 a 30% dos FABs. Em 25%, há A - Radiografia simples de abdome
acometimento concomitante da cavidade torácica, lembran-
Apresenta pouca aplicabilidade no diagnóstico do trau-
do que alguns ferimentos podem transfixar o diafragma. Os
ma abdominal. No trauma contuso, pode revelar pneumo-
órgãos mais frequentemente lesados são fígado (30 a 40%),
intestino delgado (30 a 50%) e estômago (20%). Ferimentos peritônio quando há lesão de víscera oca, pneumorretrope-
que comprovadamente penetraram a cavidade peritoneal ritônio e apagamento do psoas em lesões retroperitoneais.
têm indicação formal de laparotomia exploradora. Nos traumatismos penetrantes, é útil para localizar os
projéteis de arma de fogo (Figura 2) e avaliar a presença
de hemotórax ou pneumotórax nos ferimentos de transição
3. Avaliação inicial toracoabdominal e de pneumorretroperitônio. Em ferimen-
A avaliação inicial segue as prioridades do ATLS®, ini- tos por arma de fogo dorsais, a radiografia simples de perfil
ciando com a garantia de via aérea pérvia e proteção da pode ser útil para avaliação do trajeto e localização do pro-
coluna cervical. A ventilação pode estar comprometida nos jétil, indicando ou não a penetração na cavidade.
ferimentos transfixantes do diafragma, e a drenagem de tó-
rax pode ser necessária. No exame físico abdominal é preci-
so pesquisar a presença ou ausência de ruídos hidroaéreos,
pneumoperitônio (hipertimpanismo e/ou sinal de Joubert
positivo) e sinais de peritonite por meio da palpação.
A avaliação hemodinâmica é o item mais importante na
definição de conduta. Pacientes instáveis com suspeita de
sangramento abdominal podem ser submetidos a Lavado
Peritoneal Diagnóstico (LPD) ou ultrassom na sala de emer-
gência (Focused Assessment Sonography in Trauma – FAST).
Dependendo da etiologia do trauma, esses indivíduos po-
dem ser diretamente submetidos à laparotomia explorado-
ra. Nos estáveis, é possível a realização de exames comple-
Figura 2 - Radiografia de paciente vítima de tiro de cartucheira
mentares.
Como medidas complementares ao exame primário, o Exames contrastados como uretrocistografia e urografia
paciente deverá ser submetido à sondagem gástrica, útil excretora são úteis para a avaliação de lesões de sistema ge-
para esvaziar o conteúdo gástrico (principalmente em ges- niturinário. A uretrocistografia deve ser realizada em todos
tantes, crianças e pacientes obesos), diminuindo o risco de os doentes com suspeita de trauma uretral antes da sonda-
aspiração, além de verificar possíveis sangramentos diges- gem vesical (Figura 3).
tivos. O uso de sonda nasogástrica está contraindicado em
fratura suspeita da base de crânio (saída de liquor pelas na-
rinas, sinal do guaxinim – equimose periorbitária – e sinal
de Battle – equimose retroauricular). Realizam-se, também,
sondagem vesical para descompressão da bexiga e avalia-
ção de hematúria.
Antes da sondagem vesical, deve ser realizado o exame
de toque retal, o que permite avaliar a presença de san-
gramento, de crepitação ou de espículas ósseas, da tonici-
dade esfincteriana e da posição da próstata. Se o doente
apresentar sangue no meato uretral, hematoma escrotal Figura 3 - (A) Cistografia evidenciando lesão vesical intraperitone-
ou equimose perineal, espículas ósseas ou deslocamento al e (B) uretrocistografia retrógrada evidenciando lesão de uretra

22
TRAUMA ABDOMINAL

B - Lavagem peritoneal diagnóstica É importante entender que o FAST substitui a LPD, portanto
só está indicado a pacientes hemodinamicamente instáveis.
Consiste na realização de uma pequena incisão infraum-
bilical, com abertura da aponeurose e colocação de um

CIRURGIA DO TRAUMA
cateter ou sonda dentro da cavidade abdominal, pela qual
será infundido soro. Em caso de refluxo de sangue ou mate-
rial entérico, diz-se que o exame é positivo, e está indicada
a laparotomia exploradora. Quando há refluxo do soro ins-
tilado aparentemente sem alterações, esse material deve
ser enviado para estudo laboratorial em que a presença de
alguns itens caracteriza o lavado como positivo (Tabela 1).
Tabela 1 - Critérios de positividade da LPD
- Aspiração de mais de 10mL de sangue, conteúdo gastrintestinal,
fezes ou bile;
- Bactérias pelo Gram;
- ≥100.000mm3 de hemácias/mL; Figura 4 - FAST: (A) pesquisa no espaço hepatorrenal; (B) esplenor-
- ≥500mm3 de leucócitos/mL; renal; (C) subxifóideo e (D) FAST positivo no espaço hepatorrenal
- Amilase >175mg/dL.
D - Tomografia de abdome
Apresenta alta sensibilidade (95 a 98%) para o diagnósti-
É o exame mais específico e não invasivo, mas que só
co de hemorragia intraperitoneal, com a desvantagem de ser
um exame invasivo. Sua realização está indicada no doente deve ser realizado nos pacientes hemodinamicamente es-
instável, com trauma multissistêmico e alteração do nível de táveis, sem indicação de laparotomia de urgência. As con-
consciência ou modificação da sensibilidade (lesão medular). traindicações são instabilidade hemodinâmica, alergia ao
No doente estável, poderá ser utilizado em serviços que não contraste iodado, não colaboração do doente e demora na
dispõem de ultrassonografia e/ou tomografia. As contraindi- disponibilidade do recurso.
cações do procedimento estão citadas na Tabela 2. A tomografia computadorizada pode não diagnosticar
lesões gastrintestinais, diafragmáticas e pancreáticas. Se
Tabela 2 - Contraindicações da LPD houver líquido livre na cavidade e ausência de lesões de vís-
Contraindicação absoluta ceras parenquimatosas, deve-se suspeitar da ocorrência de
- Indicação de laparotomia. lesões de vísceras ocas.
Contraindicações relativas De modo geral, a indicação de exames complementares
Cirurgia Devem-se realizar a incisão e a colocação da no trauma abdominal está resumida na Tabela 3.
prévia sonda com cuidado pela presença de aderências. Tabela 3 - Métodos diagnósticos no trauma abdominal fechado
Obesidade A hemostasia durante o procedimento deve ser LPD USG de abdome TC de abdome
mórbida rigorosa para não haver falsos positivos.
- Doente - Doente está-
Cirrose instável; - Doente instável; vel;
Exigem cuidados com hemostasia e assepsia
avançada e Indicações - Documen- - Documentação - Documenta-
para evitar contaminação do líquido ascítico.
coagulopatia tação de de líquido livre. ção de lesão
Gravidez sangramento. visceral.
A incisão deve ser supraumbilical.
avançada - Não invasiva;
- Possível repeti- - Especificidade
C - Ultrassonografia de abdome - Diagnóstico ção; para definir a
Vantagens precoce e - Diagnóstico lesão;
O ultrassom abdominal, quando disponível na sala de sensível. precoce; - Acurácia de
emergência, pode ser realizado no doente instável, pelo ci- - Acurácia de 86 98%.
rurgião, com o objetivo de pesquisar sangue na cavidade. a 97%.
Esse tipo de ultrassonografia é conhecido pela sigla FAST e - Operador-de-
não deve ser confundido com a ultrassonografia abdominal pendente;
- Invasivo;
- Não diagnostica
convencional. Tem a vantagem sobre a LPD de não ser inva- - Não diag- - Custo alto;
lesões do dia-
siva e pode ser repetida se necessário. nostica - Não diagnos-
Desvanta- fragma, delgado
O exame avalia os espaços hepatorrenal (espaço de lesões do tica lesões de
gens e pâncreas;
diafragma e diafragma e
Morrison), esplenorrenal, subfrênico, saco pericárdico e - Distorção por
do retroperi- delgado.
escavação pélvica na procura de hemoperitônio (Figura 4). meteorismo e
tônio.
A análise ultrassonográfica pode ficar comprometida em enfisema de
obesos, com enfisema de subcutâneo ou cirurgias prévias. subcutâneo.

23
CI RUR G I A D O TRAU M A

5. Indicações de cirurgia Nos ferimentos penetrantes em flanco e dorso, em es-


táveis e assintomáticos, pode ser realizada uma tomografia
abdominal com triplo contraste (intravenoso, via oral e via
Cerca de 50 a 60% das vítimas de ferimentos penetran-
retal). Se não for possível, o doente deverá permanecer sob
tes apresentam indicação de laparotomia exploradora ao
observação por, pelo menos, 24 horas.
serem admitidas na sala de emergência (Figura 5). Pacien-
Os ferimentos na parte baixa do tórax podem lesar o
tes com hipotensão, peritonite ou evisceração ao exame
diafragma e as vísceras abdominais. O diagnóstico dessas
físico não necessitam de exames complementares para a
lesões é feito com raio x simples ou, preferencialmente, por
indicação de cirurgia (Figura 6).
meio de toracoscopia ou laparoscopia. Em geral, caso o raio
Se houver dúvida em relação à presença de lesão nos
x de tórax seja normal, opta-se pela laparoscopia como mé-
assintomáticos, será possível realizar exame físico seriado,
todo diagnóstico nos doentes estáveis.
cuja acurácia é de 94%, ou LPD, cuja acurácia é de 90%. O
Na presença de ferimentos por arma de fogo tangen-
índice de laparotomias não terapêuticas nos ferimentos pe-
ciais no abdome, quando o orifício de entrada dista menos
netrantes é de, aproximadamente, 20%.
de 10cm do orifício de saída, a melhor opção para diagnos-
ticar a penetração na cavidade abdominal é a laparoscopia.
A indicação de laparotomia no trauma abdominal con-
tuso ocorre na presença de hipotensão recorrente, apesar
da reanimação adequada, e na positividade na LPD ou na
USG (Figura 7).
Outras indicações de cirurgia são peritonite precoce ou
tardia, evisceração, pneumoperitônio, enfisema de retro-
peritônio ou sinais de ruptura do diafragma à radiografia;
tomografia de abdome evidenciando lesões no trato gas-
trintestinal, na bexiga intraperitoneal ou outras lesões com
indicação cirúrgica.

Figura 5 - Indicações formais de laparotomia exploradora no trau-


ma abdominal penetrante: (A) evisceração; (B) e (C) ferimentos
com violação da cavidade peritoneal

Figura 7 - Trauma abdominal fechado

6. Cirurgia de controle de danos (damage


control)
Pacientes politraumatizados podem apresentar reper-
cussões clínicas que contribuem para a gravidade do caso.
A presença de hipotermia, acidose metabólica e coagulopa-
Figura 6 - Conduta no trauma abdominal penetrante tia constitui a chamada tríade letal, na qual os elementos

24
TRAUMA ABDOMINAL

se sucedem em um ciclo vicioso que podem levar à morte mento preferencial. Próteses e shunts podem ser utilizados,
rapidamente se não forem corrigidos. desde que não prolonguem muito o tempo cirúrgico. Na
Nesses pacientes, a chance do óbito pela falência meta- presença de múltiplas lesões em alças, é preferível ressecar
bólica no intraoperatório é maior do que a falha no reparo todo segmento quando possível. O uso de grampeadores

CIRURGIA DO TRAUMA
completo das lesões. Baseando-se nesse conceito, surgiu a contribui muito nesses procedimentos (Figura 9).
cirurgia de controle de danos, ou damage control. O princí-
pio desse procedimento consiste na cirurgia para controle
da hemorragia e prevenção de contaminação maciça, segui-
do da recuperação clínica em Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) e de reoperação programada.
Didaticamente, indica-se o damage control para pacien-
tes com pH <7,2, T <32oC e necessidade de transfusão acima
de uma volemia. O juízo do cirurgião é fundamental para
eleger essa modalidade logo nos primeiros minutos da ci-
rurgia, e ele deve contar com a colaboração do anestesista
e da equipe da UTI que receberá o paciente.
Do ponto de vista técnico, realiza-se uma incisão am- Figura 9 - (A) Empacotamento hepático e (B) ressecção intestinal
com grampeador mecânico
pla xifopúbica, com empacotamento dos 4 quadrantes do
abdome. O controle das hemorragias ativas é obtido com O fechamento abdominal também deve ser rápido, por
compressão manual ou empacotamento com compressas. vezes temporário com peritoniostomias (Figura 10), técnica
O controle aórtico é necessário por vezes. conhecida como bolsa de Bogotá. Essa técnica é especial-
Realiza-se um exame completo, porém rápido do abdo- mente útil quando há grande edema de alças e compressas
me e retroperitônio. O cirurgião deve estar familiarizado dentro da cavidade abdominal. A peritoniostomia, além de
com as manobras de acesso ao retroperitônio, como Catel e facilitar a abertura na reoperação, também é utilizada para
Mattox (Figura 8). A contaminação deve ser prevenida com evitar a síndrome compartimental abdominal que pode
suturas rápidas, evitando-se enterectomias e anastomoses. acontecer nesses casos.
Ao término da cirurgia, o paciente é levado à UTI para
monitorização hemodinâmica, correção da coagulopatia e
aquecimento. A reoperação deve ocorrer entre 48 e 72 ho-
ras e servirá para a retirada das compressas, inspeção com-
pleta da cavidade, restabelecimento do trânsito intestinal,
limpeza e, sempre que possível, fechamento definitivo. Em
algumas situações, podem ser necessárias novas cirurgias.

Figura 8 - Manobras para acesso ao retroperitônio: (A) manobra


de Catel e (B) manobra de Mattox

Lesões esplênicas são rapidamente tratadas com esple- Figura 10 - Peritoniostomia ou “bolsa de Bogotá”
nectomia. Lesões hepáticas podem ser resolvidas tempo-
rariamente com empacotamento (Figura 9). A manobra de 7. Principais manobras cirúrgicas de acor-
Pringle (clampeamento do hilo hepático) permite ao cirur-
gião diferenciar se o sangramento é intra-hepático ou não. do com o sítio da lesão
Ressecções hepáticas amplas são desaconselhadas nessas
situações.
A - Fígado e baço
Lesões de aorta e veia cava inferior necessitarão de con- Conforme citado, o tratamento das lesões esplênicas é
trole distal e proximal rápido. Suturas primárias são o trata- mais bem obtido com esplenectomia total. A ressecção par-

25
CI RUR G I A D O TRAU M A

cial ou medidas hemostáticas costumam não ser efetivas, B - Pâncreas e vias biliares
com o risco de ressangramento no pós-operatório. A classi-
Lesões da cauda pancreática podem ser simplesmente
ficação para as lesões esplênicas está na Tabela 4.
drenadas. As ressecções corpo-caudais devem ser realiza-
Tabela 4 - Classificação das lesões esplênicas das nas fraturas do pâncreas ou na lesão do Wirsung (lesão
do ducto pancreático principal). Lesões da cabeça pancre-
Grau da lesão
ática e da via biliar principal são um desafio para o cirur-
Hematoma <10% área subcapsular, sem expansão. gião. Na maioria das vezes, é preferível realizar a drenagem
I Penetração da cápsula <1cm de profundidade, externa e reservar a reconstrução do trânsito para um 2º
Laceração
sem sangramento. tempo, com equipe especializada. Realizar duodenopancre-
De 10 a 50% da superfície, subcapsular; atectomia é desaconselhável pelo tempo cirúrgico prolon-
Hematoma
hematoma intraparenquimatoso. gado e pela morbimortalidade do procedimento, associado
II
Laceração
1 a 3cm de profundidade, sem envolvimento à gravidade do trauma em si.
de vasos trabeculares, sem sangramento ativo.
Intraparenquimatoso até 5cm ou em expansão C - Estômago, duodeno, intestino delgado e có-
Hematoma
III >50% subcapsular. lon
Laceração Ruptura do parênquima com sangramento. Lesões gástricas podem ser rafiadas. Na presença de
Ruptura do parênquima com sangramento lesões múltiplas, ou na 1ª porção do duodeno, a gastrecto-
Hematoma
átrio. mia subtotal pode ser uma opção. Nas lesões de 2ª porção
IV
Lesão vascular hilar com desvascularização duodenal, associadas ou não a lesões pancreáticas, uma
Laceração
>25%. opção é a cirurgia de Vaughan, que consiste no reparo da
Laceração Destruição completa do baço. lesão duodenal, seguido de cerclagem pilórica com fio ab-
V Lesão vascular hilar com desvascularização sorvível por gastrostomia e uma gastroenteroanastomose
Vascular
total. laterolateral isoperistáltica aproveitando a gastrostomia
(Figura 11).
As lesões hepáticas podem ser classificadas conforme a
Tabela 5. Na maioria das vezes, as lesões param de sangrar
espontaneamente e o cirurgião não consegue identificar a
origem da hemorragia. Entre as medidas hemostáticas, cau-
terização, sutura, balão intra-hepático e tampões de peritô-
nio são as mais utilizadas. As ressecções hepáticas devem
ser realizadas para pacientes estáveis, e por cirurgião habi-
tuado com a técnica.

Tabela 5 - Classificação das lesões hepáticas


Grau da lesão
Hematoma Subcapsular <10% da superfície.
I Ruptura da cápsula, profundidade <1cm no
Laceração
parênquima.
Subcapsular de 10 a 15% da superfície,
Hematoma
intraparenquimatoso <10cm de diâmetro.
II
Ruptura da cápsula, 1 a 3cm de profundidade
Laceração
no parênquima.
Subcapsular >50% área da superfície, ruptura
Hematoma subcapsular ou hematoma intraparenquimato-
III so >10cm ou em expansão.
Laceração >3cm de profundidade no parênquima.
25 a 75% em um lobo hepático ou de 1 a 3 Figura 11 - Cirurgia de Vaughan para tratamento de lesões duo-
IV Laceração
segmentos de Couinaud em um lobo. denais
>75% do lobo hepático ou mais de 3 segmentos
Laceração
de Couinaud em um único lobo.
Lesões de delgado que comprometam menos de 50%
V do diâmetro da alça podem ser suturadas em plano único. A
Lesão venosa justa-hepática – veia cava retro-
Vascular presença de diversas lesões em um mesmo segmento pode
hepática, veia hepática maior central.
ser resolvida com enterectomia segmentar e anastomose
VI Vascular Avulsão hepática. primária (Figura 12).

26
TRAUMA ABDOMINAL

tônio constituem um desafio para o cirurgião, que deve


ter bom senso para saber quando abordá-los. Esse julga-
mento leva em conta o local do hematoma e a etiologia

CIRURGIA DO TRAUMA
do trauma. De maneira geral, todos os hematomas por
trauma penetrante devem ser explorados. Os hemato-
mas resultantes de trauma contuso podem ser conduzi-
dos conforme a Tabela 6.

Tabela 6 - Conduta nos hematomas retroperitoneais


Zona Limites anatômicos Conduta
Sempre devem ser explora-
Central: compreende o dos cirurgicamente (manobra
I pâncreas, aorta e cava de Kocher e acesso pela aber-
abdominal tura do ligamento gastroepi-
ploico).
Laterais direita e esquer- Devem ser explorados os he-
da; compreende os rins, matomas expansivos ou pul-
II
baço e porções retroperi- sáteis (manobra de Catel e
toneais do cólon Mattox).
Não devem ser abordados
cirurgicamente. Lesões dessa
III Pelve região devem ser conduzidas
com arteriografia diagnóstica
e terapêutica.

A classificação do trauma renal está na Tabela 7. As le-


sões podem ser tratadas com rafia, nefrectomia parcial ou
total. Antes de realizar uma nefrectomia total, é necessá-
rio palpar o outro rim para afastar agenesias congênitas.
As lesões de ureter podem ser debridadas e rafiadas com
fio monofilamentar em pontos separados. A colocação de
Figura 12 - (A) Lesão de delgado por projétil de arma de fogo e (B) cateter de duplo J pode auxiliar na sutura e evitar este-
após ressecção segmentar e anastomose terminoterminal
nose. A lesão da bexiga extraperitoneal pode ser tratada
Lesões do cólon são sempre alvo de discussão no que conservadoramente com sondagem vesical. Já as lesões
se refere à anastomose primária versus a colostomia. De intraperitoneais exigem sutura em 2 planos com fio absor-
maneira geral, as anastomoses são seguras mesmo haven- vível para evitar litogênese.
do contaminação da cavidade, desde que o paciente esteja
estável do ponto de vista hemodinâmico. A colostomia fica Tabela 7 - Classificação das lesões renais
reservada para os doentes instáveis durante a cirurgia. Le- Grau da lesão
sões de reto baixo podem ser tratadas, além da rafia, com Contusão Hematúria, com exames normais.
colostomia de proteção. I
Hematoma Subcapsular, não expansível, sem laceração.
Não expansível, perirrenal, confinado ao retro-
D - Retroperitônio Hematoma
peritônio.
II
O cirurgião deve estar familiarizado com as manobras <1cm de profundidade, sem ruptura do
Laceração
de acesso ao retroperitônio (Figura 8). A manobra de Catel sistema coletor ou extravasamento de urina.
consiste na liberação do cólon ascendente pela abertura da >1cm sem ruptura do sistema coletor ou
III Laceração
fáscia de Toldt e permite acesso principalmente à veia cava extravasamento de urina.
e ao rim direito. Pode ser complementada com a manobra Com extensão pelo córtex, medula ou sistema
de Kocher, que consiste na liberação da curvatura duodenal Laceração
coletor, com extravasamento de urina.
para acesso ao pâncreas. À esquerda, realiza-se a manobra IV
Lesão da artéria ou veia principal com hemor-
de Mattox, com a liberação do cólon descendente para ex- Vascular
ragia contida.
posição da aorta, rim esquerdo e cauda do pâncreas.
Laceração Completa destruição do rim.
Do ponto de vista cirúrgico, o retroperitônio pode V
Vascular Avulsão do hilo com desvascularização.
ser dividido em 3 regiões. Os hematomas do retroperi-

27
CI RUR G I A D O TRAU M A

8. Tratamento não operatório


Muitos doentes, vítimas de trauma abdominal fecha-
do, com achado de líquido livre em cavidade, à tomogra-
fia, quando submetidos à laparotomia exploradora já não
apresentam mais sangramento ativo. Com base nesse tipo
de situação, hoje cada vez mais se indica o Tratamento Não
Operatório (TNO) no trauma abdominal contuso.
O paciente candidato a receber TNO deve preencher
alguns critérios clínicos e institucionais. Deve estar estável
do ponto de vista hemodinâmico, sem sinais de peritonite
e sem alteração do nível de consciência. O serviço, por sua
vez, necessita de tomógrafo, de preferência do tipo multis-
lice, equipe de cirurgia disponível em tempo integral, uni- Figura 13 - Lesões hepática e esplênica por trauma abdominal fe-
dade de terapia intensiva ou semi e equipe horizontal de chado submetidas a tratamento não operatório. As tomografias
acompanhamento. são do mesmo paciente e foram realizadas (A) no dia do acidente,
(B) 5 dias após e (C) 14 dias após, com resolução completa das
As principais indicações de TNO são as lesões de vísceras
lesões
sólidas (fígado, baço e rins – Figura 13). O paciente precisa
de monitorizações clínica e hematimétrica seriadas. Esse
tipo de tratamento evita laparotomias não terapêuticas e
diminui a morbidade do tratamento. No caso de instabilida-
9. Resumo
de hemodinâmica, alteração do nível de consciência, que- Quadro-resumo
da hematimétrica ou sinais de peritonite, deve-se avaliar a - O atendimento ao doente com trauma abdominal segue a
melhor medida terapêutica. Nos casos de lesão hepática, padronização do ATLS®;
pode-se empregar a arteriografia. Na indisponibilidade do - Doentes hemodinamicamente instáveis podem ser avaliados
método, indica-se a cirurgia. com LPD ou ultrassom tipo FAST. A tomografia só deve ser
Alguns serviços estão propondo TNO para lesões pene- realizada em doentes hemodinamicamente estáveis;
trantes, principalmente por arma branca. Essa conduta ainda - Doentes com trauma abdominal hipotensos, sem resposta à
é considerada experimental e somente é utilizada em proto- reposição volêmica ou com sinais de peritonite, devem ser
colos de pesquisa. Seu uso na rotina não é preconizado, e a submetidos a laparotomia exploradora precocemente;
cirurgia ainda está indicada formalmente nesses casos. - Pacientes em hipotermia, acidose e coagulopatia são
candidatos à cirurgia de controle de danos, com contenção
da hemorragia, correção dos distúrbios em UTI e reoperação
programada;
- O tratamento de lesões específicas deve ser individualizado
de acordo com a gravidade do caso e experiência do cirurgião;
- Pacientes vítimas de trauma abdominal fechado, estáveis
hemodinamicamente à admissão, são candidatos a
tratamento não operatório.

28
CAPÍTULO

6
Trauma cranioencefálico
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais Morfologia


- De calota: linear ou estrelado, com ou sem
- Avaliação inicial; afundamento, exposta ou fechada;
Fraturas de
- Lesões mais comuns; crânio - Basilares: com ou sem perda de LCR – com ou
- Medidas gerais do tratamento; sem paralisia do VII nervo (facial).
- Indicações de avaliação da neurocirurgia. - Focais:
· Extradural;
· Subdural;
1. Introdução Lesões
intracra-
· Intracerebral.
nianas - Difusa:
O trauma cranioencefálico (TCE) representa a causa · Concussão leve;
mais frequente de atendimento neurocirúrgico de urgência · Concussão clássica;
e acarreta altos índices de morbimortalidade. Cerca de 10% · Lesão axonal difusa.
das vítimas com TCE morrem antes de chegar aos hospitais.
Das demais, 80% apresentam lesões leves, 10% lesões mo- 3. Fisiopatologia
deradas e 10% lesões graves. A lesão primária decorre di- A pressão intracraniana (PIC) normal é de cerca de
retamente do trauma, mas posteriormente podem ocorrer 10mmHg. Valores acima de 20mmHg são considerados
lesões secundárias, em consequência do edema, hipoper- anormais e são classificados como hipertensão intra-
fusão e hipoxemia. Dos traumatizados com TCE, 10% apre- craniana grave. Isso porque, segundo a doutrina de Monro-
sentam lesão raquimedular associada. -Kellie, o volume intracraniano deve permanecer constan-
te, já que o crânio é uma caixa não expansível. O ponto de
descompensação no TCE é aquele em que o aumento do
2. Classificação volume de massa leva a um aumento da PIC. Inicialmente,
O TCE pode ser classificado de diversas maneiras, pelo o aumento de volume é compensado por uma diminuição
mecanismo que originou a lesão, pela gravidade ou pela do volume venoso e do líquido cefalorraquidiano (Figura 1).
morfologia do trauma (Tabela 1).

Tabela 1 - Classificação
Mecanismo
- Alta energia: acidentes automobilísticos;
Fechado
- Baixa energia: quedas e agressões.
- Ferimento por arma de fogo;
Penetrante
- Outros ferimentos.
Gravidade
Leve - Escore GCS 14 a 15: 3% de craniotomia.
Moderado - Escore GCS 9 a 13: 9% de craniotomia.
Grave - Escore GCS 3 a 8: 19% de craniotomia.
Figura 1 - Doutrina de Monro-Kellie

29
CI RUR G I A D O TRAU M A

O aumento da PIC leva a uma queda na Pressão de Per- As pupilas devem ser comparadas em tamanho e ava-
fusão Cerebral (PPC), sendo esta dependente também da liadas quanto à fotossensibilidade (Tabela 3). Diferenças
Pressão Arterial Média (PAM). Logo, PPC = PAM – PIC. maiores que 1mm entre os diâmetros pupilares, bem como
É importante manter a PAM normal para manter a per- pupilas mióticas ou midriáticas fixas, indicam lesão intracra-
fusão cerebral. PPC menor que 70mmHg está relacionada niana.
a uma evolução desfavorável. Outro índice importante é o
fluxo sanguíneo cerebral, cujo valor normal é de 50mL por Tabela 3 - Avaliação da reação pupilar
100g de cérebro por minuto. Se esse fluxo diminui para me- Tamanho da Resposta à
Interpretação
nos de 20 a 25mL, a atividade eletroencefalográfica desapa- pupila luz
rece. Se menor de 5mL, há morte celular com consequente - Compressão do III nervo
lesão irreversível. Se a PAM cai para valores menores que (oculomotor) secundário à
50mmHg, há uma diminuição abrupta do fluxo sanguíneo Midríase Lenta ou herniação tentorial. Seguem
cerebral. Para evitar a ocorrência de lesões, deve-se tentar unilateralmente ausente ptose palpebral e paresia
manter a PAM e evacuar hematomas precocemente. muscular medial (olho para
baixo e para fora).
4. Avaliação inicial - Perfusão cerebral
Midríase Lenta ou inadequada;
A avaliação inicial segue a padronização do ATLS®. Como bilateralmente ausente - Paralisia bilateral do III
a hipóxia pode causar alteração do nível de consciência, do- nervo.
entes com rebaixamento sensório têm indicação de via aé-
Reação
rea definitiva. A proteção da coluna cervical deve ser man- Midríase
cruzada
tida até a exclusão completa de lesão. A correção de perdas unilateralmente - Lesão do II nervo (óptico).
(Marcus-
volêmicas também é importante, pois alguns casos de al- ou igual
Gunn)
teração neurológica podem ser secundários à hipovolemia.
- Drogas (opiáceo);
Durante o exame primário, a avaliação neurológica Difícil
consta de um exame rápido, em que se avaliam o nível de Miose bilateral - Lesão da ponte;
determinar
consciência, pupilas e sinais de localização de lesões. O nível - Encefalopatia metabólica.
de consciência é estimado pela Escala de Coma de Glasgow Miose unilateral Preservada - Lesão do trato simpático.
(ECG ou GCS – Glasgow Coma Score), em que são atribuídos
pontos às melhores respostas do paciente em 3 parâmetros Já no exame primário, o socorrista deve determinar se o
clínicos (Tabela 2). doente necessitará de avaliação de neurocirurgião e trans-
feri-lo caso não disponha desse especialista no serviço. No
Tabela 2 - Escala de coma de Glasgow - GCS
exame secundário, realiza-se um exame neurológico mais
Espontâneo 4 minucioso, à procura de sinais indiretos de lesão de Sistema
A estímulo verbal 3 Nervoso Central (SNC), além da investigação de níveis de
Abertura ocular (O)
A estímulo doloroso 2 comprometimento sensitivo e motor.
Sem resposta 1
Obedece a comandos 6 5. Gravidade
Localiza dor 5

Melhor resposta motora (M)


Flexão normal (retirada) 4 A - TCE leve (ECG 14 e 15)
Flexão anormal (decorticação) 3
Aproximadamente, 80% dos doentes com TCE que che-
Extensão (descerebração) 2
gam ao pronto-socorro são classificados como TCE leve.
Sem resposta (flacidez) 1 Cerca de 3% apresentam piora inesperada, que resulta em
Orientado 5 disfunção neurológica grave se não diagnosticada precoce-
Confuso 4 mente e tratada de forma adequada. O ideal é fazer uma
Melhor resposta verbal (V) Palavras inapropriadas 3 Tomografia Computadorizada (TC) de crânio em todos os
Sons incompreensíveis 2 portadores de TCE, especialmente se houver história de
manifestação mais significativa como perda momentânea
Sem resposta 1
da consciência, amnésia ou cefaleia grave. Se a tomografia
Cerca de 90% dos pacientes, com índices de 8 ou me- não estiver disponível, esses doentes deverão ser observa-
nos, estão em coma, enquanto nenhum com escore de 9 ou dos no hospital por 12 a 24 horas.
mais se encontra nesse estado. Assim, consideram-se co- O doente com TCE leve que apresenta tomografia de
matosos os pacientes com 8 pontos ou menos na ECG, pela crânio normal pode receber alta com um acompanhante
qual é possível estimar a gravidade do TCE, conforme será confiável, que é orientado a observar a vítima por 12 ho-
discutido posteriormente. ras. Se a tomografia de crânio mostrar alguma alteração, o

30
TRAUMA CRANIOENCEFÁLICO

doente deverá ser avaliado por um neurocirurgião. Outros


critérios que indicam a observação ou a internação no hos-
pital são indisponibilidade de tomografia, TCE penetrante,

CIRURGIA DO TRAUMA
perda ou piora do nível de consciência, cefaleia de modera-
da à grave, intoxicação significativa por álcool/drogas, fratu-
ras de crânio, rinorreia ou otorreia, traumatismos significa-
tivos associados, falta de acompanhante confiável em casa
ou impossibilidade de retornar rapidamente ao hospital. Os
pacientes que necessitarem de avaliação de neurocirurgião
deverão ser transferidos precocemente.

B - TCE moderado (ECG 9 a 13)


Aproximadamente, 10% das vítimas de TCE que chegam
ao pronto-socorro apresentam TCE moderado, e cerca de
10 a 20% desses doentes apresentam piora e entram em
coma. Devem ser tomadas todas as precauções para prote-
ger as vias aéreas.
A TC de crânio deve ser sempre realizada. Cerca de 9%
Figura 2 - Atendimento inicial do doente com TCE grave (ECG <8)
necessitarão de intervenção cirúrgica. O doente é internado
para observação, mesmo com tomografia normal. São rea-
lizadas avaliações neurológicas frequentes, e a TC de crânio
será repetida se as condições piorarem e/ou preferencial-
6. Lesões específicas
mente antes da alta. Se o doente melhora (90%), recebe
alta e seguimento ambulatorial. Em caso de piora ou de A - Fraturas do crânio
manutenção do quadro (10%), repete-se a tomografia, e o a) Calota
doente passa a ser tratado como TCE grave.
Podem ocorrer lesões lineares ou estreladas, com ou
sem afundamento, expostas ou fechadas. Estará indicada a
C - TCE grave (ECG 3 a 8)
redução cirúrgica se houver afundamentos maiores ou fra-
São os doentes incapazes de obedecer a ordens simples, turas expostas (Figura 3).
mesmo após a estabilização cardiopulmonar. A lesão cere-
bral é com frequência agravada por agressões secundárias.
A presença de hipotensão na admissão é acompanhada de
um aumento significativo da taxa de mortalidade (60% ver-
sus 27%). A presença de hipóxia somada à hipotensão está
associada à mortalidade de 75%. Portanto, no TCE grave, é
imperativo que a estabilização cardiopulmonar seja alcan-
çada rapidamente (Figura 2).
Todos os doentes com TCE grave devem ser submeti-
dos à intubação endotraqueal precoce e ventilação com
oxigênio a 100%. A hiperventilação pode ser usada cau-
telosamente em doentes que apresentem piora na GCS
ou dilatação pupilar. A pCO2 deve ser mantida entre 25 e
35mmHg.
A hipotensão não é consequência do TCE (exceto em es-
tágios terminais, com insuficiência medular). A hipotensão Figura 3 - Fratura complexa de calota craniana por acidente de
decorre, mais comumente, de perda importante de sangue moto
ou de lesão da medula espinhal, tamponamento cardíaco
ou pneumotórax hipertensivo. Logo, no doente hipotenso b) Base do crânio
com TCE, devem ser excluídas todas as outras causas de hi- A fratura de base do crânio é comum nos traumas fe-
povolemia. Cerca de 50% dos doentes com TCE grave apre- chados. São vários os sinais clínicos que sugerem esse
sentam lesões sistêmicas importantes. tipo de lesão, cuja confirmação diagnóstica pode ser ob-

31
CI RUR G I A D O TRAU M A

tida pela TC com cortes coronais (Figura 4). Os principais


sinais são equimose periorbital (“olhos de guaxinim”),
equimose retroauricular ou do mastoide (sinal de Bat-
tle), fístula liquórica (rinorreia ou otorreia), hemotím-
pano e paralisia do VII par (nervo facial). Na presença
dos sinais clínicos, faz-se a suspeita de fratura de base de
crânio, portanto sondas e tubos não podem ser passados
por via nasal.

E
Figura 5 - (A) e (B) Hematoma extradural: aspecto tomográfico –
notar a forma biconvexa e o respeito pelas suturas; (C) hematoma
subdural; (D) lesão difusa: aspecto tomográfico (lesões hiperden-
sas); e (E) lesão por projétil de arma de fogo

a) Hematoma extradural
Também conhecido como epidural ou, menos comu-
mente, peridural. Localizado fora da dura-máter, dentro do
crânio, é mais frequente por ruptura da artéria meníngea
média por fratura craniana. A maioria tem origem arterial,
porém 1/3 pode ser de origem venosa, por ruptura do seio
parieto-occipital ou da fossa posterior.
Está presente em 0,5% dos TCEs e em 9% dos doentes
comatosos. Os doentes com essa lesão costumam apresen-
tar um intervalo lúcido entre o trauma e a piora neurológi-
ca, dado da história que obriga a observação neurológica do
paciente. A TC do crânio apresenta uma lesão com forma de
lente biconvexa, de localização principalmente temporal e
temporoparietal (Figuras 5A e B). O tratamento consiste na
drenagem do hematoma, que deve ser precoce, para evitar
lesão cerebral.
Figura 4 - Fratura de base de crânio: (A) aspecto tomográfico e (B)
sinal dos “olhos de guaxinim” b) Hematoma subdural
É mais comum, presente em 30% dos TCEs. Ocorre pela
ruptura do plexo venoso meníngeo, entre o córtex cerebral
B - Lesões intracranianas focais e o seio venoso. São comuns em pacientes com quedas re-
petidas, principalmente etilistas e idosos. A TC de crânio
apresenta lesão com forma côncava, reveste e comprime os
giros e sulcos, e causa desvio ventricular e da linha média
(Figura 5C).
O prognóstico é pior que o do hematoma extradural,
pela presença de lesão parenquimatosa grave mais comu-
mente associada. Assim, o tratamento cirúrgico, quando
indicado, deve ser feito rapidamente.
c) Contusões e hematomas intracerebrais
São as lesões focais mais comuns e frequentemente
associadas ao hematoma subdural. Localizam-se, prefe-

32
TRAUMA CRANIOENCEFÁLICO

rencialmente, nos lados frontal e temporal. As contusões cidade, posturas de descerebração, decorticação, flacidez
podem expandir e coalescer, formando um hematoma in- ou midríase fixa, lesões cruzando a linha média e transce-
tracerebral. rebrais e/ou transventriculares. Pacientes com ferimentos
penetrantes e Glasgow de 3 a 4, na maioria das vezes, não

CIRURGIA DO TRAUMA
C - Lesões intracranianas difusas são considerados cirúrgicos.
São mais comuns que as lesões focais, e o mecanismo de
trauma relacionado é a aceleração/desaceleração (Figura 5D). 7. Tratamento clínico
a) Concussão leve Devem ser adotadas medidas que visem prevenir lesão
O doente apresenta consciência preservada, porém com secundária em um cérebro já lesado. Devem-se evitar a de-
sidratação e a sobrecarga hídrica, além de manter o doente
disfunção neurológica temporária, e pode muitas vezes pas-
normovolêmico e euglicêmico, e recomenda-se o uso de so-
sar despercebido. Nos quadros mais leves, a vítima apre-
lução salina isotônica ou de Ringer lactato. A hiponatremia
senta confusão e desorientação, sem amnésia. O quadro
causa edema cerebral e deve ser evitada ou tratada agressi-
é totalmente reversível e não deixa sequela. Nos quadros
vamente quando presente.
mais graves, há amnésia retrógrada e anterógrada (antes e
Atualmente, alguns autores defendem o uso de solu-
depois do trauma).
ções salinas hipertônicas nos politraumatizados com TCE,
b) Concussão cerebral clássica pela demonstração de melhora no prognóstico, em compa-
Causa perda da consciência, transitória e reversível. O ração ao uso de soluções isotônicas. Essa conduta, entre-
grau de amnésia está relacionado à magnitude da lesão. Os tanto, ainda não é a recomendação-padrão e está restrita a
déficits podem estar ausentes ou permanecer como perda protocolos de estudo. O ATLS® preconiza o uso de soluções
da memória, tontura, náuseas, anemia ou depressão (sín- salinas isotônicas ou de Ringer lactato.
drome pós-concussão). A hiperventilação deve ser usada com moderação, man-
tendo a pCO2 ao redor de 30mmHg e por um período limita-
c) Lesão axonal difusa do. Deve-se evitar pCO2 <25mmHg. Sua diminuição resulta
Trata-se de coma pós-traumático prolongado sem lesão em vasoconstrição cerebral, que leva à redução do volume
de massa ou lesões isquêmicas. A vítima pode apresentar intracraniano. Inicialmente, ajuda a reduzir a pressão intra-
decorticação ou descerebração e disfunções autonômicas cerebral, porém, se prolongada ou agressiva, pode levar à
(hipertensão, hiper-hidrose, hiperpirose), além de sequelas isquemia cerebral.
neurológicas tardias. Muitas vezes, a TC de crânio é normal. O manitol é um diurético osmolar utilizado para a re-
Portanto, pacientes com TCE grave e TC de crânio normal dução da PIC e deve ser evitado em doentes hipotensos,
podem ter lesão axonal difusa. pois agrava a hipovolemia. As indicações mais precisas são
O mecanismo do trauma é uma força de cisalhamento doentes comatosos que apresentavam pupilas normais e
consequente à aceleração rotacional da cabeça. Em estudos evoluem com dilatação pupilar com ou sem hemiparesia,
anatomopatológicos, as anormalidades fundamentais en- ou doentes com ambas as pupilas dilatadas e não reativas e
contradas são lesão focal do corpo caloso, lesão da porção que não estão hipotensos. A furosemida pode ser utilizada
rostral do tronco encefálico e alterações morfológicas dos junto com manitol quando a PIC está elevada, após consulta
axônios sob a forma de esferoides de retração. com neurocirurgião.
Esteroides não são recomendados no tratamento agudo
D - Ferimento penetrante de crânio do TCE. Barbitúricos são eficientes na redução da PIC re-
fratária a outras medidas, mas não devem ser usados na
São, normalmente, lesões graves, que necessitam do presença de hipotensão ou hipovolemia. Quanto aos anti-
mesmo tratamento inicial de qualquer outro trauma. Essas convulsivantes, pode-se utilizar a fenitoína na 1ª semana
lesões em pacientes suicidas têm características próprias pós-trauma, como profilaxia de convulsões. A epilepsia pós-
que as tornam mais graves, pela pouca distância e pelo tra- -traumática ocorre em 5% dos doentes admitidos com TCE
jeto provável com alta incidência de lesão vascular (artéria e em 15% dos doentes com TCE grave.
cerebral média e seus ramos – Figura 5E).
A maioria desses pacientes requer tratamento cirúrgico,
pois mesmo os que estão sem déficits motores e de consci- 8. Tratamento cirúrgico
ência quando não são operados podem apresentar compli- Está indicado nas lesões de couro cabeludo (debri-
cações tardias, como meningite e/ou abscesso cerebral. Os damento, hemostasia e sutura da lesão), fraturas com afun-
objetivos do tratamento cirúrgico são a retirada das lesões damento de crânio (devem ser reduzidas, se profundas) e
expansivas, a prevenção de infecção, a hemostasia e o re- lesões intracranianas de massa (devem ser tratadas pelo
paro dural. neurocirurgião). Em geral, realiza-se a preparação do lado
Alguns fatores estão associados a um pior prognóstico, em que a pupila está dilatada. A trepanação de emergência
como ECG menor que 5, lesões por projéteis de alta velo- só deve ser realizada por médico treinado com a anuência e

33
CI RUR G I A D O TRAU M A

a orientação de um neurocirurgião. Na necessidade de ava-


liação neurocirúrgica, a transferência não deve ser poster-
gada em detrimento da realização de exames diagnósticos.

9. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao doente com TCE segue a padronização do
ATLS®. A coluna cervical deve permanecer imobilizada até a
exclusão de lesão. Doentes inconscientes têm indicação de via
aérea definitiva (tubo na traqueia com balão insuflado);
- Durante o exame primário, avalia-se o nível de consciência (pela
escala de coma de Glasgow) e pupilas. Se, nesse momento, for
necessária a avaliação de neurocirurgião, o paciente deverá ser
transferido precocemente;
- Mesmo traumas leves necessitam de observação neurológica,
quando não é possível realizar a tomografia de crânio.

34
CAPÍTULO

7
Trauma raquimedular
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais cia de taquicardia reflexa. A pressão arterial não se normali-


za com a reposição volêmica, e o tratamento deve consistir
- Imobilização cervical; no uso de medicamentos vasopressores.
- Interpretação da radiografia de coluna cervical; Já no choque medular, há flacidez e perda aguda dos
- Choque medular versus choque neurogênico. reflexos após lesão medular de duração variável. Há perda
da função medular total abaixo da lesão. Com o passar do
1. Introdução tempo, há também retorno dos reflexos e evolução para
hiper-reflexia por perda da inibição cranial. Durante o perí-
A coluna cervical é o sítio mais frequente de lesões trau- odo de choque medular, não é possível avaliar o dano real.
máticas na coluna vertebral (55% dos casos). As regiões to- O diagnóstico do choque medular pode ser feito pela perda
rácicas, transição toracolombar e lombossacra são respon- do reflexo bulbocavernoso.
sáveis, em média, por 15% das lesões. Aproximadamente, A avaliação de déficits no exame primário baseia-se em
25% dos doentes com traumatismo da coluna apresentam sinais localizatórios evidentes, o que nem sempre pode ser
traumatismo cranioencefálico (TCE) associado, e cerca de avaliado no doente inconsciente. O diagnóstico de TRM deve
5% das vítimas com TCE apresentam trauma raquimedular ser realizado e mais bem caracterizado no exame secundário.
(TRM).
Todo politraumatizado deve ser tratado como portador - Diagnóstico
de lesão raquimedular até que se prove o contrário. A ma-
nipulação deve ser mínima e cuidadosa, e a imobilização, No doente acordado e alerta, sem alterações neurológi-
adequada. Até 5% dos pacientes vítimas de TRM pioram no cas, a ausência de dor e de hipersensibilidade ao longo da
serviço de saúde. A proteção adequada da coluna desde o coluna vertebral praticamente exclui a presença de lesões
atendimento pré-hospitalar permite o diagnóstico e o trata- significativas da coluna, mas não a necessidade da radiogra-
mento de lesões com risco imediato à vida durante o exame fia de coluna cervical em todo paciente politraumatizado ou
primário, deixando a avaliação pormenorizada e a exclusão com trauma localizado acima da clavícula.
de traumatismos à coluna para o exame secundário. Quanto aos doentes com alteração do nível de consci-
ência, a exclusão de lesão na coluna vertebral requer avalia-
ção radiológica, e eles devem ser mantidos adequadamente
2. Avaliação inicial imobilizados até a realização dos exames.
Os doentes com TRM devem ser avaliados conforme a As lesões medulares podem ser divididas de acordo com
padronização do ATLS®. A proteção da coluna cervical está o comportamento sensitivo-motor. Na lesão completa da
associada com a obtenção de uma via aérea permeável medula espinhal, está ausente qualquer função motora ou
durante o exame primário, sendo, portanto, prioridade no sensitiva abaixo de um determinado nível. Tal diagnóstico
atendimento. Na avaliação hemodinâmica, é importante di- não pode ser concluído até que a fase de choque medular
ferenciar o choque hipovolêmico dos choques neurogênico não esteja resolvida.
e medular. Já na lesão incompleta da medula espinhal, permanece
O choque neurogênico é uma condição hemodinâmica certo grau de função sensitiva ou motora. O prognóstico,
que acontece por lesão das vias descendentes do sistema nesse caso, melhora significativamente. A preservação da
simpático da medula espinhal, causando perda do tono va- sensibilidade da região perianal pode ser a única evidência
somotor e da inervação simpática do coração. Há vasodila- de função residual, que ocorre por alguma percepção sen-
tação visceral e dos membros inferiores com consequente sorial na região perianal e/ou pela contração voluntária do
hipotensão e diminuição da frequência cardíaca ou ausên- esfíncter anal externo.

35
CI RUR G I A D O TRAU M A

O nível neurológico é definido como o ponto mais cau- grupos musculares apresentam uma única raiz nervosa
dal com preservação bilateral sensitivo-motora. As lesões espinhal. Os músculos-chave devem ser testados bilateral-
acima de T1 geralmente causam tetraplegia e, as abaixo, mente e avaliados em relação à força muscular. O esfíncter
paraplegia. O nível ósseo pode ser diferente do neurológi- externo do ânus é testado durante o toque retal.
co. Este pode ser dividido em níveis sensitivo e motor, dis- A documentação da força muscular permite avaliar a
cutidos a seguir. melhora ou a piora da função neurológica em exames se-
quenciais. Deve ser quantificada em uma escala de força
a) Nível sensorial que vai de 0 a 5, pois podem ocorrer déficits parciais (Tabela
É definido como o dermátomo mais baixo com funções 3). Grupos musculares, com respectivas raízes nervosas, a
sensitivas normais. Dermátomo é uma área de pele inerva- serem pesquisados nos exames sequenciais são apresenta-
da por uma raiz nervosa segmentar (Figura 1). Os pontos- dos a seguir.
-chave, em termos de sensibilidade, são:
Tabela 2 - Grupos musculares pesquisados nos exames sequenciais
Tabela 1 - Pontos-chave em termos de sensibilidade C5 Deltoide extensores.
C5 Área sobre o deltoide. C6 Extensores de punho.
C6 Dedo polegar.
C7 Extensor do cotovelo
C7 Dedo médio.
C8 Flexores dos dedos até o dedo médio.
C8 Dedo mínimo.
T1 Adutores do dedo mínimo.
T4 Mamilo.
L2 Flexores do quadril.
T6 Xifoide.
T10 Umbigo. L3 Extensores do joelho.
T12 Sínfise púbica. L4 Flexores dorsais do tornozelo.
L4 Face medial da coxa. L5 Extensores longos do hálux.
L5 Espaço entre o 1º e o 2º pododáctilos. S1 Flexores plantares do tornozelo.
S1 Borda lateral do pé.
Tabela 3 - Graduação da sensibilidade muscular
S3 Área da tuberosidade isquiática.
Escore Achados ao exame
S4 e S5 Região perianal.
0 Paralisia total.
1 Contração visível de palpação.
Movimentação total, desde que eliminada a força da
2
gravidade.
3 Movimentação total contra a força da gravidade.
4 Movimentação total, mas com a força muscular diminuída.
5 Força normal.

3. Avaliação radiológica
O único exame radiológico que pode ser solicitado como
complemento à avaliação primária é o raio x de perfil da
coluna cervical. Demais exames devem ser solicitados em
doentes estáveis hemodinamicamente, conforme o nível
em que se suspeita de lesão.
O raio x simples cervical em incidência lateral ou em
perfil deve mostrar a base do crânio, as 7 vértebras cervi-
cais e a transição com a 1ª vértebra torácica (Figura 2A).
Sua sensibilidade é de 85% para a detecção de fraturas.
Quando não é possível a visualização das últimas vértebras
Figura 1 - Inervação cutânea dividida por dermátomos
cervicais ou da transição toracolombar, podem-se tracionar
os membros superiores para baixo ou colocar o paciente na
b) Nível motor chamada “posição do nadador”, com extensão anterior de
Os músculos são inervados por mais de 1 raiz nervosa, um e posterior do outro membro superior, para a retirada
e cada uma inerva mais de 1 músculo. Entretanto, certos dos ombros do campo radiológico.

36
TRAUMA RAQUIMEDULAR

A Ressonância Nuclear Magnética (RNM) pode oferecer


mais detalhes, principalmente na avaliação de partes mo-
les. Entretanto, como o exame pode ser demorado, é pouco
utilizada nas fases iniciais.

CIRURGIA DO TRAUMA
4. Conduta terapêutica

A - Imobilização
A imobilização manual deve ser instituída imediatamen-
te, não sendo retardas as medidas terapêuticas do atendi-
mento inicial para a colocação de dispositivos apropriados.
A imobilização adequada em doentes com fratura de coluna
cervical inclui colar cervical semirrígido, prancha longa, es-
paradrapo e atadura. Deve-se manter a imobilização até a
exclusão da presença de fraturas (Figura 3).

C
Figura 2 - Radiografias normais de coluna cervical: (A) perfil, (B)
anteroposterior e (C) transoral

O raio x anteroposterior é aquele que melhor identifica


luxações unilaterais das juntas articuladas (Figura 2B). A in-
cidência transoral é utilizada quando há suspeita de lesão
de C1 ou C2 no doente com queixa de dor cervical alta, uma
vez que consegue avaliar adequadamente o processo odon-
toide (Figura 2C). Sua limitação são os pacientes com intu-
bação orotraqueal, em que a tomografia computadorizada
é a melhor opção.
Sempre que houver suspeita clínica de traumatismo da
coluna cervical, a radiografia deverá ser realizada nas 3 inci-
dências citadas, aumentando a sensibilidade para diagnós-
tico de fratura até 92%. Qualquer suspeita de anormalida- Figura 3 - Triagem do paciente com suspeita de traumatismo ra-
de na radiografia simples indica a realização de Tomografia quimedular
Computadorizada (TC).
A TC da coluna vertebral é o exame de escolha para a Os doentes deverão ser removidos da prancha rígida tão
confirmação de lesões vertebrais. Deve-se solicitar a tomo- logo seja possível, devido ao risco de formação de úlceras
grafia da vértebra em questão e de pelo menos uma acima de decúbito que pode iniciar-se após 2 horas, quando com
e outra abaixo do local suspeito. Sempre que o paciente es- déficit sensitivo. Se houver dúvida da presença de lesão
tiver sintomático e a radiografia estiver normal, a TC será após o raio x, o colar deverá ser mantido até a realização
indicada. A ressonância magnética é utilizada como um da tomografia. Toda mobilização deve ser feita pela técni-
exame complementar à tomografia, não sendo solicitada ca de rolamento em bloco, preferencialmente com 3 ou 4
no início da avaliação. pessoas.
Há autores que indicam a tomografia da coluna cervical a Garantir um suporte ventilatório e hemodinâmico é es-
todos os pacientes em coma, já que até 2,5% daqueles com sencial para que não ocorra piora do quadro por compli-
instabilidade cervical podem ter radiografias normais. Além cações sistêmicas. A tração cervical, assim como o uso de
disso, 10% dos doentes com fratura cervical apresentam uma imobilizadores especiais tipo SOMI (Sternal Occipital Man-
2ª fratura de coluna vertebral não contígua e vice-versa, de dibular Imobilization) ou halo craniano, só deve ser coloca-
modo que a pacientes com fratura cervical ou em coma se da após a avaliação por equipe de ortopedia especializada
indica a avaliação radiológica de toda a coluna vertebral. em coluna.

37
CI RUR G I A D O TRAU M A

B - Corticosteroides B - Síndrome anterior da medula


Até a 7ª edição, o ATLS® preconizava a utilização de Manifesta-se por paraplegia e dissociação da perda
metilprednisolona em casos de TRM não penetrante nas sensorial (perda de sensibilidade à dor e à temperatura, e
primeiras 8 horas após o trauma, sendo a dose adminis- preservação da sensibilidade proprioceptiva à vibração e à
trada de 30mg/kg nos primeiros 15 minutos, seguida de pressão), é secundária ao infarto da medula no território
5,4mg/kg/h nas outras 23h. Entretanto, na edição atual, da artéria vertebral anterior e é a lesão incompleta de pior
observa-se que não há evidência em literatura que suporte prognóstico. Os principais mecanismos associados são a
o uso de corticoides nessas situações. compressão e/ou a flexão do canal medular.
Além disso, a administração de altas doses de corticoi- C - Síndrome de Brown-Séquard
des aos traumatizados pode levar a efeitos indesejáveis na
evolução do paciente. Dentre os efeitos colaterais observa- Trata-se de uma situação rara, que acontece por hemis-
dos com a utilização de corticoide nesses casos, pode haver secções da medula. Observam-se comprometimento motor
elevação na incidência de complicações infecciosas e respi- ipsilateral à lesão, perda da sensibilidade postural e perda
ratórias, maior incidência de TVP, TEP, hemorragia digestiva da sensibilidade contralateral. Costuma ocorrer ainda al-
e pancreatite, piora na evolução de TCE associado e possibi- gum grau de recuperação, sendo bom prognóstico.
lidade de “mascarar” sintomas de traumatismo de vísceras
abdominais ocas. D - Síndrome do cone medular
Caracteriza-se pela compressão mecânica externa da me-
C - Transferência
dula espinal, cujas manifestações clínicas variam de acordo
Na suspeita de lesão, deve-se consultar, assim que pos- com o local anatômico da lesão e podem incluir dor locali-
sível, um neurocirurgião ou um ortopedista. Se necessário, zada, fraqueza, perda sensorial, incontinência e impotência.
deve-se transferir o doente para uma instituição com recur- Além das fraturas de coluna vertebral, pode ser consequente
sos para proporcionar-lhe um tratamento definitivo. a neoplasias extramedulares, abscesso epidural, deformida-
des ósseas dos corpos vertebrais e outras condições.
D - Tratamento cirúrgico
As 2 indicações clássicas para o tratamento de emer- E - Síndrome da cauda equina
gência das fraturas de coluna vertebral são a progressão
A síndrome da cauda equina pode ser definida como a
do déficit neurológico e a presença de luxação com déficit
perda parcial ou total da função urinária, intestinal e sexual
neurológico parcial, situações em que o paciente deve ser
devido à compressão da cauda equina na região lombar. A
transferido para serviço que tenha um ortopedista e/ou um
lesão produzida é do tipo neurônio motor inferior ou para-
neurocirurgião.
lisia flácida. Neste tipo de lesão não há a condução do estí-
mulo de forma completa até a medula espinhal e os refle-
5. Síndromes medulares xos, e o tônus muscular permanece diminuído ou ausente
(flácido). A lesão, na maioria dos casos, é de forma incom-
A - Síndrome central da medula pleta, tem preservação parcial da sensibilidade e da função
Mais comum em idosos submetidos a mecanismo de motora, não ocorrem hipertonia muscular e hiper-reflexia
hiperextensão, ocorre por comprometimento vascular da porque os motoneurônios superiores estão intactos.
medula, na área irrigada pela artéria vertebral anterior. A etiologia mais comum nos casos agudos é a hérnia dis-
cal. A etiologia traumática é rara nessa síndrome.
Tabela 4 - Padrões característicos de lesão neurológica
- Desproporção da perda de força motora nos membros superio- 6. Lesões específicas
res e nos membros inferiores (perda MMSS >MMII);
- Perda sensorial variável;
A - Coluna cervical
- Lesão por hiperextensão em doentes com estenose preexisten-
te do canal medular cervical; A luxação atlantoccipital é rara e acontece por flexão
- Recuperação sequencial = 1º MMII, 2ª função vesical, 3º MMSS, associada à tração. A maioria dos doentes com essa le-
4ª mão; são morre antes do atendimento inicial. É frequente a as-
- Prognóstico melhor que das lesões incompletas. sociação dessa fratura com a síndrome do bebê sacudido
(shaking baby – Figura 4A). A fratura do Atlas (C1) pode
Todo esse quadro se deve à disposição anatômica das estar presente em até 5% das fraturas da coluna cervical,
fibras do trato corticoespinhal, já que as fibras nervosas res- e 40% dos casos estão associados à fratura de C2. É mais
ponsáveis pelas funções dos membros superiores estão lo- frequente por explosão (fratura de Jefferson – Figura 4B) e
calizadas na região central, enquanto as responsáveis pelos sobrecarga axial, e tem o diagnóstico confirmado pelo raio
membros inferiores estão situadas perifericamente. x transoral ou TC.

38
TRAUMA RAQUIMEDULAR

CIRURGIA DO TRAUMA
Figura 4 - (A) Deslocação atlanto-occipital: radiografia lateral
mostra um hematoma enorme pré-vertebral (setas) com deslo-
camento anterior do côndilo occipital (seta); (B) fratura do Atlas Figura 5 - (A) Classificação esquemática das fraturas de odontoide:
(fratura de Jefferson) tipo I – processo odontoide propriamente dito, tipo II – base do
processo odontoide e tipo III – com acometimento do corpo verte-
As fraturas do áxis (C2) correspondem a 18% das fratu- bral de C2; (B), (C) e (D) fraturas de processo odontoide visualiza-
ras da coluna cervical, e cerca de 60% são fraturas do odon- das na tomografia computadorizada
toide (Figura 4). São 3 os tipos de fratura do odontoide (Fi-
gura 5), sendo o tipo II (base do odontoide) a mais comum.
B - Coluna torácica
A chamada fratura do enforcado compromete o processo
espinhoso e os elementos posteriores do C2 e acontece por Entre T1 e T10, há 4 tipos de lesão, sendo a maioria fra-
lesão em extensão. turas estáveis:
As demais fraturas (20%) afetam o corpo, o pedículo, as - Lesões em cunha por compressão anterior;
massas laterais, as lâminas e o processo espinhoso. Podem - Lesões por explosão do corpo vertebral;
ocorrer fraturas e luxações de C3 a C7. O local mais fre- - Fraturas de Chance (fraturas transversas do corpo ver-
quente de fratura da coluna cervical é C5, e o local mais co- tebral);
mum de subluxação está entre C5 e C6. Nas crianças, pode - Fraturas-luxações.
ocorrer a pseudoluxação de C3-C4, que normalmente é um
achado incidental no exame radiológico, sem repercussões As fraturas da junção toracolombar de T11 a L1 ocorrem
clínicas. por hiperflexão e rotações agudas; costumam ser instáveis

39
CI RUR G I A D O TRAU M A

e normalmente estão associadas à queda de altura e ao uso


de cinto de segurança.

C - Coluna lombar
Estão associadas a um menor risco de déficit neurológi-
co completo.
A fratura de Chance deve ser investigada em traumas
com mecanismo de desaceleração e implica a investiga-
ção de lesões associadas, principalmente de duodeno e
pâncreas.

7. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao doente com TRM segue a padronização do
ATLS®, com imobilização adequada de coluna cervical até a
exclusão de lesão;
- O choque neurogênico ocorre por lesão das vias descendentes
do sistema simpático da medula espinhal, causando perda do
tônus vasomotor e perda da inervação simpática do coração;
- No choque medular, há flacidez e perda aguda dos reflexos
após lesão medular de duração variável;
- Não há evidências quanto ao uso de corticosteroides na fase
aguda do TRM fechado.

40
CAPÍTULO

8
Trauma musculoesquelético
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais sintomas neurológicos, associados a esse tipo de fratura,


merecem atenção especial pela possibilidade de apresen-
- Avaliação inicial; tarem tal complicação. A presença de rash cutâneo e peté-
- Fraturas expostas; quias auxiliam o diagnóstico.
- Lesões com risco imediato à vida. Passada essa fase inicial, o exame detalhado da extre-
midade pode ser realizado com calma durante a avaliação
1. Introdução secundária. Se o paciente estiver consciente, será possível
avaliar a presença de dor e impotência funcional. Se, nessa
O traumatismo exclusivo sobre o sistema muscu- fase, for concluído que o paciente necessitará de tratamen-
loesquelético dificilmente determina risco à vida do pacien- to ortopédico e que não há disponibilidade no serviço, ele
te. Nas vítimas de trauma fechado, 85% apresentam lesões deverá ser transferido para o centro onde receberá trata-
desse sistema. O médico deve reconhecê-las para proteger mento definitivo.
o doente de futuras incapacidades ou complicações, pois, As fraturas são definidas como perda da continuidade
embora essas lesões dificilmente levem o paciente a óbito, óssea. As luxações ocorrem quando há perda da congru-
podem causar sequelas definitivas. ência articular, passível de redução. O diagnóstico dessas
As fraturas e lesões de partes moles podem não ser lesões é baseado em sintomas e sinais. À inspeção estáti-
identificadas no início do atendimento ao politraumatizado, ca, já se podem avaliar sinais como aumento do volume do
sendo mascaradas por lesões mais importantes ou eviden- membro, equimose, desvio do eixo, rotação anormal ou en-
tes, o que não necessariamente compromete o atendimen- curtamento do membro, além da presença de escoriações,
to. São importantes as reavaliações frequentes para que lacerações e sangramentos.
todas as lesões sejam diagnosticadas. Com a inspeção dinâmica, avaliam-se a movimentação
As fraturas pélvicas e de fêmur podem causar sangra- dos membros e a presença de crepitações ósseas. Esse exa-
mentos importantes, inclusive com repercussão hemodi- me deve ser feito delicadamente, evitando o incremento
nâmica. Além disso, tais lesões indicam que o trauma en- nas lesões já existentes. É importante realizar a palpação
volveu forças significativas, sendo frequentes outras lesões do pulso arterial distal à fratura, a verificação da perfusão
associadas. sanguínea tecidual e um exame neurológico sumário.
As radiografias deverão ser realizadas se o doente esti-
2. Avaliação inicial ver em condições hemodinâmicas normais após o exame
secundário e a reavaliação. Todos os membros com sus-
A avaliação inicial segue a padronização do ATLS®, sen- peita de lesão devem ser radiografados em 2 incidências,
do prioridade a via aérea com controle da coluna cervical. geralmente a anteroposterior e a lateral (ou perfil), sempre
Na avaliação da circulação, é necessária a contenção de uma articulação acima e outra abaixo da área com suspeita
qualquer hemorragia de vulto. Nas lesões de extremidades de fratura.
com hemorragia importante, a 1ª medida a ser adotada é a
compressão local. Algumas fraturas podem levar a perdas
sanguíneas importantes (fêmur e úmero), que podem ser
3. Princípios de tratamento
diminuídas com redução e imobilização adequadas. As lesões osteomusculares devem ser sempre imobili-
Fraturas de ossos longos, como fêmur e tíbia, podem zadas antes de o doente ser transportado. No atendimento
cursar com embolia gordurosa. Pacientes com hipóxia e/ou inicial, a imobilização é realizada durante o exame secun-

41
CI RUR G I A D O TRAU M A

dário. Após as imobilizações, é importante avaliar o esta-


do neurovascular do membro por meio de sensibilidade e
perfusão.
A imobilização deve incluir as articulações abaixo e aci-
ma da fratura. Nas suspeitas de lesões instáveis de coluna,
uma prancha longa permite a imobilização total do corpo
da vítima. Tão logo seja possível, o doente deve ser remo-
vido da prancha para uma superfície acolchoada, que lhe
ofereça suporte semelhante, devido ao risco de desenvol-
ver úlceras de decúbito.
As lesões mais graves são as fraturas expostas, classifi-
cadas segundo a proposta de Gustilo e Anderson (Tabela 1).
O tratamento cirúrgico dessas lesões deve ser realizado da
forma mais precoce possível. A complicação mais frequente
das fraturas expostas é a infecção, e na ferida contaminada
(ferida que teve contato com terra, asfalto etc., ou que teve
tempo de lesão superior há 6 horas) seu risco é permanen-
te. Não há motivo para aguardar o término de outros proce-
dimentos cirúrgicos para iniciar a limpeza, o debridamento
e a estabilização das fraturas. Um curativo e a imobilização Figura 1 - Fixação externa de fratura de fêmur e tíbia
são realizados na sala de emergência antes da realização do
exame radiológico e devem ser mantidos até a intervenção
4. Lesões de extremidades que implicam
cirúrgica.
risco de óbito
Tabela 1 - Classificação de Gustilo e Anderson modificada
Tipo I Fratura exposta, limpa, exposição <1cm. A - Fratura de bacia
Fratura exposta >1cm de extensão, sem dano excessivo
Tipo II Ocorre em menos de 5% dos traumas contusos, com
das partes moles, retalhos ou avulsões.
mortalidade entre 15 e 25%. Os mecanismos de trauma
Fratura segmentar, com dano excessivo de partes
Tipo III mais frequentemente envolvidos são os acidentes auto-
moles ou amputação traumática.
mobilísticos, as quedas de altura e os atropelamentos. De-
Dano extenso das partes moles, lacerações, fraturas
vido à grande energia envolvida nessas lesões, há uma alta
Tipo IIIA segmentares e ferimentos por arma de fogo (baixa
incidência de lesões associadas abdominais e pélvicas, to-
velocidade) com boa cobertura óssea de partes moles.
rácicas e cranioencefálicas. A mortalidade geralmente se
Tipo IIIB Cobertura inadequada de partes moles ao osso.
deve às lesões associadas, de modo que apenas 15% dos
Tipo IIIC Com lesão arterial importante, requerendo reparo. óbitos decorram exclusivamente da fratura de bacia. É im-
portante ressaltar que a fratura isolada de bacia pode ser
A avaliação deve, sempre que possível, ser multidiscipli-
responsável por hemorragia vultosa, não necessariamente
nar e contar com os profissionais de Cirurgia Geral e Cirur-
exteriorizada, pois pode haver somente hematoma retro-
gia Vascular e o ortopedista, também deve ser realizada a
peritoneal.
hemostasia adequada dos vasos sangrantes. Estruturas no-
Suspeita-se do diagnóstico na presença de dados clíni-
bres como tendões, vasos maiores e nervos não suportam cos como dor pélvica, discrepância de comprimento dos
a exposição ao ambiente e devem ser cobertos por síntese membros inferiores ou rotação externa de um membro, e
primária quando possível, ou por meio da rotação de reta- instabilidade em manobras de compressão da bacia (que
lhos cutâneos ou miocutâneos. deve ser realizada apenas 1 vez). O exame do períneo tam-
As fraturas isoladas ou múltiplas devem ser estabiliza- bém pode fornecer dados como lesão do reto, espículas
das (Figura 1), e são utilizados fixadores externos para a ósseas ao toque retal ou próstata elevada, além de san-
estabilização na emergência. Esses procedimentos são de gramento uretral. A radiografia da bacia anteroposterior e
baixa morbidade. A antibioticoterapia intravenosa deve perfil geralmente confirma o diagnóstico (Figura 2), sendo
ser instituída precocemente, assim como a profilaxia do reservada a tomografia para pacientes estáveis com dúvida
tétano. diagnóstica.

42
T R A U M A M U S C U LO E S Q U E L É T I C O

O tratamento dos traumas pélvicos é um desafio para


cirurgiões e ortopedistas (Figura 5). A medida inicial na rup-
tura pélvica grave, acompanhada de hemorragia, exige o

CIRURGIA DO TRAUMA
controle do sangramento e a reanimação com soluções sali-
nas. O controle da hemorragia é obtido com a estabilização
mecânica do anel pélvico. As técnicas de redução na rea-
nimação variam desde tração esquelética com dispositivo
aplicado sobre a pele (alça em C ou até mesmo contenção
com lençol) até o dispositivo pneumático antichoque (PASG
– Figura 4A e B).

Figura 2 - Fratura de bacia: observar raio x em incidência antero-


posterior com disjunção da sínfise púbica

Pacientes com fratura de bacia podem apresentar dor


abdominal ao exame físico. O Lavado Peritoneal Diagnós-
tico (LPD) e o ultrassom na sala de emergência (FAST) são
recursos importantes ao doente instável hemodinamica-
mente, pois podem diferenciar aqueles com sangramento
retroperitoneal. Nos doentes estáveis, deve ser realizada a
tomografia computadorizada (Figura 3).
As fraturas de bacia podem ser classificadas em diversas
categorias. Pela estabilidade, diz-se que a fratura é estável
quando há integridade das estruturas ósseas e ligamentos;
ou instável, na lesão rotacional ou vertical. O eixo de fratura
pode ser anteroposterior, com disjunção da sínfise púbica
e com ou sem ruptura posterior; ou lateral com rotação in-
terna da hemipelve e possibilidade de lesão de bexiga e/
ou uretra (Figura 3). Quando ocorre cisalhamento vertical,
a lesão normalmente apresenta maior instabilidade, com
possibilidade de ruptura posterior.

A Figura 4 - (A) e (B) Colocação do PASG e (C) fixador externo

A redução da fratura diminui o volume pélvico e tam-


pona os vasos sangrantes (Figura 4C). Nos casos em que a
redução não é suficiente para conter o sangramento, ou
diante do achado de hematoma de retroperitônio na pel-
ve (zona III), há indicação de arteriografia com o objetivo
de embolizar os vasos sangrantes. A exploração cirúrgica
desses hematomas costuma ser desastrosa, uma vez que
a principal causa de hemorragia é o sangramento do plexo
venoso. O sucesso da embolização varia entre 80 e 90%.
Nas fraturas pélvicas abertas, além dos cuidados cita-
Figura 3 - Fraturas de bacia: (A) lesão anteroposterior de bacia; (B) dos, é necessário reconhecer e tratar lesões associadas,
correspondente radiográfico e (C) lesão com compressão lateral especialmente dos tratos geniturinário e intestinal. Entre

43
CI RUR G I A D O TRAU M A

as opções cirúrgicas, é possível realizar desde o reparo das hemoglobina, ausente na urina). Outros dados laboratoriais
lesões até derivações como colostomia e cistostomia. O fe- são a hipocalcemia e a hipercalemia. O potássio deve ser
rimento deverá ser irrigado e desbridado nos dias consecu- controlado pelo risco de arritmias. O tratamento também
tivos, conforme a necessidade. envolve administração vigorosa de solução salina intrave-
nosa e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio nos
casos em que não há resposta com a hidratação.

D - Amputação traumática
O músculo não tolera interrupção do fluxo sanguíneo ar-
terial por um período superior a 6 horas. Nos casos de am-
putação traumática, deve ser considerada a possibilidade
de reimplante. No entanto, se o doente apresentar lesões
múltiplas, que necessitem de reanimação intensiva e inter-
venção cirúrgica de urgência, ele não será um candidato ao
reimplante. Em geral, este é indicado em lesão isolada de
extremidade, abaixo do joelho ou do cotovelo (Figura 6).
A parte amputada deve ser lavada com solução hipotô-
nica e envolta em gaze umedecida e toalha estéril. É, então,
colocada em um saco plástico e transportada, com o doen-
te, em uma caixa de isopor com gelo.

Figura 5 - Conduta no trauma pélvico

B - Hemorragia arterial grave


Os ferimentos penetrantes e os traumas fechados, com
fraturas ou luxações articulares, podem resultar em lesões
vasculares de grandes artérias. Essas lesões podem causar
hemorragia significativa por meio de ferimento aberto ou
lesão de partes moles.
São elementos diagnósticos a presença de sangramento
externo, ausência de pulsos distais à lesão com extremida-
de fria e pálida e hematomas em expansão. A realização de
exames diagnósticos, como a arteriografia, deverá ocorrer Figura 6 - Amputação traumática
após a reanimação do doente, em caso de estabilidade he-
modinâmica. E - Síndrome compartimental
No tratamento inicial da vítima com hemorragia arterial
Ocorre quando o músculo está contido dentro de um
grave devem ser realizadas a compressão direta do ferimen-
espaço fechado delimitado pela fáscia e, em algumas cir-
to e a reposição volêmica com cristaloides. O uso de pinças
cunstâncias, pela pele. As regiões onde a síndrome compar-
hemostáticas na sala de emergência não é recomendado, a
timental é mais frequente são panturrilha, antebraço, pé,
menos que o vaso responsável pelo sangramento seja su-
mão, região glútea e coxa. Essa síndrome acontece quando
perficial e visível. O torniquete pneumático pode ser útil,
a pressão no compartimento ósseo-facial do músculo au-
porém de forma criteriosa e em ambiente intra-hospitalar.
menta a ponto de impedir o retorno venoso, produzindo
isquemia e necrose. O 1º sintoma é a dor.
C - Rabdomiólise por esmagamento
Outros sinais que podem aparecer mais tardiamente
A síndrome de esmagamento acontece em vítimas com são parestesia, diminuição da sensibilidade ou perda de
lesão muscular grave, com período prolongado de com- função do membro envolvido, edema tenso da região com-
pressão. Nesses pacientes, observa-se a liberação de pro- prometida, déficit motor ou paralisia dos músculos envol-
dutos nocivos na circulação após a reperfusão do comparti- vidos (sinais tardios) até o desaparecimento dos pulsos do
mento. O principal produto tóxico liberado é a mioglobina, membro. O estágio final dessa lesão é denominado contra-
e a principal consequência é a insuficiência renal aguda por tura isquêmica de Volkmann.
necrose tubular aguda. O médico deve pensar na possibilidade de síndrome
Nessas situações, é comum o achado de urina escura, compartimental em situações de risco como fraturas de
que denota a mioglobinúria (confirmada por dosagem de tíbia e antebraço, lesões imobilizadas com curativos ou

44
T R A U M A M U S C U LO E S Q U E L É T I C O

aparelhos gessados apertados, lesões com esmagamento Lesões associadas com


importante de músculo, compressão externa prolongada Lesão musculoesquelética
maior frequência
sobre uma extremidade, aumento da permeabilidade ca- Fratura de clavícula, escápula ou - Lesão torácica grave,
pilar por reperfusão de grupos musculares isquêmicos e

CIRURGIA DO TRAUMA
luxação de ombro ruptura da aorta.
queimaduras. - Lesão da artéria braquial;
A pressão intracompartimental pode ser medida. Valo- Fratura/luxação de cotovelo - Lesão de nervo mediano,
res de pressões teciduais acima de 35 a 45mmHg causam ulnar e radial.
isquemia e indicam tratamento imediato. Quanto menor a
- Fratura de colo de fêmur;
pressão sistêmica, menor a pressão compartimental. A me- Fratura de fêmur
dida da pressão está indicada a todos os que apresentam - Luxação posterior do quadril.
alteração da resposta aos estímulos dolorosos. - Fratura de fêmur;
Durante o tratamento, devem ser retirados curativos, - Luxação posterior do quadril;
Luxação posterior do joelho
gessos ou imobilizações da extremidade comprometida. O - Lesão de artéria e nervo
doente é então reavaliado após 30 a 60min. Se não houver poplíteo.
mudança na avaliação clínica, estará indicada a fasciotomia - Lesão ou fratura de coluna;
descompressiva (Figura 7). O retardo na realização da fas- - Fratura do platô tibial;
ciotomia pode resultar em mioglobinemia e insuficiência Fratura de calcâneo
- Fratura ou luxação da parte
renal, e o prognóstico depende do tempo de evolução do
posterior do pé.
quadro até a realização do procedimento.

6. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao doente com trauma musculoesquelético
segue a padronização do ATLS®. Sempre que possível, a
avaliação deve ser multidisciplinar;
- Lesões de partes moles e, principalmente, fraturas pélvicas,
podem sequestrar grandes quantidades de volume e devem
ser controladas precocemente;
- As lesões musculoesqueléticas devem alertar para a presença
de lesões associadas.

Figura 7 - Fasciotomia em antebraço

5. Lesões associadas
As lesões musculoesqueléticas costumam estar asso-
ciadas a outras lesões, que nem sempre são diagnosticadas
de imediato e podem passar despercebidas. É importante
sempre alertar para o mecanismo de trauma e repetir o
exame físico, detalhadamente, se necessário. Em virtude
de mecanismo semelhante, algumas lesões frequentemen-
te se associam a certas lesões osteomusculares (Tabela 2).
Tabela 2 - Lesões associadas a fraturas e luxações
Lesões associadas com
Lesão musculoesquelética
maior frequência
Fratura de coluna - Lesões intra-abdominais.
Fraturas ou luxações de coluna
- Ruptura de aorta torácica.
torácica
- Lesão abdominal, torácica ou
Lesão pélvica grave craniana;
- Hemorragia vascular pélvica.

45
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

9
Trauma pediátrico
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais Mecanismo de


Padrões frequentes de lesão
trauma
- Diferenças anatômicas em relação ao adulto; Sem capacete
Trauma cranioencefálico e
facial.
Queda de
- Peculiaridades no atendimento inicial da criança poli- bicicleta
Com capacete Fraturas de membros.
traumatizada; Colisão com
Lesões intra-abdominais.
guidão
- Abuso infantil.
2. Diferença da criança em relação ao adulto
1. Introdução A criança apresenta peculiaridades anatômicas que devem
ser consideradas durante a avaliação após um trauma (Tabela
O trauma é a principal causa de óbito em crianças de 1 a
2). Os sinais vitais considerados normais também são diferen-
15 anos, correspondendo à soma de todas as outras causas
tes na criança e variam conforme as faixas etárias (Tabela 3).
de óbito. Os traumas fechados, como quedas e acidentes
automobilísticos são responsáveis por quase 90% dos trau- Tabela 2 - Características anatômicas e fisiológicas da criança e o
mas nessa faixa etária. Outras causas comuns de trauma impacto após o trauma
são afogamento, queimadura, queda de bicicleta e maus- Característica da criança Efeito após o trauma
-tratos (ou síndrome de Caffey). Maior energia transmitida no
As crianças com trauma multissistêmico podem dete- trauma em relação à superfície
Menor massa corpórea
corpórea e maior frequência de
riorar-se rapidamente e desenvolver sérias complicações. A lesões de múltiplos órgãos.
causa mais comum de óbito entre as crianças traumatizadas Maior superfície corpórea
é o traumatismo cranioencefálico (TCE). Perda mais rápida de calor e maior
em relação ao peso e ao
propensão à hipotermia.
volume
Tabela 1 - Principais lesões em crianças Esqueleto mais flexível As fraturas envolvem um estado
Mecanismo de (calcificação incompleta) maior de energia.
Padrões frequentes de lesão
trauma Maior estresse, menor colaboração,
Estado psicológico
Baixa Fraturas de membros dificuldade de comunicação.
velocidade inferiores. Menor volume sanguíneo Menor tolerância à hipovolemia.
Atropelamento
Alta Exigências metabólicas Resposta metabólica ao trauma
Trauma múltiplo. aumentadas exacerbada.
velocidade
Trauma múltiplo por ejeção Possibilidade de as lesões traumáti-
Sem cinto de Fases de crescimento cas poderem alterar o crescimento
Colisão e colisão contra os bancos e
segurança e o desenvolvimento da criança.
em veículo para-brisas.
motorizado Maior risco de aspiração e maior
Trauma toracoabdominal, Propensão à aerofagia
Com cinto distensão gástrica.
trauma raquimedular.
Menor diâmetro da via aé- Maior risco de obstrução, maior
Pequena Fraturas de membros. rea dificuldade de intubação.
Trauma cranioencefálico, Sistema imunológico ima- Maior risco de infecção pós-esple-
Queda de altura Média trauma raquimedular e turo nectomia.
fraturas. Suturas cranianas incom- Resposta fisiológica diferente nos
Grande Trauma múltiplo. pletas traumas cranioencefálicos graves.

46
TRAUMA PEDIÁTRICO

Tabela 3 - Sinais vitais normais no doente pediátrico Parâmetro Valor


Frequência Débito Normais +2
Peso FC PA
Idade respiratória mL/kg/
(kg) (bpm) (mmHg) Vias aéreas Sustentáveis +1
(irpm) min

CIRURGIA DO TRAUMA
Não sustentáveis -1
180 a
0 a 6m 3a6 60 a 80 60 2 >90mmHg +2
160
Lactente 12 160 80 40 1,5 PAS 50 a 90mmHg +1
Pré-escolar 16 120 90 30 1 <50mmHg -1
Pulso palpável no punho +2
Adolescente 35 100 100 20 0,5 Se não houver
Pulso palpável na virilha +1
medida de PAS
Uma maneira rápida para avaliação dos sinais vitais es- Pulso não palpável -1
perados para cada idade é a régua de Broselow. A partir da Acordado +2
medida da criança (Figura 1) estima-se o peso corporal, si- Parcialmente consciente +1
nais vitais e dose das principais medicações. Estado SNC
Comatoso ou
-1
descerebrado
Nenhuma +2
Feridas abertas Pequena +1
Grande -1
Nenhuma +2
Lesão esquelética Fratura fechada +1
Fratura aberta -1
Total -6 a +12

A - Vias aéreas
A causa mais comum de parada cardíaca em crianças é
a incapacidade de estabelecer e/ou de manter a via aérea
pérvia, com consequente falta de oxigenação e ventilação.
Como no adulto, a via aérea da criança deve ser a priori-
dade do tratamento. Entretanto, há diferenças importantes
com relação à anatomia das vias aéreas nessa faixa etária
Figura 1 - Régua de Breselow: a partir da medida da criança, são que podem dificultar a intubação.
estimados peso, sinais vitais e dose das principais medicações Quanto menor a criança, maior a desproporção crânio/
face, e há maior tendência de a faringe posterior colabar-se
3. Especificidades do atendimento inicial e ficar obliterada. As partes moles (língua, amígdalas) são
relativamente maiores, a laringe é mais alta e mais anterior,
da criança as cordas vocais formam um ângulo anterocaudal, e o com-
A criança, per se, não constitui uma prioridade no aten- primento da traqueia é menor.
dimento a situações com múltiplas vítimas. O socorrista
deve ter em mente as peculiaridades na avaliação e no tra-
tamento, mas ela será atendida conforme a gravidade e os
recursos disponíveis, à semelhança das outras vítimas.
A Tabela 4 mostra o escore de traumatismo pediátrico.
Vítimas com escore menor que 9 têm maior risco de óbito
e devem ser atendidas em centros especializados em trau-
ma pediátrico. Cerca de 5 a 10% das crianças traumatizadas
apresentam escore menor que 9.
Tabela 4 - Escore de traumatismo pediátrico (PTS - Pediatric Trau-
ma Score)
Parâmetro Valor
>20kg +2 Figura 2 - Diferenças anatômicas das vias aéreas na criança que
Tamanho 10 a 20kg +1 dificultam a intubação: (A), (B) e (C) posição da base da língua pre-
dispondo a obstrução da via aérea e (D) altura da epiglote; no nível
<10kg -1
de C2 e C3

47
CI RUR G I A D O TRAU M A

Caso a criança apresente respiração espontânea, com utilizados drenos de tórax de menor diâmetro, locados no
via aérea parcialmente obstruída, deve-se posicionar a ca- 5º espaço intercostal, anteriormente à linha axilar média.
beça da criança na “posição de cheirar”, tracionar o mento A parede torácica da criança é mais flexível e compla-
e a mandíbula, limpar secreções e retirar corpos estranhos, cente, o que permite a transmissão de energia para o inte-
além de administrar oxigênio suplementar. Na criança in- rior, causando lesão do parênquima pulmonar, muitas vezes
consciente, são necessários métodos mecânicos para per- sem lesão óssea. Dessa maneira, a força necessária para fra-
meabilizar a via aérea. turar os arcos costais da criança é significativamente maior
A cânula de Guedel deve ser introduzida diretamente que a necessária para fraturar os do adulto. É comum a pre-
na orofaringe, e não voltada para o palato. Se necessitar sença de contusão pulmonar.
de intubação orotraqueal, a cânula deve ser sem cuff e de
tamanho apropriado. O menor diâmetro da via aérea da C - Circulação
criança é o anel cricoide que funciona como um selo natural
Em virtude da reserva fisiológica aumentada, os sinais
ao tubo traqueal (dispensando o uso dos cuffs). O tamanho
vitais da criança se mantêm mesmo com choque grave. Os
da cânula pode ser estimado pelo diâmetro da narina ou do
sinais de choque são mais sutis e aparecem somente após
dedo mínimo da mão da criança.
uma perda maior que 25% do volume sanguíneo. O 1º sinal
As indicações de via aérea definitiva na criança são as
de choque é o aumento da frequência cardíaca, entretanto
mesmas do adulto (Tabela 5). Para a intubação, recomen-
isso ocorre nas crianças também por dor, medo ou estres-
da-se utilizar atropina para manter a frequência cardíaca e
se. Outros sinais de choque são má perfusão da pele (pele
depois sedar a criança, e deve-se usar um curare de ação
mosqueada, extremidade fria), alteração do nível de cons-
rápida para paralisia muscular (ex.: succinilcolina). Como a
ciência e resposta alterada ao estímulo doloroso (Tabela 6).
via aérea da criança é mais curta, há uma chance maior de
A hipotensão indica choque não compensado, com
intubação seletiva ou de mudança da posição da cânula du-
perda sanguínea grave, maior que 45% do volume total. A
rante o transporte ou mobilização.
criança hipotensa pode evoluir com bradicardia, principal-
Tabela 5 - Indicações de via aérea definitiva mente os lactentes. A queda do débito urinário é, também,
um evento tardio do choque em crianças.
- Apneia;
- Proteção das vias aéreas contra aspiração por vômitos ou sangue; Tabela 6 - Resposta sistêmica à hipovolemia na criança
- TCE com ECG ≤8; Perda
<25% 25 a 40% >45%
- Risco de obstrução por lesão de traqueia ou laringe, hematoma volêmica
cervical ou retrofaríngeo, estridor; Pulso fraco, Hipotensão,
Sistema
- Fraturas maxilofaciais graves; filiforme, Taquicardia taquicardia ou
cardíaco
taquicardia braquicardia
- Convulsão persistente;
Letárgico, Mudança no nível
- Incapacidade de manter oxigenação com máscara de O2;
SNC irritável, de consciência, fraca Comatosa
- Necessidade de ventilação: paralisia neuromuscular, movimentos confuso resposta à dor
respiratórios inadequados, TCE grave com necessidade de
hiperventilação. Cianose,
enchimento Pálida, muito
Pele Fria e úmida
A intubação nasotraqueal não deve ser realizada na capilar retardado fria
criança com idade inferior a 12 anos, pelo risco de lesão extremidades frias
de partes moles e/ou penetração no crânio. A cricotireoi- Redução
dostomia cirúrgica também é contraindicada aos menores mínima
de 12 anos, pelo risco de estenose. As opções são a cricoti- do débito Diminuição
Ausência de
Rins urinário, acentuada do débito
reoidostomia por punção com agulha ou a traqueostomia. débito urinário
aumento da urinário
desistência
B - Ventilação urinária
A frequência respiratória é normalmente alta em lacten-
tes (40 a 60irpm) e diminui com a idade. A etiologia mais Para a reposição volêmica, o acesso preferencial é a
comum de parada cardíaca na criança é a hipoventilação, punção periférica percutânea. Deve-se evitar a punção fe-
caso em que ela apresentará acidose respiratória. moral, devido ao alto risco de trombose. A infusão intraós-
sea está indicada para crianças abaixo de 6 anos, caso não
- Trauma torácico pediátrico seja possível punção periférica (após 2 tentativas), sempre
Cerca de 10% dos traumas comprometem o tórax, e 2/3 utilizando um membro não traumatizado.
apresentam lesões associadas. A maioria das lesões é cau- A infusão intraóssea deve ser interrompida assim que se
sada por trauma fechado, principalmente acidente automo- estabelece um acesso venoso apropriado. As complicações
bilístico. Na necessidade de drenagem torácica, devem ser desse procedimento incluem celulites e, raramente, osteo-

48
TRAUMA PEDIÁTRICO

mielites. O local preferencial de punção intraóssea é o terço O cirurgião pediátrico deverá, sempre que possível, acom-
proximal da tíbia, abaixo da tuberosidade (Figura 3). Se a panhar os exames de imagem. Como sangramentos intra-ab-
tíbia estiver fraturada, a agulha poderá ser introduzida no dominais decorrentes de trauma de vísceras parenquimatosas
segmento distal do fêmur. A punção não deve ser realizada

CIRURGIA DO TRAUMA
(baço, fígado e rim) costumam cessar espontaneamente, o
distalmente à fratura. Tratamento Não Operatório (TNO) poderá ser indicado desde
que a criança esteja hemodinamicamente normal. A criança
deve ser mantida em unidade de terapia intensiva, com moni-
torização contínua dos sinais vitais e disponibilidade imediata
de equipe cirúrgica e de sala de operação.
Tabela 7 - Lesões mais comuns em crianças do que em adultos
Hematoma de duodeno
Mais frequente em crianças por falta de desenvolvimento da
musculatura; acontece, frequentemente, por queda sobre um
Figura 3 - Punção intraóssea: (A) agulhas especiais para punção e guidão de bicicleta. Pode ser tratado de forma conservadora
(B) local apropriado para a punção com sonda nasogástrica e dieta parenteral.
Lesões de delgado
O volume sanguíneo da criança pode ser estimado em Mais comuns em crianças com perfurações do intestino delgado
80mL por kg de peso. O tratamento inicial da criança con- próximo ao ângulo de Treitz e avulsão de mesentério.
siste na administração de cristaloides, 20mL/kg em bolus, Ruptura de bexiga
podendo repetir essa dose 3 vezes após avaliação clínica
Na criança, ocorre mais lesão pela pequena profundidade da
(total de 60mL/kg). Deve-se considerar a conveniência de pelve.
administração concentrada de hemácias, na dose inicial de Lesão de órgãos parenquimatosos (baço, fígado e rins)
10mL/kg, persistindo a instabilidade.
São frequentes no trauma fechado e raramente necessitam
O retorno à estabilidade hemodinâmica é indicado por de tratamento cirúrgico. Em geral, há um rápido retorno à
diminuição da frequência cardíaca, aumento da pressão de normalidade hemodinâmica com a reanimação rápida com
pulso, reaquecimento das extremidades, elevação da PAS cristaloides. O diagnóstico é feito, então, com uma tomografia
(>80mmHg), retorno à cor normal da pele e melhora do ní- de abdome.
vel de consciência. O débito urinário é o melhor parâmetro
para avaliar a resposta à reposição volêmica. Espera-se um Lesões pélvicas podem acarretar sangramentos de gran-
débito de 1mL/kg/h nas crianças com mais de 1 ano e 2mL/ de monta. A hemorragia associada à fratura da pelve e dos
kg/h nas menores. ossos longos é proporcionalmente maior na criança do que
no adulto.
- Trauma abdominal pediátrico
Toda criança traumatizada deve ter o estômago des- D - Estado neurológico
comprimido por meio da passagem de sonda gástrica du- Utiliza-se a Escala de Coma de Glasgow (ECG), no entan-
rante a reanimação. Os lactentes e as crianças menores, to a resposta verbal deve ser modificada nas crianças com
devido ao choro, deglutem grande quantidade de ar, o que idade abaixo de 4 anos (Tabela 8). O atendimento inicial
aumenta a tensão da parede abdominal e dificulta o exame adequado requer restauração rápida do volume circulante,
do abdome. Há preferência pela sondagem orogástrica no evitando a hipóxia. O vômito e a amnésia por traumas são
lactente. A descompressão vesical por sondagem também mais comuns. Logo, sempre se deve realizar descompressão
facilita a avaliação abdominal, com a ressalva de que não gástrica com sonda.
devem ser utilizadas sondas com Foley em crianças com
menos de 15kg. Tabela 8 - Resposta verbal pediátrica
Nas crianças instáveis hemodinamicamente, realiza-se 5 Palavras apropriadas ou sorriso social, fixa e segue objeto.
o Lavado Peritoneal Diagnóstico (LPD) ou aspirado abdo- 4 Chora, mas é consolável.
minal. O ultrassom na sala de emergência (FAST – Focused 3 Persistente, irritável.
Assessment with Sonografic for Trauma) também pode ser 2 Inquieto, agitado.
utilizado para detecção de sangramento intra-abdominal. A 1 Nenhuma.
tomografia de abdome constitui a melhor forma de diag-
nóstico, mas só deve ser realizada na criança hemodina- O acompanhamento neurocirúrgico deve ser adequado
micamente normal. Em geral, a criança precisa de sedação e precoce, e é fundamental a reavaliação continuada de to-
para realizar o exame. É necessário uso de contraste intra- dos os parâmetros. A monitorização da pressão intracrania-
venoso oral e, em alguns casos, retal. na é realizada na criança com maior frequência, pelo maior

49
CI RUR G I A D O TRAU M A

risco de hipertensão intracraniana, e está indicada se ECG


<8. Não se deve esquecer o ajuste da dosagem dos medica-
mentos de acordo com o peso.
a) Trauma de crânio
A maioria dos TCE na criança resulta de acidentes au-
tomobilísticos, acidentes com bicicleta e quedas de altura.
Como no adulto, a hipotensão raramente ou nunca é devida
ao trauma craniano isoladamente.
Convulsões após o trauma são mais comuns em crian-
ças, mas geralmente são autolimitadas. Se recorrentes,
requerem investigação por tomografia. As crianças têm
menor tendência a desenvolver lesões focais do que os
adultos, mas apresentam maior frequência de hipertensão
intracraniana por edema cerebral.
Nos lactentes, as suturas e as fontanelas estão abertas,
podendo haver hipovolemia por sangramento nos espaços
subgaleal ou epidural. O espaço subaracnóideo é relativa-
mente pequeno nas crianças, oferecendo menor proteção
ao cérebro devido à menor flutuabilidade e maior susceti-
bilidade de lesão do parênquima cerebral e lesões estrutu-
rais.
A criança pequena, com fontanela aberta e linhas de
sutura não consolidadas, tolera melhor a lesão expansiva
intracraniana. Os sinais de lesão expansiva podem ser mas-
carados. Se houver abaulamento de fontanela ou diástase
da linha de sutura, a criança deverá ser tratada como porta- Figura 4 - Fratura de ossos da perna: fratura “em galho-verde”
dora de uma lesão grave.
b) Lesão raquimedular a) Termorregulação
O doente pediátrico tem uma troca aumentada de calor
É rara nas crianças. Os ligamentos são mais flexíveis,
em virtude da grande relação entre a superfície e a mas-
sendo mais comuns as pseudoluxações. Cerca de 40% das
sa corpórea. Além disso, as crianças apresentam uma pele
crianças com pseudoluxações abaixo de 7 anos apresentam
fina, com pouco tecido celular subcutâneo, o que aumenta
deslocamento anterior de C2 sobre C3. o risco de hipotermia.
As crianças podem apresentar lesão medular sem anor- A criança deverá estar sempre aquecida durante o aten-
malidade radiológica com frequência maior que os adultos. dimento, assim como a sala e os líquidos infundidos. A hi-
Em mais de 2/3 das crianças com lesão medular, os exames potermia torna a criança traumatizada refratária ao trata-
radiológicos são normais. Assim, na dúvida sobre a inte- mento, prolonga o tempo de coagulação e compromete a
gridade da coluna cervical, deve-se agir como se houvesse função do sistema nervoso central.
uma lesão instável, mantendo imobilizados a cabeça e o
b) Criança vítima de abuso ou síndrome da criança es-
pescoço da criança, além de proceder à avaliação especia- pancada (síndrome de Caffey)
lizada precoce.
É o resultado de agressões intencionais causadas pelos
pais, tutores ou conhecidos. Crianças que morrem no 1º ano
E - Exposição e prevenção da hipotermia
de vida, em decorrência de trauma, geralmente são vítimas
É comum a ocorrência de fraturas “em galho-verde” (Fi- dessa síndrome. O médico deve suspeitar de abuso se há:
gura 4), que são incompletas e cuja angulação é mantida - Discrepância entre a história e a gravidade das lesões;
pela camada cortical, devido à flexibilidade dos ossos da - Longo intervalo entre o momento da agressão e a pro-
criança. O diagnóstico radiológico de fraturas e luxações cura por atendimento médico;
é mais difícil devido à falta de mineralização ao redor da - Pais que respondem evasivamente ou não obedecem
epífise e à presença dos núcleos de crescimento. Lesões da à orientação médica;
linha de crescimento podem retardar ou alterar o desenvol- - História do trauma diferente em diferentes relatos;
vimento normal. As lesões por esmagamento na epífise de - História de traumas repetidos, tratados em diferentes
crescimento têm pior prognóstico. serviços de emergência;

50
TRAUMA PEDIÁTRICO

- Hemorragia retiniana;
- Queimaduras de 2º e 3º graus nitidamente demarca-
das e em áreas não usuais;
- Evidência de lesões traumáticas repetidas, cicatrizes e

CIRURGIA DO TRAUMA
fraturas consolidadas;
- Trauma genital ou na região perianal;
- Lesões bizarras como mordedura, queimaduras por ci-
garro ou marcas de cordas;
- Hematomas subdurais múltiplos;
- Ruptura de vísceras, sem antecedente de trauma grave;
- Lesões periorais;
- Fraturas de ossos longos em crianças abaixo de 3 anos.
A criança agredida tem risco maior de lesões fatais,
portanto ninguém está livre da obrigação de notificar. A
notificação de espancamento de crianças assume maior
importância quando se lembra que 50% das vítimas de
maus-tratos, atendidas e liberadas para o convívio com os
responsáveis pelo abuso, retornam mortas ao hospital.

4. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento à criança politraumatizada deve seguir a
padronização proposta pelo ATLS®;
- A criança não deve ser considerada prioridade no atendimento,
mas apresenta peculiaridades que devem ser conhecidas;
- Diferenças anatômicas e de parâmetros vitais podem mimetizar
falsos diagnósticos de normalidade;
- Na suspeita de maus-tratos, é obrigação do médico que atende
o caso notificar às autoridades competentes.

51
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

10
Queimaduras
José Américo Bacchi Hora / André Oliveira Paggiaro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais
- Atendimento inicial;
- Fisiopatologia das queimaduras;
- Bases do tratamento;
- Tipos específicos de queimaduras.
1. Introdução
As queimaduras são causas frequentes de trauma em
todas as idades, sendo mais comuns nos extremos de idade.
Nesse tipo de trauma, há liberação de mediadores celulares
e humorais que determinam alteração das permeabilidades
capilar, metabólica e imunológica, levando a distúrbio hi-
droeletrolítico, desnutrição e infecção. Podem ser causados
por uma série de agentes físicos, químicos, radiação e ele-
tricidade. Temperaturas muito baixas também podem cau-
sar lesões semelhantes a queimaduras. Na população adul-
ta, elas são mais encontradas em homens, principalmente
em razão dos acidentes de trabalho.

2. Classificação Figura 2 - Camadas de pele: (1) superficial, (2) média e (3) profun-
da; queimaduras da pele em 1º (4), 2º (5) e 3º (6) graus
A principal classificação utilizada para as queimaduras
considera a profundidade da lesão. São consideradas de Outra maneira de dividir as queimaduras são os graus
espessura parcial aquelas em que há preservação da inte- (Tabela 1).
gridade de alguma porção das camadas da pele, e de es-
pessura total, quando todas essas camadas estão lesadas Tabela 1 - Graus de queimadura
(Figura 2). 1º grau 2º grau 3º grau
Acomete todas as
camadas da pele,
Compromete total- inclusive o subcu-
Compromete ape-
mente a epiderme e tâneo, podendo
nas a epiderme
parte da derme lesar tendões,
ligamentos, ossos e
músculos
Apresenta dor, Causa lesão branca
Apresenta eritema, eritema, edema, ou marrom, seca,
calor e dor bolhas, erosão e dura e inelástica
ulceração (branca nacarada)
Não há formação de Há regeneração
É indolor
bolhas espontânea
Figura 1 - Estrutura da pele

52
QUEIMADURAS

1º grau 2º grau 3º grau Depois de 24 a 48 horas, os capilares dilatados são obstru-


Ocorre reepiteli- ídos, resultando na conversão desses tecidos em zona de
Evolui com desca- zação a partir dos Não há regeneração coagulação. A lesão dessa zona pode ser reversível com tra-
tamento apropriado: resfriamento, reposição de líquidos e

CIRURGIA DO TRAUMA
mação em poucos anexos subcutâneos espontânea, neces-
dias (folículo piloso e sitando de enxertia cuidados intensivos.
glândulas) 3 - Zona de hiperemia externa: formada por tecidos
Eventualmente, edemaciados viáveis.
Cicatrização mais
Regride sem deixar pode cicatrizar, po-
lenta (2 a 4 sema-
cicatrizes
nas)
rém, com retração
das bordas
3. Fisiopatologia das lesões térmicas
Pode deixar seque- A lesão térmica exerce efeitos deletérios sobre os dife-
Pouca repercussão las como discromia rentes sistemas do organismo, sendo proporcional à exten-
-
sistêmica (superficial) e cica- são da queimadura (Figura 4). Ocorrem alterações bifásicas
triz (profunda) na função orgânica, com hipofunção inicial e hiperfunção
Fonte: “Primeiro atendimento em queimaduras: a abordagem posterior, exceto o sistema imune, em que a sequência é
do dermatologista”, Everton Carlos Siviero do Vale, An. Bras. Der- inversa. As alterações metabólicas e as perdas líquidas nas
matol. vol.80 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2005. queimaduras de 2º grau profundas são as mesmas das quei-
maduras de 3º grau.

Figura 3 - Graus de queimadura

As queimaduras de 1º grau atingem só a epiderme, são


dolorosas e com eritema cutâneo, e a função protetora da Figura 4 - Fisiopatologia das queimaduras
pele está intacta, de modo que não há cicatriz residual. Já
nas queimaduras de 2º grau, ocorre lesão de parte da epi-
derme e, em algum grau, da derme com formação de bo- A - Alterações hemodinâmicas
lhas (flictenas). Logo após a lesão térmica, predominam as alterações
As queimaduras de 2º grau podem ser divididas em su- no sistema cardiovascular. Com a liberação de substâncias
perficiais (extremamente dolorosas, pois expõem várias ter- vasoativas a partir da área traumatizada, há modificação
minações nervosas livres) e profundas (que demoram mais nas relações de pressão transvasculares com a permeabili-
para cicatrizar e apresentam reepitelização lenta, no entan- dade capilar, promovendo a perda de líquidos e proteínas
to a dor é menor, uma vez que sobram poucas terminações para o extravascular, com consequente hipotensão. Clini-
nervosas viáveis). Por fim, nas queimaduras de 3º grau, há camente, esse fato se evidencia pelo edema, que costu-
destruição de toda a derme, impedindo a reepitelização. Só ma atingir o seu pico entre 36 e 48 horas. Inicialmente,
cicatrizam por contração da pele ou enxertia. Não há dor, vis- o débito cardíaco diminui proporcionalmente ao tamanho
to que todas as terminações nervosas estão destruídas. da queimadura, em associação ao aumento da resistência
Outro ponto importante nas queimaduras causadas vascular periférica. Posteriormente, se não for realizada
pelo calor é a existência de 3 zonas de lesão: a reposição hídrica adequada, o quadro de desidratação
1 - Zona de coagulação central: são aqueles tecidos do e perda de líquido para o 3º espaço aumenta o risco de
centro da queimadura que estão inviáveis, com lesão irre- choque hipovolêmico, podendo ser agravado pela perda
versível. contínua de água pela superfície queimada, além de levar
2 - Zona de estase intermediária: caracteriza-se inicial- à redução da perfusão renal com evolução para oligúria e
mente por dilatação dos vasos sanguíneos e difusão capilar. insuficiência renal aguda.

53
CI RUR G I A D O TRAU M A

B - Alterações hematológicas ATLS®, observando prioritariamente a manutenção de uma


via aérea pérvia e a estabilidade hemodinâmica. Em cada
Além da perda de plasma inicial, há destruição imedia- uma das etapas de atendimento do politraumatizado com
ta de eritrócitos em proporção direta com a extensão da queimaduras, existem especificidades que devem ser pes-
queimadura. Em lesões extensas, há uma perda contínua de quisadas, exigindo cuidados especiais.
extensão variável (8 a 12% da massa eritrocitária por dia),
a partir do efeito da lise de células lesadas pelo calor e pela A - Via aérea e proteção da coluna cervical
trombose microvascular nas áreas de tecido lesado que
sofreram necrose. Outro fator atribuído à redução dos eri- A hipóxia é a causa mais frequente de morte por incên-
trócitos é o desvio do metabolismo proteico, favorecendo a dio, corresponde a 50% das mortes na cena da queimadura
construção de uma nova pele, em detrimento da formação e deve ser tratada e prevenida em todas as vítimas de in-
de novas hemácias. cêndio. A intoxicação por CO resulta na formação de carbo-
-hemoglobina (HbCO) com afinidade pela hemoglobina 200
C - Alterações endócrinas vezes maior que o O2. Desse modo, causa desvio da curva
de dissociação de O2 para a esquerda, facilitando a libera-
No início, há um padrão endócrino catabólico caracteri- ção de O2. O paciente evolui com cefaleia, náuseas ou vô-
zado por níveis elevados de glucagon, cortisol, catecolami- mitos, acidose, sonolência e até coma. A oximetria de pulso
nas e por níveis diminuídos de insulina e tri-iotironina. Após não é confiável. O tratamento é administrar O2 a 100%, ten-
a hidratação, há uma inversão hormonal e um aumento do do como objetivo reduzir HbCO para <20%.
anabolismo. Ao paciente queimado, é fundamental a atenção aos
riscos de obstrução das vias aéreas. Geralmente, os pacien-
D - Alterações gastrintestinais tes que sofreram queimaduras em lugares fechados, com
No início da lesão, o trato gastrintestinal responde com inalação de fumaça ou gases tóxicos, apresentam risco de
um quadro de íleo paralítico, principalmente com queima- desenvolver lesão inalatória e evoluir com obstrução da via
duras de mais de 25% da Superfície Corporal Queimada aérea alta por edema progressivo.
(SCQ). Após o 3º até o 5º dia, há um retorno da motilidade a) Lesão térmica das vias aéreas superiores
gastrintestinal. Um risco comum do grande queimado é o
desenvolvimento de lesões da mucosa gástrica e da intesti- Está associada às queimaduras de face e tórax. O qua-
nal, secundárias à isquemia focal, com risco de desenvolvi- dro clínico sugestivo é de edema de face, estridor, roncos e
mento de úlceras de Curling (úlceras duodenais), adicionan- queimaduras de vibrissas nasais. A obstrução da via aérea
do chance de sangramento intestinal. pode ocorrer nas primeiras 2 a 4 horas após a queimadura
ou um pouco mais tardiamente, após hidratação. Por isso,
E - Alterações imunológicas recomenda-se manter o paciente em observação de 24 a
36 horas. Deve-se manter o máximo de atenção aos sinais
Atualmente, a principal causa de morte do paciente e sintomas. Na suspeita, a intubação orotraqueal (IOT) pre-
grande queimado são as infecções. Além da perda da bar- coce é o tratamento de escolha, antes que se desenvolva
reira mecânica natural da pele, a presença de tecido ne- edema progressivo com a obstrução completa da via aérea.
crótico e de secreções do exsudato possui determinados Quando há dificuldade, pode-se utilizar a broncoscopia com
fatores imunológicos que geram depressão desse sistema, visão direta, mas esse procedimento não deve retardar a
tanto celular quanto humoral. Outro fator atribuído à redu- via aérea definitiva em caso de dúvida. Após 2 a 3 dias, o
ção dos eritrócitos é o desvio do metabolismo proteico, fa- edema geralmente diminui. Os indicadores clínicos des-
vorecendo a construção de uma nova pele, em detrimento sa resolução incluem capacidade do paciente de abrir os
da formação de novas hemácias. olhos, visualização da anatomia externa do pescoço, prin-
cipalmente da cartilagem tireoide e da borda anterior do
4. Avaliação inicial músculo esternocleidomastóideo, e a capacidade de venti-
lar com o balão de tubo endotraqueal desinsuflado. A tra-
A gravidade de uma queimadura é determinada pela tem- queostomia se reserva a pacientes que necessitam de mais
peratura e pelo tempo de exposição à fonte de calor. Sempre de 2 a 3 semanas de intubação. A cricotireoidostomia per-
que estamos diante de um queimado, é essencial determinar mite o acesso na urgência em adultos, sendo indicada, em
a fonte (líquido quente, substância química, chama etc.), a último caso, às crianças.
duração e a localização da exposição (ambiente aberto ou
fechado, possibilidade de inalação) e os mecanismos de le- b) Lesões de via aérea baixa ou por inalação
sões associadas (explosão, queda). Estes fatores em conjunto Ocorre uma pneumonite química cujo quadro clínico
influem diretamente no prognóstico do paciente e indicam é semelhante ao da Síndrome da Angústia Respiratória no
quais os cuidados necessários para o tratamento. Adulto (SARA). Os produtos químicos presentes na compo-
O paciente queimado deve ser considerado um politrau- sição do agente inalado causam intensa reação inflamatória
matizado, e seu atendimento deve seguir a padronização do com fechamento dos bronquíolos e atelectasia. A história

54
QUEIMADURAS

típica caracteriza-se pela inalação em ambiente fechado C - Circulação


e o quadro clínico, por queimadura de vibrissas, face, lá-
O paciente grande queimado, além de perder a prote-
bios, pescoço e região superior do tórax, nariz chamuscado,
ção da pele, apresenta perda de líquido para o 3º espaço,
eritema e ulceração da boca, respiração ruidosa, retração

CIRURGIA DO TRAUMA
em virtude do aumento da permeabilidade capilar. Logo, a
intercostal, quadro broncoespástico e presença de partícu-
reposição volêmica deve ser mais agressiva aqui do que a
las de carbono. A radiografia inicial de tórax é normal, mas
preconizada para o doente politraumatizado.
costuma apresentar infiltrados intersticiais nas primeiras 24
Devem ser puncionados pelo menos 2 acessos calibro-
a 48 horas. A lesão é considerada grave quando há neces-
sos periféricos, preferencialmente em áreas não queima-
sidade de ventilação mecânica por mais de 96 horas, PaO2
das, para infusão de volume, preferencialmente soluções
<250mmHg com FiO2 de 100% e radiografia de tórax com
salinas isotônicas. Para o cálculo adequado da reposição vo-
edema intersticial difuso. O diagnóstico precoce se faz por
lêmica é importante saber a porcentagem de SCQ. O cálculo
broncoscopia. Devem ser realizadas IOT, ventilação mecâni-
é baseado nas áreas de queimaduras de 2º e de 3º graus,
ca com FiO2 >50% e limpeza frequente com aspiração da via
sendo desconsideradas as áreas de 1º grau.
aérea. A antibioticoterapia não deve ser usada profilatica-
Há 3 métodos mais frequentemente utilizados:
mente, e os corticoides não mostraram eficácia.
Além disso, a presença de trauma de coluna cervical - Regra da palma da mão
deve ser investigada principalmente nas lesões por queima- A superfície da palma da mão do indivíduo, excluindo os
duras elétricas extensas e explosões, pois são comuns as dedos, equivale a 1% da área de superfície corpórea, sendo
fraturas nesses tipos de mecanismo de trauma. utilizado para calcular o restante. É o menos fidedigno para
avaliação da área queimada.
B - Ventilação
- Regra dos 9
Vítimas de explosões podem apresentar frequentemen-
É um guia útil para determinar a extensão da área quei-
te quadro de pneumotórax simples ou até mesmo hiperten-
mada e baseia-se no fato de que as regiões anatômicas cor-
sivo, que precisa ser diagnosticado e tratado na avaliação
respondem a 9% ou o múltiplo de 9% da superfície corpó-
inicial. Pneumotórax aberto também é possível.
rea (Figura 6).
As queimaduras torácicas e abdominais de 3º grau po-
Nas crianças, o tamanho da cabeça costuma ser maior
dem formar uma espécie de carapaça, que pode impedir a
do que nos adultos, enquanto os membros inferiores são
incursão respiratória, gerando distúrbio de ventilação. Nesse
menores, proporcionalmente em relação ao restante do
tipo de situação, é obrigatório realizar escarotomias para li-
corpo (Tabela 2).
beração da caixa torácica. As escarotomias são incisões line-
ares que se estendem por meio de toda a espessura da pele
queimada e permitem a separação da escara constritora.
Devem ser realizadas 2 incisões bilaterais na linha axilar
anterior para liberação torácica e, caso não sejam suficien-
tes, podem ser interligadas por uma incisão horizontal na
margem do gradeado costal como um grande “H” para libe-
ração abdominal.

Figura 6 - Regra dos 9 em adultos e em crianças

Tabela 2 - Porcentagem de superfície corporal de acordo com os


segmentos
Área
Superfície corpórea (adultos/crianças)
anatômica
Cabeça 9% / 18%
Tronco
18% / 18%
anterior
Tronco
18% / 18%
posterior
Figura 5 - Linhas de incisão das escarotomias

55
CI RUR G I A D O TRAU M A

Área Esse volume deverá ser infundido em 24 horas, sendo


Superfície corpórea (adultos/crianças)
anatômica metade nas primeiras 8 horas e a outra metade nas 16 ho-
Membros 18% cada (9% face anterior e 9% face posterior) ras seguintes. Lembrando que as primeiras 8 horas são con-
inferiores / 13,5% cada tadas a partir do horário da queimadura, e não da chegada
Membros 9% cada (4,5% face anterior e 4,5% face ao hospital. Por exemplo: se o paciente chega ao pronto-so-
superiores posterior) / 9% cada corro com 40% da superfície corpórea queimada há 3 horas,
Períneo 1% / 1% a 1ª metade deve ser administrada em 5 horas (8 horas – 3
horas do acidente).
- Regra de Lund e Browder
O mais confiável dos métodos, em que varia a represen- Tabela 3 - Fórmulas de reposição volêmica no paciente queimado
tação das áreas da cabeça e dos membros inferiores com a Evans Brooke Parkland Brooke M.
idade. É o método mais utilizado nas unidades de queima- 0,5mL/
dos, no entanto é pouco prático na emergência porque é Coloide 1mL/kg/% Não Não
kg/%
difícil a memorização das tabelas. RL 1mL/ RL 1,5mL/ RL 4mL/ RL 2 a
Cristaloide
kg/% kg/% kg/% 3mL/kg/%
Glicosado
2L/m3 2L/m3 Não Não
5%
30 a
30 a 30 a 50 a
Urina 50mL/h ou
50mL/h 50mL/h 70mL/h
1mL/kg/h
½ 8h / ¼ ½ 8h / ¼ ½ 8h / ¼ 8h ½ 8h / ¼ 8h
Ritmo
8h / ¼ 8h 8h / ¼ 8h / ¼ 8h / ¼ 8h
% SCQ para Igual
Cálculo do
Até 50% Igual Evans qualquer Parkland
volume
tamanho

Independentemente da fórmula utilizada, é importante


lembrar que ela serve apenas como um guia inicial e que a
infusão de volume deve ser modificada de acordo com a res-
posta do paciente à reposição de volume, baseando-se prin-
cipalmente no débito urinário. Este débito adequado é de 0,5
a 1mL/kg/h para adultos e de 1mL/kg/h para crianças.

D - Neurológico
Em razão da perda de líquidos e da hipotensão, algumas
vezes os pacientes apresentam confusão mental ou incons-
ciência, exigindo reposição hídrica vigorosa imediata. Nas
explosões ou traumas elétricos, há uma grande associação
aos traumatismos cranioencefálicos. Exames diagnósticos
só podem ser realizados após a estabilização respiratória e
Figura 7 - Esquema de Lund e Browder para o cálculo de SCQ em hemodinâmica do paciente.
adultos e em crianças
E - Exposição e prevenção de hipotermia
Com base no cálculo da SCQ, começaram a ser desen-
volvidas fórmulas de hidratação (Tabela 3). A 1ª – fórmula Devem-se calcular a extensão e a profundidade da le-
de Evans e Brooke – pregava o uso de cristaloides e coloides são, que influirão diretamente tanto na conduta quanto à
em associação. Imaginava-se que o uso de coloides aumen- hidratação, como no encaminhamento para centro de quei-
taria a manutenção de líquidos no intravascular. Entretanto, maduras. A SCQ e a profundidade da lesão são essenciais
isso não se confirmou, e surgiram novas fórmulas baseadas no prognóstico do paciente. A remoção de roupas, agentes
apenas no uso de cristaloides – Parkland e Brooke modifi- plásticos e piche deve ser feita para evitar a exposição pro-
cado. Estas 2 últimas são as mais utilizadas, e a de Parkland longada e o aumento das lesões.
costuma ser a mais usada: O resfriamento com água fria nas queimaduras causa
- Fórmula de Parkland alívio, mas só deve ser usado em queimaduras pequenas,
Reposição de 2 a 4mL de solução cristaloide x o peso para não causar hipotermia, sendo contraindicado nos lo-
corporal (kg) x a SCQ (queimaduras de 2º e 3º graus). cais de queimaduras com mais de 10% de SCQ. Envolver

56
QUEIMADURAS

com toalhas secas diminui a contaminação e atenua a dor, Vantagens Desvantagens


pois evita o contato com o ar. - Pouca penetração na
Nas queimaduras por líquidos aquecidos, a temperatu- - Não causa
escara;
hipersensibilidade;
ra do agente e a localização anatômica definem o grau da

CIRURGIA DO TRAUMA
Nitrato de Ag - Descoloração da ferida;
- Indolor;
lesão. Nas queimaduras por chama, a gravidade é propor- a 0,5% - Troca várias vezes ao
- Não resistência
cional à chama e à duração da exposição. Nos extremos de dia;
bacteriana.
- Hipo Na e Hipo K.
idade, observam-se lesões mais profundas, uma vez que a
pele é mais fina, o que é praticamente visto em crianças Deve ser administrado toxoide tetânico a todos os pa-
com menos de 2 anos. cientes. Antibióticos profiláticos normalmente não costu-
Nas queimaduras químicas, as roupas devem ser re- mam ser necessários, são inclusive contraindicados pela
movidas imediatamente. Agentes sólidos e pós devem ser possibilidade de indução à resistência bacteriana.
removidos primeiro. A irrigação local exaustiva com água
e soro deve ser iniciada, evitando-se o uso de agentes B - Tratamento cirúrgico: excisão e enxertia de pele
neutralizantes. A concentração do agente e a duração de-
terminam a gravidade. Depois da estabilização do paciente, começam a ser reali-
Nas queimaduras elétricas, deve-se remover a vítima zadas as escarectomias, que consistem no desbridamento do
imediatamente da fonte de energia, com o cuidado de não tecido queimado inviável. É um procedimento extremamen-
vir a fazer parte do circuito elétrico, desligando a fonte de te sangrante, com limite de ressecção de 10 a 20% de SCQ.
energia ou usando materiais não condutores. Queimaduras Atualmente, o tratamento padrão-ouro nos casos de
elétricas profundas causam graves lesões musculares, e a queimadura de espessura total é a excisão tangencial do
presença de área de entrada e saída da corrente levanta a tecido queimado e sua cobertura cutânea imediata. Há 2
suspeita dessas lesões. técnicas principais: uma excisão sequencial de uma camada
fina de todos os tecidos inviáveis até atingir uma camada de
tecidos viáveis; ou a ressecção de todo o tecido até encon-
5. Tratamentos específicos trar a fáscia muscular, para posterior enxertia. A enxertia de
pele pode ser de espessura total ou parcial, ou por meio de
A - Antibióticos lâmina ou em malha (mesh graft).
Com a melhora do atendimento inicial dos pacientes
grandes queimados, a principal causa de morte atualmente C - Nutrição
é o risco de infecção. As escaras das queimaduras de 3º grau O grande queimado apresenta uma resposta hipermeta-
provocam um risco aumentado para o desenvolvimento de bólica e por isso tem grande gasto energético. Esta situação
infecção. O tratamento ideal para esses casos é a ressecção persiste enquanto as feridas permanecerem abertas. Por
precoce das escaras e cobertura cutânea com enxertos de isso, o suporte nutricional deve ser iniciado em todo grande
pele, com redução do risco de sepse. Entretanto, nos gran- queimado o mais precocemente possível, preferencialmen-
des queimados, a falta de áreas doadoras limita a possibili- te por via enteral, por ter menor incidência de complica-
dade de desbridamento ao máximo de 20% de SCQ. Nestes ções, manter o trofismo intestinal e diminuir a translocação
casos, recomenda-se o uso de microbianos tópicos para bacteriana.
reduzir o risco de crescimento bacteriano e consequente A ingesta proteica recomendada é de 2,5 a 3g/kg/dia.
invasão da corrente sanguínea (Tabela 4). Para o cálculo da quantidade de calorias que deve ser for-
necida, utilizamos a fórmula de Curreri e Luterman (1978)
Tabela 4 - Antimicrobianos tópicos mais comuns e suas vantagens
= adultos: (25Kcal x P) + (40Kcal x %SCQ); e crianças: (40 a
e desvantagens
60Kcal) x P.
Vantagens Desvantagens
Como cerca de 20% dos pacientes desenvolvem íleo
- Indolor; paralítico nas primeiras 24 horas, deve ser passada sonda
- Visibilidade da
Silvadene
ferida;
nasogástrica. As úlceras gástricas pelo estresse, também
(sulfadiazina - Neutropenia. chamadas úlceras de Curling, são comuns nos pacientes
- Fácil uso (1 a 2x/d);
de prata)
- Mantém queimados. Por isso, sempre se deve realizar profilaxia com
mobilidade. protetor gástrico.
- Boa penetração na
escara;
- Visibilidade da
- Doloroso; 6. Tipos específicos de queimaduras
Sulfamylon - Droga de 2ª escolha;
ferida;
(acetato de - Hipocalemia;
- Não resistência
mafenida)
bacteriana;
- Inibição da anidrase A - Queimadura elétrica
carbônica pulmonar.
- Mantém Existem as lesões de baixa voltagem (<1.000V) e as de
mobilidade.
alta voltagem (>1.000V). Estas provocam destruição mais

57
CI RUR G I A D O TRAU M A

importante de tecidos. A queimadura elétrica verdadeira é - 3º grau >5% SCQ em qualquer idade;
aquela que apresenta porta de entrada e de saída da cor- - Queimaduras elétricas;
rente, e a lesão profunda é causada pela passagem da mes-
- Lesão inalatória;
ma. A lesão é proporcional à resistência do tecido, sendo
osso >músculo >nervo e vasos. - Queimadura circunferencial;
Outro tipo de situação é aquela chamada flash burn, em - Queimadura em pacientes com doenças associadas;
que não existe realmente a passagem de corrente pelo or- - Qualquer queimadura associada a trauma;
ganismo. Na verdade, ocorre uma explosão, e a queimadura - Hospitais sem condições ou pessoal especializado.
é causada por fogo. Não existe porta de entrada ou de saída
da lesão, e as feridas são mais simples e menos profundas.
É essencial a investigação completa do trauma, porque cos-
8. Resumo
tuma estar associado a explosões com risco de fraturas e Quadro-resumo
traumas abdominais. - O atendimento ao doente vítima de queimadura segue a
A lesão cardíaca é extremamente rara, com arritmias mesma padronização proposta pelo ATLS®;
transitórias. A monitoração cardíaca deve ser instituída nas - A indicação de via aérea definitiva deve ser precoce;
primeiras 24 a 48 horas. Ocorre lesão renal com a destrui-
- A reposição volêmica deve ser agressiva. A fórmula mais
ção de tecido muscular, havendo liberação de mioglobina utilizada é a proposta por Parkland, que repõe de 2 a 4mL/kg,
e a sua excreção renal (mioglobinúria). Esse pigmento gera por SCQ nas primeiras 24 horas;
nefrotoxicidade e risco de insuficiência renal. Para evitar tal - O socorrista deve ter em mente as situações que exigirão
quadro em traumas elétricos deve-se realizar uma hiper- tratamento em centro especializado.
-hidratação com 7mL/kg/%SCQ de cristaloide em 24h, al-
calinização da urina e estímulo de uma diurese osmótica
com manitol, para facilitar a eliminação de pigmentos de
mioglobina.
Também ocorre intenso dano muscular, com liberação
de mioglobina e edema muscular. Esse edema pode aumen-
tar a pressão dentro da fáscia, com risco de desenvolver sín-
drome compartimental. Assim, em toda queimadura elétri-
ca deve-se monitorar a circulação periférica nos membros.
Em caso de aumento, deve-se realizar a fasciotomia.

B - Queimaduras químicas
Geralmente, são mais profundas do que parecem. Po-
dem ser causadas por ácidos, álcalis, fenol ou fósforo. Em
geral, o tratamento principal deve ser a diluição com água
ou soro fisiológico. As queimaduras por ácidos são doloro-
sas, com ulcerações e lesões por necrose. Já as queimadu-
ras por álcalis são mais comuns no cotidiano, sendo mais
profundas que as provocadas por ácidos. Ocorre necrose de
liquefação e de coagulação.

7. Transferência para centro especializa-


do em queimados
Alguns pacientes devem ser encaminhados para avalia-
ção em unidades especializadas no tratamento de doentes
queimados, enquanto outros, mesmo nessas unidades, de-
vem ser internados.
Tabela 5 - Indicações de transferência do doente para unidades
de queimados
- 2º e 3º graus >10% SCQ em <10, se idade >50 anos;
- 2º e 3º graus >20% SCQ em qualquer idade;
- 2º e 3º graus, com lesões funcionais ou na face, nas mãos, nos
pés, na genitália, no períneo e nas articulações maiores;

58
CAPÍTULO

11
Lesões cervicais
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais músculo platisma, são as mais comuns e podem ser causa-
das por projéteis de arma de fogo, arma branca e objetos
- Divisão anatômica do pescoço; pontiagudos. Resultam, frequentemente, em lesões vascu-
- Avaliação inicial no trauma cervical; lares, nervosas ou de estruturas esqueléticas do pescoço. O
- Indicações de cervicotomia x possibilidade de trata- trauma fechado, geralmente, apresenta lesões associadas
mento conservador. extracervicais, particularmente lesões maxilofaciais, da ca-
beça e do tórax.

1. Introdução
A região cervical caracteriza-se pela concentração de es-
truturas vitais representativas de diversos sistemas diferen-
tes em uma área limitada. Estão presentes os sistemas car-
diovascular (artérias subclávia, carótida e vertebral, veias
jugulares e subclávias), respiratório (traqueia e laringe), di-
gestivo (faringe e esôfago), endócrino (tireoide) e nervoso
central (medula).
As lesões apresentam mortalidade de 7 a 18% quando
tratadas. O trauma cervical pode ser fechado ou penetrante
(Figura 1). As lesões penetrantes, aquelas que atravessam o Figura 1 - Ferimento cervical

Figura 2 - Anatomia da região cervical

59
CI RUR G I A D O TRAU M A

2. Anatomia cessitar de luxação da mandíbula e de craniotomias de


base para exploração local.
O pescoço é dividido pelo músculo esterno-
cleidomastóideo (ECM) em triângulos anterior e posterior.
Do ponto de vista cirúrgico, divide-se o pescoço em 3 zonas
(Figura 3).
- Zona I: abaixo da membrana cricotireóidea. São feri-
mentos da transição cervicotorácica, onde há estru-
turas vasculares importantes. O acesso a essa região
pode ser combinado cervicotorácico;
- Zona II: constitui a região cervical propriamente dita.
Os ferimentos dessa região podem ser completamente
explorados por meio de cervicotomia;
- Zona III: acima do ângulo da mandíbula até a base do Figura 3 - Divisões da região cervical: o ECM divide o pescoço em
crânio. Os acessos cirúrgicos são difíceis, podendo ne- trígono anterior e posterior

Figura 4 - Anatomia da região cervical, demonstrando as 3 zonas

3. Diagnóstico e avaliação inicial traindica a intubação nasotraqueal e a passagem de sonda


nasogástrica.
O paciente com lesão cervical deve ser atendido de
No exame físico das lesões penetrantes, identificam-se
acordo com as prioridades preconizadas pelo ATLS®. A via
aérea pode estar comprometida por lesão direta da larin- os orifícios de entrada e de saída para elucidar a trajetó-
ge ou da traqueia, hematoma em expansão ou por sangra- ria do agente agressivo e tentar determinar as possíveis
mento na via aérea. Nesses casos, deve ser assegurada uma lesões. Os ferimentos não devem ser tocados digitalmente
via aérea definitiva precocemente. A proteção da coluna ou explorados na sala de admissão, pelo risco de eliminar o
cervical é indispensável. tamponamento de uma possível lesão vascular que já tenha
A reposição volêmica é importante, principalmente na parado de sangrar.
suspeita de lesões vasculares. A região cervical pode ser Alguns sinais clínicos podem indicar a necessidade de
sede de traumatismos raquimedulares ou até mesmo le- exploração cirúrgica. Outros sinais e sintomas podem indi-
sões de base de crânio, que devem ser avaliadas já no exa- car a presença de lesões específicas nas estruturas do pes-
me primário. A suspeita de trauma de base de crânio con- coço (Tabela 1).

60
LESÕES CERVICAIS

Tabela 1 - Sinais e sintomas de lesões específicas na região cervical A - Tratamento não operatório
- Estridor;
A condução não operatória das lesões cervicais depen-
- Enfisema subcutâneo; de de alguns pré-requisitos. O doente deve estar estável do
Lesão de via aérea

CIRURGIA DO TRAUMA
- Disfagia; ponto de vista respiratório e hemodinâmico. Outro ponto
e digestiva superior
- Hemoptise ou hematêmese; importante é a disponibilidade de recursos diagnósticos no
- Epistaxe. serviço. Caso esses critérios não sejam estabelecidos, indi-
- Sangramento ativo; ca-se a cervicotomia.
- Hematoma expansivo ou pulsátil; Os exames realizados devem abranger os 3 principais
componentes anatômicos do pescoço, ou seja, os sistemas
- Sopro;
Lesão vascular
cardiovascular, respiratório e digestivo. Dessa maneira, a in-
- Ausência de pulso carotídeo, temporal vestigação deve incluir:
ou oftálmico;
- Hemiplegia, hemiparesia, afasia, cegueira Tabela 2 - Investigação para tratamento conservador
monocular hemisférica.
- Raio x de coluna cervical anteroposterior e lateral, incluindo as
- Desvio da língua; 7 vértebras cervicais, a base do crânio e a 1ª torácica;
- Déficit sensorial; - Angiografia dos sistemas carotídeo e vertebral. É o padrão-
Lesão neurológica
- Queda do canto da boca; ouro na lesão vascular, apesar de ser possível a utilização da
- Síndrome de Horner. ultrassonografia com Doppler ou da TC helicoidal multislice;
- Endoscopia digestiva alta rígida ou flexível e/ou esofagograma:
a sensibilidade do esofagograma é de 70 a 80%; a probabilidade
4. Tratamento de diagnóstico de lesão esofágica aumenta quando associado à
Há 2 condutas aceitas no tratamento dos ferimentos esofagoscopia;
cervicais (Figura 5). A 1ª opção é o tratamento cirúrgico - Laringoscopia e broncoscopia: para exclusão de lesão da laringe
mandatório para todas as lesões que violam o platisma. A e traqueia. A TC também pode avaliar lesão laríngea.
porcentagem de exploração negativa varia de 35 a 67%. As O trauma contuso é mais raro. A avaliação das lesões
vantagens são baixa incidência de lesões despercebidas e vasculares nesse caso começa com a realização de ultras-
morbimortalidade relativamente baixa. sonografia com Doppler, complementada, posteriormente,
A 2ª opção é a exploração seletiva. Nesse caso, quando com arteriografia, se necessário. Pode ocorrer lesão da
não estão presentes os fatores que indicam cervicotomia íntima com trombose de carótidas. A lesão raquimedular
imediata, o doente é submetido a uma série de exames, que deve ser avaliada com parâmetros clínicos e radiografia de
podem reduzir a taxa de exploração negativa em 10 a 20%. coluna cervical. A tomografia pode ser útil para as lesões de
laringe, principalmente nas tentativas de estrangulamento.
A lesão esofágica no trauma contuso é muito rara, e, geral-
mente, o diagnóstico é clínico.
Algumas lesões traqueais podem ser tratadas conserva-
doramente, desde que sejam menores que 1/3 da circun-
ferência da traqueia ou cartilaginosas. Também podem ser
tratadas conservadoramente lesões isoladas em doentes
oligossintomáticos.

B - Tratamento cirúrgico
Além das contraindicações para o tratamento não ope-
ratório, são indicações de cervicotomia exploradora a ins-
tabilidade hemodinâmica não responsiva, o hematoma em
expansão, a hemorragia externa profusa, a obstrução das
vias aéreas, a piora dos sinais neurológicos e o enfisema de
subcutâneo rapidamente progressivo.
a) Vias de acesso
A exploração do pescoço é feita por meio de incisão na
borda anterior do músculo esternocleidomastóideo, esten-
dendo-se desde o ângulo da mandíbula até a junção ester-
noclavicular. Para melhor exposição da zona III, é possível
Figura 5 - Conduta no trauma cervical deslocar a mandíbula anteriormente. Um prolongamento

61
CI RUR G I A D O TRAU M A

supraclavicular permite o acesso à zona I, podendo ser pro-


longada para uma esternotomia mediana ou combinada
com uma toracotomia. Quando for necessária exploração
cervical bilateral, as incisões
nas bordas anteriores do ECM poderão ser conectadas
(incisão “em colar”). É preciso ter em mente a posição do
ducto torácico à esquerda, já que sua lesão pode acarretar
fístula quilosa no pós-operatório.

Tabela 3 - Exemplos de indicação de cervicotomia exploradora


- Déficit neurológico com TC de crânio normal;
- Déficit de par craniano;
- Síndrome de Horner;
- Lesão de partes moles cervicais;
Figura 6 - Anastomose cricotraqueal ou traqueotraqueal: (A) dis-
- Lesões da glândula tireoide. secção e secção da área traumatizada. A seta aponta a porção
b) Lesão de via aérea membranosa 2mm mais comprida; (B, C e D) sutura posterior tipo
chuleio contínuo; (E) sutura contínua fixada com o 1º ponto sepa-
Deve-se suspeitar de lesões de laringe na avaliação ini- rado; (F) pontos separados nos anéis traqueais; e (G) anastomose
cial na presença da tríade rouquidão, enfisema e fratura completada
palpável; pois constituem uma das indicações de traqueos-
tomia na avaliação inicial. Sempre que se torna necessário Nos casos de suturas simples, devem ser realizadas com
o acesso à traqueia, deve-se ter em mente que o istmo da pontos separados:
tireoide pode ser ligado e seccionado para evitar sangra-
mentos e lesões iatrogênicas.
Lesões traqueais podem ser reparadas, realizando des-
bridamento e sutura primária. Lesões maiores, com perda
tecidual, são tratadas na fase inicial com traqueostomia
seguida de reconstruções traqueais programadas eletiva-
mente.
As anastomoses traqueais são realizadas conforme a Fi-
gura 6:
Figura 7 - Sutura simples da traqueia
c) Lesões do esôfago
Lesões diagnosticadas com menos de 12 horas do trau-
ma podem ser reparadas primariamente. Após 12 horas,
realiza-se a exclusão do órgão com uma esofagostomia cer-
vical e ampla drenagem, pelo risco de infecção cervical e
de mediastinite posterior. A esofagectomia fica reservada
aos casos de lesão de diagnóstico tardio no esôfago intra-
torácico.
Sempre que o paciente é submetido a uma sutura de
esôfago ou de hipofaringe, uma sonda nasoenteral deve ser
passada no intraoperatório para permitir o aporte nutricio-
nal no pós-operatório enquanto ocorre a cicatrização das
lesões.
d) Lesão vascular
As lesões venosas podem causar grandes hematomas
cervicais, principalmente no comprometimento da veia ju-
gular interna. Em ferimentos unilaterais, essa veia pode ser
ligada sem grandes repercussões clínicas para o paciente. Já
nas lesões bilaterais, a ligadura é factível, porém haverá ede-
ma facial importante e de difícil controle no pós-operatório.
Quanto às lesões arteriais, as lesões da carótida estão
presentes em 11 a 13% dos traumas cervicais. A artéria ca-

62
LESÕES CERVICAIS

rótida comum é acometida mais frequentemente. As lesões 5. Resumo


carotídeas devem ser tratadas com reparo primário, com a
utilização de shunt, quando necessário. A carótida externa Quadro-resumo
pode ser ligada.

CIRURGIA DO TRAUMA
- O atendimento ao doente com lesão cervical deve seguir as
A lesão carótida pode acontecer no trauma contuso, prioridades do ATLS®;
sendo, em 90% dos casos, lesão da artéria carótida interna. - A via aérea definitiva deve ser precoce na presença de lesões
Metade dos doentes permanece assintomática. suspeitas como hematomas expansivos ou sangramentos;
- O tratamento não operatório só pode ser indicado a doentes
estáveis hemodinamicamente em centros com todos os
recursos diagnósticos necessários;
- Ferimentos na zona I podem necessitar de acesso combinado
com toracotomias. Ferimentos na zona III, na presença de lesão
vascular, devem ser tratados com arteriografia seletiva.

Figura 8 - Lesão da artéria carótida comum por arma de fogo: foto


do intraoperatório

O acesso cirúrgico aos vasos cervicais nos terços pro-


ximal e médio do pescoço é possível por meio de incisão
longitudinal ou oblíqua anterior ao músculo ECM, do manú-
brio ao mastoide; seguida de abertura do músculo platisma,
com dissecção e rebatimento posterior do músculo ECM.
Realiza-se a ligadura do tronco venoso tireolinguofacial,
com amplo acesso à artéria carótida comum, à sua bifurca-
ção e à veia jugular interna (Figura 9).
Quando a lesão for mais alta, deverá ser realizada a ex-
tensão distal da incisão para a região infra-auricular poste-
rior com secção da inserção mastóidea do músculo ECM;
assim, associada ou não à fixação das arcadas dentárias
com a mandíbula em subluxação anterior, é possível isolar e
tratar lesões até 2cm da entrada da artéria carótida interna
no crânio. Trata-se de um acesso difícil, de modo que as le-
sões nessa região devem, sempre que possível, ser tratadas
por meio de arteriografia.

Figura 9 - Acesso aos vasos cervicais no terço proximal e médio do


pescoço

63
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

12
Trauma vascular
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais Mecanismo


Características da lesão
de trauma
- Sinais e sintomas de isquemia;
Fístula Nas lesões adjacentes de parede da artéria e
- Hematomas de retroperitônio; arteriovenosa veia.
- Lesões de aorta. Ocorre retração das bordas do vaso com
Transecção trombose, com isquemia da extremidade do
1. Introdução segmento acometido.

A presença de lesões vasculares no doente politrauma-


3. Avaliação inicial
tizado deve alertar para a presença de outras lesões. A in-
cidência desse tipo de lesão tem aumentado em virtude do O atendimento segue as mesmas prioridades do ATLS®.
crescimento dos ferimentos por projéteis de arma de fogo A prioridade é a via aérea pérvia com proteção da coluna
e da melhora do atendimento pré-hospitalar. cervical. Na avaliação da ventilação, é possível encontrar
dados sugestivos de lesão vascular, mais precisamente da
aorta torácica.
2. Etiologia Na avaliação da circulação, toda hemorragia externa deve
O trauma penetrante constitui a principal causa de fe- ser controlada. Durante a reposição volêmica, o socorrista
deve estar alerta quanto à necessidade de hemoderivados e
rimentos vasculares, chegando a 90% das lesões e sendo
solicitar avaliação precoce do cirurgião. Sempre que possível,
o melhor prognóstico nos ferimentos por arma branca. O
o cirurgião vascular deve estar presente na avaliação de do-
trauma contuso representa 10% das lesões e normalmente entes com suspeita de lesão de grandes vasos.
está associado a fraturas e lesões musculares ou de partes A maioria dos elementos propedêuticos presentes no trau-
moles. ma vascular é encontrada durante o exame secundário, sendo
É possível classificar as lesões vasculares de acordo com possível dividir em grupos sindrômicos conforme a apresenta-
o mecanismo de trauma e prever seu comportamento, con- ção clínica. A mais comum é a síndrome isquêmica, caracteri-
forme a Tabela 1. zada pelo método mnemônico dos 5 “Ps”: dor (pain), pareste-
sia, palidez, paralisia e ausência de pulso distal à lesão.
Tabela 1 - Classificação das lesões vasculares pelo mecanismo de A chamada síndrome tumoral acontece nos hematomas
trauma pulsáteis ou expansivos, caracterizando pseudoaneurisma ou
Mecanismo fístula arteriovenosa. E a síndrome hemorrágica se manifesta
Características da lesão
de trauma como sangramento, podendo causar choque hipovolêmico.
Forma-se um hematoma intramural, que pode
Contuso
evoluir para pseudoaneurisma. 4. Conduta
Ocorre disrupção intimal com perda do contorno
Tração Os doentes estáveis, sem sangramento ativo ou isque-
liso normal do lúmen, sem lesão externa.
mia aguda, devem ser submetidos a exames complemen-
Punção A punctura também pode causar pseudoaneurisma.
tares. Na suspeita de trauma vascular exclusivo, realiza-se
Ocorre disrupção lateral, com destruição da a arteriografia, método com a vantagem de ser diagnóstico
Lesão parede lateral do vaso. Causa sangramento e terapêutico. Durante o exame, a parada da progressão da
tangencial ativo e hematoma pulsátil; se em área contida, coluna de contraste (stop) indica trombose arterial. Irregu-
pseudoaneurisma.
laridades da parede arterial ou falha de enchimento indi-

64
TRAUMA VASCULAR

cam lesão da íntima, hematoma de parede ou compressão A ligadura pode ser realizada em todas as periféricas e
externa. Pode ocorrer extravasamento de contraste nas na maioria das veias do tronco. Pequenas artérias periféri-
lesões maiores, além de enchimento venoso precoce nas cas abaixo do joelho e do cotovelo podem ser ligadas, além
fístulas arteriovenosas. de outras maiores, como a artéria carótida externa e a ar-

CIRURGIA DO TRAUMA
Na indisponibilidade do meio, ou a pacientes instáveis téria ilíaca interna.
hemodinamicamente, indica-se a cirurgia. Algumas lesões Os shunts intraluminais temporários são utilizados para
com indicação cirúrgica sem a necessidade de exames são manter a perfusão distal à artéria lesada e estão indicados
os sangramentos maciços, hematomas pulsáteis ou expan- quando o doente necessita de transferência para um cen-
sivos, sintomas isquêmicos ou indicação de cirurgia de ur- tro de trauma, em cirurgias combinadas ou na cirurgia de
gência por outras lesões. controle de danos. O tempo de patência dos shunts sem
Do ponto de vista técnico, o controle do sangramento é anticoagulação é de, pelo menos, 6 horas.
o princípio mais importante. O objetivo é prevenir a isque- Indica-se fasciotomia aos casos de síndrome comparti-
mia com um reparo rápido. O diagnóstico preciso é mais mental, para prevenir lesões nervosas ou isquêmicas irre-
importante para prevenir complicações tardias, como pseu- versíveis. Pode ser necessária em decorrência do atraso do
doaneurisma e fístulas arteriovenosas. reparo vascular e da intensidade do edema. É importante
Os princípios cirúrgicos baseiam-se em controle e expo- ressaltar que o 1º sintoma da síndrome compartimental é a
sição. Inicialmente, é feito um controle proximal e distal, e dor, e não a ausência de pulso.
só posteriormente é acessado o sítio da lesão. As pequenas
lacerações ou ferimentos puntiformes podem ser tratados
com sutura da parede do vaso (Figura 1A). Se a sutura de-
termina estenose, é feita uma angioplastia.
Quando houver destruição maior da parede, poderá ser
feita ressecção com anastomose terminoterminal. Ressecção
com interposição de enxerto é mais usada em decorrência
de lesões maiores causadas por projéteis de arma de fogo. O
enxerto com veia safena invertida do membro não envolvido
é a melhor escolha para a maioria dos traumas periféricos
(Figura 1B). Se não houver essa possibilidade, poderão ser
utilizados enxertos sintéticos de PTFE ou dácron.

Figura 2 - Fisiopatologia da síndrome compartimental e da fascio-


tomia em membro inferior

5. Lesões vasculares específicas

A - Cervicais
A oclusão completa da artéria carótida extracraniana
pode levar à hemiplegia aguda, afasia e outros sintomas em
20 a 50% dos doentes, dependendo do polígono de Willis,
do nível de oclusão da carótida (comum ou interna) e da
pressão sanguínea.
Figura 1 - Manejo do trauma vascular: (A) sutura direta do vaso A carótida comum ou interna deve ser sempre reparada,
com ponto contínuo de fio absorvível e (B) reparo arterial e inter- enquanto a carótida externa pode ser ligada. A veia jugular
posição de enxerto de safena para reparo venoso externa geralmente é ligada quando lesada, e a veia jugular

65
CI RUR G I A D O TRAU M A

interna tem, como conduta preferencial, a sutura lateral; da cava retro-hepática. Outro grupo importante de lesões
porém, quando a lesão é extensa, pode ser ligada. Frequen- são os hematomas de retroperitônio (Tabela 2).
temente, os pacientes evoluirão com edema de face, princi-
palmente nas lesões bilaterais. Tabela 2 - Conduta nos hematomas retroperitoneais
Zona Limites anatômicos Conduta
B - Torácicas Sempre devem ser explorados
Central: compreende
São lesões graves e de mortalidade extremamente ele- cirurgicamente (manobra de
I pâncreas, aorta e
vada. Apenas 10% dos pacientes chegam com vida ao hos- Kocher e acesso pela abertura
cava abdominal
pital. A lesão da aorta torácica é a mais comum, e o princi- do ligamento gastroepiploico)
pal mecanismo de trauma que ocasiona as lesões torácicas Laterais direita
é a desaceleração vertical ou horizontal. A localização mais e esquerda; Devem ser explorados os
comum é o ligamento arterial (ligamento de Botallo), por compreende os hematomas expansivos ou
II
rins, baço e porções pulsáteis (manobra de Catel e
ser o ponto mais fixo do arco aórtico. A 2ª lesão mais co-
retroperitoneais Mattox)
mum é de veia inominada. do cólon
O diagnóstico torna-se suspeito com a radiografia de tó-
Não devem ser abordadas
rax na avaliação inicial (Figura 3A). Na presença de alterações
cirurgicamente. Lesões dessa
radiográficas e nos doentes estáveis hemodinamicamente, é III Pelve região devem ser conduzidas
possível realizar exames complementares para a confirmação com arteriografias diagnóstica
diagnóstica. A arteriografia ainda é considerada padrão-ouro e terapêutica
(Figura 3B), mas, com as melhores máquinas de Tomografia
Computadorizada (TC), diversos centros estão adotando a TC
helicoidal multislice na avaliação dessas lesões.

Figura 3 - Rotura traumática de aorta: (A) alargamento de me-


diastino no raio x de tórax – nesta imagem, é possível observar o
mediastino >6cm, apagamento do botão aórtico com obliteração
da janela aórtico-pulmonar e desvio do brônquio-fonte esquerdo
para baixo; e (B) arteriografia confirmando o local da lesão (seta)
1 - pâncreas, aorta e veia cava abdominais; 2 - rins, baço e cólon
O tratamento deve ser realizado por um cirurgião qua- e 3 - pelve
lificado em operações cardiovasculares. Pode-se realizar
sutura primária da aorta ou ressecção com interposição De maneira geral, o tratamento de lesões vasculares
de enxerto. Inicialmente, administra-se beta-bloqueador exige os controles proximal e distal da lesão antes de sua
associado ou não ao nitroprussiato, para reduzir a pressão abordagem propriamente dita. Nos ferimentos por arma de
arterial, diminuindo o risco de ruptura do hematoma. Mais fogo, a lesão deve ser debridada e suturada primariamente
recentemente, o tratamento cirúrgico, que implica alta com fio de polipropileno 4-0 ou 5-0. Em caso de estenose
morbimortalidade (15% de paraplegia), tem sido substitu- na realização da sutura ou de lesão muito extensa, deve-se
ído pelo tratamento endovascular minimamente invasivo, utilizar um patch venoso (normalmente com veia safena).
com colocação de stents intra-aórticos. Nas difíceis lesões posteriores da veia cava inferior,
pode-se abrir mão de uma manobra interessante, que con-
C - Abdominais siste em uma venotomia anterior (com o devido controle
Lesões abdominais podem causar quadros de difícil re- proximal e distal) para abordar a lesão diretamente dentro
solução, como na lesão da artéria mesentérica superior ou da veia cava (Figura 4).

66
TRAUMA VASCULAR

CIRURGIA DO TRAUMA
Figura 6 - Manobra de Catell: tração do duodeno e do pâncreas
com exposição da aorta

Figura 4 - Venotomia anterior para abordar lesão dentro da veia cava

Lesões de veia cava inferior suprarrenal, mas infra-hepá-


tica, são abordadas diretamente pela manobra de Kocher,
enquanto as lesões de veia cava inferior retro-hepática são
um grande desafio, pois é um local de difícil acesso e são de
alta mortalidade, assim como as lesões de veia cava supra-
-hepáticas. Uma opção nesses casos é a derivação cavoa-
trial para posteriormente acessar a lesão (soltando os liga-
mentos triangulares do fígado e o ligamento falciforme). A
mortalidade é alta tanto pela gravidade da lesão como pela
dificuldade do acesso cirúrgico.

Figura 7 - Manobra de Mattox: rotação das vísceras do lado es-


querdo para o direito

D - Extremidades
Podem ocorrer em traumas penetrantes ou contusos.
É bem estabelecida a relação entre luxação posterior do
joelho com lesão de artéria poplítea (Figura 8). As le-
sões de membros devem ser avaliadas de forma multi-
disciplinar por cirurgiões geral, vascular e ortopedista. A
principal preocupação nesses casos é a preservação do
membro, o que nem sempre é possível, principalmente
na presença de fraturas e de lesões de partes moles as-
sociadas.
Aos doentes estáveis hemodinamicamente, indica-se a
arteriografia com embolização seletiva. Caso a cirurgia seja
necessária, o tratamento pode ser feito com rafia primária,
derivações ou colocação de próteses, dependendo da ex-
Figura 5 - Manobra de Kocher: rotação medial do duodeno para tensão da lesão e das condições clínicas do doente no in-
liberação deste órgão do retroperitônio traoperatório.

67
CI RUR G I A D O TRAU M A

Figura 8 - Aneurisma de poplítea: (A) apresentação clínica; (B) confirmação por tomografia computadorizada com contraste; (C) achado
operatório e (D) retirada do aneurisma com colocação de prótese sintética

E - Complicações pós-operatórias
Podem ser divididas em precoces (sangramento, trombose e infecção) e tardias (pseudoaneurisma, fístula arterioveno-
sa e trombose). As ligaduras venosas podem evoluir com edema da região a montante, que tendem a regredir com o tempo.
O tratamento pode variar de acordo com a gravidade do caso e dos recursos da instituição.

6. Resumo
Quadro-resumo
- O atendimento ao doente com lesões vasculares deve seguir a padronização do ATLS®;
- Sempre que possível, a arteriografia deve ser realizada. Além de diagnóstica, pode ser terapêutica, com a vantagem de ser minimamente
invasiva;
- A avaliação deve ser multidisciplinar na conduta terapêutica e no tratamento das complicações.

68
CAPÍTULO

13
Avaliação inicial do trauma de face
André Oliveira Paggiaro / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais 3. Exames de imagem


A avaliação radiológica é necessária para o diagnóstico
- Atendimento inicial; de fraturas dos ossos da face. As principais incidências que
devem ser realizadas são a posteroanterior axial (incidência
- Avaliação radiológica; de Caldwell), perfil axial, submento-vértice (incidência de
- Principais lesões por áreas da face. Hirtz), anteroposterior de mandíbula (incidência de Towne),
parietoacantal (incidência de Waters), além da panorâmica
de mandíbula para avaliar a arcada dentária (Figura 1). Para
1. Introdução a realização desses exames, é preciso que sejam excluídas
A face, um segmento corporal de grande importância lesões de coluna cervical, já que devem ser realizados sem
por representar a identidade e a individualidade das pesso- colar cervical.
as, é a principal unidade estética do corpo, e a sua localiza-
ção é bastante suscetível a traumas.
O trauma de face tem incidência elevada, e a sua princi-
pal etiologia são os acidentes automobilísticos, que podem
representar até 80% dos casos. Requer uma abordagem
multidisciplinar e especializada para garantir um atendi-
mento adequado e minimizar as sequelas funcionais e es-
téticas.

2. Avaliação inicial
O atendimento segue a padronização do ATLS®. Muitas
vezes, a via aérea pode estar comprometida por sangra-
mento, corpos estranhos ou fraturas. A intubação traqueal
pode ser difícil nesses casos, e por vezes a via aérea definiti-
va só é obtida por meio de cricotireoidostomia. A proteção
à coluna cervical é indispensável aos pacientes, pelo risco Figura 1 - Radiografias de face: (A) PA axial; (B) perfil axial; (C)
de lesão associada. submento-vértice; (D) AP axial da mandíbula; (E) parietoacantal e
A avaliação da face também pode sugerir lesões neu- (F) panorâmica de mandíbula
rológicas. Equimose periorbital, equimose do mastoide e
saída de sangue ou liquor pelo ouvido indicam trauma de A realização dessas radiografias exige radiologistas habi-
base de crânio. Lesões de grande impacto, com exposição tuados, e elas podem ser de difícil interpretação. O exame
ou crepitação da calota craniana devem, obrigatoriamente, considerado padrão-ouro na avaliação do trauma de face é
ser avaliadas por neurocirurgião. a Tomografia Computadorizada (TC) em incidência coronal
Durante o exame secundário, toda a face e o couro ca- e axial (Figura 2). Sempre que possível, a reconstrução tri-
beludo devem ser examinados, à procura de lesões de par- dimensional deve ser realizada, principalmente no planeja-
tes moles, fraturas e lesões combinadas. Sempre que pos- mento terapêutico das fraturas faciais.
sível, o cirurgião plástico deve avaliar os pacientes após a É importante ressaltar que a TC só deve ser realizada em
estabilização respiratória e hemodinâmica. doentes estáveis hemodinamicamente e não deve retardar

69
CI RUR G I A D O TRAU M A

a transferência caso o serviço não disponha de condições


para o tratamento definitivo do paciente.

Figura 2 - Tomografia de face: (A) incidências coronal e (B) axial e


(C) reconstrução tridimensional

4. Principais lesões Figura 3 - Classificação de Le Fort para as fraturas de maxila

O tratamento das fraturas de maxila é complexo e exige


A - Fraturas de órbita equipe especializada em cirurgia craniofacial. A necessida-
As fraturas de órbita podem ser intra, supra ou infra- de de desimpactação e o reposicionamento de estruturas
orbitárias, além das fraturas zigomáticas. Clinicamente, po- são frequentes, e muitas vezes os pacientes necessitarão de
dem manifestar-se com hematoma ou edema periorbitário, diversos procedimentos para uma recuperação funcional
hemorragia subconjuntival, irregularidades no rebordo or- adequada.
bitário, obliquidade da fenda palpebral, anestesia regional
e dificuldade em abrir a boca. D - Fraturas de mandíbula
As fraturas da região zigomática podem ser tratadas As fraturas de mandíbula mais frequentes ocorrem no
imediatamente ou após diminuição do edema, cerca de 14 côndilo (36%), seguido do corpo (21%) e do ângulo da man-
dias após o trauma. Quanto às fraturas intraorbitárias, o díbula (20%). Nas fraturas de côndilo, observa-se desvio da
tratamento pode ser conservador nas falhas menores que mordida para o lado contralateral à lesão, além de dor e
0,5cm e nos pacientes assintomáticos. O tratamento dessas edema na articulação temporomandibular (ATM).
lesões exige a reconstrução do assoalho da órbita. Desvios menores que 45° podem ser tratados conser-
vadoramente. Demais casos podem ser tratados com redu-
B - Fraturas de nariz ção cruenta e fixação com miniplacas. A odontossíntese é
O nariz é a principal sede de lesões da face. A avaliação comum nesses casos, reforçando a necessidade da aborda-
compreende tanto a parte óssea quanto a cartilaginosa. É gem multidisciplinar.
importante o diagnóstico de hematoma septal, que carac-
teriza quadro de urgência, devendo ser drenado precoce- 5. Resumo
mente em centro cirúrgico, seguido de antibioticoterapia.
Quadro-resumo
O tratamento das outras lesões pode ser imediato, pre-
coce (até 14 dias) ou tardio, para reparo de cicatrização er- - O atendimento aos doentes com trauma de face segue a pa-
dronização do ATLS®. A necessidade de via aérea cirúrgica é
rônea.
comum nesses pacientes;
C - Fraturas de maxila - A TC com cortes axiais e coronais é o padrão-ouro para diag-
nóstico;
As fraturas de maxila estão associadas a traumas de alto - Hematoma septal é considerado urgência e deve ser tratado
impacto. Normalmente, essas lesões estão presentes em precocemente com drenagem e antibioticoterapia;
politraumatizados graves, e a via aérea cirúrgica deve ser - A fratura de maxilar está associada a traumas de alto impacto
precoce. e necessita de via aérea cirúrgica precoce.
A classificação das lesões de maxila é proposta por Le
Fort (Figura 3). As fraturas tipo Le Fort I ocorrem transver-
salmente por meio da maxila, acima do ápice dos dentes. As
fraturas Le Fort II, ou piramidais, passam lateralmente pelos
ossos lacrimais, por intermédio do rebordo infraorbitário e
do assoalho da órbita. Por fim, nas fraturas tipo Le Fort III,
ocorre a disjunção craniofacial.

70
CAPÍTULO

14
Trauma da transição toracoabdominal
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais 3. Etiologia


- Limites anatômicos; Os traumas na TTA podem ser fechados ou penetrantes.
- Algoritmo de conduta. No tórax, as estruturas mais comumente acometidas são,
respectivamente, o pulmão, o coração e os grandes vasos, e o
1. Introdução esôfago. No abdome, o fígado, seguido do baço, o cólon e os
órgãos retroperitoneais são as estruturas mais acometidas.
O trauma na transição toracoabdominal (TTA) constitui No trauma contuso, a cinemática do trauma pode forne-
um desafio diagnóstico e terapêutico para o cirurgião devi- cer dados importantes na elaboração de hipóteses diagnós-
do à possibilidade de lesões de múltiplos órgãos e das vias ticas. Colisões com grande força de impacto podem causar
de acesso para seu tratamento. O socorrista deve valorizar hérnias diafragmáticas traumáticas (Figura 2). Ao contrário
dados da história e manter as prioridades do ATLS® durante do que muitos acreditam, a incidência de hérnias diafrag-
o exame primário para a correta condução desses casos. máticas é igual à esquerda a à direita, já que o fígado não
realiza nenhum tipo de proteção ao músculo diafragma. A
2. Limites anatômicos razão pela qual a maioria das hérnias diagnosticadas e tra-
tadas nos serviços de emergências é localizada à esquerda
A 1ª dificuldade na condução dos casos está em estabe-
está no fato de que, quando há lesão do diafragma à direita,
lecer os limites da TTA. Como o diafragma está em constan-
com herniação do fígado, normalmente os doentes não so-
te movimentação, os órgãos comprometidos podem variar brevivem às primeiras horas após o trauma e acabam evo-
se o trauma ocorreu durante a inspiração ou expiração. Di- luindo a óbito no pré-hospitalar.
daticamente, considera-se a TTA como a região localizada
anteriormente no 4º espaço intercostal (linha dos mami-
los), lateralmente no 6º espaço intercostal e, posteriormen-
te, no rebordo costal (Figura 1).

Figura 1 - Limites da transição toracoabdominal

71
CI RUR G I A D O TRAU M A

os mesmos passos, sempre com a necessidade da avaliação


precoce pelo cirurgião. A avaliação neurológica pode estar
alterada na presença de outras lesões associadas. A expo-
sição do doente com avaliação completa do dorso é impor-
tante para evitar lesões despercebidas.

5. Condutas
A conduta a ser seguida dependerá principalmente da
estabilidade do paciente e do mecanismo de trauma. Pa-
cientes estáveis do ponto de vista respiratório e hemodi-
nâmico permitem a realização de exames complementares
antes que se decida pela necessidade ou não de cirurgia.
Já nos pacientes instáveis e com trauma penetrante, está
indicada cirurgia, que pode ser por via torácica, abdominal
ou combinada.

A - Paciente estável hemodinamicamente


Como preconizado pelo ATLS®, o raio x de tórax deve
ser o 1º exame na avaliação dos pacientes. Já pelo raio x,
associado ao quadro clínico, é possível determinar a con-
duta (Figura 3).

Figura 2 - Hérnias diafragmáticas: (A) raio x com perda do contor-


no do diafragma à direita, associado a hemotórax; (B) intraope-
ratório confirmando a laceração diafragmática; e (C) raio x com
hérnia diafragmática esquerda confirmada em (D) tomografia evi-
denciando estômago e baço herniados

No trauma penetrante por arma branca, é comum le-


são combinada do tórax e abdome. A exploração digital
com técnicas de assepsia e antissepsia pode auxiliar no
diagnóstico. Nos ferimentos por projétil de arma de fogo,
os orifícios de entrada e saída já podem sugerir a lesão de
diafragma. Quando não há orifício de saída, radiografias
com marcação do orifício de entrada podem contribuir na Figura 3 - Conduta no trauma da transição toracoabdominal: se
determinação dos trajetos. houver suspeita de que a origem do hemotórax seja abdominal,
indica-se a laparotomia
4. Avaliação inicial No diagnóstico de hemo e/ou pneumotórax, este deve
O atendimento dos pacientes com trauma na TTA segue ser tratado. Persistindo a estabilidade hemodinâmica, a To-
as mesmas prioridades propostas pelo ATLS®. A via aérea mografia Computadorizada (TC) passa a ser um bom exa-
deve estar livre, e, sempre que necessário, uma via aérea me, pois pode avaliar tanto o tórax quanto o abdome e, na
definitiva deve ser obtida. A coluna cervical deve estar pro- opção de tratamento não operatório no trauma contuso,
tegida desde o início do tratamento. serve como parâmetro na avaliação do doente.
Na avaliação da ventilação, é possível a ocorrência de Nos ferimentos penetrantes com doente estável hemo-
hemo e/ou pneumotórax, que devem ser tratados no exa- dinamicamente, pode-se completar o raio x de tórax com TC
me primário. É importante ressaltar que, quando há dimi- de abdome (Figura 4). Esses exames auxiliam na decisão da
nuição do murmúrio vesicular à esquerda, a hérnia diafrag- via de acesso. Outros que podem servir para diagnóstico e
mática deve ser excluída para evitar drenagem iatrogênica tratamento são a videotoracoscopia e videolaparoscopia. A
do tórax com estruturas abdominais herniadas. toracoscopia pode ser utilizada nos doentes com lesão torá-
O doente pode apresentar-se instável hemodinamica- cica estabelecida, enquanto a laparoscopia seria destinada
mente por diversos motivos. A reposição volêmica segue àqueles com suspeita de lesão principalmente abdominal.

72
TRAUMA DA TRANSIÇÃO TORACOABDOMINAL

CIRURGIA DO TRAUMA
Figura 4 - Trauma transfixante do mediastino e da transição toracoabdominal, com paciente estável durante toda a avaliação inicial: (A)
raio x de tórax evidenciando orifício de entrada à esquerda e projétil alojado no hipocôndrio direito; (B) TC de tórax evidenciando hemope-
ricárdio, contusão pulmonar e hemotórax esquerdo; (C) TC de abdome com líquido livre peri-hepático; e (D) achado de lesão do ventrículo
direito. O paciente foi submetido à esternotomia com laparotomia exploradora que também evidenciou lesão hepática. Recebeu alta
hospitalar no 5º dia de pós-operatório (Bertolli et al., Anais do Congresso da SBAIT, 2006; Revista MedAtual nº 1, 2010)

Exames como broncoscopia, endoscopia digestiva alta Lesões complexas, como lesão da veia cava retro-hepá-
e arteriografia podem ser realizados de acordo com o caso. tica, podem necessitar de acesso combinado por toracofre-
Na indisponibilidade desses recursos diagnósticos, ou caso nolaparotomia. Na suspeita de lesão cardíaca, é possível
o doente evolua com instabilidade hemodinâmica, indica- realizar a janela pericárdica transdiafragmática. Caso haja
-se a cirurgia conforme será discutido a seguir. confirmação do achado de lesão cardíaca, é possível combi-
nar uma toracotomia esquerda ou esternotomia mediana.
B - Paciente instável hemodinamicamente
Mesmo no paciente instável hemodinamicamente, o 6. Resumo
raio x de tórax pode ser realizado na sala de emergência. Na
presença de achados torácicos, realiza-se a drenagem pleu- Quadro-resumo
ral. Na saída de mais de 1.500mL de sangue, está indicada - Define-se TTA a região localizada anteriormente no 4º espaço
a toracotomia. Caso o tórax não apresente nenhuma lesão intercostal, lateralmente no 6º espaço intercostal e, posterior-
mente, no rebordo costal;
aparente, e persistindo o choque, está indicada a laparoto-
mia exploradora. - O atendimento dos pacientes segue as prioridades do ATLS®;
O achado de hérnia diafragmática pode ser tratado tan- - No doente estável hemodinamicamente, é possível realizar exa-
to por via abdominal quanto por via torácica. Entretanto, mes complementares, além de toracoscopia e laparoscopia. Ao
a maioria dos serviços acaba realizando a correção por la- doente instável, indica-se a cirurgia de acordo com o principal
parotomia, eventualmente com toracoscopia associada ou sítio lesado.
simplesmente com a drenagem torácica após a redução da
hérnia.

73
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO

CAPÍTULO

15
Trauma na gestante
Eduardo Bertolli

Pontos essenciais

- Alterações anatômicas e fisiológicas na gravidez;


- Mecanismos de trauma;
- Atendimento à gestante politraumatizada.

1. Introdução
Qualquer mulher em idade fértil pode estar grávida. A
gravidez causa mudanças anatômicas e funcionais que de-
vem ser consideradas no atendimento à gestante politrau-
matizada. Além disso, o socorrista deve se lembrar que está
diante de 2 vítimas: a mãe e o feto. O melhor tratamento
inicial para o feto é a adoção das medidas adequadas de
reanimação para a mãe. Uma abordagem multidisciplinar é
fundamental para obtenção de bons resultados.

2. Alterações anatômicas e fisiológicas na


gravidez
Figura 1 - Evolução do útero na gravidez
A grávida, assim como a criança, não constitui, per se,
uma prioridade no atendimento inicial ao trauma com múl- O crescimento uterino traz aumento do volume de líqui-
tiplas vítimas. Entretanto, a gestação acarreta mudanças no do amniótico, o que poderá causar embolia e coagulação
organismo materno, gerando algumas peculiaridades no intravascular disseminada se ganhar acesso ao intravascu-
atendimento inicial. lar. Também ocorrem distensão dos vasos placentários e
maior sensibilidade às catecolaminas, de modo que a re-
A - Alterações anatômicas dução abrupta de volume circulante materno poderá resul-
tar em aumento da resistência vascular uterina, reduzindo
O útero permanece intrapélvico até a 12ª semana de a oxigenação fetal mesmo sem alteração dos sinais vitais
gestação, alcança a cicatriz umbilical na 20ª semana e atin- maternos.
ge o rebordo costal entre a 34ª e a 36ª semanas (Figura 1).
Nesse período, há o deslocamento do intestino, que se tor- B - Alterações fisiológicas
na parcialmente protegido, enquanto o útero e o feto se As principais alterações fisiológicas da gravidez estão lis-
tornam mais vulneráveis. tadas na Tabela 1.

74
T R A U M A N A G E S TA N T E

Tabela 1 - Alterações fisiológicas na gravidez


Sistema Alterações Repercussão no trauma
- Aumento de volume plasmático com - Anemia fisiológica da gravidez;

CIRURGIA DO TRAUMA
manutenção do hematócrito; - Alteração na interpretação de dados hemodinâmicos no
Hemodinâmico - Aumento do DC e FC, e queda da PA; diagnóstico de choque;
- Compressão da veia cava pelo útero - Pode ocorrer diminuição do retorno venoso que mimetiza
gravídico. choque hipovolêmico.
- Aumento do volume/minuto e diminuição do
Respiratório - Maior consumo de oxigênio.
volume residual pulmonar.
- Retardo no esvaziamento gástrico e êmese
Gastrintestinal - Maior risco de vômitos e aspiração.
gravídica.
- Aumento FG e fluxo plasmático renal; a
Urinário
glicosúria é comum.
-
- Aumento da hipófise, podendo levar à
Endócrino
necrose anterior e insuficiência hipofisária.
-
- Alargamento da sínfise púbica;
- Interpretação de imagens no trauma pélvico;
Musculoesquelético - Embebição das articulações pélvicas e
- Maior gravidade do sangramento nas lesões da bacia.
hipertensão do sistema venoso pélvico.
- Eclâmpsia (convulsões, hipertensão, hiper-
Neurológico - Diagnóstico diferencial com TCE.
reflexia e proteinúria).

3. Mecanismo de trauma O tratamento do choque deve ser agressivo, pois pode


haver sofrimento fetal antes que os parâmetros hemodinâ-
Os mecanismos de trauma costumam ser semelhantes micos maternos se alterem devido ao aumento do volume
àqueles que acontecem na mulher não grávida. intravascular da gestante. A compressão da veia cava pelo
No trauma abdominal fechado, o feto é protegido pelo útero pode diminuir o retorno venoso e agravar o choque.
miométrio e líquido amniótico. Podem ocorrer lesões indi- O útero deve ser deslocado manualmente à esquerda, ou a
retas por compressão, desaceleração, contra golpe ou cisa- gestante deve ser mantida em inclinação de 15°, conservan-
lhamento. O uso inadequado de cintos de segurança que do-se a imobilização com prancha e em bloco.
só protegem a pelve aumenta a chance de rotura uterina e O exame neurológico deve alertar para um quadro de
descolamento de placenta. eclâmpsia.
No trauma penetrante, o útero confere proteção às vís- A avaliação secundária também segue os mesmos prin-
ceras abdominais. Por outro lado, a lesão uterina penetran- cípios. No trauma abdominal, as indicações dos testes diag-
te associa-se a prognósticos fetais muito ruins. nósticos são as mesmas, com a ressalva de que o Lavado
A violência doméstica é, infelizmente, causa significativa Peritoneal Diagnóstico (LPD) deve ser realizado acima da
de trauma em gestantes. Na suspeita de agressão, cabe ao cicatriz umbilical, sempre pela técnica aberta. A escala de
médico notificar o profissional legalmente habilitado para lesão uterina está descrita a seguir.
as providências e não permitir a alta da mãe.
Tabela 2 - Escala de trauma de útero gravídico pela AAST
4. Atendimento à gestante traumatizada I Contusão/hematoma sem desprendimento da placenta.
Laceração superficial (<1cm) ou desprendimento parcial da
II
placenta (<25%).
A - Avaliação materna
Laceração profunda (>1cm) no 2º trimestre ou desprendi-
A avaliação das vias aéreas e as indicações de via aérea III mento parcial de placenta >25% mas <50%;
definitiva são as mesmas da paciente não grávida, sempre Laceração superficial (<1cm) no 3º trimestre.
com proteção da coluna cervical. As lesões torácicas tam-
Laceração da artéria uterina;
bém são tratadas da mesma maneira, com o cuidado de
IV Laceração profunda (>1cm) com desprendimento de placen-
uma drenagem torácica num espaço intercostal mais alto
ta >50%.
para evitar iatrogenias. A gravidez não contraindica a ava-
liação radiológica, desde que sejam tomadas as precauções Ruptura uterina;
V
adequadas de proteção à radiação. Desprendimento completo da placenta.

75
CI RUR G I A D O TRAU M A

B - Avaliação fetal
As principais causas de morte fetal são o choque ma-
terno e a morte da mãe. A 2ª causa é o descolamento de
placenta, que pode ser sugerido por sangramento vaginal,
dor à palpação uterina, contrações frequentes, tetania ou
irritação uterina. A ruptura uterina é uma lesão rara.
A monitorização contínua dos batimentos cardíacos fe-
tais deve ser feita após 20 a 24 semanas. O obstetra deve
ser envolvido precocemente e conduzir o caso em conjunto
com a equipe do serviço de emergência.
A internação é obrigatória quando há sangramento va-
ginal, irritabilidade uterina, dor abdominal, evidência de hi-
povolemia ou sinais de sofrimento fetal. O feto pode correr
risco mesmo em traumatismos maternos aparentemente
leves.

C - Tratamento definitivo
O obstetra deve ser consultado diante de problemas
específicos, como descolamento placentário e embolia am-
niótica, pela possibilidade de a paciente necessitar de uma
evacuação uterina.
Quando a mãe for Rh negativo, haverá o risco de isoimu-
nização, sendo necessária a terapêutica com imunoglobuli-
na Rh nas primeiras 72 horas após o trauma. Somente ges-
tantes Rh negativo com lesões isoladas em extremidades
não necessitarão de imunoglobulina.
São poucas as evidências na literatura que apoiam a
cesariana post mortem em gestantes que sofrem parada
cardíaca por hipovolemia. É possível obter algum resultado
caso a parada aconteça por outra causa e a cesariana possa
ser realizada em até 5 minutos após o ocorrido.

5. Resumo
Quadro-resumo
- O melhor tratamento para o feto é o tratamento adequado da
mãe;
- O choque deve ser tratado agressivamente, mesmo que os
sintomas sejam pouco evidentes;
- O obstetra deve ser envolvido precocemente;
- Questões como compressão uterina e isoimunização devem ser
sempre lembradas.

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