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Índice....................................................................................................................1
Lista de abreviaturas.............................................................................................9
PRIMEIRA PARTE Elementos introdutórios........................................................11
I Lição Evolução histórica..................................................................................12
A. Objetivo.............................................................................................................12
B. Os primórdios do direito internacional..............................................................12
1. A Idade Antiga.............................................................................................................12
2. A Idade Média.............................................................................................................15
C. A formação do direito internacional eurocêntrico.............................................17
D. A universalização do direito internacional........................................................19
1. A paz pelo direito.........................................................................................................19
2. A ordem jurídica internacional do pós-guerra.............................................................20
3. A ordem jurídica internacional contemporânea...........................................................21
IILição Noção e objeto do direito internacional.................................................25
A. Objetivo.............................................................................................................25
B. O vocábulo, o âmbito e os sentidos...................................................................25
C. As diversas definições e o seu enquadramento.................................................26
1. O critério dos sujeitos..................................................................................................26
2. O critério do objeto......................................................................................................27
3. O critério da forma de produção das normas...............................................................27
III.........................Lição Fundamento da obrigatoriedade do direito internacional
31
A. Objetivo.............................................................................................................31
B. Principais contribuições doutrinais....................................................................32
1. Voluntarismo...............................................................................................................33
2. Normativismo..............................................................................................................35
3. Sociologismo...............................................................................................................36
4. Jusnaturalismo.............................................................................................................36
5. Novas propostas...........................................................................................................37
SEGUNDA PARTE A articulação entre o direito internacional e o direito
interno.................................................................................................................41
IV.......................................................................................Lição A querela teórica
43
A. Objetivo.............................................................................................................43
B. Enquadramento..................................................................................................44
C. A abordagem tradicional: monismo e dualismo................................................46
2
Índice
VIII..............................................................................................Lição O costume
99
A. Objetivo.............................................................................................................99
B. Importância relativa...........................................................................................99
C. Fundamento da obrigatoriedade......................................................................101
1. A perspetiva tradicional (subjetiva)...........................................................................102
2. A perspetiva atual (objetiva)......................................................................................102
D. Elementos do costume.....................................................................................104
1. Elemento material ou objetivo: o uso ou a prática.....................................................105
2. Elemento psicológico: a convicção da obrigatoriedade.............................................111
E. Relações entre as regras consuetudinárias e outras normas internacionais.....114
F. A codificação do costume...............................................................................116
IX...........Lição Convenções internacionais: noção, terminologia e classificações
123
A. Objetivo...........................................................................................................123
B. Importância......................................................................................................123
C. Noção e terminologia......................................................................................124
1. Acordo de vontades...................................................................................................125
2. (Em forma escrita).....................................................................................................125
3. Entre sujeitos de direito internacional.......................................................................126
4. Agindo nessa qualidade.............................................................................................132
5. Visando a produção de efeitos jurídicos vinculativos...............................................132
6. (Regido – ainda que não exclusivamente – pelo direito internacional).....................134
7. (Qualquer que seja a sua denominação)....................................................................134
D. Classificações..................................................................................................136
1. Classificação material................................................................................................136
2. Classificações formais...............................................................................................139
XLição Convenções internacionais: processo de conclusão.............................145
A. Objetivo...........................................................................................................145
B. As diferentes fases do processo.......................................................................146
1. Negociação.................................................................................................................146
2. Assinatura..................................................................................................................151
3. Ratificação.................................................................................................................155
4. Outros momentos relevantes......................................................................................159
C. Os acordos em forma simplificada..................................................................164
XI..............................................Lição Convenções multilaterais: particularidades
169
A. Objetivo...........................................................................................................169
B. Negociação......................................................................................................171
C. Extensão dos regimes convencionais..............................................................173
1. Assinatura diferida.....................................................................................................174
2. Adesão.......................................................................................................................175
D. Reservas...........................................................................................................177
3
Rui Miguel Marrana
1. Noção.........................................................................................................................177
2. Histórico.....................................................................................................................179
3. Efeitos........................................................................................................................181
4. Vantagens e inconvenientes.......................................................................................183
5. Momento da formulação............................................................................................184
6. Competência..............................................................................................................185
7. Exigências formais.....................................................................................................185
8. Admissibilidade ou validade......................................................................................186
9. Aceitação...................................................................................................................188
10. Objeção....................................................................................................................189
11. Estabelecimento.......................................................................................................190
12. Retirada....................................................................................................................191
E. Declarações interpretativas..............................................................................191
1. Distinção das reservas................................................................................................191
2. Regime.......................................................................................................................193
3. Figuras próximas........................................................................................................194
4. Retirada......................................................................................................................196
F. Depositário......................................................................................................196
XII.................Lição Convenções internacionais: vinculação do Estado português 200
A. Objetivo...........................................................................................................200
B. Visão geral.......................................................................................................201
C. Fases do procedimento....................................................................................201
1. Negociação.................................................................................................................201
2. Assinatura..................................................................................................................203
3. Aprovação..................................................................................................................204
4. Intervenção do Presidente da República....................................................................207
5. Outros momentos relevantes......................................................................................210
D. Particularidades assinaláveis...........................................................................212
1. A não vinculação pela assinatura...............................................................................212
2. A aprovação de acordos em forma simplificada pelo Parlamento.............................212
3. Inexistência de regime para a adesão.........................................................................213
4. A extensão da intervenção do Chefe de Estado.........................................................213
E. Quadro recapitulativo......................................................................................214
XIII.....................................................Lição Convenções internacionais: validade 217
A. Objetivo...........................................................................................................217
B. Visão geral.......................................................................................................217
C. Condições de validade.....................................................................................217
1. Capacidade dos sujeitos.............................................................................................218
2. Licitude do objeto......................................................................................................220
3. Regularidade consentimento......................................................................................228
D. Regime das nulidades......................................................................................235
4
Índice
E. Procedimento de anulação...............................................................................237
F. Efeitos da nulidade..........................................................................................239
1. Cessação da vigência.................................................................................................240
2. Retroatividade............................................................................................................240
3. Indivisibilidade..........................................................................................................241
XIV...................................................Lição Convenções internacionais: aplicação
245
A. Objetivo...........................................................................................................245
B. Regime.............................................................................................................245
1. Execução na ordem interna........................................................................................245
2. Execução na ordem internacional..............................................................................247
3. Efeitos em relação a terceiros....................................................................................251
4. Conflitos de normas...................................................................................................254
XV..............Lição Convenções internacionais: suspensão e cessação da vigência
259
A. Objetivo...........................................................................................................259
B. Nulidade e cessação da vigência.....................................................................259
C. Causas de cessação da vigência.......................................................................260
1. Causas de cessação da vigência previstas na CV69..................................................260
2. Causas de cessação da vigência não previstas na CV69............................................267
D. Suspensão da vigência.....................................................................................271
E. Regime e efeitos..............................................................................................271
XVI....................................................................Lição Princípios gerais de direito
275
A. Objetivo...........................................................................................................275
B. Regime.............................................................................................................275
1. Princípios gerais reconhecidos pelas nações civilizadas...........................................275
2. O conceito..................................................................................................................276
XVII........................Lição Fontes acessórias: jurisprudência, doutrina e equidade
285
A. Objetivo...........................................................................................................285
B. Jurisprudência..................................................................................................285
1. Regime do ETIJ.........................................................................................................285
2. Noção e âmbito da jurisprudência internacional........................................................285
3. O uso de referências jurisprudenciais nas decisões judiciais internacionais.............285
C. Doutrina...........................................................................................................286
1. Regime do ETIJ.........................................................................................................286
2. Noção e âmbito da doutrina internacional.................................................................286
3. O uso de referências doutrinais nas decisões judiciais internacionais.......................286
D. Equidade..........................................................................................................286
1. Regime do ETIJ.........................................................................................................286
2. Acepções e âmbito da equidade.................................................................................287
5
Rui Miguel Marrana
XVIII...................Lição Fontes não previstas: atos unilaterais e atos concertados 291
A. Objetivo...........................................................................................................291
B. Atos unilaterais................................................................................................292
1. Noção e justificação...................................................................................................292
2. Caracterização............................................................................................................294
3. Validade.....................................................................................................................298
4. Cessação da vigência.................................................................................................299
5. Atos unilaterais dos Estados......................................................................................300
6. Atos unilaterais das organizações internacionais.......................................................302
C. Atos concertados.............................................................................................308
1. Noção.........................................................................................................................308
2. Importância................................................................................................................310
3. Efeitos........................................................................................................................312
4. Distinção das convenções internacionais...................................................................313
QUARTA PARTE Sujeitos de direito internacional.......................................317
XIX................................................................Lição Sujeitos – introdução e noção 319
A. Objetivo...........................................................................................................319
XX..................................................................................Lição O Estado soberano 321
A. Objetivo...........................................................................................................321
Bibliografia citada.............................................................................................323
Convenções citadas...........................................................................................349
Atos normativos citados....................................................................................355
Jurisprudência citada.........................................................................................357
A. Tribunais internacionais..................................................................................357
1. Tribunal Permanente de Arbitragem (TPA)..............................................................357
2. Outras instâncias arbitrais..........................................................................................357
3. Tribunal Permanente de Justiça internacional (TPJI)................................................359
4. Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)......................................................................360
5. Tribunal Penal Internacional para o Rwanda (TPIR)................................................363
6. Tribunal Penal Internacional da Ex-Jugoslávia (TPIY).............................................363
7. Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).........................................................363
8. Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)....................................................364
9. Tribunal Inter-americano de Direitos do Homem (TIADH).....................................364
10. NAFTA – Painel......................................................................................................364
B. Tribunais nacionais..........................................................................................364
1. Portugal......................................................................................................................364
2. Argentina (Corte Suprema de Justicia de la Nación).................................................365
3. Canadá (Supreme Court of Canada)..........................................................................365
4. Chile (Corte Suprema de Justicia).............................................................................365
5. EUA...........................................................................................................................365
6
Índice
2. SDN-ONU.................................................................................................................367
3. Outros documentos ou atos........................................................................................370
7
Lista de abreviaturas
ACP – [grupo de Estados da] África Caraíbas e Pacífico - criado pelo Acordo de
Georgetown (6.06.1975)
AG – Assembleia-geral
AGNU – Assembleia-geral das Nações Unidas
AR – Assembleia da República
CDI – Comissão de Direito Internacional (International Law Commission / Com-
mission de Droit International)
CEDH – Convenção Europeia dos Direitos do Homem - ou Convenção de Salva-
guarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais
(4.11.1950)
CM – Conselho de Ministros
CNU – Carta das Nações Unidas (26.06.1945)
CRP – Constituição da República Portuguesa
CSNU – Conselho de Segurança das Nações Unidas
CV61 – Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (18.04.1961)
CV63 – Convenção de Viena sobre Relações Consulares (24.04.1963)
CV69 – Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados
(23.05.1969)
CV78 – Convenção de Viena sobre Sucessão de Estados relativamente a trata-
dos (22.08.1078)
CV86 – Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e organi-
zações internacionais ou entre organizações internacionais (21.03.1986)
DAR – Diário da Assembleia da República
DR – Diário da República
DUDH – Declaração Universal dos Direitos do Homem (10.12.1948)
DUE – Direito da União Europeia
ETIJ – Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (26.06.1945)
ETJUE – Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia (18.04.1951)
ETPJI – Estatuto do Tribunal Permanente de Justiça Internacional (13.12.1920)
EUA – Estados Unidos da América
GPR2011 – Guia da Prática das reservas
I GM – Primeira Guerra Mundial (1914-18)
II GM – Segunda Guerra Mundial (1939-45)
Rui Miguel Marrana
10
PRIMEIRA PARTE
Elementos introdutórios
I Lição
Evolução histórica
A. Objetivo
Uma perceção correta do direito internacional implica uma revi-
são sumária de alguns elementos históricos através dos quais se possam
traçar as origens e o desenvolvimento das ideias que inspiram as
concep- ções e as regras actuais1. O objetivo do nosso primeiro capítulo
será, por isso, fazer essa revisão sumária da evolução histórica das
relações inter- nacionais e do direito internacional.
1. A Idade Antiga
Dentro da fase anterior ao Estado soberano devemos distinguir um
primeiro período que vai até 476, ano em que a queda do Império Ro-
mano do Ocidente é normalmente considerada como marcando o início
da Idade Média.
Durante todo o largo período de tempo (cerca de três milénios)
que decorreu, a humanidade está desmembrada em subconjuntos
isolados e
1
A doutrina vem prestando recentemente uma atenção particular aos elementos históri-
cos, apercebendo-se da importância das contextualizações e bem assim do aprofundamento das
distinções potenciado pelas perspectivas desta natureza (Kemmerer, 2008; Koskenniemi, 2013,
p. 215).
2
A constatação é relativamente pacífica na doutrina (Held, 1989, p. 11 ss.; Varbes, 1994,
p. 3/4).
12
Oitava lição: o costume
pouco comunicantes (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 43). Quer
isto dizer que os diversíssimos grupos humanos que se foram formando,
as mais das vezes não sabem sequer da respectiva existência e, quando
ocasionalmente se encontravam, tendiam a reagir de forma brutal: ex-
pulsando ou aniquilando. Nesse sentido a doutrina tende a constatar na
antiguidade uma incapacidade de sujeitar as relações a regras
(Bederman, 2009, p. 115).
A excepção mais importante3 neste panorama refere-se ao surgi-
mento dos primeiros impérios (cuja existência será, aliás, essencial para
a evolução civilizacional). O império consubstancia uma visão distinta de
relacionamento entre comunidades. Aqui, estas, animadas pela vontade
de alargamento do poder, já não se limitam à expulsão ou aniquilação,
mas antes impõem um domínio4. Na verdade, o império consiste sempre
num fenómeno de dominação de uma ou mais comunidades por outra.
Historicamente esta perspetiva denota uma evolução significativa: a al-
teridade já não é encarada como um risco (uma ameaça ou, pelo menos,
um empecilho), impondo uma resposta agressiva, mas, diversamente,
passa a ser enquadrável. O império faz surgir, assim, os primeiros fenó-
menos de integração de comunidades.
São conhecidos diversos impérios na antiguidade, nomeadamente
o chinês, o maia, o inca, o egípcio, e o romano. Este último foi indubita-
velmente aquele que teve uma contribuição histórica mais marcante.
Nessa experiência histórica há, por isso, a assinalar alguns elementos re-
levantes para a nossa análise.
Assim, desde logo, a herança grega. É incontestado o facto de a
ex- periência e a tradição grega se ter transmitido através do império ro-
mano. E é precisamente no período clássico helénico que detectamos os
primeiros passos no estabelecimento de regras nas relações entre
comu- nidades humanas – o que significa que, não apenas se concebia a
coexis- tência com outras comunidades, como ainda se efectuaram as
primeiras tentativas de sujeitar tais relações a padrões de
comportamento mutua- mente aceites. Foi assim que surgiram os
primeiros cônsules (represen-
3
Heródoto relatava já o comércio silencioso do séc. VI a.C. envolvendo os cartagineses e
algumas tribos africanas (Hérodote, 1913, pp. 281 IV, CXCVI), mas este tipo de fenómenos não
apenas era excepcional como continha em si elementos que denotavam a impossibilidade de de-
senvolvimento de relações estáveis a partir daí (Neff, 2003, p. 4).
4
O domínio imperial, além duma imposição militar, vai-se manifestar tipicamente tam-
bém na influência cultural (o que torna ainda mais evidente o fenómeno de integração que cara-
cteriza a noção de império).
13
Rui Miguel Marrana
5
Da tradição helénica vinha já a afirmação do carácter universal do sentido de justiça (e
das regras de conduta que daí decorriam para todos as comunidades), que pode encontrar-se
nas obras de Aristóteles e Cícero e que vai inspirar os juristas romanos na construção do jus
gentium e os teólogos cristãos, no seu desenvolvimento (Neff, 2003, p. 33).
6
Relativamente ao debate sobre as questões morais levantadas pelo imperialismo ro-
mano – avultando aqui a contribuição de Cícero (que viria a ser retomada no séc. XVI) – V. Kings-
bury & Straumann (2010, p. 36 ss.).
7
O paralelo entre o direito romano e o direito internacional (e já não apenas a influência
daquele no surgimento deste) é bem salientado por Luigi Ferrari Bravo (1996, p. 348) quando
refere: pode afirmar-se que, num mundo que procura orientação, o direito internacional
sedimen- tado nas nossas consciências, retoma o seu lugar tradicional que era o do direito
romano, tal como existiu bem para além da queda do império, e que constituiu a base, o
património comum, sobre o qual construímos o direito internacional.
14
Oitava lição: o costume
ser possível convencionar entre si, princípios reguladores das suas rela-
ções mútuas.
Mesmo sem uma preocupação de exaustão, importará ainda subli-
nhar outros contributos do cristianismo para a noção moderna de
direito. Atente-se, assim, por exemplo, ao conceito de liberdade (que
decorre, aliás, do pecado original): se a opção entre o bem e o mal não
fosse livre, não poderia haver responsabilização (nem pecado). É esta
mesma afir- mação da liberdade (individual) na escolha, que
encontramos por exem- plo, nos conceitos jurídicos de culpa ou de
responsabilidade.
2. A Idade Média
A Idade Média corresponde a um longo período histórico, de
quase mil anos. Tal como se referiu supra, os historiadores marcam o
seu início em 476 com a queda do império romano do ocidente,
subsistindo alguma divergência no facto que marcará o seu final. A
maioria indica 1453 (data em que ocorre a queda do Império romano do
Oriente), outros preferem 1492 (correspondendo à expulsão dos
mouros da Península Ibérica). O debate é pouco relevante para a nossa
análise, tanto mais que as datas são muito aproximadas.
Este longo período foi marcado pela coexistência dos dois mundos
cristãos romanos (oriental e ocidental, muito embora este já na
ausência da organização imperial). Esta proximidade civilizacional fez
com que as relações mútuas pudessem ser progressivamente inspiradas
por regras resultantes da reflexão dos teólogos e implementadas com o
apoio da Igreja. Será a afirmação definitiva do jus gentium (que agora se
concebe como emanação do direito natural, o qual procede da natureza
humana, iluminada pela razão e que por isso, é universal ou
universalizável8).
Em simultâneo, este período é também marcado pelas relações
be- licosas com o mundo islâmico9, particularmente por força das
cruzadas. Estas, por sua vez, estão na origem de um importante
desenvolvimento comercial (por vezes designado como o renascimento
económico, que antecede o renascimento cultural). Ora, o
estabelecimento de relações comerciais permanentes a uma escala
muito alargada (ao tempo, o
8
Dito de outra maneira: [o]s germes do direito universal não se desenvolvem senão na
Idade Média. Porque um direito mundial pressupõe a convicção da unidade do género humano
(Verdross A. , 1927, p. 252).
9
No mundo islâmico cedo se estabeleceu a diferença entre este (o Dar al-Islam ou a
Casa do Islão) e o mundo exterior (o Dar al-Harb, ou a casa de guerra). Isso não impediu,
todavia, o establecimento frequente de períodos de tréguas (supondo os necessários acordos,
tecnicamente algo menos do que tratados) e a emissão frequente de salvo-condutos, em
15
Rui Miguel Marrana
número muito conside- rável (Neff, 2003, p. 33).
16
Oitava lição: o costume
10
Francisco de Vitória (1480-1546), frade dominicano, estudou em Paris e ensinou em
Valladolid e Salamanca, tendo como principal obra a publicação em 1577 De Indis et de iure belli
relectiones (Vitoria, 1975). Preocupado com o tratamento dos índios da América do Sul, este teó-
logo desenvolve as noções de direito natural no âmbito internacional, sendo por isso,
considerado fundador do direito internacional moderno (Scott, 1934; Voegelin, 1998) - embora
alguma dou- trina sublinhe a frequente superficialidade da análise (Burillo, 1988).
11
Francisco Suarez, sacerdote jesuíta, viveu entre 1548 e 1617 e foi autor de três obras
maiores do pensamento jurídico político da época: Tractatus de legibus (que surgiu como
manual universitário, em Coimbra, em 1613 tendo sido postumamente - entre 1619 e 1655 -
publicado em dez livros), Defensio fidei (1613) e De bello. Envolvido nas disputas doutrinais
sobre a natureza do poder político que opunha opunham a Igreja católica e Tiago I, soberano
britânico, Suarez soube adaptar a máxima de S. Paulo, segundo a qual todo o poder vem de
Deus (Rom. 13, 1), para elaborar uma doutrina do direito natural que rege as relações humanas
(no seio das comunidades) e as relações entre as comunidades. Distinguindo o jus gentium
tradicional (romano) do jus gentium moderno, Suarez define este como um direito de base
racional, o que resultaria do facto de o género humano estar dividido num grande número de
povos e reinos diferentes, conservando não obstante uma certa unidade moral e política
decorrente do mandamento preceito natural do amor ao próximo e da misericórdia (Voegelin,
1998).
12
A contribuição dos teólogos católicos tornou-se particularmente relevante por permitir
a preservação da concepção universalista num período histórico de ruptura (Verdross A. , 1927,
p. 253).
17
Rui Miguel Marrana
C. A formação do direito
internacional eurocêntrico16
O direito internacional moderno forma-se na convivência entre os
Estados europeus17 após a Reforma protestante. A característica central
13
Santo Agostinho, bispo de Hipona e doutor da Igreja, viveu entre os anos 354 e 430. Da
sua obra - que marcou profundamente a história da própria Igreja católica - devem salientar-se
as Confissões e A Cidade de Deus (413, 426), tendo esta inspirado o pensamento político de toda
a Idade Média, mantendo a sua influência até à actualidade. Nela, S. Agostinho procura
ultrapassar o dualismo maniqueísta da época e, impressionado pelo saque de Roma em 410,
começa (logo no primeiro livro) por tratar o problema da violência e da guerra numa perspetiva
moral. O seu pen- samento político será marcado pela cultura greco-romana (e particularmente
de Platão) e pelos ensinamentos bíblicos judaicos e cristãos.
14
Santo Isidoro viveu entre 560 e 636. Bispo e doutor da Igreja foi um escritor enciclopé-
dico, cujas obras – Etimologias e uma Summa da ciência antiga – marcaram a Idade Média.
15
Grotius, ou Huig de Groot (ou Grócio), é o responsável pelo ressurgimento da doutrina
jusnaturalista no séc. XVII, colocando-a desde então no centro do pensamento do direito
internacional. Jurista protestante holandês, Grotius foi simultaneamente um erudito e um
aventureiro. Escreve o De jure belli ac pacis (O direito da guerra e da paz) em 1625, quando se
encontrava refugiado em França, nela desenvolvendo uma teoria do Estado e do poder civil
numa perspetiva nacional e internacional, cujos fundamentos serão de base moral - definindo
critérios de um Estado justo e da guerra justa (Villa, 1997; Reid, 2006).
Com Grócio o direito internacional evolui de um sentido genérico ou universal para um
direito entre soberanos (Neff, 2003, p. 37): na expressão corrente da época do jus inter gentes,
as gentes referem-se menos às pessoas ou aos povos, e mais aos Estados (começando assim a
aco- lher na expressão jurídica elementos voluntaristas).
16
O eurocentrismo pode ser visto como uma característica do direito internacional con-
temporâneo ou como uma visão crítica de uma perspetiva (europeia e posteriormente
ocidental) segundo a qual a história do direito internacional coincide com a história da
humanidade e esta constitui em boa medida uma narrativa de como os europeus e as suas ideias
vieram a regular a humanidade (Koskenniemi, 2013, p. 221).
17
A marca essencialmente europeia do direito internacional permanece até ao século
XIX. De facto, sendo certo que a situação se alterou, admitamos que […] o direito internacional
nasce na Europa assim que são reunidas as condições necessárias – a saber, a existência de
Estados independentes uns dos outros, mas também independentes de uma autoridade superior
– e que se desenvolve à medida que a Europa se torna o centro do mundo, quer dizer até ao
século XIX. Admitamos igualmente que que na primeira metade do século XIX a parte do mundo
que se torna independente – como o hemisfério americano – ou que entra na história das
relações internacio- nais – como a China, o Japão, o império Otomano ou o Egipto – se
conformam com ele por espírito de modernidade (Ferrari-Bravo, 1996, p. 345).
18
Oitava lição: o costume
18
Jean Bodin nasceu em Angers em 1529 ou 1530 e morreu em 1596. Filho de mãe judia,
ingressa na Ordem dos Carmelitas em 1545, obtendo todavia a dispensa dos seus votos três
anos depois, suspeitando-se de alguma atracção pelo calvinismo. Estando a França mergulhada
nas guerras político-religiosas, Bodin, então ao serviço do Duque de Aleçon, escapa ao massacre
da noite de S. Bartolomeu de 23-24 de Agosto de 1572. Impressionado com o fanatismo
religioso, toma o partido da Liga, uma tendência católica, moderada e favorável ao poder da
coroa. É neste enquadramento que escreve Os Seis Livros da República, em 1583, onde
desenvolve uma teoria da soberania (baseada no poder profano) que marcará a modernidade.
19
Rui Miguel Marrana
19
Essas concepções tradicionais que partiam do Estado (entidade que beneficia na mo-
dernidade do monopólio da violência física legítima, como salientava Weber numa
caracterização muito repetida) para procurarem equilíbrios que surgiriam nas situações em que
estes não tives- sem qualquer interesse em participarem numa guerra. Muito embora a
construção de tais equilí- brios se mostrasse incapaz de evitar uma sucessão de conflitos - e que
por isso tenha começado a ser posta em causa depois da I GM -, o facto é que constitui uma
linha de força incontornável na doutrina internacional: desde David Hume no séc. XVIII até Hans
J. Morgenthau em 1948, o paradigma do equilíbrio das potências permanecerá no centro das
preocupações (Frank, 2003).
20
Não obstante, não devem esquecer-se as Convenções que formam o chamado direito
da Haia, relativas ao direito da guerra, concluídas em 1907, (a listagem cronológica – e o texto
completo – estão disponíveis on line através do Avalon project, no site da Universidade de Yale
em http://avalon.law.yale.edu/subject_menus/lawwar.asp).
20
Oitava lição: o costume
21
A descolonização gerou no seio nas NU a chamada crítica pós-colonial, que identifica o
direito internacional como um dos instrumentos que os povos europeus utilizaram no século XIX
para controlarem outros povos, para os explorarem e aos seus recursos de forma sistemática e
para justificarem essa atitude. Os europeus terão assim, aproveitado ao máximo os seus acordos
políticos, elevando-os a um padrão formal universal da qualidade soberana, o qual, os outros
países ostensivamente menos civilizados, não podiam cumprir (Onuf, 2000, p. 3).
22
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982.
23
Consultar no sítio das NU (http://legal.un.org/ilc/) o trabalho da CDI que vem sendo
progressivamente disponibilizado.
24
Consultar em http://www.icj-cij.org/homepage/index.php o sítio do TIJ, cuja jurispru-
dência está disponível em http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3
25
A jurisprudência do TPJI está também disponível em http://www.icj-
cij.org/docket/index.php?p1=3
21
Rui Miguel Marrana
dência geral que surge ainda em muitos outros domínios: o chamado di-
reito da integração, o direito do ambiente etc., etc.). Por outro lado, o
direito internacional verá o seu âmbito ser progressivamente alargado,
maxime nos domínios do económico e do social.
Nesta perspetiva, o direito internacional do pós-guerra pode ser
caracterizado como uma construção específica (na medida em que se
trata de um corpo de regras destinadas a disciplinar relações entre sujei-
tos de direito internacional – e entre estes e outras entidades26 –
autono- mamente de qualquer ordem jurídica nacional), inacabada (na
medida em que os seus limites serão permanentemente indefinidos) e
em muta- ção constante (já que as suas estruturas vão ser
constantemente obriga- das a esforços de adaptação a novas realidades,
evoluindo de um direito de coordenação – assente no consentimento
dos Estados soberanos – para um direito de cooperação – de cariz
fundamentalmente multilateral
– onde avulta a institucionalização progressiva 27 resultante da afirmação
do papel central das organizações internacionais).
de atacar o unilateralismo americano (da recusa aos projectos de proibição das minas terrestres,
ao protocolo de Quioto, aos tratados de controlo de armamento, ao TPI, etc.). E ainda aqueles
que – mesmo dentro dos EUA – apreciarão alguns mecanismos de liberalização (NAFTA, OMC,
etc.), mas, no geral, olham com desdém para muitos dos regimes multilaterais, como sejam os
relativos à protecção dos direitos humanos, à protecção ambiental, etc., por neles verem
intuitos agressivos aos regimes representativos (Alvarez, 2002). O fenómeno da globalização
trouxe também consigo uma outra modificação radical de perspetiva: os críticos do direito
internacional que antes insistiam na sua irrelevância, agora preocupam-se como seu vigor e em
especial com as transferências de autoridade para o nível internacional, identificando défices
democráticos em quase todas as instituições internacionais (Chandler, 2005; Frischmann, 2003,
p. 680).
A contradição mais preocupante nos nossos dias será todavia aquela que encontramos
na posição dos EUA face ao direito internacional. Quando no final da guerra fria se esperava um
for- talecimento dos mecanismos de cooperação (e do papel do próprio direito) constata-se uma
acen- tuada quebra de interesse marcada pela recusa dos EUA em participar em diversos
tratados: Con- venção de Montego Bay sobre o Direito do Mar de 1982, o Protocolo de Quioto
sobre o aqueci- mento global de 1997, o Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty de 1996, o
Estatuto do TPI de 1998, etc. (Taft, IV, 2006, p. 504). Simultaneamente verificamos que os
comportamentos recentes de outras potências – em especial da Rússia (com a intervenção na
Ucrânia) e da China (com a intervenção no Mar do Sul da China) – vem também desvalorizando
os mecanismos de cooperação e até mesmo o relativo cuidado que vinha sendo colocado no uso
unilateral da força (Pert, 2017).
29
A orientação para os cidadãos resulta, entre outros elementos, da insistência na
impor- tância do Estado de direito, na crescente atenção dada à protecção dos direitos
humanos, nas diferentes vertentes que esta matéria vem assumindo. Atente-se, a título de
exemplo, aos pará- grafos 9, 24 e 25 da Declaração do Milénio, das NU.
30
A título de exemplo relativamente recente, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal da
Argentina quando reconhece a inaplicabilidade dos atos que garantam imunidade penal, sempre
que se trate da prática de crimes contra a humanidade (ac. 24.8.2004, no caso Enrique Lautaro
Arancibia Clavel). No mesmo sentido, a decisão do Supremo Tribunal do Chile de 26.08.2004,
que retirou a imunidade ao general Augusto Pinochet, em relação à prática de crimes contra a
huma- nidade.
31
De referir a propósito a decisão do Supremo Tribunal de Israel quando, baseando-se
nas principais convenções de direito humanitário, impôs ao governo israelita a modificação do
traçado do muro de protecção, ao considerar ter havido um agravamento excessivo das
condições de vida da população palestiniana na povoação (cf. ac. 30.06.2004, no caso Concelho
de Beit Sourik c. Governo de Israel, HCJ 2056/04). No mesmo sentido é de referir a decisão de
13.10.2004 do U.S. Supreme Court, no caso Roper v. Simmons, No. 03-633, na qual se contrariou
a jurisprudência assente (assumindo o estádio dos padrões de decência que marcam o progresso
do amadu- recimento da sociedade) e se considera inadmissível a aplicação da pena de morte a
menores, fundando-se essa decisão entre outras razões, na crescente condenação internacional
dessa prática.
23
Rui Miguel Marrana
Questões de
revisão A. Questões gerais
1. Explique as contribuições que advêm do império romano para o surgi-
mento do direito internacional.
2. Refira-se à origem e desenvolvimento da doutrina do direito natural e
explique a sua importância para o direito internacional.
3. Explique a razão pela qual se considera ter o direito internacional sur-
gido (apenas) no século XVI.
4. Caracterize o direito internacional clássico e explique a sua evolução
até à actualidade.
B. Questões directas
1. Caracterize a convivência internacional na Idade Antiga.
2. Identifique as contribuições da civilização grega para o direito interna-
cional.
3. Diga o que entende por jus gentium referindo sumariamente a evolu-
ção histórica do conceito.
4. Refira-se à origem cristã do princípio da igualdade e explique em que
termos este preenche uma condição de existência do direito internacional.
5. Explique como é que o direito natural, tendo sido desenvolvido pela
Igreja, é universalizável.
6. Caracterize a Idade Média explicando em que termos evoluiu a convi-
vência internacional nesse período.
7. Explique a contribuição da escola espanhola (Francisco de Vitória e
Francisco Suarez) para o direito internacional.
8. Diga o que entende por soberania e explique as consequências que o
advento desta teve nas relações internacionais.
9. Relacione a afirmação dos direitos humanos com a ideia de direito na-
tural.
10. Justifique a importância dada após a I Guerra Mundial aos mecanis-
mos jurídicos na regulação das relações internacionais.
11. Identifique as principais características do direito internacional
depois da II Guerra Mundial.
Bibliografia de referência
FASSBENDER, Bardo PETERS, Anne, PETER, Simone, HÖGGER, Daniel
(2012) The Oxford Handbook of the History of International Law, Oxford, UK:
Oxford University Press.
REDSLOB, Robert (1923) Histoire des grands principes du droit des gens,
Paris: Rousseau et C.ie
NYS, Ernest (1894) Les Origines du Droit International, Bruxelles: Alfred
Castaigne, Paris: Thorin & Fils
LAURENT, François, (1851-1870) Histoire du Droit des Gens et des Rela-
tions Internationales (18 volumes) Paris: Librairie Internationale
24
Oitava lição: o costume
Leituras recomendadas
NEFF, Stephen (2003) A Short History of International Law, in EVANS,
Mal- colm D. (eds) International Law, Oxford, UK: Oxford University Press, pp.
31-58 KOSKENNIEMI, Martti (2013) Histories of International Law: Significance
and Problems for a Critical View, Temple International and Comparative Law
Journal, 27, 2, pp. 215-240
25
II Lição
Noção e objeto do direito internacional
A. Objetivo
As dificuldades sentidas pela doutrina em encontrar uma definição
consensual – como vermos de seguida – são demonstrativas das especi-
ficidades da matéria. O esforço justifica-se, por isso, a dois níveis: pela
especial necessidade de clareza e pela identificação das próprias dificul-
dades.
32
Tb. F. Suarez contribuiu para a afirmação do conceito. Assim, para este o jus gentium
abarcava duas realidades: o direito que as nações devem observar nas suas relações mútuas
(este seria o jus inter gentes, ou direito da comunidade internacional) e o direito que cada uma
observa e que é semelhante ou conforme com o das demais (Verdross A. , 1927, p. 255).
25
Rui Miguel Marrana
33
Afonso Queiró (1960, p. 4) adiantava uma variante intermédia: [o direito internacional
seria o conjunto das normas reguladoras das relações entre] comunidades jurídicas soberanas –
que incluiria os Estados, a Igreja Católica, a Ordem de Malta, os insurrectos e algumas organiza-
ções internacionais. Em todo o caso, acabaria por afastar a definição de direito internacional
com base nos sujeitos.
34
René-Jean Dupuy funda essa posição no reconhecimento de que a afirmação da sobe-
rania dos estados impede o reconhecimento de uma autoridade superior, donde resultará que o
direito internacional será um direito de coordenação entre Estados e já não um direito de subor-
dinação, assente numa autoridade.
26
Oitava lição: o costume
2. O critério do objeto
O direito internacional, segundo o critério do objeto (ou da natu-
reza fáctica da relação regulada) corresponderia ao conjunto de regras
que regulam as matérias cuja natureza é internacional.
A resposta presume ser possível traçar e manter visível a linha de
fronteira entre o que são matérias internacionais e matérias internas.
Não só essa linha não é clara, como varia com o tempo (Rusié, 1999, p.
1), tornando-se, por isso, o critério pouco operacional. Daí também que
o eco na doutrina não seja importante35.
35
Alejandro Rodríguez Carrión (1994, p. 73) parece partir do critério anteriormente refe-
rido (do objeto), mas referindo-se também a este. Senão atente-se á definição avançada: [o DIP
seria] o conjunto das normas jurídicas que regulam a sociedade internacional e as relações dos
seus membros na prossecução dos seus interesses sociais colectivos ou individuais. Próximo
deste critério encontramos também Dominique Carreau (1999, p. 33) que se refere a um direito
trans- nacional que regula as relações que transcendem as fronteiras, englobando, assim,
domínios tra- dicionalmente exteriores, como seja o dos contratos internacionais. V. tb. Guy
Agniel (1998, p. 9).
27
Rui Miguel Marrana
36
Já em finais dos anos cinquenta, Afonso Queiró afirmava (1960, p. 8) que o melhor ca-
minho para definir o direito internacional público lhe parecia ser a observação das comunidades
em que o direito se forma ou cria. Assim, serão de direito interno as normas formadas no âmbito
de comunidades nacionais ou internas, e de direito internacional as que se constituem na comu-
nidade universal dos estados ou em comunidades internacionais parciais, pelos processos ou for-
mas nelas reconhecidos como idóneos para tal efeito.
28
Oitava lição: o costume
37
O exemplo mais flagrante sempre será o da experiência nacional-socialista, toda ela
assente e desenvolvida em corpos de regras definidos segundo os processos devidos e por auto-
ridades legítimas.
29
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questão geral
Refira-se criticamente às diversas noções de direito internacional.
B. Questões directas
1. Explique quando surgiu o termo direito internacional referindo as de-
signações que o antecederam e o significado das alterações.
2. Identifique os pontos de convergência das definições de direito inter-
nacional segundo o critério dos sujeitos.
3. Explique as fragilidades das definições de direito internacional que as-
sentam no critério dos sujeitos.
28
Rui Miguel Marrana
Bibliografia de referência
SUY, Eric (1960) Sur la définition du droit des gens, RGDIP, pp. 762-770.
Leituras recomendadas
ALLOT, Phillip (1999) The Concept of International Law, European Journal
of International Law, 10, pp. 31-50
30
III Lição
Fundamento da obrigatoriedade
do direito internacional
A. Objetivo
Apesar de ser sujeito das maiores críticas, depreciações e até
nega- ções, o direito internacional existe. Não parece poder deixar-se de
o re- conhecer (Agniel, 1998, p. 18).
As suas incontornáveis fragilidades impõem no entanto que sejam
revistas a título introdutório questões essenciais, que podem começar
pela própria avaliação da natureza jurídica das suas regras.
É nesse enquadramento que vamos sumariamente tentar aferir a
questão do fundamento da sua obrigatoriedade, ou seja, saber-se
porque têm – se é que têm – de cumprir-se as regras de direito
internacional (ou apenas – como veremos no final da lição – saber
porque razão os desti- natários das normas internacionais as cumprem).
Parece óbvio que esta questão não é diferente da questão geral
do fundamento da obrigatoriedade das regras jurídicas. E a resposta
será também ela a mesma (não se compreende como poderiam as
regras ju- rídicas justificar-se por razões distintas, conforme o respectivo
âmbito). No entanto, no âmbito internacional, a questão (de natureza
filosófica) parece ter uma importância maior, sendo quase sempre
levantada a tí- tulo introdutório da matéria. Bem se compreende que
assim seja, pois, no direito interno o saber-se porque se devem cumprir
as regras releva de uma natureza especulativa já que, se outra
justificação não houvesse, dir-se-ia que as regras se cumprem, por
existirem mecanismos que im- põem o seu cumprimento. O mesmo não
acontece todavia, no plano in- ternacional: aqui encontramos um direito
que – pelo menos na sua gé- nese – regula fundamentalmente relações
entre Estados, os quais se pre- tendem soberanos e portanto, sem
quererem aceitar qualquer imposição que lhes seja estranha (daí a
resistência que os Estados fazem ao desen- volvimento de mecanismos
que garantam o efectivo cumprimento das regras internacionais).
Nestas circunstâncias, ressurge a importância da determinação clara do
fundamento da sua obrigatoriedade. Como bem
31
Rui Miguel Marrana
38
Para uma perspetiva original (que nem por isso deixa de percorrer as etapas e ideias
tradicionalmente referidas) v. Harold H. Koh (1997, p. 2603 ss.).
39
Numa exposição mais simples, Brierly dizia (1928, p. 469) que há duas explicações
tradicionais rivais sobre o fundamento da obrigação em direito internacional: a doutrina dos
direi- tos naturais dos Estados e a doutrina do consentimento desses Estados.
40
Guy Agniel (1998, pp. 18, ss.) afastando-se da abordagem mais tradicional, distingue
quatro grandes correntes: [jus]naturalismo, voluntarismo, objectivismo e positivismo.
41
Essa posição refere-se a todo o direito. No entanto, no âmbito interno, a progressiva
afirmação da lei (enquanto fonte voluntária) vai introduzindo progressivamente elementos de
di- reito positivo. No direito internacional, face à inexistência de um poder legislativo, manter-
se-ia a necessidade de remeter para o direito não escrito. E por isso [d]urante quase toda a sua
existência o direito internacional tem sido sinónimo de direito natural (Hall, 2001, p. 270).
42
Martti Koskenniemi (2008, p. 202/203) identifica o positivismo, por um lado, como um
projecto de imposição do direito nos assuntos internacionais (por contraponto à imposição de
um universalismo moral) e por outro, como pura Realpolitik.
32
Oitava lição: o costume
1. Voluntarismo
As correntes voluntaristas fazem derivar a obrigatoriedade do cum-
primento do direito internacional da vontade dos Estados. Ou, se quiser-
mos recuar um pouco mais, numa formulação ligeiramente diferente,
para o voluntarismo o direito é sempre a expressão de uma vontade
(ne-
cessariamente do Estado43).
A importância dada às correntes voluntaristas parece decorrer de
uma circunstância que lhe é anterior (e à qual já fizemos referência): a
soberania44 dos Estados. É que esta manifesta-se primariamente através
do poder de legislativo, pelo que tende a favorecer as visões segundo as
quais existiria coincidência entre direito e estado. Ora, o voluntarismo
acaba também ele, por confundir-se com estatismo 45 (Nguyen Quoc,
Daillier, & Pellet, 1999, p. 98; Agniel, 1998, p. 19). E dessa mistura
resulta uma formulação específica de positivismo jurídico, em que o
direito se
43
Na origem do pensamento positivista encontramos John Austin que negava a origem
transcendente das normas jurídicas, fixando-a na vontade do governante. Toda a norma seria
pois um comando do soberano (Miller, 1989, p. 143). Austin era discípulo de Bentham e na obra
deste pode já encontrar-se a origem das preocupações que hão-de justificar o positivismo: a
desconfi- ança nos juízes que este sentia disporem de margens de decisão arbitrárias
(remetendo para re- gras não escritas cuja interpretação lhes cabia) e que deviam ser
controladas através de regras positivas suficientemente estáveis e precisas (D’Amato, 1975, p.
175 ss.).
44
Numa perspetiva convergente alguma doutrina explica que o respeito pelo princípio da
soberania torna o direito internacional num sistema de base voluntária, obrigando apenas
aqueles Estados que consintam em vincular-se, e que portanto, se mostra incapaz de impor obri-
gações que contrariem os seus interesses. Daqui resulta que o conteúdo do direito internacional
tenda a reflectir o interesse dos Estados mais poderosos (Goldsmith & Levinson, 2009, p. 1793).
45
Para se avaliarem os excessos próprios do estatismo valerá a pena atentar ao pensa-
mento de Hegel, para quem o espírito objetivo - quer dizer Deus - se consubstancia no Estado.
Mas se o Estado é a encarnação do Absoluto, a sua vontade é o poder absoluto no mundo. E
33
Rui Miguel Marrana
todo o direito decorre dessa fonte (Verdross A. , 1927, p. 264). Para uma análise da visão
nacional- socialista do direito internacional (que evolui do estatismo para o racismo) v. Preuss
(1935).
34
Oitava lição: o costume
46
A questão tem toda a actualidade, até porque as grandes potências tendem a natural-
mente a alinhar em posições voluntaristas. Nos últimos anos a discussão sobre os poderes do
presidente americano (em especial na era George W. Bush) no âmbito da guerra ao terrorismo
tem constituído um bom exemplo: muitas das críticas dirigidas à administração americana
assen- tam na constatação da violação de regras internacionais consagradas, maxime em
matéria de di- reitos humanos (p. ex. relativamente à detenção de prisioneiros e seu
tratamento, sob um regime que, no mínimo, oferece muitas reservas). Uma parte significativa da
doutrina americana vem todavia defender a não sujeição a regras internacionais em relação às
quais não haja sido mani- festado um assentimento expresso (Delahunty & Yoo, 2007), o que
excluirá portanto a sujeição ao costume (e supostamente aos princípios gerais de direito). A
posição é, assim, um exemplo prático flagrante do voluntarismo e da relevância prática que o
debate mantém (V. tb. infra nota 70).
Num plano radicalmente distinto veja-se o acolhimento da soft law para efeitos da
interpretação da CEDH e mesmo de legtimação daquela, questionando o consentimento como
único fundamento da obrigatoriedade (Tulkens, Van Drooghenbroek, & Krenk, 2012, pp. 436-7).
47
André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros referem (1993, p. 59 ss.), para além das
duas correntes identificadas de seguida, uma teoria do direito estadual externo de raiz
hegeliana, segundo a qual o direito internacional reside na vontade individual de um só estado
(ou de cada um). Essa negação da hétero limitação implica só por si, a negação directa do direito
internacional e, por isso, não parece fazer sentido acolher-se dentro do elenco das correntes
que fundamentam a obrigatoriedade do direito internacional. Por outro lado, esta corrente
específica remete-nos para as posições idealistas de Hegel, segundo as quais a guerra não
apenas constituiria um modo de relação normal entre estados, como constituiria o meio
privilegiado para estes cumprirem o seu destino histórico, afirmando (e materializando) a sua
superioridade. Isto é inconciliável com qualquer posição jurídica: o direito nunca poderá servir
para justificar (ou poderá justificar-se em) o domínio do mais forte.
35
Rui Miguel Marrana
2. Normativismo
A Escola de Viena – na qual avulta Hans Kelsen – pretende-se dis-
tinta do voluntarismo, reclamando-se do normativismo (Nguyen Quoc,
Daillier, & Pellet, 1999, p. 101). No entanto, o seu formalismo recondu-
la, se não ao próprio voluntarismo, pelo menos ao positivismo. O funda-
mento da obrigatoriedade das normas resultará aqui de normas que lhe
são imediatamente superiores e assim sucessivamente (formando uma
pirâmide do direito) até à Grundnorm, que será constituída pelo pacta
sunt servanda49 – aqui convergem Kelsen50 e Anzilotti (Gaja, 1992, p.
128).
Apesar de se tratar de uma perspetiva que encaixa com facilidade
na visão romanista, o facto é que no formalismo, subsiste um desprezo
pelo conteúdo material51 da norma na determinação do fundamento da
sua obrigatoriedade.
48
Neste ponto, a posição de Triepel seria acolhida por D. Anzilotti (Gaja, 1992, p. 127).
49
O princípio do pacta sunt servanda era já referido (explícita ou implicitamente) por Su-
arez e Grotius, como constituindo a base do direito internacional positivo, assumido no entanto
como decorrendo de uma ordem superior, ou direito natural (Verdross A. , 1927, p. 256).
50
Kelsen virá todavia a aceitar a submissão do direito convencional ao costume (o que
implica a substituição do pacta sunt servanda pelo consuetudo est servanda).
51
A ausência de referência ao conteúdo da norma como condição de validade desta é
característica do positivismo e tem como consequência imediata a afirmação implícita da inexis-
tência de limitações de natureza moral ao conteúdo das normas. Quer isto dizer que, segundo a
lógica positivista, a validade da norma depende apenas da sua origem formal (de quem e/ou
como a promulgou), qualquer que sejam os comandos nela contidos, pelo que não faz sentido
aferir se estes são ou não intoleráveis - face a princípios éticos comummente aceites (Himma,
1998). É todavia curioso como – este e outos autores positivistas – embora admitindo que a sua
aborda- gem recusa a existência de limites éticos ao conteúdo das normas como condição de
validade destas, recusa-se, no entanto, a fazer resultar daí o próprio fundamento da
obrigatoriedade, por considerar tratar-se de questões distintas.
36
Oitava lição: o costume
3. Sociologismo
O fundamento da obrigatoriedade das normas jurídicas segundo o
sociologismo (Duguit, Scelle) reside nas necessidades sociais de onde
pro- cede o seu conteúdo – na sociabilidade internacional (Gonçalves
Pereira & Quadros, 1993, p. 70), portanto. Importará menos perceber o
porquê dessa obrigatoriedade e antes observá-la, ou verificá-la.
Assenta por- tanto, no velho brocardo latino ubi societas ibi jus.
Haverá, no entanto,
que opor a tal concepção uma limitação básica: é que a existência de
uma regra social não justifica o reconhecimento do seu carácter jurídico,
até porque sempre subsistirá a questão de saber da sua justeza (a qual é
con- dição dessa juridicidade).
4. Jusnaturalismo
Segundo o jusnaturalismo – cujas raízes remontam a Aristóteles, foi
desenvolvido por Francisco de Vitória e Francisco Suarez e, mais
recente- mente por Le Fur – o fundamento da obrigatoriedade do
direito será a própria natureza humana. É que se todo o homem tem
uma noção de justiça (e da necessidade da realização da justiça, por
oposição ao mero domínio da força), também dispõe da razão52 que lhe
permite descortinar
a ordem natural (segundo a tradição aristotélica, tratar-se-á de cumprir
a essência das coisas, o que equivalerá à realização da sua função) ou
seja, o conjunto de princípios e regras segundo as quais essa justiça
pode ser atingida. Nesse sentido o direito natural não é outra coisa
senão uma parte da moral universal (Verdross A. , 1927, p. 256).
Trata-se da posição mais interessante na medida em que mantém
um acento importante no conteúdo material (e ontológico) das normas
ao mesmo tempo que limita a margem de arbítrio dos estados (até por
remeter para um direito perene e imutável 53). Não deixa no entanto de
merecer uma crítica importante, dirigida aos contornos
necessariamente vagos (por se tratar sempre de conteúdos) a que o
direito natural se re- fere, o que abre caminho a doses importantes de
subjectivismo (Agniel, 1998) na respectiva interpretação – sendo, por
isso, objeto de críticas
52
A importância central da razão no âmbito das concepções do direito natural foi desen-
volvida pelos romanos. Já Cícero entendia o direito como uma encarnação da razão (Miller,
1989,
p. 142), e entendia o mundo como que uma cidade comum aos homens e aos deuses, sendo cada
um de nós parte desse mundo (Verdross A. , 1927, p. 252).
53
Para Grócio o direito natural é de tal forma imutável que nem Deus o pode alterar. Da
mesma forma que Deus não poderia fazer com que 2 mais 2 não sejam 4, também não pode im-
pedir que aquilo que é essencialmente mau não o seja (Tladi, 2016, p. 10) No mesmo sentido
Vattel viria a afirmar que o direito das gentes é imutável e por isso as nações não podem
37
Rui Miguel Marrana
introduzir-lhe modificações por via convencional nem afastá-lo (ibidem, 11).
38
Oitava lição: o costume
5. Novas propostas
Na doutrina americana têm surgido nas últimas décadas tentativas
articular, completar ou ultrapassar a dicotomia tradicional positivismo-
jusnaturalismo.
Os esforços merecedores de atenção, até por trazerem consigo
no- vos olhares sobre as posições tradicionais.
De entre estes salientaríamos, para começar, o trabalho de An-
thony D’Amato (1975), enquanto esforço de reconciliação das posições,
baseado numa análise inovadora, a partir de modelos cibernéticos.
A partir dos anos 90 a análise começa a ser perspectivada em ter-
mos ligeiramente diferentes daqueles em que colocamos a questão: me-
nos do que o fundamento (filosófico) da obrigatoriedade das normas, os
autores pretendem perceber o fenómeno (sociológico) do
cumprimento, descortinando as razões do mesmo (numa abordagem
que, no plano in- ternacional, aproxima a investigação jurídica daquela
que é levada a cabo nas relações internacionais55).
Nesse sentido, surgiu inicialmente o trabalho de Thomas Franck
(1990; 1995)56 que introduz57 elementos inovadores na análise58, nome-
adamente quando perspetiva o valor jurídico da norma (em geral) na
conjugação da legitimação (processual) e da capacidade de ser sentida
como justa ou equitativa, Assim, será essa conjugação que conduz a
uma vinculação natural dos destinatários das normas (sejam eles
indivíduos ou Estados) aos seus conteúdos e, portanto, ao seu
cumprimento – mesmo face à eventual fragilidade dos mecanismos
coercivos existentes.
Em finais dos anos 90 Harold H. Koh (1997) publicou um
importante trabalho no qual descreve de forma incisiva esta evolução,
abrindo es- paço à afirmação do expressivismo – o qual justifica o
cumprimento das normas (internacionais, no caso) com a conjugação da
pressão normativa
54
As críticas aos excessos do jusnaturalismo eram já apontadas por jusnaturalistas no iní-
cio do séc. XX, tal como Von Verdross (1927, p. 257 ss.).
55
Essa aproximação mantém-se até aos nossos dias em trabalhos com o de Kal Raustiala
e Anne-Marie Slaughter (2013).
56
Embora as perspectivas sejam paralelas, é o trabalho de 1990 (The Power of Legitimacy
Among Nations) que redefine a nova perspetiva.
57
Em rigor, o trabalho de Franck prossegue esforços anteriores de outros autores, em
especial o de Roger Fisher (1981).
58
Já anteriormente fizemos referência a alguns desses elementos (cf. final da II Lição).
39
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Diga o que entende por voluntarismo e explique a dificuldade destas
correntes em explicarem o fundamento da obrigatoriedade do direito interna-
cional.
2. Caracterize o normativismo e explique como Kelsen fundamenta a
obri- gatoriedade das normas de direito internacional.
3. Diga o que entende por sociologismo e explique criticamente em que
termos esta corrente doutrinal reage à questão do fundamento da obrigatorie-
dade do direito internacional.
4. Analise o problema do fundamento da obrigatoriedade do direito in-
ternacional na perspetiva jusnaturalista.
B. Questões directas
1. Identifique a questão subjacente ao fundamento da obrigatoriedade
do direito internacional.
2. Distinga a natureza das questões relativas à juridicidade e ao funda-
mento da obrigatoriedade do direito internacional.
3. Diga o que entende por voluntarismo e explique em que termos estas
correntes sempre sentem alguma dificuldade em explicar o fundamento da
obri- gatoriedade do direito internacional.
4. Identifique os diferentes termos segundo os quais as correntes volun-
taristas procuram explicar o fundamento da obrigatoriedade do direito
interna- cional.
5. Explique o significado da seguinte afirmação: a justificação de Kelsen
relativamente ao fundamento da obrigatoriedade do direito internacional não
é voluntarista mas radica (ainda) no formalismo (de que padece o próprio
volun- tarismo).
6. Explique em que termos para o sociologismo, a questão do
fundamento da obrigatoriedade do direito internacional é pouco relevante.
7. Diga o que entende por direito natural e explique os termos segundo
os quais esta corrente secular justifica o fundamento da obrigatoriedade do di-
reito internacional.
59
Será interessante assinalar como nos últimos anos estas circunstâncias parecem avolu-
mar-se. Assim, a título de exemplo, repare-se como a Rússia e a China surgem a fazer uma
profis- são pública de fé no direito internacional (cf. June, 25 2016 The Declaration of the Russian
Federa- tion and the People's Republic of China on the Promotion of International Law) numa
altura em que ambos os Estados são acusados de incumprimento de regras dessa natureza (a
Rússia no se- guimento da anexação da Crimeia e do envolvimento no separatismo das regiões
orientais da Ucrânia e a China pelo não acatamento da decisão arbitral de 12 de Julho de 2016,
relativa às disputas territoriais no Mar das Filipinas).
40
Oitava lição: o costume
Bibliografia de referência
KOH, Harold Hongju (1997) Why Do Nations Obey International Law?
Yale Law Journal 106, pp. 2599-2659
VERDROSS, Alfred von (1927) Le fondement du droit international.
Recueil des cours – Académie de droit international, 16, 247-324.
SHAW, Malcom N. (2008) International Law, Cambridge, UK: Cambridge
University Press, pp. 49-68
Leituras recomendadas
HALL, Stephen (2001) The Persistent Specter: Natural Law International
Order and the Limits of Legal Positivism, European Journal of International
Law, vol. 2 (2) pp. 269-307
HIMMA, Kenneth Einar (1998) Positivism, Naturalism and the Obligation
to Obey Law, Southern Journal of Philosophy 36 (2):145-161
MILLER, Jeremy M. (1989) Doctrinal Perspectives on International Law,
Saint Louis University Public Law Review, 8, pp. 141-156
D’AMATO, Anthony (1975) Towards a Reconciliation of Positivism and
Naturalism, Western Ontario Law Review, 14, pp. 171-203
41
SEGUNDA PARTE
A. Objetivo
A questão da articulação do direito internacional com o direito in-
60
terno animou a doutrina ao longo do século passado, ocupando uma
posição relevante nos manuais académicos. A resposta variava conside-
ravelmente conforme era dada no âmbito interno – em especial do di-
reito constitucional, que tendia a afirmar a prerrogativa soberana e,
nesse sentido, a regular61 livremente essa articulação – e no âmbito in-
ternacional, onde a afirmação da primazia deste sobre as regras de
direito interno surge implícita logo no primeiro acórdão do primeiro
tribunal in- ternacional (17.08.1923, Wimbledon).
Esta divergência que foi sendo animada pela confrontação entre
as perspectivas62 jusnaturalista e positivista não impediu que, por um
lado, no plano internacional fossem sendo encontrados regimes que
conse- guiam a convergência necessária, e, no plano interno, fosse
surgindo maior abertura às regras internacionais, flexibilizando os
regimes de arti- culação mútua.
60
A dificuldade básica da questão pode ser reduzida a uma aparente contradição nos ter-
mos. De facto, o direito internacional, como todo o direito, afirma a sua autoridade. No entanto,
o direito internacional não reconhece que o direito interno, mesmo o constitucional, limite a sua
autoridade, chamado a si o primado na regulação das matérias sobre as quais se pronuncia. Esta
assunção é notável, na medida em que a constituições da maioria dos estados ou afirmam expli-
citamente uma primazia normativa ilimitada ou vêm ser-lhes implicitamente reconhecida essa
prerrogativa. Como podem o direito constitucional e o direito internacional gozar simultanea-
mente da mesma primazia nos mesmos domínios? (Buchanan & Powell, 2009, p. 249).
61
Na tradição anglo-saxónica a constituição não é propriamente uma expressão de von-
tade de um poder (constituinte), mas antes o resultado de uma sedimentação histórica. Nesse
sentido, não se assume a existência de um poder constituinte (derivado) – não existe uma regu-
lação propriamente dita. Mesmo na doutrina americana (cuja constituição escrita marca o início
de uma prática que virá até aos nossos tempos), essa inexistência é expressamente assumida –
no que aproxima o direito internacional do direito constitucional (Goldsmith & Levinson, 2009,
p. 1794).
62
As diferenças de perspetiva tendem a reflectir posturas ou opções ideológicas: toda a
regulação é, além de um paradigma científico, uma representação ideológica (Chevallier, 2001,
p. 828).
43
Rui Miguel Marrana
B. Enquadramento
Genericamente a necessidade de articulação de diferentes corpos
de regras é uma questão introdutória no estudo do direito, resultando,
desde logo, da mera constatação da existência de diferentes tipos de ac-
tos normativos (leis, decretos-lei, decretos legislativos regionais,
decretos regulamentares, regulamentos, etc.).
No plano interno, essa necessidade de articulação está
enquadrada por um regime jurídico geral próprio que, por um lado,
estabelece uma hierarquia entre os diferentes tipos de regras e, por
outro, acolhe princí- pios reguladores que normalmente concorrem nos
casos de concurso ou conflito de normas (nomeadamente o princípio lex
posteriori derrogat priori ou o lex specialis derrogat lex generali). Esse
regime jurídico decorre fundamentalmente de estipulações autoritárias:
é o legislador – constitu- cional ou ordinário – que estabelece as regras
hierárquicas ou de prece- dência.
Não existe, todavia, uma instituição a quem seja reconhecida
auto- ridade para fixar ou impor um regime que regule as relações entre
as nor- mas internacionais e nacionais. Por isso, o regime internacional
teve uma evolução distinta, reflectindo, com maior ou menor
dificuldade, as pers- pectivas jurídicas que foram pontificando em cada
época.
O problema central é, portanto, historicamente situado. De facto,
a doutrina atual padece ainda de uma forte influência do positivismo vo-
luntarista, orientação essa que tenta reduzir o direito à mera expressão
da vontade do estado. Daí resultou, não apenas um enfraquecimento do
63
Esta lição e as duas seguintes – o mesmo é dizer, a matéria relativa à articulação entre
o direito internacional e o direito interno – constitui uma adaptação e actualização de uma
publi- cação nossa (Marrana, 2011) que, por sua vez, evoluiu dos sumários desenvolvidos
distribuídos aos alunos em anos anteriores.
A abordagem do problema geral (a articulação entre o direito internacional e o direito
interno) nas três perspectivas diferentes (enquadramento, mecanismos de regulação, regime na-
cional) permite-nos seguir um percurso desde o plano teórico até ao plano prático. Com
pequenas diferenças, o assunto foi assim tratado no Relatório do Conselho Federal Suíço sobre a
matéria (Conseil fédéral, 2010, p. 2068).
44
Oitava lição: o costume
64
O positivismo voluntarista clássico foi uma escola de pensamento jurídico do século
XIX cujos principais autores terão sido os alemães Jellinek e Triepel e que terão tido como
percursores, no século anterior, Vattel (1714-1768), Moser (1701-1785) e Georges-Frédéric de
45
Rui Miguel Marrana
Martens (1756- 1821) (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, pp. 58, 78).
46
Oitava lição: o costume
65
A identificação entre o direito e o Estado deve-se sobretudo a Kelsen, sendo todavia
corrente a aceitação dessa situação na doutrina (Goldsmith & Levinson, 2009, p. 1795 (n7);
Ewald, 1997, p. 1072).
66
A matéria é comummente tratada no início do curso e dos manuais. Surge como uma
bela querela escolar, na qual os argumentos se agrupam e respondem numa feliz harmonia que
agrada ao espírito e se grava facilmente na memória. O candidato […] conclui habitualmente a
favor da tese do monismo com primado do direito internacional, na qual se integra a grande
mai- oria dos autores contemporâneos e, consequentemente, com toda a probabilidade, o seu
próprio examinador (Virally, Sur un pont aux ânes: les rapports entre droit international et droit
interne, 1990, p. 103).
67
A distinção essencial entre os âmbitos internacional e interno é corrente na doutrina.
V. tb. Goldsmith & Levinson (2009, p. 1792).
47
Rui Miguel Marrana
68
Veja-se, a título de exemplo, o trabalho da CNUDCI/UNCITRAL (Comissão das NU para
o direito comercial internacional), disponível em http:/ /www.uncitral.org.
69
A prática é sempre mais flexível do que a postura teórica. Assim, mesmo os estados
que consagram posições dualistas admitem a validade imediata do direito consuetudinário e dos
prin- cípios gerais de direito (Conseil fédéral, 2010, p. 2068). Por outro lado, é frequente
constatar-se em Estados com sistemas monistas, que a eficácia do direito interno, juridicamente
inferior, ultra- passa de longe a do direito internacional, cuja superioridade se arrisca a parecer
puramente no- minal. É sempre desagradável e inquietante que se estabeleça um fosso ou, mais
ainda, uma con- tradição entre a teoria e a prática (Virally, Sur un pont aux ânes: les rapports
entre droit international et droit interne, 1990, p. 105). Tal é o caso do monismo francês, que a
própria doutrina reconhece ser um monismo falso, na medida em que o ordenamento jurídico
insiste que a fonte primária de toda a norma seja a constituição (Decaux, 2010, p. 469).
70
Na perspetiva anglo-saxónica tradicional, a invocação da soberania resulta (ou con-
funde-se, mesmo) com a defesa da autodeterminação democrática. Uma corrente importante
do pensamento político americano encara o direito internacional como uma tentativa ilegítima
le- vada a cabo por estrangeiros que não são controlados democraticamente, de interferir nas
deci- sões políticas internas legitimadas pela maioria (Goldsmith & Levinson, 2009, p. 1793).
48
Oitava lição: o costume
71
As classificações doutrinais, não sendo totalmente idênticas, tendem a variar pouco.
Em alguma doutrina anglo-saxónica distingue-se, por vezes, entre harmonização e dualismo
(Miller, 1989, p. 150), naquilo que podemos considerar duas vertentes da mesma corrente.
72
A recusa da vigência não impede, na prática, alguma abertura aos ditames internacio-
nais. Assim, a própria tradição americana – que a partir de uma postura monista vem
aumentando progressivamente as limitações à vigência do direito internacional (Goldsmith &
Levinson, 2009,
p. 1792) - parece admitir – desde o famoso ac. 1900 relativo ao Paquete Habana que declarava o
direito internacional como parte do direito interno americano - que, também na aplicação da lei,
não devam os tribunais decidir sem prestarem o devido respeito àquilo que é referido logo no §1
da Declaration of Independence (1776) como as posições ou opiniões da humanidade (Koh,
2004, p. 43/44).
A posição inicial americana evoluiu no sentido do dualismo, assente no princípio segundo
o qual em última instância, caberia sempre aos tribunais determinarem o direito aplicável (ibi-
dem). E nesse âmbito tornou-se determinante a posição do US Supreme Court, no qual
pontuaram nos últimos anos figuras como Clarence Thomas ou Antonin Scalia, arautos da
jurisprudência na- cionalista, que entre outras características, se mostra muito resistente a
admitir que fontes inter- nacionais gerem limitações das prerrogativas nacionais (Koh, 2004, p.
52). De facto, se os EUA se mostraram inicialmente muito abertos ao direito internacional, vêm
colocando cada vez mais li- mitações à sua vigência. Na actualidade, nem os tribunais, nem as
autoridades administrativas […] se esforçam por o executarem eficazmente. À aplicação das
regras internacionais, opõem regular- mente o direito nacional e até o dos Estados federados. O
supremo Tribunal afirmou que uma decisão do TIJ não produzia efeitos jurídicos directos e não
vinculava portanto as autoridades ju- diciais (Conseil fédéral, 2010, p. 2097).
Em sentido inverso a ordem constitucional francesa evoluiu em três graus distintos de
monismo: o velho nacionalismo jurídico que se veio a combinar com a pressão da europeização
evoluindo para um internacionalismo grandioso (Decaux, 2010, p. 470).
73
D. Anzilotti afirmava-o claramente: as normas não têm carácter jurídico senão dentro
da ordem jurídica de que fazem parte (Virally, Sur un pont aux ânes: les rapports entre droit
international et droit interne, 1990, p. 107)
74
A recusa da vigência do direito internacional na ordem interna dos estados pode surgir
com fundamentos diferentes dos tradicionalmente enunciados. Assim, parte da doutrina
defende essa recusa por referência a um défice democrático no direito internacional, maxime do
direito consuetudinário (McGinnis & Somin, 2007). Deve, todavia, assinalar-se que a
identificação de dé- fices democráticos nas instituições internacionais - e no direito internacional
em geral - é uma característica genérica da crítica atual a este ramo jurídico, a qual, por essa via,
actualiza a insis- tência na sua suposta irrelevância (Chandler, 2005; Frischmann, 2003).
49
Rui Miguel Marrana
aux ânes: les rapports entre droit international et droit interne, 1990, p.
104; Reuter, 1985, p. ch 1).
As correntes monistas – que correspondem à visão tradicional do
direito75 – recusam, portanto, a distinção da natureza das ordens jurídi-
cas, em especial quando essa distinção pretende atastar a interpenetra-
bilidade mútua. Posto de outra maneira, recusa-se aquilo que é a novi-
dade dualista: uma suposta constatação de diferenças tão essenciais nas
ordens jurídicas internacional e interna que tornariam impraticável ou
impossível a vigência das regras de uma das ordens na outra e que
teriam como consequência a exigência da transformação das regras
internacio- nais em regras internas, sempre que se pretendesse admitir
a sua vigên- cia. Recorde-se o resultado final do pressuposto dualista:
apenas vale- riam na ordem interna dos Estados aquelas regras
internacionais que o poder instituído entenda transformar (ou seja,
consagrar o seu conteúdo num acto interno). É uma postura que
evidencia algo que podemos de- signar por soberanismo76 voluntarista
(Rusié, 1999, p. 10), ou seja, a re- cusa da obrigatoriedade de qualquer
regra que não constitua uma mani- festação de vontade dos órgãos de
soberania77.
A visão monista permanece fiel ao entendimento do carácter uni-
versal do sentido de justiça78, o que implica, portanto, não admitir que
argumentos de natureza formal possam recusar a aplicabilidade de re-
gras. De qualquer forma, ao admitir a vigência da regra internacional –
75
Talvez seja oportuno insistir no facto de o dualismo apenas surgir como reacção ao
mo- nismo. Posto de outra maneira: a visão tradicional sempre assentou naquilo que
designamos pelo pressuposto monista. Acontece, todavia, que as visões positivistas e
voluntaristas dos últimos dois séculos, vieram a sugerir outros pressupostos (a que nos
referimos supra), o que obrigou a distin- guir. Só então, por facilidade, se começa a fazer
referência ao monismo (por oposição ao dualismo, portanto).
76
O soberanismo territorialista, ou particularismo, corresponde a uma perspetiva defen-
siva das relações internacionais e da sua regulação jurídica. Recusando a uniformização dos regi-
mes por via convencional (que constitui o esforço mais evidente de regulação do meio internaci-
onal no pós guerra) insiste na protecção da prerrogativa soberana nacional, em especial no to-
cante à determinação das regras jurídicas. Isso decorre do pressuposto básico de que apenas
existe ordem dentro das comunidades políticas específicas (cuja coesão interna depende da dis-
tinção para com as demais), não sendo essa ordem portanto alargável à humanidade como um
todo (Bogdandy & Dellavalle, 2008, p. 28). As relações internacionais – mesmo que dentro do
quadro interestadual - são vistas como ameaças à própria existência do Estado-nação (Cottier &
Hertig, 2003, p. 265).
77
O conceito tradicional de soberania (enquanto poder do Estado exercer a suprema au-
toridade sobre todas as pessoas e coisas no seu território) tem sido objeto de importantes limi-
tações, sublinhadas mesmo ao nível das NU (Corel, 1999).
78
No monismo encontramos duas tendências distintas: a corrente de base jusnaturalista
- que assenta numa preocupação ética fundamental – e a corrente normativista (Kelsen) que se
ergue sobre argumentos formais (Shaw M. N., 2008, p. 131).
50
Oitava lição: o costume
79
Alguma doutrina usa a expressão monismo invertido ou inverso, para identificar o mo-
nismo com primado do direito interno (Miller, 1989, p. 150). Numa leitura algo diferente da co-
mum, o Conselho federal suíço (2010, p. 2090) considera que no monismo haverá sempre vincu-
lação do Estados ao direito internacional, distinguindo-se o caso do primado deste pelo facto de
ele ser um dos fundamentos de validade do próprio direito interno.
80
O dualismo foi defendido por espíritos brilhantes como Triepel e Anzilotti cuja habili-
dade dialéctica criou ilusões. Ela dissimulou durante muito tempo as fraquezas lógicas e as
contra- dições teóricas […] Um estudo recente, apoiado sobre uma documentação exaustiva,
mostrou que a posição dualista é absolutamente insustentável por um juiz internacional
confrontado com as exigências próprias da sua função, mesmo que verbalmente assumisse tais
posições (Virally, Sur un pont aux ânes: les rapports entre droit international et droit interne,
1990, p. 104).
81
A impossibilidade de o cumprimento ser justificado com atos internos estava já expres-
samente afirmada na Convenção de Havana sobre tratados, de 1928, celebrada entre Estados
americanos. No art. 11º desta, afirmava-se expressamente que os tratados continuarão a
produzir os seus efeitos, ainda que se modifique a constituição interna dos Estados contratantes.
Alguma doutrina explica a relativa indefinição atual por nos encontrarmos numa fase
evolutiva intermédia. Assim, teremos ultrapassado a postura extrema inicial em que o direito in-
ternacional se dirigia apenas às relações diplomáticas, à navegação marítima e à guerra, cujas
regras não eram aplicáveis por tribunais internos - mas não teremos atingido a fase em que a
ordem universal é idêntica à dos Estados, no sentido em que se impõe a todos os sujeitos
(Reuter, Droit international public, 1993, p. 68).
51
Rui Miguel Marrana
82
Não tem efeito directo, diríamos então, usando de uma distinção doutrinal recente,
que ainda não é sequer pacífica (cf. infra, nota 114)
83
A intervenção do TIJ depende sempre de um acordo entre os Estados (envolvidos num
conflito) no sentido de submeterem uma questão à sua apreciação. É o que resulta do art. 36º/1
ETIJ. Naturalmente que esse acordo pode ser anterior ao conflito, constando de uma cláusula
convencional.
52
Oitava lição: o costume
84
De facto, o carácter secular da discussão entre monismo e dualismo permitiria pensar-
se que existiriam dados concretos disponíveis sobre as diferentes posições assumidas pelas dife-
rentes ordens internas dos Estados, o que, na realidade, não se verifica (Voigt S. , 2006).
Em termos práticos, as diferenças entre dualismo e monismo esbatem-se, até porque,
mesmo nos Estados consagrando regimes dualistas, se reconhece a vinculação genérica ao
direito internacional (sob pena de responsabilização – o que leva as autoridades a procurarem
interpretar o seu direito interno em conformidade com o direito internacional vigente) e
normalmente a- dmite-se a validade do direito consuetudinário. Por outro lado, também os
regimes que consa- gram posições monistas introduzem frequentemente exigências ou
requisitos de vigência às re- gras internacionais (Conseil fédéral, 2010, p. 2088).
85
O pluralismo não constitui a única alternativa apresentada pela doutrina (embora se
possa dizer que provavelmente será a única que consubstancia uma corrente doutrinária e que
apresenta uma alternativa assente nos pressupostos lógicos do monismo e dualismo. Outras
pro- postas existem, como seja a do realismo, que encara o direito internacional como um
processo jurídico complexo e dinâmico interligado com processos jurídicos regionais e nacionais,
que não se esgota no elenco tradicional das fontes ou dos sujeitos – cf. Jordan J. Paust (2013).
86
Alguma doutrina faz recuar os fenómenos de pluralismo às origens da própria common
law e (num âmbito exterior) ao direito europeu medieval e ao jus commune (Michaels, 2009, p.
9). Outros autores ficam-se por referências mais recentes, nomeadamente a admissão da aplica-
ção pelos tribunais de regras específicas dos grupos em determinadas questões, situação que
pode encontrar-se já em finais do século XVII, na regulação dos territórios administrados pela
Companhia das Índias (Griffiths, 1986, p. 6).
53
Rui Miguel Marrana
153). De facto, desde há séculos que esta tem conseguido evitar a sub-
missão pura e simples da actividade dos seus membros às autoridades
nacionais, garantindo importantes graus de autonomia (em termos de
or- ganização e de regulação de alguns aspectos essenciais da sua activi-
dade), com o que deu origem a uma admissão implícita, da parte dos Es-
tados, da autonomia dos membros das confissões religiosas (Berman P.
S., 2007, p. 1161). Foi essa mesma admissão que tornou as relações
entre a Igreja e o Estado o locus classicus da análise da pluralidade de
ordens normativas (Galanter, 1981, p. 28).
Assim, ainda hoje a Igreja católica se relaciona com os Estados em
pé de igualdade (através do sistema tradicional de relações
diplomáticas) e, além disso, estabelece com estes convenções
internacionais que regu- lam os termos da autonomia do seu magistério,
designadas por concor- datas (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p.
452).
Na génese das análises pluralistas contemporâneas – que surgem
na segunda metade do século passado – está a constatação da
frequente sobreposição de comunidades e das respectivas regras,
incidindo a aná- lise sobretudo na questão do reconhecimento 87
(Teubner, 1997, p. 125). O seu âmbito essencial foram as sociedades
pós-coloniais dos anos 60, nas quais começaram a ser estudadas as
regras e os processos derivados das culturas tradicionais que não tinham
acolhimento legal – e que, por vezes, contrariavam mesmo o direito
vigente, introduzido pelas potências coloniais (Avbelj, 2006, p. 388;
Berman P. S., 2007, p. 1170). Essa circuns- tância deu origem àquilo que
ficou conhecido como a percepção colonial do pluralismo jurídico88, ou
pluralismo clássico (Michaels, 2009, p. 4). A esta fase seguiu-se a
percepção pós-colonial, que incidiu sobre regras consuetudinárias e
sobre outros corpos de regras produzidas por actores
87
Compreende-se que assim seja, uma vez que é neste plano que o pluralismo inova. De
facto, ao assentar na subsistência de diferentes ordens jurídicas não articuladas, o pluralismo pa-
rece contrariar a assunção básica do monismo (a necessária ordenação hierárquica dos
diferentes corpos normativos, como condição da unidade do sistema jurídico). Por outro lado,
também o dualismo assenta num pressuposto hierárquico: inexistindo comunicação entre os
domínios naci- onal e internacional, as regras internacionais apenas vigoram na ordem interna
como consequên- cia da sua transformação, a qual corresponderá a uma decisão soberana no
sentido da introdução das mesmas.
O reconhecimento pelo poder estadual da existência de outros corpos normativos pres-
supõe uma vontade de convivência com eles, sem que seja reclamada a tradicional exclusividade
do poder normativo ou, numa vertente mais flexível, a submissão hierárquica destes às manifes-
tações soberanas.
88
Com o fim do colonialismo, os impérios foram substituídos por Estados independentes,
os quais foram questionados por entidades tribais, nacionais ou étnicas que visavam a secessão.
Isso criou uma vaga global de localismos que ameaçou o sistema estadual (Franck T. M., 1996, p.
360).
54
Oitava lição: o costume
89
Cf. nomeadamente o disposto no art. 1º da Convenção para a Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio de 1948, pelo qual as partes contratantes não estabelecem ou tipificam o
genocídio como um crime, mas antes, limitam-se a constatar essa circunstância.
90
Cf art. 27º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966.
91
Neste conceito de ordens jurídicas alternativas cabem não apenas os níveis regionais
ou locais, ou de minorias, mas também entidades especializadas como bolsas de valores ou
associações desportivas (Berman P. S., 2016, p. 153).
55
Rui Miguel Marrana
92
A ]ex mercatoria é constituída por um (significativo e muito relevante) corpo de regras
de auto regulação do comércio internacional e que tem sido objeto de análise em diferentes
perspectivas, para além do pluralismo (Michaels, 2009, p. 6).
93
Para além destas críticas, que partem da doutrina jurídica, soma-se o elenco das
críticas avançadas pela antropologia: a propensão para conceitos básicos ou incipientes de
cultura e de direito, a dificuldade em definir e distinguir a regra jurídica, a tendência
etnocêntrica, a preferên- cia romântica pela pluralidade e localidade sobre a uniformidade e
universalidade (Michaels, 2009, p. 2).
94
A corroborar esta ideia, podia referir-se a perspetiva segundo a qual - ao contrário do
que comummente se assume e afirma - o direito não ser um sistema de regras jurídicas, mas um
sistema de relações jurídicas - matrizes que identificam pessoas e situações em termos
abstractos (Allott, 1999, p. 36).
95
Essa ilusão de exclusividade leva a que se tendam a ignorar as normas sociais que pre-
cedem as normas legais (formais), denotando aquilo que alguma doutrina designa como um
vício intelectual da estadualidade (Shaw & Wiener, 1999, p. 7).
56
Oitava lição: o costume
E. A superação da querela
A superação da querela entre monismo e dualismo foi evoluindo
na prática96 internacional, em volta de algumas posições consensuais97.
Existe, desde logo, uma convergência doutrinária quanto ao dever
dos Estados conformarem a respectiva ordem jurídica ao cumprimento
das suas obrigações internacionais. Este princípio foi afirma do logo no
primeiro caso que o TPJI apreciou, relativo ao vapor Wimbledon. Nesse
acórdão, de 17.8.1923, afirmava-se que o art. 380º do Tratado de Versa-
lhes, de 1919, entre as potências aliadas e a Alemanha, impedia esta de
aplicar ao canal de Kiel a decisão de neutralidade que havia promulgado
em 25.07.1920 (§2 do dispositivo). Alguma doutrina interpreta esta deci-
são no sentido de que conteria implícita a afirmação da primazia direito
internacional sobre o direito interno (Tchikaya, 2000, p. 26; Carreau,
Droit International, 1999, p. 44), até porque frequentemente se faz
equivaler esse princípio ao referido dever de conformação do direito
interno ao cumprimento das obrigações internacionais – o qual se
encontra actualmente consagrado no art. 27º CV69.
Deve, todavia, esclarecer-se que o referido dever de conformação
não equivale necessariamente98 à afirmação, ainda que implícita, de um
96
As posições monistas ou dualistas mais do que oferecerem explicações gerais sobre as
relações entre as ordens jurídicas internacional e interna, reflectem convicções sobre o modo
como essas relações deveriam ser estruturadas. Nessa medida, não se trata de tendências positi-
vas mas puramente normativas (Voigt, 2006, p. 5). É certo que chamados a decidir numa
situação de conflito entre normas internas e internacionais, os tribunais tenderão a ser
influenciados pela posição monista ou dualista da respectiva ordem jurídica. Mas, quase sempre,
evitarão colocar e decidir sobre a questão de princípio (Higgins, 1994, p. 206).
97
Esse quadro de convergência foi inicialmente apresentado por Hersh Lauterpascht
(1897-1960) - eminente magistrado do TIJ, geralmente enquadrado no jusnaturalismo (Shaw M.
N., 2008, p. 131) -, tendo sido introduzido na doutrina portuguesa pelo Prof. Afonso Queiró
(Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 87).
98
A interpretação que a doutrina faz da jurisprudência não é convergente. Assim, no ac.
25.5.1926 do TPJI, relativo a interesses alemães na Alta Silésia polaca, afirma-se que face ao di-
reito internacional e ao tribunal de que é o órgão [jurisdicional], as leis nacionais constituem me-
ras situações de facto, manifestações da vontade e da actividade dos Estados, tal como as
decisões judicias ou os atos administrativos (CPJI/PCIJ, 1926, p. 19). Alguma doutrina encontra aí
nova insistência no princípio da primazia ou primado (Tchikaya, 2000, p. 27), enquanto outra
interpreta a afirmação como uma expressão evidente do dualismo (Nguyen Quoc, Daillier, &
Pellet, 1999, p. 96). Em todo o caso deve reconhecer-se que o TIJ veio a acolher na sua
jurisprudência esse prin- cípio da primazia, afirmando expressamente no Parecer relativo à
aplicabilidade da obrigação de arbitragem: seria suficiente recordar o princípio fundamental em
direito internacional da primazia deste direito sobre o direito interno. Esta primazia foi acolhida
na jurisprudência desde a sentença arbitral de 14 de Setembro de 1872 no caso do Alabama,
entre os EUA e a Grã-Bretanha e tem sido por diversas vezes recordado depois disso,
nomeadamente no caso das comunidades grego-
57
Rui Miguel Marrana
búlgaras (CIJ/ICJ, 1988, p. 34). A doutrina insiste todavia no facto de, muito embora a prática in-
ternacional não acolher de forma absoluta qualquer das posições de princípio tradicionais (dua-
lismo e monismo), consagra em geral a primazia do direito internacional (Rusié, 1999, p. 10).
99
A consagração do princípio da primazia do direito internacional constitui, apesar de
tudo, uma garantia mais consistente da obediência ao dever de conformar a sua ordem jurídica
ao cumprimento das obrigações internacionais. De facto, essa consagração expressa sempre
per- mitirá a eventuais interessados invocá-lo judicialmente para justificar, por exemplo, a
recusa do cumprimento de uma regra ou instrução nacional, ou para questionar a validade de
determinada regra ou acto nacional. Na falta da consagração expressa do princípio, os tribunais
poderão en- tender não dever aplicar a regra internacional, ficando, assim, o cumprimento do
dever de con- formação da sua ordem jurídica interna dependente de decisões de outra
natureza (maxime polí- tica) que podem tardar, ou até mesmo não ocorrer (até porque o
controlo internacional da situa- ção e a possibilidade de responsabilização internacional podem
ser difíceis, no caso).
100
No Parecer relativo ao tratamento dos cidadãos polacos (4.02.1932), o TPJI afirmou
expressamente que um Estado não pode invocar em relação a outro Estado a sua própria
constituição para se eximir ao cumprimento de obrigações impostas pelo direito internacional
(CPJI/PCIJ, 1932, p. 24).
101
Um estudo que incidiu sobre os regimes de 56 países, mostra à evidência como as
diferentes ordens jurídicas raramente consagram regimes decalcados das posições doutrinais.
As- sim, na maioria dos casos os regimes não assumem expressamente posturas monistas
(apenas 19 dos 56 e, dentro daqueles, apenas 4 consagrando a primazia do direito
internacional). Não obs- tante, a maioria (31 Estados) admite a possibilidade de as regras
internacionais beneficiarem de efeito directo. Por outro lado, se a maioria dos Estados (46)
consagra a possibilidade de os tribu- nais superiores aplicarem directamente o direito
internacional, apenas 6 admitem a não aplicação de uma regra constitucional por contrariedade
com o direito internacional (Voigt S. , 2006, pp. 12, 14).
102
Essa obrigação de conferir primazia às regras internacionais verifica-se, a título exce-
pcional no âmbito do direito da UE. O princípio do primado foi expressamente consagrado na
jurisprudência (cf. ac. 17.12.1970, Handelsgesellschaft), prevendo-se, ainda, a possibilidade da
condenação por incumprimento (independentemente da verificação dos danos, portanto) - cf.
art. 258º e 259º TFUE -, admitindo-se ainda que esse incumprimento possa originar a
aplicação de
58
Oitava lição: o costume
adstrições (sanções pecuniárias a suportar até que seja corrigida a situação de incumprimento) -
cf. art. 260º do mesmo tratado.
Devemos todavia referir que, embora seja comum na doutrina a assunção de que do pri-
mado consubstancia uma relação hierárquica entre o direito da UE e o direito interno dos
Estados (MacCormick, 1995, p. 263; Avbelj, 2007), em nossa opinião, essa hierarquia é apenas
aparente. De facto, não há qualquer submissão das ordens nacionais à ordem europeia, na
medida em que esta não legitima aquelas nem as enquadra. As ordens nacionais não agem no
quadro de compe- tências que lhes são atribuídas pela ordem europeia. Pelo contrário, são os
Estados-membros que
- se e quando o entendem- transferem competências para o nível europeu (segundo um estrito
princípio de atribuição consagrado no art. 5º TUE), podendo, por via do mecanismo da revisão
(que é por si inteiramente controlado cf. art. 48º TUE), readquiri-las. O que há é, nos âmbitos
das competências objeto de transferência, primazia das decisões europeias, porque sem isso,
essa transferência perderia sentido ou seria esvaziada. Nos expressos termos referidos na
jurisprudên- cia, o direito que emana do tratado, uma fonte independente de direito, não pode,
devido à sua própria natureza ser anulado por norma alguma do direito nacional, sem ser
privado do seu ca- rácter de direito comunitário e sem que a própria base jurídica da comunidade
seja posta em causa. Assim, a validade de um acto jurídico comunitário ou o seu efeito no
interior de um Estado- membro não podem ser afectados por alegações de que viola quer
direitos fundamentais formu- lados na constituição desse Estado quer os princípios de uma
estrutura constitucional nacional (ac. Handelsgesellschaft, cit.).
103
Cf. Opinión Consultiva OC-14/94 de 9.12.1994, do TIADH, relativo à responsabilidade
internacional por adopção e aplicação de leis violadoras da convenção.
104
Para além da responsabilidade internacional, releva ainda a questão da imagem inter-
nacional do Estado. Assim, as pretensões internacionais de pequenos Estados, como Singapura,
são directamente afectadas pelo simples facto de poder retirar-se de um acórdão do supremo
tribunal que os tribunais devem aplicar a regra nacional ainda que contrária a um costume inter-
nacional (Lim, 2005, p. 222).
59
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Em que medida é diferente um conflito entre regras nacionais ou entre
regras nacionais e internacionais?
105
Daniel Halberstam especifica as circunstâncias a que se refere. Assim, quando o Tribu-
nal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) ameaçou interpretar o TUE em termos
dis- tintos da interpretação que era dada pelo (ao tempo designado) Tribunal de Justiça das
Comuni- dades Europeias (TJCE), ele não pretendia discordar sobre aquilo que o dito tratado
significava para a Europa, mas apenas sublinhar o que o mesmo tratado significava para a
Alemanha, no quadro das suas limitações constitucionais próprias (Halberstam, 2008, p. 12). Não
se terá tratado, assim, de questionar uma hierarquia (em formação), mas apenas forçar uma
acomodação neces- sária às especificidades germânicas.
60
Oitava lição: o costume
Bibliografia de referência
SHAW, Malcom N. 2008. International Law. 6th ed. Cambridge, UK: Cam-
bridge University Press, pp. 129-133.
CONSEIL FEDERAL, 2010. La relation entre droit international et droit in-
terne. Feuille fédérale n° 13 du 7 avril, pp. 2067-2143. Disponível em
https://www.admin.ch/opc/fr/federal-gazette/2010/2067.pdf
Leituras recomendadas
VIRALLY, Michel (1990). Sur un pont aux ânes: les rapports entre droit
international et droit internes. Em M. Virally, Le droit international en devenir :
Essais écrits au fil des ans (pp. 103-117). Paris: PUF
KOH, H. H. (2004). International Law as Part of Our Law. American
Journal of International Law, 98, 43-57
61
V Lição
Mecanismos de regulação
A. Objetivo
Na lição anterior identificamos, no plano teórico, os pontos de
par- tida possíveis para a análise da questão da articulação entre o
direito in- ternacional e o direito interno.
Vimos que existem três perspectivas distintas que identificamos
como o monismo, o dualismo e o pluralismo. Essas perspectivas consti-
tuem um pressuposto para que se percebam os diferentes mecanismos
reguladores das relações entre o direito internacional e a ordem jurídica
interna dos diferentes Estados. O mesmo é dizer que cada um dos
pontos de partida vai dar origem a um (ou mais) mecanismo de
regulação espe- cífico.
Na prática o debate entre as diferentes posições doutrinais vai
inci- dir sobre a questão da incorporação ou transformação das regras
inter- nacionais em direito interno e a aplicação dessas regras pelos
tribunais nacionais (Abashidze, 2013, p. 23).
As diferentes ordens jurídicas nacionais fixam – frequentemente
no seu texto constitucional formal – regras tendo em vista regular essas
re- lações (no caso português, trata-se do art. 8º CRP, cuja análise
efectuare- mos infra). Tais regras, reflectem posições doutrinais
(consubstanciadas normalmente em modelos consensuais acolhidos na
prática internacio- nal). É certo que o tempo foi permitindo matizes
diferentes dessas mes- mas regras, mas, para uma compreensão
correcta dos diferentes meca- nismos, será mais fácil começarmos pelos
regimes puros, analisando pos- teriormente as variações possíveis.
É isso que vamos ver nesta lição.
61
Rui Miguel Marrana
106
A doutrina dualista apresenta diversas matizes. Assim, é também frequente a
justificação da necessidade da transformação pelo facto de o direito internacional em geral
apenas vincular os Estados, pelo que, para poder vigorar na ordem interna (e nomeadamente
para poder vincular os indivíduos) teria de ser repetido ou retomado por um acto interno
(Kelsen, 1936,
p. 5). Desta forma se volta à ideia das diferentes naturezas (o direito internacional ordenaria as
relações entre estados ao passo que o direito interno regularia as relações entre indivíduos).
107
Na Europa, o Reino Unido, a Alemanha e a Suécia consagram fórmulas dualistas mo-
deradas (Conseil fédéral, 2010, pp. 2088, 2094, 2096).
108
A doutrina usa as designações de forma não convergente. Assim, entre os autores
fran- ceses é frequente designar-se a cláusula de transformação por cláusula ou procedimento
de re- cepção (Virally, Sur un pont aux ânes: les rapports entre droit international et droit
interne, 1990, p. 107).
109
Diferente da questão das relações entre as ordens jurídica interna e internacional é a
da execução das convenções internacionais na ordem interna (enquanto o problema das
relações trata os temos da interpenetração das ordens jurídicas, a execução do direito
internacional refere- se ao cumprimento das obrigações jurídicas vigentes que decorrem deste).
Acontece, todavia, que dentro desta questão (da execução) se refere a circunstância de, por
vezes, a introdução das con- venções nas ordens internas supor a prática de determinados atos,
eventualmente com carácter legislativo. Torna-se, por vezes, difícil conferir em que termos tais
exigências traduzem uma pos- tura dualista ou, diversamente, consistem em meras exigências
procedimentais, não derivadas desse tipo de perspectivas. Parece ser preferível entender que
apenas subsistem posições dualis- tas na medida em que se pretendam os efeitos próprios da
transformação, ou seja, se recuse a vigência da regra internacional enquanto tal, impondo a sua
transformação em regra de direito interno, sendo a partir de então tratada como tal (em sede
de interpretação, hierarquia, etc.).
62
Oitava lição: o costume
C. A sua complexificação
Tal como anteriormente referimos, os regimes efectivamente con-
sagrados virão a acolher matizes mais ou menos claros, que procurare-
mos explicitar a seguir.
Assim, mesmo que as ordens jurídicas exijam a prática de atos internos com natureza legislativa
como condição de introdução de convenções na ordem interna, desde que existam sinais
eviden- tes de que não obstante, a regra internacional é aplicável nessa qualidade, parece ser de
conside- rar-se a posição integrável no monismo.
110
O caso americano é paradigmático: embora genericamente se assuma o direito inter-
nacional como directamente aplicável, as autoridades americanas, em muitos casos (maxime de
convenções sobre direitos humanos), declaram, no momento da ratificação, a aplicabilidade das
disposições convencionais dependentes de um acto de transformação, o que atrasa o processo e
permite interpretações consideravelmente restritivas. Mesmo em relação à aplicação das regras
consuetudinárias os tribunais americanos tendem a impor exigências especiais (ser self-
executing, preciso e constatada a prática constante) para admitirem a sua aplicabilidade (Conseil
fédéral, 2010, p. 2098). De facto, embora os EUA pareçam estabelecer constitucionalmente um
regime monista (com primado do direito internacional), o facto é que o próprio regime
constitucional impede a incorporação ou recepção automática. A aplicação do regime pelos
tribunais vem-se afastando dessa postura inicial, sendo de assinalar uma decisão do U.S.
Supreme Court em 2008 (Medellín v. Texas) que roça o dualismo (Telman, 2013).
111
O (monismo com) primado do direito internacional é, como se vem referindo, domi-
nante na doutrina e na jurisprudência internacionais. Pode até dizer-se que constitui a posição
de princípio da maioria dos sistemas constitucionais. No entanto, a maioria dos Estados fixa
limites à vigência do direito internacional na sua ordem interna e, na verdade, nenhum Estado
reconhece sem restrições o primado do direito internacional (Conseil fédéral, 2010, p. 2068).
63
Rui Miguel Marrana
112
As cláusulas (ou mecanismos) de recepção semi-plena surgem frequentemente nos
casos dos Estados cujas posições dualistas de princípio (ou seja, que, por regra exigem a
transfor- mação) não impedem a vigência imediata de algumas fontes, tais como o direito
consuetudinário ou os princípios gerais de direito (cf. supra nota 69).
113
O nível de exigência pode variar, não obedecendo necessariamente à postura de prin-
cípio dos diversos Estados. Assim, é frequente que em ordens jurídicas monistas se exija a
prática de atos parlamentares como condição da vigência de regras internacionais o que,
enquanto tal, parece não diferir da transposição (Conseil fédéral, 2010, p. 2068). Neste plano
haverá que atentar à fonte. Se a exigência da prática do acto parlamentar se refere ao direito
convencional, não pa- rece que se deva considerar que aí surja uma transformação, já que a
intervenção parlamentar tenderá a constituir um elemento da expressão da vontade de
vinculação (que é imprescindível num acordo de vontades). Se a mesma exigência extravasa do
âmbito convencional, aí sim, poderá consubstanciar uma transformação.
114
A doutrina não é ainda hoje pacífica na utilização dos termos. Assim, neste âmbito
confundem-se e utilizam-se simultaneamente conceitos e termos próximos (aplicabilidade di-
recta, aplicabilidade imediata, efeito directo, imediatidade, etc.). A confusão mais frequente é
entre o efeito directo e a aplicabilidade directa. A distinção que julgamos dever fazer-se vai no
64
Oitava lição: o costume
D. As alternativas pluralistas
A perspetiva tradicional dos modelos dualistas ou monistas radica,
como vimos, na necessidade da definição de critérios de prevalência hie-
rárquica116 alternativa a essas respostas unitárias, o pluralismo propõe
um modelo jus regenerativo que se concentra em compromissos e em
intervenções criativas feitas por diferentes comunidades normativas, a
partir de diferentes fontes, numa interacção política, retórica e legal
(Berman P. S., 2007, pp. 1156, 1166).
sentido seguinte: enquanto a aplicabilidade directa tem a ver com a vigência de regras de uma
ordem jurídica noutra ordem jurídica (refere-se portanto à interpenetração de ordens jurídicas),
o efeito directo prende-se com a mediatidade, ou seja, a eventual necessidade de intervenção
reguladora das autoridades no sentido de permitir a sua invocação por particulares. O mesmo é
dizer que o efeito directo se refere à criação de efeitos na esfera jurídica dos destinatários e que,
por essa via, torna a regra susceptível de ser invocada em juízo, pelos particulares. Em todo o
caso, é frequente que a doutrina e a jurisprudência utilizem o termo efeito directo no sentido
que aqui designamos por aplicabilidade directa. Assim, quando no art. 288º TFUE se confere
aplicabilidade directa aos regulamentos, está-se a reconhecer efeito directo (na terminologia
aqui defendida). Também quando no art. 18.° CRP se afirma serem os preceitos constitucionais
em matéria de direitos fundamentais directamente aplicáveis se está a referir a desnecessidade
de intervenção mediadora do legislador e portanto, se está a usar o termo no sentido daquilo
que referimos ser efeito directo. Veja-se outro exemplo, no âmbito inverso: a jurisprudência
canadiana afirma ser claro que, no Canadá, os tratados não dispõem de efeito directo, excepto
quando intervenha o órgão legislativo, o que deriva da tradição parlamentar britânica que visava
impedir a usurpação do poder legislativo pelo soberano (cf. Arrow River and Tributaries Slide &
Boom Co. Limited, 0 [1932] S.C.R. 495, at p. 510; tb. Capital Cities Communications Inc. v.
Canadian Radio•Television Commission, [1978] 2 S.C.R. 141, at p. 173). Este princípio parece
referir-se àquilo que vimos de- signando como aplicabilidade directa e já não ao efeito directo.
115
Na aplicabilidade directa não apenas o regime de vigência como também o padrão de
validade dos atos escapa, assim, à autoridade nacional, que se mantém alheada da matéria.
116
É certo que o regime da aplicabilidade directa supõe, ele próprio, o reconhecimento
de uma situação de pluralismo. Acontece que, na doutrina europeia, insiste-se a propósito, no
princípio do primado, o qual tende a ser visto como uma determinação de prevalência
hierárquica. Nessa medida - muito embora devamos deixar nota sobre as nossas reservas
quanto a essa visão que reputamos simplista (que deixamos sumariamente referidas na nota
102) - a aplicabilidade directa decorre e parece insistir numa perspetiva hierárquica que
contraria os pressupostos plu- ralistas.
65
Rui Miguel Marrana
117
A ideia do estabelecimento de um critério único remete invariavelmente para a
hierar- quização. Ora é isso mesmo que o pluralismo jurídico pretende evitar: reconhecendo a
pluralidade de ordens jurídicas, na coexistência de ordens jurídicas nacionais com outras ordens,
insiste na ausência de primazia hierárquica (Michaels, 2009, p. 1).
118
Estes espaços de discussão e ponderação visam articular ordens nacionais e supra na-
cionais, mas também as ordens subnacionais. O problema do enquadramento das minorias é,
aliás, um tema central no pluralismo jurídico, tal como tivemos oportunidade de referir quando
introduzimos o tema. Nesse âmbito- e no sentido apontado por Paul Berman - Peter Häberle re-
fere que, do ponto de vista teórico-constitucional a protecção das minorias surge como uma
forma de diferenciação interna do Estado constitucional, revitalizando o enquadramento norma-
tivo do âmbito nacional. Assim, só será possível falar de uma 'constituição do pluralismo' se
existir uma protecção suficiente das minorias, a qual começa com a tolerância e o respeito da
dignidade dos outros, enquanto finalidades educativas, e termina com um provedor ou
mediador e com a formalização de cláusulas de protecção das minorias (Häberle, 2000, p. 95).
66
Oitava lição: o costume
2. Margens de apreciação
A doutrina das margens de apreciação foi desenvolvida pelo TEDH
visando um equilíbrio entre o respeito pelas decisões nacionais (nos pla-
nos legislativo e judicial) e a necessidade de garantir a capacidade deste
tribunal determinar, em última instância, a compatibilidade dos atos
com a CEDH (Helfer & Slaughter, 1997, p. 316). Tratou-se, portanto, de
conceder espaço de manobra às autoridades nacionais na implementa-
ção da convenção, permitindo-lhes acomodarem as especificidades naci-
onais. Esse espaço terá de ser tanto maior quanto menos existam con-
sensos europeus na matéria.
Esta solução oferece, portanto, algum tipo de acomodação ao plu-
ralismo, sem todavia permitir que as autoridades nacionais ignorem as
decisões do TEDH. Para além disso, impõe ao tribunal a ponderação da
possibilidade de consensualizar- o que denota, só por si, um esforço de
convivência plural (não hierárquica) -ao mesmo tempo que, por via
dessa ponderação, fica obrigado a explicitar o seu entendimento
relativamente
119
As relações dialéticas entre tribunais tenderão a crescer desde logo por força da pos-
sibilidade de apreciação mútua das respectivas decisões. Assim, as instâncias internacionais vêm
assumindo uma função de apreciação crescente, aproximando a sua intervenção cada vez mais
de verdadeiros recursos. A doutrina americana tem constatado e analisado esta situação a partir
de uma decisão muito crítica do painel da NAFTA em relação a uma decisão de um tribunal do
Mississípi em matéria de concorrência (no caso Lowen Group, Inc. v. United States). Sendo certo
que esse tipo de decisões não se impõem aos tribunais internos americanos, parece impensável
que em futuras apreciações, estes não ponderem os argumentos produzidos e os riscos de os
EUA virem a ser condenados ao pagamento de pesadas indemnizações (Ahdieh, 2004, p. 2029;
Berman
P. S., 2007, p. 1198). No âmbito europeu a articulação entre o TEDH e os tribunais nacionais tem
sido exemplo dessa mesma relação, com especial incidência para o regime relativo às garantias
de um processo equitativo (art. 6.da CEDH).
67
Rui Miguel Marrana
4. Esquemas subsidiários
A subsidiariedade é um mecanismo de gestão das relações entre
autoridades introduzido pela Igreja para evitar que os níveis superiores
de autoridade interferissem indevidamente na vida interna da comuni-
dade (Berman P. S., 2007, p. 1207; Igreja Católica, 1993 , p. §1833). A
atri- buição a níveis mais elevados de competências que podem ser
exercidas
ao nível inferior constitui uma injustiça (Pio XI, 1931, p. §79).
Visa-se portanto que a autoridade seja exercida ao mais baixo
nível, o que constitui um critério material de determinação do nível
compe- tente.
Trata-se, assim, de um critério de resolução de conflitos que intro-
duz uma ponderação material (a verificação da maior eficácia da regula-
68
Oitava lição: o costume
5. Redundâncias judiciais
Um conflito normativo (ou seja, a existência de um concurso de
nor- mas, de diferentes origens, vocacionadas para a regulação de uma
mesma situação) pode ser perspectivado como uma vantagem, na me-
dida em que alarga as hipóteses de correcção de erros, robustece o raci-
ocínio jurídico e aumenta as possibilidades de inovação criativa (Cover,
1981, p. 649).
A História recente mostra como os conflitos jurídicos forçam
repon- derações que, por sua vez, conduzem a soluções mais
adequadas. Um caso paradigmático terá sido o do pedido de extradição,
pelas autorida- des judiciais espanholas, de funcionários argentinos que
beneficiavam de uma amnistia (Berman P. S., 2007, p. 1211). O
presidente argentino veio a usar esse pedido no sentido de obter do
Parlamento a anulação da lei de amnistia. O mesmo aconteceu com o
pedido de extradição de Pino- chet que conduziu ao levantamento da
imunidade do general pelas auto- ridades chilenas.
Também o funcionamento do TPI – cuja intervenção é supletiva -
vem nesse sentido, ou seja, pressionando os Estados onde as situações
ocorreram a desencadearem os procedimentos adequados120
Em geral, para além das referidas vantagens apontadas à
redundân- cia podemos sempre considerar que sempre que os decisores
são força- dos a ponderar a existência de outros decisores possíveis,
tenderão a adoptar, com o tempo, uma visão mais contida do seu poder
de determi- nação (Berman P. S., 2009, p. 1152).
120
Muito embora o pluralismo possa ser estudado em diferentes enquadramentos, esse,
como outros exemplos, tornam patente o facto de o pluralismo de origem internacional
constituir a vertente mais relevante (a doutrina apelidou-a de forte ou profunda), ou seja,
aquela em que de forma mais evidente se não assumem hierarquias entre as ordens jurídicas
envolvidas (Michaels, 2009, p. 5).
69
Rui Miguel Marrana
70
Oitava lição: o costume
E. Síntese
Vimos como as correntes jurídico-filosóficas (maxime o jusnatura-
lismo e o positivismo) deram origem a posições de princípio (monismo e
dualismo) que estão na base dos regimes constitucionais relativos à arti-
culação entre o direito interno e o direito internacional. Pudemos, no
en- tanto, constatar como as relações causais são menos evidentes do
que seria de esperar, principalmente quando se abandona o âmbito
acadé- mico e se mergulha no terreno concreto dos regimes positivos.
Neste enquadramento, mais do que uma suposta separação das
águas, importa relativizar essas diferenças, valorizando os regimes de
convergência e, sobre eles, definir modelos de articulação cuja flexibili-
dade garanta a tão necessária funcionalidade. Na senda, aliás, da velha
máxima in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas (João
XXIII, 1959, p. 513).
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Identifique os mecanismos de regulação das relações entre as ordens
jurídicas a partir das posições doutrinais de princípio anteriormente definidas.
2. Explique em que termos as posições doutrinais são assumidas nas
dife- rentes ordens jurídicas.
B. Questões directas
1. Explique a diferença entre mecanismos de recepção e mecanismos de
transformação.
2. Distinga mecanismos de recepção plena de mecanismos de recepção
semi-plena.
3. Distinga o mecanismo de recepção automática do mecanismo de re-
cepção plena
4. Distinga o mecanismo de recepção automática do regime da
aplicabili- dade directa.
5. Explique em que termos se articulam as diferentes ordens jurídicas na
perspectiva pluralista.
Bibliografia de referência
KELSEN, Hans. 1936. La transformation du droit international en droit
interne, Revue générale de droit international public, pp. 5-49.
Leituras recomendadas
GONÇALVES PEREIRA, André e QUADROS, Fausto de. 1993. Manual de
Di- reito Internacional Público, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, pp. 94-105.
71
Rui Miguel Marrana
72
VI Lição
A vigência do direito
internacional na ordem jurídica
portuguesa
A. Objetivo
Identificada a tipologia dos mecanismos através dos quais as
ordens jurídicas internas regulam as suas relações com a ordem jurídica
interna- cional, é agora tempo de concretizarmos mais a nossa análise,
estudando o regime nacional.
A CRP de 1976 – menos do que afirmar princípios e reconhecer os
mecanismos deles decorrentes – consagra, desde o seu texto original,
um regime específico no seu art. 8º, o qual, ao longo dos anos, tem sido
ob- jecto de algumas alterações.
Vejamo-lo pois.
121
Esta é genericamente a posição mais comum que encontramos no sistema francês
(Conseil fédéral, 2010, p. 2095), ou russo (Abashidze, 2013, pp. 25, 26).
122
A situação brasileira é, neste ponto, curiosa. Assim, o regime constitucional do Brasil
não regula as relações entre o o direito internacional e o direito interno o que, na prática, levou
o Supremo Tribunal Federal a decidir (no recurso extraordinário nº 80.004, de 1977) no sentido
de fazer equivaler o direito convencional à lei (interna) aplicando o princípio do lex posteriori a
eventuais conflitos. Esta posição – que parece permanecer no direito brasileiro – é reconhecida
como inconveniente pela doutrina que defende a afirmação constitucional da superioridade da
lei (Medeiros A. C., 2007, p. 205).
73
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rível. Desde logo porque se trata de uma situação excepcional em que se ultrapassa o carácter
75
Oitava lição: o costume
cada Estado - como é, desde logo, o caso CNU, das convenções relativas
ao direito da guerra128, ou da DUDH.
A segunda questão prende-se com a classificação do regime
consti- tucionalmente fixado para o direito internacional geral ou
comum. Em- bora a doutrina não seja unânime (até por nem sempre
utilizar as varian- tes da recepção a que fizemos referência), parece
dever considerar-se que, no caso, estaremos perante uma cláusula de
recepção automá- tica129. Na medida em que nenhuma exigência é
colocada como condição de vigência do direito internacional geral ou
comum na ordem jurídica portuguesa, não subsiste qualquer dúvida
quanto ao facto de se tratar de um mecanismo de recepção, o qual, por
sua vez, teremos de considerar automático, já que dispensa toda e
qualquer intervenção das autoridades portuguesas.
Duvida-se que pudesse ser outro130, o regime. Em todo o caso, o
reconhecimento é expresso e definitivo.
relativo dos efeitos convencionais e, nesse âmbito, tem-se desenvolvido progressivamente esta
posição, dentro da doutrina das chamadas situações objectivas. Por outro lado, esta solução é
aquela que confere maior estabilidade e clareza do regime, uma vez que a assunção do carácter
consuetudinário por regras convencionais se faz individualmente, ou seja, não pode assumir-se
que uma convenção se torne costume in toto (cf. nomeadamente o ac de 20.02.1969 do TIJ rela-
tivo à plataforma continental do Mar do Norte, no qual aquela instância apreciou o eventual ca-
rácter consuetudinário de uma regra convencional, concluindo negativamente, em razão de cir-
cunstâncias formais - por admitir reservas, no caso).
128
Será o caso das Convenções de 1899 e de 1907 relativas ao Respeito pelo direito e os
Costumes da Guerra em Terra, das Convenção de 1907, relativas ao Estatuto dos Navios Mercan-
tes Inimigos na Abertura das Hostilidades, à Conversão de Navios Mercantes em Navios de
Guerra, ou relativa ao Bombardeamento de Forças Navais, etc.
129
Esta classificação não é unânime na nossa doutrina. Assim, alguns autores consideram
tratar-se de uma cláusula de recepção plena (Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 108), refe-
renciando, aliás, uma ampla convergência doutrinal nesse sentido. Tal como referimos no texto,
esta classificação justifica-se na medida em que não incluamos, no leque dos mecanismos, a
cláu- sula de recepção automática. Julgamos, todavia, que a abordagem proposta por Marta
Chantal Ribeiro, acolhendo os progressos doutrinais decorrentes do direito europeu, oferece
uma matriz que beneficia não apenas dessa evolução mas também de maior clareza, o que
parece essencial em qualquer abordagem académica (Ribeiro, 2001).
130
É ilustrativo, neste âmbito, o debate que se vem desenvolvendo actualmente nos Es-
tados Unidos, onde, desde o século XVIII se assume o direito internacional geral como
integrando o direito americano (federal, portanto). Verificam-se, todavia, ao presente, algumas
resistências em certos membros do Supremo Tribunal, no tocante às indemnizações por factos
cuja ilicitude decorre de regras consuetudinárias (Dodge, 2004; Weisburd, 2003). A
eventualidade de se tratar de uma alteração do entendimento dominante e da prática mereceu
uma referência no Juridical Yearbook (United Nations, 2012, pp. 541-543) - que inclui uma
resenha histórica breve sobre a evolução. V. tb. supra, nota 72.
Situação controvertida é a da Suécia, Estado onde em geral se defende a necessidade da
transformação do próprio direito consuetudinário – admitindo-se alguma flexibilidade relativa-
mente aos direitos humanos (Conseil fédéral, 2010, p. 2099)
75
Rui Miguel Marrana
131
Ac. do TIJ de 12.04.1960 relativo ao direito de passagem em território indiano.
132
De fora ficam as convenções que integram o direito internacional geral ou comum,
que caem na alçada do nº 1, e bem assim as convenções relativas à UE, que beneficiam do
regime do novo nº 4.
133
Constatada a intervenção no processo de vinculação das autoridades que detêm po-
deres no plano legislativo (e exactamente em paralelo ao exercício desses poderes), poder-se-ia
contemplar a possibilidade de se tratar de um regime de transformação implícita. Para conferir-
mos essa hipótese bastaria respondermos à seguinte questão: as regras convencionais são inter-
pretáveis e aplicáveis segundo o regime nacional (se considerarmos haver transformação, esta
terá de ser a solução), ou segundo o regime internacional (solução que demonstrará a manuten-
ção da qualidade internacional)? Ora, não parecem subsistir dúvidas quanto ao facto de a
resposta ter de seguir a segunda hipótese, ou seja, de se reconhecer que o legislador
constitucional portu- guês em momento nenhum pretender assimilar o direito internacional ao
direito interno e nessa medida reconhecer que a sua vigência na nossa ordem interna se faz na
qualidade internacional.
76
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77
Rui Miguel Marrana
competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte
78
Oitava lição: o costume
134
Tecnicamente o direito derivado de organizações internacionais dá origem a atos uni-
laterais destas, nos quais se distinguem as recomendações (atos não obrigatórios) e as decisões
(atos obrigatórios). Para efeitos do regime de vigência, apenas é relevante o caso das decisões.
Fora do quadro da UE existe apenas uma situação: as decisões do Conselho de Segurança das NU
e nomeadamente as adoptadas no âmbito do cap. VII da CNU, em caso de ameaça à paz, ruptura
da paz, ou agressão. Mas estas decisões não caem no âmbito do nº 3 do art. 8º CRP. Isto porque,
desde logo, a própria CNU não prevê - expressa ou implicitamente - a sua aplicabilidade directa,
deixando aos órgãos políticos dos Estados a obrigação da determinação dos meios capazes de
garantirem os resultados fixados. Por outro lado, as decisões do Conselho de Segurança na
maté- ria são atos individuais e concretos, e só excepcionalmente surgirão com carácter
normativo (o que constitui uma exigência do preceito constitucional).
135
Estranha-se assim que se tenha mantido esta regra do nº 3 do art. 8º sem objeto real,
ao passo que outras situações específicas e juridicamente relevantes não mereceram um trata-
mento ou enquadramento constitucional. Referimo-nos nomeadamente à situação do direito ca-
nónico, o qual vigora na ordem jurídica portuguesa por força do regime concordatário (cf. art.
10º e ss., da Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé, de 2004), regime esse que
implica importantes graus de articulação em matérias sensíveis como o casamento, a criação
modificação ou extinção de pessoas jurídicas canónicas, o funcionamento de jurisdições
canónicas, etc. Poder- se-á à primeira vista pensar que o regime constitucional vigente pretende
enquadrar essa situação no âmbito genérico do nº 2. No entanto, o escopo dessa norma esgota-
se em regras convencionais (e portanto ao mero texto concordatário), ficando por enquadrar o
direito canónico propriamente dito (ou seja o direito derivado - já não de uma organização
internacional propriamente dita, mas da Igreja católica - cujos destinatários são a comunidade
de fiéis).
79
Rui Miguel Marrana
136
Será interessante ter presente que as alterações introduzidas nesta matéria não surgi
riam nas seis propostas de revisão constitucional apresentadas pelos grupos parlamentares (cf.
elenco in fine). Foi já no âmbito do funcionamento da Comissão Eventual para a Revisão Consti-
tucional que surgiram as propostas nesse sentido, as quais foram justificadas com o advento da
Constituição Europeia
137
Repare-se que, no caso dos atos de direito derivado, o próprio regime de publicação
(que constitui uma condição de eficácia desses atos) é independente dos regimes nacionais, fa-
zendo-se, portanto, através de meios próprios (o JOUE). Esta circunstância é ilustrativa da
referida sobreposição (em separação) das ordens jurídicas, que marca o regime da aplicabilidade
directa.
138
Repare-se que mesmo nos casos britânico e sueco – em que se consagram, em geral,
sistemas de transformação puros (exigindo-se portanto a prática de um acto interno que intro-
duza na ordem jurídica o conteúdo internacional) – se excepciona o direito da UE, cuja aplicabili-
dade directa é genericamente admitida (Conseil fédéral, 2010, pp. 2097, 2099).
80
Oitava lição: o costume
139
Nesse sentido, afirmou a deputada Assunção Esteves, quando em nome da bancada
do PSD apresentou a proposta: a referência aos princípios do Estado de direito é a explicitação
de uma condição já implícita (DAR I série N78/ IX/2, p. 4216).
140
Talvez o mais importante desses atos tenha sido a Decisão dos Representantes dos
Estados-Membros reunidos em Conselho (76/787 /CECA, CEE, Euratom) relativa à eleição dos re-
presentantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal directo e que regulou durante déca-
das a matéria (V. Decisão do Conselho 2002/772/CE, Euratom, de 25.06.2002 e de 23.09.2002,
que altera o acto).
141
O direito convencional da UE (as convenções celebradas por esta com Estados não
membros ou outras organizações internacionais) não parece dever considerar-se direito
derivado (não se referir a normas emanadas das instituições comunitárias, para usarmos a
fraseologia da regra constitucional). De facto o direito derivado, segundo a matriz das fontes
internacionais, pa- rece ser constituído por atos unilaterais de uma organização internacional.
Nestes termos – salvo interpretação extensiva –, o direito convencional da UE não integra a
previsão do nº 4 do art. 8º da CRP.
81
Rui Miguel Marrana
142
O problema surge, todavia, na prática, também em sistemas dualistas. Isto porque,
com frequência, estas admitem a vigência de algumas fontes (costume e princípios gerais) – con-
sagrando cláusulas de recepção semi-plenas – e, por outro, porque pode sempre surgir um con-
flito entre uma norma nacional e a regra internacional objeto de transformação (com o mesmo
resultado prático daquele que surgiria numa estrutura monista). Para uma análise concreta dos
diferentes regimes europeus V. Conseil fédéral (2010, 2093 ss.).
143
Em especial o art. 27º CV69, que fixa o já referido dever de os Estados adequarem a
respectiva ordem interna ao cumprimento das suas obrigações internacionais (dever este que,
como referimos também, a doutrina frequentemente faz equivaler ao acolhimento da primazia
do direito internacional).
144
As limitações quase sempre são justificadas na perspetiva inversa, nomeadamente
questionando sobre se um tratado pode afastar um direito constitucionalmente protegido
(Spiro, 2003). No sistema russo, a regra constitucional (art. 15º) é específica, afirmando a
superioridade
82
Oitava lição: o costume
83
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149
Subsiste, todavia, doutrina em sentido diverso, defendendo o valor infra legal dos
acor- dos em forma simplificada (Medeiros, 1990, p. 369).
150
Na jurisprudência, essa posição não é tão clara. Assim, vejam-se os acórdãos do STJ de
28.01.1988, proc. 075221, de 28.2.1989, proc. 077125, nos quais se reconhece mero valor legal
às regras convencionais, admitindo-se expressamente a possibilidade de serem revogadas pela
lei interna. O STJ recusou-se assim a retirar do disposto no art. 8º/2 CRP qualquer normativo
relativo à hierarquia do direito internacional face às fontes de direito interno (cf. ac. 9.12.1992,
proc. 083144). Mais recentemente parece poder assinalar-se uma inflexão na jurisprudência
deste tri- bunal. Vejam-se nomeadamente os acórdãos de 11.12.1990, proc. 079399, de
28.1.2003, proc. 02A4323, de 9.10.2003, proc. 03B1604 e de 9.12.2004, proc. 04B3939, nos
quais se reconhece expressamente a primazia do direito internacional.
Quanto ao acórdão referido supra na nota 147, cujo conteúdo suscita alguma preocupa-
ção (tanto mais que o relator, o conselheiro Mário Torres, veio a integrar o TC a partir de 2002),
deve assinalar-se o ac. 4.12.2002, proc. 02S3074, do mesmo relator, em que já se reconhece a
primazia do direito internacional.
A jurisprudência do TC não parece oferecer resistência ao reconhecimento do carácter
supra legal das convenções internacionais (v. nomeadamente o ac. 322/92. proc. 218/90).
151
O art. 55º da Constituição francesa afirma expressamente que os tratados e acordos
regularmente ratificados ou aprovados têm, desde a sua publicação, um valor superior às leis. É,
aliás, por causa desta regra que a jurisprudência francesa veio a afirmar o poder do juiz de con-
trolar a regularidade da vinculação aos tratados (ac. 29 de Maio de 2001, da 1ª Câmara civil da
Cour de Cassation). Por outro lado, o Conselho Constitucional francês mantém o poder de fiscali-
zação da constitucionalidade dos tratados, o que é entendido, na prática, como conferindo a
estes um valor infra constitucional (Conseil fédéral, 2010, p. 2095). Para uma evolução do
regime e da prática francesa face ao direito internacional v. Emmanuel Decaux (2010).
Já a ordem constitucional da Suíça, embora reconheça genericamente a vigência e o pri-
mado do direito internacional, considera que, se um acto da Assembleia federal derroga intenci-
onalmente alguma regra internacional os tribunais federais ficam vinculados à decisão
parlamen- tar em consequência da separação de poderes (Conseil fédéral, 2010, p. 2068). Nos
EUA o caracter infra constitucional e supra legal é assumido, mas na aplicação surgem
frequentes limitações (ibi- dem, 2098).
84
Oitava lição: o costume
152
O valor infra constitucional das regras convencionais internacionais é também a regra
seguida em França que inclui nas regras constitucionais quaisquer normas com esse valor (cf. ac.
2.06.2000, do plenário da Cour de Cassation).
153
De facto, o controlo preventivo da constitucionalidade, surgindo em momento
anterior à vinculação, a detectar uma inconstitucionalidade (não ultrapassável através dos
mecanismos disponíveis - formulação de declarações interpretativas e/ ou reservas, em relação
85
Rui Miguel Marrana
à convenção, ou por via da revisão constitucional) obstaria à vinculação, evitando o conflito.
86
Oitava lição: o costume
D. Síntese prática
Antes de concluirmos, convirá fazer uma síntese prática.
Vimos como numa perspetiva internacional, está pacificamente
assumido o dever de os Estados conformarem o seu direito interno ao
cumprimento das suas obrigações internacionais (o que não implica ne-
cessariamente a aceitação da primazia do direito internacional, embora
parte da doutrina faça essa equivalência). Pudemos também verificar
como, no plano nacional, os regimes constitucionais nacionais introdu-
zem exigências ou limitações (assim, por exemplo o regime português
ao postular o carácter infra constitucional das regras convencionais,
estará a impor aos tribunais nacionais a desaplicação da regra
internacional, em caso de inconstitucionalidade).
154
O reconhecimento do primado do direito da UE em geral (derivado e também originá-
rio) foi aliás um dos temas mais referenciados nos debates parlamentares relativos à aprovação
da Lei de Revisão constitucional (cf.DAR, I Série n. 78 e 79 /IX/2 de 23 e 24 de Abril de 2004).
155
No caso alemão – muito influente em relação à ordem nacional – é pacífico o primado
do direito da UE, admitindo o tribunal constitucional uma restrição nos casos em que uma regra
europeia agredisse os valores fundamentais da constituição alemã (Conseil fédéral, 2010, p.
2094).
156
As afirmações produzidas por António Costa, do PS, no debate parlamentar relativo à
aprovação desta norma, poderão servir para se perceber, por um lado, o carácter tendencial-
mente académico da questão da primazia (já que, na verdade, é difícil- possível mas improvável-
que possa vir a surgir uma situação de conflito do direito da UE com a CRP), e por outro, o reco-
nhecimento parlamentar da antiguidade (e obrigatoriedade) do princípio do primado (cf. DAR, I
Série N.78/IX/2, de 23 de Abril de 2004, p. 4217 ss.).
87
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questão geral
Caracterize o regime do art. 8º da Constituição e identifique a posição
doutrinária que o inspira.
B. Questões directas
1. Explique o significado da expressão ‘direito internacional geral ou co-
mum’ contida no nº 1 do art. 8º da Constituição.
2. Caracterize o nº 1 do art. 8º da Constituição enquanto mecanismo re-
gulador das relações entre as normas internacionais e internas.
3. Explique se a vigência dos costumes regionais ou locais é admitida na
ordem jurídica nacional em qual o regime aplicável.
4. Caracterize o nº 2 do art. 8º da Constituição enquanto mecanismo re-
gulador das relações entre as normas internacionais e internas.
5. Explique qual o regime de vigência da CNU na ordem jurídica nacional.
6. Explique qual o regime de vigência do Tratado da União Europeia na
ordem jurídica nacional.
7. Caracterize o nº 4 do art. 8º da Constituição enquanto mecanismo re-
gulador das relações entre as normas internacionais e internas.
Leituras recomendadas
GONÇALVES PEREIRA, André e QUADROS, Fausto de (1993) Manual de
Di- reito Internacional Público, 3ª Ed., Coimbra: Almedina, pp. 106-115
157
O mecanismo estabelecido no quadro do DUE - cf. art. 258º a 260º TFUE – tornou evi-
dente, não apenas a possibilidade do controlo judicial do cumprimento das obrigações dos Esta-
dos, mas também a importância da pressão que esses mecanismos exercem e bem assim, a rele-
vância dos espaços de negociação política que antecedem as fases contenciosas.
88
Oitava lição: o costume
89
TERCEIRA PARTE
A. Objetivo
Esta lição tem natureza cautelar: tem-nos sido possível observar
ao longo dos anos algumas deficiências e confusões que os alunos
trazem da sua formação jurídica anterior, as quais vêm a dificultar a
compreensão de alguns conteúdos no direito internacional. Julgamos,
por isso, preferí- vel introduzir alguns esclarecimentos que identifiquem
e expliquem essas situações e efectuar um enquadramento da matéria
antes mesmo de en- trar nos seus diferentes aspectos.
158
Numa apresentação frequentemente citada (Abi-Saab, 1987, p. 185) Oppenheim
preocupado com os diferentes sentidos do conceito de fonte, distinguia entre esta e causa,
salientando ser claro que, tal como nas nascentes, o lugar no qual a àgua brota não é causa da
sua existência (Oppenheim, International Law, 1912, p. 20/21 §15).
91
Rui Miguel Marrana
159
Prosper Weil (1996, p. 132) refere que as fontes materiais relevam de uma
abordagem histórica e sociológica.
92
Oitava lição: o costume
D. Fontes e normas
Importa também não confundir fontes com normas internacionais
(estas correspondem ao conteúdo e substância de uma regra elaborada
segundo as exigências procedimentais de determinada fonte formal).
Na verdade, a mesma norma pode resultar de várias fontes (por
exemplo de um costume e de uma convenção), ao mesmo tempo que a
mesma fonte pode dar origem a uma multiplicidade de normas distintas
(como acontece com as diferentes disposições de uma mesma conven-
ção: a mesma fonte é composta por distintas normas).
160
O voluntarismo, influente naquele tempo, satisfez-se com o entendimento de que o
costume consistiria num pacto tácito – e nessa medida, se reconduzia todo o fundamento da
obri- gatoriedade do direito internacional à vontade dos Estados (que assentiria em termos
expressos
– nos tratados – ou tácitos – na formação de regras consuetudinárias). A questão será objeto de
desenvolvimento infra, aquando da análise do fundamento da obrigatoriedade do costume (p.
100 ss.).
161
Na realidade o debate extravasou os trabalhos preparatórios, surgindo quando da dis-
93
Rui Miguel Marrana
cussão do diploma na Assembleia geral da SdN (cf. nota 594) é ainda referido como latente em
trabalhos dos anos 60 (cf. p. 273).
94
Oitava lição: o costume
162
Esta afirmação não é pacífica na doutrina, que frequentemente afirma tratar-se de
verdadeiras fontes (Weil, 1996, p. 138).
163
Estas duas fontes correspondem ao hard law, ou seja, aquelas cuja violação pode ser
objeto de controlo judicial (Duplessis, 2007, p. 249).
164
A redução do elenco das fontes ao referido no ETIJ corresponde à chamada teoria
positivista das fontes (Duplessis, 2007, p. 249).
95
Rui Miguel Marrana
3. Ordem e hierarquia
A doutrina levantou ainda a questão de saber se a ordem das
fontes tal como vem referida no art. 38º ETIJ corresponde ou não a uma
hierar- quia entre estas (maxime entre as convenções e o costume). A
resposta tem todavia de ser negativa (Weil, 1996, p. 138; Abi-Saab,
1987, p. 188): não se trata de uma hierarquia mas tão só da ordem
segundo a qual o juiz internacional deve aplicá-las. A convenção deve
aplicar-se imediatamente pois, a existir, corresponde a um regime
especial a que as partes se obrigaram - e nessa medida é de presumir
que se, numa dada matéria, as partes estabeleceram um corpo de
regras específico, este desenvolve o regime geral e deve preferir a este,
nessa qualidade. E também os princípios gerais, por terem uma carácter
mais abrangente do que as regras convencionais ou consuetudinárias
(das quais derivam) são de aplicação subsidiária relativamente a estas.
A ordem do nº 1 do art. 38.º é, portanto, uma ordem de aplicação
na medida em que está estabelecida da fonte (tendencialmente165)
espe- cial para a geral. O mesmo é dizer que a resolução de eventuais
conflitos entre nomas de diferentes fontes deverá resolver-se aplicando
os princípios gerais: desde logo lex specialis derogat generali e, se
necessário, lex posterior derogat priori (Abi-Saab, 1987, p. 188).
Dominique Carreau (1999, pp. 72-104) refere-se, não obstante, ao
nascimento e desenvolvimento de uma hierarquia das normas (já não
das fontes), a qual assentaria nos princípios seguintes:
• primado da paz e da segurança internacionais – a CNU;
• as regras de jus cogens;
165
Trata-se, efectivamente de uma tendência apenas, podendo, na prática surgir
situações distintas. Assim, pode, por exemplo, acontecer que no âmbito da aplicação de uma
convenção surja um costume contrário (que altera ou especifica uma regra da convenção).
Nesse caso a regra consuetudinária precede naturalmente a regra convencional.
96
Oitava lição: o costume
Questões de revisão
A. Questão geral
Diga o que entende por fontes de direito.
B. Questões directas
1. Distinga fontes criadoras de fontes transmissoras;
2. Distinga fontes materiais e fontes formais;
3. Distinga fontes de normas;
4. Explique a relevância da ordem das fontes do art. 38º ETIJ;
5. Será taxativo o elenco das fontes do art. 38.º ETIJ?
6. Explique em que medida existe uma hierarquia de fontes ou de
normas de direito internacional.
Bibliografia de referência
PELLET, Alain 2006 - Article 38 in ZIMMERMANN, Andreas, TOMUSCHAT,
Christian OELLERS-FRAHM, Karin (eds.) The Statute of the International Court of
Justice - A Commentary Oxford, UK: Oxford University Press pp. 677-792
Leituras recomendadas
NGUYEN QUOC Dinh et. al. 1999. Droit International Public, 6ª Ed. Paris:
L.G.D.J. pp. 111-116.
GONÇALVES PEREIRA, André e QUADROS, Fausto de. 1993. Manual de
Di- reito Internacional Público, 3ª Ed. Coimbra: Almedina, pp. 151-153.
BROWNLIE, Ian. 1990. Principles of public international law, 4ª Ed., Ox-
ford: Clarendon Press.
166
Adiante veremos que este princípio – da inexistência de hierarquia das fontes – se
restringe ao elenco formal referido no art.º 38º/1 ETIJ. Isto porque quanto as fontes não
previstas (atos unilaterais e atos concertados) parecem estar hierarquicamente sujeitas àquelas
(cf. infra p. 290).
97
Rui Miguel Marrana
98
Oitava lição: o costume
99
VIIILição
O costume
A. Objetivo
O conceito de costume é normalmente assimilado pelos alunos no
primeiro ano do curso de direito. Mas trazem consigo também, tenden-
cialmente, da formação inicial, algumas distorções, entre as quais a con-
fusão entre o direito e a lei e a presunção de que as demais fontes
tenham um carácter histórico e/ou meramente acessório. Daqui
resultam dificul- dades específicas que importa contrariar, até porque,
no quadro das fon- tes do direito internacional, o costume mantém uma
posição central.
A matéria requer, por isso, uma atenção particular, para contrariar
a desconsideração a que naturalmente é votada. Constitui, por outro
lado, um desafio importante que enriquece a formação jurídica em
geral, ao forçar novas perspectivas de análise.
B. Importância relativa
Manley O. Hudson (1932, p. 83) – académico americano que foi
juiz do TPJI – referia-se ao costume afirmando que esta parte do direito
inter- nacional está numa condição insatisfatória. Estas reservas são
centená- rias e fundam-se, as mais das vezes, nas dificuldades
resultantes do ca- rácter espontâneo das suas regras167. Timothy L.
Meyer e Andrew T. Guzman (2008) explicam-nas bem, recordando que é
através dos proce- dimentos de criação das regras jurídicas que
normalmente se podem afe- rir a natureza e o âmbito das obrigações
delas recorrentes. Ora, sendo o costume espontâneo, isso significa que
não existem procedimentos (for- mais) de onde essa informação possa
ser retirada e por isso, a natureza e âmbito das obrigações
consuetudinárias permanecem dúbias168.
167
As fontes do direito consuetudinário são várias e muito díspares no seu peso relativo, e
em diferentes partes do mundo este direito é entendido em sentidos diversos (Hudson, 1932, p.
82).
168
A posição dos autores, muito embora pretenda fundamentar a conclusão de que, por
isso, o grau de vinculação da regra consuetudinária é inferior ao das regras positivas, não vê
toda- via nisso uma limitação. Pelo contrário, defendem que isso constitui uma vantagem
relativa do
99
Rui Miguel Marrana
costume. É que, segundo eles, na assunção das suas obrigações internacionais, os Estados
ponde- ram os níveis de variação do grau de vinculação e a existência de alternativas (cujo grau
de vincu- lação é menor) permite-lhes assumirem determinado tipo de obrigações que de outra
forma re- cusariam.
Num sentido diferente, J. Patrick Kelly defende expressamente que as profundas diver-
gências na doutrina quanto à formação e ao conteúdo das normas consuetudinárias – e bem
assim o facto de em relação a diversas questões essenciais persistirem posições estaduais
absoluta- mente inversas – impedem que o costume se possa assumir como uma fonte de
normas jurídicas substantivas, muito embora seja reconhecida pela doutrina tradicional como
fonte primária e a sua obrigatoriedade universal venha sendo assumida pelo menos desde o séc.
XIX. O autor de- fende porém que o costume internacional deixe de ser considerado como fonte,
sendo substituído por processos consensuais (Kelly, 2000).
169
A questão do regime relativo aos investimentos internacionais é, no plano material,
uma das áreas mais importantes, na qual têm sido desenvolvidos ao longo dos anos esforços de
codificação (o último dos quais no seio da OMC, que foi abandonado em 2004) sem sucesso
(Meyer, 2012, p. 997).
170
Tal como adiante se referirá (infra, F. A codificação do costume, p. 114 ss.), os
processos de codificação – e que se estenderam por áreas como o direito dos tratados (1969), as
relações diplomáticas (1961) e consulares (1963), o direito do mar (1982), etc. – não consomem
100
Oitava lição: o costume
(ou esgotam) as regras consuetudinárias a que se referem.
10
1
Oitava lição: o costume
C. Fundamento da obrigatoriedade
A questão do fundamento da obrigatoriedade do costume 171 não
difere da questão geral da obrigatoriedade do direito internacional (ou
do próprio direito). A resposta a dar terá de ser a mesma em todas as
questões. Apenas se justifica uma referência a ela neste ponto em que
iniciamos o estudo do costume, na medida em que normalmente se as-
sume essa obrigatoriedade, mesmo para os Estados que não hajam par-
ticipado na sua formação (o que já não acontece com outras fontes, no-
meadamente as convenções, que apenas vinculam as partes). Donde,
sempre se pode perguntar porque não se há-de aplicar o mesmo regime
a todas as fontes. Importa portanto deixar clara a razão da diferença de
regime, até porque, como se verá de seguida, a concepção tradicional
do costume entendia este como um pacto – um acordo, portanto –
conce- pção essa que, a manter-se, obrigaria a aplicar-se ao costume o
regime convencional (isentando do seu cumprimento os Estados que
não parti- cipassem na sua formação)
171
A questão é aqui colocada num plano filosófico. Pode no entanto discutir-se noutras
perspectivas. Veja-se p. ex. o trabalho de George Norman & Joel P. Trachtman (2004) no qual os
autores identificam as condições objectivas que favorecem o cumprimento das regras consuetu-
dinárias a partir da teoria dos jogos. V. tb. George Norman & Joel P. Trachtman (2008).
101
Rui Miguel Marrana
172
Tb. a jurisprudência do TPJI no ac. 07.09.1927, no caso Lotus, acolheu esta perspetiva
(cf. em especial o §2 pg. 18). Convém recordar todavia que por essa altura, o positivismo
imperava na doutrina. Hoje em dia a posição dominante opõe-se a esta visão, no entanto, a
jurisprudência não é tão clara. Assim, por exemplo no ac. 20.02.1969 no caso relativo à
plataforma continental do Mar do Norte o TIJ não deixou de repisar a doutrina do Lotus
(Carreau, 1999, p. 263).
Do que se trata, afinal, é ainda de resquícios do positivismo, que ligando os dois elementos
– a soberania e a noção de consentimento como estando na base do funcionamento da
sociedade internacional – forçam a conclusão de que os Estados consentem nas convenções por
via da assinatura ou ratificação e no costume através da sua participação no processo de
formação deste.
173
Na doutrina atual a ausência de consentimento na formação do costume já não é
citada por referência à questão do fundamento da obrigatoriedade, mas antes para questionar a
sua validade enquanto fonte por dar origem a atos não democráticos (Kelly, 2000, p. 452 ss.). O
voluntarismo da posição não deixa todavia de facilmente detectável na argumentação oferecida
em abono destas posições.
102
Oitava lição: o costume
174
O referido ac. do TPJI de 07.09.1927no caso Lotus, parece aproximar-se tb. desta tese
objectivista.
175
Esse acolhimento constituirá a prova da existência do costume. Apesar de não existir
convergência, a CDI explicava já em 1950 que as principais provas da existência de costumes in-
ternacionais são as convenções, as decisões judiciais nacionais e internacionais, a legislação naci-
onal, os pareceres jurídicos de consultores nacionais, a correspondência diplomática e a prática
das organizações internacionais (Villiger, 1997, p. 17). A doutrina dos mais ilustres publicistas
pode constituir um meio auxiliar de determinação de normas consuetudinárias (cf. projº
conclusão 14 do texto apresentado pela CDI relativo à identificação do direito internacional
consuetudinário - Doc A/CN.4/L.872)
176
O entendimento tradicional vai no sentido de assumir a prática como antecedendo
(naturalmente) a convicção da obrigatoriedade (ou seja, o carácter normativo que é concedido à
prática, faz transcender o enquadramento material por via da abstracção, generalização e valori-
zação jurídica (Sinkondo, 1999, p. 64). Este é, digamos, o modo de formação corrente da regra
costumeira. Não se verifica, todavia, no caso do chamado costume selvagem, a que adiante nos
referiremos.
103
Rui Miguel Marrana
D. Elementos do costume
O artigo 38º do ETIJ refere-se ao costume como a prova de uma
prática geralmente aceite como sendo de direito180.
177
Anthony D’Amato – que constitui um importante autor americano da actualidade e
que vem procurando reformular a perspetiva do costume –, chama à atenção para o facto de a
análise do direito internacional consuetudinário se fazer na perspetiva (exclusiva) dos Estados,
propondo que se considere a própria ordem jurídica internacional como um jogador do sistema,
no sentido de sublinhar o papel desta na formação dos costumes (D'Amato, 1998).
178
Sempre buscando uma reformulação doutrinal do costume, D’Amato oferece uma
perspetiva curiosa que todavia chega a esta mesma conclusão. Assim, começa por definir como
objectivos primeiros do direito internacional a maximização da paz e da riqueza, para depois ex-
plicar que as regras consuetudinárias são retiradas das soluções conseguidas nas controvérsias
(we pick the rule that was necessary to the result that was reached). Aqui estaria o nascimento
da regra consuetudinária. A explicação resultaria do facto de essa adopção fazer diminuir as
possibi- lidades futuras de controvérsia e de confrontação (ibidem).
179
Em sentido contrário – e com particular impacto na doutrina atual – V. Jack L.
Goldsmith e Eric A. Posner (1999, p. 1115) que encontram na origem do cumprimento das regras
consuetudinárias apenas o mero interesse próprio dos Estados. Nesse sentido, oferecem aliás
uma definição curiosa, segundo a qual o costume seria um rótulo que é colocado sobre
comportamentos gerados no seio das interacções dos Estados enquanto perseguem o seu
interesse próprio.
Também em sentido divergente Eugene Kontorovich (2007) que defende a necessidade
de uma ponderação independente sobre a eficiência das práticas internacionais como condição
da sua assunção como costume.
180
A definição comummente aceite de costume é a de uma prática acompanhada da
con- vicção da sua obrigatoriedade (Machado, 1983, p. 161). A definição é universal - por todos
v. tb. Jack L. Goldsmith e Eric A. Posner (1999, p. 1113), ou A. Guzman (2005, p. 123) que
remetem para o Restatement (Third) of the Foreign Relations Law of the United States (American
Law Institute, 1987, p. §102), o qual explica que o costume resulta de uma prática geral e
consistente dos Estados acompanhada por uma convicção de obrigação jurídica. A definição por
referência aos seus ele- mentos formativos é retomada mesmo por autores que levantam
dúvidas quanto à qualidade da fonte, como seja J. Patrick Kelly (2000, p. 452), o qual desvaloriza,
todavia, o elemento material. Também no trabalho em curso na CDI relativo à determinação do
costume, se identificam os dois elementos como requisito da determinação de regras
consuetudinárias (cf. Conclusão 2, Doc A/CN.4/717 de 2018).
104
Oitava lição: o costume
181
O facto de se reconhecer de forma praticamente unânime ser o costume um modo
formação de regras jurídicas, isso não afasta as críticas que a noção vai sofrendo da parte de al-
guma doutrina. Assim, tal como salientam Timothy L. Meyer e Andrew T. Guzman (2008), as
críti- cas tradicionais (retomadas actualmente por Anthony D’Amato ou por L. Goldsmith e E.
Posner) giram em volta de três eixos: o carácter circular da definição, o carácter vago das regras
e a inde- finição de critérios que permitam aferir da verificação dos dois elementos do costume.
182
A convicção do direito ou da necessidade (da prática).
183
O elenco (não exaustivo) das formas que as práticas podem assumir é adiantado nos
trabalhos recentes, compreendendo: os atos e a correspondência diplomática; a conduta relativa
às resoluções adoptadas por uma organização internacional ou aquando de uma conferência in-
tergovernamental; a conduta relativa aos tratados; a conduta executiva, incluindo a conduta
ope- racional no terreno; os atos legislativos e administrativos; as decisões das jurisdições
internas (projº de conclusão 6/2 Doc. A/CN.4/L.872)
184
Os atos dos particulares não são, enquanto tal, reveladores ou indiciadores de com-
portamentos estaduais.
185
Alguns autores – como Anthony D’Amato – recusam a relevância de declarações de
diplomatas ou funcionários internacionais (Guzman, 2005, p. 126).
105
Rui Miguel Marrana
186
Em todo o caso, convirá insistir-se que muito embora determinados textos possam
contribuir para a criação de regras consuetudinárias, na medida em que evidenciam o comporta-
mento dos Estados, a verdade é que a existência jurídica de um costume não se identifica – não
depende nem decorre, portanto – dessas regras escritas (Carreau, Droit International, 1999, p.
267/268). Sobre o assunto v. tb. Andrew T. Guzman (2005, p. 126 ss.) que explicita os diferentes
entendimentos doutrinais na matéria.
187
Nesse mesmo sentido V. o projº de conclusão 11 relativo à determinação do costume
(Doc. A/CN.4/L.872) explicita que uma regra de um tratado pode reflectir uma regra consuetudi-
nária se o próprio tratado estabelece que essa regra codifica esta, que cristaliza uma regra em
formação ou ainda que serviu de ponto de partida de uma prática que é aceite como obrigatória
(dando assim origem a uma nova regra consuetudinária). Esclarece ainda que o acolhimento da
mesma regra em diferentes tratados constitui um indício do seu carácter consuetudinário.
188
Ao aplicar o direito, o juiz revela a posição do Estado, nomeadamente em matéria do
entendimento em relação a uma prática ou à existência de uma regra consuetudinária.
189
É curiosa a posição americana neste domínio, ao desvalorizar os guias e manuais mili-
tares, considerando que as orientações e posições expressas nestes documentos não são sufici-
entemente evidenciadoras de práticas, podendo divergir das práticas operacionais que
aparente- mente devem sobrepor-se para efeitos de formação de regras consuetudinárias (cf.
Carta con- junta de 3 de Novembro de 2003, de John Bellinger III, William J. Haynes, cit.. Não
obstante, a posição genérica do Departamento de Estado norte-americano vai no sentido de
admitir a rele- vância dos documentos internos (Guzman, 2005, p. 126).
190
A CDI disponibiliza referências de 93 Estados e indica os arquivos on line de 40 Estados
no Anexo I do Doc. A/CN.4/710 de 12.01.2018. Refere ainda os sites de 195 Estados que
disponibilizam jornais oficiais e outras colectâneas digitais oficiais, bem como de uma série de
operadores privados.
106
Oitava lição: o costume
191
Para além da determinação dos critérios que permitam definir quais as práticas que
podem formar costume, subsiste a questão da interpretação dessas práticas. Assim, face às limi-
tações de tempo e de recursos, os juízes vêm-se obrigados a recorrer apenas a amostras de prá-
ticas, dentro daquelas que estão disponíveis e que são inteligíveis face à sua preparação. Todas
estas limitações introduzem distorções que no final, podem ser significativas (Guzman, 2005, p.
127).
192
Não oferece dúvidas o facto de a prática das organizações internacionais poder
formar costumes em relação à própria organização. Neste âmbito, é de referir a regra
consuetudinária que altera o art. 27º CNU. A letra desta norma impõe como condição da
adopção de uma decisão, o voto favorável dos membros permanentes (equivalendo portanto a
abstenção a um veto, da mesma maneira que o voto contrário). A prática instituiria todavia um
costume contra legem, no sentido de se considerar apenas o voto contra dos membros
permanentes como susceptível de impedir a adopção das decisões (não sendo portanto a
abstenção impeditiva da adopção destas).
193
Dentro das OI avultam os tribunais internacionais, cujas decisões não configurando
tecnicamente uma determinação definitiva da existência de um costume, constituem meios
auxi- liares de determinação dessas normas (cf. projº conclusão 13/1 Doc. A/CN.4/L.872). Na
prática a sua importância é maior, até porque, como referia Rosalyn Higgins (1994, p. 54), no fim
de contas o direito internacional é direito aquilo que o TIJ declarar ser.
194
A doutrina vem, todavia, considerando pacificamente que a oposição de Estados
sobe- ranos na formação de costumes resultantes da actuação de outros sujeitos de direito
internacio- nal impede o surgimento destes.
Dos trabalhos da CDI relativos à determinação do costume (Doc A/CN/4/L.872) resulta
no projº conclusão 4 que a conduta de organizações internacionais contribui, em certos casos,
para a formação ou expressão de uma regra consuetudinária (uma resolução de uma O.I. ou de
uma conferência intergovernamental não é susceptível de criar uma regra consuetudinária de
per se, mas pode reflectir uma norma consuetudinária – se estabelece tratar-se de uma prática
acompa- nhada da convicção da obrigatoriedade – ou constituir um elemento de prova para
estabelecer a sua existência ou para contribuir para o seu desenvolvimento – cf- projº conclusão
12). Já a con- duta de outros actores apenas pode contribuir para a apreciação das práticas (de
Estados ou O.I.) que contribuam para a formação de costumes.
195
Refira-se, a propósito, a posição oficial americana quando, ao reconhecer a relevância
das práticas negativas para efeitos de formação de um costume, salienta a necessidade de ser
devidamente ponderado o peso ou relevância da mesma conforme o grau de envolvimento do
Estado na vida internacional e em especial a sua vinculação aos principais instrumentos conven-
cionais nas matérias em causa - cf. Carta conjunta de 3.11.2003, de John Bellinger III, conselheiro
107
Rui Miguel Marrana
1.2.2. Generalidade
Embora tradicionalmente se refira a generalidade196 como
requisito da prática susceptível de formar um costume, essa exigência
pode consi- derar-se hoje em dia atenuada197. Na verdade, não é
necessário que to- dos os Estados adoptem essa conduta, podendo um
costume geral198 sur- gir da prática de uma maioria de Estados apenas, e
mesmo com a oposi- ção de alguns199. A existência (e o desenvolvimento
contemporâneo) das organizações internacionais veio facilitar (e
acelerar) consideravelmente a formação dos costumes, nomeadamente
por via das resoluções (que acolhem entendimentos unânimes ou pelo
menos, maioritários e nesse sentido uniformizam os elementos
essenciais das práticas200).
108
Oitava lição: o costume
201
No ac. TIJ 12.04.1960 relativo ao direito de passagem em território Indiano, esta ins-
tância referia ainda como condição da existência de uma regra consuetudinária, a repetição das
condutas, a homogeneidade destas e o decurso de um período de tempo.
202
Na ocasião, o TIJ afirmou expressamente que o facto de não ter decorrido senão um
breve lapso de tempo não constitui necessariamente em si, um impedimento à formação de
uma regra nova de direito internacional consuetudinário. Esta passagem é entendida por parte
da dou- trina como consagrando o costume selvagem (Dupuy) ou instantâneo (Bin Cheng) ou
verde, a que fazemos referência de seguida. O primeiro exemplo terá sido o da Resolução 1962
(XVIII) adop- tada unanimemente pela AG das NU em 1963 (Declaração dos princípios jurídicos
que regem as actividades dos Estados em matéria de exploração e utilização do espaço extra
atmosférico). Trata-se aqui – como nas outras situações – de posições estaduais que, por serem
explícitas, pre- cisas e sem perspetiva de alteração, poderão dispensar o decurso de tempo, mais
ou menos longo, que a formação de uma regra consuetudinária exigiria (Sinkondo, 1999, p. 64).
109
Rui Miguel Marrana
203
Existem actualmente organizações internacionais universais (tais como a OIT, a
UNESCO ou a OMS) no seio das quais é corrente o procedimento. Buscam-se consensos
alargados na adopção de certas resoluções, as quais são quase instantaneamente assumidas
como sendo obrigatórias. Atente-se ao facto de a própria Declaração Universal dos Direitos do
Homem se ter tornando num texto obrigatório por essa via, já que, tendo sido aprovada por uma
Resolução da AG das NU, não beneficiava formalmente desse carácter. A doutrina vem, por isso,
convergindo no sentido de reconhecer que as resoluções das organizações internacionais (em
especial da AG das NU) afirmando princípios jurídicos internacionais, não apenas servem para
confirmar o direito internacional existente, mas constituem um meio de afirmar regras novas -
as quais (sejam apro- vadas por unanimidade, por consenso ou sem votação) não podem ser
consideradas como des- providas de efeito jurídico (Suy, 1996, p. 219).
204
De qualquer forma, tal como salienta a doutrina, só o acolhimento prático efectivo
constitui prova suficiente da existência de uma regra consuetudinária. Veja-se a propósito o Pa-
recer de 08.07.1996, do TIJ, relativo à licitude da ameaça ou do uso de armas nucleares, no qual
se reconhece a existência de uma opinio juris favorável à interdição da utilização destas armas
(patente em diversíssimas resoluções da AG das NU), faltando todavia uma prática uniforme que
permita afirmar a existência de uma regra consuetudinária proibitiva. Nos casos da formação de
costumes selvagens, com frequência a prática é imediata ou quase instantânea, resultando dos
trabalhos de conferências internacionais. No decurso destas – que se alongam frequentemente
por períodos importantes – os Estados adoptam determinadas práticas mesmo antes da assina-
tura dos tratados. Tal foi o caso das conferências sobre direito do Mar (que decorreram entre
1958 e 1982) durante a qual os Estados da América Latina decretaram a ZEE nas 200 milhas,
regra que viria a ser consagrada na Convenção de Montego Bay de 1982.
205
O exemplo mais evidente é talvez o da Nova Ordem Económica internacional, que os
Estados do terceiro mundo se esforçaram por impor no final do séc. XX. O efeito seria todavia
perverso. Por essa altura, o apoio da AG das NU a uma convenção económica equivalia a um
beijo de morte no seio dos Estados ocidentais (Alvarez, 2002, p. 222).
206
No limite do entendimento singular sobre a formação de regras consuetudinárias
veja- se o artigo de Benjamin Langille (2003) que pretende elevar a prática do ataque preventivo
a uma regra consuetudinária.
110
Oitava lição: o costume
207
Do que se trata é da coerência das práticas, e não da sua identidade. Os atos não
podem contradizer-se e devem ser uniformes, no sentido em que apesar das diferenças, deles se
possa retirar uma prática comum. A jurisprudência é rica na enunciação dos critérios de
coerência ou uniformidade (v. em especial ac. 20.11.1950, relativo ao direito de asilo; tb. ac.
27.06.1986 relativo às actividades militares e paramilitares americanas na Nicarágua, no qual se
adianta que a prática não tem de ser perfeita).
208
No ac. 13.06.1951, Haya de la Torre, o TIJ reconheceu a existência de um costume
regional, no caso relativo ao asilo diplomático na América do Sul
209
O TIJ reconheceu a formação de um costume bilateral entre o Estado português e a
União Indiana a propósito dos direitos de passagem em território indiano, relativo à
comunicação entre os enclaves de Dadra e de Nagar-Aveli e a zona costeira de Damão (ac.
12.04.1960).
210
Os termos propostos pela CDI são coincidentes: a prática em questão deve ser
animada por um sentimento de se tratar de uma obrigação jurídica ou de um direito (conclusão
9/1 Doc A/CN/4/L.872).
111
Rui Miguel Marrana
211
Essa distinção é assinalada expressamente na conclusão 9/2 da CDI relativa à
determinação das regras consuetudinárias (Doc A/CN/4/L.872).
212
Regras de conveniência ou de delicadeza internacional que orientam a conduta dos
Estados sem que no entanto assumam um carácter obrigatório. Integram este tipo de atos, não
apenas os hábitos de cortesia mais comuns – como seja, p. ex. o da representação oficial nas
cerimónias fúnebres de Chefes de Estado ou de governo – mas também atos de outra natureza
como sejam as situações limite da indemnização de particulares por prejuízos causados por atos
que não se assumem como ilícitos (como foi o caso dos pescadores japoneses afectados pela
experiência nuclear americana sobre o atol de Bikini, a seguir à II Guerra Mundial, ou da
indemnização concedida pelo governo israelita aos familiares do passageiros do avião líbio
abatido por engano em 1973, sobre o Sinai. Em ambos os casos, os governos insistiriam não
assumirem tratar-se de uma obrigação, pelo que não poderiam ser consideradas as suas atitudes
como precedentes).
213
Atrevemo-nos mesmo a julgá-lo improcedente, no plano lógico. Em nossa opinião, é a
convicção (da obrigatoriedade) que surge como elemento formador do costume e não a própria
obrigatoriedade – esta sim decorrente do carácter jurídico da norma. Repare-se aliás que a
prova deste elemento (que é de natureza psicológica e não formal), a fazer-se, assentará em
declarações ou posições dos Estados atestando essa convicção e nunca na determinação da
regra de onde a obrigatoriedade decorre.
Para uma análise mais detalhada da questão v. Stern (2001).
112
Oitava lição: o costume
214
O ac. 07.09.1927 no caso Lotus, marca a afirmação dessa exigência. Ali, contra a invo-
cação pelo governo francês de uma abstenção que pretendia ser considerada como precedente,
o TPJI recusar-se-ia a considerá-la um costume, por não ser motivada pelo dever de se abster.
Décadas mais tarde (20.02.1969), no ac. relativo à plataforma continental do Mar do Norte, o TIJ
confirmaria esse entendimento. No recente Parecer de 08.07.1996 relativo à licitude do
emprego da arma nuclear, o TIJ insistiria que apesar da prática geral, não existe uma opinio juris
clara e precisa a favor dessa ilicitude.
215
As dificuldades em lidar com o elemento psicológico conheceram inúmeras tentativas
tendentes ao seu afastamento. Nessa matéria valerá a pena atentar a um argumento
apresentado por Rosalyn Higgins (1994, p. 22). Recordava aquela que veio a ser juiz-presidente
do TIJ que aquilo que faz sobreviver a regra consuetudinária que proíbe a tortura, apesar de essa
mesma tortura constituir uma prática estadual muito difundida, é exactamente o facto de a
consciência da sua obrigatoriedade se manter intocada – não sendo assim afectada pelas
práticas abusivas infeliz- mente muito difundidas.
216
V. nomeadamente a sentença arbitral de 19.01.1977 (René-Jean Dupuy, árbitro
único), no caso Texaco Calasiatic – v. tb. o comentário de Brigitte Stern (1980).
217
Assinale-se, todavia, a chamada de atenção dos autores de que não se tratará de uma
presunção em sentido técnico (não haverá portanto uma inversão automática do ónus da
prova), mas tão só de uma tendência jurisprudencial.
113
Rui Miguel Marrana
218
Na verdade tal como alguma doutrina salienta (Roberts, 2001, p. 758), o direito
consu- etudinário contemporâneo distingue-se do tradicional por este ser identificável por via
indutiva (já que decorre da consistência da prática) ao passo que aquele (o costume atual) é
determinável por via dedutiva (sendo mais relevante a convicção da obrigatoriedade). Nesse
sentido, a opinio juris assume na actualidade um peso particularmente relevante. Para um
desenvolvimento das diferenças referidas v. Stefan Talmon (2014) ou William Thomas Worster
(2014).
219
Sendo pacífico que o acolhimento de regras consuetudinárias em tratados constitui
um indício claro da convicção da obrigatoriedade em relação às mesmas, permanece por definir
com precisão a ponderação dessa aceitação. Deverá medir-se pelo número de partes que
intervêm na conferência de codificação? Ou deveriam contar-se também os Estados que embora
não sendo partes da convenção, aplicam uma, alguma ou todas as regras relativas às suas
relações interna- cionais? (Zemanek, 1996, p. 225).
220
Cf. nota 190 supra.
114
Oitava lição: o costume
221
No ac. 20.11.1950, relativo ao direito de asilo, o TIJ adiantou inclusive que, em caso de
agressão dos direitos de terceiros, pode ser assacada responsabilidade internacional.
222
A CV69 apenas não regulou a matéria por não ter sido possível obter o necessário
con- senso em relação à redacção.
223
No citado parecer de 21.06.1971 relativo ao sudoeste africano e na decisão de
14.04.1992, relativo ao acidente aéreo de Lockerbie, esta instância afirmou que as decisões do
Conselho de Segurança devem respeitar os grandes princípios do direito internacional.
115
Rui Miguel Marrana
F. A codificação do costume
O primeiro esforço internacional de identificação e redução a es-
crito do costume internacional surgiu no quadro da SdN com a
nomeação de um Comité de Peritos para a Progressiva Codificação do
Direito Inter- nacional (Brölmann, 2005, pp. 387, n.13).
O processo apenas ganharia um impulso definitivo no pós II GM,
com CNU224, cujo art. 13º confere à AG o mandato para promover
estudos e fazer recomendações tendo em vista encorajar o
desenvolvimento pro- gressivo do direito internacional (ou seja,
preparar projectos de conven- ções em matérias que não estejam
regulamentados pelo direito interna- cional ou em relação às quais não
exista uma prática estadual suficiente- mente desenvolvida – cf. art. 15º
Estatuto CDI) e a sua codificação225 (for- mulação mais precisa226 a
sistemática de regras de direito internacional nos domínios em que
exista uma prática estadual consequente, prece- dentes e opiniões
doutrinais). Isso implica a conversão de grupos de re- gras
consuetudinárias sobre determinadas matérias em regras escritas
(positivação), organizando-as de forma sistemática e coerente227 (essa
coerência poderá mesmo justificar o seu desenvolvimento, na acepção
dada pelo referido art. 15º do Estatuto CDI, a partir de cujas regras
podem surgir novos costumes228).
224
O carácter geral da CNU constituiu um impulso essencial no processo de codificação
por impôr a regulação jurídica das relações internacionais (Chemillier-Gendreau, 1981-1982, p.
509).
225
A doutrina faz remontar a origem ou lançamento dos esforços de codificação ao pró-
prio Jeremy Bentham, no séc. XVIII, datando os primeiros esforços do final do séc. XIX, surgindo
os impulsos mais significativos com a SdN e a ONU (Meyer, 2012, pp. 998, 1004 ss.). V. tb. site da
CDI > About the Commission> Origin and background> Historical antecedents
226
Este é certamente o desafio mais complexo. Tal como Hersh Lauterpacht (que foi
mem- bro da CDI e juiz do TIJ) salientava sempre que abordamos qualquer âmbito específico do
direito internacional somos conduzidos, por entre uma sensação de incredibilidade, à conclusão
de que, embora exista, por regra, uma posição consensual sobre um princípio genérico…não
existe nada próximo de um acordo em relação a regras específicas ou problemas concretos
(Meyer, 2012, p. 1008).
227
A necessidade de regimes (internacionais) completos e coerentes marca o advento da
dimensão pública da ordem jurídica internacional e a afirmação da comunidade internacional
(Brölmann, 2005, p. 387).
228
No cit. ac. 20.02.1969 relativo à plataforma continental do Mar do Norte o TIJ especi-
ficou as quatro condições para que uma regra convencional forme um costume: a) a disposição
ter carácter normativo; b) a convenção ser participada por um número elevado e representativo
de Estados, englobando aqueles que são particularmente interessados na matéria; c) a
disposição em causa não ter sido objeto de reservas; d) subsistir uma prática conforme da parte
dos estados após a entrada em vigor da convenção.
116
Oitava lição: o costume
232
O projecto resultante de um processo de codificação contemplará necessariamente
algumas regras novas (desde logo por necessidade da coerência e completude do regime). A ex-
periência parece todavia demonstrar que o grau de inovação (ou desenvolvimento, para usar a
expressão do art. 13º CNU) tende a afectar directamente o seu acolhimento (Zemanek, 1996, p.
227).
233
Há já algumas décadas que se vem constatando que os Estados estão mais receptivos
aos projectos quando estes contemplam obrigações recíprocas, na medida em que lhes és facili-
tada a tarefa de ponderarem os seus interesses e conferirem a posição dos demais (Zemanek,
1996, p. 226).
234
Não parere existir uma relação directa entre o número de Estados que participam nas
conferências de codificação e o grau de aceitação do seu regime (Zemanek, 1996, p. 226).
118
Oitava lição: o costume
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Refira-se ao fundamento da obrigatoriedade do costume;
2. Identifique os elementos do costume internacional, caracterizando-
os;
235
A realidade mostrou como algumas convenções elaboradas no âmbito de processos
de codificação não alcançaram o número de ratificações necessário para entrarem em vigor –
como foi o caso das duas convenções sobre a sucessão de Estados. Isso levantou a questão do
valor dessas mesmas convenções, em especial para os Estados que as não ratificaram. A
doutrina pa- rece convergir no sentido de que as disposições que codificam direito
consuetudinário vinculam também Esses estados, o mesmo não acontecendo em relação
àquelas que surgem a título de desenvolvimento do direito internacional. Não obstante, deve
reconhecer-se que a recusa gene- ralizada em ratificar o regime convencional enfraquece o
próprio conteúdo consuetudinário (Suy, 1996, p. 218).
236
Apenas referimos o trabalho de codificação e desenvolvimento levado a cabo pelas
NU. Existem, todavia, muitas instâncias internacionais que desenvolvem esforços na matéria.
Para uma visão compreensiva consultar a listagem disponibilizada pelo Secretariado da CDI (Doc.
A/CN.4/710 de 12.1.2018, pp. 170-171).
237
V. http://legal.un.org/ilc/ o trabalho da CDI. Será de realçar que, em determinadas
ma- térias - entre as quais releva o direito dos tratados que analisaremos nas próximas lições - as
convenções resultantes do processo de codificação tornaram-se mais do que uma referência
cen- tral. De facto, o seu regime presume-se universalmente aceite, mesmo entre os Estados
que as não subscreveram (Aust, 2004, p. 10).
119
Rui Miguel Marrana
Bibliografia de referência
CARREAU, Dominic 1999. Droit international, 6ª Ed., Paris: Pedone, pp.
258-283
ROBERTS, Anthea Elisabeth 2001.Traditional and Modern Approaches to
Customary International Law: a Reconciliation. American Journal of Interna-
tional Law, 95, pp. 757-791
MEYER, Timothy 2012. Codifying Custom, University of Pennsylvania Law
Review, Vol 160, pp. 995-1069
Leituras recomendadas
AGNIEL, Guy 1998. Droit International Public, Paris : Hachette, pp. 51-65.
SUY, Eric 1996. Développement progressif et codification du droit
International: le rôle de l'Assemblée Générale revisité. In UN (Ed.), Proceedings
of the Congress on Public International Law (pp. 215-223). New York, NY:
Kluwer
Law International
Recursos disponíveis on line238
A. Digests & Yearbooks
African Yearbook of International Law
(https://www.worldcat.org/oclc/461318163?ht=edition&referer=di)
Australian Year Book of International Law
(http://www.austlii.edu.au/au/journals/AUYrBkIntLaw/)
238
Para uma análise compreensiva dos recursos oficiais – de Estados e organizações
internacionais (incluindo os respectivos endereços internet) v. Doc. A/CN.4/710 (Ways and
means for making the evidence of customary international law more readily available).
120
Oitava lição: o costume
B. O.I.
Yearbooks Yearbook of the United Nations
(http://unyearbook.un.org/)
UN Juridical Yearbook
(http://www.un.org/law/UNJuridicalYearbook/index.htm)
Yearbook of International Co-operation on Environment and Development
(YBICED)
(http://www.fni.no/projects/ybiced.html)
Yearbook of Commercial Arbitration
(www.kluwerarbitration.com/)
C. Research Guides
International and Foreign Legal Research. Researching Customary Inter-
national Law and Generally Recognized Principles. University of California,
Berkeley Law Library
(http://www.law.berkeley.edu/library/classes/iflr/customary.html)
Researching Public International Law: Custom and State Practice. Kent
McKeever. Columbia Law School Library
(http://www.law.columbia.edu/library/Research_Guides/internat_law/pubint#
custom_and_state_practice)
International Legal Research Tutorial – Duke University School of Law and
University of California, Berkeley, School of Law
121
Rui Miguel Marrana
(https://law.duke.edu/ilrt/cust_law_1.htm)
Researching Customary International Law, State Practice and the Pro-
nouncements of States regarding International Law, Silke Sahl
(http://www.nyulawglobal.org/globalex/Customary_International_Law.html)
Research Guide to Customs, General Principles & the Teachings of Highly
Qualified Publicists. Lee Peoples. Oklahoma City University Law Library
(http://www2.okcu.edu/law/lawlib/pdfs/guide_custom.pdf)
International and Foreign Legal Research – Berkeley
(https://www.law.berkeley.edu/library/staff/mhoffman/iflrbook/iflrchapter6.ht
ml)
Diplomatische Dokumente der Schweiz – Swiss database of diplomatic
documents
(http://www.dodis.ch/en)
Max Plank Institute for Comparative Public Law and International Law
(http://www.mpil.de/en/pub/research/areas/public-international-law.cfm)
Foreign Law Research Guides (US Library of Congress)
(http://www.loc.gov/law/help/foreign.php)
D. Aulas youtube
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – 5 aulas (em inglês)
de sobre o costume
[The notion of customary international law - 4m:03s]:
https://www.youtube.com/watch?v=m4mmYbPv9WY
[Summing up the “two elements theory” - 6m:06s]:
https://www.youtube.com/watch?v=pbtjqrIoDMA
[The interplay between contrary practice and opinion juris - 2m:53s]:
https://www.youtube.com/watch?v=se2jXi8btcY
[Persistant objector - 6m: 35s]:
https://www.youtube.com/watch?v=h5lu72s6dXI
[Where and how to find custom - 6m:35s]:
https://www.youtube.com/watch?v=OxgH6GnkXjg
122
IX Lição
Convenções internacionais: noção,
terminologia e classificações
A. Objetivo
Inicia-se com esta lição o tratamento das convenções internacio-
nais. Trata-se, em nossa opinião, do âmbito técnico-jurídico mais rele-
vante na formação do estudante de direito internacional.
Seguimos nesta lição introdutória a abordagem tradicional confe-
rindo o conceito, a terminologia utilizada e as diferentes classificações
que são usadas.
A matéria das convenções ocupar-nos-á até à XV Lição. Valerá a
pena, ao aluno que esteja a iniciar o seu estudo da matéria, conferir
através do índice, o seguimento da exposição, para que se possa
aperceber imediatamente das principais questões a tratar e dos termos
em que estas são organizadas.
B. Importância
As convenções internacionais apresentam um carácter
relativamente pouco sofisticado quando comparadas com a lei (Shaw M.
N., 2008, p. 902). Trata-se, no entanto, de um instrumento cuja
importância vem aumentando239 ao longo dos tempos. Se até meados
do século passado apenas eram conhecidas cerca de 8.000 convenções,
a verdade é que após a II GM foram recenseadas mais de 50.000, ou
seja, são actualmente concluídas cerca de 1.000 convenções por
ano240. O
239
Não obstante, desde a antiguidade que se reconhece uma natureza sacrossanta aos
compromissos assumidos sob a forma convencional (Hollis, 2012, p. 1).
240
As convenções internacionais são obrigatoriamente enviadas ao Secretário-geral das
NU (art. 102º CNU), para registo e publicação no United Nations Treaty Series. Este serviço
dispo- nibiliza on-line (https://treaties.un.org/pages/MSDatabase.aspx) em versão PDF, o
Monthly Sta- tement of Treaties and International Agreements, onde podem ser consultadas as
convenções re- gistadas.
Ali se pode conferir que no ano de 2016 foram registadas 860 convenções (para 922 em
2015 e 778 em 2014). Na ponderação deste valor deve ter-se em atenção a política de
publicação
123
Rui Miguel Marrana
C. Noção e terminologia
A partir de uma definição de convenção, vamos distinguir os ele-
mentos essenciais242 do conceito (aqueles cuja verificação simultânea é
imprescindível para que exista uma convenção), dos elementos acessó-
rios ou tendenciais (aqueles que muito embora surgindo nas definições,
não relevam do conceito).
que se dirige actualmente apenas uma parte das convenções multilaterais. Assim, a Resolução
33/141 A de 1978 da AG das NU autorizou o Secretariado-Geral a não publicar determinadas
categorias de tratados bilaterais. Posteriormente a Resolução 52/153 de 1997 a alargou o
âmbito da excepção a algumas categorias de tratados multilaterais.
José Alvarez (2002, p. 216) afirma que entre 1970 e 1997 o número de convenções inter-
nacionais mais do que triplicou e que nem os EUA – ostensivamente unilateralistas –
contrariaram a tendência, pois nos anos 90 concluíram 3.106 convenções, 3.690 na década
anterior, 3.212 na década de 70 e 2.438 na década de 60. Mesmo no plano estritamente
multilateral, os EUA têm visto crescer progressivamente o seu nível de envolvimento: só entre
1980 e 1991 regista-se a participação em 259 convenções multilaterais (Congressional Research
Service, 2001, p. 17). A listagem anual das convenções de que os EUA são parte pode ser
consultada em http://www.state.gov/s/l/treaty/tias/ onde se pode verificar que no ano de 2016
entraram em vigor nos EUA 88 convenções (bilaterais e multilaterais). Deve, no entanto, insistir-
se na resistência interna que vem sendo sentida em relação à assunção de obrigações
internacionais por via convencional – considerando que estas implicam limitações excessivas de
soberania, que servem para o governo federal contornar as prerrogativas dos Estados federados
e que implicam a integração em organizações que não partilham os valores americanos
(Guymon, 2016, p. 139).
Trata-se, de qualquer forma, do método mais formal e directo de produção de normas
internacionais (Shaw M. N., 2008, p. 902) e isso não será alheio à sua progressiva afirmação.
241
Das cerca de 1.500 convenções multilaterais em vigor, quase metade resultará do fun-
cionamento do sistema das NU - ONU e agências especializadas (Alvarez, 2002, p. 217). Veja-se
tb. o caso do Conselho da Europa, cuja actividade quase passa despercebida (as mais das vezes
confundida com a da UE) mas sob cuja égide foram celebradas até ao final de 2004, 196
convenções (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 97). Esse número elevava-se a 223 em
31.08.2017 (cf. http://www.coe.int/fr/web/conventions/full-list).
242
Numa abordagem diferente daquela que aqui seguimos – e que parte do disposto no
manual do Prof. Gonçalves Pereira (1993) – veja-se a perspetiva americana segundo a qual a
natureza convencional resulta da reunião de quatro critérios: (a) da intenção das partes em con-
siderarem a convenção vinculativa e sujeita ao direito internacional (b) da convenção incidir
sobre matérias relevantes (c) da convenção fixar obrigações claras e específicas para as partes
(d) da forma da convenção evidenciar a natureza convencional (Congressional Research Service,
2001, pp. 3-4).
124
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
1. Acordo de vontades
Toda a convenção implica uma convergência de atos voluntários
(um contrato243), nos termos da teoria geral do negócio jurídico (cujos
princípios, por isso, se lhe aplicarão subsidiariamente).
Conforme veremos adiante (XIII Lição), em matéria de validade das
convenções, a afectação ou viciação do carácter voluntário, conduz à
nulidade (cf. pp. 231 ss. e 235 ss.).
As vontades não terão de se manifestar em simultâneo ou
paralelo, podendo ocorrer em momentos diferentes (o que constitui
aliás uma prá- tica corrente, na medida em que a vinculação de cada
Estado surge com frequência em momentos diferentes, maxime por
força da necessidade de ratificação).
Por outro lado, o acordo de vontades exprime-se com frequência
através de mais de um instrumento: ao texto do próprio acordo, acresce
normalmente o instrumento que formaliza a vinculação (p. ex. o instru-
mento de ratificação).
243
Para uma análise da proximidade e diferenças dos regimes contratual e convencional,
v. Jeffrey L. Dunoff & Joel P. Trachtman (1998, p. 23 ss.).
125
Rui Miguel Marrana
244
O regime da CV69 tem um intuito abrangente procurando, através de uma esforçada
flexibilidade, permitir que os Estados possam regular os seus compromissos nos termos que lhes
pareçam mais adequados. Também por isso, o direito dos tratados que a CV69 revela é, com
algumas excepções, um direito subsidiário (Hollis, 2012, p. 3).
245
Cf. Parecer de 15.10.1931, relativo ao tráfego ferroviário entre a Lituânia e a Polónia,
no qual o TPJI admitiu a apreciação da questão ao abrigo de um acordo verbal. V. tb. ac. do
mesmo tribunal, de 5.04.1933, no caso da Groenlândia Oriental.
246
Anthony Aust (2004, p. 7) oferece uma ilustração bem mais recente: a disputa entre a
Dinamarca e a Finlândia relativa à construção de uma ponte por aquele Estado no Store Baelt,
foi solucionada em1992 através de uma conversação telefónica entre os respectivos primeiros-
mi- nistros, na qual se acordou um pagamento pela Dinamarca contra a desistência da instância
pela Finlândia do caso no TIJ. Dessa conversação não foi sequer acordada uma acta, sendo o
assunto todavia referido em obras como o Finnish Yearbook of International Law (1992), ou nos
Internati- onal Legal Materials (1993), da American Society of International Law.
247
Esta conclusão parece consolidada na jurisprudência internacional – arbitral (cf.
Newfoundland/Nova Scotia, de 17.05.2001, §3.15) e judicial (Plataforma Continental do Mar
Egeu, de 19.12.1978, §95).
126
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
248
A marcar a mudança de perspetiva está exactamente o Parecer do TIJ de 11.04.1949.
A AG, por Resolução do ano anterior, perguntou ao TIJ se a ONU, quando um agente seu sofre
danos causados por acto ilícito imputável a um Estado, pode reclamar a reparação quer do dano
sofrido pela própria ONU quer do dano sofrido pela vítima ou seus representantes.
Naturalmente que a admitir-se o direito de reclamação das NU (como veio a acontecer), estava
reconhecida oficialmente a personalidade e capacidade internacionais desta organização
internacional. E, ul- trapassada a exclusividade da personalidade estadual, estava levantado o
problema de saber quais os requisitos dessa personalidade. Se o TIJ entendesse que o único
sujeito de direito inter- nacional continuava a ser o Estado, então teria de ter negado à ONU o
direito de reclamação, atribuindo aos seus Estados-membros o direito de reclamarem em
conjunto contra os danos so- fridos e ao Estado de quem o funcionário era nacional, o direito de
reclamar a compensação pelos danos sofridos por este (nos termos do regime da protecção
diplomática).
249
A questão dos Movimentos de Libertação Nacional ganhou importância nos anos 60,
tendo a AG das NU adoptado desde então importantes resoluções na matéria (cf. Resoluções
3237
(XXIX) de 1974, 3280 (XXIX) de 1974 e 31/152 de1976; mais recentemente V. a Resolução 41/71
de 1986, relativa ao Estatuto de observador dos Movimentos de Libertação Nacional
reconhecido pela Organização de Unidade Africana e pela Liga Árabe. A situação de processo de
auto determi- nação que mais tempo se tem arrastado e em relação à qual foram produzidos
mais atos, é a da Palestina. Para uma visão sumária da evolução da situação a partir da questão
da sua representa- ção nas NU v. o parecer relativo ao Estatuto, privilégios e imunidades da
missão permanente de observação da Palestina na ONU (United Nations, 2000, p. 359 ss.). V. tb.
outros exemplos pon- tuais no Juridical Yearbook (United Nations, 1982, pp. 156-159; United
127
Rui Miguel Marrana
Nations, 1988, pp. 105, 369 ss., 414 ss.; United Nations, 1990, p. 271 ss.)
128
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
250
A título de exemplo particularmente intrincado, citem-se os casos da Comunidade Eu-
ropeia – cuja personalidade jurídica decorria expressamente do disposto no Tratado de Roma
(que a instituía, tendo a designação sido alterada para Tratado sobre o Funcionamento da União
Euro- peia, pelo Tratado de Lisboa de 2007). Já a União Europeia, foi criada pelo Tratado de
Maastricht de 1992, mas paradoxalmente não lhe foi atribuída personalidade jurídica
internacional. Essa si- tuação manteve-se até à fusão entre ambas (pelo Tratado de Lisboa).
129
Rui Miguel Marrana
pelo que a mera maioria dos Estados pode – e muitas vezes consegue –
forçar esse reconhecimento em situações que não são claras. E coloca-
se com ainda maior acuidade em relação a entidades que nem sequer a
qua- lidade de membros de uma agência detêm, assumindo-se não
obstante como estados251 e nessa qualidade pretendendo vincular-se a
conven- ções.
Perante tais dificuldades252 persistem assim em termos internacio-
nais (United Nations, 1999, pp. 21-23, § 73-83), apenas dois critérios (de
aplicação sucessiva):
- a fórmula de Viena, nos termos da qual apenas se consideram Es-
tados as entidades admitidas na AG, que tenham aderido ao ETIJ ou te-
nham sido admitidas em alguma agência especializada;
- o critério da prática da AG253, que exige uma indicação clara
deste órgão no sentido de considerar expressamente tais entidades
como Esta- dos, para efeitos de vinculação convencional, se estas não
preenchem os requisitos da fórmula de Viena.
3.3. Os quase-tratados
Estando nós a tratar da qualidade dos sujeitos como requisito es-
sencial do conceito de convenção internacional justifica-se referir uma
si- tuação especial que com ela se prende: os chamados quase-tratados
– ou seja, os acordos (contratos) entre Estados e pessoas (colectivas)
privadas estrangeiras.
251
Em relação aos territórios não independentes, a regra geral é de que em princípio não
dispõem de capacidade para concluir convenções. Os Estados em que essas entidades se
integram podem todavia autorizá-las excepcionalmente a participarem, dentro de determinadas
condições. É o caso de Hong Kong que é parte da Organização Meteorológica Mundial (World
Meteorological Organization - WMO), da Organização Mundial do Turismo (World Tourist
Organization) e da OMC (World Trade Organization). Por vezes essa participação está mesmo
prevista: o art. 305º da Con- venção das Nações Unidas sobre o direito do Mar, de 1982 (United
Nations, 2003, p. 27/28).
252
As dificuldades decorreram fundamentalmente da aplicação da fórmula todos os Esta-
dos que era utilizada em muitas convenções com vocação universal. Durante o período da cha-
mada guerra-fria, surgiram alguns atritos em relação a entidades que não eram reconhecidas
como Estados (entre as quais a República Democrática Alemã, o Vietnam do Norte e a Coreia do
Norte) mas que, não obstante, pretendia vincular-se a determinadas convenções. Estas disputas
tinham uma natureza mais político-estratégica do que propriamente técnica e por isso as NU vie-
ram a desenvolver critérios objectivos que permitissem ultrapassá-las.
253
Este último critério surgiu em 1973 com a adopção da Convenção sobre a Prevenção e
Repressão de Crimes contra Pessoas Gozando de Protecção Internacional, Incluindo Agentes Di-
plomáticos, de 1973, altura em que a AG das NU instruiu expressamente o Secretário-geral no
sentido de que, sempre que este, no exercício das funções de depositário de convenções, fosse
confrontado com a fórmula todos os Estados, seguisse a prática da AG ou que, sempre que fosse
aconselhável, solicitasse o parecer desta antes de aceitar a assinatura ou o instrumento de ratifi-
cação ou adesão (United Nations, 1974, p. 157 ss.; United Nations, 1976, p. 186 ss.; Aust, 2004,
p. 92).
130
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
254
V. caso dos empréstimos sérvios e brasileiros, em cujo dictum de 12.07.1929, o TPJI
afirmou que todo o contrato que não seja um contrato entre Estados enquanto sujeitos de direito
internacional funda-se no direito nacional (CIJ/ICJ, 1988, p. 41). Esta visão dual (que de alguma
forma obriga os contratos a caracterizarem-se ou como convenções ou como contratos de natu-
reza interna) conhece ainda hoje afloramentos - foi p. ex. defendida pela Noruega no caso dos
empréstimos noruegueses (CIJ/ICJ, 1957, p. 8/9), apreciado pelo TIJ em 6.07.1957, e conhece um
acolhimento assinalável nos países em vias de desenvolvimento).
255
Em 2005 a convenção contava com a assinatura de 159 Estados, 151 dos quais defini-
tivamente vinculados através de ratificação (ICSID, 2015, p. 5). Ali se incluem todos os países da
OCDE (com excepção do Canadá, México e Polónia) e todos os Estados-membros da UE.
131
Rui Miguel Marrana
dos Relativos aos Investimentos) que decidirá por aplicação de regras in-
ternacionais256. Na sequência deste instrumento central, outros
surgiriam
– nomeadamente no quadro atual da OMC, protegendo, por via conven-
cional internacional, os investimentos internacionais257.
Nestes termos, estes contratos internacionais de investimento (os
quase-tratados) já não se situam exclusivamente ao abrigo do direito in-
terno, tendo portanto, sido objeto de um processo de internacionaliza-
ção258 (tendo em vista a sua protecção259). Não parece todavia que
devam ou possam considerar-se convenções internacionais260.
O mesmo acontece com os acordos entre sujeitos de direito inter-
nacional e as ONG ou qualquer outro tipo de associações de direito
privado. A valorização internacional destes sujeitos 261, mesmo quando
permita a sua eventual qualificação como sujeitos de direito
internacional (com capacidade derivada, funcional e relativa), não
engloba em termos gerais, a capacidade para celebrarem convenções
internacionais.
256
Os mecanismos instituídos pela Convenção de Washington de 1965 constituem nos
nossos dias uma infra-estrutura central no comércio internacional, para eles remetendo diversas
convenções. Na extensa lista de convenções bilaterais celebradas com base no seu regime (cf.
https://icsid.worldbank.org/apps/ICSIDWEB/resources/Pages/Bilateral-Investment-Treaties-
Database.aspx) podem retirar-se diversos acordos subscritos por Portugal (em 9.12.2005 com a
China, em 17.04.2007 com Marrocos, em 23.07.2007 com o Kuwait, em 17.03.2009 com a Jordâ-
nia, em 16.09.2009 com a Sérvia, em 21.09.2009 com o Qatar, em 25.01.2011 com o Senegal,
em 19.11.2011 com os Emiratos Árabes Unidos - para referir apenas os últimos, sendo que três
deles não estão ainda em vigor).
Sobre a generalização dos acordos bilaterais de investimento V. Zachary Elkins, Andrew
T. Guzman & Beth A. Simmons (2006). Estudos recentes mostram todavia como a mera
existência de acordos bilaterais de investimento é insuficiente para gerar investimento externo -
cf. Jennifer Tobin & Susan Rose-Ackerman (2005), Eric Neumayer & Laura Spess (2005), Jason W.
Yackee (2007).
257
V. tb. Guidelines for Multinational Enterprises (OECD, 2011), que estabelece uma série
de princípios de conduta na matéria e que tem sido objeto de relatórios anuais de acompanha-
mento.
258
O processo de internacionalização dos contratos de investimento desenvolveu-se
muito por via da submissão dos diferendos na matéria a instâncias arbitrais (que não apenas a
do International Centre for Settlement of Investment Disputes). Sobre a matéria v. Walid Ben
Hamida. (2005).
259
Sobre a matéria V. Nikièma (2012).
260
Conforme vem sendo aliás reconhecido pelas decisões de tribunais arbitrais sobre a
matéria: cf. Ac. Texaco-Calasiatic vs. Líbia, de 1977 tb. ac. 22.07.1952 do TIJ no caso Anglo-
Iranian. 261 Recorde-se que nos termos da Resolução ECOSOC 1996/31 de 1996, as ONG,
podem
ser registadas junto do Conselho Económico e Social das NU. V. tb. o parecer de 2000.21.07 rela-
tivo à acreditação de ONG em encontros preparatórios regionais para efeitos da referida resolu-
ção (United Nations, 2000, pp. 362-363); v. tb o parecer relativo ao estatuto legal da missão de
observação permanente da Conferência Islâmica na ONU (United Nations, 1999, p. 408); v. tb. o
parecer relativo à participação de ONG’s na Comissão relativa ao Estatuto da Mulher – nos
132
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
termos da Resolução da AG 52/100 de 1997.12.12 (United Nations, 1998, p. 488).
133
Rui Miguel Marrana
262
Subsiste ainda um tipo particular de tratados (assim designados) que envolvem enti-
dades que não podem considerar-se sujeitos de direito internacional, mas cuja natureza é sui ge-
neris. Referimo-nos aos povos indígenas com os quais os Estados contemporâneos estabelecem
acordos que lhes reconhecem direitos especiais e regulam as relações mútuas. Sobre o assunto
v. David Llewellyn & Maureen Tehan (2004).
263
Existe ainda uma situação-tipo que escapa à noção de convenção: a dos acordos
priva- dos estabelecidos entre príncipes. Historicamente os contratos de casamento entre
príncipes eram considerados como convenções internacionais - o Acordo de 1925, entre o Reino
Unido e a Suécia relativo ao casamento de Lady Mountbatten com o príncipe herdeiro sueco, foi
ainda pu- blicado na Colectânea de Tratados da SdN (Lavenue, 2013, pp. 2, Tit I Cap I).
Actualmente, porém, a distinção entre o foro privado e público é clara, afastando quaisquer
hesitações.
264
Com frequência – as mais das vezes, reconheça-se – a doutrina faz equivaler a expres-
são efeitos jurídicos a efeitos jurídicos vinculativos, o que não se nos afigura correcto. Assim, por
134
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
exemplo no caso em apreço é manifesto que se trata de atos que não pretendem vincular as
partes a uma obrigação juridicamente exigível. Mas é também pacífico que esses atos são juridi-
camente relevantes, na medida em que produzem outros efeitos (que não a vinculação): desde
logo, as expectativas criadas autorizam determinadas condutas (nomeadamente a invocação do
estoppel); por outro lado, a solicitação do seu cumprimento nunca configura uma ingerência ou
acto inamistoso; reconhece-se ainda que estes atos neutralizam a aplicação de eventuais regras
anteriores nas relações mútuas e finalmente, pode também referir-se que com frequência, con-
tribuem para a formação de convenções.
Diversamente, por exemplo no caso dos atos unilaterais (que de alguma forma, são o
inverso dos atos concertados, já que não resultam de um acordo – são unilaterais – mas visam a
produção de efeitos vinculativos), a doutrina tende a bastar-se na sua definição com a referência
à produção de efeitos jurídicos - v. nomeadamente a definição que surgia nos trabalhos da CDI
(1999, p. 220) e que veio todavia a ser alterada alguns anos mais tarde, referindo-se então o
efeito de criar obrigações jurídicas (CDI/ILC, 2006, p. 386).
265
Para um correcto enquadramento da relevância da vontade das partes V. a decisão de
1.07.1994, do TIJ, relativa à delimitação marítima e questões territoriais entre Qatar e Bahrein
(competência e admissibilidade). Ali o tribunal não aceitou a argumentação do Ministro do Bah-
rein quando afirmou que ao assinar as minutas do acordo não pretendia vincular o Estado, mas
tão só subscrever um mero acordo político, até porque segundo a Constituição deste, a
vinculação a convenções em matéria territorial apenas podia ocorrer por força de um acto
legislativo. O TIJ considerou que a assinatura de um texto do qual constavam obrigações
específicas aceites por ambos os governos (parte das quais imediatamente exigíveis), impedia
que viesse mais tarde in- vocar tal intenção (CIJ/ICJ, 1994, pp. 121,122 § 26, 27), reconhecendo
assim o carácter obrigatório do mesmo.
266
Na doutrina e prática convencionais norte-americanas este elemento da criação de
efeitos jurídicos obrigatórios ou vinculativos (binding, na expressão jurídica em língua inglesa) é
normalmente tido como essencial. Vejam-se a propósito as orientações internas do Departa-
mento de Estado (Memorandum de 12.3.1976, de Monroe Leigh, Legal Adviser, Department of
State) relativas à determinação dos elementos de uma convenção internacional: (1) as partes
têm de pretender vincular-se sob o direito internacional, (2) a convenção tem de assumir
relevância internacional e não tratar de trivialidades, (3) as obrigações têm de estar claramente
expressas e serem objectivamente implementáveis, (4) a convenção tem de ter duas ou mais
partes e (5) deve seguir uma das fórmulas consuetudinárias (Congressional Research Service,
2001, p. 50; McDowell, 1976, pp. 263-267). Nestas circulares internas salienta-se também a
importância do acordo como eventualmente relevante para a determinação do seu carácter
jurídico-convencio- nal. Assim, segundo um exemplo curioso, a promessa de venda de um mapa
a um Estado estran- geiro não constituirá certamente uma convenção, mas a promessa de venda
de um milhão de mapas certamente sê-lo-á (cf. Memorandum 12.03.1976, cit.). Sendo relevante
na prática essa chamada de atenção, julgamos todavia que ela se subsume no carácter
vinculativo das obrigações assumidas, ou seja, a importância destas ditará a ponderação do
carácter vinculativo ou não das mesmas.
135
Rui Miguel Marrana
dem regular as relações mútuas, mas sem que todavia se pretenda atri-
buir a esses compromissos efeitos vinculativos, ficando portanto o seu
cumprimento apenas dependente da boa-fé das partes).
De facto, tal como se salienta na doutrina, a produção de efeitos
jurídicos vinculativos – a criação de obrigações – constitui uma função
essencial (Hollis, 2012, p. 2), e daí tratar-se de um elemento essencial do
conceito.
267
A referência tem a ver com a abordagem que inicialmente se fazia da questão, nome-
adamente no âmbito dos contratos internacionais. Assim, no ac. 12.07.1929 relativo aos emprés-
timos sérvios e brasileiros o TPJI distinguia a natureza internacional ou interna segundo o
ordena- mento aplicável (CPJI/PCIJ, 1929, p. 41). A abordagem não nos parece relevante na
identificação dos elementos essenciais das convenções internacionais, já que, conforme se
refere no texto, a aplicação do direito internacional decorre de se tratar de uma convenção e
não o contrário.
268
Na decisão de 1.7.1994 (CIJ/ICJ, 1994, p. 120 § 23), relativa à delimitação marítima e
questões territoriais entre Qatar e Bahrain o TIJ recordou que, tal como havia referido no ac.
19.12.1978, relativo à plataforma continental do Mar Egeu, desconhece qualquer regra de
direito internacional que possa impedir um comunicado conjunto de constituir um acordo
internacional no sentido de submeter uma disputa a arbitragem ou resolução judicial (CIJ/ICJ,
1978, p. 39 § 96).
269
A constatação é pacífica, sendo explícita no referido ac. 1.7.1994 do CIJ relativo à deli-
mitação marítima e questões territoriais entre Qatar e Bahrain (CIJ/ICJ, 1994, p. 120 § 23).
Assim, o uso de uma ou outra expressão tende a revelar apenas o maior ou menor empenho em
136
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
variar (Shaw M. N., 2008, p. 904).
137
Rui Miguel Marrana
270
A principal relevância da designação tem a ver com o facto de poder servir como
indício relativamente à natureza vinculativa ou não de um acordo. Assim, fora os casos referidos
na nota seguinte, encontramos algumas expressões que são geralmente utilizadas para acordos
não vin- culativos (Declaração Solene, Protocolo de Decisão, Termos de Referência, Declarações
Conjuntas, etc.) mas que, não obstante, por vezes surgem a designar verdadeiras convenções
(Aust, 2004, p. 22 ss.).
138
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
D. Classificações
Toda a classificação é, em última instância um exercício doutrinal
que pode desenvolver-se indefinidamente. A sua importância reside na
capacidade que cada classificação revelar, em termos de salientar
lógicas que sendo distintas (em cada agregação), sejam também
consequentes (em termos de poderem ajudar na compreensão da
realidade convencio- nal internacional) 272.
Isto dito, bem se percebe que nenhuma classificação seja
completa (quiçá nem o pretenda). As sucessivas distinções apresentadas
devem no entanto evidenciar os elementos distintivos que facilitem a
compreensão da complexidade própria da realidade convencional.
1. Classificação material273
1.1. Tratado-lei
O conceito de tratado-lei sublinha a função normativa que as con-
venções podem assumir (e que hoje em dia, é cada vez mais importante),
271
Anthony Aust chama à atenção para dois tipos de atos cuja utilização prática nem
sempre é clara: os memorandos de entendimento e as trocas de notas. Aquela primeira designa-
ção frequentemente é tida como referindo-se a atos não obrigatórios (sendo mesmo utilizada
como designação genérica desse tipo de atos), podendo todavia surgir em atos que são verda-
deiros tratados. Também a troca de notas se pode referir a um memorando de entendimento (a
um acto não obrigatório, portanto), ou a uma convenção, com efeitos obrigatórios. Tendencial-
mente o texto de tais acordos refere-se expressamente a situação, esclarecendo eventuais dúvi-
das (Aust, 2004, pp. 20, 21).
272
Muito embora as classificações não impliquem efeitos jurídicos de per se, a doutrina
vem insistindo no facto de a tipologia convencional dever ser tida em conta em operações jurídi-
cas essenciais, como seja a interpretação. V. nomeadamente Wessel (2004).
273
No quadro do Conselho da Europa (a cujas convenções as classificações agora enunci-
adas apresentam pouca utilidade) propõem-se outras classificações materiais, nomeadamente
139
Rui Miguel Marrana
140
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
reci- procidade dos que assumiam um carácter normativo (Brölmann, 2005, pp. 389,390).
141
Rui Miguel Marrana
275
Reparar-se-á que no art. 60º/2 CV69 se prevê a possibilidade de a violação substancial
de um tratado multilateral poder autorizar reacções em relação ao Estado incumpridor, mas exa-
ctamente apenas em relação a este, reenquadrando portanto a lógica contratual.
276
O art. 60º/5 CV69 estabelece ainda a inaplicabilidade do regime às convenções que
versem direitos humanos ou direito humanitário.
Também no âmbito do estudo que a CDI iniciou em 2004 sobre a questão dos efeitos dos
conflitos armados sobre os tratados, o relator especial Ian Brownlie veio a inclui os tratados nor-
mativos no elenco daqueles que pela sua natureza não são afectados pela eclosão de conflitos -
cf. art. 5º e alínea h) do anexo do projecto de artigos (CDI/ILC, 2008, pp. 50, 51). Na versão final
do projecto de artigos – já com o relator especial Lucjus Caflisch – a regra manteve-se sob o art.
7º e alínea c) do anexo (CDI/ILC, 2011, pp. 184, 187).
142
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
2. Classificações formais
2.1. Classificação quanto à qualidade das partes277
A progressiva aceitação da existência de sujeitos – outros que não
apenas os Estados – e da sua capacidade convencional levou a que al-
guma doutrina insista nas diferenças resultantes daquelas que são as
con- venções tradicionais (celebradas apenas entre Estados) e todas as
outras. Assim, é frequente distinguirem-se nomeadamente:
Convenções entre Estados;
Convenções entre Estados e organizações internacionais;
Convenções entre organizações internacionais;
Convenções envolvendo outros sujeitos de direito internacio-
nal.
A presença incontornável das organizações internacionais levou
mesmo a que, por impulso da AG das NU, as especificidades das conven-
ções que estas celebram com Estados ou entre si, fosse objeto de uma
convenção específica278. O aspecto central da distinção releva natural-
mente do facto de apenas os Estados terem capacidade plena (ao
contrá- rio dos outros sujeitos de direito internacional, como teremos
oportuni- dade de salientar posteriormente), e da necessidade de
articular essas limitações com a celebração de convenções279.
A inexistência de textos reguladores do último tipo de convenções
referido (envolvendo em geral, outros sujeitos) obriga a que para o
efeito
277
No quadro do Conselho da Europa (no qual, tal como se referiu na nota 273, as classi-
ficações tradicionais apresentam pouca utilidade) são elencadas outras classificações formais es-
pecíficas nomeadamente segundo o tipo de obrigações que delas resultam para os Estados (re-
gime tradicional, regime a la carte e convenções-quadro), ou segundo o tipo de mecanismos de
controlo aplicáveis (jurisdicionais e políticos) (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, pp. 17-120).
278
Cf. Convenção de Viena sobre o direito dos Tratados entre Estados e Organizações In-
ternacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986.
279
A prática recente tem feito surgir outras questões que merecem uma referência.
Assim, desde logo, parece assente que a participação de uma organização internacional numa
convenção se faz em nome próprio e não em representação dos seus Estados-membros, excepto
se a própria convenção dispuser diversamente (United Nations, 2003, pp. 24, 25). Outro
problema frequente- mente levantado na participação das organizações internacionais em
convenções multilaterais tem a ver com a possibilidade dessa participação poder vir a multiplicar
os votos dos Estados- membros ou poder ser utilizado para acelerar a obtenção do número
mínimo de participantes eventualmente exigido para a entrada em vigor. Essas circunstâncias
são, por isso, expressamente reguladas em algumas convenções (United Nations, 2003, p. 24).
143
Rui Miguel Marrana
280
As convenções multilaterais apenas surgem no séc. XIX: a primeira terá sido a Acta
Final do Congresso de Viena de 9.06.1815, que pretendia recolher num documento geral as
disposições essenciais dos acordos bilaterais estabelecidos durante o congresso. O primeiro
tratado multila- teral negociado directamente terá sido o Tratado de Paz (ou de Paris, de 1856)
que pôs fim à guerra da Crimeia, do qual foram signatários não apenas os beligerantes mas
também a Prússia e
144
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
a Áustria, Estados que se tinham mantido neutrais no conflito. Em todo o caso, só no séc. XX as
convenções multilaterais assumem a importância que hoje lhes reconhecemos.
281
Numa perspetiva estrita, pode admitir-se que uma convenção evolua de bilateral para
multilateral (quando p. ex. um acordo bilateral admita a adesão, como aconteceu com a Conven-
ção Franco-Germânica sobre a Construção e Operação de um Reactor de Alto Fluxo, de 1967
(Touscoz & Voisin, 1967, p. 789) ou o Acordo Franco-Britânico relativo à constituição de um
Grupo Aéreo Europeu, de 1998. Entendemos todavia que a mera admissão da possibilidade de
adesão traduz, desde logo, uma abordagem ou vocação multilateral (não obstante possam
subsistir aci- dentalmente apenas duas partes).
282
A doutrina vem aprofundando progressivamente esta distinção. A título de exemplo
V. Pauwelyn (2003).
145
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Refira-se ao conceito de convenção internacional identificando os
seus elementos essenciais.
2. Quais os tipos ou classificações de convenções que conhece?
B. Questões directas
1. Explique o aumento considerável a partir da II Guerra Mundial, do nú-
mero de convenções que são anualmente concluídas;
2. Defina convenção internacional;
3. Explique qual a relevância da forma escrita na conclusão das conven-
ções internacionais;
4. Diga o que entende por quase-tratados, referindo-se ao seu regime ju-
rídico;
5. Explique qual a consequência jurídica da falta da qualidade de sujeito
por uma das partes de uma convenção internacional;
283
O conceito surgiu originalmente na ordem jurídica e na doutrina americanas, mas é
corrente nos nossos dias, podendo encontra-lo implícito na Constituição e no direito francês
(De- caux, 2010, p. 474).
Na terminologia jurídica americana um executive agreement é um acordo internacional
estabelecido pelo Presidente com exclusão do processo de ratificação. A sua implementação
exige a aprovação por maioria simples em ambas as câmaras do Congresso. Alguns acordos
podem ainda necessitar da aprovação de atos subsequentes pelas câmaras, cuja não adopção é
frequen- temente utilizada para exprimir a oposição aos mesmos. A autoridade presidencial para
a conclu- são dos executive agreements pode advir de duas origens: do poder executivo
conferido pela Constituição ou de delegações conferidas pelo Congresso e pode dirigir-se a
convenções tão im- portantes como o acordo que criou a NAFTA (North American Free Trade
Association) ou o GATT. Um executive agreement não tem o mesmo valor de um tratado,
excepto se for adoptado por uma resolução conjunta. Assim, apenas prevalece sobre a lei
estadual, mas já não sobre a lei fe- deral. Sobre a matéria V. Congressional Research Service
(2001, pp. 3-6, 21-27). V. tb. Yoo (2001). Os tratados, segundo o direito norte-americano são
convenções celebradas pelo e com o consen- timento do Senado (artigo II, secção 2, cláusula 2 da
Constituição americana).
284
Veremos adiante (p. 197 ss.) que nomeadamente segundo o regime constitucional
por- tuguês, a vinculação nunca decorre da mera assinatura, exigindo-se pelo menos mais um
acto (a aprovação).
146
Nona lição: noção, terminologia e classificação das convenções
Leituras recomendadas
BRÖLMANN, C. (2005). Law-Making Treaties: Form and Function in
International Law. Nordic Journal of International Law, 74(3), pp. 383-403.
REUTER, P. (1985). Introduction au droit des traités. Graduate Institute
Publications. doi :10.4000/books.iheid.1748
Recursos on line
Guide to Treaty Research (U.S. is a party)
http://www.okcu.edu/law/lawlib/pdfs/guide_ustreaty.pdf
Guide to Treaty Research (U.S. is not a party)
http://www.okcu.edu/law/lawlib/pdfs/guide_nonustreaty.pdf
ASIL Guide to Electronic Resources for International Law – Public Inter-
national Law: https://www.asil.org/sites/default/files/ERG_PUBLIC_INT.pdf
ICSID https://icsid.worldbank.org/apps/ICSIDWEB/Pages/default.aspx
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – Aula (em inglês)
sobre a noção de tratado [The notion of treaty - 8m:35s]:
https://www.youtube.com/watch?v=_MnsoHpGLK4
147
X Lição
Convenções internacionais: processo de
conclusão
A. Objetivo
Nesta lição procuraremos perceber como se processa a
convergên- cia de vontades que há-de produzir o acordo estabelecido na
convenção. Esse processo (essa sequência de atos, portanto) é
necessaria-
mente ser regulado por regras internacionais e nacionais: as primeiras
que determinam – ainda que por vezes a título supletivo ou subsidiário –
os momentos mais relevantes garantindo um mínimo de coerência ao
dito processo e as segundas que determinarão desde logo quais as auto-
ridades nacionais competentes para a prática dos atos necessário e bem
assim, acrescerão normalmente ao processo outros atos.
Nesta altura trataremos do regime internacional, o qual há-de,
por- tanto, completar-se pelas exigências nacionais (das quais daremos
uma ilustração quando estudarmos o processo de vinculação
internacional do Estado português).
O processo, caso se pretendam abarcar todas as variantes ou inci-
dentes, pode desdobrar-se em diversas fases. De todas elas tentaremos
ir dando notícia. Iniciaremos todavia o nosso estudo pelos três momen-
tos essenciais (negociação, assinatura e ratificação). Não obstante, para
que se possa ficar com um panorama abrangente do processo no seu
todo, veja-se o gráfico adaptado do Treaty Handbook (United Nations,
2012, p. 21), que inserimos no capítulo seguinte.
Deve ainda chamar-se á atenção do aluno para algo que tende a
escapar quando se analisam contractos: é que tratando-se de um
acordo de vontades, a sua formação pressupõe o assentimento em
relação a duas questões diferentes: o texto da convenção e a disposição
em vincu-
145
Rui Miguel Marrana
285
Assim, pode haver assentimento em relação ao texto (formalizado normalmente com
a assinatura) sem que a vinculação se produza (nomeadamente nos casos de recusa de
ratificação de que adiante daremos notícia); pode também haver vinculação sem que
anteriormente seja dado o assentimento ao texto (nomeadamente nos casos de adesão, de que
também falaremos adiante).
286
Pretendendo perspectivar o processo integrando as exigências ou atos internos, po-
der-se-ia referir que toda esta fase que aqui referimos como negociação é sub divisível em cinco
outras fases: (1) a iniciativa (2) a designação dos negociadores (3) a emissão dos plenos poderes
e a comunicação das orientações (4) a negociação do texto e (5) a conclusão da convenção ou
adopção do texto (Congressional Research Service, 2001, p. 6). Nos EUA a questão da iniciativa é
particularmente relevante, uma vez que, nos termos do Logan Act, de 1799, é proibido a
qualquer cidadão iniciar ou desenvolver correspondência ou contactos com governos
estrangeiros com os quais exista algum conflito ou disputa (Congressional Research Service,
2001, pp. 98-99).
287
Nesta obra retoma-se outra definição: a troca e discussão de propostas por represen-
tantes das partes tendo em vista obter um acordo mutuamente aceitável.
288
Aliás, alguma doutrina (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 126 ss.) prefere esta
designação. Nas obras sobre o assunto elaboradas pelas NU tende acolhe-se uma perspetiva in-
termédia: refere-se a adopção e autenticação do texto como resultando da negociação (United
Nations, 2003, p. 2).
Convém não confundir esta fase com eventuais momentos preparatórios que antecedem
a negociação propriamente dita (nomeadamente negociações informais), nem com a chamada
negociação diplomática (que é um mecanismo típico de resolução de conflitos, previsto no art.
33º CNU).
146
Décima lição: processo de conclusão das convenções
1.2. O texto
Muito embora a estrutura do texto não sejam rígida 289, subsistem
algumas particularidades que justificam uma referência sumária às suas
componentes.
Assim, normalmente o texto das convenções inclui uma
designação ou título e abre com um preâmbulo. Este serve dois
propósitos: a identi- ficação das partes290 e a exposição da motivação ou
fundamentação291.
Segue-se depois o dispositivo, ou seja, o corpo das regras que
forma o núcleo da convenção. Normalmente o dispositivo surge sob a
forma de articulado292, organizado segundo as fórmulas sistemáticas
tradicionais (partes, títulos, capítulos, secções, etc.).
No final do dispositivo são normalmente identificáveis as cláusulas
finais. Este conjunto autónomo de regras tem natureza fundamental-
mente adjectiva, regulando não obstante, aspectos essenciais da vida da
convenção, como sejam os regimes transitórios, a vinculação e a revisão,
289
As partes mais comuns do texto serão (1) o título, (2) o preâmbulo, (3) o texto ou dis-
positivo, (4) as cláusulas finais, (5) o testemonium [identificação dos subscritores] e as
assinaturas e (6) os anexos (United Nations, 2003, p. 1).
Existe ainda um elemento que por vezes aparece no preâmbulo: a invocação.
Tradicional- mente vocacionada para reclamar a protecção e intercessão divina (Em nome de
Deus misericor- dioso…) ela mantém-se actualmente em fórmulas distintas (Nós, os povos das
Nações Unidas…) – cfr. Lanevue (2013, p. 12 Tit I Cap I).
290
A identificação das partes apenas é dispensada nos tratados multilaterais gerais (caso
em que o depositário não apenas dá conhecimento das vinculações como elabora e mantém a-
ctualizada uma lista dos Estados envolvidos no processo de conclusão, na qual se identificam
aqueles cuja vinculação se produziu entretanto). Nos restantes casos, o preâmbulo começa nor-
malmente por identificar as partes na pessoa do Chefe de Estado – é a fórmula mais solene e
que encontramos em convenções como o Tratado de Roma – do representante, ou outra. Sendo
a questão da ordem em que os Estados surgem muito delicada (já que se sub entende que ele
de- nota a importância relativa das partes), opta-se normalmente pela ordenação alfabética. Nas
con- venções bilaterais (eventualmente também em algumas convenções restritas) usa-se
normal- mente a regra do alternat: cada Estado aparece em primeiro lugar no seu exemplar. O
Departa- mento de Estado norte-americano recolhe pormenorizadamente as práticas e
instruções na ma- téria no Foreign Affairs Manual (Congressional Research Service, 2001, pp.
364 ss. cf. pontos 730.5-1 e 730.5-2)
291
A fundamentação é um elemento tendencialmente obrigatório dos atos de natureza
pública (desde logo, no sentido de permitirem o controlo desses mesmos atos pelos eventuais
interessados), além do que constitui um importante elemento de interpretação. Nos textos con-
vencionais é frequente que a motivação ou fundamentação se faça através de considerandos. A
jurisprudência reconhecendo o valor interpretativo do preâmbulo (ac. TIJ de 27.08.1952, no caso
relativo aos direitos dos nacionais americanos em Marrocos) tem no entanto insistido que este
não é obrigatório (cf. ac de 18.07.1986 – segunda fase – no caso relativo ao Sudoeste africano).
292
Os artigos devem ser redigidos no presente, de forma a denotarem o carácter perma-
nente das disposições e devem expressar de forma clara os termos do acordo obtido (Lavenue,
2013, p. 13 Tit I Cap I).
147
Rui Miguel Marrana
148
Décima lição: processo de conclusão das convenções
296
Podem encontrar-se minutas destes documentos em diferentes obras (United
Nations, 1999, pp. 129, 130; Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 207; Aust, 2004, pp. 405-
406).
297
Em rigor devem efectuar-se aqui duas distinções sucessivas, entre credenciais e
plenos poderes e, dentro destes, entre plenos poderes gerais dos plenos poderes limitados. As
credenci- ais apenas conferem poderes para negociar e eventualmente para a adopção do texto,
ao passo que os plenos poderão envolver a prática de outros atos incluindo a vinculação (cf. art.
2º/1 CV69). Nesses outros atos incluem-se atos relativos à situação da convenção, como sejam
de- clarações de nulidade, denúncia, recesso, suspensão, reservas, extensão de aplicação
territorial, declaração nos termos do art. 36º/2 do ETIJ, etc. (Aust, 2004, p. 58 ss.).
A distinção entre plenos poderes gerais e plenos poderes limitados decorre do seguinte:
a primeira ocorre quando o mandato é concedido para efeitos da participação em qualquer con-
venção (ainda que eventualmente dentro de determinado âmbito), enquanto a segunda consiste
numa atribuição de poderes especialmente dirigida a uma dada convenção. Os poderes gerais
são frequentemente concedidos a representantes permanente junto de organizações
internacionais que desenvolvem de forma mais ou menos contínua, acções convencionais,
maxime nas NU (United Nations, 1999, p. 31 § 102).
298
Designam-se estes por autoridades qualificadas (qualified authorities), advindo essa
qualificação da dispensa de apresentação da carta de plenos poderes. Essa dispensa decorre
aliás de um outro elemento significativo: é que a carta de plenos poderes tem obrigatoriamente
que ser assinada por uma das dessas autoridades (United Nations, 1999, p. 31 § 101 e 102).
299
Essa confirmação pode ser expressa ou tácita (nomeadamente por via da prática dos
atos subsequentes do processo – assinatura, aprovação, ratificação, etc.). A prática francesa na
matéria tem, aliás, sido de não munir os negociadores da carta de plenos poderes para efeitos
de negociação (excepto se as outras partes ou o organizador o exige), reservando-a para a
assinatura (Lavenue, 2013, p. 8 Tit I Cap I). A prática portuguesa é idêntica. Já a prática
americana é, de al- guma forma, a inversa, visando o mesmo resultado: o representante em
regra será munido de mandato, mas este confere apenas poderes para negociar, sendo
necessário obter uma autoriza- ção especial para assinar (Congressional Research Service, 2001,
p. 366). Por outro lado, em regra, apenas é emitida a carta de plenos poderes para a negociação
de tratados solenes (idem ponto 730.3 p. 365).
149
Rui Miguel Marrana
300
A negociação diplomática supõe que os representantes diplomáticos junto de um
dado governo entrem em contacto com os representantes deste, estabeleçam uma agenda
negocial e acordem um calendário relativo aos encontros, duração, data da assinatura, etc.
Durante este período, com apoio de peritos, são apresentadas propostas e contra propostas, até
se atingir um texto consensual (Lavenue, 2013, pp. 9, Tit I, Cap I).
301
A prática das conferências multilaterais deu origem a uma técnica negocial que
merece uma referência: o package deal, ou compromisso global. Esta fórmula foi definida na 3.ª
Confe- rência sobre do Direito do Mar pelo presidente Amerasinghe, do Sri Lanka, significando
que ne- nhuma posição das delegações sobre qualquer ponto seria considerada irrevogável
enquanto não fosse obtido um acordo pelo menos sobre todos os elementos a incluir no
compromisso. Todas as delegações viam assim ser-lhes reconhecido o direito de reservarem a
sua posição em relação a qualquer ponto até que fossem satisfeitas as suas pretensões sobre
outros pontos que conside- rasse de importância vital. O mesmo é dizer que, segundo este
princípio, o acordo em relação a um dado ponto pode ficar subordinado a um acordo sobre
todos os outros (Lavenue, 2013, pp. 10, Tit I, Cap. I).
302
Importa ter presente que sempre que se trate de convenção celebrada sob a égide de
uma organização internacional ou em que uma organização internacional seja parte, podem apli-
car-se regras particulares. Aliás, a CV69 sobre direito dos tratados entre Estados e organizações
internacionais ou entre organizações internacionais, de 1986, prevê expressamente essa possibi-
lidade no art. 5º. A título de exemplo refira-se o caso do Conselho da Europa em que o texto das
convenções celebradas sob a sua égide é adoptado pelo Comité de Ministros (Benoît-Rohmer &
Klebes, 2005, p. 100).
303
A prática vai ainda no sentido de se estabelecerem por consenso os textos nas
conven- ções multilaterais restritas. Nas conferências relativas a convenções multilaterais gerais
assume particular importância a definição inicial das regras de funcionamento da própria
conferência. Neste ponto não há convergência na doutrina sobre o nível de assentimento
necessário para essas regras: há quem defenda a mera maioria, quem exija a maioria de 2/3 e
quem apoie a necessidade da unanimidade. A prática vai no sentido desta, embora não
necessariamente por se entender ser obrigatória (Aust, 2004, p. 67 ss.).
150
Décima lição: processo de conclusão das convenções
2. Assinatura
A assinatura corresponde à solenidade que assinala ou sucede 304 à
adopção305 do texto306.
Os seus efeitos em regra variam conforme estejamos perante
acor- dos em forma simplificada – casos em que normalmente 307 a
assinatura poderá produzir a vinculação (tal como decorre dos art.
11º e 12º308
304
A variante serve para enquadrar as diferentes perspectivas do processo a que nos re-
ferimos atrás. Assim, a doutrina que prefere identificar uma fase de elaboração e aprovação do
texto (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 126 ss.) integrará a assinatura nesta fase (e nessa
perspetiva diríamos portanto que assinala a adopção do texto). Para a doutrina que prefere se-
parar a negociação da assinatura, dir-se-á que esta sucede àquela. Nesta diferença doutrinal não
há propriamente uma divergência, mas tão só uma perspectivação distinta. Assim, na primeira
variante valoriza-se e evidencia-se aquilo a que na abertura da secção fizemos referência: a exis-
tência de dois acordos (autónomos) que a conclusão de uma convenção implica (quanto ao texto
e quanto à vinculação). Na segunda perspetiva a distinção entre a negociação e a assinatura aco-
lhe um aspecto prático importante: é que em muitos casos (tanto mais quanto maior for a
impor- tância da convenção), há uma separação temporal, eventualmente física e também
pessoal, entre ambas. Isto porque – e referindo-nos agora à separação temporal – não apenas
uma antecede necessariamente a outra como frequentemente não são contíguas. Ou seja,
terminada a negoci- ação, é marcada a assinatura para data posterior. Por outro lado – passando
agora à separação física – atente-se que a assinatura, consistindo numa cerimónia mais ou
menos solenizada, ocorre frequentemente em local diverso daquele onde a negociação foi
efectuada (podendo até tratar- se de outra cidade ou país). Finalmente, no tocante àquilo que
chamamos uma separação (ou distinção) pessoal, tenha-se presente que em muitos casos, a
assinatura é praticada por um re- presentante distinto daquele que presidiu ou efectuou a
negociação (embora a negociação seja em regra conduzida por diplomatas, a assinatura,
enquanto cerimónia mediatizada, tende a ser protagonizada por responsáveis políticos).
305
Em rigor deve distinguir-se a adopção do texto da conclusão da convenção. O termo
conclusão é utilizado 23 vezes no texto da CV69, sendo todavia impreciso o seu alcance. Nas
convenções bilaterais considera-se a conclusão como correspondendo à assinatura. Nas
convenções multilaterais, a abertura para assinatura ou a assinatura do acto final (aquela que
ocorrer mais tarde) é entendida como correspondendo à conclusão (Aust, 2004, p. 74).
306
Nas convenções bilaterais a diferenciação entre adopção e assinatura é por vezes
muito difícil de estabelecer, uma vez que frequentemente surgem alterações ao texto até ao
momento da assinatura - a qual pode também vincular, tornando ainda mais relevante o acto
(Aust, 2004, pp. 66-67).
307
O regime da vinculação através da assinatura (frequentemente designada como assi-
natura definitiva) está hoje em dia praticamente circunscrito às convenções bilaterais (caso em
que também marca o início da vigência, por aplicação do disposto no art. 24.º CV69). A
assinatura sob reserva de ratificação, aceitação ou de outro acto permite aos Estados obterem
internamente o assentimento ao regime convencional e bem assim, adoptarem a legislação
necessária à sua futura implementação, antes mesmo, de produzirem a vinculação (United
Nations, 2003, pp. 34- 36). A prática atual vai no sentido de os Estados tornarem patente (de
forma inequívoca) o facto de a assinatura os não vincular, sendo caso disso (Aust, 2004, p. 76).
308
Mesmo quando a convenção preveja que a assinatura vincule, é admitida a assinatura
ad referendum (art. 12º/2 b) CV), ou seja, fazendo depender os efeitos da confirmação posterior.
A prática tem sido a de aceitar por princípio essa situação, sendo que para efeitos de
confirmação, os Estados raramente o fazem em termos expressos, fazendo-o de forma tácita –
por via do de-
151
Rui Miguel Marrana
152
Décima lição: processo de conclusão das convenções
312
Veremos infra (cf. p. 209) como a prática portuguesa é, nesta matéria estranha:
exige- se para a vinculação pela adesão a adopção dos atos que seriam necessários para a
vinculação segundo o processo completo.
313
Esta regra não apenas é supletiva, como em algumas circunstâncias, pode não ser
apli- cável. Assim, o Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares foi assinado
simultaneamente em Londres, Moscovo e Washington, a 1.07.1968, tornando pouco prático o
uso destas três capitais para a designação da convenção.
314
Alguma doutrina defende que as obrigações referidas no art. 18.º CV69 recaem tam-
bém sobre as partes das convenções durante o período que medeia a vinculação e a entrada em
vigor (Combacau & Serge, 2014, p. 119).
315
Releva neste aspecto o facto de os EUA – que não ratificaram a CV69 reconheceram
esse carácter consuetudinário (Bradley C. A., 2007, p. 314).
316
O carácter definitivo nem sempre é evidente para os próprios Estados, até porque
existem muitas situações em que entre a assinatura e a ratificação medeiam décadas (Bradley C.
A., 2007, pp. 309-310).
153
Rui Miguel Marrana
317
Os EUA receando exactamente os efeitos da assinatura no caso do Estatuto de Roma
do TPI decidiram comunicar expressamente essa recusa ao depositário – a qual surge em alguma
doutrina como uma desassinatura (Mengesha, 2014, p. 182; Bradley C. A., 2007, pp. 312, 317).
318
Não é claro na doutrina que a regra do art. 18º CV69 resulte de um costume internaci-
onal (e nessa medida, se é portanto obrigatória também para os Estados que dela não sejam
parte), nem o seu alcance se mostra claramente definido – sobre o assunto v. Bradley (2007). Em
todo o caso parece claro que não implica uma obrigação geral de cumprir a convenção, mas
apenas a de não praticar atos que possam invalidar ou impossibilitar a realização dos fins da
mesma. Não há uma prática de aplicação desta regra, há no entanto, uma decisão de 1928 do
Tribunal Arbitral Misto Greco-Turco (Megalidis c. Turquia) que considerou inválido o
apossamento pelaTurquia de bens gregos antes da entrada em vigor do Tratado de Lausanne,
em razão de isso constituir uma violação material dos termos do próprio tratado. Esta decisão
parece encontrar eco nos trabalhos preparatórios do art. 18º CV69 (Aust, 2004, pp. 93-94). Nos
trabalhos preparatórios relativos a esta norma é também citada a decisão do TPJI de 1926.05.25
relativa a certos interesses alemães na Alta Silésia polaca (Hollis, 2012, p. 213). Para uma
descrição dos trabalhos preparatório da norma v. Bradley (2007, p. 327 ss.).
319
A importância de uma convenção não pode medir-se exclusivamente pelo número de
Estados (ou organizações internacionais, se for caso disso) que assinam ou se vinculam. Para
uma perspetiva mais aprofundada, V. Paul F. Diehl, (2003). Atente-se que a assinatura (não
154
Décima lição: processo de conclusão das convenções
3. Ratificação
A ratificação é definível como um acto jurídico, individual e solene
pelo qual, o órgão competente do Estado (normalmente o Chefe de Es-
tado) afirma a vontade deste se vincular à convenção cujo texto foi por
ele assinado (Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 196/7; Nguyen
Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 137)323.
155
Rui Miguel Marrana
324
A questão da intervenção parlamentar que em regra era obviada nos acordos em
forma simplificada veio a motivar decisões no sentido de permitir algum tipo de controlo.
Nesta matéria releva o Case-Zablocki Act de 1972 que impõe ao Secretário de Estado americano
a obri- gação de transmitir ao Congresso, num prazo de sessenta dias, todos os acordos
(Congressional Research Service, 2001, p. 22).
156
Décima lição: processo de conclusão das convenções
325
Neste plano, é lapidar o texto da Circular do PM francês de 30 de Maio de 1997
(RGDIP, 1997-2, pp. 602-604), quando recorda que a intervenção parlamentar no processo de
conclusão dos tratados solenes não constitui mais do que uma mera autorização de ratificação,
dada sob a forma legislativa, mas não correspondendo a uma lei em sentido material. Daí
decorre a liberdade presidencial de usar ou não essa autorização (Lavenue, 2013, pp. 20, Tit. I
Cap. I).
Também na doutrina e prática americanas a noção da liberdade de ratificação está
firme- mente reconhecida (Congressional Research Service, 2001, p. 147).
326
No ac. 20.02.1969 relativo à plataforma continental do Mar do Norte, o TIJ constatou
que a não ratificação pela Alemanha da Convenção de Genebra de 1958, depois de a ter
assinado, tornava a dita convenção não vinculativa para este Estado. Esta jurisprudência vinha já
do TPJI que no ac #1929 relativo à jurisdição territorial da Comissão Internacional sobre o rio
Oder afirmou # não poder admitir-se que a ratificação da Convenção de Barcelona fosse
considerada supérflua).
327
As ratificações tardias ocorrem sempre que é ultrapassado o período durante o qual
esse acto devia ter sido adoptado. Exactamente para evitar essa eventualidade (e tendo em
conta não ser possível antever com precisão o tempo necessário para a prática dos atos),
procura-se em regra, nos tratados solenes, não fixar tal período, determinando que a troca ou
depósito dos respectivos instrumentos deverá ocorrer logo que possível (Congressional Research
Service, 2001, p. 367).
328
No limite das ratificações tardias, subsiste uma figura específica: a das ratificações
cujo processo é bloqueado em dado momento sem que, no entanto, haja uma intenção de
recusa - pelo que a ratificação fica pendente. Isso aconteceu com a própria CV69, a qual seria
assinada por muitos Estados que, todavia, tardariam em ratificá-la. Foi o caso dos EUA que após
a participação na negociação e a assinatura, vieram a obter internamente o assentimento do
próprio Senado, acabando, no entanto, a administração da altura por entender não dever
ratificar, e per- manecendo a situação até ao presente (Congressional Research Service, 2001, p.
20 ss.). Refira-se que, não obstante, os EUA reconhecem expressamente a autoridade do regime
da convenção (Cummins & Stewart, 2002, p. 208). No oposto dessa situação temos as recusas de
ratificação que traduzem um grau de empenho muito baixo, quando não mesmo um nível de
reprovação. Um caso exemplar será o da recusa de ratificação pelos EUA do Estatuto do TPI
(Diehl, 2003). Deve ainda contemplar-se outra alternativa: a da ratificação parcial (art. 17º CV69)
que exige o assentimento das outras partes.
São inúmeras as razões que podem conduzir à não ratificação das convenções: não
aprovação pelo parlamento, expectativa a alteração de maiorias parlamentares, estratégia
política, etc. (Mengesha, 2014, p. 180 n. 12)
157
Rui Miguel Marrana
329
Não existem modelos estritos relativamente ao instrumento de ratificação – ou a
qual- quer outro instrumento de vinculação. Não obstante, tratando-se de uma declaração
negocial há- de compreender as exigências decorrentes da teoria do negócio jurídico
(nomeadamente em ter- mos de conter uma clara declaração de vontade de vinculação e da
disposição em cumprir as obrigações nela inscritas, a assinatura por uma autoridade
competente). As NU, no âmbito do seu esforço de apoio técnico aos Estados, disponibilizam
modelos que podem ser consultados no Anexo XVI do Summary of Practice of the Secretary-
General as Depository of Multilateral Treaties (United Nations, 1999).
330
A troca dos instrumentos de ratificação (que consiste, tal como o termo indica, na en-
trega ao representante do outro Estado de um duplicado-original do instrumento nacional de ra-
tificação, contra a recepção deste de idêntico documento) é por vezes acompanhada por um
pro- tocolo ou procès-verbal (ou acta), documento em que se atesta essa troca e que é assinado
pelos representantes que a efectuaram (Congressional Research Service, 2001, p. 367).
331
A prática do Secretário-Geral das NU enquanto depositário é nesta matéria muito es-
trita, considerando o depósito apenas no momento em que o documento de vinculação seja re-
cebido na sede em Nova Iorque - mesmo que tenha sido entregue nas delegações de Genebra
ou Viena e seja remetido através do correio interno (United Nations, 1999, pp. 40 § 139-142).
332
A ratificação, quando prevista ou praticada, conduz à vinculação (United Nations, 2003,
p. 36). Por isso mesmo se não admitem ratificações condicionais (Aust, 2004, p. 85). Sendo pre-
vista, constitui uma condição indispensável da entrada em vigor da convenção, não podendo ser
assumida ou entendida como simples formalidade ou não essencial (ac. 1.07.52 do TIJ, no caso
Ambatielos).
O referido carácter internacional do acto não conflitua com o facto de este ser necessari-
amente adoptado pelas autoridades nacionais – e nessa medida é, por vezes referido como acto
nacional (Congressional Research Service, 2001, p. 148).
333
A doutrina e a prática são pacíficas neste aspecto: a aceitação ou aprovação de uma
convenção após a assinatura da mesma produz o efeito jurídico da ratificação aplicando-se-lhes
o mesmo regime, salvo se a convenção dispuser diversamente (United Nations, 2003, p. 36).
334
A prática internacional uniforme vai no sentido de os documentos que determinam a
vinculação, qualquer que seja a designação que possam assumir, deverem ser assinados pelo
Chefe de Estado, Chefe de Governo ou Ministro dos Negócios Estrangeiros – as autoridades em
relação às quais se presumem os poderes para concluírem convenções no art. 7º/2 a), –
qualquer que seja a designação que constitucionalmente seja dada a tais autoridades. A eventual
assinatura por outra autoridade, mesmo que seja aquela que detém poderes para o acto
segundo o direito
158
Décima lição: processo de conclusão das convenções
interno aplicável, apenas deve ser aceite se acompanhada de uma declaração de uma das autori-
dades referidas, assegurando essa competência (United Nations, 1999, pp. 35, § 21-123; Aust,
2004, p. 85).
335
O consentimento não tem sequer de ser expresso, podendo resultar do comporta-
mento, nomeadamente da aprovação de uma resolução (Aust, 2004, p. 90).
Um caso paradigmático de participação em tratados utilizando diferentes fórmulas é o
da União Europeia relativamente ao quadro convencional do Conselho da Europa. Aqui a
vinculação ocorreu já por via de assinatura, de aceitação (adesão), de assinatura seguida de
aceitação, de ratificação e de aprovação (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 110).
159
Rui Miguel Marrana
160
Décima lição: processo de conclusão das convenções
341
V. p. ex. art. VIII do Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967. Este é,
aliás, o regime supletivo: na falta de estipulação ou acordo em sentido diferente, quando um
Estado se vincula a uma convenção estando esta em vigor, a vigência em relação ao dito Estado
ocorre com a vinculação (24º/3 CV69).
342
V. p. ex. o regime previsto no art. 126º/2 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Inter-
nacional de 1998.
343
É o caso da adesão à UE, a qual implica sempre a celebração de um tratado de adesão
(cf. 49º TUE), o qual altera os tratados instituintes e dispõe especificamente sobre a entrada em
vigor dos mesmos para os estados peticionários.
344
V. p. ex. o regime previsto no art. 25º do Protocolo de Quioto de 1997 que exigiu a
vinculação de Estados que representassem determinado volume de emissões poluentes.
345
Foi o caso do Convénio Internacional do Café de 1994 cuja vigência foi alargada até
2001, com as modificações introduzidas pela Resolução 384 do Conselho Internacional do Café,
em Londres, em 21 de Julho de 1991. A aplicação provisória ocorre com muita frequência em
convenções que regulam a produção e comercialização de mercadorias. Assim, p. ex. no sector
do cacau foram celebrados seis acordos internacionais consecutivos desde 1972, cinco dos quais
ainda não terão entrado em vigor (United Nations, 2003, p. 66). Também a delimitação das fron-
teiras marítimas entre os EUA e Cuba vem sendo regulada por um acordo de 1977 que beneficia
do regime a aplicação provisória desde então, já que o Senado nunca o chegou a aprovar
(Congressional Research Service, 2001, p. 114).
346
A inclusão do tema nos trabalhos da CDI foi proposta em 2011 (cf. A/66/10 –
Relatório 2011 da CDI - Anexo C, pp. 330 ss.) e acolhida em 2012. O Relator especial Gómez-
Robledo tem apresentado relatórios anualmente, desde 2013. Em 2016 e 2017 o Comité de
Redacção
161
Rui Miguel Marrana
162
Décima lição: processo de conclusão das convenções
4.3. Registo
Vejamos agora o regime relativo ao registo das convenções.
Insista-se, uma vez mais, no facto de este não constituir uma fase
da conclusão das convenções, muito embora seja também regulado in-
ternacionalmente (24º CV69).
Está expressamente consagrada a obrigação de registo (cf. art.
102º/1 CNU)350, através do envio ao Secretário-geral NU. Sendo
bilaterais as convenções, tal obrigação cabe às partes (80º/1 CV69), e
sendo multi- laterais ao depositário (77º/1 g) e 80º/2).
A falta de registo (já não a falta da publicação) impede as partes
de invocarem a convenção perante qualquer órgão das NU – inclusive o
TIJ (United Nations, 2003, p. 76)351 – nos termos do art. 102º/2 CNU.
A obrigação de registo – que estava já prevista no art. 18º do
Pacto das Nações – visa garantir o carácter público das convenções,
contrari- ando a prática diplomática secreta que desde o século XIX era
sentida como contribuindo para a instabilidade internacional352.
4.4. Publicação
A publicação das convenções multilaterais é também uma obriga-
ção originalmente fixada no Pacto das Nações e que se desenvolveu
com o regime da CNU. Neste era obrigatoriamente efectuada no órgão
oficial das NU – o United Nations Treaty Series (UNTS) – sendo que, em
relação a convenções bilaterais, desde 1978 se desenvolveu uma política
de pu- blicação limitada353 que garante apenas a publicação parcial.
Dado o
350
O regime relativo ao registo e publicação foi adoptado pela AG em 14.12.1946 [Reso-
lução 97 (I)], a qual foi posteriormente modificada pelas Resoluções 364 B (IV), 482 (V) e 33/141
A, adoptadas em 1949, 1950 e 1978, respectivamente.
351
V. tb. a decisão 1.7.1994, do TIJ, relativa à delimitação marítima e questões territoriais
entre Qatar e Bahrein (competência e admissibilidade), especialmente o § 29.
352
Nesse sentido v. o discurso do Presidente Wilson quando em 1918, dirigindo-se aos
representantes dos Estados que negociavam o Pacto das Nações, se referia a negociações de paz
abertas, concluídas abertamente, depois das quais não mais haverá entendimentos
internacionais privados de qualquer tipo mas a diplomacia que se desenvolverá em termos
francos e aos olhos de todos (Brölmann, 2005, p. 386 n.12).
Para uma análise da prática e defesa das vantagens dos acordos secretos v. Ashley S. Deeks
(2017).
353
A política de publicação limitada aplica-se aos acordos em matéria de assistência e co-
operação circunscritas a assuntos financeiros, comerciais, administrativos ou técnicos, acordos
relativos à organização de conferências, seminários ou encontros e acordos sujeitos a publicação
noutros órgãos que não o UNTS. A prática veio a acolher na política de publicação limitada
alguns
163
Rui Miguel Marrana
acordos comerciais, sendo que as convenções celebradas pela UE passaram a ser publicadas
ape- nas nas versões em língua inglesa e francesa. Isso faz com que esta política se aplique a
cerca de 25% das convenções recebidas pelo Secretariado-geral das NU (United Nations, 2012,
p. 39 ss.).
354
Tal como veremos adiante (pp. 197 ss.), em Portugal a vinculação aos acordos em
forma simplificada decorre da aprovação (que sucede à assinatura). Dadas as variantes julgamos
ser preferível insistir na simplificação dos procedimentos como característica essencial dos acor-
dos em forma simplificada do que especificar os atos dos quais depende a vinculação (cf. tb.
infra nota 358).
355
Cf. art. 10º e 11º CV69. O TPJI no seu parecer de 5.09.1931 relativo ao regime
aduaneiro entre a Alemanha e a Áustria, afirmou expressamente que os compromissos
internacionais po- dem ser assumidos indiferentemente sob a forma de tratados, convenções,
declarações, acordos, protocolos ou troca de notas (p. 14).
164
Décima lição: processo de conclusão das convenções
165
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questão geral
Identifique as principais fases internacionais da conclusão das convenções
B. Questões directas
1. Refira as principais componentes do texto das convenções internacio-
nais;
2. Identifique os efeitos da assinatura das convenções internacionais;
3. Defina ratificação explicando sumariamente os diferentes elementos
da definição;
4. Refira-se à origem e evolução do instituto da ratificação;
5. Caracterize a ratificação;
6. Explique sumariamente o regime e prática da entrada em vigor das
convenções internacionais;
7. Distinga a entrada em vigor de uma convenção, da entrada em vigor
para um Estado e ainda da sua aplicação;
8. Refira-se à obrigação e efeitos do registo das convenções internacio-
nais;
9. Explique o surgimento e importância dos acordos em forma simplifi-
cada.
359
Trata-se do envio mútuo de cartas que contêm o texto integral do acordo, valendo
como data de assinatura a da recepção da segunda (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p.
143). A prática portuguesa em negociações bilaterais dispensa a emissão de credenciais para os
repre- sentantes nacionais que vão negociar o texto, tal como se referiu anteriormente.
360
Tal como referimos supra nas notas 283 e 356, nos EUA considera-se que os acordos
em forma simplificada não prevalecem sobre a lei federal (ao contrário dos tratados). Mas essa
questão é puramente interna. Face ao direito internacional, caso uma disposição de um acordo
em forma simplificada não seja aplicada por contrariar uma regra federal (ou qualquer norma
interna, independentemente da natureza da mesma), o Estado em causa estará a violar as suas
obrigações – nomeadamente a obrigação de adequar o seu direito interno ao cumprimento pon-
tual das suas obrigações internacionais – pelo que poderá de ter de responder pelos danos que
decorram desse ilícito.
166
Décima lição: processo de conclusão das convenções
Bibliografia de referência
UNITED NATIONS 1999. Summary of practice of the Secretary-General as
depositary of multilateral treaties. New York, NY: United Nations.
UNITED NATIONS. 2003. Final Clauses of Multilateral Treaties Handbook.
New York, NY: United Nations.
UNITED NATIONS. 2012. Treaty Handbook. New York, NY: United Nations.
AUST, A. 2004. Modern Treaty Law and Practice. Cambridge, UK: Cam-
bridge University Press.
Leituras recomendadas
NGUYEN QUOC DINH et. al. 1999. Droit International Public, 6ª Ed. Paris:
L.G.D.J. pp. 126-163.
Bradley, C. A. (2007). Unratified Treaties, Domestic Politics, and the U.S.
Constitution. Harvard International Law Journal, 48(2), pp. 307-
336.
Recursos on line
Model Instruments in the six official UN Languages:
https://treaties.un.org/Pages/Content.aspx?path=Publication/ModelInstruments/Page
1_en.xml
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – 3 aulas (em inglês)
sobre as diferentes fases de conclusão de convenções
[Treaty Negotiations - 5:37]:
https://www.youtube.com/watch?v=7RqvxVfKmtU
[Signature, ratification and entry into force - 10:29]:
https://www.youtube.com/watch?v=cu9q-y3_oPM
[Registration and Publication - 6:53]:
https://www.youtube.com/watch?v=5zRHBDMPRSA
167
XI Lição
Convenções multilaterais: particularidades
A. Objetivo
Vimos na lição anterior o regime internacional geral relativo ao
pro- cedimento genérico de formação das convenções internacionais.
Aquele regime geral há-de, na prática, articular-se – como se referiu
– com as exigências estipuladas na ordem internacional dos Estados (e
de outros sujeitos).
Ainda antes de passarmos à análise desse tipo de exigências – por
via do estudo do processo de vinculação internacional do Estado portu-
guês, na próxima lição – convém estudarmos as particularidades das
con- venções multilaterais.
A vida internacional é cada vez mais regulada por convenções mul-
tilaterais, as quais assumem, nos nossos dias, o papel central nesse es-
forço. O carácter multilateral altera, todavia, a natureza convencional,
impondo exigências específicas e dando lugar ocorrências e mecanismos
originais (cf. a imagem361 da pag.ª seguinte, no qual se assinala uma se-
quência possível).
São essas exigências e mecanismos que vamos analisar na presente
lição.
Começaremos por constatar a diferença radical que surge logo na
negociação, assinalando o respectivo regime. Veremos depois os termos
em que se prevê ou admite a extensão dos regimes convencionais (de
facto, a regulação multilateral traz consigo o ímpeto da regulação – mais
ou menos – genérica ou universal. Essa generalização é facilitada
possibi- litando a aplicação das convenções aos sujeitos que não tenham
partici- pado na sua formação).
Veremos depois o regime das reservas e declarações interpretati-
vas (o qual tem sido objeto de grande atenção nas últimas décadas),
para concluirmos com a análise da figura do depositário.
361
Quadro adaptado de United Nations (2012, p. 21).
169
Rui Miguel Marrana
Início da negociação
Adopção do texto
170
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
B. Negociação
A diferenciação entre convenções bilaterais e multilaterais resulta
desde logo da metodologia segundo a qual se desenvolve a elaboração
do texto ou (para voltarmos ao termo usado anteriormente) a negocia-
ção.
Enquanto nas convenções bilaterais a negociação segue o meca-
nismo diplomático tradicional (cf. supra nota 300) simplificado
(tendendo a fazer-se por apresentação de propostas e contrapropostas),
para as convenções multilaterais em regra será necessária a reunião dos
repre- sentantes dos Estados numa conferência internacional
(tradicionalmente designada conferência ad hoc e mais recentemente
conferência intergo- vernamental).
Neste ponto avulta o papel das organizações internacionais. Muito
embora as conferências intergovernamentais de negociação surjam
tam- bém por iniciativa de Estados, essa situação tende a limitar-se aos
casos em que as sensibilidades políticas justificam a liderança por
Estados com posições influentes362. Fora de tais circunstâncias, a regra é
a de a própria iniciativa da convocação caber às organizações
internacionais, as quais, enquanto fora de negociação permanente,
estão naturalmente vocacio- nadas para produzir tais resultados363. Na
verdade, a organização e fun- cionamento de uma conferência
intergovernamental é afinal uma activi- dade semelhante às actividades
correntes das organizações internacio- nais. Claro que há, neste ponto,
variantes: a conferência pode ocorrer em estilo congresso (resumindo-
se a intervenção da organização internacio- nal ao apoio logístico) ou
pode seguir os métodos de funcionamento da própria organização
internacional (o que facilita consideravelmente o de- senrolar dos
trabalhos, não apenas por estarem já definidas as regras de
funcionamento mas ainda porque estas são frequentemente mais estri-
tas e disciplinadoras).
362
A posição de influência dos Estados para convocarem conferências ad hoc, é eviden-
ciável desde o início: a mera convocação implica, em regra, substanciais esforços diplomáticos
para motivar os outros Estados e os convencer da utilidade e oportunidade dessa mesma inicia-
tiva. Por outro lado, a simples selecção dos Estados a convidar, pressupõe também a capacidade
para suportar os atritos diplomáticos resultantes da opção (qualquer que ela seja), uma vez que
o simples facto de deixar de fora alguns Estados tenderá a ser assumido como uma
desconsidera- ção. Finalmente, a organização do evento é também algo que imporá
normalmente um empenho financeiro e técnico que não estará ao alcance da maioria dos
Estados.
363
De facto, como salienta a doutrina, as organizações internacionais – e dentro destas,
em especial as universais – tornaram-se máquinas virtuais de conclusão de convenções, ideia
essa que, aliás, estará na origem da formação das mesmas (Alvarez, 2002, p. 218), ao mesmo
tempo que a sua intervenção fez diminuir consideravelmente a exclusão de Estados na fase da
negocia- ção (Diehl, 2003, p. 6).
171
Rui Miguel Marrana
364
Cf. supra, p. 19 ss. Esta prática (da negociação do texto ser efectuada por peritos e
não por diplomatas) é também seguida no Conselho da Europa, embora aqui a sua formação
varie, podendo tratar-se de um dos membros dos comités directores do CM ou de um grupo de
peritos ad hoc agindo sob a responsabilidade destes (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 99).
172
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
365
O esquema apresentado no início do presente capítulo – adaptado daquele que surge
no United Nations Treaty Handbook (United Nations, 2012) – reflecte, aliás, logo no início da se-
quência apresentada, uma prática que foi iniciada nesta organização internacional. Referimo-nos
à preparação pelo Secretário-geral do documento que é submetido à assinatura dos
representan- tes das partes, com base na Acta Final da conferência ou na Resolução AGNU
(United Nations, 1999, pp. 11, §38).
366
Neste âmbito estamos a referir-nos não apenas a convenções propriamente ditas,
como também às Decisões dos representantes dos Governos dos Estados Membros e às Resolu-
ções do dos representantes dos Estados-Membros e bem assim às Resoluções conjuntas do Con-
selho e de representantes dos governos dos Estados Membros.
173
Rui Miguel Marrana
1. Assinatura diferida
A assinatura diferida consiste em transformar a cerimónia de assi-
natura (que, por definição se restringe aos Estados que participaram na
negociação) num período aberto durante o qual os Estados que estejam
em condições de o fazer e decidam nesse sentido, podem praticar esse
acto - apondo no documento a assinatura do representante nessa quali-
dade ou, se for caso disso, depositando um instrumento de aceitação
com
o mesmo efeito (United Nations, 1999, p. 33 §116).
A assinatura diferida apresenta diversas vantagens, a mais impor-
tante das quais tem a ver com o facto de permitir, logo após a
negociação, integrar no processo de conclusão da convenção os Estados
que não pu- deram ou não quiseram participar na negociação. No caso
de convenções multilaterais gerais este expediente não apenas permite
alargar desde cedo o número de Estados envolvidos (o que, como
vimos, dá, só por si, maior consistência ao regime) como ainda
frequentemente facilita a en- trada em vigor se esta depende – como é
frequente – do depósito de um dado número de instrumentos de
ratificação367. É que, sendo esse o caso, uma vez que a ratificação está
restrita aos Estados que assinaram, quanto maior for o número de
Estados que assinem, mais fácil será obter o nú- mero de ratificações
exigido para a entrada em vigor.
Quando as convenções admitem a assinatura diferida, indicam
(nas cláusulas finais) o local368 e o período369 durante o qual podem ser
prati-
367
Importará ter presente que o acto da assinatura quando a convenção está aberta para
esse efeito, pode consistir numa assinatura definitiva (visando, portanto, a vinculação, nos
termos do art. 12º CV69) ou numa simples assinatura (exigindo consequentemente a prática de
atos subsequentes como condição de vinculação, maxime da ratificação)
368
Nas convenções em que o Secretário-geral das NU é nomeado depositário, a regra
geral imposta por este é a de que a custódia das mesmas permaneça na Secção de Tratados da
Secre- taria-geral, o que impõe acordos especiais sempre que as partes pretendam celebrar
cerimónias de assinatura noutros locais que não a sede das NU. Estas limitações prendem-se
quer com os custos decorrentes do acompanhamento por funcionários, quer ainda com a
segurança da con- venção (United Nations, 2003, p. 32).
369
Alguns tratados sobre direitos humanos ficam indefinidamente abertos para assinatura
– cf. art. 25º/1 da Convenção relativa à Eliminação de Todas as Formas de Discriminação das
Mu- lheres, de 1979, o art. 46º da Convenção relativa aos direitos da Criança, de 1990, ou ainda
o art. 86º da Convenção Internacional de Protecção dos Direitos de todos os Trabalhadores
Migrantes e Membros das suas Famílias, de 1990 (United Nations, 2003, p. 30; United Nations,
1999, p. 33
174
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
§116). Essa situação pode também observar-se no art. 155º da Convenção de Genebra Relativa à
Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 1949.
175
Rui Miguel Marrana
cados esses atos. Isso pode acontecer no local onde foi realizada a ne-
gociação370, noutro local371 ou até em dois locais em simultâneo372 ou su-
cessivamente373.
2. Adesão
A adesão consiste num acto de vinculação para sujeitos que não
participaram no processo de conclusão da convenção e que, portanto,
não a assinaram374. Substitui assim, quer a assinatura, quer a ratificação
(ou acto equivalente). Na prática, isso significa que com a adesão, a vin-
culação decorre do depósito do instrumento de um único acto.
O regime da adesão fixado no art. 15º CV69 estabelece que esta se
admite quando isso se encontre previsto na convenção [al. a)], se por
ou- tra forma se verifique ser essa a intenção das partes [al. b)] ou ainda
se todas as partes acordarem nesse sentido. Dito de outra maneira, a
vincu- lação pela adesão apenas ocorre se as partes de uma convenção
derem o seu acordo (de princípio, na própria convenção ou em outro
momento, ou específico, face a um pedido concreto).
A propósito do regime de adesão a doutrina frequentemente intro-
duz uma classificação específica, distinguindo convenções abertas e fe-
chadas (conforme a adesão esteja ou não prevista no texto convencio-
nal). Assim, ao contrário do que a designação pode sugerir, a abertura da
convenção não implica que a adesão esteja facilitada. Implica isso sim
a existência de uma previsão nesse sentido. Mas essa previsão pode
sur-
370
Tal como aconteceu, p. ex. com a Convenção sobre o Transporte Internacional de Mer-
cadorias em Camiões TIR (TIR Convention), de 1975, cuja assinatura foi aberta em Genebra, local
onde se realizou também a conferência intergovernamental que negociou o texto (United
Nations, 1999, p. 34 §116).
371
Nas convenções multilaterais gerais concluídas sob os auspícios das NU, a regra geral
vai no sentido de que fiquem abertas para assinatura na sede, em Nova Iorque salvo acordo es-
pecial com a Secção de Tratados (United Nations, 2003, p. 30).
372
Esse foi o caso – excepcional, como refere o Summary of Practice of the Secretary-
General as Depository of Multilateral Treaties (United Nations, 1999, pp. 34-35 §118) – da Con-
venção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, cuja assinatura esteve aberta no Mi-
nistério dos Negócios Estrangeiros Jamaicano, em Montego Bay e na sede das NU em Nova
Iorque (cf. art. 305º/2 da mesma convenção).
373
Veja-se o regime fixado no art. 81º CV69 que previa que até 30.11.1969 a assinatura
pudesse ser efectuada junto do MNE austríaco e a partir daí até 30.4.1970, na sede das NU. Foi
também o caso da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, de 2001. A
prática parece ser corrente em convenções ambientais (United Nations, 2003, p. 31).
374
A não assinatura ocorre, por vezes, em situações em que o Estado participou na nego-
ciação, mas não lhe foi possível praticar em tempo os atos necessários (United Nations, 2003, p.
38).
176
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
375
É o caso dos tratados europeus: estando prevista a adesão à UE no art. 49º TUE, esta
apenas ocorre quando for obtido um acordo sobre os termos da mesma (um tratado de adesão)
cuja negociação apenas se inicia com uma deliberação unânime do Conselho que previamente
terá ouvido a Comissão e obtido o parecer favorável do Parlamento Europeu. E depois de
negoci- ado esse acordo, o mesmo terá de ser ratificado por todos os Estados-membros. Na
prática, o regime é bem mais exigente do que se se tratasse de uma convenção fechada (ou seja,
se nada estivesse previsto, pois nesse caso, a única exigência seria o assentimento de todas as
partes). Casos há em que as exigências são objectivas e eventualmente limitativas como quando
surge como requisito, o facto de ser parte de uma convenção anterior (p. ex. o art. 22º do
Protocolo sobre Protecção Ambiental do Tratado do Antártico, de 1991, apenas autoriza a
adesão de Estados que sejam partes do Tratado do Antártico, de 1959.
376
É o caso previsto no art. 18º/2.da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial de 1965, do art. 48º/3 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, de 1966 e o art. 26º/3 do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,
Sociais e Culturais de 1966.
377
Essa é a prática seguida no Conselho da Europa em relação a estados não membros
(Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 109), prática aliás vertida no art. C do Model Final Clauses de
1980.
378
Esse é o caso do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 que no seu art.
125º/3 estipula a admissibilidade da adesão através do depósito do respectivo instrumento
junto do Secretário-geral NU, sem que seja fixada qualquer data a partir da qual essa adesão se
pode operar – sendo que o número anterior estipula uma data limite para a assinatura, pelo
que, não se fazendo qualquer remissão para a mesma e não se fixando outra, entende-se que se
pretendeu admitir a adesão em simultâneo com a assinatura, por forma a facilitar a vinculação
dos Estados que por alguma razão não tenham podido ou tenham preferido não assinar.
Verifica-se a mesma situação no art. 16º/2 da Convenção sobre a Proibição da Utilização,
Armazenagem e Transferência de Minas Antipessoais e sobre a sua Destruição, de 1997.
177
Rui Miguel Marrana
D. Reservas
1. Noção
A CV69 refere no art. 2º/1 d) que [a] expressão «reserva» designa
uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu enunciado 381 ou de-
signação, feita por um Estado quando assina, ratifica, aceita ou aprova
um tratado ou a ele adere, pela qual visa excluir ou modificar o efeito ju-
rídico de certas disposições do tratado na sua aplicação a este Estado.
379
A título de exemplo V. o regime fixado no art. 25º/1 da Convenção de Roterdão
Relativa ao Procedimento de Prévia Informação e Consentimento para Determinados Produtos
Químicos e Pesticidas Perigosos no Comércio Internacional, de 1998. Tb. art. 24º/1 do Protocolo
de Quioto de 1997 à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as alterações climáticas e ao
cumprimento conjunto dos respectivos compromissos,.
380
Esta é solução mais corrente e a que oferece menos dificuldades (v. p. ex. art. XIII do
Tratado de Proibição Total de Ensaios Nucleares, de 1996).
381
A tradução portuguesa da convenção – que parece dever atribuir-se ao Prof. André
Gonçalves Pereira (Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 172) – não faz fé, já que nos termos
do art. 85º, isso apenas acontece com as versões nas línguas oficiais das NU (em inglês, chinês,
espa- nhol, francês e russo). Ora, no tocante a esta alínea, a tradução portuguesa que vem
correndo, parece-nos não apenas menos conseguida, como também exorbitante do sentido
original. Assim, onde surge no texto a expressão qualquer que seja o seu enunciado ou
designação costuma en- contrar-se, nas traduções portuguesas qualquer que seja o seu
conteúdo ou designação. Assim se pretende traduzir quel que soit son libéllé ou sa désignation
(da versão oficial francesa) ou how- ever phrased or named (da versão oficial inglesa) ou ainda
cualquiera que sea su enunciado o de- nominación (da versão em castelhano). Ora, se é verdade
que désignation ou named ou denomi- nación podem bem ser traduzidos por ‘designação’, não
parece poder aceitar-se que libellé, phra- sed ou enunciado sejam traduzidos por ‘conteúdo’. Em
qualquer uma das versões linguísticas se pode verificar que se está a referir o termo utilizado
para denominar o acto. Julgámos, por isso, oportuno introduzir esta alteração que segue a
versão castelhana, mesmo que isso venha ao ar- repio da tradução oficial (DR 7.08.2003 que
inclui as versões inglesa e francesa), a qual não fez mais do que repetir os termos da tradução
que inicialmente o Prof. Gonçalves Pereira difundiu.
178
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
382
O Guia da Prática das reservas embora apresentado em 2011 (por isso usamos como
referência abreviada GPR2011) só veio a ser apreciado pela AGNU em 2013, a qual adoptou a
Resolução 68/111 tomando nota do mesmo e pugnando pela sua difusão.
383
O Relator (Alan Pellet), muito embora constatando as imperfeições das definições ori-
ginais, entendeu ser preferível limitar-se a uma definição que agregasse as existentes (CDI/ILC,
1998, p. 242) vindo o Guia da prática, na sua redacção final, a oferecer a seguinte (Directiva
1.1.):
1. Entende-se por ‘reserva’, uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu enunciado ou de-
signação, feita por um Estado ou por uma organização internacional no momento da assinatura,
ratificação, confirmação formal, aceitação ou aprovação de um tratado ou de adesão a este, ou
ainda quando um Estado efectua uma notificação de sucessão a um tratado, pela qual esse
Estado ou organização internacional visa excluir ou modificar o efeito jurídico de certas
disposições do tratado na sua aplicação a esse Estado ou a essa organização (as alterações estão
assinaladas pela omissão do itálico).
384
O disposto no número anterior deve interpretar-se no sentido de incluir as reservas
que visem excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições de um tratado, ou do
tratado no seu todo relativamente a aspectos específicos, na sua aplicação ao Estado ou à
organização inter- nacional que formula a reserva (nº 2 da directiva 1.1).
385
Uma reserva é sempre uma declaração unilateral, ainda que seja formulada conjunta-
mente (cf. directiva 1.1.5).
179
Rui Miguel Marrana
2. Histórico
Até ao final do séc. XIX a ratificação ou adesão às convenções era
entendida como um todo, admitindo-se apenas a aceitação integral ao
regime nela estipulado. Entendia-se que havendo necessidade da
ponde- ração de dificuldades ou exigências particulares, essa
ponderação devia
fazer-se com a negociação do texto.
A prática inicial foi contrariada com a Convenção Sanitária Interna-
cional, de 1887, dando todavia origem a um regime segundo o qual as
reservas teriam de ser unanimemente aceites para produzirem os
efeitos pretendidos. Esta tendência foi firmemente defendida pelos
Estados eu- ropeus depois da I GM, surgindo todavia uma prática diversa
na América, consagrada na Convenção de Havana sobre direito dos
Tratados, de 1928 e que ficou conhecida como a regra pan-americana.
Esta identificava três níveis de direitos e obrigações entre os Estados
signatários: entre Estados que não houvessem formulado reservas
(aplicando-se o regime fixado no texto), entre Estados que formulassem
reservas e Estados que as houves- sem aceite (aplicando-se o regime
resultante da modificação) e final- mente nos casos em que a
formulação de reservas surgisse depois da en- trada em vigor da
convenção, esta não se aplicaria entre o Estado que formulasse a
reserva e os estados que as não aceitassem (Parisi & Sevcenko, 2003, p.
3 ss.).
Estas duas perspectivas atlânticas coexistiram até depois da II GM,
altura em que no quadro das NU é negociada a Convenção para a
Preven- ção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, em cuja
vinculação di- versos Estados vieram a formular reservas. O Secretário-
geral, pressio- nado entre outros aspectos pela necessidade de aferir
sobre se deveria contar essas situações como vinculações, para efeitos
da entrada em vi- gor, expôs o assunto à AG que solicitou um parecer à
CDI e ao TIJ (Reso- lução 478 [V] de 1950). Os termos do parecer deste,
de 28.05.1951, cons- tituirão a base do regime que viria a acolher-se na
CV69. Aquela instância ancorou o seu parecer na tentativa de equilibrar
duas exigências: o prin- cípio do consentimento (que impõe que a
formulação de uma reserva seja aceite para vincular as partes, já que se
trata de um novo regime, especial) e a vocação integrativa das
convenções multilaterais (que torna excessivo que uma objecção
individual possa só por si impedir a extensão do regime). Nesse
equilíbrio, o TIJ afastou-se da posição europeia tradici-
180
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
onal (que, como vimos exigia a aceitação unânime – posição essa que vi-
nha sendo seguida pelo Secretário-geral enquanto depositário386),
procu- rando simultaneamente evitar que os Estados que objectassem
ficassem obrigados a regimes em relação aos quais não tinham dado o
seu assen- timento (Parisi & Sevcenko, 2003, p. 4 ss.).
A CDI, no seu parecer (ILC/CDI, 1951, p. 125 ss.), veio a defender
um regime mais próximo da posição europeia tradicional, obrigando a
AG a tentar articular ambas, numa instrução ao Secretário-geral contida
na Re- solução 598 (VI) de 12 de Janeiro de 1952 que recomendava uma
nova orientação prática, segundo a qual, na ausência de disposições
convenci- onais sobre a matéria, deveriam ser aceites em depósito as
declarações contendo reservas, comunicando-se as mesmas às partes,
sem qualquer comentário sobre a legalidade das mesmas, cabendo a
estas pronuncia- rem-se sobre os efeitos legais. O Secretário-geral veio a
seguir essa ins- trução, o que veio a facilitar a disseminação da prática
de reservas (e das objecções às mesmas).
Em 1959 a Índia veio a solicitar um esclarecimento sobre uma re-
serva apresentada à Convention on the Inter-Governmental Maritime
Consultative Organization, de 1948, o que obrigou a AG a pedir ao
Secre- tário-geral (Resolução 1452 [XIV] de 1959) que efectuasse um
levanta- mento das práticas na matéria e as submetesse à apreciação da
CDI. Nesta altura, a AG reconhecia já a impossibilidade de se manter a
regra da unanimidade na aceitação das reservas. Três anos mais tarde a
CDI publicou as suas conclusões sobre a matéria (ILC/CDI, 1962, p. 27
ss.), as quais viriam a ser plasmadas no regime da CV69 – o qual, não
obstante tenha constituído um avanço evolutivo, veio a revelar-se
complexo, am- bíguo e por vezes contra-intuitivo (Helfer, 2006, p. 367).
Já na vigência desta387 surgiram dificuldades particulares na aplica-
ção do regime às convenções de direitos humanos, âmbito no qual a for-
mulação de reservas se multiplicaria, o que deu origem a uma tentativa
de limitar essa tendência. Neste enquadramento, a CDI veio a nomear,
nos anos 90, um relator especial, Alain Pellet (ILC/CDI, 1994, p. 179
§381), com a incumbência específica de avaliar da eventual necessidade
de mudança do regime da CV69, tendo em vista à protecção da
integralidade das convenções de direitos humanos. O relator veio a
pronunciar-se
386
Na verdade, seguindo uma prática que vinha desde a SdN, considerava-se que, na ine-
xistência de disposições que regulassem a matéria, uma reserva apenas poderia ser aceite se ne-
nhum dos Estados parte levantasse qualquer objecção (United Nations, 1999, p. 49 §168). Ou
seja, o regime geral era aquele que actualmente se aplica apenas às convenções.
387
A CV69 iniciou a sua vigência em 27.01.1980.
181
Rui Miguel Marrana
3. Efeitos
O primeiro efeito das reservas é o de introduzir um condiciona-
mento à vinculação (United Nations, 1999, p. 49 §166; Aust, 2004, p.
112). Na verdade, quando um Estado ou uma organização internacional
formu- lam uma reserva – o que deve acontecer no momento da
vinculação (cf. directivas 2.2.1 ss.), conforme insistiremos adiante –,
fazem depender
essa vinculação, da aceitação dessa mesma reserva.
A formulação de uma reserva tem portanto, um efeito imediato:
condiciona a vinculação389.
O segundo efeito decorre da aceitação 390 e é – tal como se referiu
na definição – a modificação do efeito jurídico de certas disposições
dessa convenção, ou da convenção no seu todo, na sua aplicação ao
sujeito que a formula391.
A formulação de uma reserva não tem em vista a modificação do
texto convencional, o qual está definido no final da negociação e assim
permanecerá392. Pretende-se antes um regime especial: aquele que for-
388
A CDI propôs a inscrição da matéria em 1993 o que veio a acolher o assentimento da
AGNU (Resolução 48/31 de 24.01.94). O GPR2011 surge 18 anos depois. A extensão do período
denota, só por si, a complexidade da matéria.
389
A prática consagra, todavia, algumas excepções que referimos infra na nota 411.
390
O GPR2011 introduz um novo conceito complementar: o estabelecimento da reserva,
que decorre da conjugação da (1) validade substancial da reserva com (2) o cumprimento das
regras formais e procedimentais na formulação e (3) a aceitação (directiva 4.1).
391
Deve distinguir-se a reserva da derrogação. Esta pode admitir também a modificação
do efeito jurídico de determinada disposição ou disposições (nomeadamente a sua não
aplicação), em regra durante um período específico. A diferença reside no facto de que a
derrogação decorre da própria convenção ou de uma autorização adoptada nos termos desta,
para fazer face a situa- ções excepcionais.
392
Tal como se referiu anteriormente, o texto, elaborado na negociação, torna-se defini-
tivo com a assinatura. Nada o alterará, salvo por via de um processo de modificação (revisão ou
emendas) que, como veremos adiante, é complexo e demorado.
A distinção das situações (que torna inadmissível qualquer reserva que vise operar uma
modificação do texto convencional) pode ser observada no caso da reserva formulada pela Islân-
dia relativamente à Convenção Internacional de Regulação da Pesca da Baleia de 1946, que vem
182
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
183
Rui Miguel Marrana
4. Vantagens e inconvenientes
As reservas ao permitirem uma flexibilização dos regimes conven-
cionais, trazem consigo as vantagens e inconvenientes próprios dessa
fle-
xibilização. Senão vejamos.
Em termos de vantagens deve assinalar-se, desde logo, o facto de
facilitarem a vinculação (a flexibilização certamente que permite obter a
vinculação de um número mais alargado de Estados 396), favorecendo as-
sim a extensão dos regimes, ou seja, apoiando a sua generalização (no
caso das convenções multilaterais gerais) ou, pelo menos,
impulsionando uma maior abrangência (para as convenções
multilaterais restritas).
A segunda vantagem da introdução ou admissão de reservas
prende-se com o funcionamento das conferências intergovernamentais.
A admissão de reservas evita o prolongamento excessivo dos trabalhos
destas, na medida em que torna menos importante o consenso sobre os
textos397, já que eventuais divergências de pormenor poderão ser poste-
riormente contornadas. Por outro lado, sendo o texto adoptado por
mai- oria de 2/3 dos Estados participantes (art. 9º/2 CV69), a posição
daqueles que eventualmente saiam vencidos da deliberação não implica
necessa- riamente o seu afastamento, porque, mais uma vez, se a
discordância se dirigir a aspectos concretos, a admissão de uma reserva
(afastando a apli- cação da regra ou regras em causa, ou ajustando a
mesma ao regime pre- tendido) pode resolver a situação.
As desvantagens resultantes da introdução de reservas são anteci-
páveis.
Em primeiro lugar estas podem conduzir a uma alteração indirecta
dos regimes, já que muitos dos participantes podem solicitar a modifica-
ção do mesmo efeito jurídico, tornando assim regra geral aquilo que su-
postamente deveria ser mera excepção. Assim, um regime eventual-
mente obtido graças a duros e prolongados esforços na negociação,
pode ser esvaziado se um número significativo de Estados vierem a
formular
396
A prática atual dos EUA tem aliás sido relutante na vinculação a convenções que não
admitam reservas. Nesse sentido, protestaram contra a interdição de reservas à Convenção-
Qua- dro da OMS relativa ao Controlo do Tabaco, de 2003, e anunciaram que não se vinculariam
à mesma enquanto essa interdição se mantivesse. Este padrão de comportamento tem
motivado preocupações da parte de governos e de ONG já que, sendo os EUA o mais influente
dos estados, está certamente a colocar em causa o sistema (que não obstante declara respeitar)
com essa ati- tude (Kirgis, 2003).
397
Mesmo no âmbito das NU, persiste a busca do consenso na adopção dos textos,
sendo que, por vezes, as negociações envolvem quase 200 participantes e agências
especializadas (Aust, 2004, p. 107).
184
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
5. Momento da formulação
A regra relativa ao momento da formulação das reservas pode dis-
correr-se do primeiro efeito assinalado. Se, como vimos, toda a formula-
ção de reservas condiciona a vinculação, parece lógico que deva surgir
com essa mesma vinculação398. Naturalmente que não faz sentido
colocar uma condição à vinculação antes dessa vinculação se
admitir399, nem
mesmo depois de a mesma se ter produzido.
Por isso se percebe que os Estados ou organizações internacionais
que formulem reservas com a assinatura (não constituindo esta o acto
de vinculação), deverão confirmá-las formalmente no momento em que
ma- nifestarem o seu consentimento a ficarem vinculados (directiva
2.2.1), a
398
Tanto deve surgir em simultâneo que se exige normalmente que a declaração consti-
tuindo a reserva surja incluída ou anexa ao instrumento de vinculação (United Nations, 1999, p.
48 §161).
399
Não se confunda a formulação da reserva com a decisão de a formular. Assim, en-
quanto aquela é um acto internacional, esta é um acto interno (que se manifestará
internacional- mente na formulação que lhe dará execução). Vejam-se, a título de ilustrações, a
reserva formu- lada pela AR na Resolução 38/98 que aprova para adesão, a Convenção sobre os
Privilégios e Imu- nidades das Nações Unidas, de 1947 ou a reserva formulada pelo Governo no
DL 43.201 (DR 1.10.1960) que aprova, para adesão, a Convenção relativa ao Estatuto dos
Refugiados, de 1951. Muito embora a decisão de formular as reservas tenha sido tomada pela
AR e pelo Governo res- pectivamente, a mesma deverá ter sido comunicada com os atos de
vinculação (adesão, em am- bos os casos) considerando-se esse como o momento de
formulação (internacional).
185
Rui Miguel Marrana
6. Competência
A determinação dos órgãos com competência para a prática dos
ac- tos relativos à conclusão das convenções internacionais releva
natural- mente do plano interno, aí se incluindo a formulação de
reservas (cf. di- rectiva 2.1.3). Não obstante, no plano internacional têm
de subsistir re- gras supletivas que dispensem aos participantes no
processo de conclu- são de uma convenção o conhecimento
aprofundado das particularida- des constitucionais dos participantes.
É nessa perspetiva que o GPR2011 determina que, em geral, têm
competência para formular as reservas os representantes dos Estados
ou organizações internacionais que disponham dos poderes para
adoptar ou autenticar o texto da convenção ou para exprimir o
consentimento a vin- cular-se (al. a) do nº 1 da directiva 2.1.3). Essa
competência pode ainda decorrer dos usos (al. b) da mesma disposição)
e pode também presumir- se em razão das funções desempenhadas (nº
2 da mesma directiva).
7. Exigências formais
Em matéria de reserva, as exigências formais são expressas: tanto
a formulação como a comunicação, a confirmação, a objecção e a
própria retirada ou levantamento têm de ser dirigidas ao depositário e
efectua- das por escrito (cf. art. 23º/1 CV69 e directivas 2.1.1, 2.1.6 401,
2.2.4, 2.5.2). Este princípio geral visa tornar a situação transparente e
acessível, já que desta forma se uniformiza o processo e se impõe a
emissão do suporte documental coerente (que em princípio ficará à
guarda do depo- sitário), ao qual sempre se poderá recorrer para
esclarecimento de qual- quer situação.
400
Esta excepção não contraria, apenas precisa a ratio do regime: se o próprio tratado
prevê a possibilidade da formulação de reservas com a assinatura isso há-de resultar da
pondera- ção de uma qualquer vantagem que justificará também a desnecessidade da
confirmação formal.
401
Em matéria de comunicação o GPR2011 é mais preciso: esta deve fazer-se através dos
meios diplomáticos tradicionais (i.e., por nota diplomática ou notificação ao depositário).
Usando- se meio diverso, deve ser confirmada pelo meio adequado, valendo todavia a
notificação inicial (cf. n.os 2 e 3 da directiva 2.1.6).
186
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
8. Admissibilidade ou validade
A CV69, para além da definição de reservas a que fizemos referên-
cia, limita-se a regular dois aspectos do regime (que na prática, acabam
por se entrecruzar, tal como veremos adiante): a admissibilidade (art.
19º) e a aceitação (art. 20º).
Talvez por existirem regras expressas nestas matérias, a sua análise e
desenvolvimento foi deixada para o final no grupo de trabalho da CDI
que se debruçou sobre o assunto.
Desse trabalho resultou, no relatório de 2005 (A/CN.4/558 de
2005), uma novidade: o relator Alain Pellet sugeriu a introdução do con-
ceito de validade para enquadrar o regime do art. 19º. A opção oferece-
nos algumas dúvidas402, no entanto este não será seguramente este o
momento de escalpelizar os argumentos doutrinais referidos em favor
das diversas alternativas403, até porque a opção subsistiu no documento
final.
O regime consagrado na CV69 parte do princípio da liberdade 404
(art. 19º a) e b), ou seja, afirma como regra geral a admissibilidade ou a
presunção da validade405 das reservas. Tratou-se logo na altura de uma
inflexão daquilo que era a prática restritiva que vinha sendo seguida (e
que impunha a unanimidade na aceitação das reservas), procurando-se
dessa forma acolher a jurisprudência do TIJ resultante do parecer
relativo às reservas à Convenção para a prevenção e repressão do crime
de geno- cídio, ao qual fizemos referência anteriormente (cf. supra p.
179).
O princípio da presunção (genérica) da validade das reservas deve
todavia ser entendido tendo presentes as limitações que o próprio art.
19º CV69 refere (CDI/ILC, 2005, p. 156 ss.), as quais podem decorrer dos
termos da própria convenção (explícita406 ou implicitamente) ou ainda
402
No essencial parece-nos que o relator especial confunde validade (que se refere á ine-
xistência de vícios) com perfeição (aptidão à produção de efeitos jurídicos), - tal como decorre
da definição por este adiantada nos debates (CDI/ILC, 2005, p. 187).
403
No referido relatório são estudadas especificamente as expressões da
permissibilidade ou admissibilidade, licitude e oponibilidade das reservas (CDI/ILC, 2005, pp.
152-154 §1-7).
404
Exactamente porque esta ser a regra geral (da admissibilidade da formulação de
reser- vas), na elaboração de uma convenção deve ponderar-se devidamente sobre a
conveniência em inserir disposições que regulem a matéria. Nesse sentido, V. a recomendação
da AG às agências especializadas das NU, contida no §1 da Resolução 598 (VI) de 1952.
405
Esta é a expressão utilizada por Alain Pellet (CDI/ILC, 2005, p. 154 ss.).
406
Tal é o caso do art. 67º do Acordo Internacional sobre o Cacau de 1980. Alguns
Estados mostram-se relutantes em aceitar o princípio da proibição das reservas. Assim, p. ex.
nos EUA
187
Rui Miguel Marrana
existe uma instrução expressa do Senado no sentido de os representantes americanos nas nego-
ciações de convenções não aceitarem a inclusão desse tipo de cláusulas (Congressional Research
Service, 2001, pp. 16, 274 ss.; Bradley & Goldsmith, 2000).
Deve ainda assinalar-se a prática de incluir no articulado convencional disposições que
indiquem quais as regras em relação às quais são admitidas reservas – prática seguida p. ex. pelo
Conselho da Europa (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 104).
407
Numa Circular de 30 de Maio de 1997, o PM francês interpreta esta exigência de
forma particularmente exigente, considerando que uma reserva tem de ser compatível com o
direito dos tratados. Assim, uma reserva que consista pura e simplesmente em afastar esta ou
aquela dispo- sição não seria admissível (Lavenue, 2013, pp. 26 [2ème partie, Tit I Chp 1]).
408
Questão anterior à própria admissibilidade (ou validade, na terminologia do GRP2011)
é a da qualificação que é dada à declaração unilateral. A designação dada a esta constitui mero
indício do efeito jurídico pretendido (directiva 1.3.2) o que obriga o depositário a conferir a efe-
ctiva natureza da mesma, em especial se a convenção proíbe reservas. Por isso, nesta matéria, a
prática do Secretário-geral NU enquanto depositário quando recebe uma declaração, dirige-se
primariamente à verificação da natureza da declaração. Se esta não afecta as obrigações do Es-
tado que a produz, não se tratará portanto de uma reserva, devendo circular-se entre as partes
apenas para conhecimento. Caso a declaração exclua ou modifique os efeitos jurídicos de
alguma disposição convencional, deve então chamar à atenção do Estado que a produziu para o
regime da convenção, solicitando um esclarecimento (face a essa eventual inadmissibilidade). Se
este es- clarecimento demonstra não se tratar de uma reserva o Secretário-geral aceita o
depósito do ins- trumento que contém a declaração na certeza de que o Estado em causa, face
ao mesmo, não poderá vir mais tarde invocar qualquer regime especial como consequência da
declaração produ- zida (United Nations, 2003, p. 48; United Nations, 1999, pp. 56,57 §194,195).
Este procedimento veio a ser parcialmente acolhido no GPR2011 (cf. directiva 2.1.7).
188
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
9. Aceitação
Constituindo as reservas um condicionamento à vinculação, parece
imprescindível que haja uma manifestação de aceitação (ou recusa)
desse condicionamento, para que a situação do Estado ou organização
interna- cional que a formulam possa esclarecer-se (em especial para se
determi-
nar se a vinculação se produz ou não411 e quando 412se produz).
409
Um episódio significativo surgiu quando o Chile formulou uma reserva à Convenção
contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984,
pro- curando excluir os casos de tortura de terroristas suspeitos ou condenados. Esta foi
rejeitada por diversos Estados, configurando uma situação de clara incompatibilidade com o
objeto ou fim, vindo a ser retirada. Da mesma maneira em 1980, o Burundi formulou uma
reserva em relação à Convenção sobre a Prevenção e Repressão de Crimes contra Pessoas
Gozando de Protecção Inter- nacional, Incluindo Agentes Diplomáticos, de 1973, visando a
exclusão dos membros de movimen- tos de libertação nacional. Face às objecções surgidas,
também esta reserva foi levantada (Aust, 2004, pp. 110-111).
410
Referimo-nos a situações tais como a das convenções da OIT em relação às quais se
considera em geral como proibindo implicitamente reservas, dado o objetivo desta organização
de uniformização das condições laborais à escala universal (United Nations, 2003, pp. 47-48).
411
O Comité de Direitos Humanos das NU (a quem cabe acompanhar a aplicação do
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966) defendeu uma posição inovadora:
que a inadmissibilidade de uma reserva à dita convenção teria como consequência a adesão do
Estado que a formulou sem no entanto beneficiar da mesma (A/50/40 de 1995, p. 129). A
posição é ino- vadora e muito discutida. Em qualquer caso parece que nunca será de aplicar fora
do estrito do- mínio dos direitos humanos (Kirgis, 2003).
O TEDH assumiu uma posição semelhante, ao considerar inválida uma reserva formulada
pela Suíça em relação à CEDH, assumindo não obstante a vinculação deste Estado (Aust, 2004, p.
118).
Essa mesma posição foi também defendida pelo Reino Unido na questão que opôs este
Estado à França, relativa à plataforma continental, em 1956. A posição não seria todavia
acolhida pelo painel arbitral que apreciou a questão (Parisi & Sevcenko, 2003, pp. 25-26).
Neste cenário a administração americana veio a comunicar expressamente a sua
oposição a qualquer consagração da possibilidade de a vinculação se poder produzir numa
situação de não aceitação de uma reserva (Cummins S. J., Digest of United States Practice in
International Law, 2005, pp. 221-222).
O GPR2011 veio a explicitar essa regra, afirmando o direito do autor de uma reserva
válida a não ser obrigado a cumprir o tratado sem beneficiar da reserva (directiva 4.3.8).
412
A regra geral parece dever ser a de que, sendo formuladas reservas, a vinculação ape-
nas ocorrerá com aceitação das mesmas, já que, como se viu, estas constituem uma condição à
189
Rui Miguel Marrana
vinculação. Não obstante, o TIADH, no seu parecer de 24.09.1982 relativo ao efeito das reservas
190
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
10. Objeção
O regime da aceitação integra necessariamente a possibilidade da
sua recusa. Esta é normalmente designada como objecção a uma
reserva. A CDI, define a objecção (em termos voluntariamente
aproximados) como uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu
enunciado ou
sobre a entrada em vigor da Convenção Americana de Direitos Humanos afirmou com o acordo
unânime dos seus membros, que a entrada em vigor ocorria com o depósito do instrumento de
vinculação, fundando todavia essa conclusão entre outros elementos no facto de, no caso, as re-
servas não necessitarem de aceitação por estarem previstas no próprio tratado (cf. nomeada-
mente o ponto 37 do parecer).
413
Aparentemente este regime não resultará da simples codificação de regras consuetu-
dinárias, na medida em que por exemplo os EUA, mesmo concordando com ele, insistem não se
lhes aplicar, como consequência de não se terem vinculado à CV69 (Pickering, Cummins, &
Stewart, 1989–1990, p. 145).
414
Alguma doutrina defende nesta situação a desnecessidade da aceitação (CDI/ILC, 2005,
p. 155 §15) Julgamos todavia que não se trata da produção dos respectivos efeitos ipso facto,
mas tão só de uma situação de aceitação prévia, tal como referimos no texto.
415
A prática mostrou subsistir alguma dificuldade na plena aceitação deste princípio. As-
sim, o Secretário-geral das NU ignora este princípio enquanto depositário, aceitando objecções
depois de decorrido esse prazo (United Nations, 1999, p. 63 §213).
416
O regime de aceitação por um órgão de uma organização internacional não afasta a
possibilidade ou necessidade de aceitação pelos Estados que sejam partes. Sobre o assunto V. o
caso da reserva formulada pela Islândia relativamente à Convenção Internacional de Regulação
da Pesca da Baleia de 1946 (Cummins & Stewart, 2001, p. 214 ss.; Cummins & Stewart, 2002, p.
206 ss.),
191
Rui Miguel Marrana
11. Estabelecimento
O GPR aprofunda a matéria dos efeitos das reservas introduzindo a
noção de estabelecimento. Assim, na directiva especifica que [u]ma re-
serva […] fica estabelecida […] se é substancialmente válida, se na sua
417
O direito a opor-se à entrada em vigor de um tratado relativamente ao autor da
reserva está consagrado na directiva 2.6.6, devendo todavia o Estado ou organização
internacional obje- ctante manifestar inequivocamente essa intenção antes que de outro modo o
tratado entre em vigor entre si (2.6.7), indicando, tanto quanto possível, os motivos pelos quais
[a objecção] é for- mulada (2.6.9). Esta objecção acompanhada da manifestação inequívoca da
não aceitação da en- trada em vigor do tratado mereceu mesmo a designação de objecção com
efeito máximo (4.3.5). De facto, o princípio geral é o inverso: [a] objecção feita a uma reserva
válida […] não impede que o tratado entre em vigor entre o Estado ou a organização
internacional que formulou a objecção e o Estado ou a organização internacional autor da
reserva (4.3.1)
418
Nos trabalhos da CDI veio a considerar-se que os efeitos das objecções às reservas
não se esgotam no disposto nos art os 20º/4 b) e 21º/3), regime esse que padece de um carácter
vago (CDI/ILC, 2004, pp. 274-275). O documento final (GPR2011) não viria todavia a desenvolver
o re- gime consideravelmente, consagrando apenas o direito (do Estado ou organização que
objecte) a opor-se à entrada em vigor de um tratado relativamente ao autor da reserva
(directiva 2.6.6) o qual depende da manifestação inequívoca e atempada dessa intenção (2.6.7).
192
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
12. Retirada
O levantamento ou retirada das reservas é livre e pode ser feito a
todo o tempo sem necessidade do consentimento do Estado ou organi-
zação internacional que a haja aceite (directiva 2.5.1). Bem se compre-
ende que assim seja, já que esse levantamento tornará mais estável e
transparente o regime convencional, na medida em que porá fim ao re-
gime especial decorrente da reserva. E exactamente porque esse é o
sen- tido desejável na vida das convenções, admite-se o levantamento
parcial (2.5.10) e impõe-se aos Estados e organizações uma obrigação de
ree- xame periódico das reservas por si formuladas (2.5.3).
O regime favorável ao levantamento aplica-se também às obje-
cções às reservas, que podem ser levantadas a todo o tempo (directiva
2.7.1).
E. Declarações interpretativas
1. Distinção das reservas
[E]ntende-se por ‘declaração interpretativa’ uma declaração
unilate- ral, qualquer que seja o seu enunciado ou designação419, feita
por um Es- tado ou por uma organização internacional, através da qual
esse Estado ou essa organização internacional visa precisar ou clarificar
o sentido ou
419
A doutrina americana utiliza uma terminologia diferente, apelidando de understan-
dings aquilo a que o GPR chama, em geral, declarações interpretativas, e considerando declara-
tions as posições de natureza política (nomeadamente as declarações de não reconhecimento a
que se refere a directiva 1.5.1 e as declarações de política geral que, introduzidas em 1999, figu-
raram nas versões preliminares do GPR até 2010, desaparecendo na versão final de 2011). Existe
ainda uma outra figura (americana): a dos provisos que correspondem às declarações relativas à
aplicação de um tratado no âmbito interno (previstas na directiva 1.5.2), ou seja, declarações re-
lativas à forma de implementação da convenção (Congressional Research Service, 2001, p. 126;
Bradley & Goldsmith, 2000, p. 404 ss.).
193
Rui Miguel Marrana
420
Esta constatação veio a ser acolhida expressamente no GPR2011 (directiva 4.7.1 §1).
421
A título de exemplo vejam-se as declarações interpretativas formuladas com a
aprova- ção pelo Governo português da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951
(DL 432001, DR de 1.10.1960), ou a adesão à CV69 (DR 7.8.2003).
422
Assim, a Áustria, aquando a vinculação ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos de 1966 declarou entender que o art. 26.º, relativo à não discriminação, não impedia o
tratamento diferenciado de cidadãos nacionais e estrangeiros. Também o Reino Unido, aquando
da ratificação em 1998, da Convenção dos Direitos da Criança de 1990 formulou diversas
declara- ções interpretativas, nas quais constava p. ex. que as referências aos progenitores eram
entendi- das como referindo-se apenas às pessoas que a lei interna considerava como tal (Aust,
2004, p. 102). Naturalmente que o conteúdo das declarações interpretativas é tanto mais
relevante quanto seja secundado por outras partes ou não suscite objecção por parte destes
(cf. directiva
4.7.1 §2), sendo que, se todas partes a aceitarem, a declaração pode constituir um acordo de
interpretação (4.7.3).
423
Não obstante o GPR prevê e regula a objecção às declarações interpretativas - inclu-
indo-se a requalificação das mesmas, eventualmente como reservas (cf. directivas 2.9.3 e 2.9.4).
424
Quando dizemos que se pretende reservar para si um regime estamos apenas a subli-
nhar o carácter especial do regime resultante da reserva, regime esse de que beneficiará
194
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
também o Estado ou Estados que aceitarem a reserva nos termos do art. 21.º/1 CV69 que
assim fixa um
195
Rui Miguel Marrana
2. Regime
O regime das declarações interpretativas é consideravelmente me-
nos exigente do que o das reservas. Não produzindo os efeitos jurídicos
princípio de reciprocidade – princípio este que é ainda assim, objeto de limitações importantes,
nomeadamente em matéria de direitos humanos (Parisi & Sevcenko, 2003).
425
A definição do GPR é a seguinte [u]ma declaração interpretativa condicional é uma
declaração unilateral formulada por um Estado ou por uma organização internacional no mo-
mento da assinatura, ratificação, confirmação formal, aceitação ou aprovação de um tratado ou
de adesão a este, ou ainda quando um Estado efectua uma notificação de sucessão a um
tratado, pela qual esse Estado ou organização internacional condiciona o seu consentimento a
obrigar-se pelo tratado a uma interpretação específica do tratado ou de alguma das suas
disposições.
426
De facto, o nº 2 da directiva 1.4 explicita que [a]s declarações interpretativas condicio-
nais estão sujeitas às normas aplicáveis às reservas.
196
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
3. Figuras próximas
A progressiva sedimentação da matéria tem gerado um esforço no
sentido de tipificar as principais figuras nesta matéria (esforço esse que
iniciado com a própria distinção entre reservas e declarações interpreta-
tivas), uma parte das quais são referidas no GPR. A sua análise releva
não apenas como referência mas principalmente por tornar mais clara a
dis-
tinção e nessa medida melhor evidenciar os contornos das figuras.
Temos assim, um primeiro grupo de declarações unilaterais que,
muito embora surjam relacionadas com uma convenção, comportam
ele- mentos novos (e por isso não integram o conceito de declarações
inter-
427
Não obstante, é comum que sejam formuladas com a assinatura ou com o depósito
de instrumentos relevantes para a convenção em causa (United Nations, 2003, p. 51).
428
Nas versões iniciais do GPR apenas se exigia a redução a escrito das declarações inter-
pretativas condicionais mas a versão final viria a alinhar com o regime das reservas (cf. directiva
2.4.5 e respectiva remissão para a directiva 2.1.5).
429
A prática do Secretário-geral das NU tem todavia sido menos exigente, aceitando-as
desde que emanem claramente do Estado (United Nations, 2003, p. 55).
430
Veja-se a título de exemplo, a objecção que Portugal apresentou às declarações inter-
pretativas formuladas pela Argélia quando depositou os instrumentos de ratificação do Pacto In-
ternacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais e do Pacto Internacional sobre os
197
Rui Miguel Marrana
Direitos Civis e Políticos, ambos de 1996 (DR 22.03.1991).
198
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
431
Estiveram previstas nas versões iniciais do GPR – V. p. ex. directivas 1.4.1 e 1.4.2 na
versão de 2004 (CDI/ILC, 2004, p. 109). A declaração visando a assunção de compromissos unila-
terais era ali definida como a declaração unilateral formulada por um Estado ou por uma organi-
zação internacional em relação a um tratado através da qual o seu autor pretende assumir obri-
gações para além daquelas que lhe impõe o tratado. Já a declaração visando acrescentar
elemen- tos suplementares a um tratado era referida sem que fosse adiantado qualquer
elemento ao con- ceito (para além da sua designação).
432
São também designadas por declarações opcionais (United Nations, 2003, p. 52).
433
Estiveram tb. previstas nas versões iniciais do GPR – V. p. ex. directiva 1.4.7 na versão
de 2004 (CDI/ILC, 2004, p. 109), que apenas esclarecia tratar-se de uma declaração unilateral
for- mulada por um Estado ou por uma organização internacional em conformidade com uma
cláusula de um tratado que obrigue expressamente as partes a escolherem entre duas ou mais
disposições do mesmo.
434
Surge aqui, por vezes, uma outra distinção (concorre com esta), entre declarações in-
terpretativas e notificações, segundo a qual enquanto aquelas visam (como vimos), precisar ou
clarificar o sentido ou alcance das disposições convencionais, as notificações normalmente
seriam declarações tendo em vista fornecer informação exigida pela convenção, ou
alternativamente sur- gindo como instrumentos vinculativos (como seja, por exemplo, o
reconhecimento da competên- cia do TIJ, feito nos termos do art. 36.º/2 do seu Estatuto). Esta
distinção entre declarações e notificações nem sempre é seguida e as expressões são
indistintamente utilizadas (United Nations, 1999, p. 42 §147).
435
Tb. as declarações de política geral estiveram previstas nas versões iniciais do GPR – V.
p. ex. directiva 1.4.4 na versão de 2004 (CDI/ILC, 2004, p. 109). A definição dada referia-se a uma
declaração unilateral formulada por um Estado ou por uma organização internacional através da
qual este Estado ou esta organização internacional exprime os seus pontos de vista em relação a
um tratado ou a uma matéria abrangida por este, sem visar a produção de efeitos jurídicos em
relação ao mesmo tratado.
199
Rui Miguel Marrana
4. Retirada
O regime do levantamento ou retirada das declarações interpreta-
tivas é semelhante ao da retiradas das reservas e respectivas objecções,
podendo ocorrer a todo o tempo (directiva 2.5.12).
F. Depositário
A proliferação das convenções multilaterais e em especial o cada
vez maior número de partes (maxime com as convenções multilaterais
gerais) veio a impor o desenvolvimento da figura do depositário.
Inicialmente tratava-se de escolher entre as partes aquele
Estado436 que exerceria tais funções. Todavia com a SdN e
posteriormente com a ONU e suas agências especializadas, as
organizações internacionais vão assumir cada vez mais essas funções.
Assim, actualmente, o Secretário- geral das NU437 é depositário de mais
de 500 convenções multilaterais.
436
Embora seja raro, acontece por vezes que as funções de depositário são exercidas
con- juntamente por dois ou mais Estados (United Nations, 2003, p. 5). Foi o que aconteceu com
o Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares, de 1968, cujo art. IX/2 designa o Reino
Unido, a União Soviética e os EUA. A experiência evidenciou todavia a inconveniência do regime,
na medida em que implica uma multiplicação do trabalho e pode fazer surgir dificuldades
resultantes das diferentes práticas adoptadas pelos depositários (idem, p. 6).
437
Portugal é depositário das seguintes convenções: (1) Convenção de Cooperação Técnica
entre as Administrações Aduaneiras dos Países de Língua Oficial Portuguesa, adoptada em Lu-
anda, a 26.09.1986 (2) Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa entre Estados de
Língua Oficial Portuguesa para Prevenção, Investigação e Repressão das Infracções Aduaneiras,
adoptada em Luanda, a 26.091986 (3) Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa entre
Países de Língua Oficial Portuguesa em Matéria de Luta contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes
e de Subs- tâncias Psicotrópicas, adoptada em Luanda, a 26.09.1986 (4) O Acordo Ortográfico da
Língua Por- tuguesa de 16.12.1990 (5) (Primeiro) Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico
da Língua Por- tuguesa, assinado na Praia, em 17.07. 1998 (6) Segundo Protocolo Modificativo ao
Acordo Orto- gráfico da Língua Portuguesa de 25.07.2004 (7) Acordo entre a Irlanda, o Reino dos
Países Baixos, o Reino de Espanha, a República Italiana, a República Francesa e o Reino Unido da
Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte que Estabelece um Centro de Análise e Operações Marítimas
– Narcóticos (MAOC-N) de 30.09.2007 (8) Estatuto do Laboratório Ibérico Internacional de
Nanotecnologia (LIN) de 25.11.2006 (9) Tratado da Carta da Energia, o Protocolo da Carta da
Energia Relativo à Eficiência Energética e aos Aspectos Ambientais Associados e a Emenda às
Disposições Comerciais do Tratado da Carta de Energia de 17.12.1994 (10) Acordo de
Cooperação para a Protecção das Costas e Águas do Atlântico Nordeste contra a Poluição,
adoptado em Lisboa, a 17.10.1990, de- nominado Acordo de Lisboa.
200
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
201
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Identifique as particularidades das convenções multilaterais estuda-
das, salientando a respectiva função e importância;
2. Diga o que entende por adesão e explique sumariamente o seu re-
gime;
3. Diga o que entende por reservas, identifique os seus efeitos, as suas
vantagens e inconvenientes.
B. Questões directas
1. Refira as principais dificuldades sentidas na negociação das conven-
ções internacionais e identifique as soluções existentes;
2. Refira-se à contribuição das organizações internacionais na conclusão
das convenções multilaterais;
3. Diga o que entende por assinatura diferida e explique a relevância
deste mecanismo;
4. Distinga convenções abertas, fechadas e semiabertas;
5. Explique o surgimento das reservas e refira-se à evolução da prática
nesta matéria;
6. Explique que autoridades nacionais podem formular reservas, em
que momentos o podem fazer e quais as exigências formais a que a
formulação está sujeita;
7. Indique os efeitos das reservas;
8. Distinga reservas de declarações interpretativas assinalando as princi-
pais diferenças dos regimes;
9. Refira-se aos regimes da admissibilidade e da aceitação das reservas;
10.Distinga reservas de declarações interpretativas e refira
sumariamente
o regime a que estas estão sujeitas;
11.Diga o que entende por depositário e identifique as suas principais fun-
ções.
438
Assim nos casos do Acordo Internacional para a Supressão da Escravatura Branca, da
Convenção Internacional para a Supressão da Escravatura Branca e do Acordo para Repressão de
Publicações Obscenas, todos de 1910, o depositário original era a França, que transferiu essas
funções para o Secretário-geral das NU nos termos da Resolução 82 (V) do Conselho Económico
e Social, de 1947 (United Nations, 2003, p. 5).
202
Décima primeira lição: particularidades das convenções multilaterais
Bibliografia de referência
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Cambridge University Press.
CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE. 2001. Treaties and other
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HOLLIS, D. B. 2012. The Oxford Guide to Treaties. Oxford, UK: Oxford
University Press.
UNITED NATIONS. 1999. Summary of practice of the Secretary-General
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UNITED NATIONS. 2003. Final Clauses of Multilateral Treaties Handbook.
New York, NY: United Nations.
Leituras recomendadas
ALVAREZ, J. E. 2002. The New Treaty Makers. Boston College
International and Comparative Law Review, 25(2), 213-234
BENOÎT-ROHMER, F., & KLEBES, H. 2005. Le droit du Conseil de l’Europe –
Vers un espace juridique paneuropéen. Strasbourg: Editions du Conseil de
l’Europe
HELFER, L. R. 2006. Not Fully Committed? Reservations, Risk and Treaty
Design. The Yale Journal of International Law, 31(2), 367-382.
SWAINE, E. T. 2006. Reserving. Yale Journal of International Law, 31(2),
307-366.
UNITED NATIONS. 2012. Treaty Handbook. New York, NY: United Nations.
203
Rui Miguel Marrana
XII Lição
Convenções internacionais: vinculação do Estado
português
A. Objetivo
Tal como se referiu anteriormente (p. 145) todo o processo de
conclu- são das convenções internacionais articula exigências
internacionais e nacionais. Vistas as primeiras (nas duas lições
anteriores), vemos agora as segundas (numa perspetiva portuguesa 439),
observando assim um processo completo.
Importa sublinhar a relevância desta matéria no âmbito da disciplina:
se as convenções internacionais assumem, nos nossos dias, um papel
re- gulador central da vida internacional, a formação jurídica não
poderá dei- xar de envolver um domínio razoável de todo o seu
processo de forma- ção, o qual apenas se completa quando articulado
com a componente nacional.
439
Outros procedimentos nacionais podem ser conferidos. Assim, para consulta do pro-
cesso americano V. site Berkeley Law Library - Treaties and International Agreements (guide) re-
ferido no final da última lição. V. tb. Congressional Research Service (2001, p. 7 ss.). O processo
australiano está disponível on line (Commonwealth of Australia, 2017). Para uma análise do
procedimento brasileiro v. Medeiros (2007). Podem ainda ser consultados os procedimentos na
perspetiva de organizações internacionais sob a égide das quais as convenções são concluídas ou
em que as mesmas são partes. Assim, o procedimento da UE vem descrito no art. 218.º TFUE.
Para uma análise do procedimento do Conselho da Europa, v. Benoît-Rohmer & Klebes (2005, p.
98 ss.).
204
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
B. Visão geral
Em termos genéricos podemos sumariar o processo dizendo que
a) a negociação e a assinatura cabem ao Governo;
b) a aprovação é da competência do Governo ou da AR;
c) o Presidente da República intervém a seguir
i. eventualmente suscitando a fiscalização prévia da constitu-
cionalidade e
ii. assinando os atos que aprovem os acordos em forma sim-
plificada, ou
iii. ratificando os tratados solenes.
d) Os atos do Presidente da República são depois referendados,
exigindo-se ainda a publicação e registo.
É este procedimento genérico que analisaremos na presente lição,
com o pormenor necessário.
A Constituição usa a terminologia que vimos seguindo:
- tratado refere-se aos tratados solenes,
- acordo designa um acordo em forma simplificada e
- convenção440, surge como termo geral (englobando ambos, por-
tanto).
Esta utilização facilita a interpretação das regras constitucionais,
que, todavia, nem sempre são tão claras quanto seria desejável.
C. Fases do procedimento
1. Negociação
Em Portugal, a competência para negociar as convenções interna-
cionais pertence, em exclusivo ao Governo, nos termos do art. 197.º/1
b) CRP. Trata-se de uma competência política que é exercida em
exclusivi-
dade.
Dentro deste órgão de soberania, cabe ao Ministro dos Negócios
Estrangeiros formular, conduzir, executar e avaliar a política externa e
europeia do país, bem como coordenar e apoiar as/os demais minis-
440
O termo geral convenção surge nos art.s 4.º, 8.º/2, 33.º/3 e 4, 115.º/3 e 5, 119.º/1 b),
134.º g), 197.º/1 b), 273.º/2 e 280.º/3. O termo tratado surge no sentido de tratado solene, nas
seguintes disposições: 135.º b), 161.º i), 227.º t), 277.º/2 e 278.º/1 e 279.º/4 (surgindo ainda no
artº 8.º/3 e 4, numa acepção que não parece pretender restringir-se a este tipo convencional). O
termo acordo (ou acordo internacional), surge no sentido de acordo em forma simplificada nos
artigos 134.º b), 161.º i), 197.º/1 c) e 2, 200.º/1 d), 227.º/1 t), 278.º/1 e 279.º/1.
201
Rui Miguel Marrana
441
A Lei Orgânica do MNE é ainda o DL 121/2011 (promulgado durante o governo ante-
rior). O atual Governo (XXI Governo Constitucional) parece, todavia, ter introduzido uma altera-
ção de perspetiva: o entendimento tradicional ia no sentido de se considerar o Governo consti-
tuído por diferentes departamentos (ministérios e secretarias de Estado), mas agora – tal como
pode conferir-se na página oficial do Governo – este é composto por ministros (e secretários de
Estado). Por isso, as competências anteriormente atribuídas aos ministérios e concretamente ao
MNE – agora são referidas como atribuídas aos ministros. A subsistência de diplomas legais ela-
borados nas diferentes perspetiva pode, por isso, geral alguma confusão.
202
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
Assim, hoje em dia, caso a negociação não seja levada a cabo dire-
ctamente pelo MNE, este há-de enquadrar, acompanhar e pronunciar-
se em todos os momentos relevantes do processo442.
A CRP prevê ainda a eventual participação das Regiões
Autónomas na negociação de convenções internacionais (art. 227.º t).
Não se trata de autorizar estas a negociarem autonomamente
convenções, mas tão só de admitir representantes dos governos destas
na equipa que efectu- ará a negociação, de forma a melhor poder
acautelar as sensibilidades e interesses que possam existir sempre que
as convenções lhes digam par- ticularmente respeito443.
2. Assinatura
A assinatura é também uma competência exclusiva do Governo444,
nos termos do art. 197º/1 b) CRP (resultando da expressão ajustar’445
que consta daquela norma). Apesar daquilo que a própria expressão
sugere (assinar parece dever ser, em regra, um acto individual), o
regime nacio- nal reserva a sua prática para o CM ou o PM (cf. n. os 3 e 4
Resolução 17/88). O plenipotenciário apenas poderá rubricar ou assinar
com auto- rização prévia expressa446.
Esta solução parece excessivamente cautelosa: não podendo o Es-
tado português, nos termos do direito interno aplicável, vincular-se pela
442
Este regime, com quase três décadas – e a prática dele decorrente – mantém-se está-
vel, tal como nos foi possível apurar junto do MNE.
443
Alguns países prevêem a realização de consulta aos grupos eventualmente interessa-
dos na matéria desde a fase da negociação, podendo mesmo usar membros de ONG e de associ-
ações sectoriais ou profissionais, representantes locais, etc., como consultores da delegação na-
cional (Australia Department of Foreign Affairs and Trade, 2017).
444
A assinatura é tipicamente uma função que integra a competência do executivo
(Congressional Research Service, 2001, p. 111; Australia Department of Foreign Affairs and
Trade, 2017).
445
Sendo certo que o legislador constitucional podia ser mais claro (tanto mais que,
entre nós, são muito frequentes as revisões constitucionais, permitindo assim que se aproveitem
as mesmas para introduzir as alterações com vista a um maior rigor e clareza do texto), o facto é
se utiliza aqui um termo que não deve trazer dificuldades. Na verdade, a assinatura ajusta o
texto, uma vez que, como vimos atrás, tem como efeito necessário torná-lo definitivo e
autêntico.
446
A prática seguida tem sido de que as credenciais emitidas para a negociação de con-
venções multilaterais incluírem poderes não apenas para negociar mas também para a adopção
do texto. Em negociações bilaterais, não há usualmente lugar à emissão de credenciais para os
representantes nacionais que vão negociar o texto da convenção internacional, sendo no
entanto indicadas as composições das delegações. Após a negociação, é instruído o processo de
prévia aprovação de assinatura, nos termos da Res. 17/88, de 7 de Abril, emitindo o Gabinete do
MNE posteriormente a carta de plenos poderes.
203
Rui Miguel Marrana
3. Aprovação
3.1. Competência de aprovação449 da AR
A competência de aprovação das convenções é partilhada entre o
Governo (art. 197º/1 c) CRP) e a AR (art. 161.º i). A regra geral é esta
447
Na verdade o art. 8.º/2 CRP ao regula a vigência do direito internacional refere-se às
normas constantes em convenções internacionais regularmente aprovadas ou ratificadas. A exi-
gência da aprovação ou ratificação (como requisito de vigência) é, assim, explícita (estando
implí- cita – a contrario sensu – a recusa da possibilidade de a vinculação decorrer da mera
assinatura).
448
A indicação dos termos segundo os quais o Estado se vincula implica a definição
prévia de uma outra questão: a determinação do nível de formalidade que a convenção há-de
seguir (tratado solene ou acordo em forma simplificada). Naturalmente que essa definição está
enqua- drada por critérios legais ou constitucional (no nosso caso, o critério surge na primeira
parte do art. 161.º i) CRP). Mas, esses critérios deixam necessariamente algum tipo de margem,
já que, em regra, apenas fixarão as situações em que a forma solene terá obrigatoriamente de
ser seguida, deixando que se opte, em todas as outras, entre a mesma forma e a forma
simplificada. Donde caberá em princípio ao executivo (enquanto autoridade com competência
exclusiva ou partilhada para a negociação e assinatura) determinar o nível de formalidade. Esse
é o regime nacional. Nos EUA a determinação é também feita pela administração, prevendo-se
todavia uma eventual con- sulta do Congresso (Congressional Research Service, 2001, p. 359).
449
O regime brasileiro nesta matéria tem pontos coincidentes, mas é consideravelmente
mais impreciso. Assim, compete ao titular do poder executivo, o PR, o poder de celebrar
tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional (art. 84.º
VIII da Constituição). Na lei fundamental brasileira aparece apenas mais uma norma
directamente dirigida à matéria, o art.º 49.º/I que confere competência exclusiva do Congresso
Nacional para resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que
204
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
acarretem encargos
205
Rui Miguel Marrana
206
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
de matérias: (1)o da primeira parte do próprio art. 161.º i), o (2)do art.
164.º (reserva absoluta de competência legislativa) e (3)do art. 165.º (re-
serva relativa de competência legislativa)451. Fora desses âmbitos, é
com- petente o Governo (que, no entanto, pode sempre suscitar a
aprovação pela AR, nos termos da terceira parte do art. 161.º i).
O acto próprio para a AR aprovar uma convenção internacional é
a Resolução, nos termos do n.º 5 do art. 166.º CRP.
3.2. Distinção dos âmbitos dos tratados e acordos
A alínea i) do art. 161.º esclarece implicitamente um outro
aspecto que deve ser devidamente sublinhado. Referimo-nos ao tipo de
conven- ções cuja aprovação compete à AR. Assim, muito embora a
lógica tradi- cional reserve a intervenção do Parlamento aos tratados
solenes (uma vez que os acordos em forma simplificada surgem – como
executive agre- ements, ou acordos do executivo exactamente para
evitar essa inter- venção – cf. supra pp. 161 ss.) esse princípio não foi
acolhido pelo legis- lador constitucional português, que consagrou
expressamente a aprova- ção parlamentar de acordos.
É ainda da regra do art. 161.º i) – que explicita a competência de
aprovação parlamentar das convenções internacionais que se retira o
critério constitucional que dita os casos em que a forma solene tem de
seguir-se. Assim, as convenções que integrem as matérias da primeira
parte desta norma (participação em organizações internacionais, ami-
zade, paz, defesa, rectificação de fronteiras e assuntos militares) são
obrigatoriamente tratados solenes, já que o texto desta se refere
expres- samente a tratados. Nas restantes matérias – incluindo as do
elenco dos art. 164.º e 165.º pode452 seguir-se a forma simplificada
(sendo que, nestes casos, a simplificação resulta apenas da intervenção
do PR se limi- tar à assinatura, dispensando-se a ratificação – tal como
veremos infra).
pudesse ter praticado o acto) preferir submeter-lha (nos termos da 3.ª parte da referida alínea i)
do art. 161.º.
451
Convirá ter presente que a distinção entre reserva absoluta (art. 164.º CRP) e reserva
relativa (art. 165.º) apenas é relevante para efeitos legislativos. No plano convencional, não es-
tando prevista qualquer autorização (que, em qualquer caso, dificilmente faria sentido, já que se
trataria de enquadrar resultados de uma negociação o que retiraria a esta parte do seu sentido)
a reserva de competência para efeitos de aprovação é absoluta - tanto nas matérias do art. 164.º
como nas do art. 165.º, portanto.
452
Sobre este aspecto veja-se o ac. de 05.08.99 do TC, o qual não acolhe a preocupação
do PR que pretendia existir um critério material que reduzia os acordos em forma simplificada a
meros instrumentos diplomáticos executivos de tratados já celebrados.
207
Rui Miguel Marrana
4. Intervenção do Presidente da
República Muito embora a vinculação nos acordos em forma
simplificada possa depender da aprovação, a intervenção do PR no
processo de vin- culação na vinculação internacional do Estado
português é sempre obri-
gatória. Vejamo-la.
4.1. Eventual fiscalização preventiva da constitucionalidade
Esta intervenção inicia-se com a eventual fiscalização preventiva
da
constitucionalidade, nos termos do art. 134.º g). Assim, caso o PR en-
tenda poder haver qualquer inconstitucionalidade de alguma norma
con- vencional454 deverá suscitar a apreciação da mesma pelo TC (art.
278.º/1). Caso este órgão se pronuncie pela inconstitucionalidade, o
Pre- sidente deverá devolvê-lo ao órgão que o tiver aprovado (AR ou
Go- verno), nos termos do art. 279.º/1. Tratando-se de convenção 455
apro- vada pela AR, esta pode confirmar a norma inconstitucional,
aprovando-
453
Normalmente designado por decreto simples, para deixar clara a distinção do
decreto- Lei, uma vez que, a admitir-se aqui um acto de natureza legislativa, poderia estar a
sugerir-se indevidamente um sistema de transformação.
454
Em rigor, o art.º 278.º/1 apenas prevê a fiscalização preventiva da constitucionalidade
das normas constantes de tratados solenes ou de acordos internacional cujo decreto de aprova-
ção lhe tenha sido remetido para assinatura - pelo Governo, portanto -, deixando de fora os
acor- dos aprovados pela AR. Não existe todavia qualquer razão que justifique essa limitação,
pare- cendo-nos, por isso, ser devida uma interpretação extensiva.
455
Volta a colocar-se aqui uma situação semelhante à referida na nota anterior: em rigor,
o art.º 279.º/4 apenas prevê a possibilidade de confirmação da inconstitucionalidade de regras
208
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
constantes em tratados, sendo no entanto duvidosa a restrição. Parece assim dever interpretar-
209
Rui Miguel Marrana
se nesta norma o termo tratado no sentido geral (como convenção), admitindo-se assim a
confir- mação de quaisquer regras convencionais.
456
Este expediente está formalmente previsto no procedimento americano, não apenas
para os casos em que haja inconstitucionalidade, mas sempre que a intervenção parlamentar
im- ponha uma modificação no regime como condição da vinculação (Congressional Research
Service, 2001, p. 112).
457
Nas convenções bilaterais a renegociação como alternativa à recusa de vinculação
ten- derá a surgir como uma hipótese ponderável. Já nas convenções multilaterais restritas a
renego- ciação implica como o termo indica, aliás a reabertura da negociação, para o que
será neces- sário o assentimento das outras partes, o qual não será fácil de obter (até por
significar o reinício do procedimento). Embora formalmente não tenha ocorrido, esse parece ter
sido o resultado ma- terial da recusa dinamarquesa inicial na ratificação do Tratado de
Maastricht de 1992. Nas con- venções multilaterais gerais a renegociação enquanto tal será
impossível, embora ainda assim se deva ter aqui presente o caso da Convenção de Montego Bay
de 1982 (Convenção das Nações Unidas Sobre direito do Mar) cuja recusa de vinculação
nomeadamente pelos Estados ocidentais forçou a celebração de um protocolo em 1994 (Acordo
Relativo à Aplicação da Parte XI da Con- venção das Nações Unidas Sobre Direito do Mar pub.
conjuntamente com a convenção, V. nota 251, in fine) limitando o regime original na parte
relativa à matéria que suscitou a oposição deste Estado.
458
Importa referir que mesmo verificando-se a inconstitucionalidade de alguma norma
convencional, as convenções internacionais podem ainda assim aplicar-se, nos termos do art.
277.º/2 CRP (a norma refere-se apenas a tratados, não se vislumbrando todavia razão que justifi-
que a limitação que resultaria duma interpretação estrita da norma).
210
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
459
A consulta que fizemos junto dos serviços jurídicos do MNE permitiu-nos apurar que a
prática nacional vai no sentido de seguir o critério constitucional e apenas variar deste quando a
própria convenção impõe a ratificação.
460
No menu de busca dos atos publicados no DR (www.dre.pt/pesquisa-avancada) sur-
gem catorze tipos de decreto – por isso explicitamos que, no caso, tratar-se-á de um decreto do
PR.
211
Rui Miguel Marrana
461
Aquando da assinatura, o PR apenas aprecia da legalidade do acto, não lhe cabendo
qualquer apreciação política, apenas podendo recusá-la existindo alguma inconstitucionalidade
(art. 279.º/2 CRP). Esta interpretação é maioritária na doutrina (Miranda, 1985, pp. 33, 41;
Gonçalves Pereira & Quadros, 1993, p. 222; Medeiros R. , 1990, p. 367; Barbosa Rodrigues, 1991,
p. 13). Subsistem todavia alguns autores que defendem a tese inversa, ou seja, a do carácter
livre da assinatura (Canotilho & Moreira, 1991, pp. 90-91; Canotilho & Moreira, 1980, pp. 85,
595; Sousa Pinheiro & Fernandes, 1999, p. 397; Baptista, 1998, pp. 379-380; Bastos, 1998).
212
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
213
Rui Miguel Marrana
D. Particularidades assinaláveis
Tendo presente o processo acabado de expor, talvez seja o mo-
mento de retomar aquelas que são porventura as suas particularidades
mais expressivas. Isto porque nessas particularidades vamos encontrar
desvios à prática internacional dominante e nessa medida devem ser
as- sinaladas.
462
Tenha-se presente o disposto no art. 8.º/2 CRP, quando se refere às normas
constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas.
463
Um eventual princípio de ponderação pelo parlamento pode ser garantido através de
mecanismos mais simples. Veja-se, por exemplo, o procedimento australiano, no qual as conven-
ções são depositadas no parlamento durante um período anterior à vinculação, a fim de permitir
uma eventual avaliação dos seus méritos. Este procedimento permite manter no executivo a
com- petência de concluir as convenções e não implica atrasos no processo de conclusão na
medida em que o depósito se faz sem necessidade de articular com a agenda parlamentar (cf.
Australia Inter- national Treaty Making Information Kit, cit.).
464
Recorde-se que no procedimento solene, o acto cuja adopção apresenta maiores con-
dicionamentos é a intervenção parlamentar, dadas as dificuldades de agendamento e o tempo
necessário para a apreciação e discussão. Inversamente, a intervenção do PR não oferece tais
dificuldades, uma vez que se trata de um órgão individual.
214
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
465
A vinculação à CV69 oferece um bom exemplo. Veja-se o decreto do PR 46/2003 que,
segundo os próprios termos, ratifica a convenção aprovada para adesão. Esta prática é estranha
na medida em que, contrariamente ao conceito, prevê que se ratifiquem convenções não assina-
das (ora o termo ratificar significa confirmar algo que anteriormente foi já objeto de decisão).
No caso da CV69 a situação é ainda mais estranha, na medida em que Portugal havia assinado a
dita convenção pelo que se não percebe a utilização da figura da adesão.
215
Rui Miguel Marrana
E. Quadro recapitulativo
216
Décima segunda lição: vinculação do Estado português
Questões de
revisão A. Questões gerais
1. Identifique sumariamente as fases do processo de vinculação do Es-
tado português, referindo os órgãos com competência para a prática dos dife-
rentes atos;
2. Identifique o número de variantes possíveis no processo de
vinculação do Estado português;
3. Refira-se à intervenção do Presidente da República no processo de
vin- culação do Estado português;
4. Assinale as principais particularidades do processo de vinculação do
Estado português.
B. Questões directas
1. Explique a articulação do Ministério dos Negócios Estrangeiros com
os restantes Departamentos governamentais e com as Regiões Autónomas na
fase da negociação das convenções.
2. Refira-se à competência nacional para a assinatura das convenções
in- ternacionais, referindo as particularidades do regime nacional nesse
âmbito.
3. Explique o regime relativo à competência de aprovação das conven-
ções internacionais identificando os atos que a aprovação deve revestir;
4. Explique quais as convenções que têm de seguir o procedimento so-
lene e quais as que podem seguir o procedimento simplificado;
5. Explique o mecanismo de fiscalização preventiva da constitucionali-
dade das regras convencionais;
6. Distinga a ratificação pelo Presidente da República da assinatura por
este dos atos de aprovação;
7. Distinga o acto de assinatura do Presidente da República (da
resolução ou decreto que aprovam convenções) da assinatura das convenções
internacio- nais, competência do governo;
8. Explique como se garante constitucionalmente que um acordo apro-
vado em violação dos termos constitucionais não entre em vigor.
Bibliografia de referência #
Leituras recomendadas
Recursos on line a explorar
217
XIII Lição
Convenções internacionais: validade
A. Objetivo
Nesta lição vamos debruçar-nos sobre os vícios das convenções,
ou seja, vamos conferir o regime da validade deste tipo contratual
especial. É de sublinhar, desde logo, a proximidade com o regime geral
da
validade do negócio jurídico, com o qual o estudante estará familiarizado
de outras disciplinas (podendo, quando muito, variar ligeiramente a ter-
minologia ou a estrutura da abordagem).
Subsiste todavia uma diferença muito substancial: é que, não exis-
tindo um mecanismo judicial com competência permanente para avaliar
dos diferendos relativos à invalidade, as preocupações do regime serão
diversas e a prática, pela mesma razão, acaba por gerar soluções menos
transparentes.
B. Visão geral
A produção de efeitos jurídicos próprios dos tratados depende da
sua validade já que a invalidade conduz à nulidade (cf. infra).
O regime da validade dos tratados apresenta algumas diferenças
em relação ao regime da teoria geral do negócio jurídico (não só em
razão da natureza especial dos sujeitos mas principalmente – como se
referiu anteriormente - face à ausência de autoridades capazes de impor
as re- gras e garantirem a sua aplicação), sendo objeto de importantes
debates na doutrina e na CDI. De qualquer maneira, a matriz de análise
da vali- dade é a mesma.
C. Condições de validade
A prática convencional internacional mostra que a validade das
convenções decorre do preenchimento das condições exigíveis em todo
o negócio jurídico: capacidade das partes, licitude do objeto e regulari-
dade do consentimento. Alguma doutrina acrescenta ainda a compatibi-
217
Rui Miguel Marrana
218
Décima terceira lição: validade das convenções
a Nova Zelândia, que assumia as responsabilidades externas, incluindo a defesa. Acrescia que a
Resolução 2064 (XX) da AG NU, de 16.12. 1965 reafirmou a responsabilidade em assistir o povo
das Ilhas Cook no eventual acesso à independência. A conjugação destas circunstâncias
apontava para uma situação de não soberania (especificamente de quase soberania, como
veremos adi- ante), pelo que as Ilhas Cook não integrariam o âmbito da cláusula ‘todos os
Estados’, podendo apenas participar nas convenções para que fosse especialmente convidada.
Não obstante, em 1984 as Ilhas Cook solicitaram a adesão à OMS, cuja Assembleia-geral aprovou
o pedido. Subse- quentemente, o Secretário-geral NU aceitou o depósito do instrumento de
vinculação. Situação semelhante ocorreria com as Ilhas Marshall (United Nations, 1999, p. 24
§84 ss.).
468
Sobre a intervenção dos Estados federados americanos na prática convencional norte-
americana V. a carta de 13.01.2000, de Duncan B. Holis, do Departamento de Estado (Cummins
& Stewart, 2000, p. 293 ss.) que explica a ligeira evolução havida a partir do regime
constitucional que afasta completamente os estados federados da prática convencional.
469
A capacidade convencional tem de decorrer dos textos constitutivos das organizações
internacionais e nessa medida, decorre da vontade dos Estados partes. Deve no entanto ter-se
presente nesta matéria que a não participação de organizações internacionais em determinadas
convenções decorre da sua própria natureza (United Nations, 1999, p. 28 §98 ss), ou seja essa
participação não faz sentido, face às limitações e específico enquadramento jurídico destes
sujei- tos (as convenções sobre direitos humanos, em regra não integrarão organizações
internacionais já que as obrigações impostas não se destinam senão a Estados). É frequente que
as convenções regulem expressamente a participação de organizações internacionais (cf.
nomeadamente o n.º 3 do art. 4.º do Convénio Internacional do Café de 1975 quando refere que
naquela convenção, toda a referência a um governo será interpretada como extensiva à
Comunidade Económica Europeia ou a qualquer organização intergovernamental que tenha
competência comparável…).
470
Para determinar o âmbito de actividade de uma organização internacional, é
necessário referir as regras relevantes da organização e desde logo, a sua constituição (cf.
Parecer do TIJ de 8.7.1996, relativo à licitude do uso de armas nucleares num conflito armado
219
Rui Miguel Marrana
(CIJ/ICJ, 1996, p. 74).
220
Décima terceira lição: validade das convenções
nas tem capacidade para celebrar, tratados relativos à luta armada, al-
guns tratados de participação em organizações internacionais e final-
mente471, os tratados de independência, dos quais resulta aliás a sua ex-
tinção).
Finalmente, quanto aos beligerantes, a sua capacidade convencio-
nal, muito embora praticamente reduzida aos acordos que enquadrem a
situação de beligerância (acordos humanitários, acordos de paz, etc.) é
incontornável na medida em que só por essa via se podem construir as
desejáveis resoluções pacíficas dos conflitos em que estejam envolvidos.
Para concluir as referências básicas relativas à primeira condição
de validade das convenções, importa recordar que a falta de capacidade
dos sujeitos não determina a invalidade do acto: este pode subsistir
nomea- damente enquanto contrato, perdendo todavia a qualidade
convencional (cf. supra pp. 132) – sendo, portanto, essa a consequência
imediata e obrigatória da incapacidade das partes472).
2. Licitude do objeto
2.1. Enquadramento da
questão
Vigorando na teoria geral dos contratos o princípio da liberdade
contratual, admitem-se apenas limitações a essa liberdade em razão da
ilicitude do objeto, ou seja, quando o contrato fixe prestações contrárias
à lei vigente. As regras que limitam a liberdade contratual designam-se
normalmente por cláusulas de ordem pública, assim se sublinhando a in-
disponibilidade (excepcional) de determinadas matérias ou direitos.
Em direito internacional a questão da licitude do objeto levantou
desde cedo um problema especial, que consistia em determinar o corpo
de regras por confrontação do qual se pudesse retirar ou avaliar da lici-
tude473. Inicialmente a questão foi vagamente resolvida por referência
aos princípios gerais ou bons costumes internacionais – cf. parecer de
471
A comunidade internacional pode alargar a capacidade convencional dos movimentos
de libertação nacional, reconhecendo a competência destes para participarem em tratados cujo
âmbito extravase deste círculo estreito. Não sendo comum, a situação está todavia prevista e é
pacificamente admitida (United Nations, 1999, p. 29 §100 ss.).
472
A questão da incapacidade dos sujeitos foi invocada por Portugal como causa de nuli-
dade da convenção celebrada entre a Austrália e a Indonésia relativa à exploração petrolífera no
mar de Timor, não sendo todavia objeto de análise pelo TIJ por este considerar que não poderia
avaliar a alegada incapacidade da Indonésia sem o consentimento desta – cf. §28 do ac. de
30.06.1995 (CIJ/ICJ, 1995, p. 102).
473
Esta circunstância permanece, aliás, como uma objecção ao próprio conceito: este
supõe uma ordem jurídica institucionalizada que não existe (Kolb, 2001, p. 34).
221
Rui Miguel Marrana
474
Embora o conceito possa encontrar as suas origens no direito romano (cf. infra n.
484), o termo jus cogens terá sido introduzido por Sir Gerald Fitzmaurice, relator especial, no 8º
relató- rio sobre o direito dos tratados (CDI/ILC, 1958, p. 27), com um desenho ligeiramente
distinto do que veio a ser consagrado (Tladi, 2016, p. 15). Ele surge todavia em decisões arbitrais
do início do século (cf. 19.10.1928 Pablo Nájera (France) v. United Mexican States, §4 Ad 1).
A afirmação da nulidade dos tratados por incompatibilidade de regras de direito interna-
cional foi defendida por Sir Hersh Lauterpacht (Doc. A/CN.4/63 de 1953). Alguma doutrina faz
recuar a origem da ideia à obra de Oppenheim, do sec XIX, quando se referia aos princípios uni-
versalmente reconhecidos que não admitiam violação. Dava já como exemplo a proibição da pi-
rataria ou do comércio de escravos (Hossain, 2005, p. 74). As decisões do TPJI de 1931 e 1934
(Regime aduaneiro germano-austríaco e Oscar Chinn) referidas no texto vieram a forçar a
ponderação da questão pela doutrina. V. a título ilustrativo a referência de Verdross (1938, p.
51) que ainda refere o direito imperativo como juris cogentis.
475
Para uma descrição do surgimento e desenvolvimento do conceito de jus cogens v.
Tladi (2016, p. 9 ss.); tb. Arthur Weisburd (2003, p. 1488 ss.) para uma visão crítica.
476
Aquando da introdução no articulado apenas o Luxemburgo desaprovou a regra, esti-
mando que esta viria a ser fonte de confusão (Tladi, 2016, p. 19; CDI/ILC, 1966, p. 22). A
resistência mais importante surgiria mais tarde. É frequentemente citado o caso francês, cujas
divergências nesta matéria impediram que assinasse, continuam a justificar a não vinculação à
CV69 (Lavenue, 2013, pp. 48, Tit. I) e deram origem a protestos recentes nos debates na CDI
(Tladi, 2017, p. 5 §16 n.16). Também os EUA (que assinaram em 24.04.1970, mas ainda não se
vincularam), depois de numa primeira fase se mostrarem favoráveis ao princípio e sua inserção
na CV (Nations Unies, 1969, p. 320 §16; Tladi, 2016, p. 21) nos trabalhos preparatórios relativos
ao art. 53.º CV69 vieram a juntar um comentário segundo o qual a norma não poderia ser aceite
excepto se fosse obtido um acordo sobre os termos em que seria determinado o carácter
imperativo de uma nova norma. E sustentam que na redacção final, ao consagrar-se a
necessidade do reconhecimento pela comu- nidade internacional dos Estados no seu conjunto,
se garantiu, na prática, o direito de veto das potências, assim afastando as preocupações
americanas (Congressional Research Service, 2001,
p. 55). O desenvolvimento do regime segue, todavia, uma orientação diversa cf. Tladi (2017, p.
18 ss.).
Apesar das resistências – de autores influentes como Schwarzenberger e Verdross
(Virally, 1966, p. 6) – e dificuldades, a matéria foi no entanto progressivamente acolhida na
doutrina internacional vindo a jurisprudência a afirmá-la em definitivo (o ac. do TIJ de
37.06.1985, relativo às actividades militares e paramilitares na Nicarágua, reconhece
expressamente esse aco- lhimento). Também os Estados vêm com cada vez maior frequência
invocando este tipo de nor- mas (Danilenko, 1991).
222
Décima terceira lição: validade das convenções
477
A aceitação e reconhecimento – que foram objeto de insistência jurisprudência (cf. ac.
TIJ, de 20.07.2012, Obrigação de acusar ou extraditar, §99) - vêm sendo assumidas nos docu-
mentos produzidos pela CDI como impondo uma carácter positivo às regras de jus cogens, afas-
tando-as, assim, da natureza inicialmente referida de direito natural (CDI/ILC, 2014, p. 280).
478
A divisão tripartida da norma aqui introduzida corresponde àquela que em sendo se-
guida no grupo de trabalho da CDI sobre o assunto. Principalmente por se tratar de um trabalho
em evolução, julgamos ser preferível acompanhar essa abordagem, o que nos permitirá acolher
de forma mais célere os desenvolvimentos do mesmo (CDI/ILC, 2014, p. 288; Tladi, 2016, p. 39
ss.). As três divisões assinaladas no conceito correspondem, por isso, aos três pontos analisados
na abordagem do conteúdo.
479
Depois de uma primeira proposta nesse sentido surgida em 1993 e que não teve se-
guimento, a CDI decidiu na sua 66.ª sessão (2014) inscrever o jus cogens no seu programa de
trabalho. A AG registou a decisão, havendo declarações de apoio da parte de 48 Estados e
apenas 3 duvidaram da viabilidade e oportunidade do estudo (cf. A/CN.4/693 de 2016, ponto 6)
– dois dos quais (EUA e França) continuam a não ser parte da CV69.
Na sessão seguinte foi nomeado o Relator especial (Dire Tladi, da África do Sul) tendo
entretanto sido apresentado dois relatórios (2016 e 2017 – Doc.s A/CN.4/693 cit., e A/CN.4/706
de 2017) que mereceram reacções de diversos Estados.
480
Na sua 69.ª sessão, a CDI decidiu alterar a designação do tópico de jus cogens para
normas peremptórias de direito internacional geral (jus cogens).
223
Rui Miguel Marrana
224
Décima terceira lição: validade das convenções
mesma dimensão, ao invocar um direito não escrito, fundamental e imutável que se impõe ao
nível internacional (ibidem §21).
No mesmo sentido v. Michel Virally (1966, p. 7).
485
A expressão jus cogens surge, assim, referida por oposição ao jus dispositivum, sendo
este modificável por acordo das partes (Lavenue, 2013, pp. 46, Tit. I). Trata-se de uma distinção
que pode ser encontrada desde muito cedo nos trabalhos da CDI relativos ao direito dos
tratados (CDI/ILC, 1958, p. 27), que surge na jurisprudência (cf. ac. de 20.02.1969 relativo à
plataforma continental do Mar do Norte, § 72) sendo objeto de insistência na análise recente do
tema (cf. Doc.s A/CN.4/693 de 2016, §65 ss.; A/CN.4/706 de 2017, §4 ss.). Na verdade, a
inderrogabilidade desempenha uma dupla função: demonstra o carácter (particularmente)
imperativo, ao mesmo tempo que é definidora da sua natureza (Tladi, 2016, p. 40 §62).
486
Na sentença arbitral de 31.07.1989, relativa à delimitação da fronteira marítima entre
a Guiné-Bissau e o Senegal, o tribunal afirmou que, do ponto de vista do direito dos tratados, o
jus cogens é simplesmente uma característica própria de certas normas jurídicas de serem
insusce- ptíveis de derrogação por via convencional (United Nations, 1994, p. 135 §41). Este
também o elemento central da sua caracterização para parte da doutrina (Weisburd, 2003, pp.
1488-1489).
A indisponibilidade introduz uma limitação à autonomia da vontade dos Estados, ou seja
à sua liberdade contratual, considerada tradicionalmente como absoluta, porque representa um
dos atributos mais marcantes da soberania. Neste aspecto o ius cogens pode ser considerado
como um atentado à soberania dos Estados (Virally, 1966, p. 10).
487
A perspetiva da imperatividade específica (e do primado) leva alguns autores a inclu-
írem no âmbito do jus cogens algumas regras da CNU, já que esta mesma convenção impõe essa
primazia no art. 103.º (Congressional Research Service, 2001, p. 55 n.57).
488
A doutrina e a jurisprudência são generosas e incisivas ao sublinhar esta ideia, refe-
rindo-se a valores fundamentais de comunidade jurídica internacional que constituem a essência
da civilização, reportando a considerações fundamentais da humanidade (Tladi, 2016, p. 46 §71;
Tladi, 2017, p. 9 ss. §20), ou seja, valores éticos que tornam inaceitável o respectivo afastamento
ou regras cuja não aplicação implicaria um perigo grave para a comunidade internacional
(Virally, 1966, p. 10).
Noutro sentido (que aponta mais ao seu sentido originário), podem considerar-se pré-
condições da actividade internacional, como a regra do pacta sunt servanda, cujo acolhimento
numa convenção seria sempre meramente reafirmativo, da mesma maneira que a sua
derrogação seria absurda (Hossain, 2005, pp. 73-74).
Num outro sentido ainda (corrente nas cláusulas de ordem pública) – actualmente pouco
defendido – as regras de ius cogens poderiam entender-se como assegurando a protecção dos
Estados contra as suas próprias fraquezas ou contra a força excessiva dos seus ventuais
parceiros.
225
Rui Miguel Marrana
(ac. do TIJ de 5.02.1970, Barcelona Traction, 2ª fase), razão essa que jus-
tificará também a nulidade absoluta das convenções cujas normas
violem este tipo de normas (tal como veremos a seguir- infra p. 235 ss.).
2.3.2. Carácter geral ou universal das normas
A ideia de que as normas de jus cogens são necessariamente nor-
mas de direito internacional geral (e que dele derivam 489) vem referida
repetidamente nos trabalhos preparatórios da CV (e é acolhida na
conclusão 4 a), não tendo sido objeto de qualquer resistência ou oposi-
ção (Tladi, 2017, p. 18 §40; Virally, 1966, p. 14).
Deparamos aqui, todavia, com uma nova dificuldade, já que o pró-
prio conceito de direito internacional geral não é claro (CDI/ILC, 2006, p.
187 n. 976). No âmbito do jus cogens a generalidade parece remeter
para a sua aplicabilidade (Tladi, 2017, p. 19 §42), ou seja, as normas de
direito peremptório (por o serem) são de aplicação necessariamente
universal.
Esta característica vai implicar uma outra: é que esse direito
univer- sal está basicamente no costume (o direito convencional, por
implicar apenas obrigações entre as partes – como salientaremos
adiante – tem sempre a natureza de lex specialis). Essa ideia vinha sendo
afirmada na doutrina e assumida em diversas decisões da AGNU e na
jurisprudência490 internacional e interna491 (Tladi, 2017, p. 19 ss. §42 ss.)
e foi acolhida ex- pressamente na conclusão 5/1 e 2.
226
Décima terceira lição: validade das convenções
492
É frequente a tentação de fazer equivaler o direito internacional geral com o costume
(apenas) e este com o jus cogens. Ora, como se pretende salientar, o costume é apenas uma
parte do direito internacional geral, e o jus cogens uma parte apenas do direito consuetudinário.
227
Rui Miguel Marrana
Esta parece, de facto ser a posição mais equilibrada e que melhor traduz
a prática e a jurisprudência493 na matéria.
2.4. Âmbito
Subsiste todavia a questão da sua determinação 494, ou seja, saber
como é que esse reconhecimento se processa495. A solução – indirecta –
surge no mecanismo do art. 66.º CV69, através do qual, em situações
con- flito se possibilita aos Estados o recurso unilateral ao TIJ a fim de
que este confirme a natureza imperativa da norma.
O TIJ - que assume portanto um papel central na determinação 496
da matéria - confirmou já a natureza imperativa das seguintes497 regras:
493
A afirmação. Por um lado, do carácter universal (direito internacional geral) da norma,
e por outro, da qualidade peremptória, é muito clara no ac. de 20.07.2012 do TIJ, obrigação de
acusar ou extraditar, quando refere que (CIJ/ILC, 2012, p. 457 §99) a proibição da tortura releva
do direito internacional consuetudinário e adquiriu o carácter de norma imperativa (jus cogens).
494
Algumas questões permaneceram sem resposta, ao longo dos anos, nomeadamente o
saber se se admitem normas de jus cogens regionais, se a objecção de alguns Estados impede a
formação das regras, ou ainda se a sua origem é obrigatoriamente consuetudinária (Lavenue,
2013, p. 47 Tit. I). Os trabalhos que estão a ser desenvolvidos actualmente pela CDI pretendem
dar resposta a estas questões.
Gennady M. Danilenko (1991) insiste no desconforto (aparentemente resultante de uma
postura voluntarista) causado pela falta de uma autoridade capaz de determinar as regras. Sali-
enta ainda este autor os riscos de conflito resultantes da falta de uma definição clara dos proce-
dimentos de declaração ou identificação (questão que está presente na agenda de trabalho da
CDI sobre o jus cogens).
As dificuldades na determinação do âmbito do jus cogens vieram também a ser
referidas, desde cedo, nos próprios trabalhos da CDI (1966, p. 270 (3)), e constituem ainda hoje
o maior foco de divergência (Tladi, 2016, p. 24 §42).
495
Nos trabalhos preparatórios Sir Humphrey Waldock, Relator especial, afirmava que
não dispomos ainda de qualquer critério geralmente aceite que permita reconhecer que uma
regra de direito internacional geral releva do jus cogens. Por outro lado, é inegável que a maioria
das regras de direito internacional geral não são caracterizáveis como não podendo ser
derrogadas conven- cionalmente pelos Estados (CDI/ILC, 1963, p. 54).
496
O papel central do TIJ tem, no entanto, vindo a ser exercido indirectamente, já que
nunca a sua intervenção (directa) foi solicitada ao abrigo do mecanismo previsto no art. 66.º.
Esta circunstância percebe-se melhor se tivermos presente que a maioria da reservas ou
declarações interpretativas apresentadas pelos Estados parte incidem sobre esta disposição (cf.
United Na- tions Treaty Collection > Status of Treaties).
Não obstante é de salientar que após a adopção da CV69 o jus cogens foi expressamente
mencionado 11 vezes, em acórdãos e decisões do TIJ, todos reconhecendo (ou aparentando reco-
nhecer) a existência do jus cogens no direito internacional contemporâneo (Tladi, 2016, p. 26
§46). Foi mencionado expressamente 78 vezes em posições dos membros do TIJ (ibidem 27
§47).
497
A doutrina refere frequentemente outras regras como integrando o acervo de jus co-
gens, como seja a proibição da escravatura e do comércio de escravos, a proibição do apartheid,
ou a proibição da pirataria (Congressional Research Service, 2001, p. 55).
A própria CDI veio a afirmar expressamente a aceitação pacífica do carácter imperativo
(jus cogens) da proibição da agressão, genocídio, escravatura, discriminação racial, crimes contra
a humanidade, tortura e ainda o direito à auto determinação (CDI/ILC, 2001, p. 91). No âmbito
228
Décima terceira lição: validade das convenções
3. Regularidade consentimento
3.1. Formal
O problema da regularidade formal do consentimento prende-se
com a questão de saber em que medida o incumprimento das formalida-
dos trabalhos recentemente iniciados sobre a matéria um dos objectivos expressos é o de identi-
ficar conjuntos de normas que adquiriram a qualidade de jus cogens (CDI/ILC, 2014, p. 280).
Também os Estados vêm invocando cada vez com maior frequência o carácter
imperativo (jus cogens) de determinadas normas (CDI/ILC, 2014, pp. 276, n.9; Tladi, 2016, p. 28
ss.), mesmo em situações em que seria do seu interesse recusar ou limitar a sua existência
(Tladi, 2016, p. 29).
498
Curiosamente neste ac. o TIJ reconhece ser a proibição do uso da força um princípio
do direito internacional geral, recorda que a CDI se refere à respectiva regra da CNU como
exemplo de jus cogens e refere que ambas as partes lhe atribuem esse carácter. Todavia, o TIJ
não chega a afirmar explicitamente essa natureza específica (CIJ/ICJ, 1986, pp. 100-101 §190).
499
Também o TPIR declarou expressamente a proibição do genocídio como integrando o
jus cogens (ac. 21.5.1999, Kayishema §88). V. tb. ac. 14.12.2015, Nyiramasuhuko que insiste
existir uma limitação do poder de discricionário do Conselho de Segurança na definição de
crimes contra a humanidade (retomando o afirmado anteriormente pelo TPIY - §296 do ac. de
15.07.1999, Tla- dić).
500
A proibição da escravatura (e a consequente nulidade dos tratados que a
contemplam) foi expressamente afirmada pelo TIADH (ac. de 10.09.1993, Aloeboetoe §57). O
mesmo tribunal declarou expressamente considerar a proibição da discriminação como uma
regra de jus cogens (ac. 28.08.2014 Expelled Dominicans and Haitians v. Dominican Republic
§264), bem como a pro- ibição da tortura (ac. 14.05.2013, Mendoza et. al. v. Argentina, §199)
501
A qualidade de jus cogens da proibição da tortura foi também afirmada pelo TPIY no
ac. 10.12.1988, Furundzija §144, 153 e 154. No mesmo sentido V. ac. de 21.11.2001 do TEDH, Al-
Adsani (Proc. 35763/97) que por sua vez analisa com pormenor o reconhecimento pelos
tribunais britânicos dessa mesma qualidade. V. ainda o ac. de 14.05.2013 do TIADH Mendoza et
al. v. Ar- gentina §199. Tb. o Supremo Tribunal do Canadá reconhece expressamente essa
qualidade no ac. de 10.10.2014 Kazemi Estate v. Islamic Republic of Iran ([2014] 3 R.C.S. 179)
229
Rui Miguel Marrana
502
Refere a norma (art. 46.º CV69) que a circunstância de o consentimento […] ter sido
expresso com violação de um preceito de direito interno […] não pode ser alegada como tendo
viciado o seu consentimento.
503
A doutrina e principalmente a prática americana mostram algum incómodo na cara-
cterização deste requisito (Congressional Research Service, 2001, p. 56), parecendo todavia que
a violação de exigências formais especificamente o recurso a procedimentos simplificados
quando o direito interno exija a forma solene configurará, na opinião da administração norte-
americana, uma violação manifesta (ibidem, p. 57). A insistência decorrerá provavelmente do
facto de o di- reito norte-americano considerar os tratados (solenes, com intervenção do
senado) como inter- nacionalmente vinculativos ao passo que os acordos em forma simplificada
serão de mera aplica- ção (cf. nota 356).
504
O TJCE, no ac. de 9.08.1994 (França c. Comissão) muito embora reconhecendo que a
celebração do acordo estabelecido com os EUA havia sido feita em violação de diversas regras
comunitárias relativas à matéria, não afirmou a invalidade do mesmo, uma vez que, a particular
230
Décima terceira lição: validade das convenções
complexidade do processo torna só por si improvável que se possa considerar manifesta a viola-
ção (Aust, 2004, p. 253).
505
A norma que preveja a intervenção do órgão parlamentar parece dever considerar-se
uma norma de importância fundamental (Congressional Research Service, 2001, p. 56).
506
Tal como resulta dos trabalhos preparatórios da CV69, a mera demonstração da con-
trariedade das regras internas em matéria de competência do representante não é suficiente
para gerar uma nulidade de per se (Congressional Research Service, 2001, p. 57).
507
No mesmo sentido Congressional Research Service (2001, p. 58).
508
Anthony Aust (2004, p. 253) recusa liminarmente a possibilidade de um Estado
invocar uma eventual irregularidade formal depois de a convenção entrar em vigor e de esse
Estado ter dado início ao seu cumprimento. Assim, na opinião deste autor, a suceder tal
invocação, poderia ser oposto a esse Estado o regime do estoppel, ou seja, no caso, a proibição
de venire contra factum proprio. A posição parece-nos todavia excessiva. O nosso entendimento
é no sentido de que o cumprimento de uma convenção, conhecido que seja um eventual vício
da mesma, apenas impede o Estado de invocar esse vício na medida em que o referido
cumprimento configure uma confirmação do mesmo vício, nos termos da al. b) do art. 45º.
231
Rui Miguel Marrana
509
Repare-se que a facilidade de comunicações fez evoluir a prática no sentido de dimi-
nuir, na prática, os poderes dos mandatários nas negociações. Assim, tal como se referiu supra
(n. 446) na prática portuguesa atual, em negociações bilaterais, não há usualmente lugar à
emissão de credenciais, sendo apenas no entanto indicadas as composições das delegações.
510
Cf. ac. de 26.03.1925, do TPJI, Mavrommatis, em que um erro relativo à nacionalidade
de um concessionário foi considerado insuficiente para viciar o consentimento. V. tb. ac. de
20.06.1959, do TIJ relativo à soberania sobre determinadas parcelas fronteiriças. Neste último
acórdão diz-se expressamente ser necessário verificar qual era a intenção das partes segundo as
disposições do tratado, à luz das circunstâncias e aferir se as provas demonstram a existência de
um erro susceptível de viciar a convenção (CIJ/ICJ, 1959, p. 225).
232
Décima terceira lição: validade das convenções
511
No âmbito da mesma questão, esta instância havia referido em 26.05.1961, (decisão
relativa a excepções preliminares) que a principal importância jurídica do erro, quando existe, é
de poder afectar a realidade do consentimento dado (CIJ/ICJ, 1961, p. 30).
512
Neste aresto o TIJ recusou a argumentação do Ministro deste Estado quando preten-
deu que a assinatura das minutas do acordo não visavam vincular o Estado, até porque segundo
a Constituição deste, a vinculação a convenções em matéria territorial apenas podia ocorrer por
força de um acto legislativo. Assim, a assinatura de um texto do qual constavam obrigações
espe- cíficas aceites por ambos os governos (parte das quais imediatamente exigíveis), não
autoriza que mais tarde se venha a invocar uma simples intenção de subscrever um mero acordo
político, dis- tinto de uma convecção internacional (CIJ/ICJ, 1994, pp. 121-122 § 26-27).
513
Ac. de 3.02.1994, do TIJ, relativo ao diferendo territorial entre a Líbia e o Chad.
514
O erro de facto é muito frequente em matéria de delimitação de fronteiras (Lavenue,
2013, pp. 44, Tit. I)
515
No ac. de 5.04.1933, relativo à Groenlândia oriental, o TPJI não aceitou a invocação da
Noruega que não atribuía efeitos vinculativos a uma declaração oficial do seu ministro - garan-
tindo à Dinamarca que o seu país não contrariaria as pretensões deste país (CPJI/PCIJ, 1933, p.
69).
Na decisão das excepções preliminares (26.05.1961) no caso do Templo de Préah Viehar
o TIJ classifica o erro invocado pela Tailândia como erro de direito, mas, sem contrariar expressa-
mente a sua relevância, declara logo de seguida ser seu entendimento não haver erro (CIJ/ICJ,
1961, p. 30).
516
É da responsabilidade do depositário a iniciativa do procedimento de correcção, de-
vendo verificar-se cautelosamente se a correcção integra as categorias de situações tipificadas
(erro de impressão, de escrita, de pontuação ou numeração – gralha, em termos gerais
descon- formidade entre o texto assinado e os registos da conferência diplomáticas em que a
convenção foi adoptada, ou ainda a desconformidade entre diferentes textos originais), ou se
altera a subs- tância das regras em causa. O processo de correcção implica a consulta das partes
estando actu- almente estudados mecanismos de concertação (United Nations, 1999, p. 12 ss.
§48 ss.).
233
Rui Miguel Marrana
3.2.2. Dolo
O dolo (art. 49.º) corresponde a uma conduta fraudulenta (de um
Estado que tenha participado na negociação), conduta essa que terá de
ter conduzido um Estado a vincular-se. Surgem portanto aqui duas limi-
tações a reter: não releva o dolo praticado por Estado que não tenha
par- ticipado na negociação e não releva também a conduta fraudulenta
que tenha conduzido à abstenção517.
A situação é hoje em dia praticamente desconhecida, tendo
apenas sido invocada no princípio do século passado por tribos africanas
em re- lação a tratados celebrados com Estados europeus518.
3.2.3. Corrupção
O terceiro vício da vontade tipificado na CV69 é a corrupção (art.
50.º), que corresponde a uma subespécie de dolo (já que, para todos os
efeitos se trata de uma conduta fraudulenta que conduz à vinculação519).
A única referência especial que o regime merece é a relativa à distinção
entre corrupção e meras cortesias ou favores mínimos. É que estes,
sendo correntes na prática internacional, não deverão considerar-se
como for- mas de corrupção. A distinção, apesar de tudo, pode mostrar-
se difícil, sendo todavia certo que a corrupção pressupõe uma afectação
grave da vontade do representante. Não deve, portanto, assumir-se que
toda a conduta que possa ser considerada eticamente (ou até
legalmente) re- provável, conduz obrigatoriamente à nulidade; esta
apenas surge em si- tuações de afectação grave (sem prejuízo da
eventual relevância jurídica do comportamento a outro título que não já
para efeitos de invalidade da convenção).
Deve ter-se também aqui presente que só releva a corrupção le-
vada a cabo directa ou indirectamente por um Estado que tenha partici-
pado na negociação e também aqui, se conduziu à vinculação, sendo
esta que é afectada pelo vício.
517
Esta limitação bem se compreende na medida em que o vício apenas afecta a vincula-
ção do Estado (e não a convenção como um todo, excepto na medida em que essa vinculação
fosse essencial, p. ex. tratando-se de um acordo bilateral), donde, não se tendo verificado esta,
não existe propriamente vício da vontade (já que a não vinculação não pode considerar-se como
uma declaração de vontade negativa, uma vez que não se produzem efeitos jurídicos).
518
Jean Jacques Lavenue (2013, p. 42 Tit I) refere também que no julgamento de Nurem-
berga, no final da segunda guerra, terá sido invocada a nulidade dos Acordos de Munique de
1938, a qual decorreria do facto de o Estado nacional-socialista ter a intenção de os não cumprir.
519
Jean Jacques Lavenue (2013, p. 43 Tit I) refere ter esta disposição sido introduzida tar-
diamente nos trabalhos da CDI visando garantir a distinção entre a corrupção (prática que atra-
vessa toda a história diplomática) e o dolo.
234
Décima terceira lição: validade das convenções
520
O ac. de 16.01.1923 do TPJI sobre o vapor Wimbledon impôs à Alemanha o cumpri-
mento uma convenção – o Tratado de Versalhes de 1919, que acolheu a capitulação germânica
cuja conclusão se fez reconhecidamente sob coacção (e que justificaria aliás, reacções políticas
posteriores, nomeadamente a teoria germânica do diktat através da qual se justificava o não
cum- primento de determinadas obrigações). Não obstante, o Tratado de Tóquio de 9.05.1941,
imposto à França (governo de Vichy) no início da segunda guerra, pelo exército da Tailândia
apoiado pelo Japão e que forçou a cedência de importantes parcelas territoriais, veio a ser
declarado nulo, por uso ilícito da força, no acordo obtido no pós guerra com os bons ofícios
britânicos e americanos (Lavenue, 2013, p. 41 Tit. I).
521
O Pacto das Nações de 1919 introduzia já limitações ao uso da força, tipificando algu-
mas situações de uso ilícito e introduzindo moratórias que deveriam criar condições para que
esse uso pudesse ser evitado. Anteriormente à CNU regista-se ainda uma outra convenção que
proibia o uso da força: o Pacto Briand-Kellog, de 1928.
522
A questão da proibição do recurso à força vem sendo objeto de estudos separados
(desde 1959) no âmbito dos sucessivos suplementos ao Repertório da Prática dos Órgãos das
Na- ções Unidas, publicações disponíveis na página do Office of Legal Affairs do site das NU.
523
Apenas a coacção ilícita gera nulidade. Isto porque a CNU continua a admitir situações
excepcionais nas quais o recurso à força é lícito (nomeadamente a legítima defesa individual e
colectiva), pelo que as convenções obtidas nestas circunstâncias não estão feridas de nulidade.
Anthony Aust refere nomeadamente o acordo obtido em Port-au-Prince em 18.09.1994, relativo
à devolução do poder ao presidente Jean-Bertrand Aristide, o qual foi celebrado sob ameaçadas
forças americanas. De qualquer maneira, o regime atual parece condenar definitivamente os tra-
dicionais tratados de paz (Aust, 2004, pp. 256-257). Para uma descrição oficial da situação
Haitiana
v. Cummins & Stewart (1999, p. 1882 ss.).
235
Rui Miguel Marrana
524
De fora ficaram as convenções com carácter leonino (ou seja, nos termos da teoria
dos contratos, aqueles acordos em que a desigualdade das partes conduz a um claro
desequilíbrio das prestações). A desigualdade permanente entre os Estados justifica que não se
deva ponderar tal circunstância, sob pena de se introduzir um elemento de grande perturbação
na estabilidade con- vencional (Aust, 2004, p. 257).
525
Aquando da adesão à CV69, a Síria declarou que entendia a referência à força do art.
52.º como incluindo a coacção económica e política, o que mereceu uma rejeição de muitas
partes (Aust, 2004, p. 102).
236
Décima terceira lição: validade das convenções
2. Regime da CV69
Invertendo a perspetiva original, a CV69 acolheu no seu regime a
distinção entre nulidades relativas e absolutas, considerando implicita-
mente como nulidades absolutas a coacção (quer do representante quer
do Estado art. 51.º e 52.º) e ainda a incompatibilidade com um norma
de jus cogens (art. 53.º). Nos casos dos artigos 52.º e 53.º aparece
mesmo
evidenciada a defesa de uma ordem pública internacional, justificando a
afirmação expressa da nulidade. No que toca à coacção sobre o
represen- tante determina-se um regime equivalente: o tratado é
desprovido de qualquer efeito jurídico (a qualificação desta situação
como constituindo uma nulidade relativa ou absoluta foi muito debatida
nos trabalhos pre- paratórios da CV69). A contrariedade com as regras
de jus cogens se não estivesse contemplada a figura da nulidade
absoluta resultaria forçosa- mente deste mesmo conceito de direito
imperativo: trata-se de regras que apelam directamente à comunidade
internacional no seu conjunto como entidade capaz de reconhecer essa
imperatividade reforçada, a qual assenta numa noção de ordem pública.
Definidas que estão as diferentes naturezas dos diversos vícios –
gerando portanto nulidades relativas (os vícios previstos nos art. 46º a
50º CV69) e absolutas, (os previstos nos art. 51.º a 53.º) vejamos com
maior pormenor os diferentes regimes.
O aspecto mais marcante (e evidente) da distinção entre os
diferen- tes tipos de nulidade é o da possibilidade de sanação do vício:
no art. 45.º
237
Rui Miguel Marrana
E. Procedimento de anulação
A falta de um mecanismo judicial com competência geral para in-
tervir em situações de conflito relativamente aos compromissos conven-
cionais assumidos pelos Estados, fez recear que os Estados cedessem à
tentação de aproveitarem abusivamente o carácter unilateral da
declara- ção de nulidade. Na verdade, o importante esforço de
codificação da CV69 podia bem perder-se se não se criassem formas de
controlar a in- vocação de nulidades pelos Estados, pois nesse caso, as
causas de nuli- dade tipificadas tenderiam a tornar-se meros pretextos
sempre que al- gum pretendesse desobrigar-se dos compromissos
assumidos. A situação ideal seria a de a CV69 impor no seu dispositivo a
competência do TIJ para apreciar os litígios decorrentes da sua
aplicação. A experiência mostrava contudo que a previsão desse tipo de
solução tornaria ainda mais difícil conseguir a vinculação de um
importante volume de Estados à conven-
238
Décima terceira lição: validade das convenções
ção. Entre estas duas situações limite, veio a consagrar-se um regime in-
termédio que, muito embora não garantindo uma apreciação judicial
dos litígios, cria condições que, na prática, impedem, ou pelo menos
limitam, a invocação abusiva de nulidades.
Sumariamente o mecanismo consagrado na CV69 consiste no se-
guinte:
I. Declaração de nulidade (art. 65.º) – o procedimento inicia-
se com uma declaração de nulidade (que apenas pode ser feita
pelos Estados cujo consentimento foi viciado, no caso das nulidades
relati- vas e por qualquer interessado nas situações nulidades
absolutas), que tem de ser feita a todas a partes, por escrito (art.
67.º/1), e de- verá conceder um prazo não inferior a três meses
para que estas se possam pronunciar, também por escrito (art.
65.º/2).
II. Decorrido este prazo, se não houver objecções à invocada
nulidade, poderá ser posto termo ao tratado. Caso contrário – sur-
gindo portanto, alguma objecção de algum dos outros Estados parte
– dever-se-á procurar uma solução por meios pacíficos (art. 65.º/3),
ou seja por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitra-
gem, via judicial, recurso a organizações ou acordos regionais, ou
qualquer outro meio pacífico (art. 33.º CNU).
III. Não surgindo solução no prazo de um ano a contar da o-
bjecção, segue-se:
1. tratando-se de um diferendo relativo a regras de jus co-
gens, ou as partes submetem por acordo a questão a uma
instância de arbitragem ou qualquer das partes pode unila-
teralmente submeter a questão ao TIJ (66.º/1) que se pro-
nunciará;
2. nos restantes casos, dar-se-á início ao procedimento de
conciliação previsto no Anexo à CV69, o qual consiste no
se- guinte
i. qualquer das partes dirige o pedido ao SG das NU, o
qual submete o pedido à apreciação de uma comissão de
conciliação composta por dois conciliadores nomeados
por cada uma das partes (podendo apenas um deles ser
da nacionalidade destas), a partir da lista de juristas
qualifica- dos previamente enviada para o efeito ao
secretariado ge- ral. Os quatro conciliadores cooptarão o
quinto;
ii. a comissão de conciliação estabelece o seu processo
podendo convidar as partes a submeterem-lhe os seus
239
Rui Miguel Marrana
F. Efeitos da nulidade
Na nossa análise do regime da validade das convenções
internacio- nais, começamos por ver as condições de validade,
debruçando-nos em seguida no regime das nulidades (que decorrem
dos vícios, ou seja, da não verificação dessas condições), vendo depois
os termos a seguir quando sejam invocadas essas nulidades.
Vejamos agora os efeitos da nulidade, ou seja, as consequências
de- correntes da verificação das nulidades. Vamos então analisar três
tipos de efeitos: a (1)cessação da vigência (se a convenção é nula, deixa
de pro- duzir efeitos a partir do momento em que essa nulidade é
detectada), a (2)retroactividade (se a nulidade ocorre necessariamente
até à vinculação, isso significa que deverão ‘desfazer-se’ eventuais
efeitos produzidos) e a (3)indivisibilidade (em geral a nulidade, afectará
todo o tratado).
Vejamos então separadamente os efeitos referidos.
240
Décima terceira lição: validade das convenções
1. Cessação da vigência
O n.º 1 do art. 69.º CV69 afirma que as disposições de um tratado
nulo não têm força jurídica. De facto, sendo nulas, não produzem
efeitos. Assim sendo, constatada a nulidade, se a convenção estava em
vigor, essa vigência cessa imediatamente.
A doutrina debate ainda uma questão relevante nesta matéria: sa-
ber que a cessação da vigência das convenções por força da invocação
de uma nulidade ocorre (a)aquando dessa invocação, se apenas (b)quando
se esgotarem as tentativas de obter um acordo ou resolução por
interven- ção de terceiros, ou ainda se (c)exclusivamente com uma
decisão indepen- dente (Conforti & Labella, 1990). A resposta não é
fácil, nem parece ser possível optar, pura e simplesmente, por uma das
hipóteses apontadas. Julgamos que aquela que seja a pretensão do
Estado que invoque a nuli- dade deve ser comunicada com o
desencadeamento do procedimento de anulação, passando a constituir
uma das questões a negociar ou a ser o- bjecto de avaliação pelo
mecanismo de resolução a seguir.
Convém todavia recordar que só as nulidades absolutas implicam
de per se a nulidade da convenção (por vezes referida como nulidade
ge- ral), ao passo que as nulidades relativas apenas afectam o
consentimento do Estado em vincular-se, o qual deixará de produzir
efeitos não impe- dindo necessariamente a convenção de continuar em
vigor (por isso se refere tratar-se de uma nulidade em relação às partes,
apenas).
2. Retroatividade
2.1. O princípio
O facto de não se reconhecer força jurídica às disposições de um
tratado declarado nulo implica ainda que a declaração de nulidade
retro- age os seus efeitos ao momento em que se produziu o vício. É a
ideia anteriormente referida: se eventualmente se produziram efeitos
(se a convenção entrou em vigor e foi cumprida), tais efeitos são
indevidos, pelo que deverá em regra restabelecer-se a situação que
existiria não fosse essa vigência imprópria.
241
Rui Miguel Marrana
3. Indivisibilidade
Verificando-se a existência de uma causa de nulidade, esta afecta
– em princípio – todo o tratado (art. 44.º/2). O princípio geral é,
portanto, o da indivisibilidade.
A indivisibilidade é absoluta no que toca às nulidades absolutas
(44.º/5) 526.
Também neste caso subsistem dois regimes excepcionais (que se
dirigem apenas às nulidades relativas):
a divisibilidade obrigatória (art. 44.º/3): se o vício afecta apenas
determinadas cláusulas as quais sejam separáveis do tratado
526
Anthony Aust (2004, p. 256) entende que, numa convenção multilateral, a coacção gera
apenas a nulidade da vinculação do Estado coagido, não afectando portanto toda a convenção.
Na prática, mais do uma excepção ao princípio da indivisibilidade (que se refere às disposições
do tratado) nas situações de nulidade absoluta, teríamos aqui uma requalificação da coacção
como nulidade relativa.
242
Décima terceira lição: validade das convenções
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Identifique e explique sumariamente as condições de validade das
con- venções internacionais;
2. Diga o que entende por jus cogens referindo-se à formação deste con-
ceito no plano internacional;
3. Explique em que termos a irregularidade formal do consentimento
pode afectar a validade desse consentimento;
4. Distinga nulidades absolutas de nulidades relativas, identificando o
res- pectivo regime;
5. Explique os efeitos da nulidade das convenções internacionais;
6. Refira-se ao processo de anulação das convenções internacionais;
B. Questões directas
1. Distinga personalidade de capacidade jurídica e refira as
consequências da incapacidade dos sujeitos de direito internacional;
2. Explique como se determina a natureza imperativa de uma regra de
jus cogens;
3. Explique o sentido preciso das irregularidades formais do consenti-
mento no âmbito das convenções internacionais;
4. Diga o que entende por erro e explique em que termos este afecta a
validade das convenções;
5. Distinga a corrupção do dolo;
243
Rui Miguel Marrana
Bibliografia de referência
Leituras recomendadas
KOLB, R. 2001. Théorie du ius cogens international : Essai de relecture du
concept. Genève : Graduate Institute Publications. doi
:10.4000/books.iheid.4834
TLADI, Dire. 2016 – Premier rapport sur le jus cogens, présenté par le
Rapporteur spécial - Doc A/CN.4/693
# conferir outras referências a recomendar
244
Décima terceira lição: validade das convenções
245
XIV Lição
Convenções internacionais: aplicação
A. Objetivo
Analisámos na lição anterior o regime relativo aos eventuais vícios
das convenções e suas consequências (ou seja, as situações em que as
irregularidades na sua formação afectam a vinculação de alguma das
par- tes ou o valor da convenção no seu todo). Identificados os vícios
tivemos depois de os classificar, de conferir os termos em que devem
ser invoca- dos e, finalmente que consequências decorrem desses
mesmos vícios.
Nesta lição, ultrapassados os vícios, vamos conferir os regimes re-
lativos à (normal) aplicação das convenções.
Na segunda parte da matéria (p. 41 ss.) analisamos já o problema
genérico da articulação do direito internacional com o direito interno –
o que constitui a primeira questão que se colocaria nesta fase. Tendo
sido tratada em termos gerais (de todas as fontes) e não havendo
especificidades no tocante às convenções internacionais, damos o
assunto por tratado e avançamos para as questões específicas.
Começaremos por analisar o regime relativo à execução (interna e
internacional) das convenções, para depois conferirmos em que situa-
ções é que extraordinariamente podem produzir efeitos para terceiros e
finalmente analisarmos os termos em que são tratados eventuais confli-
tos de normas convencionais.
B. Regime
1. Execução na ordem interna
A execução das convenções na ordem interna compete a toda e
qualquer autoridade pública527, iniciando-se com uma introdução na or-
527
Sobre as dificuldades na aplicação judicial nos EUA, v. Wu (2005). Estas dificuldades
resultam em grande parte de uma prática seguida em diversos países (tb. em França, p. ex.) se-
gundo a qual a divisão de poderes impõe aos tribunais a consulta do executivo para efeitos de
245
Rui Miguel Marrana
interpretação das convenções, sob pena de afectação de poderes que são exclusivos deste (a
con- dução das relações internacionais). A doutrina americana qualifica esta prática como de
deferên- cia ao ramo executivo (Ku & Yoo, 2006, p. 180)
528
Esta exigência pode consubstanciar ou confundir-se com posições dualistas, tal como
referimos na nota 109. Essa confusão parece poder detectar-se em alguma doutrina. Veja-se p.
exemplo em Benoît-Rohmer & Klebes (2005, p. 142).
529
Este regime está constitucionalmente consagrado em países europeus como a
Bélgica, a França, Luxemburgo, Portugal ou a Croácia (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, pp. 142-
143).
530
Não obstante, mesmo em situações cuja prática denota importantes reticências –
como é o caso americano – a doutrina vem insistindo em que a aplicação das convenções deve
fazer-se em paralelo com a aplicação dos diplomas legais (Galbraith, 2017).
246
Décima quarta lição: aplicação das convenções
531
Ac. TPA 7.09.1910, Direitos de pesca na costa norte do Atlântico.
532
A Comissão Internacional da Caça à Baleia declarou na sua resolução 2001-1 que a
boa- fé implica correcção (fairness), razoabilidade, integridade e honestidade no
comportamento in- ternacional (IWC, 2002, p. 61).
533
Para uma análise aprofundada do nível de cumprimento das obrigações
convencionais em matéria de direitos humanos, V. Hathaway (2002) ou Goodman & Jinks
(2003).
534
No âmbito da execução devem distinguir-se três realidades (Frischmann, 2003, p.
693): a implementação (que se prende com as medidas internas tendentes a permitir a
produção dos efeitos jurídicos pretendidos), o cumprimento (que deriva do nível de adequação
entre o compor- tamento do Estado e as obrigações jurídicas decorrentes das convenções) e a
eficácia (que se refere ao grau de realização dos objectivos convencionais). Esta chamada de
atenção não diverge substancialmente da nossa análise, na medida em que a implementação se
refere à execução in- terna, o cumprimento à execução internacional e a eficácia com uma
conferência a posteriori que, do ponto de vista jurídico, serve essencialmente para conferir a
qualidade dos mecanismos de controlo e/ou garantia.
535
Para uma análise aprofundada das técnicas de elaboração convencional tendo em
vista a sua boa execução v. Guzman (2005).
247
Rui Miguel Marrana
248
Décima quarta lição: aplicação das convenções
537
A cláusula federal não é tecnicamente uma cláusula territorial (uma vez que sobre o
território dos estados federados vigora também a lei federal).
538
A mera existência de territórios sujeitos a enquadramentos constitucionais diversos
frequentemente torna difícil se não mesmo impossível a aplicação das convenções nos mes-
mos termos em que ocorre relativamente ao território metropolitano. O problema pode
também surgir em relação a territórios não soberanos (United Nations, 1999, p. 80 §263).
539
Exactamente por se presumir a cláusula colonial, as convenções incluíam regras que
previam expressamente a possibilidade de os Estados declararem alargar a vigência a territórios
ultramarinos ou em relação aos quais exerciam competências externas. V. p. ex. o art. 12.º da
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, ou o art. 40.º da Con-
venção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951. Não obstante, em algumas convenções
usa- se a técnica inversa, afirmando-se a aplicação a todos os territórios administrados pelas
partes e autorizando estas a excluir aplicação por via de declarações nesse sentido. V. p. ex. o
art. 12.º da Convention on the Recovery Abroad of Maintenance, de 1956, ou o art. 104.º da
Carta de Havana de 1948.
540
Cf. Resolução 1514 (XV) AGNU, de 1960, que adoptou uma Declaração relativa ao
acesso à Independência dos países e dos povos. Em 30 de Abril de 1992, mais de 60 territórios
habitados por mais de 80 milhões de pessoas haviam acedido à independência e aderido às NU
enquanto Estados soberanos.
249
Rui Miguel Marrana
541
Quatro Estados têm adoptado práticas consistentes nesta matéria: o Reino Unido o
qual refere expressamente a eventual aplicação fora do território europeu), a Holanda (que dis-
tingue o ‘Reino na Europa’ das Antilhas holandesas e Aruba), a Nova Zelândia (que define de
forma casuística a aplicação a alguns territórios) e a Dinamarca (que frequentemente exclui a
aplicação nas Ilhas Faroé e na Groenlândia). Também a China vem desenvolvendo uma prática
semelhante em relação a Hong Kong e Macau (United Nations, 2003, p. 82/83).
250
Décima quarta lição: aplicação das convenções
542
V. p. ex. o mecanismo de monitorização do Protocolo de Quioto de 1997.
543
V. p. ex. o mecanismo de troca de informações do Protocolo de Montreal sobre as
Subs- tâncias que Empobrecem a Camada de Ozono de 1987.
544
Nesse sentido v. ponto I.9 da Declaração de Manila sobre a Resolução Pacífica de
Con- flitos (Resolução da AGNU 37/10 de 1982), que expressamente recomenda aos Estados que
con- siderem a introdução desse tipo de cláusulas nas convenções.
545
A norma refere Estado apenas porque o objeto da CV69 são os tratados entre
Estados. Assim, abstraindo dessa limitação, poder-se-á estender a noção aos sujeitos que não
sejam parte.
251
Rui Miguel Marrana
252
Décima quarta lição: aplicação das convenções
548
Um exemplo marcante é o das regras relativas ao direito da guerra (nomeadamente
as Convenções da Haia de 1899 e 1907) que o Tribunal de Nuremberga considerou tratar-se de
cos- tume (Aust, 2004, pp. 210-2011).
549
A CDI, aquando da discussão da matéria entendeu ser desnecessário incluir
disposições específicas para as situações erga omnes, por as integrar no regime do art. 38.º
(Aust, 2004, p. 209).
550
É o caso de Svalbad (zona desmilitarizada pelo tratado de 1920) e do espaço extra a-
tmosférico. Subsistem até aos nossos dias diversas zonas desmilitarizadas (DMZ): Ilhas gregas de
Chios, Icaria e Mytilene (Tratado de Lausanne de 1923), Ilhas Aland (Convenção de Aland de
1921), Antártica (Tratado de 1959), fronteiras de Ceuta e Melilla (de facto), fronteira Servo-
kossovar (Acordo de Kumanovo de 1999), linha de fronteira das Coreias (Armistício de 1953),
fronteira Ira- que-Kuwait (Resolução 689 CSNU de 1991), península do Sinai (Tratado de Paz
Egipto-Israel de 1979), Chipre (Resolução 186 CSNU de 1964).
551
É o caso do Canal do Suez e da passagem nos estreitos do Mar Negro e de Magalhães.
552
O caso mais recente será o do Tratado do Antártico de 1959 que estabelece um
regime para a área a sul dos 60o de latitude.
253
Rui Miguel Marrana
4. Conflitos de normas
Na aplicação das convenções surge com frequência o problema dos
conflitos de normas, ou seja, na sua aplicação é detectada uma
incompa- tibilidade com outras normas potencialmente aplicáveis à
mesma situa-
ção.
Em termos gerais, os conflitos de normas podem solucionar-se
atra- vés de métodos objectivos (as chamadas regras de conflitos, que
existem em todas as ordens jurídicas, ainda que por referência
subsidiária aos princípios gerais de direito) ou subjectivos (não
questionando a validade dos atos, mas tão só, determinando a
prioridade relativa).
O problema do conflito tem no entanto de analisar-se distinta-
mente, conforme se trate de conflitos entre normas internacionais e
nor- mas de direito interno, ou exclusivamente entre normas
internacionais.
4.1. Conflito entre normas de direito internacional e normas
de direito interno
Esta questão foi já previamente analisada na primeira parte da
ma- téria, no tocante à hierarquia do direito internacional e direito
interno, para a qual se remete (p. 61 ss.).
Recorda-se no entanto, aquela que é a ideia geral: fundamental-
mente por força do princípio do pacta sunt servanda reconhece-se a pri-
mazia geral das regras internacionais sobre as regras internas. Há uma
convergência das correntes doutrinais (mesmo para as correntes doutri-
nais próximas do voluntarismo) e jurisprudenciais no sentido de aceitar
que os estados têm obrigação de conformar o seu direito interno em
ter- mos de não prejudicarem o cumprimento das suas obrigações
internaci- onais, princípio aliás expresso no art. 27.º CV69 e do qual
resulta essa primazia (ainda que relativizada pelas consequências de um
eventual in- cumprimento dessa obrigação: a mera aplicação do regime
da responsa- bilidade internacional Conflito entre normas convencionais
sucessivas).
254
Décima quarta lição: aplicação das convenções
553
Cf. p. ex art. 42.º/2 §2 do TUE (que impõe a compatibilidade com a NATO). Existem
também declarações de compatibilidade gerais (que expressamente determinam a não
afectação de obrigações convencionais anteriores). V. nomeadamente o art. 30.º da United
Nations Conven- tion on the Assignment of Receivables in International Trade, de 2001, ou o art.
90.º da United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods, de 1980.
255
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Identifique as principais excepções ao princípio da relatividade das
con- venções internacionais;
2. Qual o regime supletivo da CV69 para o conflito de regras convencio-
nais sucessivas?
B. Questões directas
1. Refira-se às exigências típicas das ordens internas dos Estados para o
início de execução das convenções internacionais;
2. Diga o que entende por boa-fé na execução das convenções internaci-
onais;
3. Identifique as técnicas convencionais destinadas a facilitar o controlo
da execução das convenções internacionais;
4. Justifique a não retroactividade da aplicação das convenções internaci-
onais;
5. Explique qual o regime de aplicação territorial das convenções
interna- cionais;
6. Identifique as causas de não execução das convenções internacionais;
7. Refira-se às garantias de execução das convenções internacionais;
8. Diga o que entende por relatividade dos efeitos das convenções inter-
nacionais;
256
Décima quarta lição: aplicação das convenções
Bibliografia de referência #
Leituras recomendadas
Recursos on line a explorar
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – 4 aulas (em inglês)
sobre a aplicação das convenções:
[The binding character of treaties - 8:05]:
https://www.youtube.com/watch?v=pNJJEvo_HUU
[Conflicting Obligations I - 9:10]:
https://www.youtube.com/watch?v=h6xkDC5wvgE
[Conflicting obligations II - 6:50]:
https://www.youtube.com/watch?v=8TfR9xVHhj0
[Performing international obligations - 9:51]:
https://www.youtube.com/watch?v=fqX6qdp9olc
257
XV Lição
Convenções internacionais: suspensão e
cessação da vigência
A. Objetivo
Nesta lição analisaremos as circunstâncias (e os termos) em que a
aplicação das convenções internacionais é suspensa ou chega ao fim.
Na prática o âmbito dos regimes da suspensão e cessação da
vigên- cia sobrepõe-se, já que aquela surge como um versão
desagravada desta, e devendo, portanto, preferir-se (se a alternativa
existir).
Tanto a suspensão como a cessação podem estar previstas (expli-
cita o implicitamente) ou surgirem a título incidental. Estes circunstanci-
alismos colocam diferentes exigências: havendo previsão trata-se
apenas de conferir a correcta aplicação do regime, ao passo que na
situação in- versa mostra-se necessário determinar em que
circunstâncias se admite e quais as consequências.
Começaremos por distinguir em abstracto as causas de cessação (e
suspensão) da vigência das causas de nulidade apenas por uma questão
metodológica e pedagógica.
259
Rui Miguel Marrana
554
Note-se que apesar destas diferenças das figuras da nulidade e da cessação da
vigência, elas partilham algumas regras comuns, nomeadamente quanto à legitimidade da sua
invocação (cf. art. 45.º CV69) e ao processo que devem seguir (art. os 65.º ss.) – para além do
facto de a cessação da vigência ser um dos efeitos da nulidade (cf. p. 236 ss.).
260
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
555
Tanto a denúncia como o recesso são fundamentalmente atos unilaterais: não exigem
aceitação ou aprovação das restantes partes e em regra exigem apenas a notificação das partes
(Helfer, 2005).
556
O termo recesso, em língua portuguesa, tem uma utilização pouco comum e por isso
não evidencia a natureza do conceito. Talvez por isso se tenha preferido na tradução da CV69 o
termo retirada que é também o mais próximo dos termos utilizados nas versões oficiais
(withdrawal em inglês, retraite em francês). Anteriormente utilizava-se, todavia, o termo
recesso.
557
A doutrina não tem a distinção por obrigatória, usando por vezes os termos como
equi- valentes - a distinção surge, no entanto, em Anthony Aust (2004, p. 224). Nesse sentido v.
United
261
Rui Miguel Marrana
Nations (2003, p. 109). Também na prática convencional se podem encontrar casos em que os
termos são usados como meros equivalentes. V. nomeadamente o art. 15.º do Protocolo
Faculta- tivo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Venda de Crianças, Prostituição
Infantil e Pornografia Infantil, de 2000 que usa o termo denúncia para efeitos de recesso.
558
Por todos, v. o disposto no art. 70.º/2 CV69. Um exemplo de denúncia de tratado mul-
tilateral pode encontrar-se na Convenção de Montreux, de 1936 relativa ao regime dos estreitos.
559
A título de exemplo, v. o cit. art. 15.º do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança Relativo à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, de
2000, ou o art. 20.º da Convenção sobre a Proibição da Utilização, Armazenamento, Produção e
Transferência de Minas Antipessoais e sobre a sua Destruição, de 1997.
560
Subsiste, no âmbito do regime da denúncia um debate doutrinal sobre a possibilidade
da denúncia parcial, em especial da denúncia de protocolos, pretendendo-se a manutenção da
vigência da convenção que esses protocolos vieram desenvolver, havendo quem admita essa de-
núncia parcial e quem considere que a denúncia de um protocolo implica a denúncia da conven-
ção original (Benoît-Rohmer & Klebes, 2005, p. 108).
561
Cf. o corpo do n.º 1 do art. 56.º CV69. Os EUA (que, como temos referido repetida-
mente, não se vincularam a esta convenção) defendem uma posição particular nesta matéria,
en- tendendo existir um reconhecimento internacional de que os Estados podem embora isso
não constitua um direito (the power, though not the right) pôr fim a um tratado, desde que
suportem os eventuais danos daí resultantes e bem assim, outras consequências especiais
(Congressional Research Service, 2001, p. 201).
562
O princípio geral da ilicitude da denúncia ou do recesso quando não previstos foi rea-
firmado no ac. do TIJ, de 25.09.1997, relativo ao projecto Gabcokovo-Nagymaros. Em todo o
caso, permanece grande incerteza quanto os limites do regime. Em algumas matérias parece
que essa ilicitude se deve ter por inultrapassável, nomeadamente nos tratados de paz ou de
rectificação de fronteiras. Na doutrina, todavia, não deixam de surgir vozes que pretendem
contrariar ou, pelo menos, limitar esta situação, defendendo que, fora a proibição expressa da
denúncia ou recesso, estas devem admitir-se por força de uma suposta regra consuetudinária. A
experiência mostra que a manutenção de elevados níveis de pressão no sentido do recesso
acabam por obter resul- tado, nomeadamente em relação ao abandono de organizações
internacionais. Recordem-se nesse sentido, alguns exemplos significativos: o recesso da Coreia
do Norte em relação ao PIDCP de 16.12.1966, em 1997, o recesso da Indonésia das NU, em
1965, ou da Checoslováquia, Hungria e Polónia da UNESCO nos anos 50, ou da União Soviética e
de oito dos seus aliados do leste euro- peu da OMS (Helfer, 2005).
262
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
563
O direito de uma parte unilateralmente pôr fim às suas obrigações convencionais im-
plica que se ponha em causa o nível de cumprimento dessas obrigações e aí reside o maior des-
conforto da doutrina no tratamento da questão, a qual reserva, por isso, uma abordagem super-
ficial à matéria (Helfer, 2005).
564
O direito de denunciar nos tratados que formam alianças políticas ou militares pre-
sume-se. Também os tratados de integração parecem dever beneficiar da mesma presunção,
em- bora aí a doutrina não seja tão clara. A justificação é fundamentalmente a mesma em todos
os casos: os Estados têm de manter a possibilidade de reassumir quaisquer competências
soberanas.
565
Subsiste uma questão na doutrina cuja resposta não parece uniforme. Trata-se de sa-
ber se existe ou um direito de denúncia ou recesso, conforme o caso, antes da entrada em vigor.
Em nossa opinião, o princípio do pacta sunt servanda aponta no sentido inverso: assumido o
com- promisso e sendo perfeita a declaração negocial nesse sentido, o momento da entrada em
vigor não parece poder afectar esse compromisso. Alguma doutrina defende, todavia, que o
consenti- mento apenas produz efeitos com a entrada em vigor, pelo que pode ser alterado ou
retirado antes desse momento (Aust, 2004, p. 95).
263
Rui Miguel Marrana
566
Este processo é o mesmo que foi anteriormente referido a propósito da anulação (cf.
pp. 234 ss.).
567
Tal como referimos anteriormente (cf. p. 134), o regime do exceptio apenas mantém
plenamente o seu sentido na presença de tratados-contrato (uma vez que se trata de um regime
próprio à teoria dos contratos), tornando-se a sua aplicação tanto mais difícil quanto mais nos
afastemos dessa figura (na direcção de tratados-lei ou tratados-constituição).
264
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
568
Este regime tornou-se progressivamente pacífico, sendo que mesmo os EUA estabele-
ceram internamente orientações que coincidem quase literalmente com as disposições da CV69
(Congressional Research Service, 2001, pp. 194-195).
265
Rui Miguel Marrana
569
É este o sentido que deve retirar-se da expressão transformação radical da natureza
das obrigações. Trata-se de uma tradução infeliz (no uso do termo ‘natureza’) que advém da tra-
dução inicialmente adiantada pelo prof. Gonçalves Pereira e que foi reproduzida na tradução ofi-
cial publicada no DR. Essa infelicidade decorre não apenas da infidelidade aos termos originais,
mas ainda por ter tornado menos evidente o sentido da norma. Assim, a versão francesa refere
transformer radicalement la portée des obligations, ao passo que a versão inglesa fala em
radically transform the extend of obligations e a versão espanhola fala de modificar radicalmente
el alcance de las obligaciones. De facto, o termo francês portée, o termo inglês extend ou o
termo castelhano alcance não podem traduzir-se para natureza.
266
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
570
A título de exemplo v. art. 15.º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime
de Genocídio, de 9.12.1948.
267
Rui Miguel Marrana
268
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
269
Rui Miguel Marrana
[art. 3.º]), remetendo para a intenção das partes 579 (em conformidade
com os artigos 31.º e 32.º CV69 e tendo em conta a natureza e
amplitude do conflito em causa), para as disposições que os próprios
tratados pos- sam conter sobre o assunto e bem assim, para a natureza
do próprio tra- tado (cujo objeto ou fim podem mesmo impor a
permanência da sua aplicação em caso de conflito, nomeadamente se a
situação de conflito constitui o escopo deste580). Ressalva todavia os
efeitos decorrentes de eventuais decisões do Conselho de Segurança NU
(art. 16.º)581 e os efei- tos próprios de eventuais acordos entre as partes
ou dos regimes da vio- lação substancial, impossibilidade superveniente
ou alteração fundamen- tal das circunstâncias (art. 18.º)582.
579
O Departamento de Estado norte-americano reagiu a esta posição de base através de
uma posição oficial em 2005 (Cummins S. J., 2005, pp. 222, ss.). Nele a administração americana
considera ser problemático o facto de se pretender fazer depender o efeito dos conflitos da von-
tade das partes, por normalmente estas não ponderarem essa eventualidade aquando da
negoci- ação das convenções. Defendem, por isso, o recurso a outros elementos, como sejam o
objeto e a finalidade da convenção, o carácter próprio das regras em causa e as circunstâncias
relativas ao conflito.
580
O relator especial Ian Brownlie insistiu desde o início na elaboração de uma lista de
matérias cuja natureza impõe a continuidade da aplicação dos tratados em caso de conflito (a
qual figura no anexo do projecto final), que comporta ainda os tratados que criem situações
objectivas, os tratados de amizade, comércio e navegação, os tratados relativos à protecção dos
direitos hu- manos e do ambiente, os tratados que regulam cursos de águas internacionais, os
tratados multi- laterais normativos, os tratados relativos à resolução pacífica de conflitos,
incluindo a arbitragem e ainda os tratados relativos às relações diplomáticas e consulares. No
estudo do Secretariado seguia-se um método distinto, identificando as matérias em que a
subsistência dos tratados é muito provável, as matérias em que essa subsistência é provável e
aquelas em que tenderão a surgir dificuldades (CDI/ILC, 2005). Entre este critério e aquele que
inspira o art. 7.º do projecto, são assinaláveis algumas diferenças, não sendo possível uma mera
sobreposição das matérias. Assim, p. ex. os tratados relativos à protecção ambiental ou os
tratados de amizade, são como acabamos de ver incluídos nesta norma ao passo que, no
estudo do secretariado eram apresen- tados na terceira categoria (daquelas convenções,
portanto, cuja subsistência tem uma probabili- dade variável ou controversa).
Sobre a matéria, a administração americana veio a insistir na necessidade de ser devida-
mente acolhida a posição defendida pelo TIJ no parecer relativo à licitude do uso de armas nucle-
ares, segundo a qual embora se aceite que determinados princípios ambientais e alguns direitos
humanos não deixam de aplicar-se em caso de conflito armado, essa aplicação decorre de uma
regra especial relativa à conduta das hostilidades. Simultaneamente a administração americana
considerou inadequada a utilização de um elenco de matérias em relação às quais se possa assu-
mir um princípio de continuidade (Cummins S. J., 2005, p. 223).
581
O princípio segundo o qual as operações conduzidas ao abrigo do cap. VII da CNU sus-
pendem ou fazem cessar a vigência das convenções incompatíveis com tais operações parece
de- finitivamente adquirido (CDI/ILC, 2005, p. 98).
582
A proximidade destes regimes com o problema dos efeitos dos conflitos sobre as con-
venções é evidente e por vezes difícil de separar com clareza. De qualquer forma subsiste um
elemento prático distintivo essencial: a regra em relação aos efeitos dos conflitos tende a ser a
de estes ocorrerem automaticamente (qualquer que seja o âmbito desses mesmos efeitos) ao
passo
270
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
D. Suspensão da vigência
O regime da suspensão da vigência das convenções surge funda-
mentalmente em termos acessórios do regime da cessação da vigência.
Reconhecendo-se na verdade a existência do princípio favor contractus
(da preferência pela manutenção e conclusão das convenções 583), o re-
gime da suspensão da vigência deve, sempre que possível, considerar-se
uma alternativa preferível à cessação da vigência. É nesse enquadra-
mento que surgem as principais causas previstas na CV69. São elas o
con- sentimento (art. 57.º e 58.º) 584, a celebração de uma convenção
posterior (art. 59.º), a violação substancial (art. 60.º), a impossibilidade
superveni- ente (art. 61.º) e a alteração das circunstâncias (art. 62.º).
A única causa de suspensão da vigência não prevista na CV69 pa-
rece ser a eclosão de conflito armado, situação na qual, em regra se sus-
penderá a vigência das convenções multilaterais entre as partes envolvi-
das. Esta regra enfrenta todavia as mesmas limitações que foram referi-
das em relação à cessação de vigência e cujo regime está ainda em aná-
lise.
E. Regime e efeitos
Tal como vimos, a cessação da vigência das convenções pode ocor-
rer nos termos previstos nas próprias convenções e em geral por
consen- timento das partes; mas surge também a título incidental,
dentro do que merecem uma referência especial as situações de
violação substancial (art. 60.º) e de alteração fundamental das
circunstâncias (art. 62.º). Em ambos os casos tratando-se de situações
excepcionais em que a cessa- ção da vigência não é necessária e
depende da invocação pela parte que é vítima (do incumprimento ou
do agravamento das circunstâncias)
que estes regimes também aplicáveis em situações de conflito exigem uma invocação expressa
(CDI/ILC, 2005, p. 98).
583
Este princípio pode ser encontrado nos art.os 55.º, 56.º, 68.º e 74.º CV69, no regime
das reservas, etc.
584
Apesar de o consentimento ser a forma normal de suspensão da vigência, é pouco co-
mum a presença nas convenções de cláusulas que regulem a matéria (United Nations, 2003, p.
108). Parece estar consagrado no costume que não existindo uma proibição expressa da conven-
ção, esta pode ser suspensa temporariamente por acordo apenas entre algumas das partes, se
essa suspensão não afectar o gozo pelas restantes partes dos seus direitos ou o cumprimento
das suas obrigações e se a suspensão não for incompatível com o objeto e fim da convenção
(ibidem, p. 109).
271
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Explique em que circunstâncias cessa ou se suspende a vigência das
convenções internacionais.
B. Questões directas
1. Distinga causas de nulidade de causas de cessação da vigência;
2. Distinga denúncia de recesso;
3. Explique os efeitos que a violação substancial pode ter na vigência de
uma convenção;
4. Distinga impossibilidade superveniente de alteração das circunstâncias;
585
Aparentemente este regime também se aplicará nos casos de denúncia ou recesso
não previstos (United Nations, 2003, p. 112; Congressional Research Service, 2001, p. 192).
586
Assim, aplicando esta regra da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º, o tribunal arbitral encar-
regado de apreciar o litígio entre a França e a Nova Zelândia relativo ao Rainbow Warrior, deter-
minou que o governo francês não estava exonerado das obrigações decorrentes dos acordos es-
tabelecidos com o governo neo-zelandês (troca de notas de 9 de julho de 1986), embora o dito
acordo já houvesse expirado (United Nations, 1994, pp. 215-284). No mesmo sentido, o TIJ no
seu acórdão de 3.02.1994 relativo ao diferendo territorial entre a Líbia e o Tchad afirma que
estabe- lecida a fronteira por uma convenção, aquela permanece independentemente da
cessação da vi- gência da mesma (CIJ/ICJ, 1998, p. 77).
272
Décima quinta lição: suspensão e cessação da vigência das convenções
Bibliografia de referência #
Leituras recomendadas
Recursos on line a explorar
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – aula (em inglês)
sobre a cessação e suspensão da vigência:
[Termination, Withdrawal and Suspension of Treaties - 7:10]:
https://www.youtube.com/watch?v=gysATCTUXeo
273
XVI Lição
Princípios gerais de
direito
A. Objetivo
Concluímos na lição anterior o estudo dos tratados. Nesta lição
ana- lisaremos outra fonte de direito internacional (do elenco
apresentado no n.º 1 do art. 38.º ETIJ). Trata-se de matéria muito
relevante, já que os tribunais recorrem frequentemente aos princípios
gerais de direito para fundamentarem as suas decisões. Todavia, não
sendo evidentes os seus contornos, tornam-se menos acessíveis aos
estudantes (marcados pela tentação constante de reduzir o direito às
regras escritas e em especial à lei). Procuraremos, por isso, analisá-la
com o pormenor necessário e evi- denciando os critérios funcionais que
permitam uma perceção ade- quada.
B. Regime
1. Princípios gerais reconhecidos pelas nações civilizadas
O artigo 38.º ETIJ determina que, na apreciação das causas que lhe
sejam submetidas, o tribunal aplique587, entre outras fontes, os
princípios
gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas.
A redacção não pode deixar de causar estranheza, até porque a
afir- mação da existência de nações civilizadas supõe o reconhecimento
da existência de nações que não o são. Ela explica-se todavia por se
tratar da reposição do texto do ETPJI, elaborado pelo Comité de juristas
da SdN
587
A previsão dos princípios gerais de direito no quadro das fontes de direito
internacional mereceu importantes reservas da parte dos voluntaristas, à época muito
influentes. De tal forma que, apesar de ser uma fonte aplicada desde há séculos na resolução de
conflitos por via judicial, surgiu e subsistiu um entendimento que a sua consagração apenas valia
para o próprio TPJI - e posteriormente para o TIJ que lhe sucedeu. Esse entendimento parece
todavia ultrapassado (Ford, 1994, p. 64); v. tb. as referências à aplicação dos princípios gerais de
direito pelo TJCE e pelas instâncias arbitrais em Dominique Carreau (1999, p. 298 ss.). Outros
autores confundiam-nos com outras fontes, em especial os costumes e as convenções (Nguyen
Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 345).
275
Rui Miguel Marrana
2. O conceito
O problema maior dos princípios gerais de direito não é todavia o
dos termos591 em que estes vêm referidos no ETIJ. Ele decorre da fluidez
do próprio conceito. A doutrina assinala, aliás, com muita frequência a
grande diversidade das acepções em que a expressão é utilizada. Essa
di- versidade, sendo real, é substancialmente agravada por diferentes
cir-
588
O ETIJ muito embora constitua formalmente uma convenção distinta do ETPJI repete
ipsis verbis os termos desta. Aconteceu que, aquando das negociações relativas à criação da
ONU, no final da II GM, pretendia-se a continuação do TPJI, mas isso implicava uma modificação
do seu Estatuto, adequando-o à nova organização e bem assim uma decisão relativa à nomeação
de juí- zes. Ora, tais passos teriam de fazer-se com intervenção das partes, incluindo portanto a
Alema- nha e a Itália, Estados cuja situação era ainda indefinida em alguns aspectos e cujos
representan- tes os aliados não estavam ainda dispostos a negociar (havia sido decido excluir
temporariamente tais Estados de toda a cooperação internacional). Decidiu-se, por isso, criar
formalmente um novo tribunal, o qual resultou todavia de um estatuto idêntico (o art. 92.º CNU
determinava aliás que o novo tribunal funcionasse de acordo com um Estatuto estabelecido na
base do estatuto anterior). Este veio ainda a sediar-se no mesmo edifício (o Palácio da Paz, na
Haia) e prosseguiu as práticas anteriormente adoptadas - incluindo a assunção da jurisprudência
como sendo sua (Nguyen Quoc, Daillier, & Pellet, 1999, p. 853).
589
Vejam-se a título de exemplo, os preâmbulos das Convenções da Haia de 1899 e 1907
cujo excerto é referido infra na nota 597.
590
Embora matizada – e defensável na sua essência – a expressão não deixa de assentar
numa presunção que não apenas é intolerável (na medida em que introduz uma estratificação)
como nem sequer beneficia de apoio histórico. Na verdade, foi no seio da civilização europeia
que eclodiram as duas guerras mundiais e, mesmo já na era contemporânea, o continente
europeu regista algumas das mais graves manifestações de intolerância, incluindo a prática de
crimes como o genocídio. A civilização europeia não parece, assim, constituir propriamente
garantia do império do direito.
Trata-se efectivamente de uma relíquia do chauvinismo europeu, como referiu o juiz
Am- moun na sua declaração de voto ao acórdão de 20.02.1969 do TIJ, relativo à Plataforma
Continen- tal do Mar do Norte (CIJ/ICJ, 1969, p. 133 ss.).
591
A menor clareza dos termos resulta também do esforço de conciliação entre as
corren- tes positivisas e jusnaturalistas (Riedel, 1991, p. 58 ss.).
276
Décima sexta lição: princípios gerais de direito
592
Esta perspetiva positivista permanece até aos nossos dias em importantes sectores da
doutrina americana (Berman M. N., 2017).
593
Em sentido muito próximo v. Shaw (2008, p. 99) e Christina Voigt (2008, p. 6).
594
Nas discussões havidas sobre a proposta de redacção do art. 38º apresentada pelo Ba-
rão Descampes, foi a referência aos princípios gerais de direito que maior debate levantou no
comité de juristas e depois na Assembleia da SdN (Fitzmaurice, 2016, pp. 5, 8). Naquele comité
alguns juristas concebiam os princípios gerais de direito (internacional) como decorrendo dos
princípios constantes nas ordem interna dos Estados – posição voluntarista que prevaleceu –
enquanto outros os entendiam como princípios decorrentes da ordem natural ou da razão
humana (Weil, 1996, p. 144).
Estas discussões não significam, todavia, que o reconhecimento dos princípios gerais de
direito tenha ocorrido com a introdução do art. 38.º do ETPJI. De facto, as instâncias
internacionais aplicam esta fonte desde a Idade Média (Verdross A. , Les principes généraux du
droit applicables aux rapports internationaux, 1938, p. 45). Os debates eram apenas sinal da
afirmação do positivismo que tendencialmente reduzia o direito internacional às convenções e
costume (ibidem).
595
O TIJ tem-se mostrado comedido na invocação de princípios gerais enquanto funda-
mento das suas decisões (situação diversa das declarações anexas juntas pelos seus membros)
277
Rui Miguel Marrana
278
Décima sexta lição: princípios gerais de direito
direito natural (Ford, 1994, p. 65)601. Essa concepção não era todavia
unâ- nime (o positivismo dominava aliás, por essa altura),
permanecendo con- troversa.
2.4. Critério de determinação dos princípios de direito interna-
cional
Face à fluidez das concepções e à confusão entre princípios gerais
e princípios de direito internacional convém assinalarmos os critérios de
determinação.
A concepção dominante dos princípios gerais de direito previstos
no art. 38.º ETIJ (enquanto fonte de direito internacional, portanto) vai
no sentido de um conjunto de princípios comuns 602 aos grandes siste-
mas603 de direito contemporâneo que acabam por ser transpostos604
para a ordem internacional. Aqui a legitimidade dos princípios radica no
seu prévio reconhecimento no foro domestico (Voigt C. , 2008, p. 7).
Repare-se todavia que, a atermo-nos nessa concepção, não
poderíamos considerar como princípios a coexistência pacífica, a não
ingerência, o respeito pela integridade territorial e a soberania, ou a não
agressão. De facto nenhum desses princípios é detectável enquanto tal
na ordem interna dos grandes sitemas contemporâneos. E não parece
601
A frequente ausência de regras positivas ou consuetudinárias no início da formação
do direito internacional foi muito frequentemente suprida pela referência aos princípios
reconheci- dos nas ordens internas dos Estados que, nessa qualidade, se lhe impunham portanto
(Peoples, 2005). Acontece que a própria origem de tais princípios no plano interno era
frequentemente considerada como sendo de direito natural, aí radicando portanto a confusão
entre as perspecti- vas.
602
Tal como explica Christopher Ford, a aferição do carácter geral do princípio é
efectuável segundo um processo comparatista ou categoricista. O primeiro impõe o
levantamento mais ou menos exaustivo das diferentes ordens jurídicas no sentido de nelas
aferir da existência do pretendido princípio. O exemplo mais evidente desse esforço terá sido
levado a cabo por Portugal que, em defesa dos pretendidos direitos de passagem em território
indiano se refere a sessenta e quatro sistemas. O segundo método seria o de fundar a
generalidade do princípio na sua raciona- lidade, ou seja na evidência dos seus postulados (Ford,
1994, p. 65 ss.). O processo categoricista não deixa de se aproximar da perspetiva que identifica
os princípios gerais com o direito natural.
603
Segundo René David (1998), seriam o sistema romano-germânico, o sistema da com-
mon law, os direitos socialistas, os direitos religiosos (islâmico, budista, indu), etc. O desapareci-
mento dos direitos socialistas e a fragilidade dos direitos religiosos parece autorizar uma perspe-
ctiva simplificada. Serão princípios comuns aos grandes sistemas de direito contemporâneo
aque- les que encontremos nos sistemas romano-germânico e da common law desde que não
exclusi- vamente ocidentais e não sejam abertamente contrariados por outros sistemas.
604
Louis Le Fur analisando o disposto no art. 38.º/1 c) ETPJI assinalava na primeira
metade do século XX a falta de clareza do conteúdo da norma e as diferentes acepções
doutrinais para concluir (apoiando-se na jurisprudência internacional) que aquela disposição
assinalava apenas o facto de que qualquer princípio geralmente reconhecido pelas nações
civilizadas pode ser imposto a qualquer uma delas que o não contrarie numa situação particular
(Le Fur, 1939, pp. 246-247).
280
Décima sexta lição: princípios gerais de direito
605
Sobre a matéria, v. Jeffrey J. Rachlinski (2005).
606
Nesse sentido, Caleb Nelson (2006), afirma que o conceito de princípios gerais ou di-
reito geral se refere a regras que não se situam sob o controlo de uma única jurisdição, mas,
pelo contrário, reflectem princípios ou práticas comuns a diferentes jurisdições.
607
Em termos técnicos é frequente assinalar-se que - ao contrário da norma jurídica que
é composta por uma hipótese (que enquadra ou limita em termos abstractos as situações a que
a regra se dirige) e uma estatuição (que corresponde à consequência) - o princípio, sendo de
apli- cação geral, não tem hipótese, A título de ilustrações recorde-se o princípio do pacta sunt
ser- vanda (de aplicação geral a todos os contratos, incluindo nestes as convenções
internacionais – cf. art. 27.º CV69) e a norma (excepcional) da excepção do incumprimento
(exceptio non adimpleti contractus) que autoriza portanto a cessação da vigência de uma
convenção bilateral como con- sequência da violação substancial das suas regras pela outra
parte (art. 60.º CV69).
281
Rui Miguel Marrana
608
Assim, por exemplo nos EUA, o Restatment (Thirth) of Foreign Relations caracteriza os
princípios gerais de direito como fonte secundária: estes servem para suprir lacunas ( gap fillers),
aplicando-se apenas quando não existam regras convencionais ou consuetudinárias (Peoples,
2005). No mesmo sentido, no direito australiano – utilizando praticamente os mesmos termos –
sublinha-se a função de integração de lacunas (gap-filling role), sempre que a aplicação de
outras fontes não evidencie uma resposta clara. Sublinha-se, por outro lado, que a formulação
dos prin- cípios gerais por ser tão abrangente e flexível, pode não fornecer uma orientação clara
(The Law Society of New South Wales, 2010, p. 35). V. tb. Shaw (2008, p. 98).
609
Verdross (1938, p. 49) afirmava que, sendo aceite pelas ordens internas dos Estados,
se pode presumir que um princípio é obrigatório no plano internacional, desde que transponível.
610
Por outro lado, existem princípios gerais de direito que se situam na base do direito
internacional convencional e consuetudinário: sem eles o direito internacional não lograria
consti- tuir um sistema unitário. Porque o direito positivo das gentes contido nos costumes e nas
conven- ções é composto por uma quantidade de regras e de precedentes isolados que, para
funcionarem
como sistema, necessitam de princípios directores (Verdross A. , 1938, pp. 49-50).
282
Décima sexta lição: princípios gerais de direito
Questões de revisão
A. Questões gerais
1. Diga o que entende por princípio geral de direito e distinga esse con-
ceito de princípio geral de direito internacional (enquanto fonte de direito
inter- nacional).
B. Questões directas
1. Justifique a expressão utilizada no art. 38º/1 c) do ETIJ;
2. Refira-se às diversas acepções utilizadas para os princípios gerais de di-
reito;
3. Identifique e explique a acepção correntemente acolhida.
Bibliografia de referência
VERDROSS, Alfred von. 1935 Les principes généraux du droit dans la
jurisprudence internationale. Académie de droit international de La Haye, vol
52, pp. 191-252.
611
Não é totalmente linear o procedimento a seguir para identificar os princípios gerais,
quer nas ordens internas quer no plano internacional. Assim, o primeiro expediente a seguir será
a consulta das decisões dos tribunais (internacionais e também nacionais). Seguidamente estes
poderão procurar-se em tratados (dada a tendência de codificação ou de referenciação). As co-
lectâneas de decisões judiciais internas poderão também fornecer elementos válidos, na medida
em que os princípios gerais são muito frequentemente invocados nos tribunais nacionais
(Peoples, 2005).
612
Para uma análise de conjunto mais desenvolvida v. Shaw (2008, p. 100 ss.).
283
Rui Miguel Marrana
Leituras recomendadas
VOIGT, Christina. 2008. The Role of General Principles in International
Law and their Relationship to Treaty Law, Retfærd Årgang 31 2008 NR. 2/121,
pp. 3- 25.
284
XVII Lição
Fontes acessórias: jurisprudência, doutrina e
equidade
A. Objetivo
B. Jurisprudência
1. Regime do ETIJ
Refere o art. 38.º ETIJ que [o] Tribunal, cuja função é decidir em
conformidade com o direito internacional as controvérsias que lhe forem
submetidas, aplicará [...], com ressalva das disposições do artigo 59.º613,
as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas mais qualificados das
diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras
de
direito.
613
Esta norma especifica que as decisões judiciais apenas têm efeitos obrigatórios inter
partes.
285
Rui Miguel Marrana
C. Doutrina
1. Regime do ETIJ
2. Noção e âmbito da doutrina internacional
3. O uso de referências doutrinais nas decisões judiciais
internacionais
D. Equidade
A equidade e os princípios equitativos são invocados com muita
frequência e têm uma grande relevância em domínios tão diversos e
igualmente relevantes como o respeito pelos direitos humanos, o funci -
onamento da justiça internacional, o direito do mar, o direito internaci -
onal económico e especialmente o direito relativo à indemnização em
caso de nacionalização. A própria Carta das Nações Unidas menciona a
equidade no artigo 73.º614 (Chemillier-Gendreau, 1981-1982, p.
509/510).
1. Regime do ETIJ
O nº 2 do art. 38.º ETIJ determina que [o disposto no nº 1 que
identifica as demais fontes] não prejudicará a faculdade do Tribunal de
decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes assim convierem.
Limita portanto as decisões baseadas na equidade aos casos em que as
partes expressamente o autorizem. Este requisito nunca foi cumprido,
ou seja, nunca o TPJI ou o TIJ615 decidiram baseando-se em juízos
de
equidade.
614
São numerosas as convenções contemporâneas que remetem para a equidade. Assim,
no plano universal, vejam-se os tratados que resultam da DUDH – ambos de 16.12.1966, o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos [art. 14.º] e o Pacto Internacional sobre os Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, [art. 7.º e 11.º/2b)] – a Convenção de Montego Bay sobre o
Direito do Mar, de 10.12.1982 [art. 69.º, 70.º, 74.º, 76.º, 82.º, 83.º, 140.º, 144.º, 155,º, 160.º,
161.º, 162.º,
266. º, 269.º, 274.º] ou a Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, de 14.12.1974
[art. 10.º, 14.º, 26.º, 28.º e 29.º].
615
Não obstante, a faculdade (extrarodinária) de decidir segundo juízos de equidade
(afastando, se necessário, o direito positivo) tem sido atribuída recorrentemente a instâncias
arbitrais). São assinaláveis (Carreau & Marrella, 2012, p. 358) os casos Chaco – cuja sentença
arbitral de 10.10.1932, foi proferida pelos presidentes dos EUA, Argentina, Brasil, Perú e Uruguai
establecendo a fronteira entre a Bolívia e o Paraguai decidindo ex aequo et bono (United
Nations, 1950, p. 1817 ss.) –, Pescas no Atlântico Norte de 7.09.1910 (United Nations, 1961, pp.
167-226) e I’m Alone (United Nations, 1950, pp. 1609-1618).
286
Décima sétima lição: fontes acessórias
287
Rui Miguel Marrana
Questões de revisão
A. Questões gerais
1.
B. Questões directas
1. Identifique e classifique as principais origens da jurisprudência
internacional;
2. Identifique e classifique a doutrina internacional;
616
Dominique Carreau e Fabrizio Marrella (2012, p. 357) distinguem aqui um terceiro
âmbito ou sentido da equidade: a integração de lacunas. Trata-se, afinal, de uma consequência
do sentido romano-germânico (a mesma razoabilidade ou equilíbrio que impõe à interpretação
serve como critério último se outro não existir ou concorrer). O recurso à equidade para efeitos
do preenchimento de lacunas pode ser conferido em decisões arbitrais tais como a relativa aos
prejuízos sofridos nas colónias portuguesas (Portugal v. Alemanha) de 31.7.1928 (United
Nations, 1949, pp. 1011-1077).
288
Décima sétima lição: fontes acessórias
Bibliografia de referência
Leituras recomendadas
CARREAU, Dominique, MARRELLA, Fabrizio. 2012. Droit international.
11ème édition, Paris: Pedone, pp. 357-362
HILGARD, Mark, BRUDER, Ana Elisa. 2014. Unauthorised Amiable
Compositeur? Dispute Resolution International, Vol 8, No 1, pp. 51-62
289
XVIII Lição
Fontes não previstas: atos unilaterais e atos
concertados
A. Objetivo
A prática estadual conduzida ao longo do século XX veio a acolher
atos susceptíveis de produzirem efeitos jurídicos que extravasam do
elenco das fontes previstas no art. 38.º ETIJ617.
Trata-se de figuras cuja essência pode ser alcançada por referência
ou comparação com as convenções internacionais – já que podem
englobar-se num conceito amplo de convenções imperfeitas (Mengesha,
2014, p. 177 ss.). Assim, os atos unilaterais distinguem-se das con-
venções por não envolverem acordos de vontade, mas consistirem tão-
só na expressão da vontade de um Estado (que se obriga
unilateralmente, portanto, sem que existam acordos de vontades ou
conviviência entre sujeitos na origem das obrigações). Inversamente os
atos concertados assentam ou derivam de acordos de vontades, mas
dos quais as partes não pretendem fazer derivar efeitos jurídicos
vinculativos.
Assim, por referência à noção de convenção internacional vista
anteriormente (cf. p. 124 ss.), aos atos unilaterais falta o elemento
sinalagmático – o acordo (cf. p. 125 ss.) – enquanto que aos atos
concertados falta o carácter vinculativo (cf. p. 132 ss.). De facto, é
perante uma perceção aprofundada destas figuras que aqueles
elementos poderão ser correctamente apreendidos.
617
A doutrina americana (e anglo-saxónica em geral) tem, neste domínio, uma
abordagem que evidencia a profunda diferença nos conceitos entre a common law e o direito
romano- germânico (que os anglo-saxónicos apelidam frequentemente de civil law). Assim,
aquela doutrina atribui às principais fontes de direito internacional – as convenções e o costume
– um carácter legislativo por entender que o conceito se refere à produção normativa através de
procedimentos identificados como sendo adequados à produção de obrigações juridicamente
vinculativas (Shelton, 2008, p. 1). O atributo legislativo no quadro românico-germânico refere-se
à fonte que se caracteriza por ser expressão da vontade da autoridade competente – e nessa
medida não poderemos incluir nele o costume ou as convenções (já que aquele tem natureza
espontânea e estas resulta de acordos de vontade).
O problema reside no facto de na língua inglesa o termo law se referir à lei e ao direito
em geral. E por isso a indicação do carácter legislativo visa primariamente atribuir ou referir a
nature- za jurídica (vinculativa).
291
Rui Miguel Marrana
B. Atos unilaterais
Cf. Aleš Weingerl [Thesis] http://oxford.academia.edu/Ale
%C5%A1Weingerl
1. Noção e justificação
Os atos unilaterais são atos imputáveis a um único618 sujeito de direito
internacional – ou seja, cuja concretização ou perfeição dispensa o
concurso de outra parte (A/CN.4/L.543 p. 4) – através dos quais este
assume obrigações619 juridicamente vinculativas (e, por isso, são fonte
imediata de direito internacional).
A redacção final do primeiro620 princípio orientador aplicável às de-
clarações621 unilaterais dos Estados susceptíveis de criar obrigações
jurídicas refere-se às declarações formuladas publicamente que expri-
mem uma vontade de assumir um compromisso, explicando que estas
podem ter como efeito a criação de obrigações jurídicas. Adianta ainda
que sempre que se reúnam as condições necessárias, o carácter obriga-
tório de tais declarações funda-se na boa-fé; nesse caso, os Estados inte -
ressados poderão tê-las em conta e basear-se nelas; esses Estados
podem exigir o respeito dessas obrigações (CDI/ILC, 2006, p. 169).
No ac. do TIJ de 20.12.1974, relativo aos ensaios nucleares, esta
instância explica bem o assunto: reconhecidamente as declarações
revestindo a forma de atos unilaterais incidindo sobre situações de
618
Cf. infra (p. 287) as referências relativas à unilateralidade.
619
A doutrina salienta que, na verdade, os atos unilaterais, para além da assumpção de
compromissos podem ter ainda em vista o exercício de direitos soberanos - como sejam as
delcarações relativas às águas territoriais - ou ainda afirmação de uma posição própria - como
acontece no reconhecimento ou protesto (Dupuy P.-M. , 2000, p. 20). Este conceito mais
alargado não é o que foi adoptado pela CDI por questões práticas: o que é relevante são as
declarações visando a assumpção de compromissos. Fora disso encontramos essencialmente
atos unilaterais não autónomos (cf. infra p. 295 ss.).
620
O primeiro princípio tinha em vista essencialmente oferecer uma definição de acto
unilateral (stricto sensu, ou seja aquilo que adiante referiremos como atos unilaterais autónomos
– cf. infra p. 291 ss.) indicando o seu fundamento, refectindo a jurisprudência sobre o assunto –
ac. 20.12.1974, Ensaios nucleares e ac. 22.12.1986, Diferendo fronteiriço (CDI/ILC, 2006, p. 170).
621
O relator especial assumiu que todos os atos unilaterais são expressos através de
declarações e, por isso, passou a usar os termos como equivalentes (Salvador, 2007, pág. 469).
292
Décima oitava lição: fontes não previstas
622
Há mesmo autores que defendem tratar-se da forma mais utilizada de criação de
obrigações do direito internacional público contemporâneo (Salvador, 2007, pág. 455).
623
Para além do caso francês (ter a França assumido publica e repetidamente a
obrigação de cessar os ensaios nucleares – por declarações públicas em 8 e 11 de Junho, 25 de
Julho, 16 de Agosto, 25 de Setembro e 11 de Outubro de 1974, no caso que vimos referindo) e
do caso norueguês (a declaração do Ministro Ihlen a que voltaremos adiante na nota 632), são
ainda exemplos a reter o da declaração egípcia de 24 de abril de 1957 relativa aos acordos sobre
a gestão do canal do Suez ou o do anúncio de 31 de Julho de 1988 do Rei Hussein da Jordânia
sobre a ruptura dos laços jurídicos entre este Estado e a Cisjordânia (CDI/ILC, 2006, p. 170).
293
Rui Miguel Marrana
2. Caracterização
O caminho a seguir para responder à questão com que
terminamos o ponto anterior – a distinção entre atos unilaterais (fontes
de obriga- ções juridicas vinculativas) e outros atos (políticos, em geral,
não vincu- lativos) – será o da caracterização dos atos jurídicos
unilaterais. Essa caracterização tem evoluído. A doutrina
tradicionalmente referia apenas três (tipicidade, imputabilidade e
publicidade624) mas essa grelha mos- trou-se insuficiente, vindo a
evoluir. Passemos, pois, em revista o elenco das características que vêm
sendo referidas e estudadas nos últimos anos.
2.1. Unilateralidade
A primeira característica poderia considerar-se implícita, na
medida em que é essencial à própria noção e, por isso, foi já referida: os
atos unilaterais são atos imputáveis a um único sujeito, ou seja, concre-
tização ou perfeição dispensa o concurso de outra parte.
Essa unilateralidade não afasta a eventual prática conjugada (os
chamados atos unilaterais conjuntos): os atos unilaterais podem ser
praticados por mais do que um Estado, mas sem que (entre os Estados
em causa) exista um acordo de vontades (um sinalagma). Neste caso
todos produzem a mesma declaração no mesmo sentido. Ou, como,
referia o Relator do grupo de trabalho sobre a matéria, não se excluem
os atos “colectivos” ou “conjuntos”, na medida em que sejam realizados
por diversos Estados que não ajam no sentido da regulação das suas
relações mútuas, mas pretendendo exprimir em simultâneo ou paralelo,
enquanto bloco unitário, uma mesma vontade de produzir determinados
efeitos jurídicos, sem que os outros sujeitos ou “partes” tenham de
convergir em termos de aceitação ou reciprocidade (A/CN.4/L.543, p. 4).
2.2. Tipicidade
A doutrina, não querendo afastar-se totalmente das exigências
formais das fontes, referia frequentemente a exigência da tipicidade.
624
No relatório do grupo de trabalho em 1997 eram indicadas já cinco características
essenciais: i) a imputabilidade do acto a um Estado, considerado como sujeito de direito
internacional; ii) a natureza unilateral do acto; iii) o conteúdo normativo: manifestações de
vontade com a intenção de produzir efeitos jurídicos internacionais; iv) publicidade da
manifestação de vontade; v) força obrigatória reconhecida pelo direito internacional
(A/CN.4/L.543 p.6).
294
Décima oitava lição: fontes não previstas
625
Depois de expôr as posições canadiana (que invocava a correspondência trocadas com
funcionários americanos do Departamento de Estado) e americana que recusava retirar daí uma
aceitação por não existirem afirmações finais do Secretário de Estado, o TIJ reviu a
jurisprudência relevante e afirmou que no caso em apreço não se encontram reunidas as
condições de aquiscência da parte dos Estados Unidos (§ 148, p. 310).
626
No caso, a Nova Zelândia não havia considerado o comunicado de 8.6.1974 do Presi-
dente da República francesa e a correspondência diplomática de 10.6,194 – nos quais se
garantia a cessação dos ensaios nucleares – como elementos susceptíveis de porem fim ao
diferendo entre os dois países, mas o TIJ considerou que se tratava de garantias suficientes por a
França se ter obrigado através das referidas declarações (cf. § 28, p, 466).
295
Rui Miguel Marrana
prio Estado. Acolhendo esta ideia, o texto relativo aos princípios orienta -
dores aplicáveis às declarações unilaterais dos Estados susceptíveis de
criar obrigações jurídicas (A/61/10 p. 384 ss.) afirma que [u]ma declara-
ção unilateral apenas vincula internacionalmente um Estado se emanar
de uma autoridade competente para esse fim. Em virtude das suas
funções, os chefes de Estado, chefes de governo e ministros dos negócios
estrangeiros são competentes para formular tais declarações 627. Outras
pessoas628 que representem o Estado em determinados domínios podem
estar autorizadas a obrigar este, por declarações suas, em matérias da
respectiva competência (princípio 4). Nada parece impedir, por outro
lado, a prática de atos por pessoas que não representem o Estado (por
inerência ou mandato expresso), sendo estes posteriormente sujeitos a
confirmação, nos termos do regime aplicável aos tratados (Salvador,
2007, pág. 461).
2.4. Vinculatividade
Os atos unilaterais apenas são fonte de direito na medida em que
envolvam declarações destinadas a produzir efeitos jurídicos (maxime
assumir obrigações629) – ou, nos termos do primeiro princípio
orientador, quando exprimem uma vontade de assumir630 um
compromisso.
Esta característica é evidentemente essencial, na medida em que é
dela que advém a distinção de outros atos (unilaterais) discricionários
627
Na decisão de 03.02.2006 relativa às actividades armadas no território do Congo, o TIJ
afirmou que esta regra (da imputabilidade ao Estados dos atos destes responsáveis) é constante
na sua jurisprudência, que refere expressamente (p. 29 §54).
628
A competência de outras pessoas – que não os tradicionais representantes internaci-
onais do Estado – resulta de uma prática recente que foi referida na decisão do TIJ de
03.02.2006 relativa às actividades armadas no território do Congo (p.27 §47).
629
Alguma doutrina retira daqui um carácter heteronormativo – na medida em que criam
direitos para outros sujeitos de direito internacional (Salvador, 2007, pág. 467). Trata-se aqui de
um uso do conceito normativo paralelo ao de vinculativo, comum na doutrina americana mas
que julgamos no mínimo discutível.
630
Quem assume o compromisso é o Estado (ou, sendo caso disso, outro sujeito) que
efectua a declaração. De facto, em regra os atos unilaterais apenas criam obrigações para que
efectua a respectiva declaração (cf princípio orientador 9). Este princípio admite como excepção
os casos em que outro ou outros Estados interessados tenham aceitado claramente essa
declaração (segunda parte do princípio orientador 9). A referência à excepção baseou-se na
situação ocorrida com a Proclamação Truman de 28.9.1945 a qual limitava os direitos dos
demais Estados à plataforma continental americana e que, menos do que recções negativas
originou declarações semelhantes da parte de outros Estados vindo a regra a ser acolhida na
Convenção de Genève de 1958 (CDI/ILC, 2006, p. 174). Nesse sentido a proclamação constituiu o
ponto de partida de uma regra consuetudinária que viria a obter consegração positiva, tal como
o próprio TIJ reconheceu no seu ac. de 20.2.1969 relativo à plataforma continetal do Mar do
Norte (CIJ/ICJ, 1969, pp. 32-33 §47).
296
Décima oitava lição: fontes não previstas
631
Tal como se refere o Grupo de Trabalho (CDI/ILC, 2006, p. 170/1), a redacção do
princípio 3 inspira-se nos termos do ac. 20.12.1974 do TIJ no caso dos ensaios nucleares (CIJ/ICJ,
1974, p. 269/270 §51), os quais foram retomados nas decisões relativas ao diferendo fronteiriço
(22.12.1986) e às actividades armadas no território do Congo (19.06.2002).
A referência à relevância do contexto para a aferição da vontade em assumir um
compromisso (jurídico) decorreu da análise das declarações suissa (relativa aos privilégios do
pessoal das NU, de 5.08.1946), egípcia de 24.04.1957 e jordana de 31.07.1988 (referidas infra na
nota 623).
297
Rui Miguel Marrana
3. Validade
O regime da validade dos atos unilaterais permanece dependente
dos regimes gerais das demais fontes de direito internacional (em
especial dos tratados).
O texto relativo aos princípios orientadores aplicáveis às declara -
ções unilaterais dos Estados susceptíveis de criar obrigações jurídicas
(A/61/10 p. 384 ss.) apenas refere ser nula toda a declaração unilateral
632
Neste acórdão o TPJI considerou (entre outros elementos) que uma declaração em
22.07.1919 do Sr. Ihlen, Ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês implicava o reconheci -
mento da soberania da Dinamarca sobre o território da Groenlândia Oriental (disputado pela
Noruega). Os termos dessa declaração haviam sido de que os planos do governo real [dinamar-
quês] relativos à soberania da Dinamarca sobre o conjunto da Groenlândia [...] não merecem
objecções da parte da Noruega (CPJI/PCIJ, 1933, pp. 36-37).
633
O TIJ refere neste acórdão que no que toca à forma, convém notar que não estamos
perante um domínio no qual o direito internacional imponha regras estritas ou especiais. O facto
de ser escrita ou oral não acarreta qualquer diferença essencial […] A forma não é portanto
decisiva (CIJ/ICJ, 1974, p. 267/8 §45). Não obstante, a prática mostra um predomínio da forma
escrita (CDI/ILC, 2006, p. 172).
634
A prática incide em boa parte sobre declarações prestadas no âmbito de relações
bilaterais que, nessa medida, têm um destinatário preciso. Subsistem, todavia alguns atos que
podem considerar-se como tendo sido dirigidos à comunidade internacional no seu conjunto, Tal
é o caso da Declaração egípcia de 24.04.1957, da proclamação Truman de 28.09.1945, parte dos
atos franceses relativos aos ensaios nucleares (em 1974) e bem assim a renúncia jordana ao
território da Cisjordânia de 31.07.1988 (CDI/ILC, 2006, p. 173).
635
Cf. infra nota 638 in fine.
298
Décima oitava lição: fontes não previstas
4. Cessação da vigência
Tal como qualquer outra fonte de direito internacional, os atos
unilaterais não têm um carácter perpétuo. Há, no entanto, que garantir
alguma estabilidade nos compromissos internacionais – o que impede
que o seu autor possa fazer cessar a sua vigência livremente.
Por isso, em princípio a cessação da sua vigência apenas pode
acontecer nos termos em que a própria declaração preveja essa
possibilidade (princípio orientador 10.i) ou com o assentimento
(explícito ou implícito) dos Estados interessados.
O TIJ havia afirmado expressamente no referido ac. de 20.12.1974
relativo aos ensaios nucleares que não pode admitir-se a existência de
um
636
A CDI considerou não haver qualquer razão para a não aplicação da regra relativa aos
tratados (CDI/ILC, 2006, p. 174), sendo que, por outro lado, o TIJ, no ac. de 3.2.2006 não afastou
ou questionou a possibilidade dessa aplicação (CIJ/ICJ, 2006, p. 33 §69).
637
O Relator especial chegou a introduzir uma norma expecificando as condições de
validade em tudo semelhantes ao regime dos tratados (cf. A/CN.4/500 §109-141; A/CN.4/505
§134-167; A/CN.4/525 §82-119), mas não obteve o acolhimento necessário para que o regime
299
Rui Miguel Marrana
figurasse no documento final (no qual restaria apenas uma referência à licitude do bojecto, ou
seja, à contrariedade com regras de jus cogens).
300
Décima oitava lição: fontes não previstas
638
Alguma doutrina utiliza, neste sentido, a designação de acto unilateral puro ou acto
puramente unilateral (Salvador, 2007, pág. 460). A expressão foi também usada pelo Relator
especial no seu primeiro relatório (A/CN.4/486, §132). No terceiro relatório, porém, era usada já
a expressão de atos autónomos, explicando que essa autonomia significa que não dependem,
por um lado, de um acto anterior, quer dizer, de uma manifestação de vontade anterior, ainda
que seja certo que todo o acto unilateral se fundamenta no direito internacional; e que, por outro
lado, os acots unilaterais produzem efeitos independentemente do facto de os mesmos serem
aceites pelo destinatário (A/CN.4/505 §60).
639
La déclaration est l'acte par lequel un Etat fait connaître sa position sur une
certaine situation. Il engage ses droits et ceux des tiers (déclaration de guerre, de
neutralité,…). La notification est parfois assimilée à cette notion, mais il s'agit plutôt de
l'acte qui assure la publicité de l'acte constituant la déclaration.
640
La reconnaissance est un acte unilatéral par lequel un Etat constate
l'existence de certains faits ou actes juridiques et admet qu'ils lui sont opposables (un
Etat, une OI dont il n'est pas partie,…). Ce procédé réunit 2 éléments : - l'auteur de
l'acte n'a pas participé à la naissance de l'acte ou du fait qu'il reconnaît.
- cette situation lui devient juridiquement opposable, du fait de la reconnaissance.
299
Décima oitava lição: fontes não previstas
641
La renonciation est un acte par lequel un Etat abandonne volontairement un
droit, ou renonce à une prétention (renonciation à l'immunité de juridiction devant
certaines juridictions étrangères,…).
642
La promesse est un acte unilatéral par lequel un Etat fait naître des droits
nouveaux au profit des tiers.
301
Rui Miguel Marrana
foi entre l'auteur de l'acte et les tiers. Cette solution ressort de CIJ,
20/12/1974 Affaire des essais nucléaires.
5.2. Atos não autónomos
643
302
Décima oitava lição: fontes não previstas
2) Le régime juridique.
a) Autorité et imputabilité.
L'imputabilité : la résolution est imputable à la seule organisation
internationale, en tant que sujet de droit international, à l'exclusion de
ses Etats-membres. Elle n'engage donc que la responsabilité de
l'organisation internationale, et pas celle des Etats-membres.
3 difficultés : - certaines résolutions sont considérées comme étant
imputables aux Etats-membres. Il s'agit d'exemple rares : les décisions
du CSONU prises dans le cadre du chapitre 17 de la Charte des Nations-
Unies (maintien de la paix et de la sécurité internationale), les
303
Rui Miguel Marrana
304
Décima oitava lição: fontes não previstas
305
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306
Décima oitava lição: fontes não previstas
internationale.
307
Rui Miguel Marrana
Les résolutions créant des obligations au profit des Etats tiers : elles ne
leur seront opposables que s'ils les acceptent expressément.
C. Atos concertados
1. Noção
Os atos concertados (por vezes referidos como atos concertados
não convencionais) são atos de sujeitos de direito internacionais que
voluntariamente escapam ao âmbito do pacta sunt servanda, mas que
as partes – não obstante o carácter juridicamente não vinculativo –
sempre confiam na sua execução, por deferência com o princípio da
boa-fé645. De facto, é inquestionável que, nos nossos dias, os Estados (e
outros sujeitos) frequentemente establecem acordos precisos e
definitivos que clara- mente visam regular as relações recíprocas,
assumindo no entanto que tais acordos não têm carácter vinculativo
(Congressional Research Service, 2001, p. 61).
Estamos no âmbito da mera orientação de condutas646 – e ainda
não, portanto, na fixação de regras cujo cumprimento pode ser
assegurado pelos mecanismos de coacção próprios do ordenamento
jurídico (ou, se preferirmos, cujo incumprimento é susceptível de desen -
cadear os correspondentes mecanismos jurídicos de garantia). Por isso
surgem referidos frequentemente na doutrina como soft law.
645
O Dictionnaire de droit international public (dir. Jean Salmon) vai um pouco mais
longe na definição ao referir-se às regras cujo valor normativo é limitado, quer porque os
instrumentos em que figuram não são juridicamente obrigatórios, quer porque as disposições em
causa, ainda que constantes de um instrumento vinculativo, não criam obrigações de direito
positivo ou apenas criam obrigações pouco vinculativas (Tulkens, Van Drooghenbroek, & Krenk,
2012, p. 437). A doutrina official americana assume expressamente que embora tais aocordos
seja entendidos como não vinculativos, subsiste não obstante uma expectativa de
cumprimento pelas partes
(Congressional Research Service, 2001, p. 61). Nesse sentido, o Secretário de Estado americano
Henry Kissinger, ao depor perante o comité de relações externas do Senado afirmou, relati -
vamente ao acordo de devolução do Sinai de 1975, que algumas das conclusões representam
compromissos não vinculativos, mas isso não significa, naturalmente, que os EUA estejam
política e moralmente livres para agir como se estas não existissem. Pelo contrário, trata-se de
impor- tantes afirmações de política diplomática impondo a boa-fé americana enquanto
permanecerem as circunstâncias que lhes deram origem (ibidem 62/63). Para uma análise da
prática da admi- nistração americana na matéria v. (Cummins & Stewart (1999, p. 682 ss.).
646
É este carácter meramente orientador que confere à soft law uma natureza
embrionária e imprecisa (Duplessis, 2007, p. 248). Até porque se trata frequentemente de um
meio através dos quais os Estados assinalam orientações genéricas que podem vir a ser sujeitas
a alterações (Congressional Research Service, 2001, p. 62).
308
Décima oitava lição: fontes não previstas
647
Dentro dos exemplos referidos as cartas e os protocolos podem gerar alguma
confusão pois trata-se de expressões também utilizadas para designar convenções
internacionais (cf. supra
p. 133 ss.). Naturalmente que a natureza do acto não depende da designação, pelo que
importará conferir os elementos ou características do mesmo para determinar esta. Assim, no
caso (para conferir se se trata de uma convenção ou um acto concertado), o elemento distintivo
essencial será sempre saber-se se as partes pretendem ou não produzir efeitos jurídicos
vinculativos).
O termo declaração pode também ser equívoco já que é utilizado também para designar
atos unilaterais (cf. supra p. 284). Neste caso o elemento distintivo reside no facto de se tratar
de um acordo de vontades ou de uma expressão unilateral.
648
Essa junção não deixa de ter lógica: de facto, nas convenções assinadas há já um
acordo de vontades (o acordo relativo ao texto da convenção) mas este ainda não produz efeitos
vinculativos (já que, para isso, faltam ainda as necessárias declarações de vontade nesse
sentido). O TIJ no seu ac. de 16.03.2001 relativo à delimitação marítima e questões territoriais
entre Qatar e Bahrein afirmou (§91) que o tratado anglo-otomano de 1913 era claro ao atribuir
a responsabilidade governativa sobre a península Dibal e Qit’at Jaradah ao Sheikh Jasim-bin-Sani
(do Qatar) e seus sucessores, afastando qualquer pretensão de soberania pelo Bahrein. Ou seja,
o TIJ admitiu que sendo o conteúdo do tratado claro e inequívoco em relação à questão objeto
da disputa, os seus termos constituíam a expressão adequada do entendimento das partes no
momento da assinatura pelo que, mesmo na falta de ratificação, tinha o valor legal bastante.
649
Essa diferença é clara na definição da nota 645 supra.
309
Rui Miguel Marrana
2. Importância
A regulação da vida internacional através de atos não vinculativos
constitui uma prática tradicional650 que responde à complexidade
crescente da sociedade internacional (Duplessis, 2007, p. 248) e que
resulta em boa parte651 da dificuldade de sujeitar os Estados a quaisquer
obrigações vinculativas652. Mesmo se, na actualidade, essa dificuldade
vem diminuindo, o facto é que continua a ser mais fácil construir
soluções
políticas do que desenhar regimes jurídicos vinculativos 653. E as normas
constantes dos atos concertados definem desde logo – e quase sempre
de forma clara – os comportamentos desadequados, o que constitui um
importante elemento de prevenção (por potenciar a natural adequação
650
O termo soft law ter-se-á afirmado na doutrina no final dos anos 60 – embora tenha
sido referido na primeira metade do século XX (Duplessis, 2007, p. 252) – vindo a generalizar-se
o debate nos anos 80 (Blutman, 2010, p. 605).
651
A doutrina assinala outras motivações frequentes como seja tratar-se de processos
negociais consideravelmente menos dispendiosos, a insegurança das perspectivas futuras, os
diferenciais de poder entre os Estados, etc. (Raustiala & Slaughter, 2013, p. 551).
652
Na verdade, ao assentar no princípio da igualdade soberana dos Estados, a ordem
internacional é necessariamente descentralizada pelo que a produção e aplicação das regras de
direito internacional tende a fazer-se preferencialmente numa lógica de coordenação – e não de
subordinação, como acontece com a ordem interna dos Estados (Duplessis, 2007, p. 247). Ora os
atos não vinculativos consubstanciam exactamente um mecanismo de coordenação.
653
Mesmo no âmbito interno, a realização da Justiça passa em parte por mecanismos
não vinculativos (funcionamento do mercado, estruturas caritativas ou de voluntariado,
mecanismos de resolução de conflitos exteriores ao quadro legal, etc.). Por outro lado, a ordem
social resulta em parte de sanções meramente morais, de incentivos sociais, etc. (Shelton, 2008,
p. 2). E também os Estados se vêm sentindo cada vez mais compelidos a adequarem o seu
comportamento a compromissos sem carácter vinculativo (Barelli, 2009, p. 960). Por isso,
alguma doutrina prefere não considerar o carácter não vinculativo como afectando a
juridicidade da soft law, mas antes como uma característica, afirmando mesmo não ser defeito,
mas feitio (Pronto, 2015, p. 942).
310
Décima oitava lição: fontes não previstas
654
Atente-se, a propósito, no expresso reconhecimento da importância da soft law na
interpretação da CEDH (pelo próprio TEDH), que facilita a depuração de um regime universal de
Direitos Humanos, compilando as melhores práticas e produzindo sínteses em aspectos cujos
regimes permanecem fragmentados (Tulkens, Van Drooghenbroek, & Krenk, 2012, p. 436).
655
Os acordos não vinculativos permitem ainda ao Chefe de Estado ou seus agentes
celebrarem acordos com a intenção de os honrarem, mas sem a necessidade de passarem por
aquilo que pode ser antecipado como o peso de uma aprovação constitucional ou o cumprimento
das obrigações de comunicação impostas aos acordos vinculativos (Congressional Research
Service, 2001, p. 62).
656
É frequente a necessidade de flexibilidade – de manter as opções em aberto – o que
torna os acordos não viculativos mais atractivos (Congressional Research Service, 2001, p. 62).
657
Existem estudos doutrinários que assinalam um elevado nível de cumprimento dos
atos concertados (Raustiala & Slaughter, 2013, p. 552). O carácter cooperativo dos atos concer-
tados torna-os também particularmente adequados para as organizações internacionais, já que
os Estados soberanos tendem a recusar ou resistir a autoridades supranacionais (Duplessis,
2007, p. 247).
658
Alguma doutrina considera apressado este enquadramento, no sentido em nem
sempre as regras de soft law surgem face à impossibilidade ou desadequação de regras de hard
law até por poderem coexistir regras de ambas as naturezas (Pronto, 2015, p. 943).
659
É frequente na doutrina americana esta referência a indícios jurídicos, o que pretende
sublinhar a inexistência do efeito mais relevante: a criação de obrigações. De facto a doutrina
311
Rui Miguel Marrana
3. Efeitos
Vejamos agora em termos específicos quais os efeitos jurídicos
dos atos concertados. São assinaláveis dois efeitos principais.
O primeiro efeito é a neutralização da aplicação de eventuais
regras anteriores. De facto, é frequente que os atos concertados
tenham como objetivo (principal ou acessório) a adequação de regimes
jurídicos. Sendo essa a circunstância, resulta do próprio acto concertado
que as regras objeto de alteração deixam de produzir efeitos660.
O segundo efeito jurídico principal resulta do facto de as
expectativas criadas autorizarem determinadas condutas. A situação
mais relevante é a do estoppel - expressão originária do direito anglo-
saxónico que corresponde à proibição de venire contra factum
proprium. No essencial trata-se de uma decorrência da boa-fé: não é
lícito aos sujeitos pretenderem assumir posições – e delas retirarem
efeitos – que contrariem posições anteriormente expressas ou
assumidas. Donde, se de um acto concertado resulta, por exemplo, o
reconhecimento de uma circunstância ou uma transigência, não pode o
seu autor vir posteriormente a contrariar a posição alegando tratar-se
um acto não vinculativo661.
Para além desses dois efeitos jurídicos pacificamente reconhecidos
na doutrina internacional são assinaláveis outros dois efeitos com
conteúdos jurídicos residuais.
Assim, desde logo, a solicitação do cumprimento de uma
obrigação assumida por um acto concertado não configura um acto
inamistoso ou de ingerência (nos assuntos internos do seu autor). Quer
isto dizer que a inexistência do carácter vinculativo das obrigações
assumidas por atos
americana tende a considerar como não jurídico o que não seja obrigatório (Congressional
Research Service, 2001, p. 61). Parece-nos todavia mais incisiva a posição dominante na doutrina
europeia que, assumindo a inexistência de efeitos vinculativos (o que reduz a relevância jurídica
e o potencial de afectação do comportamento estadual), entende não dever, no entanto,
menosprezar-se a sua importância ou retirar-se-lhe o carácter jurídico (Barelli, 2009, p. 959).
Mas é aqui que se concentram a principais críticas doutrinais à soft law: ao questionar a teoria
formalista das fontes, relativiza o limiar da normatividade tornando menos claras as obrigações
menos precisos os conteúdos, ao mesmo tempo que põe em causa algumas estruturas básicas
da ordem jurídica contemporânea, como seja o princípio da igualdade (Duplessis, 2007, p. 252
ss.).
660
A expressão neutralização pretende sublinhar essa dupla circunstância especial: (1) as
regras anteriores deixam de produzir efeitos, não havendo todavia uma revogação em sentido
estrito já que para esse efeito seria necessário um acto com o mesmo valor e (2) o regime
aplicável deixa de ter carácter vinculativo.
661
É neste sentido que um tratado assinado e não ratificado pode servir de prova da
vontade ou reconhecimento de um dos subscritores - mesmo que este não venha a ratificar o
tratado, tal como o TIJ entendeu no ac. de 16.03.2001 relativo à delimitação marítima e
questões territoriais entre Qatar e Bahrein.
312
Décima oitava lição: fontes não previstas
313
Rui Miguel Marrana
Bibliografia de referência
Leituras recomendadas
DUPLESSIS, Isabelle. 2007. Le vertige et la soft law: réactions doctrinales en
droit international. Revue québécoise de droit international, Hors-série,
pp. 246-268.
314
Décima oitava lição: fontes não previstas
315
QUARTA PARTE
A. Objetivo
Bibliografia de referência #
Leituras recomendadas
Recursos on line a explorar
Pierre D’Argent - Universidade Católica de Louvain – 11 aulas (em inglês)
sobre sujeitos:
[Setting the stage - 4:13]:
https://www.youtube.com/watch?v=e-QkwYPFc6k&t=104s
[Personality under International Law - 9:19]: https://www.youtube.com/watch?
v=XmOlNh_F2v0
[The Elements of Statehood - 9:50]:
https://www.youtube.com/watch?v=cj-Uvw4qEec
[State Recognition - 8:05]: https://www.youtube.com/watch?
v=euwsKG5MyqM
[Unilateral secession prohibited? - 6:43]:
https://www.youtube.com/watch?v=tyzelZ7V-UE
319
Rui Miguel Marrana
[Prolegomena - 5:02]:
https://www.youtube.com/watch?v=zh_8sWccD9w
[Self-determination of peoples - 8:19] https://www.youtube.com/watch?
v=EsrKNAo1Hd4
[State Continuity and State Succesion - 3:26];
https://www.youtube.com/watch?v=ZMA47y6tbPI
[New States and borders [11:48]: https://www.youtube.com/watch?
v=If3J6YoLeMo
[The concept of International organizations - 7:35]:
https://www.youtube.com/watch?v=21Y9zLJgrTE
[Legal Personality of International organizations - 12:21]:
https://www.youtube.com/watch?v=46qM0lpxxSo
320
XX Lição
O Estado soberano
A. Objetivo
Questões de revisão
A. Questões gerais
1.
B. Questões directas
1.
.
Bibliografia de referência #
Leituras recomendadas
Recursos on line a explorar
321
Bibliografia citada
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Machado, J. B. (1983). Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador.
Coimbra: Almedina.
339
Rui Miguel Marrana
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Bibliografia citada
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342
Bibliografia citada
343
Rui Miguel Marrana
344
Bibliografia citada
345
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346
Bibliografia citada
United Nations. (2000). Juridical Yearbook. New York, NY: United
Nations.
347
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Bibliografia citada
349
Convenções citadas
349
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350
Convenções citadas
351
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352
Convenções citadas
353
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662
A designação oficial da convenção inclui o ano da entada em vigor (2001).
Obedecendo à regra geral identificamo-la, todavia, com a data da assinatura.
354
Convenções citadas
355
Rui Miguel Marrana
356
Jurisprudência citada
A. Tribunais internacionais
1. Tribunal Permanente de Arbitragem
(TPA) (Permanent Court of Arbitration / Cour Permanente
d’Arbitrage – https://pca-cpa.org/)
1910.09.07 - The North Atlantic Coast Fisheries Case (Great Britain v. United
States of America) Permanent Court of Arbitration. Arbitrators: H.
Lammash; A. F. de Savornin Lohman; G. Gray; Luis M. Drago; Sir Charles
Fitzpatrick. (United Nations, 1961, pp. 167-226) (Reports of International
Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. XI, pp. 167-221).
Available at
http://legal.un.org/docs/?path=../riaa/volumes/riaa_XI.pdf&lang=O
2016.07.12 – South China Sea Arbitration (The Republic of the Philippines v.
the People’s Republic of China). Disponível em https://pca-cpa.org/wp-
content/uploads/sites/175/2016/07/PH-CN-20160712-Award.pdf
357
Rui Miguel Marrana
Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. II, pp. 1011-1077).
Disponible sur http://legal.un.org/riaa/volumes/riaa_II.pdf
1928.10.19 - Pablo Nájera (France) v. United Mexican States. Decision n.º 30-A
(United Nations, 1952, pp. 466-508). (Reports of International Arbitral
Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. V, pp. 466-508). Available
at http://legal.un.org/riaa/cases/vol_V/466-508_Pablo.pdf
1931.06.10 – Campbell (Royaume-Uni c. Portugal) Arbitre: le comte Carton de
Wiart (Belgique). (United Nations, 1949, pp. 1145-1158) Reports of
International Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. II, pp.
1145-1158).
1932.10.10 – Différend relatif au Chaco (Bolívia c. Paraguay). Arbitres: les
représentants des pays suivants: Argentine, Brésil, Chili, États-Unis
d'Amérique, Pérou, Uruguay (United Nations, 1950, pp. 1817-1825).
(Reports of International Arbitral Awards - Recueil des Sentences
Arbitrales, vol. III, pp. 1817-1825). Disponible sur
http://legal.un.org/riaa/volumes/riaa_III.pdf
1933.06.30 – S.S. I'm Alone (Canada v. United States of America). Arbitrators:
Willis van Devanter (U.S.A.), Lyman P. Duff (Canada). (Reports of
International Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. III,
pp. 1609-1619). Available at http://legal.un.org/riaa/volumes/riaa_III.pdf
1935.01.05 – S.S. I'm Alone (Canada v. United States of America). [see award of
1933.06.30]
1940.10.21 – Affaire Junghans (Deuxième Partie) (Allemagne c. Roumanie).
Arbitres: Robert Fazy (Suisse), Erich Kraske (Allemagne), Mihail Paleologu
(Roumanie). (United Nations, 1950, pp. 1883-1891) (Reports of Inter-
national Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. III, pp.
1883-1891). Disponible sur http://legal.un.org/riaa/volumes/riaa_III.pdf
1989.07.31 - Affaire de la délimitation de la frontière maritime entre la Guinée-
Bissau et le Sénégal (United Nations, 1994, pp. 119-213). (Reports of Inter-
national Arbitral Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. XX, pp.
119-213). Disponible sur http://legal.un.org/riaa/cases/vol_XX/119-
213.pdf
1990.04.30 – Case concerning the difference between New Zealand and France
concerning the interpretation or application of two agreements concluded
on 9 July 1986 between the two States and which related to the problems
arising from the Rainbow Warrior Affair (Reports of International Arbitral
Awards - Recueil des Sentences Arbitrales, vol. XX, pp. 215-284)
1991.11.29 – Avis n.º 1 de la Commission d’arbitrage de la Conférence pour la
paix en Yougoslavie (1992).
2001.05.17 - Newfoundland/Nova Scotia arbitration. Disponível em
http://www.nr.gov.nl.ca/mines&en/publications/offshore/dispute/decisio
n.pdf
358
Jurisprudência citada
359
Rui Miguel Marrana
cij.org/pcij/serie_AB/AB_44/01_Traitement_nationaux_polonais_Avis_co
nsultatif.pdf
1933.04.05 – Groenlândia Oriental. (Série A/B - Recueil des arrêts, avis consul-
tatifs et ordonnances, nº 53) Disponível em http://www.icj-
cij.org/pcij/serie_AB/AB_53/01_Groenland_Oriental_Arret.pdf
1934.12.12 – Oscar Chinn. (Série A/B - Recueil des arrêts, avis consultatifs et
ordonnances, nº 63) Disponível em http://www.icj-
cij.org/files/permanent-court-of-international-
justice/serie_AB/AB_63/01_Oscar_Chinn_Arret.pdf
360
Jurisprudência citada
361
Rui Miguel Marrana
362
Jurisprudência citada
663
Anteriormente designado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
363
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B. Tribunais nacionais
1. Portugal
1.1. Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
1988.01.28, proc. 075221. Relator: Abel Delgado
1989.02.28, proc. 077125. Relator: José Calejo
1990.12.11, proc. 079399. Relator: Marques Cordeiro
1992.12.09, proc. 083144. Relator: Olímpio da Fonseca
2002.11.13, proc. 0152172. Relator: Mário Torres
364
Jurisprudência citada
5. EUA
5.1. U.S. Supreme Court
1900.01.08, Paquete Habana, 175 U.S. 677
2004.10.13, Roper v. Simmons, No. 03-633
365
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366
Documentos citados
1. Portugueses
2003.10.18 – Projecto de Lei Revisão Constitucional 1/IX do PS – Diário da As-
sembleia da República/ II série A N.8/IX/2, Suplemento
2003.11.21 – Projecto de Lei Revisão Constitucional 2/IX, do Bloco de Es-
querda- Diário da Assembleia da República II série A N.14/IX/2, Suple-
mento
2003.11.21 – Projecto de Lei Revisão Constitucional 3/IX apresentado conjun-
tamente pelo PSD e CDS-PP – Diário da Assembleia da República II série A
N.14/IX/2- Suplemento
2003.11.21 -Projecto de Lei Revisão Constitucional 4/IX, do PCP – Diário da As-
sembleia da República II série A N.14/IX/2- Suplemento
2003.11.21 – Projecto de Lei Revisão Constitucional 5/IX, de Jamila Madeira,
do PS – Diário da Assembleia da República, II série AN.14/IX/2- Suple-
mento
2003.11.21 – Projecto de Lei Revisão Constitucional 6/IX, do PEV -Diário da As-
sembleia da República/ II série A N.14/IX/2- Suplemento)
2. SDN-ONU
1924.09.22 – Resolução da Assembleia da Sociedade das Nações, relativa à cri-
ação de um Comité de Peritos para a Codificação Progressiva do Direito
Internacional.
1947.08.14 - Resolução 82 (V) do Conselho Económico e Social
1947.11.21 – Resolução 174 (II) da Assembleia-geral, que cria a Comissão de
Direito Internacional
1948.12.03 – Resolução da Assembleia-geral que solicita ao TIJ um parecer so-
bre a personalidade internacional das NU (cf. Parecer do TIJ de
11.04.1949)
1948.12.10 – Declaração Universal dos Direitos do Homem
1950.11.16 – Resolução 478 (V) da Assembleia-geral das Nações Unidas, que
solicita ao Tribunal Internacional de Justiça e à Comissão de Direito Inter-
nacional um parecer sobre reserva à Convenção para a Prevenção e Re-
pressão do Crime de Genocídio de 1948
1952.01.12 – Resolução 598 (VI) da Assembleia-geral das Nações Unidas, rela-
tiva à formulação de reservas nas convenções multilaterais
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Jurisprudência citada
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Jurisprudência citada
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