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As cores do

personagem na
história em quadrinhos
 Valéria Yida,
doutoranda Programa de Estudos Pós-Graduados
em Comunicação e Semiótica da PUC – SP
Gazy Andraus,
doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP (2006)
professor da FIG-UNIMESP (Centro Universitário Metropolitano de São Paulo)

Resumo: Este artigo analisa o papel da cor do personagem nos quadrinhos. O sucesso
dos quadrinhos deve muito à sua impressão a cores nos jornais, e o primeiro personagem
famoso foi The Yelllow Kid. A cor ajuda a contar a história, atrai o olhar, faz o leitor
imaginar, provoca emoções e auxilia a identificação do personagem dos quadrinhos.
Estudamos principalmente o significado das cores do Coringa - branco, vermelho e
verde - que compõem a identidade do personagem.

Palavras-chave: cor; personagem; quadrinhos.

Abstract: This paper examines the role of the color of the character in the comics. The
success of the comics owes much to the color printing in the paper, and the first famous
character was The Yelllow Kid. The color helps to tell the story, looks attractive to the
eye, makes the reader imagine, causes emotions and assists in the identification of the
comic book character. We mainly studied the meaning of the colors of the Joker - white,
red and green - that make up the identity of the character.

Keywords: color; character; comics.

Introdução Winsor McCay que sempre acorda de


pijama em sua cama no último quadro da
O nascimento dos quadrinhos esteve narrativa (Figura 1). O público leitor de
atrelado às aventuras de um personagem jornal passou a acompanhar as histórias
fixo que se apresenta em episódios seriados, seriadas desses personagens, e o sucesso
com características visuais que garantem da novidade foi tal que ajudava a vender
que ele seja imediatamente reconhecido os periódicos, a ponto de ter havido uma
pelo leitor logo que o olhar deste repouse disputa judicial entre dois grandes jornais
sobre a imagem. Assim foi com The Yellow populares sobre os direitos de exclusividade
Kid de autoria de Richard Felton Outcault de publicação do The Yellow Kid.
com seu camisolão amarelo, o Krazy Kat de Dentre estas características visuais
George Herriman sendo alvejado por tijolos que asseguram a identificação, destacamos
ou outros objetos arremessados contra neste artigo a importância da cor para o
sua cabeça, ou ainda com o Little Nemo de personagem da história em quadrinhos.

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A princípio, abordaremos a maneira heróis com suas cores chamativas e,
como a cor pode afetar o homem, depois mais especificamente, no Coringa como
a relevância da cor para os quadrinhos, personagem definido e identificado pela
e por fim chegaremos no gênero super- cor em termos visuais e emocionais.

Figura 1 - As cores de Little Nemo. Fonte: MCCAY, Winsor. Little Nemo # 1. Genova: Gruppo Editoriale La Vecchio, 1984

A importância da cor para o dispositivo dos sobre o sentido da vista, ao qual


quadrinhos pertence, e, por seu intermédio,
No início do século XIX, Johann sobre a alma humana individual,
Wolfgang Goethe (apud PEDROSA, 2014, um efeito específico e, em
p. 72) considerou como a cor produz efeitos combinação, um efeito por vezes
na psique humana, sendo nesses termos um harmonioso, característico, e às
elemento fundamental da arte, pois vezes não harmonioso, porém
Uma vez que a cor ocupa lugar sempre definido e significativo,
tão destacado entre os fenômenos que se radica intimamente na
naturais primários, enchendo esfera moral. É por isto que a cor,
com intensa variedade o campo considerada como elemento de
que lhe está destinado, não arte, pode colocar-se a serviço dos
surpreenderá o fato de que em mais altos fins estéticos.
suas manifestações elementares A cor afeta, portanto, a visão do
mais gerais, sem nenhuma homem, criando significações e atingindo
relação com a natureza ou o psiquismo, com harmonia ou não, mas
configuração do corpo em cuja sempre com valor estético. Pedrosa (2014,
superfície a percebemos, produza p.111 e 112) acrescenta que, segundo

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Goethe, a cor tem o poder até de modificar olhar do leitor para um elemento
“estados de ânimo”, o que talvez explique importante, ou dando a ideia de
porque os antigos atribuíam a capacidade de dimensão dos cenários que estão
curar às pedras preciosas, pois sua beleza e sendo representados. A cor ajuda
cor característica suscitavam uma sensação a guiar o olhar do espectador.
de bem-estar naquele que a contemplasse.
Se a cor possui tantos predicados e Assim, a cor é então essencial para
ela produz sensações por meio do olhar, isto a narrativa em termos visuais, ela auxilia a
é muito bem aproveitado nos quadrinhos ambientação da história e dá um tom afetivo
na medida em que estes constituem uma ao que se está vendo nas pranchas e criando
narrativa eminentemente visual, na qual contrastes. Ela direciona o olhar e é índice
a cor ajudará a situar o leitor em termos de leitura, como se constata quando numa
emocionais na história que se pretende página com predomínio de tons cinzentos se
contar. A cor atrai a atenção para algumas usa, por exemplo, o vermelho para ressaltar
partes da prancha e provoca a imaginação um elemento da história, fazendo com isto
do leitor, ampliando a participação dele surgir daí novos sentidos, modificando o
na narrativa ao convocar outras imagens rumo de uma narrativa a partir do que bem
por associação, ela estimula outros poderia ter passado como um mero detalhe
sentidos e causa sensações próprias, que sem importância de uma prancha, talvez
enriquecerão bastante a leitura, tornando-a nem muito bem notado pelo leitor.
única e particular a cada um que frui dos Como a cor adquiriu tanta relevância
quadrinhos. na evolução do dispositivo das histórias em
Não obstante, sobre a função da cor quadrinhos? Vejamos como a cor passou a
nos quadrinhos, Cris Peter (2014, p. 135) integrar os quadrinhos, que primeiro foram
afirma que ela ajuda a contar a história: exibidos ao grande público norte-americano
Nos quadrinhos, o trabalho de na seção dos jornais destinada ao humor na
contar uma história através das forma de tiras. Impressas em papel-jornal as
imagens é fundamental. Alguns primeiras seções de quadrinhos tiveram que
autores defendem que um bom se contentar com os limites deste suporte,
artista de quadrinhos consegue porque afinal a tinta tinha sido desenvolvida
fazer o leitor entender o que para pintar letras e não imagens, não
está acontecendo mesmo sem havendo nem variabilidade muito grande de
qualquer fala. Já as cores, nesse cores e muito menos a qualidade e nitidez
mesmo cenário, têm uma função das imagens das revistas atuais; contudo,
extremamente importante. Ela esta limitação em nada retirou a verdadeira
não preenche só os traços do revolução de costumes que foi a impressão
desenho, ela também deve ajudar de imagens coloridas no final do século
a contar a história, e a maneira XIX e início do século XX. Santiago García
de fazer isso é justamente (2012, p.69) explica o impacto disto no
através de ambientação, foco âmbito da comunicação:
e profundidade. Através de Para entender em que sentido
combinações de cores variando os suplementos dominicais em
matizes, saturação, luminosidade cores representam uma nova
e valores, os coloristas ajudam o experiência para os leitores, é
roteirista e o desenhista de uma preciso compreender que até
HQ a transmitir suas mensagens. esse momento não se havia
Seja ambientando os personagens visto nada parecido: a difusão
em uma hora do dia ou em locais da imagem impressa e em cores,
diferentes, ou direcionando o em um mundo onde não existia

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a televisão e nem o cinema, e As cores do Coringa nos quadrinhos de
a fotografia ainda não estava super-heróis
implantada de modo maciço, Foi o desenvolvimento das técnicas
mudou a imaginação do público. de impressão que permitiu explorar melhor
John Carlin indica que os a cor como traço distintivo de alguns
periódicos da época tiveram personagens, em especial, os super-heróis
uma presença mais dominante que portavam uniformes e emblemas
do que jamais teve nenhum dos chamativos, como o Super-Homem, Batman
meios de comunicação atuais, e e o Homem-Aranha. Sobre o impacto da
que “não só eram a única fonte cor no leitor de jornal preto e branco, Grant
de notícias, mas também o lugar Morrison (2012, p. 28) afirma:
onde o estilo de vida da América Os primeiros quadrinhos
moderna era representado e utilizavam um processo de
compartilhado por milhões impressão em quatro cores a
de pessoas. Nesse contexto, partir dos elementares alquímicos
os enormes quadrinhos, vermelho, amarelo, azul e preto,
maravilhosamente impressos que criavam todo o espectro ao
em cores, saltavam sobre os se misturar. O Superman, é claro,
leitores do jornal de uma forma foi o primeiro personagem a tirar
verdadeiramente revolucionária”. total vantagem da nova tecnologia,
e essas pedras fundamentais do
universo dos quadrinhos deram
às HQs de super-heróis uma
radiância luminosa, espectral, que
nunca antes havia sido vista numa
mídia popular e democrática.
Para os leitores acostumados às
imagens em preto-e-branco do
cinema, às fotografias de jornal
e às ilustrações dos pulps, os
quadrinhos devem ter parecido
alucinações, com a potência dos
sonhos.
Concebido por Jerry Siegel e Joe
Shuster, o Super-Homem foi apresentado nas
vibrantes cores azul, vermelho e amarelo, e
fazia com que cada menino leitor se sentisse
um pouco como este super-herói, nada
os podia deter: voavam como pássaros,
levantavam carros com uma mão, e era fácil
derrotar o inimigo; tudo isto numa idade
em que o corpo está em transformação, os
hormônios mudam a voz e a pele, surge a
barba, e acima de tudo é preciso se afirmar
como homem e se quer corresponder a uma
imagem idealizada e viril. Nada melhor nesta
fase tão conturbada do menino do que a
Figura 2 - As cores do Super-Homem. figura combativa, heroica e máscula inspirada
Fonte: SIEGEL, Jerry, SHUSTER, Joe. Superman in Action Comics # 1. New York: DC Comics, 2011 pelas cores do Super-Homem (Figura 2).

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O Super-Homem tem capa, calção Não obstante, o amarelo também
e botas vermelhos, uniforme azul e tinge o fundo do distintivo no peito do
distintivo amarelo, exibindo assim uma Batman no seriado de TV psicodélico
explosão de cores primárias contrastantes, dos anos 1960, que tornou o distintivo
que Morrison supõe que deve ter parecido mais parecido com o S no peito do Super-
uma alucinação ou um sonho a um leitor Homem. Esta cor significa ainda atenção
de 1938, porque era uma grande novidade nos semáforos, indicando que é preciso
do dispositivo da história em quadrinhos. diminuir a velocidade e olhar com mais
O colorido do Super-Homem ajuda a cuidado ao redor; o amarelo pode expressar
compor um herói solar, que escapole do medo, sendo isto o que Batman quis causar
jornal onde trabalha como o repórter nos criminosos ao escolher se vestir de
Clark Kent, e salva pessoas em perigo à morcego, e por fim o amarelo em excesso
luz do dia, disfarçado por seu uniforme ofusca. Amarela é a pelagem do ventre
e pela ausência do seu habitual par de de algumas espécies de morcego, ventre
óculos de repórter. Clark é a verdadeira aliás que o cinto circunda, o que reforça a
personificação da pessoa comum e por isto caracterização do homem-morcego.
suas cores são bastante discretas, trajando Uma cor chamativa como o amarelo
terno e chapéu na cor cinza como se fosse serve para atrair o olhar do leitor com
um uniforme de trabalho. rapidez em meio a uma prancha escura, e
Logo em seguida, a DC Comics assim Batman veste um cinto de utilidades
quis aproveitar o sucesso do Super-
Homem, e encomendou outro herói, e
daí surgiu Batman, criado por Bob Kane
e Bill Finger e muito inspirado no Zorro,
no Sombra e outros homens-morcegos: o
herói mascarado e combatente do crime,
que age à noite e tem dupla personalidade.
As cores frias e noturnas como o azul,
preto e cinza foram usadas em Batman
para suscitar um clima noir e sombrio nas
histórias de detetive, em contraposição às
cores quentes do Super-Homem solar, ser
proveniente de outro planeta. Batman é
um homem vestido com a fantasia de um
animal assustador, noturno e com pelagem
preta como o morcego, acompanhante
usual de bruxas e vampiros, em geral
associado no imaginário popular a sangue.
O amarelo do cinto de Batman é
a energia, a fonte de ouro amarelo de
onde ele tira as suas utilidades especiais
nos momentos de precisão, como
batbumerangues, batbombas de fumaça
e batcordas; essa cor é a única luz de seu
uniforme soturno, a fim de compensar a
falta de superpoderes, pois as utilidades
foram produzidas com o conhecimento
Figura 2 - As cores de Batman
que ele acumulou e graças à fortuna que Fonte: KANE, Bob, FINGER, Bill. The case of the Chemical Syndicate in Batman: A Celebration of 75 years. New
herdou dos pais (Figura 3). York: DC Comics, 2014.

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amarelo-ouro a fim de garantir que, no topo imagem agressiva pelo contraste gritante
de um edifício à noite, debaixo da chuva entre essas cores (Figura 4). O Coringa é
constante na cidade de Gotham ou mesmo um bufão, deformado feito uma aberração
na penumbra de um aposento, o herói de circo, também chamado Palhaço-
se sobressairá visualmente na narrativa, Assassino, porque além da sua aparência
enfatizando desta maneira o protagonismo lembrar a máscara de um palhaço de circo,
de Batman também em termos imagéticos. ele mata com uma toxina que faz a vítima
As aventuras de Batman não rir até morrer, deixando-a com um sorriso
tardaram a ganhar um vilão, assim como de rigor mortis na face. Ele cria réplicas de si
ele definido por suas cores desde o quadro mesmo, não restando dúvidas de quem foi
de estreia: o Coringa com sua boca vermelha a autoria do crime, além de sempre colocar
num sorriso grotesco, a face muito branca ao lado do corpo uma carta Joker, com sua
de um clown, os cabelos num bizarro tom face nas três cores, como se fosse um cartão
de verde e fraque roxo, compondo uma de visitas.

Figura 4 - As cores do Coringa.


Fonte: MOORE, Alan & BOLLAND, Brian. Batman: A Piada Mortal. Barueri: Panini, 2014.

O branco da face do Coringa parece nos extremos polos da Terra. É a cor de


indicar a cor dos fantasmas e da morte, a fundo de uma máscara que não pode
paralisia, a ausência de sangue e o nada. ser jamais removida, feita para brilhar
Branca e imensa é a neve que lembra um quando a luz de um espetáculo incide
lugar frio e inóspito, cor tão absoluta que sobre ela, e para dar destaque ao verde e
pode cegar ou confundir quem muito ao vermelho. Já o verde é utilizado no seu
insiste em fixar o olhar sobre a branquidão tom mais histriônico, quase infantil ao
das extremas alturas das montanhas ou deixar escancarada a vontade de chamar

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atenção, enquanto que o roxo do fraque imediatamente compreendida
sugere doença, hematomas, cicatrizes e pelo leitor. À mesma categoria
morte, complementando o branco. E de pertencem as gotinhas de saliva
todas as mencionadas cores, a que de longe que exprimem concupiscência,
mais nos interessa é o vermelho, porque a lampadinha acesa que significa
ele é a cor que mais identifica o Coringa e “tive uma ideia” etc. Mas na
se tivéssemos que escolher só uma única realidade, esses elementos
cor para o designar seria precisamente o iconográficos compõem-se
vermelho, pelos motivos que veremos a numa trama de convenções mais
seguir. ampla, que passa a constituir um
O vermelho é uma cor considerada verdadeiro repertório simbólico,
“quente” em contraste com o “frio” do azul, e de tal forma que se pode falar
utilizada direto da pele ou nas vestimentas numa semântica da estória em
por ocasião de festividades por todos os quadrinhos.
povos, cor do amor e da sexualidade, do
sangue, da emoção extremamente intensa, Neste sentido, a boca vermelha
da vergonha e da fome. Sobre o vermelho, paralisada num sorriso grotesco
Pedrosa (2014, p. 118 a 121) diz que é caracteriza todas as representações do
uma cor única e sem limites, a mais fácil de Coringa, pertencendo então, diríamos,
se destacar, que não pode ser clareada pois a uma espécie de “semântica” particular
perde suas características ao ser misturada relativa às histórias em quadrinhos deste
ao amarelo se torna laranja, ou clareada personagem, semântica que os fãs da
com o branco a cor vermelha cria o rosa, franquia Batman construíram ao longo do
é o princípio da vida e significa tanto a tempo. Com a repetição da boca, ela torna-
valentia, ousadia, alegria e a trégua da Cruz se uma convenção e índice do personagem,
Vermelha Internacional, como também entrando para o repertório do leitor: basta
indica perigo, crueldade, cólera e guerra. que veja essa boca grotesca numa história
Dificilmente se consegue ignorar do Batman para que a figura do Coringa
ou ficar indiferente ao vermelho, e no como Palhaço-Assassino lhe apareça em
caso do Coringa o vermelho opera para sua imaginação. A cor vermelha da boca
atrair o olhar do leitor para sua boca, pois do Coringa funciona como elemento a
é com ela que ele conta piadas, gargalha serviço da narração, aumenta a densidade
e assina seus crimes. Peça fundamental das emoções que o personagem desperta
do personagem Coringa, a boca é um no leitor, é a presença do maligno dos
elemento do que Umberto Eco (2011, p. infernos e diabos geralmente apresentados
144 e 145) denomina como a semântica nesta cor.
dos quadrinhos: A boca escancarada e vermelha do
Poderíamos citar, por exemplo, Coringa, mostrando os dentes num sorriso
vários processos de visualização estático, é o elo de ligação entre o cômico
da metáfora ou do símile, como e a morte. Rimos da morte para afastar a
os que aparecem nas estorinhas angústia da finitude e das incertezas, rimos
humorísticas: ver estrelas, do vazio e da falta de sentido, e assim é
ter o coração em festa, sentir que o riso do personagem remete a uma
a cabeça rodar, roncar como queda do alto, denuncia a derrocada da
uma serra, são outras tantas superioridade humana frente ao inevitável
expressões, que, na estória em da morte, pois ele debocha da morte
quadrinhos, se realizam com iminente. Diz Charles Baudelaire (2011,
o recurso constante a uma p. 38 e 39) sobre o riso:
simbologia figurativa elementar, Todos os ímpios de melodrama,

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malditos, danados, fatalmente 2008), na série televisiva dos anos 60,
marcados por um ricto que nas séries animadas, videogames, as cores
chega até as orelhas, estão na vermelha, branca e verde em que ele é
ortodoxia pura do riso. [...] pintado continuaram as mesmas a despeito
O riso é satânico, é, portanto, das versões do Coringa nessas mídias
profundamente humano. Ele é no serem tão díspares entre si, comprovando
homem a consequência da ideia a força que essas cores adquiriram para
de sua própria superioridade; caracterizar e identificar o personagem que
e, com efeito, como o riso é nasceu numa narrativa gráfica.
essencialmente humano, é Em especial, a série dos anos 60 foi
essencialmente contraditório, uma das primeiras a ser produzida em
quer dizer, é ao mesmo tempo cores nos Estados Unidos, explorando
sinal de uma grandeza infinita e elementos de vanguarda da arte pop de Roy
de uma miséria infinita, miséria Lichtenstein, representada por pinturas
infinita em relação ao Ser expostas em galerias, com personagens
Absoluto do qual ele possui a icônicos das histórias em quadrinhos
concepção, grandeza infinita em como o Mickey e o Pato Donald, e uso
relação aos animais. É do choque de paleta de cores berrantes, balões de
perpétuo desses dois infinitos diálogos e onomatopeias. Eram os tempos
que o riso se libera. da experimentação de Andy Warhol com
suas imagens seriadas de Marilyn Monroe
Sendo porta para o baixo corporal e da sopa em lata Campbell, ambas de
- definido como tudo do corpo que é 1962, quatro anos antes do lançamento
considerado inferior, vergonhoso e objeto do seriado de Batman em 1966, que teve
do pudor e do recato, como os genitais e os três temporadas de muito sucesso. Assim,
órgão excretores - e também imagem antiga o personagem Coringa interpretado na TV
da morte, a boca tem algo de demoníaco e pelo ator Cesar Romero, conhecido galã
faz lembrar Lúcifer, o anjo decaído por ter cubano, usava uma bizarra maquiagem
ousado saber demais. Em suas primeiras branca que mal disfarçava o bigode que
aventuras, era comum o Coringa cair do alto se recusou a tirar, cabelos na cor verde
de uma torre no quadro final, deixando limão berrante e a boca sempre vermelha,
Batman e o leitor em dúvida se o vilão compondo uma versão camp (exagerada,
sobreviveu, já que não foi achado o corpo; ridícula e escrachada) do personagem, mas
mas na história em quadrinhos Batman: A preservando as cores que o identificaram
Piada Mortal, o Coringa nasce de uma queda desde o início nos anos 40.
originária. Um comediante medroso cai
num reservatório de dejetos químicos de Conclusão
cor verde, e emerge daí metamorfoseado O Coringa é um caso emblemático
como um Lúcifer enlouquecido. Morre o do papel central das cores para a
comediante fracassado que não conseguia definição, composição e identificação
fazer o público rir, e nasce um palhaço que de um personagem característico deste
ri com sua boca grotesca e vermelha de dispositivo dos quadrinhos, e talvez resida
seus crimes e zomba de todos. aí um dos motivos do personagem ser tão
Tratamos por último das cores do popular depois de mais de 75 anos de sua
Coringa nos quadrinhos, e é importante criação: ele permite uma gama de variações
enfatizar que mesmo transposto para sob a pena de muitos artistas e seguindo o
outras mídias, como nos filmes de Tim espírito de épocas diferentes, sem que perca
Burton (BATMAN, 1989, 1992) e alguns traços que lhe são próprios, e pode,
Christopher Nolan (BATMAN, 2005, então, ser único e ao mesmo tempo ser

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muitos. O fã de quadrinhos quer novidade
nas aventuras do Coringa, mas quer que ele
permaneça o Coringa em branco, vermelho
e verde de sempre.

Referências
BATMAN. Produtor: William Dozier.
Greenway Productions; 20th Century Fox
Television, 1966-1968. 3 temporadas, 120
episódios.
BATMAN. Direção: Tim Burton. Warner
Bros., 1989. DVD. (121 min.).
BATMAN: O Cavaleiro das Trevas.
Direção: Christopher Nolan. Warner Bros.,
2008. 1 DVD (152 min.).
BATMAN Begins. Direção: Christopher
Nolan. Warner Bros., 2005. DVD. (140
min.).
BATMAN: O Retorno. Direção: Tim
Burton. Warner Bros., 1992. DVD. (126
min.).
BAUDELAIRE, Charles Da essência do
riso. In: Escritos sobre a arte. São Paulo:
Hedra, 2011.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados.
7.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São
Paulo: Martins Fontes, 2012.
MORRISON, Grant. Superdeuses. São
Paulo: Seoman, 2012.
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente.
Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2014.
PETER, Cris. O uso das cores. Nova
Iguaçu: Marsupial, 2014.

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