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XIV CONGRESO DE CERAMOLOGÍA.

SEGUNDA COMUNICACIÓN

A ROTA ATLÂNTICA DO MEL BÉTICO E OS CONTEXTOS DE AUTARCIA:


VASA MELLARIA E COLMEIAS EM CERÂMICA

Rui Morais
XIV Congreso de ceramología 73

A história do mel está intimamente relacio- sua venda, a principal fonte de referência que exerciam em Roma a profissão de mella-
nada com o percurso da humanidade, não para compreender o valor económico deste rii. Fora da área urbana é possível que o mel
só sob o ponto de vista alimentar mas tam- produto continua a ser o Édito dos Preços fosse vendido nos mercados (nundinae) que
bém sob o ponto de vista económico, reli- de Diocleciano (301 d. C.), que tenta regula- ocorriam periodicamente nas proximidades
gioso e medicinal, pelo menos desde o mentar os custos com base na distinção ge- das comunidades rurais (Bortolin, 2008,
período neolítico1. Era a substância edulco- nérica entre mel de primeira (mel optimum) e 118). Estes mercados estavam em estreita
rante mais utilizada, apesar de existirem ou- de segunda (mel secundinum) qualidade6. relação com os cultivos agrícolas provavel-
tros tipos de açúcares, tais como os xaropes mente dispostos em função da perecibili-
de tâmaras, de uvas e de figos, para além de O mel era um dos géneros alimentares mais dade dos produtos, do seu peso, das vias de
extractos de algumas plantas. A própria procurados no mercado e motivo de um co- comunicação e dos custos de transporte
cana-de-açúcar, originária da Índia, à qual se mércio lucrativo (Vázquez Hoys, 1991, 75). (Foraboschi, 1990, 820).
refere Estrabão (15,1,20) e Diodoro Sículo Em zonas rurais e na periferia de povoados e
(19,94,10), era provavelmente já conhecida de cidades existiam vários mellaria sob a res- A ausência ou a reduzida produção de mel
na antiguidade a partir do século III ou II a. ponsabilidade de colmeeiros ou mellarius. numa determinada área geográfica exigia, in-
C., mas apenas utilizada para fins medicinais, Estes eram os proprietários das terras e tin- evitavelmente, a sua importação (figura 1).
como recorda Plínio (12,16-17,32); apenas ham ao seu serviço apiarius, escravos especia- Um conhecido caso no mundo romano, a
no século VIII, com a chegada dos Árabes lizados na colheita e no tratamento do mel. que voltaremos mais adiante, é mencionado
à Península Ibérica, se difunde o seu uso no por Estrabão (III, 2, 6), a propósito da ex-
mediterrâneo como edulcorante2. A existência de mercados locais destinados portação de mel bético, e por Plínio (N. H.,
à venda de mel está documentada para os fi- XI, 8, 18), quando este se refere à grande va-
nais do período republicano e inícios do pe- riedade de mel produzido nesta província.
ríodo imperial, como se comprova por duas Estes dois passos são extremamente valio-
inscrições funerárias que referem libertos sos na medida em que nos permite inferir a
1. O MEL TRANSPORTADO EM ÂNFORAS

O mel, nas suas diferentes qualidades e usos,


era um bem comercializado a par de outros
importantes produtos alimentares3. Nas
fontes clássicas, em particular nos tratadistas
romanos4, a recolha do mel era indicada
com o nome de “messe” ou de “vindima”,
o que sugere que poderia ser mais lucrativo
possuir um colmeiro do que uma vinha5. Al-
guns testemunhos históricos referem-se á
exploração e aos lucros obtidos com a pro-
dução e venda do mel, como no caso dos ir-
mãos de Faléria (Etrúria), que chegam a
vender mel com um ganho de 100.000 ses-
tércios ao ano, ou do conhecido velho sena-
dor de Tarento, citado por Cícero (De Senet.,
5.6), enriquecidos com a indústria da apicul-
tura (apud Fernández Uriel, 1988, 190-191;
1994-95, 957). No mundo romano, além de
algumas notícias esporádicas que referem os
preços do mel e os ganhos obtidos com a Figura 1. Mapa de circulação do mel na área mediterrânica no Alto-Império (Bartolin, 2008).
74 A rota atlântica do mel bético e os contextos de autarcia: vasa mellaria e colmeias em cerâmica - Rui Morales

importância do mel a par de outros produ- vinho. Em Port-la-Nautique (Narbona), foi grande qualidade provavelmente usado em
tos transportados em ânforas, tais como o encontrada uma ânfora do tipo “cretense 3” preparações medicinais (figuras 3a, 3b).
vinho, o azeite e os preparados piscícolas. (figuras 2a, 2b), datada de Augusto a in- São ainda conhecidas muitas outras inscri-
ícios do século III, com a seguinte inscrição: ções relativas ao mel mas em fragmentos de
Na recente obra de Raffaellla Bortolin, inti- “Mel(lis)flos”, alusiva a um mel de excelente ânforas de difícil determinação tipológica.
tulada Archeologia del Miele (2008), a autora qualidade (Liou, 1993). Outros testemunhos Nestes casos são referidos os valores pon-
realça a comercialização deste produto a com dados epigráficos relativos ao mel estão derais relativos à quantidade de mel que as
média e longa distância. Aí são apresentados presentes em ânforas recuperadas em Pom- ânforas continham. É o caso de fragmentos
variadíssimos casos, a maior parte dos quais peia. A maior parte corresponde a ânforas recuperados em Pompeia, na Sicília, na
directamente relacionados com o transporte vinárias produzidas em Creta do tipo AC1, África Proconsular e em Magdalensberg e
deste produto em ânforas7. Os primeiros AC2 e AC3; exceptua-se uma ânfora piscí- Vindonissa (Suíça). Estes exemplos são su-
testemunhos de contentores para o trans- cola hispânica do tipo Dressel 12, datada de ficientes para confirmar que o mel era co-
porte do mel datam da Idade do Bronze, meados do século I a. C. e da centúria se- mercializado não só em contextos do
como comprovam frescos egípcios da XV guinte. Neste caso, é difícil pensar-se que se
dinastia (meados do II milénio a. C.) e algu- trata de uma simples reutilização, dado que
mas tabuinhas de Linear B micénicas (2ª me- o conteúdo preferencial destas ânforas era
tade do II milénio). Outros tipos de piscícola. Segundo Raffaella Bortolin (2008,
contentores usados no transporte do mel 125), a referência ao mel no plural aí pre-
são referidos em papiros da época ptole- sente pode significar uma espécie de com-
maica (Bortolin, 2008, 119-122). Os conten- posto meloso ou a mistura de vários tipos
tores recuperados pela arqueologia são de de mel. Ainda em Pompeia foi recuperada,
época romana e bizantina. A sua identifica- na chamada “Casa de Menandro”, uma pe-
ção é possível graças às inscrições (grafitos quena ânfora de corpo globular (com cerca
e tituli picti), na sua maioria presentes em for- de 37 cm de altura), com a indicação pin-
mas de ânforas usadas para o transporte de tada: “… mellis desp(umati)”, um mel de

Figuras 3a, 3b. Anforeta com titulus pictus re-


Figuras 2a, 2b. Ânfora cretense 3 recolhida em Narbona com titulus pictus que indica mel de primeira colhida em Pompeia que indica mel despumatum
qualidade (Bartolin, 2008). (Bartolin, 2008).
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mediterrâneo mas também nas províncias hoje em uso nalgumas regiões de Espanha, pez, o vinho ou o azeite, pois era pouco ren-
setentrionais do império. No período tardo- como na província de Guadalajara. Trata-se tável utilizar o odre num meio de transporte
romano e bizantino são também conhecidas de uma prática já referida por Plínio (N. H., que não o requeria. A importância da Bética
ânforas com inscrições pintadas alusivas ao XXI, 74-75) para a Hispânia: “In Hispania como região produtora está também docu-
mel. É o caso de um fragmento recuperado mules provehunt simile de causa. Tamtumque pa- mentada pela epigrafia. Conhecida é a ins-
na Ágora de Atenas, datado do século IV d. bulum refret ut mella quoque venenate fiant”. crição encontrada nas proximidades de
C., e de uma ânfora bizantina recolhida em Córdova, gravada numa tábua de bronze,
Classe, no Norte de Itália, datada do século Algumas fichas monetiformes9 em estanho onde se refere que um tal C. Valerius Capito
VI d. C. (Bortolin, 2008, 124-128). com a ilustração de mulas, são representati- tomou posse de um terreno para o utilizar
vas deste sistema de transporte e teste- como zona de cultivo do mel: “Alvari lucum
munho da existência de profissionais que se occupavit” (C.I.L. II 2242).
dedicavam ao transporte do mel, profissão
conhecida no mundo romano. Era normal A referência à Bética como uma província
2. UM CASO SINGULAR: O COMÉRCIO DE

encontrar à porta das cidades grupos de pes- que exportava mel nos finais do período
MEL BÉTICO
soas que tinham como profissão o aluguer tardo-republicano e inícios do período im-
Como vimos, são significativos os casos em
de burros (asinarii) ou de mulas (muliones). perial e os conhecidos casos de ânforas viná-
que se documenta a exportação de mel em
Estas pessoas faziam parte dos collegia iumen- rias usadas para o transporte de mel
ânforas. Se atentarmos ao mapa alusivo às
tarium, uma espécie de grémio associativo colocam algumas questões interessantes.
principais áreas de produção do mel no
documentado em variadas inscrições. Se-
mundo antigo constatamos uma especial
gundo Chic García (1997, 160), devemos Conhecida é a forte relação comercial da
concentração nas seguintes áreas: Egipto,
supor que a exportação de mel se fazia em província da Bética com toda a região atlân-
Grécia e Egeu, Ásia Menor e Mediterrâneo
recipientes cerâmicos, como ocorria com a tica em época romana, utilizando-se uma
Oriental, Norte de África, Península Itálica
e Ilhas Tirrénicas, Sicília e Malta, Sul de Es-
panha, Germania e Norico (figura 4). Destas
áreas produtoras interessa-nos em particu-
lar a área correspondente à Baetica romana.
Como referimos, Estrabão (III, 2, 6), ci-
tando Posidónio, diz-nos: “Da Turdetânia
exporta-se trigo, muito vinho e azeite, não
somente em quantidade, mas ainda em qua-
lidade; e ainda cera, mel, peixe, muita quer-
mes e vermelhão nada inferior ao da terra
de Sínope”8. Deste passo conclui-se que o
mel hispânico, não só de boa qualidade, era
um dos produtos exportados da Bética para
a cidade de Roma, em conjunto com outros
produtos, no final do período tardo-republi-
cano. Segundo Genaro Chic García, num ar-
tigo intitulado “La miel y las bestias” (1997,
153-166), aquela província era excedentária
em mel e este era obtido recorrendo-se a
uma apicultura transumante praticada por
meio de mulas segundo um sistema ainda Figura 4. Mapa com os principais lugares de produção de mel no mundo antigo (Bartolin, 2008).
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rota marítima situada num dos circuitos na- e, deste modo, aumentar a concentração de duação, tornando o vinho mais forte e doce,
turais de navegação desde a Idade do álcool permitindo uma melhor conservação. como referimos, muito em voga no período
Bronze (Morais, 2007a, 99-132). Neste con- O produto daí obtido podia ser utilizado de Augusto10. Graças aos tituli picti conheci-
texto, é possível pensar-se que partes dos ex- como correctivo para aumentar o teor saca- dos sabemos que o defrutum era preferencial-
cedentários de mel fossem exportadas para rino de mostos fracos, favorecer a conser- mente comercializado nas ânforas Haltern
esta região, em particular para o Noroeste. vação de vinhos débeis e ocultar sabores 70, uma ânfora bética fabricada em vários
Uma das possibilidades é que este produto desagradáveis. Segundo Columela (XII, 19- centros produtores do Vale do Gualdalqui-
fosse comercializado em ânforas. Sobre este 20), esta técnica da cozedura do vinho, da vir. Da análise do mapa de cálculo de densi-
tema voltaremos mais adiante. qual resultavam o defrutum e a sapa, era obtida dades das ânforas Haltern 70 no Império
fazendo cozer o mosto em contentores de romano (programa IDRISI 4.111) – recen-
Mas para além da importância comercial do chumbo colocados acima do fogo, mas não temente apresentado num estudo conjunto
mel – como vimos, para ser utilizado em va- em contacto directo com a chama; tal pro- com César Carreras Monfort (Morais e Ca-
riadíssimos fins – sabemos que este produto duto, destinado a múltiplos usos, seria so- rreras Monfort, 2003, 111) –, constata-se
entrava também na preparação de vinhos bretudo utilizado para os vinhos débeis, uma forte concentração destas ânforas na
doces, tão apreciado no período de Augusto, mais doces e menos agressivos. No mundo faixa atlântica, em particular no Noroeste
e como complemento de outras bebidas, tais romano é provável que, a diferentes graus peninsular (figura 5). Naquele estudo, su-
como o mulsum, o mosto, o hidromel (de que de redução, correspondessem, também, de- gerimos ter existido uma grande coerência
se fazia grande consumo). Plínio (N. H., nominações diferentes; o arrobe utilizava-se, entre aquelas densidades e as boas comuni-
XXV 84-85), a propósito da utilização do mel assim, para lotear colheitas com pouca gra- cações marítimas e fluviais, seguindo os iti-
na Hispânia, refere a excelente qualidade de
uma bebida feita com cem ervas e vinho me-
lado frequentemente consumida em banque-
tes e celebrações. Além das fontes escritas, os
vestígios arqueológicos também testemun-
ham o consumo deste tipo de bebidas. É, por
exemplo, o caso de alguns recipientes cerâmi-
cos encontrados em tabernae de Pompeia, usa-
das para conter este tipo de bebida
(Fernández Uriel, 1994-95, 964, nota 21).
Deve ainda pensar-se numa outra situação
complementar: para substituir o uso do mel
nos locais onde este rareasse, poderia ainda
recorrer-se a outros produtos açucarados
como o defrutum, um líquido doce obtido
pela cozedura do mosto (Beltrán Lloris,
2000, 325-326, notas 29-31). Os romanos
conheciam bem as técnicas relacionadas
com a cozedura deste produto. Esta técnica
– que em português se designa por arroba-
mento – já era aliás conhecida dos egípcios:
consistia na concentração do mosto me-
diante a cozedura a fogo directo com vista a
conseguir a evaporação de 1/3 a 1/2 da água Figura 5. Mapa de distribuição dos achados das ânforas Haltern 70 (Morais e Carreras, 2004).
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nerários que se dirigiam às explorações aurí- indicarem este produto (Antonio Aguilera, por outros produtos edulcorantes com a
feras do Noroeste e os acantonamentos mi- 2004, 57-69). Para o tema em análise são mesma origem, como o defrutum e a sapa. A
litares, e, como tal, preferencialmente muito interessantes dois tituli picti encontra- importação destes produtos, no contexto
destinadas ao abastecimento dos exércitos dos em Mainz-Weisenau (Antonio Aguilera, atlântico e em particular no Noroeste Penin-
nas primeiras décadas do período imperial 2004ª, 66-67). Um (nº 33) com a referência a sular, era essencial para a dieta alimentar das
(Morais e Carreras Monfort, 2003, 93-112). OL(ivae) / AL(bae) / DULCI, alusivo ao populações e fundamental no abastecimento
Deveremos também pensar no pressuposto transporte de azeitonas verdes conservadas dos exércitos, como parte do cibus castrensis,
de um sistema de abastecimento direccio- num produto edulcorante, possivelmente o nas primeiras décadas do período imperial.
nado e a baixo custo na comercialização das próprio mel. O outro titulus (nº 41) apenas
ânforas Haltern 70, de acordo com o princí- refere [– EX / CEL(lens) · DU[LCI], um
pio da maximização de uma economia de qualquer produto novamente conservado 3. VASA MELLARIA
mercado (Dicken e Lloyd, 1990, 181-184, numa substância edulcorante. A este propó-
apud. Carreras Monfort, 1999, 94), apenas sito refira-se ainda as análises efectuadas a re- Para além do comércio do mel em ânforas e
comparável ao sistema anonário das ânforas sinas e conteúdos de alguns exemplares outros contentores de transporte a média e
Dressel 20 (Morais, 2007b, 137). recolhidos no naufrágio Culip VIII, que longa distância, este produto era também con-
transportava ânforas Haltern 70. Estas aná- servado e comercializado a nível local ou re-
Um outro aspecto que convém agora salien- lises permitiram revelar a presença de cera gional em instrumenta domestica, a maior parte
tar, relativamente à hegemonia das ânforas que poderá estar associada a um conteúdo dos quais em contentores multifuncionais e
Haltern 70 no Noroeste Peninsular, prende- resinoso ou ao resultado da adição de mel a de reutilização secundária sem características
se com a possibilidade do mel bético ter sido um determinado tipo de vinho (Juan-Trese- específicas que os distingam quanto à sua fun-
exportado nestas ânforas, aproveitando os rras e Carlos Matamala, 2004, 165-166). cionalidade. Estes recipientes podem, todavia,
mesmos circuitos comerciais, à semelhança ser identificados com base em análises gascro-
dos exemplos já referidos para outro tipo de As hipóteses aqui levantadas são sugestivas motagraficas-espectrográficas de massa, que
ânforas vinárias. de duas situações diferentes mas comple- podem fornecer importantes informações
mentares. Referimo-nos à exportação do sobre os elementos orgânicos ainda conserva-
Mais significativo ainda devia ter sido o caso mel bético (e seus sucedâneos, como o dos na porosidade das paredes dos vasos. A
da utilização do mel como sucedâneo de ou- vinho adocicado) e/ou à sua substituição grande diversidade de recipientes referidos nas
tros produtos, como no caso de vinhos ado-
cicados. Na verdade, o uso do mel para
adocicar vinhos é muito anterior ao período
romano. Em tabuinhas minoico-micénicas re-
colhidas em palácios cretenses, escritas em li-
near B (1400-1200 a. C.), o mel vem referido
para tais fins. A vantagem dos vinhos adocica-
dos residia no facto de este não perder tão fa-
cilmente as suas qualidades organoléticas.

Forte é também a possibilidade da substitui-


ção do mel por outros produtos, como o já
referido caso do defrutum12. Esta última pos-
sibilidade é, como referimos, em parte con-
cordante com o facto da grande maioria dos Figuras 6a, 6b. Ollae dos séculos I-II de proveniência itálica (Arcole e Summa Lombardo) com indi-
tituli picti identificados em ânforas Haltern 70 cação do mel e/ou vinho melado (Bartolin, 2008).
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fontes (em particular em papiros da época he- fim, que encontram paralelos em exemplares ninsular que tem vindo a ser reinventada ou que
lenística) poderá, em parte, ficar a dever-se às modernos ainda em uso na Península Ibé- tem persistido ao longo dos tempos, como se da
diferentes qualidades do mel e ao seu uso di- rica. Como já fizemos salientar num artigo circularidade do tempo se tratasse15. De entre as
versificado, de acordo com as necessidades do publicado na revista Saguntum, intitulado produções mais antigas e com maior variedade
mercado. Além de algumas fontes literárias e Potes meleiros e colmeias em cerâmica: uma tradição de formas constam as designadas “cerâmicas
das análises acima referidas, é possível identi- milenar (Morais, 2006a, 149-161), estes reci- ibéricas pintadas”, do Horizonte Ibérico Antigo
ficar algumas peças cerâmicas usadas para o pientes, maioritariamente potes, possuem ao Horizonte Ibérico Pleno, entre 600 a 200 a.
transporte e conservação do mel quando estas em comum um característico ressalto muito C. (Pérez Ballester e Rodríguez Traver, 2004,
apresentam grafitos ou inscrições pintadas saliente (mais raramente dois) em forma de 102). São produções bem caracterizadas e estu-
alusivas à qualidade ou quantidade do produto aba ou “pestana”, situada a cerca de um dadas que possuem uma grande variedade de
contido (figuras 6a, 6b). Um outro aspecto a terço da parte superior do pote ou situada fabricos e centros de produção, a maior parte
ter em consideração na identificação destes re- na proximidade da boca. De acordo com pa- dos quais situados no Sudeste e Levante da Pe-
cipientes é oferecido pela documentação ico- ralelos etnográficos esta característica for- nínsula16 (figuras 9a, 9b, 9c, 9d). No mesmo
nográfica, especialmente para o período mal parece directamente ditada por duas âmbito geográfico, a importância deste tipo de
greco-romano13. Vários são os tipos conhe- razões de ordem prática: criar um canal de formas é-nos ainda sugerida por cerâmicas mais
cidos que correspondem a formas comuns: água em torno da parte superior do bojo tardias, recolhidas na região de Ampúrias (figu-
ollae de duas asas, urceus com ou sem asas, lago- para impedir que insectos como as formigas ras 10a, 10b), representadas por cerâmicas de
enae com asas e guttus. Tal como sugere Colu- cheguem ao produto e, por outro lado, evi- uso comum datadas de 350 a 225 a. C. (Barberà,
mela (RR., XII, 4, 4), é igualmente possível tar que este escorra ao longo das paredes14 1968, 97-150; García i Rosello, 1993, 186-189) e
que alguns contentores usados fossem de (figuras 7a, 7b, 7c; figuras 8a, 8b, 8c, 8d). cerâmicas de engobe branco datadas dos finais
vidro, ideais para conter e conservar vários do período tardo-republicano, entre 150 a 30 a.
tipos de alimentos, entre os quais as conservas Como referimos naquele estudo (Morais, 2006ª, C. (Nolla et al, 1986, 189-195, forma 7, fig. 2).
meladas, pois não alteravam as suas proprieda- 149-161), se atentarmos na dispersão geográ-
des e permitem uma melhor conservação. Se- fica dos recipientes com estas características em
gundo sugere Raffaella Bortolin (2008, época antiga verificamos que estes estão presen-
113-115), as formas ideais em vidro seriam as tes na bacia ocidental do mediterrâneo, com es-
ollae, em particular as formas Ising 62 e 67. pecial incidência na Península Ibérica. A avaliar
pelos dados até à data conhecidos, tendo em
Mau grado a dificuldade em reconhecer os conta a maior antiguidade dos exemplares re-
recipientes usados no transporte e conser- colhidos na Península e a existência de paralelos
vação do mel, são conhecidas formas espe- etnográficos ainda hoje documentados, talvez
cíficas, especialmente adaptadas para este se deva admitir que se trata de uma tradição pe-

Figuras 7a, 7b, 7c. Paralelos etnográficos de potes meleiros em Portugal (Morais, 2006). Figuras 8a, 8b, 8c, 8d. Paralelos etnográficos de
potes meleiros na Galiza (Morais, 2006).
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Figuras 9a, 9b, 9c, 9d. Potes meleiros da época ibérica (Pérez Ballester e Rodríguez Traver, 2004).

Se atentarmos na análise dos dados disponí-


veis e se fizermos um simples rastreio da bi-
bliografia arqueológica espanhola constatamos
que este tipo de formas não se confina à re-
gião Catalã. Na verdade, entre outros exem-
plos que certamente poderiam ser referidos,
encontrámos este tipo de recipientes no povo-
ado de “La Coraja” (Aldeacentenera, Cáceres),
datados da 2ª Idade do Ferro estremenha (Es-
teban Ortega, 1993, 57-71; 83-90; fig. 9), e no dígenas do Sudoeste, designadamente em
forno galego de San Martiño de Bueu (Ponte- Cabeça de Vaiamonte, Monforte (Arnaud e
vedra), datado de época romana (Diaz Alvarez Gamito, 1974-77; Fabião, 1998, 61-62) e
e Vazquez Vazquez, 1988, 40-41, nº 13). Esta Mesas do Castelinho, Almodôvar e no sítio
última peça é de especial interesse (figuras fortificado do Castelo da Lousa, em Mou-
11a, 11b), não só pelo facto de se tratar de uma rão (Évora). À medida que caminhamos
forma proveniente de um forno de ânforas e para norte, estas formas aparecem em duas
datar de um período mais tardio, mas especial- cidades romanas bem nossas conhecidas,
mente por estar associada a um local de produ- Conimbriga e Bracara Augusta. De Conimbriga
ção de salgas de pescado, onde se identificou provém um exemplar em cerâmica comum
um conjunto de seis tanques de salga e parte cinzenta datada do século V e que se carac-
das edificações anexas, armazéns e oficinas teriza por possuir, além do característico res-
(Morais, 2005, 133-138; Figs. 32-33; 2006b, salto muito saliente em forma de aba ou
295-312; 2007b, 401-415). Tal associação su- “pestana”, um canal vertedoiro ou de tras-
gere o uso do mel na preparação das conservas fega junto à base (Alarcão, 1975, 34, fig. 3, nº
de peixe, como no caso do garum da muria e do 862). Esta última característica, apenas do-
halec, certamente utilizado para adocicar estes cumentada neste exemplar, tem paralelos et-
produtos e igualmente contribuir para a sua nográficos (figuras 12a, 12b, 12c). É o caso
conservação. de uma talha para provisão de mel ou azeite
fabricada na olaria de Felgar (Torre de Mon-
Figuras 10a, 10b. Potes meleiros da região de No actual território português as peças mais corvo), já fora de uso em 1986, e actual-
Ampúrias (García, 1993; Nolla et. al., 1986). antigas foram encontradas nos povoados in- mente em depósito no Museu de Olaria de
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Figuras 11a, 11b. Pote meleiro do centro produtor de San Martiño de Bueu (Morais, 2006).

Barcelos (Macedo Freitas, 1988; Delgado, teriais datáveis da segunda metade do século
1996-97, Est. III, nº b) e de uma “meleira” I e dos finais do século III (Delgado, 1996-
fabricada num centro oleiro ainda a laborar, 97, 149-165). Da época romana acrescente-
situado em Gundivós (Concelho de Sober), se ainda um fragmento de bordo e colo
na província de Lugo (Abellán Ruíz, 1995, recolhido nas antigas escavações do povo-
15; 46-47). ado de Monte Castêlo (Castro de Guifões),
em Matosinhos, fabricado em cerâmica
De especial interesse, pela sua quantidade e comum cinzenta de cronologia baixo-impe-
diversidade, são, no entanto, os potes melei- rial (figura 14a).
ros documentados em Braga (figuras 13a,
13b, 13c, 13d). Trata-se de quatro potes fa- Da Idade Média encontram-se igualmente
bricados em cerâmica de uso comum que potes meleiros com a característica moldura
possuem uma forte aguada ou engobe na muito saliente em forma de aba ou ressalto
parede externa, recolhidos em contexto de (figuras 14b, 14c). Tal situação permite
deposição numa cova aberta, na alterite, na constatar que não se trata de um simples
“Zona das Carvalheiras” e associados a ma- comportamento relíquia mas antes da ma-

Figuras 12a, 12b, 12c. Potes meleiros com canal vertedoiro de Conimbriga e das olarias de Felgar (Torre Figuras 13a, 13b, 13c, 13d. Potes meleiros de
de Moncorvo) e Gundivós (Concelho de Soer, Lugo). Bracara Augusta (Delgado, 1996-97; Morais, 2006).
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nutenção de uma tradição milenar adaptada terracota de tipo cilíndrico ou em tubo (Bor- ham, Sackett, 1973, 355-443). Este local es-
às necessidades de conservação, transporte e tolin, 2008, 66-68)17. As colmeias em cerâ- tava situado na famosa área montanhosa do
armazenamento do mel. Estes potes foram mica são referidas nas fontes clássicas, como Himeto, com condições ambientais favorá-
recolhidos em Trás-os-Montes, no sítio ar- no caso de Varrão (RR., III, 16,16-17) e de veis, e que vem referida nas fontes como
queológico do Baldoeiro (Adeganha, Torre Columela (RR., IX, 6, 1-4). Segundo estas uma área que produzia um tipo de mel
de Moncorvo), nas escavações na área da fontes a qualidade do mel obtido neste tipo muito prestigiado (Estrabão, IX, 1, 23; Plí-
torre, junto com materiais datáveis do séc. de suportes era inferior, dado que estas col- nio, N. H., XI, 13, 32; Pausânias, I, 32, 1).
XII e os inícios do séc. XIII (Rodrigues e meias (como as de pedra) não mantinham
Rebanda, 1992, 55). É ainda possível ver uma temperatura constante. É possível pen- Conhecem-se ainda colmeias em cerâmica
num pequeno fragmento de parede de um sar-se que para evitar grandes mudanças tér- em Atenas (recolhidas na Ágora e em Kera-
pote recolhido na casa nº 4 da Rua do Cas- micas se utilizassem alguns procedimentos, meikos), noutros locais da Ática e da Gré-
telo em Palmela, datado do sécs. XIII/XIV tais como a sua cobertura com ramos, ervas cia Continental e nas ilhas de Quios e de
a inícios do séc. XV, um fragmento de pote ou lama, facilmente transportáveis e mane- Creta (Bortolin, 2008, 73-78). A contextua-
meleiro (Fernandes e Carvalho, 1992, 89, 92, jáveis (Bortolin, 2008, 66; 69). Este tipo de lização arqueológica destas colmeias, junta-
95, nº 46). colmeias está muito bem documentada ar- mente com o estudo comparativo de outras
queologicamente no mundo grego pelo ainda em uso na ilha de Chipre, indica que se
menos desde o século V a. C. até o século dispunham separadas ou empilhadas direc-
4. COLMEIAS EM CERÂMICA XIII d. C. Estudos etnográficos têm de- tamente sobre o solo ou colocadas em cima
monstrado que continua em uso nalgumas de muretes; posteriormente seriam cerradas
Ao contrário da Europa centro-setentrional regiões do mediterrâneo, como no caso da com tampões de cortiça, madeira, cerâmica
onde predominam as colmeias dispostas na Grécia, de Chipre, do Egipto, da Jordânia e ou barro, deixando-se um pequeno orifício
vertical, na área mediterrânica a preferência de Espanha. Estes estudos têm, inclusiva- para permitir a entrada das abelhas, e seladas
de dispor os troncos ocos das árvores na ho- mente, revelado que algumas das colmeias nas juntas com barro ou esterco para uma
rizontal criou a tradição do uso das colmeias em cerâmica tinham um sistema de exten- melhor aderência e, simultaneamente, evitar
de forma cilíndrica, feitas em madeira, cor- sões que permitiam a união de mais de uma a intrusão de insectos ou de outros animais
tiça ou terracota igualmente dispostas na ho- colmeia. Tal sistema era (e é) usado para per- (Bonet Rosado e Mata Parreño, 1995, 280-
rizontal. No mundo antigo a tradição de mitir um mel de melhor qualidade e facilitar 281). A etnoarqueologia é assim particular-
colmeias em cerâmica posicionadas na ho- a recolha, sem recorrer à fumigação ou uti- mente útil para esclarecer a função deste
rizontal remonta, muito provavelmente, aos lizá-la de forma reduzida. Um caso bem tipo de colmeias encontradas nos sítios ar-
egípcios, pelo menos a partir do III milénio. conhecido é o sítio de Vari, na Ática, um ha- queológicos. Além do já referido caso de
Muito curiosa é identificação de um ideo- bitat rural de época helenística, de finais do Chipre, conhecem-se outros locais na actua-
grama em Linear B *168 em tabuinhas re- século IV/inícios do século III a. C., espe- lidade que ainda recorrem a colmeias de ce-
colhidas em Cnossos como uma colmeia em cializado na produção de mel (Jones, Gra- râmica dispostas na horizontal (figura 15).

Figuras 14a, 14b, 14c. Potes meleiros de Monte Castêlo (“Castro de Guifões”, Matosinhos), Baldoeiro (Adeganha, Torre de Moncorvo) e Palmela (Morais, 2006).
82 A rota atlântica do mel bético e os contextos de autarcia: vasa mellaria e colmeias em cerâmica - Rui Morales

máximo de 17,4, diâmetro mínimo de 13 cm Nesse mesmo estudo assinalámos a apa-


e uma altura de 42 cm (figura 17). Diferen- rente coincidência na dispersão geográfica
cia-se dos tubos para canalizações não só das colmeias e dos potes meleiros, como pa-
pela forma, mas igualmente pelo estriado rece constatar-se no Sudeste e Levante da
em ambas as superfícies e pelo tipo de fa- Península, onde (pelo menos no Período
brico, distinto das argilas de tipo refractário Ibérico) ambos são particularmente abun-
das canalizações e dos restantes materiais de dantes (Bonet Rosado e Mata Parreño, 1995,
construção, e igual às produções de cerâ- 277-284; García Cano, 1995, 262-265), e no
mica comum conhecidas na cidade20. caso de Braga, inclusivamente provenientes
Figura 15. Colmeias em cerâmica em uso na ilha da mesma escavação (Morais, 2006a, 157).
de Chipre (Jones, Graham e Sackett, 1973).
Como salientou Raffaella Bortolin (2008), o
carácter móbil deste tipo de colmeias per-
É o caso da Grécia Continental, Rodes,
mitia, por um lado, evitar a necessidade de
Creta e em muitas ilhas do Egeu (em parti-
percorrer vastas áreas em busca de um hi-
cular nas Cíclades), para além do Egipto,
potético ninho para obter o mel e a cera, e
Malta e toda a faixa costeira da Síria e da Pa-
por outro, permitia colocá-las em sítios con-
lestina (Bortolin, 2008, 82-83).
siderados estratégicos em cada momento.
Na região de Valência18, a recolha de um
vasto conjunto de colmeias em cerâmica da- ********
táveis da época ibérica, pelo menos desde fi-
nais do século III a. C., e do período Importante fonte de proteínas necessárias
romano alto-imperial (Bonet Rosado e Mata para a alimentação humana e com uma
Parreño, 1995, 277-284), é bem demonstra- grande capacidade de conservação (e, por-
tivo da importância económica da apicultura tanto, de armazenamento), o mel está pre-
na Península naquelas épocas19 (figuras sente na história da humanidade, pelo
16a, 16b). São peças cilíndricas, entre 24 e menos, desde o Neolítico. Não é de estran-
29 cm de diâmetro e uma altura entre 53 e har, pois, que todos os povos do Mediterrâ-
58 cm, que se caracterizam por possuírem neo o tenham adoptado na sua dieta
bordos muito diferenciados e uma superfície alimentar e integrado em mitos e crenças.
interna propositadamente estriada para fa-
cilitar a aderência dos favos (Bonet Rosado Nesta época de abundância, sem precedentes
e Mata Parreño, 1995, 280). históricos, tendemos a esquecer o valor que
certos produtos tinham na vida diária dos
No artigo sobre os potes meleiros de Braga nossos antepassados. As oferendas de mel
(Morais, 2006a, 149-161), demos a conhecer que os cretenses dedicavam aos seus deuses
uma colmeia em cerâmica recolhida numa reflectem, à semelhança dos poemas homé-
camada de derrube na insula das Carvalhei- ricos, a importância deste bem entre os
ras, em Braga, e actualmente em depósito no povos do mediterrâneo. Com o mundo ro-
Museu D. Diogo de Sousa (M.D.D.S., nº inv. mano, a comercialização do mel ultrapassou
2004-0200). Trata-se de uma peça cilíndrica, Figuras 16a, 16b. Colmeias em cerâmica da re- as fronteiras do mediterrâneo e passou a
mas com menores dimensões do que os ou- gião de Valência da época ibérica (Bonet Rosado fazer parte fundamental da dieta das popula-
tros exemplares ibéricos: com um diâmetro e Mata Parreño, 1997). ções do Império. Como vimos no Édito de
XIV Congreso de ceramología 83

çava o seu prestígio político e social. Como ANTONIO AGUILERA (2004), Defrutum, sapa y
sugerimos, a exportação de mel bético teria coroenum. Tres nombres y un producto: arrope, in
também outros destinos, toda a região cos- “Culip VIII i les àmfores Haltern 70”. Monogra-
fies del Casc 5. Girona, pp. 120-132.
teira atlântica e, em particular, o Noroeste
Peninsular. O mesmo se poderá dizer da ARENA, M. S. (1969), “Su alcuni frammenti di
possibilidade do mel ter sido exportado ceramica italo-megarese conservati nell'Antiqua-
como sucedâneo de outros produtos, em rum di Ostia”, in RSL. 35, pp. 101-121.
particular os vinhos adocicados. De modo
complementar, encaramos ainda a possibili- ARNAUD, J. M., GAMITO, T. J. (1974-77), “Ce-
dade da sua substituição por outros produtos râmicas estampilhadas da Idade do Ferro do Sul
edulcorantes, caso do defrutum ou da sapa, de Portugal. I - Cabeça do Vaiamonte - Mon-
transportados em ânforas Haltern 70 maio- forte”, in O Arqueólogo Português. Série III. 7-9. Lis-
boa, pp. 165-202.
ritárias nesta região. Mas, à semelhança de
outros géneros alimentares, como o vinho e
BARBERÀ, J. (1968), “Las necrópolis ibérica de
o azeite, à medida que o processo de roma- Cabrera de Mar”, in Ampurias. 30, pp. 97-150.
nização se estendia à escala global do Impé-
rio, a produção de mel foi sendo BELTRÁN LLORIS, M. (2000), “Mulsum betico.
desenvolvida em contextos de autarcia. Este Nuevo contenido de las ánforas haltern 70”, in
fenómeno foi, em parte, responsável por de- Actas do 3º Congresso de Arquelogia Peninsular
terminadas especificidades, quer no tipo de (UTAD, Vila Real, Setembro de 1999): Arqueologia
colmeias, quer no tipo de contentores adop- da Antiguidade na Península Ibérica. Porto, 6, p. 323-
344, Lam. I-III.
tados. Neste ponto, os estudos etnográficos
são importantes dado que permitem ilustrar
BLANC, N.; NERCESSIAN, A. (1994), La cui-
tradições que se mantiveram ao longo de mi-
sine Romaine Antique. Éditions Glénat. Grenoble.
lénios. É o caso do uso das colmeias em ce-
râmica, ainda em uso em certas regiões do BONET ROSADO, H.; MATA PARREÑO, C.
Mediterrâneo, e de alguns recipientes com (1995), “Testimonios de apicultura en epoca ibé-
características específicas que parecem per- rica”, in Verdolay. Nº 7. Murcia, pp. 277-285.
Figura 17. Colmeia em cerâmica de Bracara Au- petuar uma tradição peninsular ao armaze-
gusta (Morais, 2006). nar este alimento delicioso elixir de saúde, BORTOLIN, R. (2008), Archeologia del miele, in
remédio incomparável e insubstituível cujo Documenti di Archeologia. 45. SAP. Mantova.
uso é indispensável àqueles que desejam ter
Preços de Diocleciano, as autoridades roma- BRONCATO, S.; BLÁNQUEZ, J. J. (1985), “El
uma vida longa e sã, como afirmou Hipócra-
nas preocupavam-se em regular os preços do Amarejo (Bonete, Albacete)”, in Excavaciones Ar-
tes há mais de vinte e cinco séculos.
mel. O abastecimento da cidade de Roma e queológicas en España. 139. Madrid.
de outras importantes cidades do Império
deficitárias deste produto fazia-se essencial- CARRERAS MONFORT, C. (2000), “Economía
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XIV Congreso de ceramología 85

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mento de eternidad”, in Gerión. Anejos. 3. Ali- lidade, deveria corresponder a uma espécie de suce- hida em San Miguel de Liria (Valencia), sugere
menta. Estudios en homenaje al Dr. Ponsich. dâneo licoroso à base de tâmaras fermentadas, que, à semelhança de exemplares ainda em uso
Madrid, pp. 61-93. produto conhecido desde a época babilónica e nas regiões rurais valencianas, a existência de um
ainda em uso nos países árabes (Bortolin, 2008, 35). ressalto muito saliente em forma de aba ou “pes-
tana” poderia servir para ser preenchida com
7 Desta autora tomamos vários dos exemplos que água, com a finalidade de refrigerar o conteúdo
NOTAS se seguem. ou, mais provavelmente, para evitar o alcance dos
insectos. Mais tarde, S. Broncano e J. Blánquez
8 Tradução de F. José Veloso e José Cardoso. (1985, 273) referem que recipientes com estas ca-
1 O mel produzido pelas abelhas (apis mellifera) é
racterísticas poderiam ter servido para conter lí-
um produto natural muito enérgico, rico em pro-
9 Estas fichas ilustram várias actividades econó- quidos densos como o azeite ou mel que se
teínas e dotado de propriedades antibacterianas,
micas como, por exemplo, a recolecção da azei- arriscavam a escorrer pela boca: neste caso o res-
dada a presença de ácidos orgânicos enriquecidos
tona e de cereais e o seu transporte a partir dos salto muito saliente teria como fim recolher o que
por substâncias aromáticas, enzimas, sais minerais
centros de produção até aos locais de envase e de se escapasse e assim evitar que se derramasse
e vitaminas. A referência ao mel como anti-sép-
armazenamento, para posterior comercialização pelas suas paredes. Segundo o oleiro de Rivera
tico já se encontra documentado nas fontes anti-
(Mora Serrano, 2004, 533). Sacra (Gundivós), Tomás López González, os
gas (cfr. Lucrécio, II, 886; Columella, RR, XII, 45;
potes meleiros de “Verão” têm aba ou “pestana”,
Plínio, N. H., XXIII, 108; Phorph., De antro nymph,
10 Sobre estas questões consultar Antonio Agui- os de “Inverno” não necessitam deste elemento,
15; apud Vázquez Hoys, 1991, 67, nota 14).
lera, 2004b, 120-132. pois não há o perigo da intrusão dos insectos.
2 Sobre a importância do mel e das abelhas no
11 Cálculo quantitativo das densidades de ânforas 15 Fora da Península, exemplares com estas ca-
mundo antigo, nas civilizações pristinas do
dividas por extensão da área escavada. Para uma racterísticas apenas estão documentados em Itá-
Egipto e da Mesopotâmia, e Antiguidade Clás-
discussão sobre a idoneidade deste método con- lia e na Gália: o exemplar itálico, actualmente no
sica, consulte-se Pilar Fernández Uriel (1988, 185-
sultar Carreras Monfort (2000a, 45-62). Antiquarium de Óstia, é integrável nas produções
208; 1993, 133-159; 1994-95: 955-969).
italo-megarenses datadas de 150 a 25 a C. e su-
12 Ainda que sem uma relação directa, não deixa postamente fabricado numa das oficinas de Popi-
3 O mel, omnipresente na cozinha, era usado
de ser curioso o facto de o defrutum ser usado na lius ou Lapius (Arena, 1969, 101-121, fig. 14); o
para conservar fruta e outras substâncias orgâni-
captura de enxames (Columela, RR., IX, 8.9.7 e exemplar gálico, proveniente da região de Fréjus
cas e como alimento de eleição dos neonatos, de-
Paladio, V, 7.3) e na alimentação das colmeias no (Var, Provença), possui um fabrico comum às ce-
pois do leite materno. O mel era ainda necessário
Inverno (Varrão, RR., III, 16.28.11; Columela, râmicas de uso culinário, datadas nesta região de
para uma quantidade de utilizações, tais como o
RR., IX, 14.15.9; Plínio, N.H., XXI, 82.3) ou 40 a 100 d. C. (Rivet, 1982, 243-262).
uso em perfumes, unguentos e óleos aromáticos,
na farmacopeia, nos sacrifícios aos deuses (Blanc quando as abelhas estavam doentes (Virgílio,
Georg. IV, 276-270; Columela, RR., IX, 13.7.7) 16 Problemática e distribuição em García Cano,
e Nercessian, 1994, 28-33) e no embalsamamento
(apud Antonio Aguilera, 2004b, 119; 131). A 1995, 262-265.
dos corpos (Vázquez Hoys, 1991, 68, nota 18).
abundância deste produto na Bética foi certa-
17 Não deixa de ser interessante o facto de ser
4 Para além da literatura técnica, deve igualmente mente importante para o desenvolvimento das
possível identificar o tipo de colmeias usadas a
assinalar-se a importância de alguns papiros mais actividades relacionadas com a apicultura.
partir da representação iconográfica de favos, na
antigos datados da época helenística, importan- medida em que a sua forma é condicionada pelo
tes para reconstituir as dinâmicas relacionadas 13 Os primeiros testemunhos arqueológicos de con-
tipo de contentor que o acolhe. É por exemplo o
com a venda e o comércio do mel a média e longa tentores utilizados remontam ao Neolítico, em reci-
caso do famoso pendente em ouro (cerca de 1700
distância, pelo menos no que respeita à parte pientes documentados na zona da Europa Central e
a. C.), proveniente do palácio de Malia, em Creta,
oriental do mediterrâneo (Bortolin, 2008, 13). na Grécia, e à Idade do Bronze, especialmente no
que representa duas abelhas afrontadas que segu-
âmbito minóico e micénico (Bortolin, 2008, 105).
ram com as suas patas um favo de mel (Rüttner,
5 Através do confronto com a apicultura mo- 1979, 219; Bortolin, 2008, 69).
derna poderá depreender-se que uma só colónia 14 Na actualidade, a primeira referência a este de-
de abelhas, em boas condições, poderia produzir talhe é-nos dada por D. Fletcher (1953, 191) 18 Segundo Bonet Rosado e Mata Parreño (1995,
cerca de cem litros de mel (uns 140 kg). quando, a propósito de uma forma com esta ca- 282 e fig. 2) teriam sido catalogados, até à data,
86 A rota atlântica do mel bético e os contextos de autarcia: vasa mellaria e colmeias em cerâmica - Rui Morales

78 sítios com colmeias em cerâmica, a maioria África e no Nepal (Bortolin, 2008, 58-59). Trata- necessário reavaliar os materiais tradicionalmente
dos quais em Camp de Túria, Los Serranos e Alto se de uma actividade predatória que frequente- classificados como tubos de cerâmica para canali-
mente destruiria o enxame. zações e verificar se possuem o característico es-
19 Conhecidas são as pinturas rupestres da Gruta triado interno, como referimos, comum nas
del Ragno e Castellón, ambas no território Valen- 20 A identificação deste exemplar - que se pensava colmeias em cerâmica (Morais, 2006a, 157).
ciano, que testemunham a recolha do mel em es- tratar-se de uma canalização - leva-nos a crer que
tado selvagem (Dams, 1978; Crane, 1999), haverá muitos outros por identificar nesta cidade e Rui Morais
sistema ainda em uso por algumas tribos em em muitos outros sítios da Península. Para isso será rmorais@uaum.uminho.pt

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