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Fé: experiência plural - J. B.

Libanio
Jornal de Opinião – janeiro de 2012
Disponível em: http://www.jblibanio.com.br/modules/wfsection/article.php?articleid=1313
A palavra fé cobre ampla gama de significados. Corresponde-lhe o verbo crer. E na linguagem
popular usamo-lo para tanta coisa que o seu sentido profundo nos escapa. Uma das etimologias, se não
historicamente provada, mas ao menos bela, nos remete ao verbo credere em latim, composto
de cor+dare: dar o coração.
Crer, em última análise, implica dar o coração. Mas a quem? Isso depende da atitude fundamental
que temos. Há aqueles que o entregam ao dinheiro, outros à honra, outros ao prazer. Neles eles creem.
Puebla [documento da Igreja Católica de 1979] não hesita em chamar tais destinatários da fé de “falsos
deuses”, ídolos. Real fé de entrega, mas a falso sujeito. [...]
Dois extremos de experiências testam-nos a fé. O da felicidade, do gozo, do êxito facilmente leva-
nos a esquecer a última fonte do bem e perdemo-nos no instante e no fechamento do próprio prazer.
Julgamo-nos dono do mundo e da existência. Alcançamos as raias da arrogância. Nela não cabe nenhuma
fé. Nada se opõe tanto a ela do que a autossuficiência humana. Já o autor sagrado nas primeiras páginas
do Gênese nos retrata o sonho do ser humano de ser deus e assim dominar a ciência do bem e do mal.
Hoje tal pretensão não se detém no mero conhecimento. Avança para o mundo do fazer. A ciência
vive para a tecnologia. Esta existe para concretizar em artefatos, aparelhos, produtos cada vez mais
surpreendentes o desejo humano de domínio total sobre a natureza, sobre si mesmo. [...]. Pensamos,
produzimos e usamos qualquer tipo de instrumento independentemente da ética, do respeito ao mundo
criado por Deus. [...]. Já não [ficamos] mais na simples afirmação de ateísmo, mas na criação de um
mundo sem Deus, fundado unicamente na pretensão de domínio absoluto do ser humano.
Outro extremo desafia-nos a fé: a exposição à morte. Em face de doença mortal, de acidente
destruidor, de perda irreparável, de destino fatal inexorável, o ser humano grita: por que eu? Por que se
me vai tão jovem a vida? Por que a morte me levou o/a filho/a único/a em plena infância? Por que
assassinaram o meu pai? Por que no acidente bem meu ente querido foi atingido? Nada tão terrível que a
aparente morte injusta da criança, do jovem, diferente da do ancião que termina a vida na sabedoria dos
anos. E quando ela atinge alguém do círculo da família ou nos ameaça pessoalmente, então esbarramos
com o limite da fé. Crer nesse momento torna-se difícil. [...].
Fé e razão - Paul Tillich
Uma das grandes fraquezas de grande parte dos escritores teológicos e do discurso religioso é que a palavra "razão" é usada
de forma inconsistente e vaga. Às vezes é apreciativa, mas, em geral, é depreciativa. Enquanto que a conversa popular pode
ser desculpada por esta imprecisão (embora ela contenha perigos religiosos), é indesculpável se um teólogo usa termos sem
tê-los definido ou circunscrito. Portanto, é necessário definir já desde o início o sentido no qual o termo "razão" vai ser
usado.

Podemos distinguir entre um conceito ontológico e um conceito técnico de razão. O primeiro é predominante na tradição
clássica desde Parmênides até Hegel. O segundo, embora sempre presente no pensamento pré-filosófico e filosófico, se
tornou predominante desde o colapso do idealismo alemão clássico, e no surgimento do empirismo inglês. Conforme a
tradição filosófica clássica, a razão é a estrutura da mente que a capacita a abarcar e transformar a realidade. Ela é efetiva
nas funções cognitiva, estética, prática e técnica da mente humana. Até a própria vida emocional, em si mesma não é
irracional. O Eros impulsiona a mente rumo ao verdadeiro (Platão). O amor pela forma perfeita move todas as coisas
(Aristóteles). Na "apatia" da alma o logos manifesta sua presença (estóicos). O anelo por sua origem eleva a alma e a mente
rumo à fonte inefável de todo sentido (Plotino). O "appetitus" de tudo que é finito o conduz ao bem-em-si. (Tomás de
Aquino). "Amor intelectual" une intelecto e emoção no estado mais racional da mente (Spinoza) Filosofia é "serviço de Deus";
é um pensar que é ao mesmo tempo vida e alegria na "verdade absoluta" (Hegel), etc. A razão clássica é Logos, seja ela
entendida de forma mais intuitiva ou mais crítica. Sua natureza cognitiva é um elemento entre outros. Ela é cognitiva e
estética, teórica e prática, distanciada e aproximada, subjetiva e objetiva. A negação da razão em sentido clássico é anti-
humana, por que é anti-divina.

Mas este conceito ontológico de razão sempre é acompanhado e às vezes substituído pelo conceito técnico de razão. A razão
é reduzida à capacidade de "raciocinar". Só o lado cognitivo do conceito clássico de razão permanece, e dentro do reino
cognitivo só aqueles atos cognitivos que tratam de meios para fins. Enquanto que a razão em sentido de Logos determina os
fins e só em segundo lugar os meios, razão em sentido técnico determina os meios ao mesmo tempo em que aceita os fins a
partir de "outros lugares". Não há perigo nesta situação enquanto a razão técnica estiver acompanhando a razão ontológica e
o "raciocinar" for usado para satisfazer as exigências da razão. Esta situação predominou na maior parte dos períodos pré-
filosóficos, bem como filosóficos da história humana, embora sempre houvesse a ameaça de que o "raciocinar" se pudesse
separar da razão. Desde a metade do século dezenove esta ameaça se tornou uma realidade dominante. A consequência é
que os meios são supridos de forças não-racionais, seja por tradições positivas ou por decisões arbitrárias servindo à vontade
de poder. A razão crítica cessou de exercer sua função controladora sobre normas e fins. Ao mesmo tempo os aspectos não-
cognitivos da razão foram relegados à irrelevância da pura subjetividade. Em algumas formas de positivismo lógico o filósofo
rejeita até mesmo "compreender" qualquer coisa que transcenda a razão técnica, tornando assim sua filosofia
completamente irrelevante para questões de preocupação existencial. A razão técnica, não obstante ser competente em
aspectos lógicos e metodológicos, desumaniza o homem quando está separada da razão ontológica. E, além disso, a própria
razão técnica se empobrece e corrompe quando não se nutre continuamente da razão ontológica. Mesmo na estrutura
meios/fins do "raciocinar" pressupõem-se afirmativas sobre a natureza das coisas que em si mesmas não se baseiam na
razão técnica. Nem estruturas, processos, Gestalt, valores, nem sentidos podem ser compreendidos sem a razão ontológica.
A razão técnica pode reduzí-los a este status, ela se priva a si mesma dos "insights" que são decisivos para a relação
meios/fins. Sem dúvida conhecemos muitos aspectos da natureza humana mediante a análise dos processos psicológicos e
fisiológicos, e mediante o uso de elementos fornecidos por essa análise para fins físico-técnicos e psicotécnicos. Mas se
reivindicarmos conhecer o homem desta maneira, perdemos não só a natureza humana, mas até mesmo verdades decisivas
sobre o homem dentro da relação meios/fins. Isto vale para todo reino da realidade. A razão técnica sempre teve uma
função importante, mesmo na teologia sistemática. Mas a razão técnica é adequada e significativa só como expressão da
razão ontológica e como sua companheira. A teologia não necessita tomar uma decisão a favor ou contra um destes dois
conceitos de razão. Ela usa os métodos da razão técnica, a relação meios/fins, ao estabelecer um organismo de pensamento
consistente, lógico e corretamente derivado. Ela aceita os refinamentos dos métodos cognitivos aplicados pela razão técnica.
Mas rejeita a confusão entre razão técnica e ontológica.

Por exemplo, a teologia não pode aceitar o auxílio da razão no "raciocinar" a existência de Deus. Tal Deus pertenceria à
relação meios/fins. Ele seria menos do que um Deus. Por outro lado, a teologia não fica perturbada pelos ataques à
mensagem cristã feitos pela razão técnica. Esses ataques não atingem o nível no qual se firma a religião. Eles podem destruir
superstições, mas nem mesmo atingem a fé. A teologia é (ou deveria ser) grata pela função crítica do tipo da razão técnica
que mostra que não existe "algo" como um Deus dentro do contexto das relações meios/fins. Objetos religiosos, vistos em
termos do universo do discurso constituído pela razão técnica, são objetos de superstição, sujeitos à crítica destrutiva. Onde
quer que domine a razão técnica, a religião é superstição e é ou mantida estupidamente pela razão, ou rejeitada
corretamente por ela. -

(TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. Ed. Sinodal, 2005, pp. 68/69)

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