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E-mail: marjacoby@yahoo.com.br
Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP),
Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: sacarlos@ufrgs.br
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JEAN-PAUL SARTRE E A CONSTITUIÇÃO DE UM GRUPO
RESUMO
ABSTRACT
This article deals with the issue of the constitution of a group considering the
contributions of Jean-Paul Sartre as identified mainly in his book Crítica de la razón
dialéctica (Critique of Dialectic Reason). The exploratory study of this matter is developed
by means of the analysis of three basic premises of the Sartrean argumentation. They are as
follows: the conditions and possibilities of unification for the individual, the transcending
action and the rupture of the serial structure in the constitution of the group, and the unit of
self-determination of a group. These considerations guide the review of the theme of
modification and the constant process of the groups in permanent coming-to-be.
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INTRODUÇÃO
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Sartre (1995) trata de instalar as bases de constituição de um grupo, afirmando que
o que move o grupo enquanto sentido de sua existência é a necessidade, ou ainda, quando a
“[...] imposibilidad de cambiar se vuelva el objeto que se tiene que superar para continuar
la vida” (p. 14). A necessidade é, para ele, o que determina um objetivo comum e uma
práxis comum e o que dá a identidade a uma comunidade. Pela necessidade tem-se em
comum um objeto que indica o objetivo comum e cria os aspectos de identificação entre os
indivíduos.
Na argumentação sartreana encontra-se, também, a ressalva de que a necessidade
comum não assegura a possibilidade de constituir uma práxis comum, porque, para isto, é
importante considerar as condições de unificação, a partir da visualização da produção de
objetivos comuns e da relação que todos os indivíduos possuam com o objeto. Assim, a
necessidade por si mesma não afetaria o indivíduo de uma unificação. Essa ressalva refere-
se a exemplos da história da humanidade, em que os atos dos homens revelam uma escolha
particular que não encontra lugar para a unidade. A unidade não ocorre sempre por um
objetivo prático, mas as ações sintéticas, em ato, são capazes de unificar toda a
multiplicidade que aparece no campo prático.
Caracteriza-se uma práxis comum desde o momento em que o indivíduo se insere
na ação como totalidade. O que é distinto, para o autor, é que se os indivíduos são
espectadores desta ação, a unificação torna-se abstrata. Os atos humanos exigem um lugar
na totalidade para que se possam caracterizar como ação comum. Além disso, a
transformação da práxis se torna um organizador da práxis comum porque realiza a
unidade prática de todos os atos: é a unidade sintética transcendente.
Na questão da inserção ou do ser espectador, Sartre vai perfilando seu
entendimento de engajamento que passa a ser ponto de reflexão em seus diversos estudos.
Neles encontram-se os conceitos de alteridade, demarcando a responsabilidade posta na
relação Eu-Outro, o compromisso com o para-si, o ver-se homem em situação, entre outros
pontos que se poderia destacar que trazem a noção de engajamento.
A relação Eu-Outro, marcando a alteridade para além da concepção daquilo que é o
não-idêntico, repõe ao homem uma percepção do em-si contemplando a presença do Outro
no interior de sua consciência e de sua identidade. Em outras palavras, o Outro marca os
limites do corpo, dos atos e da percepção que se possui das coisas e de si mesmo. Além
disso, o Eu e o Outro necessitam da existência do terceiro. É nesse parâmetro que o autor
alerta sobre a perda da centralidade humana em relação ao universo, pois “el tercero ha
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unificado la multiplicidad reunida para hacer de ella una totalidad, como cuando unifica a
los Otros en su campo práctico” (idem, p. 36).
O indivíduo é sempre um terceiro na relação com outros indivíduos, totalizando
esta relação através das significações e indicações materiais. O olhar do Outro devolve a
imagem de mim mesmo e meu olhar devolve a imagem do Outro porque “el lazo de los
individuos entre sí – bajo las diversas formas reales que pueda adoptar – es el de la
alteridad como inmediata revelación de sí en el Otro“ (idem, p. 18). Descobre-se a própria
ação presente na ação do Outro como totalidade. E o poder ser visto pelo terceiro delimita
a existência do Eu e do Outro totalizando estas heterogeneidades e o existente.
O terceiro está absorvido na serialidade porque sempre é um Outro. Já não se pode
distinguir o que é do terceiro e o que é do Outro. Por outro lado, “su estructura original de
tercero manifiesta, en efecto, el simple poder práctico de unificar toda multiplicidad en el
interior de su campo de acción, es decir, de totalizarla con una superación hacia sus fines”
(idem, p. 33).
A partir da pergunta sobre as circunstâncias que levam um indivíduo à unificação,
Sartre pretende explorar a questão da necessidade dando-lhe outros pontos de análise. Um
deles é “que la reunión, con su unidad serial [...] nos da las condiciones elementales de la
posibilidad de constituir un grupo para sus miembros” (idem, p. 9).
Para Sartre, as reuniões servem tanto para entender a transformação do coletivo em
grupo quanto o inverso. São elas que podem significar simplesmente a formação de uma
serialidade, ou seja, expressando um agrupamento, ou ainda, podem significar condições
de uma totalização, uma transformação.
Na discussão sobre as reuniões como processo de serialidade ou de ruptura dela, o
autor as toma como atos que lhe dão os parâmetros para visualizar a existência de um
coletivo ou de um grupo. E põe seu acento de que “la reunión tiene como objeto superar
ese malestar realizando prácticamente una integración de cada uno por la praxis”, sem
descartar que “en la práctica, vamos a ver que la serialidad ayudará a realizar una primera
integración” (idem, p. 34).
Tem-se, portanto, novamente o ponto anterior de que a necessidade em si não
assegura uma integração, e que a reunião não assegura, por excelência, a unificação de
uma práxis. Depende, sim, de que esta práxis seja, nos termos sartreanos, práxis comum,
atos totalizantes. E isto ocorre porque a reunião tem sua estrutura prático-inerte, que por
um lado nega a práxis individual e, por outro, compreende a serialidade do campo coletivo.
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O autor opta por entender o coletivo como anterior ao grupo, reafirmando seu
interesse de “mostrar el paso de las clases oprimidas del estado de colectivo a la praxis
revolucionaria de grupo” (1995, p. 13). Retoma a questão da necessidade, como
delimitadora da unificação, quando nesta se pode visualizar a construção de uma práxis
comum numa ruptura da serialidade. E por isso registra que “la libertad – como simple
determinación positiva de la praxis organizada a partir de sus objetivos reales [...] se
manifiesta como la necesidad de disolver a la necesidad” (idem, p. 21).
Sartre pontua que a unidade não seria a possibilidade de unificação, porque esta
unidade pode ser imposta desde o externo e não ser apreendida pelos sujeitos enquanto
totalização, ou seja, pode ser dada numa serialidade e não em uma alteridade. Porém, a
unidade se vive pelas relações de reciprocidade que “tienden a producirla como
fundamento sintético de todas las relaciones concretas” (idem, p. 30). Mas, a unificação
requer a tomada do ponto de vista da totalidade, a qual implica a negação recíproca do Eu e
do Outro e exige que se tenha a transcendência das consciências. Os objetivos de uma ação
passam a ser a encarnação prática do Outro e, ao mesmo tempo, do terceiro. Já, a unidade
“llega del uno al otro como alineación de la necesidad a la libertad, es decir, como Otro
distinto del proyecto del enemigo y como resultado otro de su praxis” (idem, p. 27).
... en este sentido, cada grupo que se constituye está indicado como grupo
a través de la serialidad por las relaciones sintéticas de los otros grupos
entre ellos, incluso si esas relaciones no le conciernen directamente. El
grupo, naturalmente, no se constituirá sino sobre la base de circunstancias
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precisas, directa o indirectamente unidas a la vida y a la muerte de los
organismos (1995, p. 28).
Também não deixa de expressar que a constituição de um grupo está pautada nas
relações concretas, em condições reais e materiais, como negação do resto do campo
social, e que apreende deste campo as condições de uma definição de não-agrupado.
Ao refletir sobre a constituição de um grupo Sartre reporta-se ao que permite a sua
visualização: a práxis comum como unificação do campo prático de cada organização
coletiva. É a partir da práxis que é possível a dissolução da serialidade e a retomada do
protagonismo dos integrantes do grupo. Ou seja, a práxis desvela o movimento de um ser
material na busca de enfrentamento das necessidades. E é a partir da práxis que “importa
sobre todo es que los no-agrupados se comportan desde fuera frente al grupo poniéndole
mediante su praxis como una totalidad orgánica” (idem, p. 10). Ou seja, do olhar dos não-
agrupados ou, pode-se dizer, do Outro, a práxis é devolvida de fora, como uma síntese que
marca a existência de um grupo. Em ambos os ângulos, do interior ou do exterior do Ser
grupo, é a práxis que lança as linhas de análise para que se perceba a constituição de um
coletivo ou de um grupo.
O grupo em fusão se distingue da serialidade. Apesar de que “el grupo en fusión es
aún la serie que se niega reinteriorizando las negaciones exteriores, o si se quiere, no hay
diferencia en ese momento entre lo positivo mismo (grupo en vías de constitución) y esta
negación que se niega (serie en disolución)” (idem, p. 22). E isto ocorre devido a sua
estrutura prático-inerte.
O campo prático-inerte pela ação comum provoca a constituição dos grupos pelo
próprio processo dialético dos opostos, isto é, se se pensa a serialidade é porque é possível
pensar a sua negação. Ou seja, a negação da serialidade está imbutida no processo de
grupo, e as relações dos grupos entre si incidem na ruptura da serialidade enquanto
mostram a existência dos grupos. Os grupos podem nascer no interior de um grupo mais
vasto ou, ainda, pela oposição com outro grupo.
Outro aspecto da práxis é a temporalização que designa a noção daquilo que fazem
os indivíduos. É o que dá o sentido do movimento e inclui a noção histórica da
consciência. No que diz respeito ao grupo, a temporalização oportuniza um marco de
organização de sua existência no mundo. Ora, este marco também encontra sua
demarcação pela referência dos não-agrupados e dos outros grupos constituídos. E esta
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referência ocorre à medida que o grupo determina aos não-agrupados enquanto coletivo,
enquanto inércia, pela sua práxis e seus objetivos e que é “sobre el modelo de esta libre
síntesis que es fundamentalmente la temporalización práctica del organismo” (idem, p. 11).
Quando Sartre diz que é também possível captar a constituição de um grupo pela
materialidade (lugar, passado, inércia, atividades individuais, coletivas ou comuns) e pelas
condições de existência de outros grupos, está apontando para a identificação que o grupo
tem com a temporalização de um existente. Está dizendo que a prática do grupo está
inscrita como idéia inerte nas coisas.
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O grupo não se funda intencionalmente pela práxis do Outro, mas, sim, pela
unidade da outra práxis que o condiciona como negação da sua própria unidade. Aqui, o
antagonismo é expresso pela delimitação das necessidades, conforme se vê no ponto
anterior e das ações organizadas pelo Outro em torno destas necessidades e que devolve o
questionamento da unidade de um grupo.
Se a unidade de um grupo aponta para a negação da unidade de outro grupo, esta
negação caracteriza-se como força antagônica e o identifica como outro. Cabe ao grupo
negar este ser outro que lhe foi conferido. É neste ponto que Sartre retoma a questão do
conflito falando sobre a impossibilidade de superar o dilema de transcender ou ser
transcendido. No entanto, Sartre não vê outra solução que não a de buscar fora de si um
objetivo particular e concreto. Em busca de um ser “que é o que é, que é o que não é e que
não é o que é” (1998, p. 35).
Sartre ressalva que o Homem se faz, que não é uma identidade dada por natureza e,
neste parâmetro, a reciprocidade não é integração a priori dos indivíduos. Ela é uma
possibilidade definida no coletivo. Assim, o autor declara que “el grupo no se forma salvo
si está designado a través del campo de actividad pasiva” (1995, p. 29), e assinala o
coletivo como o campo onde produzem, de qualquer forma, os instrumentos necessários à
unidade. Esta negará a identidade e entrará em contradição com a serialidade da
impotência.
Desse modo, chama a atenção para se buscar na experiência da gênesis de um
grupo considerando “las estructuras de su praxis – o, en otras palabras, la racionalidad
dialéctica de la acción colectiva – en fin, el grupo como pasión es decir, en tanto que lucha
en sí mismo contra la inercia práctica que le afecta” (idem, p. 12).
A partir dessas ponderações, o autor registra a capacidade que cada um tem de
totalizar, de unificar seu universo através de suas ações. Totaliza porque não se faz figurar
na totalidade e o universo o serializa porque reside nele. O poder totalizador produz a
apreensão. É o projeto de cada um que totaliza pela superação, porque, “ese grupo no es
objeto en absoluto, y, en definitiva, no lo veo; realizo su totalización en tanto que él me ve,
en tanto que su praxis me toma como medio o como fin” (idem, p. 37).
A superação das contradições do prático-inerte e da totalização ocorre pela ação. É
possível retomar, aqui, que a práxis como ação e condição posicional do Homem no
mundo repõe à consciência sua característica intencional de Ser.
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A consciência intencionante é o ato constitutivo que compreende consciência e
mundo, e que a essência implica, necessariamente, ao Outro para a composição do
conhecimento de si mesmo e do mundo. O ato de repor à consciência sua característica
intencional permite que se tenha outra leitura das possibilidades humanas.
A consciência do ser e do fazer aparece, assim, ampliada ao ser e fazer com, ou
seja, integrando o exame da relação Eu-Outro, da alteridade como delimitadora do caráter
histórico do indivíduo, autor do projeto. Nesta perspectiva, o campo prático, com suas
ações e intenções, assume o seu desenvolvimento em circunstâncias dadas pelas ações
humanas no interior das relações históricas.
CONSIDERAÇÕES
As argumentações de Sartre sobre a constituição de um grupo remetem à
perspectiva da necessidade, marcando um primeiro ponto de aproximação dos indivíduos.
No entanto, o autor pondera que a necessidade, isolada de outros elementos da vida
cotidiana, não é a garantia da unificação dos homens. Pois, deve-se averiguar a ocorrência
do estabelecimento de um objeto e de um objetivo comum. Para isso, os escritos sartreanos
conduzem à análise do campo da práxis comum e à leitura da relação Eu-Outro totalizada
pela existência do terceiro.
A partir destes delineamentos, compreende-se a complexidade da constituição de
um grupo e que esta não deve ser refletida numa linearidade. Mas sim, deve ser observada
no processo de ruptura da serialidade, na constante construção da práxis comum e na
reflexão dos princípios da dialética que regem a negação e a síntese totalizante das relações
entre os sujeitos. Da mesma forma, não é possível que se investigue o tema dos grupos se o
parâmetro de análise for uma tendência evolucionista. Isso porque há o constante
movimento das condições reais e materiais no enfrentamento das necessidades, das
contradições presentes no campo prático-inerte e do prenúncio de retorno para a
serialidade.
Quando Sartre investiga a oposição e a negação de outros grupos, o faz com o
intuito de remarcar a questão da temporalidade na organização do existente de um grupo.
Para contextualizar este aspecto, o autor repassa a concepção de coletivo como uma das
dimensões da serialidade na conformação de um grupo. Retoma, assim, o entendimento de
que a serialidade tem estas faces de análise: como prenúncio e como processo inerente para
a grupalização dos homens.
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Para reafirmar estas assertivas, a problematização sartreana segue na investigação
da autodeterminação dos sujeitos em se unificarem. Ao revisar essa possibilidade,
encontra-se a ressalva do autor quanto ao lugar do Homem, como organizador do existente
através da sua ação totalizante. Assim, a autodeterminação ocorre pelas relações entre os
grupos e com o coletivo, partindo da reciprocidade e da práxis. Por isso, se visualiza que o
objetivo do grupo não pode ser ele mesmo sob pena deste tornar-se objeto para si mesmo.
Significa que autodeterminar-se é registrado no protagonismo dos indivíduos, na sua
característica intencional e na capacidade de ser e fazer com de caráter histórico, porque o
processo dos grupos é um permanente vir-a-ser-se, uma eterna atualização.
REFERÊNCIAS
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