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Uma sociedade afogada em números

A reprodução da metodologia se torna o objetivo central, deixando em


segundo plano a análise econômica. A necessidade de acertar traz miopia aos
analistas

POR OLINTO RAMOS


19/12/2017 0:00

Já há algum tempo, o que nos é apresentado pela mídia e pelas redes sociais está cada
vez mais permeado por números e mais números, com gráficos coloridos. Os dados
quantitativos assumiram protagonismo absoluto nas informações apresentadas à
sociedade.

Índices, taxas, percentuais, valores, pesquisas de todo tipo são divulgados como se a
linguagem fosse compreendida por todos e todo o seu simbolismo estivesse introjetado
na população. Pior: como se os números fossem representação absolutamente precisa
da realidade. Apresenta-se a “verdade incontestável” dos números.

Assim, hoje teríamos 208 milhões de data analysts no país. Claro que parte deles,
simplesmente, de forma cética e incontestável, não acredita nos números e está segura
de que foi manipulada, pois não condizem com sua percepção. A invasão quantitativa
gerou dois tipos: aqueles que creem religiosamente nos números e os que descreem
religiosamente deles. As pesquisas eleitorais são divulgadas com o chamado intervalo
de confiança, ou seja, dada determinada percentagem de eleitores que votarão em
Fulano, temos variações de x% para cima ou para baixo. Perfeito, temos o “intervalo de
confiança com probabilidade de erro de 5%”.

Antes, eram divulgadas só as taxas. Agora, adicionou-se à informação o intervalo de


confiança. A pergunta que resta é: isto efetivamente tornou a informação mais precisa
ou só se incluiu mais números para dar-lhe aparência de maior qualidade e aumentar
sua “verdade”? Neste caso específico, os resultados recentes indicam que a parte cética
da população tem razão.

Na véspera da divulgação de uma informação de conjuntura econômica, jornais


apresentam tabelas com os “prognósticos” das consultorias especializadas. Uma espécie
de “corrida de números”. A importância de acertar é cada vez maior para estabelecer a
“sapiência” das consultorias na previsão. Ou seja, a reprodução da metodologia se torna
o objetivo central, deixando em segundo plano a análise econômica. A necessidade de
acertar traz miopia aos analistas. Perdem-se outros olhares, mais qualitativos, mais
reflexivos. É preciso procurar as causas, nos afastando um pouco dos modelos numéricos,
que viraram verdadeiras pitonisas. Por favor, encarem este comentário só como crítica
aos exageros. Assim como beber sem moderação, modelar em excesso pode fazer mal.
Há que se refletir sobre a importância de estimarmos uma variação no PIB. As previsões
variam de -0,2% para +0,2%? Ora, ambas são ruins. Como de 3% para 4%, ambas são
boas; de 7% para 10%, ambas excelentes. A obsessão pelo detalhe muda as decisões que
tomaríamos?

Em reportagem sobre a indústria alimentícia, em 16 de setembro, o “New York Times”


citou estudo da Universidade de Washington sobre obesidade infantil. Os dados
mostravam que, de 1980 a 2015, o percentual de crianças obesas no Brasil subira de 2,4%
para 9%, ou seja: crescimento de 270%. Mas, se olharmos os dados da Pesquisa de
Orçamentos Familiares do IBGE para 2008/09, temos prevalência de 14,3% de obesos
para a faixa de 5 a 9 anos. O que isso significa? Terá havido queda na obesidade infantil,
de 2008/2009 para 2015? Ou houve redução, com aumento posterior? Ou as pesquisas
são incomparáveis? As respostas não são simples. Se olharmos apenas os números, nos
afogamos.

Se isso ocorre com as variáveis de estudos claramente delimitados, imaginemos os riscos


no caótico oceano de dados obtidos a partir das redes sociais — o popular Big Data —
a mais nova “fonte da verdade”. A informação baseada em números passou a permear
nossas vidas, mas isso pode nos tornar míopes em relação ao todo. É preciso usar os
números respeitando seus limites, sem se deixar escravizar pela visão numérica.

Olinto Ramos é presidente do IBGE

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/uma-sociedade-afogada-em-numeros-22208009

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