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Os Charutos, o Cristão e A Glória de Deus - Uma Perspectiva Reformada
Os Charutos, o Cristão e A Glória de Deus - Uma Perspectiva Reformada
Joe Thorn
Dedico a tradução deste livreto a todos os meus amigos presbiterianos que desfrutam de um charuto para a glória de Deus.
FSAN
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970
Telefone: (61) 8116-7481 — Sítio: www.editoramonergismo.com.br
1a edição, 2015
1000 exemplares
Thorn, Joe
Os charutos, o cristão e a glória de Deus / Joe Thorn, tradução Felipe Sabino de Araújo Neto ― Brasília, DF: Editora Monergismo, 2015.
p.; 21cm.
ISBN
1. Vida cristã 2. Ética cristã 3. Bíblia
CDD 230
Sumário
Prefácio
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Apêndice 1:
Sobre o autor
Prefácio
Bebida alcoólica e fumo. Talvez os dois maiores tabus no meio cristão, ao menos no meio evangélico.[1] Dos dois, a questão do fumo é nitidamente
mais complexa, pois não envolve exegese bíblica de determinados textos, mas um entendimento da teologia bíblica sobre liberdade cristã e liberdade de
consciência. Afinal, todo cristão, abstêmio ou não, facilmente reconhecerá que Cristo instituiu a Santa Ceia com vinho. Tanto é que em 1 Coríntios 11
Paulo trata de casos de embriaguez,[2] em que irmãos estavam bebendo na Ceia mais do que convinha. E não só isso. Antes de partir, Cristo afirmou a seus
discípulos que ansiava pelo dia em que beberia novamente vinho com eles, na consumação de todas as coisas (Mateus 26.29; Lucas 22.18). Nesse dia, nas
gloriosas Bodas do Cordeiro, ninguém se queixará de Cristo nem o repreenderá por causa do vinho, pois teremos nossa mente plenamente renovada e livre
dos efeitos noéticos do pecado. Assim, devo repetir: a questão do fumo é complexa e controversa. Tanto é que vários amigos questionaram minha
sabedoria em publicar este livro, não obstante concordarem com a relevância do assunto.
Contudo, vale lembrar que isso nem sempre foi assim. O tabu quanto à bebida alcoólica e ao fumo é um fenômeno recente. Se analisarmos a
história do cristianismo protestante, veremos algo impressionante e constrangedor para muitos. Peguemos o exemplo dos puritanos, os grandes teólogos
protestantes dos séculos 16 e 17. A partir da década de 1950[3] houve um ressurgimento da literatura sobre os puritanos. Não apenas obras desses homens
passaram a ser reeditadas, como também muitos de seus livros sobre teologia e vida cristã foram republicados. Dentre eles, merecem destaque Meet the
Puritans e A Puritan Theology: Doctrine for Life, ambos de Joel R. Beeke.[4] Nestes livros nós tomamos conhecimento da vida desses gigantes da fé, bem
como da sua visão sobre todos os aspectos da vida — família, igreja, sociedade, Estado, etc.
No opúsculo Why Read the Puritans Today? Don Kistler apresenta dez razões por que devemos ler os escritos puritanos. Por causa da triste e
comum aversão aos puritanos em nossos dias, muitos livros e artigos tentam responder essencialmente a mesma pergunta: o que podemos aprender com os
puritanos? Kistler e outros especialistas em teologia e história puritana, como Joel Beeke, J. I. Packer e Leland Ryken, diriam o seguinte: aprendemos a ter
um conceito elevado de Deus, a apreciar a beleza de Cristo e entender a suficiência de sua obra em nosso favor, a crer na suficiência da Escritura para uma
vida piedosa e vibrante, etc. — a lista é quase infindável.
Sem desconsiderar, mas reafirmar com vigor o que esses eruditos elencaram, eu acrescentaria o seguinte: com os puritanos aprendemos que ser
cristão não é deixar de beber ou fumar; afinal, até um ímpio pode fazer isso, sobretudo aquele que tem o Ministério da Saúde como seu deus-profeta. Ao
contrário, ser cristão é não só beber e comer, mas até mesmo poder beber cerveja e fumar tabaco para a glória de Deus (1Co 10.31).
Se lermos as obras dos puritanos, analisando tanto a vida como a teologia deles, constataremos a veracidade das palavras de C. S. Lewis:
Devemos imaginar esses puritanos como sendo o exato oposto daqueles que se dizem puritanos hoje; imaginemo-los jovens,
vorazes, progressistas intelectuais, muito elegantes e atualizados. Eles não eram abstêmios; os bispos, não a cerveja, eram
sua aversão. Os puritanos amavam fumar; bebiam, caçavam, praticavam esportes, usavam roupas coloridas, faziam amor
com suas esposas, tudo isso para a glória de Deus, que os colocou em posição de liberdade.[5]
Porém eu gostaria de deixar algo bem claro: não publico este livro como uma apologia ao tabaco, nem tampouco é minha intenção que todo leitor
venha a se tornar um fumante.
Em primeiro lugar, publico este livro por amor ao Evangelho, pois não poucos confundem as gloriosas boas novas do Evangelho com uma
determinada atitude para com as bebidas alcoólicas e o fumo. Nada poderia ser mais trágico para o nosso testemunho à presente geração. O Evangelho é o
que Paulo resumiu em 1 Coríntios 15.3-4:
Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi
sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.
Esse é o verdadeiro Evangelho, um Evangelho quase ausente nas igrejas de hoje e nos lábios de inúmeros cristãos. O Evangelho não é “eu tomo
Coca-Cola, mas não cerveja”, “eu tomo café, mas não uísque”, “eu fofoco, mas não fumo”. Não! O Evangelho é a mensagem gloriosa de que Cristo morreu
pelos pecados do seu povo, segundo as Escrituras, e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.
Em segundo lugar, tenho em vista as almas que sofrem e que ainda não encontraram descanso em Cristo. Em Lucas 11, Jesus repreende os escribas
e fariseus dizendo o seguinte:
Mas ele respondeu: Ai de vós também, intérpretes da Lei! Porque sobrecarregais os homens com fardos superiores às suas
forças, mas vós mesmos nem com um dedo os tocais. (Lucas 11.46)
O que seria um fardo pesado e difícil de carregar (Mateus 23.3)? Qualquer mandamento ou tradição dos homens! Afinal, o apóstolo João, tendo
asseverado que amar a Deus é obedecer aos seus mandamentos, adiciona: “ora, os seus mandamentos não são pesados” (1 João 5.3, ARC). Assim, sempre
que instarmos nosso próximo a obedecer aos mandamentos de Deus, não estaremos incorrendo no erro dos fariseus. O problema é que muitas vezes
gostamos de ver as pessoas seguindo os nossos mandamentos, não os de Deus.
Infelizmente, as igrejas de hoje são uma encarnação vívida daquilo contra o qual Cristo advertiu em Lucas 11. Não existe um mandamento “Não
fumarás!”. Apesar disso, pessoas que se achegam à igreja não são consideradas cristãs até que tenham abandonado o fumo. Em vez de seguir Cristo e seus
apóstolos, que exigiam fé e arrependimento de seus ouvintes, nós exigimos o abandono do fumo e da bebida. Não é de estranhar, assim, que nossas igrejas
estejam abarrotadas de falsos cristãos. Afinal, não é necessária a regeneração do coração pelo Espírito Santo para alguém abandonar o fumo. Muitos têm
abandonado o cigarro por motivos não religiosos os mais diversos. Ser cristão não é abandonar o fumo, mas amar a Cristo, reconhecer que ele é o Senhor.
O que Deus exige do homem? O profeta Miqueias já nos disse há muito tempo:
Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e
andes humildemente com o teu Deus. (Miqueias 6.8)
É claro que amar a Cristo, praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente implicam ações e comportamentos exteriores. Mas é Deus
quem estabelece o que é certo ou errado, não os homens, e tampouco a cultura de uma determinada época. Ora, para muitas pessoas castigar fisicamente
um filho não é algo que demonstra justiça e misericórdia; contudo é isso o que repetidas vezes a Escritura exige dos pais na criação dos filhos (vide, por
exemplo, Provérbios 13.24, 19.18, 22.15, 23.13-14, 29.15, Hebreus 12.7-10). Diferente disso, a Escritura não condena o fumo explicitamente nem por
dedução lógica e clara (CFW I.VI).[6] Assim, se afirmamos a suficiência da Escritura para guiar nossa vida, não podemos aceitar a classificação do fumo
como pecado. Somos protestantes justamente por sustentar que a Escritura é suficiente para nossa salvação e santificação e que todas as tradições humanas
devem ser julgadas pela Palavra de Deus.
Em terceiro e último lugar, publico este livro como auxílio àqueles que têm liberdade em Cristo para fumar. Que Joe Thorn seja útil para um
entendimento mais completo do assunto e um auxílio à mão sempre que objeções ou indagações forem levantadas. Pensando nisso, adicionei dois
apêndices à versão brasileira deste livreto.
No prefácio de um livro de Gordon Clark, John Robbins diz que houve um tempo em que as controvérsias eram resolvidas com um “Assim diz o
Senhor”, mas hoje o são com um confiante “foi provado cientificamente”. Infelizmente é exatamente essa a estratégia de alguns cristãos ao lidar com o
assunto do tabaco. De minha parte, digo o seguinte: Assim diz o Senhor:
Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus. (1 Coríntios 10.31)
Então, aguente firme aí enquanto buscarei dar o melhor de mim para responder essas questões nos próximos capítulos.
Capítulo 2
Fumar não lhe faz mal?
Fumar charuto não é bom para você. Não deixe seu amigo vizinho, aficionado por charutos, dizer-lhe o contrário. Como muitas outras coisas que
fazemos nesta vida, há um risco real em fumar charutos. Embora estudos tenham demonstrado que fumar charuto (sem inalar) é muito menos provável de
causar vários tipos de câncer, o risco ainda existe. Assim, deixe-me registrar que fumar, em todas as suas formas, não é saudável. É prejudicial a você. As
pessoas podem morrer por causa do fumo.
Quando alguém me questiona sobre isso ou aponta os riscos à saúde por causa dos charutos, está sugerindo que o risco potencial de fumar torna o
ato inapropriado, se não pecaminoso. Assim, ampliemos nosso escopo e consideremos, para ajudar na reflexão, algo que é um risco ainda maior à saúde:
asas de frango. Ó, sim, asas de frango são um problema muito sério para as pessoas que buscam cuidar do corpo. Hipérboles à parte, a verdade é que mais
pessoas morrerão este ano por seguirem uma dieta pobre e por problemas correlatos do que por fumar o que quer que seja. Na verdade, a obesidade já está
batendo os cigarros como o maior risco à saúde nos dias de hoje. Inale isso. Cachorros-quentes cheios de nitrato, câncer causado por pipocas de micro-
ondas, frango frito gorduroso, entupimento de artérias por Fettuccine Alfredo, refrigerante saturado de açúcar e todas aquelas coisas dos fast-food são
repletos de riscos significativos à saúde. Esses riscos, embora ainda maiores do que fumar, são vistos como aceitáveis pela vasta maioria das pessoas. É
claro, colocar um risco contra outro não é muito útil; permita-me assim ir direto ao ponto.
A realidade do risco
Na verdade, estamos lidando com a questão do risco. Risco é errado? Paraquedismo é potencialmente mortal. Espeleologia e alpinismo também são
muito arriscados. O cristão deveria evitar essas atividades, ciente da possibilidade de que a vida chegasse abruptamente ao fim?
E não é só recreação e atletismo que trazem riscos. Algumas vocações são muito perigosas. Pescadores, madeireiros, pilotos de aeronaves e
empregados na indústria do aço assumem riscos maiores até que os bombeiros. Como um cristão deveria avaliar os riscos envolvidos em sua profissão?
Sem falar que o dia a dia está repleto de riscos, em diferentes graus, para homens e mulheres.
Não tenho todas as respostas aqui, mas deixe-me dizer duas coisas. Uma: tolice é algo errado, risco não. O tolo se esconde da verdade, não dá
ouvido a advertências e ignora o perigo. Risco não é algo pecaminoso, mas deve ser ponderado de maneira responsável e gerido com cautela. Na vocação e
na recreação isso significa prática, preparação e treinamento. Com dieta (ou fumando) isso significa autocontrole.
Donuts são ruins para mim. Eu gostaria de comer donuts todos os dias. Às vezes me pergunto se haverá donuts nos novos céus e na nova terra e,
então, quantos donuts serei capaz de comer? Mas sabendo dos riscos à saúde nesta vida, decidi comer meus donuts apenas ocasionalmente. Não sou louco o
bastante para me entregar a esse deleite terreno. Charutos são ruins para mim. Decidi não inalar, e manter um autocontrole no meu desfrute deles. Eu sei
dos riscos, mas acho que o prazer de desfrutar um charuto vale a pena.
Devemos levar à sério nossa saúde. O corpo que temos é dado por nosso Criador. Ele quer que o usemos piedosamente e de maneira frutífera,
desfrutando da criação divina com consideração e cuidado. Algumas coisas que desfrutamos são arriscadas, e devemos buscar sabedoria nos riscos que
assumimos. Com relação aos charutos, autocontrole é o aspecto chave. Mas há muito mais a ser dito.
No próximo capítulo, lidarei com argumentos bíblicos que são normalmente usados contra fumar charuto.
Links relevantes
Fumar charuto pode ser pecaminoso se alguém for dominado por isso
Vício é a perda problemática do autocontrole, e o pecado sempre está envolvido nisso. Devemos ter somente um Mestre, e tudo o mais em nossa
vida deve estar a serviço dele. Se você é governado por comida, trabalho, recreação ou charutos, é necessário arrependimento. Essas coisas boas podem se
tornar ídolos. Autocontrole é a marca da disciplina conduzida pelo Espírito. Muitos alegam que no fim Spurgeon parou de fumar. Toda a evidência
histórica sugere o contrário. Ele continuou a fumar charutos por toda a sua vida. No entanto ele podia deixar, e de fato deixou, o charuto de lado por longos
períodos de tempo.
Fumar charuto pode ser pecaminoso se alguém fuma para frustrar os outros
Nunca encontrei tal pessoa, embora alguns aparentemente pensem que é isso o que impulsiona muitos jovens cristãos a fumar. Acredita-se que eles
acendem seus charutos para cegar os outros com sua liberdade, e usam sua liberdade para constranger os outros. Então, podemos simplesmente dizer que se
alguém fuma para provocar os outros sem necessidade, isso é pecado.
Porém, assim como Spurgeon, fumarei um charuto esta noite para a glória de Deus. O que isso realmente significa? Significa que o que quer que
venhamos a fazer legitimamente como povo de Deus, façamos de consciência limpa, com um coração alegre e grato a Deus por suas excelentes dádivas.
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.” [1Co 10.31]
Capítulo 5
P&R sobre charutos
Enquanto escrevia este livreto, recebi perguntas via mídia social com a hashtag #cigarQ4joe. Reuni todas as perguntas que pude encontrar e que
não haviam sido respondidas ao longo dos capítulos.
John Murray (1898-1975) foi um dos maiores teólogos presbiterianos do século XX. Enquanto vivo já era tido como um dos principais teólogos
reformados no mundo de fala inglesa. Nascido na Escócia, serviu na França durante a Primeira Guerra Mundial antes de se mudar para os Estados Unidos
da América. Foi professor de Teologia sistemática no Seminário Teológico de Princeton e no Seminário Teológico de Westminster. Em Westminster, onde
permaneceu até 1966, ano de sua aposentadoria, foi colega de líderes cristãos como J. Greshan Machen e Cornelius Van Til.
A melhor biografia disponível sobre sua vida foi escrita por Ian Murray, com o título The Life of John Murray, e publicada pela The Banner of
Truth Trust.
Murray escreveu vários livros, entre os quais merecem destaque o clássico “Redenção Consumada e Aplicada”[16] e o excelente comentário sobre a
carta aos Romanos.[17] Deste último extraímos seu comentário sobre a passagem bíblica mais utilizada nas questões de liberdade cristã. Não poucos
insistem que devemos nos abster de beber ou fumar por amor ao irmão mais fraco. Estranhamente, pouco se fala da necessidade desses irmãos de se
tornarem mais fortes. Afinal, todos nós devemos crescer na graça e no conhecimento. Todos nós precisamos amadurecer. Mas deixemos isso de lado e
ouçamos o que o grande teólogo escocês tem a nos ensinar.
Tornou-se comum, em nosso contexto moderno, aplicar o ensino de Paulo, em Romanos 14, à situação que se origina do excesso no uso de certas
coisas, especialmente o excesso de bebidas alcoólicas. A pessoa viciada nestes excessos é chamada de “irmão fraco”, e os não viciados são exortados a se
absterem dessas bebidas, em deferência à fraqueza dos intemperantes. Alega-se que os moderados são culpados de colocar pedra de tropeço no caminho
dos viciados, pois, devido ao uso que fazem da bebida, praticam algo que induz e serve de tentação para o irmão fraco se entregar ao seu vício.
Logo se tornará evidente que esta aplicação é uma completa mudança do ensino de Paulo, constituindo um exemplo do relaxamento com o qual as
Escrituras são interpretadas e aplicadas.
(1) Paulo não estava falando a respeito do assunto de excesso no uso de certas qualidades de alimentos e bebidas. Este tipo de abuso não se
enquadra na abrangência do assunto abordado pelo apóstolo nesta ou em outras passagens, tal como 1 Coríntios. Os crentes fracos, mencionados em
Romanos 14, não eram aqueles que se davam a excesso, mas o oposto. Eram pessoas que se abstinham de certos tipos de alimentos. Os “fracos”
acostumados ao excesso não se abstêm; consomem em demasia.
(2) A “fraqueza” daqueles que se entregam a excessos pertence a uma categoria inteiramente diferente daquela abordada por Paulo nesta instância.
A “fraqueza” que consiste em excessos é iniquidade; e a respeito dos que são culpados deste pecado Paulo fala em termos completamente diversos. Os
beberrões, por exemplo, jamais herdarão o reino de Deus (1Co 6.10); e Paulo exorta os crentes a que não mantenham companhia, nem mesmo comam
juntamente, com alguém que, declarando-se irmão, costuma dar-se à bebida (1Co 5.11). Isto é muitíssimo diferente da exortação de Romanos 14.1 —
“Acolhei ao que é débil na fé”. Não se torna evidente o prejuízo causado à interpretação das Escrituras e ao critério pelo qual a pureza e a unidade da Igreja
devem ser mantidos quando os “fracos” em Romanos 14 são confundidos com os intemperantes e alcoólatras?
(3) Mesmo quando consideramos o caso de alguém que se converteu de uma vida de excessos e continua afligido pela tentação de seu antigo vício,
não temos uma situação correspondente à de Romanos 14. É verdade que, às vezes, para tal pessoa o custo da sobriedade é a abstinência completa. Os
crentes fortes devem manifestar todo o respeito e cautela apropriados, a fim de apoiar e fortalecer tal pessoa em sua luta contra a tentação diante da qual ela
tende a sucumbir. Sua “fraqueza”, entretanto, não se assemelha à dos crentes fracos, nas circunstâncias abordadas pelo apóstolo. Estes demonstram a
fraqueza dos escrúpulos de consciência; aqueles manifestam a fraqueza da tendência ao excesso; e os escrúpulos religiosos de consciência não descrevem
ou definem a sua situação.
(4) Imaginemos o caso de alguém que se converteu de algum tipo particular de excesso. Ocasionalmente, acontece que tal pessoa vem a entreter
certo escrúpulo religioso contra o uso daquele tipo de excesso, que antes lhe servira de motivo de vício e, talvez, devassidão. Assim, por motivos religiosos,
ela pratica a abstinência completa. Tal pessoa fez um juízo errôneo, tendo falhado em analisar de maneira apropriada a responsabilidade por seus anteriores
excessos. No entanto, permanece o fato de que, alicerçado em escrúpulos religiosos, ela se abstém do uso daquela coisa em particular. É um crente fraco na
fé e, deste modo, enquadra-se na categoria dos crentes fracos mencionados em Romanos 14. Por conseguinte, as exortações dirigidas aos crentes fortes
aplicam-se nesta instância. Entretanto, os excessos anteriores penetram nesta situação somente como elemento que esclarece seus escrúpulos religiosos.
Não existe motivo para imaginarmos que a origem dos escrúpulos entretidos pelos crentes fracos de Roma possuía esta natureza. Mas, na ilustração
oferecida, a fraqueza continua sendo a de escrúpulos nutridos de maneira errônea. Os fortes devem levar em conta esse escrúpulo religioso, em seu
relacionamento com tal pessoa, e não suas tendências ao excesso, sob hipótese alguma. Pois, no caso abordado pelo apóstolo não há qualquer tendência ao
excesso.
É óbvio, por conseguinte, que o ensino de Paulo neste capítulo refere-se a escrúpulos originados de convicções religiosas. Este é o princípio sobre o
qual repousa a interpretação do trecho e em termos do qual a aplicação se torna relevante. Aplicar os ensinos de Paulo a situações em que tal escrúpulo
religioso está ausente é ampliar as exortações além de sua referência e intenção, constituindo, portanto, uma distorção do ensino a respeito desta fraqueza.
Apêndice 2
James Henley Thornwell (1812-1862) foi um eminente pastor e educador, ministro da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América
(PCUSA) e um dos fundadores da Igreja Presbiteriana nos Estados Confederados da América (1861). Foi um dos teólogos e intelectuais mais influentes dos
EUA no século 19,[18] contemporâneo de outro famoso teólogo presbiteriano do sul, Robert Lewis Dabney.[19]
Serviu no ministério pastoral em três ocasiões separadas[20] e duas vezes como professor no South Carolina College. Foi presidente desta
instituição de 1852 a 1855. De 1855 a 1862, ano de sua morte, Thornwell ocupou a cadeira de teologia didática e polêmica no Theological Seminary em
Colúmbia, Carolina do Sul.
Sinclair Fergunson afirma que “Thornwell era um forte e eficiente defensor dos padrões de Westminster. Sua veia polêmica se devia mais à sua
paixão pela verdade do que propriamente a um espírito combativo por natureza”.[21]
Faleceu com apenas 49 anos, mas deixou um grande legado escrito. Seu Collected Writings, 1871-1882,[22] editado por John B. Adger e John L.
Giradeau, foi republicado na sua totalidade pela The Banner of Truth Trust.
Sua principal biografia foi escrita por B. M. Palmer no livro The Life and Letters of James Henley Thornwell. Além de conter uma excelente
narrativa da vida de Thornwell, o livro está recheado de belas cartas escritas pelo teólogo. As cartas selecionadas por Palmer são das mais diversas,
mostrando a seriedade de Thornwell em diferentes questões: na vida piedosa dos filhos, na preocupação com companheiros de ministério e com a Guerra
Civil. Porém, em meio a essas cartas, encontramos algumas em que seu bom humor, tão característico nele, é revelado. Em algumas das seleções vemos um
Thornwell brincalhão fazendo gracejos com seu hábito favorito: fumar.
É uma dessas cartas que traduzi e transcrevo abaixo. Deleitem-se!
CARA E AMADA IRMÃ ADGER : Comoveram-me muito os relatos tocantes que recebi dos seus múltiplos e agudos sofrimentos, nesse mais importante de todos
os órgãos de uma mulher, “a divina face humana”. Sei como me solidarizar com o sofredor, em especial quando quem sofre é a mulher de um amigo sem
igual no meu coração.
Minha experiência me levou a reconhecer o fato de que um efeito de nossas aflições é nos desarmar das ideias preconcebidas, caprichosas e inúteis, e nos
reconciliar com o que antes abominávamos. No meu caso, o princípio foi ilustrado de maneira muito notável. Num momento da minha vida, carne de
ovelhas, amoras e chá eram o que eu mais abominava; e ficava maravilhado como qualquer ser humano podia consentir com o uso desses artigos de dieta
monstruosos. Mas fui humilhado. Ou morreria de fome, ou me alimentaria de ovelhas com a voracidade de um antigo patriarca ou judeu; e por fim passei a
acreditar que mesmo o cristão pode fazer delícias dos frutos selvagens, da prole do rebanho e da folha da China. Meus conceitos anteriores se foram; e me
sentei diante dessas abominações com a mesma serenidade que me depararia com um presunto, pudim de ameixa ou carne assada. Depois de desistir das
ideias preconcebidas, comecei a me emendar.
Ora, ocorreu-me que há um ponto de orgulho em seu coração que precisa ser humilhado. Você sustenta algumas ideias preconcebidas inexplicáveis, das
quais cabe a você se libertar; e meu interesse em seu conforto físico me leva a lidar de modo muito livre com você nesse assunto delicadíssimo.
Não tenho dúvidas que, se você abrir sua mente para visões generosas daquela mais prazerosa de todas as ervas, a planta do tabaco, seus sofrimentos
poderiam ser bastante aliviados, e em muito abrandados. Apenas reflita sobre ela como um bálsamo que a natureza gentilmente cedeu às dores de dente ou
às mandíbulas doloridas. Deixe-me aconselhá-la, assim como você preza seu conforto, a que obtenha para si mesma um cachimbo limpo de haste curta, e
que se dedique ao processo piedoso de inalar a fragrância deliciosa.
Não há visão mais verdadeiramente venerável que a de uma mãe em Israel, no canto da chaminé, com seus filhos sobre ela, refrescando os seus sentidos
com lufadas de incenso tão doces e divertidas quanto os sons procedentes de sua boca. É a própria imagem da paz digna. A própria ideia de nevralgia a essa
matrona seria inconcebível. Apenas experimente. Eu nunca sinto dor de dente, mandíbula, ou qualquer dor no rosto. O motivo, talvez, seja que não tenho
ideias preconcebidas e absurdas contra “o mais agradável e doce restaurador da natureza”, um genuíno artigo de tabaco.
Quão deleitoso seria se você pudesse sobrepujar suas antipatias, visitar sua irmã Adger, numa noite de luar, em sua mansão hospitaleira, e unir-se a ela na
branda, calma e digna serenidade que os vapores mesclados do cachimbo e charuto tão livre e completamente sinalizariam!
Minha cara e sofredora irmã: fume, fume, e digo de novo, fume. Fará bem a você. Tão logo comece, você não precisará de nenhum argumento para dar
continuidade. O aroma da boa conversa e do tabaco se harmonizam de forma agradável, e formam um incenso requintado.
Considero o suficiente. Todos nós queremos muito vê-la. […][23] Mas meu papel acabou. Certifique-se de fumar, e não ouçamos mais sobre a nevralgia.
Como sempre,
JAMES H. THORNWELL
Apêndice 3
A ética e a consciência
R. C. Sproul
A função da consciência em tomarmos decisões éticas tende a complicar as coisas para nós. Os mandamentos de Deus são eternos, mas, para
obedecer-lhes, temos primeiramente de nos apropriar deles interiormente. O “órgão” dessa interiorização tem sido chamado classicamente de a
consciência. Alguns descrevem esta voz interior nebulosa como a voz de Deus em nosso íntimo. Dentro da consciência, em um recesso secreto, está a
personalidade, tão escondida que, às vezes, ela funciona sem estarmos imediatamente conscientes dela. Quando Sigmund Freud trouxe a hipnose ao lugar
de inquirição científica respeitável, os homens começaram a explorar o subconsciente e a examinar os recessos íntimos da personalidade. Deparar-se com a
consciência pode ser uma experiência impressionante. A descoberta da voz interior pode ser como “olhar para o próprio inferno”, como disse um
psiquiatra.
No entanto, somos tendentes a pensar na consciência como uma coisa celestial, um ponto de contato com Deus, e não um órgão infernal. Pensamos
no personagem de desenho animado que está diante de uma decisão ética, enquanto um anjo está sentado num dos ombros, e um demônio, no outro,
brincando de cabo de guerra com a cabeça do pobre homem. A consciência pode ser a voz do céu ou do inferno; ela pode mentir, bem como impelir-nos à
verdade. Pode falar de ambos os lados de sua boca, tendo a capacidade tanto de acusar como de desculpar.
No filme Pinóquio, Walt Disney nos apresentou a canção “Tente um assobio”, que nos instava: “Sempre deixe a sua consciência ser o seu guia”.
Isto é a legítima “teologia do Grilo Falante”. Quanto ao cristão, a consciência não é a corte de apelação suprema quanto à conduta correta. A consciência é
importante, mas não é normativa. Ela é capaz de distorção e de má orientação. É mencionada cerca de 34 vezes no Novo Testamento, com indicação
abundante de sua capacidade de mudança. A consciência pode ser cauterizada e corrompida, tornando-se insensível por causa do pecado repetido. Jeremias
descreveu Israel como um povo que tinha “a fronte de prostituta” e não queria “ter vergonha” (Jr 3.3). Por causa de transgressões repetidas, Israel tinha,
como uma prostituta, perdido a capacidade de envergonhar-se. Com uma cerviz endurecida e um coração empedernido, veio a consciência cauterizada. O
sociopata pode matar sem remorsos, sendo imune às aflições normais da consciência.
Embora a consciência não seja o tribunal supremo de ética, é perigoso agir contra ela. Martinho Lutero tremeu de agonia perante Dieta de Worms
por causa da enorme pressão moral que ele enfrentava. Quando lhe pediram que se retratasse de seus escritos, ele incluiu estas apalavras na sua resposta:
“Minha consciência é cativa pela Palavra de Deus. Agir contra a consciência não é certo, nem é seguro”.
O uso descrito da palavra “cativo”, por parte de Lutero, ilustra o poder instintivo que a compulsão da consciência pode exercer sobre uma pessoa.
Uma vez que uma pessoa é dominada pela voz da consciência, mobiliza-se um poder do qual podem resultar atos de coragem heroica. Uma consciência
cativa pela Palavra de Deus tento é nobre como poderosa.
Lutero estava correto ao dizer: “Agir conta a consciência não é certo, nem é seguro”? Aqui temos de ser cuidadosos para não tropeçarmos na
aplicação da consciência à ética. Se a consciência pode ser mal orientada ou distorcida, por que não devemos agir contra ela? Devemos seguir nossa
consciência e pecar? Aqui, temos um dilema do duplo risco. Se seguirmos nossa consciência e pecarmos, somos culpados de pecado, porque precisamos ter
nossa consciência instruída corretamente pela Palavra de Deus. Contudo, se agirmos contra a nossa consciência, somos também culpados de pecado. O
pecado pode estar localizado não no que fazemos, e sim no fato de que cometemos um ato que cremos ser mau. Aqui se aplica o princípio bíblico de
Romanos 14.23: “Tudo o que não provém de fé é pecado”. Por exemplo, se uma pessoa é ensina a crer que usar batom é pecado, e ela usa batom, essa
pessoa está pecando. O pecado está não no batom, e sim na intenção de agir contra o que a pessoa crê ser uma ordem de Deus.
O dilema do duplo risco exige que nos esforcemos diligentemente para mantermos nossa consciência em harmonia com a mente de Cristo, para que
uma consciência carnal não nos leve à desobediência. Precisamos de uma consciência redimida, uma consciência do espírito, e não da carne.
A manipulação da consciência pode ser uma força destrutiva na comunidade cristã. Os legalistas são frequentemente mestres em manipulação de
culpa, enquanto os antinomianos são mestres na arte de negação silenciosa. A consciência é um instrumento delicado que tem de ser respeitado. Aquele que
procura influenciar a consciência de outros tem uma grande responsabilidade para manter a integridade da personalidade da outra pessoa conforme criada
por Deus. Quando impomos falsas culpas nos outros, paralisamos nossos semelhantes e os prendemos em cadeias onde Deus os deixou livres. Quando
estimulamos falsa inocência, contribuímos para a delinquência deles, expondo-os ao juízo de Deus.
Apêndice 4
Santificação
Os reformadores protestantes estavam unidos na sua afirmação de que a Bíblia ensina a justificação pela fé somente, mas não por uma fé que está sozinha. A fé salvadora imediata, necessária e
inevitavelmente mostra evidência de si mesma nas boas obras que produzimos no processo de santificação. Paulo nos ordena a desenvolver nossa salvação com temor e tremor à medida que Deus opera em
nós o querer e o realizar (Fp 2.12-13).
Não devemos ficar à vontade em Sião, nem ser quietistas que “deixam a vida rolar e Deus cuidar de tudo”. A vida cristã requer labor com temor piedoso, que chamamos reverência, e com adoração
sempre presente no coração daqueles que temem o Deus vivo. A santificação não deve ser tomada como uma questão casual.
Há, contudo, várias armadilhas que minam nossa santificação. Predominantes entre elas estão o antinomismo e o legalismo. Antinomismo quer dizer anti-lei. Ele traz a ideia de que uma vez salvo pela
graça, eu não devo mais me preocupar em viver uma vida de obediência e não preciso mais prestar atenção à lei de Deus. O refrão favorito do antinomista é “livre da lei, ó bendita condição, posso pecar
quanto quiser e ainda ter remissão”.
Um dos temores do catolicismo romano durante a Reforma Protestante era que a doutrina da justificação pela fé produziria apenas antinomismo. Havia, de fato, alguns reformadores radicais que
entenderam erroneamente a doutrina e seguiram essa direção. Mas a ala reformada da Reforma estava convencida de que, conquanto a lei cerimonial fora cumprida e ab-rogada, as leis morais fundadas no
caráter de Deus continuavam relevantes, mas para mostrar aos cristãos como agradar a Deus e não para obter a salvação.
Hoje o antinomismo é epidêmico. Alguns dizem que a lei do Antigo Testamento não tem mais importância para a vida do cristão. Um dos exemplos mais notórios disso é a ideia epidêmica destrutiva
do cristão carnal. Essa é uma contradição de termos, quando entendemos o que se quer dizer com “crente carnal”; mas há um sentido em que a expressão tem uma aplicação para nós. Todos nós que estamos
em Cristo continuamos em algum grau carnais, pois nossa carne — nossa vontade e natureza em oposição a Deus — não será erradicada até que sejamos glorificados. Não é isso, no entanto, o que os
defensores do cristianismo carnal querem dizer quando chamam alguns crentes de carnais. A ideia do cristão carnal diz que é possível chegarmos a uma fé salvífica verdadeira e receber a Jesus como
Salvador, mas não como Senhor. De acordo com esse ensino, uma pessoa verdadeiramente convertida pode nunca produzir o fruto de uma vida santificada, mas permanecer extremamente carnal e
despreocupada com a lei de Deus até a morte. Cristo está na vida do cristão carnal, mas não no trono dela. O “eu” se assenta no trono e define como a pessoa irá viver.
De onde veio essa ideia do cristianismo carnal? Má teologia é uma resposta. Mas também pode vir de uma forma de se buscar explicar por que tantos que professam Cristo não mostram nenhuma
evidência disso. Conheci um jovem que vivia com sua namorada e vendia drogas, mas justificava seus pecados chamando a si mesmo de cristão carnal. Ele tinha vindo à frente num altar, mas não fazia
qualquer esforço para seguir a Jesus. Ele era um exemplo escancarado de antinomianismo.
A outra principal ameaça à nossa santificação é o legalismo. O que é legalismo? Essa não é uma pergunta fácil de responder, pois não existe uma forma monolítica de legalismo. O pior legalismo diz
que por nossas obras nós podemos satisfazer as exigências da lei de Deus e obter a salvação por nossas boas ações. Essa é a visão de salvação mantida por todas as pessoas que não afirmam o cristianismo
bíblico. Mas se ela realmente fosse o caminho da salvação, só nos poderia levar à desgraça eterna, pois ninguém cumpre a lei de modo perfeito.
Outras formas de legalismo foram aperfeiçoadas pelos fariseus. Os fariseus se especializaram nos pequenos detalhes. Essa forma de legalismo concede grande atenção a questões menores da lei em
detrimento das questões mais importantes nela. Jesus castigou os fariseus, porque só observavam o dízimo. As pessoas deveriam sim dar o dízimo, disse ele, mas não em detrimento de outras questões. Não
podemos pinçar e escolher quais mandamentos seguir (Mateus 23.23-24). Todos nós conhecemos pessoas que são escrupulosas sobre coisas menores, mas que não se importam se exibem ou não o fruto do
Espírito (Gálatas 5.22-24).
Os fariseus também violaram o espírito da lei ao contornarem a lei sobre viajar no dia de sábado. Digamos que eles calculassem uma viagem como tendo cerca de uma milha, o que significaria que
eles não viajariam mais de uma milha do seu lar no dia de sábado. No entanto, eles criariam uma brecha na lei dizendo que uma casa poderia ser considerada seu lar se deixassem em algum lugar dela um item
pessoal, como uma escova de dentes. Se quisessem, portanto, fazer uma viagem no sábado que fosse de 15 milhas, poderiam deixar uma escova de dentes ou outro item pessoal a cada milha ao longo da rota
desejada. Desta forma eles nunca viajariam mais de uma milha do seu lar. Partindo do verdadeiro lar, eles chegariam ao local em que deixaram seu primeiro item pessoal depois de viajar apenas uma milha;
estariam em sua nova “casa” quando encontrassem sua escova de dentes, e tudo começaria de novo. Eles poderiam então viajar outra milha até seu próximo lar, então até o próximo, fazendo todo o caminho
até o destino final.
Uma das formas mais destrutivas de legalismo naquela época, e mesmo hoje, e aquele mais seriamente praticado pelos fariseus, era a tendência de fazer acréscimos na lei de Deus. Eles prendiam a
consciência dos homens onde Deus a libertara para fazer o que quisesse. Esse problema tem atormentado a igreja por séculos. Em todo o caso, pode ser útil nos perguntarmos de que lado estamos nesse amplo
espectro de legalismo, e que atmosfera temos em nossa igreja.
Questões indiferentes
Ligadas à questão do legalismo e do antinomianismo estão as ideias da adiáfora e liberdade cristã. Adiáfora são questões indiferentes — aquelas áreas em que a pessoa não é ordenada nem a fazer,
nem a se abster de algo; áreas em que Deus não nos disse o que fazer, ou não fazer. Os cristãos têm liberdade em questões indiferentes; nós podemos escolher por nós mesmos qual curso de ação tomar. A
liberdade cristã nunca nos dá liberdade para desobedecer a Deus. Ela não é um disfarce para a licenciosidade. Tive certa vez uma oportunidade de ensino para uma missão numa comunidade fora da cidade de
Nova Iorque. Após a missão ter chegado ao fim, fui convidado a voltar para a casa de um dos líderes da missão para um encontro de oração com a equipe de liderança da mesma. Para meu espanto, tão logo a
reunião começou as pessoas começaram a orar pelos seus parentes falecidos. Interrompi-lhes e disse que os cristãos não estão autorizados a orar pelos mortos, pois isso é proibido nas Escrituras e é uma
ofensa capital no Antigo Testamento. Os líderes da missão responderam que a regra não tinha importância, pois se tratava de uma regra do Antigo Testamento. Eu lhes perguntei o que havia acontecido na
história da redenção que faria uma prática anteriormente abominável a Deus aceitável para ele. Eles responderam que não estavam debaixo da lei e que eu não deveria promover um sentimento de culpa neles.
Essa conversa refletiu, por parte deles, um sério mal-entendido sobre a liberdade cristã. Consultar bruxas e coisas assim não é adiáfora. Claramente, assuntos ocultistas não são questões indiferentes, e
não há qualquer razão bíblica para pensar o contrário.
Em algumas situações, entretanto, não podemos concordar com o que é indiferente. O verdadeiro conceito bíblico de liberdade cristã nos ajuda a coexistir quando não temos o mesmo entendimento do
que entra na categoria de adiáfora. Onde é que nossa liberdade cristã começa e termina? Por séculos esse tem sido um problema na igreja.
No corpo de Cristo em Roma havia alguns que comiam carne e alguns que só comiam vegetais, e os dois grupos não concordavam com o que era melhor (Romanos 14). A resposta de Paulo é que
como Deus não estabeleceu uma lei específica neste caso, nenhum dos dois grupos deveria julgar o outro. O vegetariano e o carnívoro pertenciam ambos a Cristo; assim, como ousaríamos julgar uns aos
outros? Como ousaríamos julgar os membros servos de Cristo nas coisas que Deus não os julgava? Devemos avaliar os outros somente de acordo com as normas explícitas da Escritura, e não com aquelas
inventadas pelas tradições humanas.
Cinquenta anos atrás, o evangelicalismo foi atormentado por um legalismo que dizia “não dance”, “não beba”, “não fume”, “não assista a filmes”, “não jogue cartas” e assim por diante. Embora as
coisas tenham melhorado nesse aspecto, essa era uma questão tão importante para muitos evangélicos que toda a espiritualidade e profissão cristã de uma pessoa deveriam ser julgadas pela conformidade a
essas estipulações. Mas você não pode encontrar nenhuma lei explícita na Escritura sobre essas coisas. Como exemplo desse legalismo, lembro-me de uma ocasião em que uma mulher convidou vários de nós
para jantarmos. Éramos todos cristãos, e quando a garçonete apareceu para pegar nosso pedido de bebidas, nossa anfitriã imediatamente entrou na conversa e disse à garçonete que ninguém iria beber álcool,
pois éramos cristãos, e cristãos não ingerem bebidas alcoólicas. Fiquei constrangido pela garçonete, por ter sido repreendida e porque sua visão doravante seria que o cristão é alguém que jamais ingere bebida
forte. Mas Paulo disse que o reino de Deus não é uma questão de comer e beber.
Quantos cristãos têm sido ensinados de que é pecaminoso fazer certas coisas, as quais Deus não declarou como sendo pecaminosas? Eles ouvem que algumas questões indiferentes não são de fato
indiferentes.
Joe Thorn é pastor (fundador) da Redeemer Fellowship em St. Charles, Illinois. Graduou-se na Moody Bible Inst. (BA) e The Southern Baptist Theological
Seminary (MDiv). Além de contribuir com a The Story ESV Bible e The Mission of God Study Bible, é autor dos livros Note to Self: The Discipline of
Preaching to Yourself e Experiencing the Trinity: The Grace of God for the People of God. Joe e sua esposa, Jen, têm quatro filhos e um cachorro,
chamado Lucyfur.
[1] Leia “O que Jesus beberia?”, de Joel McDurmon, publicado pela Editora Monergismo.
[2] Aliás, todas as condenações bíblicas são contra a embriaguez e não contra o consumo de bebida alcoólica.
[3] Joel Beeke, Reading the Puritans, PRJ 6, 2 (2014), p. 331.
[4] O primeiro em coautoria com Randall J. Pederson, e o segundo, com Mark Jones.
[5] C. S. Lewis, Studies in Medieval and Renaissance Literature (Cambridge, Cambridge University Press, 1966), p. 121.
[6] Por exemplo, a Escritura condena a embriaguez explicitamente. Quanto a outras drogas embriagantes, a condenação é por dedução lógica e necessária.
[7] http://cancerprogressreport.org/2014/Documents/AACR_CPR_2014.pdf
[8] http://www.medicalnewstoday.com/articles/282929.php
[9] http://www.medscape.com/viewarticle/474966
[10] Tomei como base o artigo Spurgeon's Love of Fine Cigars disponível em Spurgeon.org; também usei Spurgeon: Prince of Preachers, de Lewis A. Drummond, e Spurgeon: Heir of the Puritans, de
Ernest Bacon, ao escrever este capítulo. Uma excelente biografia sobre sua pessoa é Spurgeon: A New Biography, de Arnold A. Dallimore.
[11] A. A. Hodge, Esboços de teologia (São Paulo: Editora PES, 2001), p. 104.
[12] Capítulo sete do livro “Como devo viver neste mundo?”, de R. C. Sproul, publicado pela Editora Fiel. Reproduzido neste livreto como apêndice. [N. do T.]
[13] Apêndice 4.
[14] www.joethorn.net
[15] No Brasil, talvez a Tabacaria Nacional (http://www.tabacarianacional.com.br/) seja um dos melhores lugares para comprar pela internet. Quem mora em São Paulo recebe o pedido no mesmo dia. [N.
do T.]
[16] Publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã.
[17] Publicado no Brasil pela Editora Fiel.
[18] Veja T. W. Rogers, ‘James Henley Thornwell’, Journal of Christian Reconstruction 7 (1980), pp. 175–205.
[19] Para uma excelente biografia sobre Dabney, lidando inclusive com suas controversas opiniões sobre escravidão, veja Sean Michael Lucas, Robert Lewis Dabney: A Southern Presbyterian Life
(Phillipsburg, N.J.: P&R Publishing Company, 2005). Sean afirma que “Dabney era muito mais complexo do que os historiadores e admiradores admitem”; era “em muitos apectos um homem representativo,
alguém que encarnou as paixões e contradições dos sulistas do século 19” (p. 16).
[20] Em Lancaster, SC (1835-1838) e Columbia, SC (1840-1841; 1855-1861).
[21] Sinclair B. Ferguson e J.I. Packer, New Dictionary of Theology (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2000), 686.
[22] A Logos Bible Software publicou a James Henley Thornwell Collection em 10 volumes, com mais de 4000 páginas. A coleção abrange o Collected Writings e outras obras de Thornwel.
[23] Trecho omitido por fazer referências a eventos incompreensíveis para o leitor não ciente dos amigos em comum entre o Rev. Thornwell e a irmã Adger.