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Educação e ética: a conquista da

autonomia segundo Jürgen Haberma.s


Education and ethics: the conquest of autonomy
according to Jürgen Habermas

Lêda Dan tas*

Introdução
Fullat faz a distinção entre a "ed ica-
O objetivo deste artigo é abordar o
ideal de autonomia da filosofia moder-
ção-realidade" e a "educação-valor·'. A
na na perspectiva de Jürgen Habermas primeira refere-se aos juízos de realida-
e suas conseqüências para a educação. de que elaboramos em torno do proces-
Procuro mostrar como tal conceito está so educativo. Essa á dimensão fática da
relacionado com a sua ética do discur-
so, salientando as distinções e simili- educação. A segunda concerne às pc>ssi-
tudes do seu pensamento com o de bilidades do sujeito humano que se e du-
Kant, filósofo que se encontra na raiz ca, não é um dado, mas um dever-ser.
histórica do conceito de autonomia e Essa é a dimensão axiológica da educa-
cuja ética, em vários aspectos, influen-
ciou aquela de Habermas. ção. A educação é, assim, ao mesmo tom-
po, instrução e formação ética. 1 Err bo-
1~alavras-chacz,1 e; ética, autonomia, ra essa seja uma idéia já presente nos
Habermas. antigos, é no iluminismo que se mani-
festará de forma mais elaborada. Fur da-
da na filosofia da consciência, a é·ica
será considerada pelos modernos cc mo

Doutora em Filosofia da Educação pela UniversiJade


Federal do Ceará. Professora Adjunta do Cent1 o de
Educaçâo/UFPE. E-mail: ledan&~·clogica.com.br
Educação e ética: a conquista da autono1nia ..

a rematização da liberdade do indivíduo particulares 4 . Nessa perspectiva, o edu-


e de sua capacidade de elaborar critérios cador, então, não precisaria apoiar-se em
que justifiquem seus pensamentos e nenhuma noção de sujeito universal; ao
ações. Nesse processo, a educação cum- contrário, precisaria despir-se de qual-
pre o papel extremamente relevante de quer idéia de subjetividade preconcebi-
contribuir para o desenvolvimento des- da e estimular os educandos a se
se ser responsável por sua liberdade. autoconstruir, sem nenhuma referência
Kant é considerado um dos grandes ou fim ideal a ser alcançado.
éticos modernos. Com ele, surge o su- A crítica à razão moderna é feita, in-
jeito autônomo da modernidade, aque- clusive, por alguns iluministas, ainda que
le que se autodetermina fazendo uso ex- por motivos distintos. Os frankfurtianos
clusivamente de sua razão. Kant pro- Adorno e Horkheimer vão afirmar na sua
cura "mostrar que a verdadeira grande- última fase que vivemos em um mundo
za do homem não consiste, como pensa a dominado pela razão instrumental, o qual
modernidade, em sua imposição sobre o torna impossível o desenvolvimento da
mundo, mas antes em sua capacidade de autonomia, pois todas as relações são as-
autodeterminar-se".' Com Kant, o concei- similadas ao "estilo pragmático e utilitá-
to de autonomia torna-se "conceito-cha- rio formal",' sem que se questione o
ve" da modernidade. A ética kantiana é, valor ético dos fins e dos meios. A ética
então, a imagem do iluminismo porquan- resta, então, atrofiada, deixando de ser
to nela a razão humana estabelece como a busca da realização universal da auto-
o indivíduo deve agir. A construção desse nomia para transformar-se num meio de
sujeito autônomo, ou seja, a realização atingir fins privados. Nesse contexto,
nesse indivíduo da sua humanidade é todos os indivíduos são instrumentali-
uma função da educação, afirma Kant, zados e os problemas éticos são consi-
o que é o mesmo que dizer que se deve derados problemas de ordem técnica,
educar para a eticidade,3 esse é o senti- reduzidos à busca do meio mais eficaz
do da educação. para atingir determinado objetivo.
A crítica pós-moderna desconstrói o Jürgen Habermas, embora tenha inte-
"sujeito cognoscente", racional, e grado a Escola de Frankfurt, recusa-se a
desestabiliza a idéia de uma racionali- abandonar a idéia de uma razão univer-
dade na ética. Os pós-modernistas não sal, capaz de efetivar a autonomia. Ele
acreditam na razão transcendente, capaz concorda que a modernidade existente
de estabelecer princípios universais; atrofiou o ético, pois considerou-o fora
logo, segundo eles, não é possível a de- do racional, colocando-o na esfera da
fesa de uma ética única. Contra as éti- subjetividade arbitrária, sem princípios
cas universalistas, defendem a "diferen- universais; reconhece também que a ra-
ça" libertadora da pluralidade das éticas zão instrumental é responsável pelas pa-

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tologias sociais no capitalismo tardio, ele faz depende do próprio sujeito. "7 O
mas argumenta que essa não é a única sujeito kantiano debruça-se sobre si
forma de racionalidade. O problema da mesmo numa atitude reflexiva e fazen-
posição dos frankfurtianos, segundo do uso apenas de sua razão define a si
Habermas, é considerar uma única ra- mesmo.
zão: a razão subjetiva, que capacita o Habermas critica Kant por ter caído
homem a agir sobre os objetos e a dispor no solipsismo porquanto considerou
dos outros. Para que se recupere a cren- apenas o sujeito e esqueceu a sociabili-
ça nos ideais iluministas, entende ser dade. Vai contrapor, então, ao paradig-
necessária a superação da "filosofia da ma da consciência de Kant e seu "s ljei-
consciência" e de un1a "concepção de to centrado na razão" a categoria d1 in-
razão centrada no sujeito". Elabora, en- tersubjetividade, 8 ou seja, da raciona:ida-
tão, um novo conceito de razão e, com de desenvolvida pela compreensão mú-
base nesse, erige a sua ética do discurso. tua. Em Habermas, o ético não brota de
Este artigo objetiva mostrar: a) como um sujeito auto-reflexivo como em
a ética do discurso se constitui como Kant, mas vai emergir da interaçà) de
uma ética intersubjetiva e comunicati- sujeitos. Subjacente a essa posição en-
va, para além da ética centrada no sujeito contra-se uma nova concepção de razão,
de Kant; b) como a ética discursiva, tal que não é uma racionalidade monoló-
como a ética kantiana, constitui-se gíca, como a lzantiana, mas dialófica,
como uma ética universalista e formalis- pois se gesta socialmente. Haberma:; vai
ta, ainda que reformulada dialogicamen- construir esse conceito de razão a par-
te; c) como Habermas articula o concei- tir da reviravolia lingüísrica 9 e da prapná-
to de autonomia com a sua ética, além de tica analítica. 10
indicar as conseqüências dessa ética para Mediante a linguagem, instância que
o processo educativo. Na conclusão, são tem sentido apenas quando compartilha-
apontados os limites da ética habermasia- da, a ética habermasiana realiza :ssa
na para a efetivação da autonomia na es- nova forma de racionalidade e supera o
cola pública. paradigma kantiano, que atribui ur ica-
mente ao indivíduo singular a capacida-
Ética intersubjetiva e de de examinar em seu foro intern ~ os
critérios de sua ação. Para Haberrnas,
comunicativa há "um telas de entendimento na lin1sua-
Conforme Kant, o sujeito é aquele gem, ou seja, como falantes somos les-
que não precisa referir-se a outro ser, a de já participantes de uma intersubjeti-
outra existência para justificar-se, para vidade racional"- 11 O sujeito, nessa ~ ers-
compreender-se': "Tudo o que o sujei- pectiva, é, desde o princípio, social.
to é, tudo o que o constitui e tudo o que Conforme Habermas, quando se p<:nsa

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Educação e ética: a conquistl-l da au1ono1nia ...

a sociedade a partir da linguagem, já se mação, introduzir novas afirmações,


pensa o sujeito como social, pois toda exprimir seus desejos, necessidades e
fala já se põe dentro de um processo de convicções. A grande norma da ética,
socialização. então, é o princípio do discurso, ou seja,
Desse modo, as regras que um indi- está tudo na base da discussão, na qual
víduo deve seguir não são resultado de todos os parceiros têm igual dignidade.
uma ação isolada, como em Kant - cujo Habermas distingue dois modos pos-
sujeito impõe para si mesmo a lei e obe- síveis de comunicação entre os sujeitos:
dece apenas à lei do qual ele mesmo é "o nível da ação ordinária, no qual as
legislador - mas são construídas na pretensões de validade não são problema-
práxis social. A sociedade, ou seja, o tizadas e o nível de problematização, que
conjunto de normas aceitas pelos indi- ele denomina discurso, em que as pre-
víduos, constrói-se por essa possibilida- tensões de validade implicitamente le-
de de consenso entre os grupos orienta- vantadas na prática ordinária são objeto
dos pela razão. A racionalidade tem, as- de argttmentação". 11 O discurso é, na éti-
sim, o seu fundamento no mundo prá- ca de Habermas, um tipo especial de ação
tico; é na práxis social que se efetiva, comunicativa regulado segundo certos
mais especificamente, na comunicação princípios, ou seja, um discurso, para ser
entre os sujeitos. válido, exige competência argumentati-
Habermas propõe, então, uma ética va; exige do sujeito envolvido na tarefa
comunicativa partindo do pressuposto de seja capaz de apresentar razões para o que
que a linguagem tem imanente a si um afirme, e o faça respeitando as regras es-
potencial de criticidade que possibilita a tabelecidas pelo grupo, que podem ser,
comunicação racional entre os sujeitos. por exemplo, o reconhecimento da sin-
Essa razão comunicativa se manifesta na ceridade de todos os participantes e a
argumentação, permitindo que o indiví- busca da cooperação, ao invés da compe-
duo entre no mundo das normas acorda- tição. As práticas do mundo vivido, uma
das por meio de argumentos. vez reformuladas pelo discurso, ou seja,
Construída a partir do paradigma da pelo melhor argumento, e submetidas à
linguagem, a ética comunicativa é uma validação, aquilo que o grupo considera
ética argumentativa, cuja ação se baseia verdadeiro, são rearticuladas à prática co-
nos seguintes pressupostos: a) todo e tidiana. Assim, validada a norma e inicia-
qualquer su1eito capaz de agir e falar é da sua aplicação, ""restabelece-se o vin-
capaz de participar dos discursos; b) culo com o mundo vivido, rompido pelo
Todo e qualquer participante de um dis- discurso". 13
curso pode problematizar qualquer afir-

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Ética universalista e formalista são têm o direito de se expressar, levan-
tando dúvidas sobre as pretensões de
Kant constrói uma ética estritamen- validade assumidas, ficam resguard idas
te intencionalista. Segundo ele, o sujei- as particularidades. Não obstante t1idos
to não precisa buscar a legitimação das
os sujeitos possam argumentar, o cbjc-
suas acões nas estruturas do mundo, mas tivo último da argumentação é chegar à
unica~ente nas suas intenções. E qual universalização. A razão comunicativa
é o critério para se saber da retidão das
aposta, assim, na possibilidade de um
intenções? A universalidade, responde consenso que, de certa forma, recupere
Kant. Se uma proposição pode ser a unidade da razão na multiplicic ade
universalizada, é verdadeira. Quando das vozes.
uma intencão é universalizável, é váli- É o que diz o Princípio U, o impera-
da eticame~te. O princípio kantiano da tivo categórico habermasiano: "Toda
universalização é o imperativo categóri- norma válida tem que preencher as con-
co: "Aceitar como moralmente válido o seqüências e efeitos colaterais que _Jre-
que é válido para todos." 14 visivelmente resultem de sua obsen·ân-
A ética do discurso é, como a ética de cia universal, para que a satisfação dos
Kant, universalista. Contudo, em interesses de todos os indivíduos pos:;am
Habermas, "o universalismo está vin-. ser aceitas sem coação por todos os con-
culado à universalidade, que o pensa- cernidos."17 A razão comunicativa per-
mento e a linguagem necessariamente mite, assim, segundo Habermas, arti-
pressupõem" .15 O universalismo, aqui, cular interesses antagônicos uma vez
é resultado de um consenso intersubje- que considera, ao mesmo tempo, os in-
tivo: deve valer como obrigatório aqui- teresses dos indivíduos e os do grui:·o_
lo que se mostrar aceitável para todos os A ética do discurso é, como a é1 ica
parceiros da comunicação. O princípio kantiana, formal. As éticas formais .1ão
possibilitador do consenso "deve asse- definem conteúdos e admitem como
gurar que somente sejam aceitas como única regra a universalização. A élica
válidas as normas que exprimam uma kantiana só se refere a princípios e im-
vontade universal,,. 16 A razão comuni- perativos. Afora o critério da universHbi-
cativa, possibilitando o diálogo, torna lidade, não há nenhum outro crité:·io,
possível o consenso. Esse é universalis- nenhum conteúdo. Ele não se ocupa com
mo dialógico, ou seja, um universalis- o conteúdo da ética porque entende •1ue
mo que só se decide pela mediação do este se encontra no domínio da fact 1ci-
processo discursivo. dade, e não da racionalidade. Os cont~ú­
A busca do consenso, portanto, não dos, afirma Kant, são parte do mundo, e
elimina a multiplicidade, pois, à medi- a razão, para ser livre, não pode se dei rnr
da que todos os participantes da discus- afetar pelas coisas do mundo."

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Educação e ética: a conquista da autonomia ..

Na ética habermasiana, também não te os nossos pontos de vista. É uma éti-


encontramos nenhuma norma substan- ca alicerçada numa razão procedural,
tiva do que devemos fazer na vida. Mas, que apenas nos permite legitimar tran-
diferentemente de Kant, não porque não sitoria1nente as nossas convicções. Em
devamos nos deixar influenciar pela ex- suma, na ética do discurso há apenas
periência, mas para respeitar a diversida- princípios formais de procedimento,
de. Para Habermas, determinar os con- sendo os valores e as normas definidos
teúdos seria destruir as particularidades. entre os sujeitos concernidos. A ética do
A ética discursiva não pode, portanto, discurso, portanto, não .fornece orienta-
"nem examinar os valores nem proclamar ções de conteúdos - pois entende que
a nniversalidade de alguns dentre eles, esses provêm dos contextos históricos -,
porque eles são partes indissociáveis das mas "um procedimento que pode garan-
diferentes formas de vida". 19 A ética do tir a objetividade dos julgamentos sobre
discurso supõe, portanto, "que os conteú- essas orientações"-" A ética habermasia-
dos emanarão da própria vida, serão tra- na é, então, um procedimento para tes-
zidos à moldura argumentativa pelos pró- tar a validade de conteúdos. Essa valida-
prios interessados, e não pelos especialis- ção é buscada no coletivo e dialogicamen-
tas das questões morais"-'° Os valores de te, diferentemente da ética kantiana, que
uma determinada comunidade vão, as- a realiza monogicamente.
sim, candidatar-se a se materializar cm Enfim, enquanto Kant considera que
normas de cunho universal. o sujeito isolado, por reflexão, pode che-
A ética, para Habermas, tem de ser for- gar a princípios universais, Habermas
mal, porquanto a multiplicidade de cul- entende que isso deve ser decidido na dis-
turas e diferentes perspectivas de vida im- cussão. Freitag observa que a ética do dis-
possibilitam a definição de critérios ma- curso é "uma teoria discursiva que subs-
teriais, sob pena de se destruir tal rique- titui o conceito de razão reflexiva pelo de
za. Para ele, os valores morais encerram razão comunicativa, ou seja, o monólogo
"uma pretensão de validez intersubjetiva, interior pelo discurso público, acessível a
mas encontram-se tão entrelaçados com todos". 23 Vale, então, para Habermas, o
a totalidade de uma forma de vida parti- princípio da universalização de Kant:
cular que não podem, originariamente, "vale o que é universalizável"; mas, um
pretender uma validez normativa no sen- segundo princípio é acrescentado por
tido estrito - eles candidaram-se, em rodo Habermas: "tudo tem que ser discutido".
o caso, a materializar-se em normas que Este segundo princípio responde à per-
dêem vez a um interesse universal"-" gunta de Habermas: "se eu só tenho os
A ética do discurso, portanto, não nos princípios formais, como resolver os pro-
diz o que fazer; somente nos fornece blemas concretos da vida?" Esses serão
elementos para justificar racionalmen- resolvidos no processo de argumentação.

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O conceito de autonomia particularidade. No processo comunica-
na ética do discurso tivo buscam-se a superação dos
particularismos e a realização da va .ida-
Para Kant, é o homem que cria a li- de universal. Na ética do discun o, a
berdade para si e essa conquista depen- universalidade das normas, e por cc nse-
de exclusivamente dele. A liberdade re- qüência a autonomia dos sujeitos, " ga-
side na subjetividade, uma subjetivida- rantida no processo discursivo com vis-
de que cria suas próprias leis. O sujeito tas ao consenso; a autonomia, desse
autônomo, segundo ele, autodetermina- modo, não significa repressão dos e ese-
se, e esse é um processo que se funda jos, mas se funda-se no processo fu 1da-
apenas na sua razão, sem a interferên- mentado de comunicação. 26 Na perspec-
cia do mundo dos objetos ou de outros tiva da ética do discurso, portanto, a
sujeitos. É um processo que se funda na construção da autonomia é um prcces-
autonomia da vontade, que, para ser so coletivo, e a liberdade de um ú 1ico
uma boa vontade, deve pretender a uni- sujeito depende da realização da liber-
versalidade. dade de todos os outros.
A ética do discurso abandona a con-
cepção de sujeito autônomo defendida
por Kant. Ao contrário do sujeito autô-
A ética do discurso e a educa~ão
nomo que conquista sua liberdade inde- A educação pode contribuir para a
pendentemente dos outros sujeitos, formação de sujeitos racionais e éticos
Habermas introduz o conceito de inter- quando desloca a ação pedagógirn do
subjetividade para pensar a autonomia. âmbito da subjetividade para a inter:mb-
Uma vez que o sujeito se gesta social- jetividade. Esse processo se efetiva Jela
mente, é impossível, afirma Habermas, linguagem entre sujeitos que prodm em,
"apreender a liberdade enquanto prin- pelas suas falas, acordos, pois o centro
cípio da modernidade nos conceitos fun- de organização da subjetividade é a ra-
damentais da filosofia do sujeito". 24 A zão comunicativa, que é, desde o prin-
liberdade não é uma conquista pessoal, cípio, social, intersubjetiva.
pois os indivíduos não se individuam A educação, na perspectiva de
isoladamente, "mas somente na medida Habermas, deveria estar "orientada para
em que passam a ser membros de uma a promoção da capacidade discursiva de
comunidade de linguagem e de mundo seus alunos" D Capazes de argumer tar,
vital participado intersubjetivamen- os educandos teriam mais chance,, de
te"_2s não aceitar passivamente verdad"s a
A ética comunicativa reconhece, en- priori. O educando seria formado para
tão, a autonomia dos sujeitos, mas essa desenvolver sua capacidade argume 1ta-
autonomia não implica o predomínio da tiva, defendendo suas posições dü nte

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Educação e ética: a conquista da autonon1ia ..

dos outros. Para tanto, seria preciso criar Conclusão


situações para tal desenvolvimento, ou
seja, preparar o educando para dialogar A educação realiza-se sempre "num
e compreender que as verdades são contexto sociohistórico, numa relação
construídas intersubjetivamente. de condicionamento recíproco com este
O desenvolvimento da competência contexto". 29 Como avaliar a contribui-
argumentativa requer uma relacão simé- ção da ética do discurso quando se tem
trica entre educadores e educandos, ga- em vista a autonomia daqueles que in-
rantida pelo respeito às normas de fun- tegram a escola pública num país da
cionamento do grupo. Essas relações periferia do sistema capitalista, onde
simétricas devem ser o objetivo do pro- não há igualdade social?
cesso educativo, mas Habermas reco- A ética discursiva vai basear-se na
nhece que, no início deste, as ações es- racionalidade comunicativa e em um
tratégicas são necessárias cm face das novo tipo de universalismo: o dialógico.
desigualdades cognitivas e morais entre Essa ética torna os indivíduos capazes de
educador e educando. Todavia, a meta compartilhar significados e de encontrar
deve ser a relação simétrica, comunica- soluções para problemas comuns - neces-
tiva. 28 sidade fundamental entre aqueles grupos
Em suma, numa perspectiva haberma- submetidos a instituições repressivas e
siana, ao educador caberiam as tarefas de privação material. A razão comunicati-
estimular no educando o processo de re- va permite, ainda, articular interesses
flexão sobre as suas ações e de promover antagônicos, pois considera tanto os
as condições para que ele desenvolva sua interesses dos indivíduos quanto os do
capacidade argumentativa. Para tanto, grupo, ou seja, articula o particular e o
deveriam ser organizados discursos li- universal. Além disso, a ética do discur-
vres, nos quais o estudante se percebesse so, como uma ética racionalista, estimu-
dotado de autonomia e de direito para la os sujeitos a orientarem suas ações
defender suas posições únto quanto os segundo critérios passíveis de justifica-
demais interlocutores, ou seja, a escola ção, evitando que se deságüe no subje-
seria transformada num locus de conver- tivismo.
sação onde todos os interlocutores teriam Habermas põe o ético como o estra-
igual possibilidade de argumen tacão. A to fundante das nossas relações, o que é
liberdade, nesse sentido, tem a ve~ com uma exigência se temos em vista a cons-
a competência de falar, de participar de trução da autonomia dos sujeitos. Mas
processos de entendimento. esse processo, construído mediante pro-
cessos racionais de argumentação, mos-
tra-se limitado se temos em vista a es-
cola pública. O consenso, por exemplo,

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na ética discursiva, é resultado de uma sões, e não a definição de conteúdos,
comunicação não coerciva e ilimitada. valores. Mas, sem conteúdo algu1n,
Mas como obtê-lo sem considerar as como tornar posição sobre o consi,nso
condições materiais? Para Giroux e fálico? A ética do discurso responde que
McLaren, a comunicação não distorcida a decisão da comunidade é o último cri-
depende da criação "de uma cultura éti- tério de verdade. Contudo, delegar t'idas
ca na qual existam comunidades de com- as decisões à comunidade não seria cair
preensão relacionadas a estruturas ma- no empirismo? Como podemos saber o
teriais concretas de igualdade". 30 Ava- que irá decidir a comunidade "já que
lidade da razão deve, portanto, levar em esta não dispõe de outro critério a não
conta normas materiais que tenham ser que sua decisão é o último critério
como base necessidades concretas. Con- de verdade?" 32 Podemos, então, objetar
seqüentemente, o modelo de Habermas a Habermas que apenas com "a cat;go-
precisaria incluir uma participação ria lingüística de universalidade é im-
contextualrnente mais responsável na possível especificar as prioridades entre
existência material. A ética de I-la bermas, interesses gerais concorrentes", 33 is10 é,
argumentam ambos, pensa influenciar o só com princípios universais não é pos-
sistema, mas não fornece elementos com sível resolver problemas concretos, Jro-
os quais se possam tentar rever~d as in- blemas morais reais.
justiças sociais, pois, sendo uma ética Um projeto na escola pública não pode
lingüística, não contempla os aspectos ignorar as condições materiais de vid 1 de
materiais envolvidos nos discursos seus concernidos. Logo, a ética discursi-
possibilitadores ou obstaculizadores. va mostra-se insuficiente para fundamen-
Concordam, então, com Welch que tar um projeto que vise à autonomia dos
"um modelo adequado de interação seus integrantes. Essa ética, universa ista
transformativa através do diálogo preci- e dialógica, precisaria ser complememada
sa mais do que a força do melhor argu- com indicações claras no que concerne à
mento de Haberrnas". 31 transformação das condições materiais
A ética discursiva, como a kantiana, daqueles que formam a escola pública, e
não se ocupa de orientações axiológicas com conteúdo mínimo, que constituiria
concretas, ou seja, é uma ética formalis- o horizonte a partir do qual os valor;s e
ta, pois não pretende a produção de nor- as normas específicas seriam construdos.
mas, mas apenas a análise de sua valida-
de. Não encontramos, portanto, na éti- Abstract
ca habermasiana nenhuma regra subs-
tantiva do que devemos fazer na vida. A The aim of this article is to approach
sua ética, sendo formal, proporciona- the autonomy of modem philosoph~' in
nos apenas um procedimento para deci- the perspective of Jürgen Habermas rnd
Educação e ética: a conquista da autononlia ..

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" H.\BER.i\1AS, Jürgen. C:o11sciê11cia moral e agir cm111111ica-
Idem, p. 10. rh•o_ Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. i7.
SIEBNEICHLER, Flávio H.]ii1:rre11 llaber111as: razão co- 1- Idem, p. 84.
municativa e e1nancipação. N.io de Janeíro: Tempo Bra- 1·' KANT, Immanud. Fundamentação da mclafísira dos
sileirn, 1989, p. 130. costumes,op. cit., r- 218.
,\reviravolta lingüística diL respeito uo mo\·imento ocor- 1
'' ROUANET, Sérgio P. Alaf-estar 11a 111oda11idadu, 1·- 243.
rido na filosofia moderna, na segunda metade do sé-
culo X,\:, ton1ando a linguagem como mediação cs.scn- li' Cf. SIEBNEICHLER, Flávio. ]iirgcn llabermas: razão
cial p~ira o acesso uo real. Esse mo\"imento vui buscar, comunicativa e emancipação, p. l-l-3.
1
ao contrário de Kant, não as estruturas da consciencia, ' Idem. Ibidem.
mas da linguagem. Agora, para os analíticos, a filo.sofi::i " OLIVEIRA, ll1anfredo Araújo de. Re'i.:ira~·olla lin-.;iiisti-
de\·e temati~ar a estrutura fundamental da linguagem
co-pragmárica na filosofia moderna. Süo Paulo: L Jyola,
humana, aquilo que é pressuposto de todo conhecimen- 1996. p. 57.
to, pois todo o conhecimento passa pela linguagem - o
que não havia sido percehido por Kant. Alas a idéia de FREITAG, Bárbara. Itinerários de Ant(!fO!la. Ca1nJinas:
fundo permanece a mesma: existe uma estrutura que Papirus, 1991. p. 251.
antecede todo conhecin1ento empírico, e essa estrutura ! HABERJVIAS, Jürgen. O discurso filosófico da 111od~1·nida­
4

é formal. de. Lisboa: Dom Quixote, 1990. p. 273.


1
" Com \'í/ittgcnstein II (aquele da bri.!llsfigaçiJes filosóficas, '' SIEBENEICHLER, Flávio B. ]iirgcn llabermas: ruúio
pois o do Tractarus afirm~n·a que sob a superfície da comunicati\·a e emancipação, p. 145
linguagem comum se oculta a forma lógica da lingua- 2
" FREITAG, Bárbara. Itinerários d!! Amígona, op · cit.,,
gem universal), a re\'Íra\·olta \"aí incorporar outro as- p. 252.
pecto: a práxis. A linguagem, então, não é nlais consi-
derada do ponto de vista do sujeito isolado, mas da r PRESTES, Nadja. Educação e racionalidade comu;licali-
comunidade dos sujeitos cm interação. Para ele, a lin- ;:a., p. 103.
guagem é, sobretudo, un1 ato social que se realiza numa 1
' Idem. Ibidem, p. 116
dada comunidade. O seu funuaffi.!nto é o seu próprio 2
'' SILVA, Tomaz T. O udeus às metanarrati\·as. ln SIL-
uso, não sendo possível o estabelecimento de nenhum
Vi\, Tomaz T. (Org.). O sujei/o da educação. 3. ed. 'etró-
a priori. No que se refere último aspet:lo, I-Iabermas se polís: Vozes, 1999. p. 249.
distancia da pragmática wittgensteiniana, pois \'DÍ ten- 1
tar estabelecer os pressupostos da argumentação. -' 'Vide GIROUX, Ilenry. O pós-n1odernismo e o dii curso
11
da crítica educacional. ln: SILVA, Tomaz, T. (l)rg.).
PRESTES, Nadja. Hermann. O pensamento de IIaber-
Ji:oria educacionaf crítica em lel//pos pós-modernos. Porto
mas. Filosofia .• sociedade e educução, Unesp-1\-larília, ano
Alegre: Artes Médicas, 1993. p. 47.
I, n. 01, 1997, p. 125.
' 1 Cf. NkLAREN Peter. In: SILVA, TI1maz, T (Ürg_) Tem·ia
PRESTES, Nadja H. i:.:âucu~-uv e rucümulidade comunü;a- educacional crí/Íca em tempos pós-modernos, 1993. p. i::-19.
fÍ<.'a. Porto Alegre: Edipucrs, 1997. p. 83.
3
~ Idem. Ibidem.
rJ ROUANET, Sérgio P. JHal-estar na modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 207. BRONNER, Stephen. Da teoria crítica e seus te1 ncos.
14
Campinas: Papirus, 1997. p. 270.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes. ln: Kant, São Paulo: Abril Cultural, 1974. p.

REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 10, n. 1, Passo Fundo, p. 116-126 - jan./jun./2003

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