Você está na página 1de 12

Sobre a curadoria: pistas e pedágios

Artigo sobre gestão, programação e curadoria nos mundos da arte e da cultura


Autor: Sidnei Cruz
Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: O artigo procura estabelecer diferenças e conexões entre as funções de gestão,


programação e curadoria nos mundos da arte e da cultura. Procura estabelecer pistas
para as escolhas entre cuidar e criticar. Ao mesmo tempo, aponta a importância do
lugar de onde se olha o espetáculo, sugerindo o papel primeiro de espectador no ato
curatorial. Coloca a ética e a estética diante de um mundo de desigualdades de
oportunidades para a reflexão da atitude curatorial como um ato ao mesmo tempo de
afeto e de sociabilidade.

Palavras-chave: mundo da arte, gestão cultural, programação cultural, curadoria.

Resumen: El artículo busca establecer las diferencias y conexiones entre las funciones
de gestión, la programación y la “curadoria” en el mundo del arte y la cultura. Busca
establecer pistas sobre las elecciones entre el cuidado y criticar. Al mismo tiempo
señala la importancia del lugar donde se mira el espectáculo, lo que sugiere el primer
papel de espectador en acto curatorial. Ponga la ética y la estética, frente a un mundo
de desigualdades de oportunidades para la reflexión de la actitude curatorial como un
acto al mismo tiempo de afecto y de sociabilidad.

Palabras clave: mundos del arte, la gestión cultural, programación cultural, curaduría.

Sobre a curadoria: pistas e pedágios

“Podemos sempre fazer as coisas de outro modo.”


(Howard S. Becker)

Neste artigo estamos ocupados com o mapeamento de indícios para a abordagem de


questões relativas à proliferação de ofícios nos mundos da cultura e da arte. A tentativa
de delimitação de funções e responsabilidades no âmbito das “profissões” não visa
separar territórios ou erguer fronteiras definitivas e visíveis entre elas. O artista, o
crítico e o curador exercem, cada qual no seu quadrado, o seu próprio ofício
distintamente um do outro.

Não estamos de modo algum defendendo a ideia de qualquer especialização. Pelo


contrário, tudo indica que no mundo contemporâneo houve uma acelerada disfunção
da especialização enquanto norma. É interessante o que o crítico Felipe Scovino diz:
“Aqui é tudo muito precário, o curador é crítico, e escreve no jornal, na revista e no
catálogo; e ao mesmo tempo ele é pesquisador e professor. Atua em diferentes funções;
há uma promiscuidade” (REZENDE, 2013, p. 17). O que intencionamos é contribuir
para a problematização e superação do clima de vale-tudo ou de falta de critérios na
vasta militância “profissional” (e, também, amadora) nos mundos da cultura e da arte.

A ideia de “mundo” é uma abordagem “que abre múltiplas possibilidades, descobertas


no curso de uma imersão na vida social” (BECKER, 2010, p. 312). Considerando a
metáfora de mundo devemos, necessariamente, ter em conta que pessoas dos mais
variados tipos e interesses estão fazendo coisas, prestando atenção umas às outras,
trocando, combatendo, conspirando, confundindo, produzindo desordens no mundo do
trabalho, em constante cooperação na busca de novas respostas para novas situações.
Vale lembrar que, sobretudo, vamos operar com a ideia de que não existe — para nossa
análise aberta — nenhuma linha visível ou invisível que possa separar esse conjunto
cooperativado e colocá-lo em unidades fechadas, compartimentalizadas ou numa
geração perpétua de conflitos irreconciliáveis. Então, nossa pista parece apontar para o
caminho que vai dar numa certa “sociologia das profissões aplicada aos domínios das
artes” e da cultura, ressaltando, no entanto, que a estrada é longa e que vamos ficar por
aqui, na encruzilhada. Como pensa Becker (2010, p. 79): “Falar da organização de um
mundo da arte (da sua divisão interna em diversos tipos de públicos, de produtores, e
dos indivíduos que constituem o pessoal de apoio) é outra maneira de falar da
distribuição dos saberes e do seu papel na acção coletiva”.

O mundo cultural possui uma dimensão social que interage com os mais diferentes
lugares da sociabilidade atual, seu desenvolvimento se dá por meio de uma cadeia
produtiva cuja dinâmica e diversidade faz a interligação entre as fases, elos ou estágios
que compõem um sistema próprio de produção e difusão. Sistema esse que, de acordo
com Teixeira Coelho (1999), pode ser resumido, em termos gerais, a quatro fases
(produção, distribuição, troca e uso). Cabe ressaltar o que diz Howard S. Becker, sobre
uma dessas fases:

“(…) os mundos da arte plenamente desenvolvidos criam sistemas de distribuição que


integram os artistas na economia da sua sociedade. (…) E esses sistemas de
distribuição, tal como outras actividades de cooperação inerentes a um mundo da arte,
podem ser controlados pelos próprios artistas. Mas, geralmente, quem deles se ocupa
são intermediários especializados que, por vezes, obedecem a interesses diferentes dos
interesses dos artistas de quem divulgam as obras.” (BECKER, 2010, p. 99-100).

Sabemos que para fazer o sistema cultural funcionar, conforme aponta Antonio Albino
Rubim (2008), torna-se necessária a ação conjunta de uma infinidade de profissionais
especializados — descentralizados, porém articulados por diversas redes enviesadas de
colaboração, compostas por criadores, preservadores, transmissores e organizadores.
Para o tema em questão interessa falar sobre os organizadores da cultura. Dentre eles,
destacam-se os profissionais que podem ser agrupados em dois setores estratégicos.
Aqueles que atuam na esfera executiva criando leis e diretrizes, tanto no poder público
(secretários e ministros) quanto nas empresas privadas (diretores, gerentes e
assessores), e aqueles que atuam na esfera da práxis, no âmbito da sociedade civil
(produtores, programadores, gestores e curadores). Os organizadores pesquisam,
formulam, planejam, selecionam e organizam a cultura e suas políticas em vários
níveis. São esses organizadores que agem cotidianamente nas cidades, formando uma
constelação de praticantes culturais (CERTEAU, 1994) integrados, independentes ou
outsiders do sistema cultural.

A diversidade e as tênues fronteiras entre os campos de atuação e as especificidades


técnicas de cada um dos membros dessas tribos de praticantes culturais geram muita
confusão operacional. A confusão se deve, principalmente, ao fato de alguns acharem
que o profissional da cultura é — senso comum — um generalista, um cara que é bem
informado sobre todas as esferas da cultura e da arte, ou seja, sabe um pouco sobre
muita coisa.

O fato é que o senso comum conservador — principalmente aquele que predomina


entre os poderes que organizam o mundo do trabalho e as demandas do mercado —
procura aglutinar e exigir em torno de um mesmo profissional (o técnico especializado
em cultura) funções diametralmente opostas. É recomendável considerar que ser um
profissional generalista não é a mesma coisa que ser um profissional com
multiplicidade de recursos e habilidades. E o profissional melhor qualificado é aquele
que possui uma diversidade de saberes com uma intensidade acima da média, ou seja,
com mais conhecimento do que simplesmente informação.

A capacidade de mobilidade social que o profissional da cultura possui de migrar de um


para vários setores do mundo cultural, de acordo com as demandas do ambiente no
qual ele atua, não garante a obtenção de resultados eficazes. Geralmente caímos na
tentação de confundir três funções similares, porém, distintas: gestão cultural,
programação cultural e curadoria.

O gestor cultural é o profissional que articula e compatibiliza instrumentos gerenciais,


recursos técnicos especializados, programas, ações, projetos e atividades, com vistas a
alcançar uma eficácia nas relações entre instituições, investimentos, eventos e
consumidores de bens culturais. O profissional que atua na área da gestão cultural “(…)
deverá estabelecer uma relação entre as questões artísticas e culturais associadas aos
conhecimentos sociológicos, antropológicos e políticos, bem como aos conhecimentos
técnicos da comunicação, economia, administração e direito, aplicados à esfera
cultural” (CUNHA, 2007, p. 125).
Em relação ao programador cultural, o diferencial na atuação desse profissional está no
fato de que ele age na escala territorial local, articulando pontos de contato direto com
a comunidade e com seu cotidiano, descobrindo e mapeando os problemas e desejos da
comunidade, suas características e seus conflitos, estabelecendo linhas de integração
com a vida cotidiana dos cidadãos que habitam e formam o bairro ou a cidade.

Tal imersão na cotidianidade suscita uma indagação padrão que ressoa na cabeça do
programador cultural como uma martelada do tipo “em nome de quê é possível
programar?” Esta é a questão colocada pelo pesquisador, crítico e gestor cultural
português, António Pinto Ribeiro:

“Para tentar responder a esta questão, talvez seja oportuno referir dois preceitos que
qualquer programador deve considerar. O primeiro tem a forma de pergunta: O que
sabes que os outros não sabem, que legitima escolheres e decidires? A resposta pessoal
a esta questão é crucial porque nela está contida a legitimidade e a responsabilidade de
qualquer programação. (…) Uma programação implica sempre uma escolha. E uma
escolha determinada, de entre as variedades possíveis de escolha, significa que uma
programação é muito mais do que a soma de um conjunto de actividades. Essa escolha
implica uma certa ordenação do mundo a partir da ideia de uma comunidade de
afectos, de eleições ideológicas, de visões desse mesmo mundo. Nela está sempre
presente a consciência de que não só incluo como excluo e, ao excluir, não posso
esperar que a programação seja do agrado geral, seja uniforme.“ (RIBEIRO, 2000, p.
53-54).
É na esfera local que o programador cultural interagirá e realizará mediações que
envolvem pessoas, espaços, equipamentos e outros diversificados recursos que
consolidam a ação cultural. A ação local é a mediação entre o possível e o impossível no
mundo, no jogo de considerações e situações a partir das demandas dos indivíduos e
dos grupos no cotidiano da cidade. Quando nos referimos à ação local, ao específico do
lugar-cidade, é bom atentarmos para o que diz Sloterdijk (2000, p. 48), ou seja, cuidar
para não tomar o público como rebanho:

Desde O Político, e desde A República, correm pelo mundo discursos que falam da
comunidade humana como um parque zoológico que é ao mesmo tempo um parque
temático; a partir de então, a manutenção de seres humanos em parques ou cidades
surge como uma tarefa zoopolítica. O que pode parecer um pensamento sobre a política
é, na verdade, uma reflexão basilar sobre regras para a administração de parques
humanos. (…) Homens são seres que cuidam de si mesmos, que guardam a si mesmos,
que — onde quer que vivam — geram a seu redor um ambiente de parque.
Daí a importância da escuta e do olhar do agente provocador para a ação local, sentidos
indispensáveis para a elaboração de um desenho de programação possível. A
inquietação se faz sempre a partir da indagação sobre o que fazer no lugar-cidade.
Beatriz Sarlo (2014: p.5) sugere pistas sobre como olhar e sentir a cidade
contemporânea, ela a percebe como um caleidoscópio de estranhamentos, como um
corpo grávido de crise econômica, repleta de situações invisíveis para uns e
materialmente bizarras para outros, tomada por lutas de contrastes. “A cidade não
oferece a todos a mesma coisa, mas a todos oferece alguma coisa”. Beatriz Sarlo adverte
– na pista de Borges – para a atenção que devemos ter com, “as ficções que podem ser
lidas como “teorias da cidade”, não referentes à cidade real, mas à cidade como ideia.”
Escapar dos discursos que produzem modelos de cidades, decifrando “sistemas
materiais de representação”, percebendo a interseção entre a cidade escrita e a cidade
vivida, entre o imaginário e o real. Portanto, não existe cidade perfeita, a cidade real
está em permanente construção e demolição, decadência e renovação.

Toda cidade é composta por várias comunidades, onde vínculos são negociados em
escalas variadas. As comunidades demarcam as flutuações e os fluxos da cidade,
criando um teatro de ações, fundando e articulando jogos de espaços, mobilidades
sociais, inventariando aquilo que Michel de Certeau chama de “lugares praticados”.
Uma prática feita não só de memória e narração, mas também de delimitação de
fronteiras e de interlocuções. Uma prática que se apropria do espaço e “introduz uma
contradição dinâmica entre cada delimitação e sua mobilidade” (CERTEAU, 1994, p.
209-17). A programação dialoga com a cidade — ela própria é a medição por excelência
— e com os seus equipamentos ativos e inativos. Pois, como pontua Canclini (2000, p.
99):

“São escassos os estudos empíricos na América Latina destinados a conhecer como os


artistas procuram seus receptores e clientes, como operam os intermediários e como
respondem os públicos. Também porque os discursos com que uns e outros julgam as
transformações da modernidade nem sempre coincidem com as adaptações ou
resistências perceptíveis em suas práticas.”

Os intermediários são os mediadores sociais que fazem interagir as diferentes formas


de manifestações culturais da sua cidade, manipulando todo um arsenal de
comunicação direta e indireta. Eles são os pontos de conexão entre os diferentes
públicos e as diferentes experiências culturais potencialmente espalhadas por todos os
cantos da cidade mapeando necessidades e desejos, preparando o terreno para os
encontros, questionando, estimulando os sentidos do público.

A ação cultural, no caso o nosso foco está centrado nas artes cênicas, deve ser fruto de
um laborioso processo de mesclagem entre reflexão e intuição. Um plano de
programação deve ser substancialmente um “laboratório experimental”, comportando
tanto a realização e a verificação de novas concepções, métodos, técnicas e tecnologias
de planejamento, administração e execução de projetos quanto a proposição de
atividades especiais e inéditas. Entretanto, em hipótese alguma descuidando da
manutenção e sistematização daquelas atividades e projetos que comprovadamente são
eficazes quanto aos seus objetivos, realizações e resultados alcançados. A ciência e a
arte de programar dependem do exercício sistemático deste equilíbrio entre a
regularização e a inovação. Pois, experimentar é avançar sobre o que já foi conquistado,
empurrando para o novo, tendo sempre como suporte o que foi feito anteriormente.
Elaborar um plano de programação de atividades cênicas é dispor as ideias de tal
maneira que elas sejam transformadas em instrumentos eficazes, capazes de mapear
um itinerário, no sentido de atingir o objetivo principal: o público.

O público só aflui aos espaços culturais quando há uma oferta de atividades. Mas para
programar é necessário saber que público é esse. É comum se deixar levar pelas suas
aparências camaleônicas. Os vários significados de público se misturam e escapam pelo
corpo escorregadio da sociedade civil, sempre em movimento. Pode se referir a uma
população organizada, um bairro, uma comunidade de afinidades e, regra geral, é
associado a uma ideia de multidão ou de massa sem rosto ou individualidade. Se
falamos de um público quando nos refirimos aos destinatários de uma programação,
devemos tomar o cuidado de não reduzi-lo a uma circunstância de consumo. É melhor
evitar a zona de conforto e considerar o que sugere Warner (2008, p. 15):

“Um público é algo tanto nocional como empírico. Também é parcial, já que poderia
existir um número infinito de públicos dentro da totalidade social. (…) É algo que se
cria a si mesmo e se organiza a si mesmo; se autogera e se autogestiona, e por isso
radica o seu poder, assim como sua elusiva estranheza.” (1)

A programação cultural é um conjunto de projetos e atividades organizados por um


período longo. O programador cultural trabalha necessariamente com projetos
regulares, de formação e expansão do gosto médio e de alcance mais amplo das
plateias. Seu foco é a educação dos sentidos, o desenvolvimento de hábitos culturais, a
ampliação da sensibilidade dos públicos por meio de exercícios de fruição e acesso à
diversidade cultural.

No espaço do artigo nos limitaremos a analisar comparativamente as funções do


curador e do programador cultural, percebendo as semelhanças e diferenças dos dois
ofícios. Evidentemente que muitas características, atitudes e habilidades são comuns
aos dois profissionais e no mundo das ações coletivas elas podem ser intercambiadas.
Mas curadoria não é a mesma coisa que programação cultural. Certamente que as
questões de método acerca da curadoria são infinitas e subjetivas e, em sua maioria,
importantes e válidas no amplo e complexo quadro da vida cultural contemporânea.
Mas o que é mesmo um curador? O que é mesmo que ele faz? Curador cuida de quê?
Leonzini (2010, p.10), diz que o que os curadores mais fazem

“é olhar a arte e pensar sobre a sua relação com o mundo. Um curador tenta identificar
as vertentes e comportamentos do presente para enriquecer a compreensão da
experiência estética. Ele agrupa a informação e cria conexões. Um curador tenta passar
ao público o sentimento de descoberta provocado pelo encontro face a face com uma
obra de arte.”

Há também certa insistência em ver semelhanças de funções em profissionais distintos


ajustando no mesmo suporte conceitual as figuras do crítico e a do curador. É o que
mostra Rezende (2013, p. 9/10):

“Ainda é bastante perceptível como os mecanismos de profissionalização no Brasil


permitem uma frequente e frequentemente afortunada “promiscuidade’ entre o papel
de crítico, curador, professor, artista, ou seja, diferente e simultâneas articulações de
pontas do circuito, rara em outros contextos.”

Talvez, pelo fato de que ambos sejam egressos do que Rezende (2013, p. chama de
“campo da teoria após as inúmeras proclamações do fim da história, do fim da história
da arte e outras parusias crítico-conceituais”. O trabalho do curador é o mesmo do
crítico? Vejamos: grosso modo, um curador cuida, conserva e distribui, de maneira
oposta ao crítico que examina, separa e seleciona. Um curador pensa relações e
conexões, o crítico pensa em rupturas e autonomias. O curador organiza oportunidades
e espaço para as coletividades, o crítico legitima modelos e individualidades.

Uma definição operacional para o conceito de curadoria é a de que ela é uma técnica,
um pensamento e uma visão das obras em relações de influências e sentidos
organizadas no tempo e no espaço. Uma vertente do trabalho da ação curatorial é
basicamente estruturada a partir da aproximação de trabalhos, semelhantes ou
diferentes, dispostos lado a lado: “(…) em nosso campo de visão, ou mesmo na
memória, eles se comunicam e se contaminam, não apenas um doando sentido ao
outro, mas permitindo o surgimento de sentidos pela aproximação deles” (ALVES,
2010, p. 55).

Mas a arte da curadoria também investe na contramão do gosto hegemônico ou


homogêneo das plateias. Cria um recorte na programação para possibilitar uma
percepção laboratorial, de tentativas e erros, tanto para o público inquieto quanto para
os artistas inventores radicais. Neste sentido, as escolhas do curador são pelo dissenso,
pela margem, na perspectiva de criar oportunidades para o surgimento de produções e
percepções do futuro.

A curadoria, quando vista como um modo particular de agir na sociedade por meio de
uma ação cultural que pensa a arte como contraponto aos padrões dominantes, imagina
um cenário, um recorte eventual, construindo uma delimitação no tempo e no espaço,
para possibilitar leituras possíveis das obras agrupadas num determinado local
(parede, teto, chão, ponte, viaduto, estação do metrô, galeria, teatro, cinema, edifício,
elevador, banheiro público, praça, rua, cidade, território) ou conjunto de lugares e
equipamentos obedecendo às leis do tempo (duração, período, estação, época),
promovendo um tipo de mediação diferente com a sociedade. Pois “a principal missão
do curador, a meu ver”, diz Cintrião (2010, p. 41), “é criar métodos e formas de
apresentar um determinado grupo de obras (ou objetos, documentos etc.), de maneira
a facilitar a compreensão do espectador, buscando acessar todo e qualquer tipo de
público.”

O curador é aquele que, numa espécie de moto-contínuo, redefine o seu ofício a cada
projeto que desenvolve, levando em consideração circunstâncias e arranjos sociais, pois
sua maior qualidade é a de ser um articulador e construtor de sentido. “Seu ofício de
revelar camadas de significação das obras em sua relação com outras obras e contextos
particulares permanece, a meu ver, instrumento de conhecimento” (FERREIRA, 2010,
p. 148).

O curador é um pensador. Um pensador da práxis, um arranjador de obras em


perspectiva utópica, seja alinhavando narrativas ou estruturando temáticas. A
curadoria é um processo de seleção e agrupamento de obras artísticas com a finalidade
de provocar os sentidos, de mostrar tendências, novos ângulos ou diferentes visões de
mundo. As obras são capturadas nos mais distantes espaços e realidades e reinseridas
num novo circuito de atividades, acontecimentos e vivências sob a forma de mostras,
festivais, residências, encontros ou feiras, regidas pelo eixo curatorial com o objetivo de
manter ou modificar seus significados de origem. Esta operação da imaginação cria
ambientes de trocas, de influências entre artistas e público. Estamos diante de uma
atitude agenciadora de possibilidades para o desenvolvimento cultural local. Neste
sentido, podemos dizer que o curador é um criador. Criador de valores culturais, que
por sua vez colaboram para a formação de um importante tipo de capital, o capital
social. Dentre os organizadores, o curador é um tipo específico de profissional que se
destaca por sua capacidade de aliar responsabilidade social e imprevisibilidade
imaginativa. “Discutir o ofício do curador implicaria pensar a sua função social e
também o papel que exerce no campo da educação não formal.” (ALVES, 2010, p. 50)

A curadoria é um dos principais elos das conexões contemporâneas entre cultura e


cidade. A atividade curatorial transforma-se em ação cultural quando mescla
imaginação, ação e reflexão. Vira uma ação poderosa que “penetra no tempo presente e
viabiliza aquilo que sua imaginação pré-sentiu, pré-dispôs — ligando-se assim ao
processo cultural concreto” (COELHO, 2008, p. 93). De modo geral, o curador que faz a
diferença no circuito no qual está inserido é aquele que desvela, revela, descobre uma
obra ou artista, um grupo ou movimento. Retira a sua descoberta do suposto limbo ou
obscuridade, da margem ou periferia, fazendo-o migrar para a centralidade de outros
olhares.
Embora a nomenclatura seja moderna, o ofício do curador é antigo; podemos tomar
como marco importante o século XVI, quando surgiram os gabinetes de curiosidades,
CURA“pequenas salas-enciclopédias onde eram expostos objetos de toda espécie, como
animais empalhados ou vivos, conchas, moedas, louças, esculturas, enfim, produtos da
natureza e do homem, muito difundidos na Europa, a partir de 1550” (CINTRÃO, 2010,
p. 16). No século XVI, os acervos eram agrupados por toda a parede, do alto do teto ao Comentado [FF1]: CURADOR – COLECIONADO –
ACUMULADOR – ARQUIVISTA
rés do chão da sala, catalogadas, reunidas por afinidades, tipos, gêneros e arranjos que
obedeciam ao gosto — às vezes, excêntrico — do colecionador, que usava critérios
pessoais para explicar cada item exposto aos visitantes, “fazendo na época, o papel que
vários profissionais exercem até hoje de pesquisador e curador a educador.”
(CINTRÃO, 2010, p. 20).

Para o curador, sua ética é criar oportunidades para a nova geração de artistas. O novo,
o desconhecido, o futuro. Pois sua matéria prima é a reinvenção das relações entre arte
e vida. Ela propõe novos intercâmbios entre o público e a obra, entre o artista e a
sociedade. Deseja instigar novos modelos de estímulos sensoriais, desenvolvendo os
sentidos dos espectadores, ampliando os campos de recepção.

A curadoria é arte de oferecer diversidade em oposição às padronizações midiáticas.


Porém, neste terreno como em qualquer área da humanidade não há unanimidade,
sempre existiu e existirão programadores de arte e diversão que pensam e pensarão o
contrário. Um exemplo antigo que influencia até hoje os poderes constituídos é o de
Juvenal, no império romano, ao criar a fórmula “Pão e Circo”:

“Quanto às influências bestializadoras, os romanos já tinham instalado a mais bem-


sucedida rede de meios de comunicação de massa do mundo antigo, com seus
anfiteatros, seu açulamento de animais, seus combates de gladiadores até a morte e
seus espetáculos de execuções.” (SLOTERDIJK, 2000, p. 18)

O curador é aquele que se coloca no lugar do espectador “naif”, deixando-se levar pela
trama, aderindo à participação subjetiva que a experiência cênica lhe propõe; depois,
procura equilibrar sua análise fruidora, considerando aspectos da experiência
apresentada e o potencial inacabado — os elementos que foram abafados — que toda
obra apresenta no percurso do seu projeto ético-estético. Ele tenta escapar das
armadilhas do gosto pessoal ou do bom gosto legitimado pelos especialistas ou
“entendidos”, no sentido que Alessandro Fersen denomina como a atitude do
espectador bizantino, aquele que acredita que o único critério de valor é a consideração
estética instrumentalizada por um saber a priori.

Bizantinos e naïfs na plateia estão sentados um ao lado do outro, entretanto oferecem o


exemplo mais flagrante de duas qualidades opostas de atenção teatral. O espectador
naïf adere de corpo e alma à trama do espetáculo; sua adesão é acrítica. Foi ao teatro
para deixar-se envolver por uma “história”. Transferiu-se para o palco assim que o pano
se levantou: é um ator visual. Agora está concentrado na fala dos atores-personagens e
até imita o movimento dos seus lábios, repetindo interiormente cada palavra que é
pronunciada. Depois, vai até fazer algumas críticas: mas todas elas dependerão da
possibilidade de participação que o espetáculo lhe propiciou. É o espectador autêntico:
uma espécie cada vez mais rara. (…) Ao lado do naïf, aprecia o espetáculo o espectador
bizantino. O acontecimento dramático chega até ele filtrado através de seus diafragmas
culturais. Entrega-se ao enredo com cautela. Sua atenção crítica despe o personagem de
seu disfarce e põe a nu o ator que assumiu a alma do personagem. Com a mesma frieza,
o olho bizantino examina o cenário, as roupas, o jogo de luzes; enquanto isso, o ouvido
distingue as músicas da cena. (…) A avaliação que resulta disso diz respeito à direção,
estabelece comparações com o texto, ratifica o nível dramatúrgico do roteiro inédito.
Dificilmente este espectador concede-se algum momento de relaxamento: ele não é
uma pessoa que “se entrega” (as exigências do gosto erigem-se assim em normas de
“bom gosto”). (FERSEN, 1987, p. 9-15)

O que a curadoria pratica em última análise é a arte do espectador. Não o espectador


envolvido por uma relação ótica passiva, alienado pela sociedade do espetáculo. Cabe
lembrar aqui Guy Debord:

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta da sua


própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos
vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos
compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que
age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem
seus, mas de outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente
em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte.” (DEBORD, 1997, p. 24).

Rancière nos convida a pensar em contraponto a Guy Débord, no espectador que ao


mesmo tempo “ganha distância” (Brecht) e, também, “perde toda a distancia” (Artaud).
Para ele, “Todo espectador é já actor da sua história; todo o actor, todo o indivíduo de
acção, é já espectador da mesma história” (RANCIÈRE, 2010, p. 28).

“Qual é de facto, a essência do espetáculo segundo Guy Debord? É a exterioridade. O


espetáculo é o reino da visão e a visão é a exterioridade, ou seja, é a privação da posse
de si. A condenação humana do espectador pode resumir-se numa fórmula breve:
“Quanto mais contempla, menos é.” E aqui, mais uma vez, voltamos ao paradoxo do
espectador. Para Rancière (2010, p. 8-9):

“(…) não há teatro sem espectadores. (…) Ora, dizem os acusadores, ser espectador é
um mal; por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O
espectador permanece face a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa
aparência ou a realidade que essa aparência encobre. Em segundo lugar, o olhar é o
contrário de agir. O espectador fica imóvel, passivo. Ser espectador é estar separado ao
mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir. É preciso um teatro sem Comentado [FF2]: O QUE DUCHAMP COLOCA FRENTE A
PINTURA RETINIANA... O ENCANTAMENTO COM A BELEZA,
espectadores, no qual quem assiste aprenda, em vez de ser seduzido por imagens, no COM O EFEITO DO BOM GOSTO... UM DISTANCIAMENTO DA
qual quem assiste se torne participante activo, em vez de ser um voyeur passivo.” VIDA, UMA ELIENAÇÃO DA AÇÃO CRIATIVA, CONSTRUTIVA
DE SIGNIFICADO DE MUNDO.

Estamos diante de vários problemas e nenhuma solução. A curadoria é um laboratório


para o exercício de jogos entre emissores e receptores. Isto, é claro, exige outro modo
de pensar as coisas da cultura e das suas políticas. O laboratório do curador é a rua. O
curador flana pela cidade, pratica a arte da derivação, observa o que está a sua volta,
identifica, seleciona, mistura, relaciona, agrupa, separa, recorta, cria conexões,
desconecta, tenta reproduzir e oferecer ao outro o fascínio de uma descoberta, o êxtase
de uma experiência vivida enquanto espectador. Um espectador, como exemplifica o
pesquisador teatral italiano Alessandro Fersen, mais naif do que bizantino. Embora
este autor apresente o espectador naif como aquele que se deixa levar pela proposta do
espetáculo, o que nos interessa especialmente é a sua posição de espectador que não
tem uma recusa a priori e sim uma generosidade ao observar e de se deixar afetar. De
modo algum, porém, podemos tomá-lo como aquele espectador passivo de que fala Guy
Debord.

O curador precisa exercer o papel de um espectador que se entrega à trama do


espetáculo e não fica brigando com ele a partir de ideias pré-concebidas. Ele não toma a
si mesmo como única referência, imagina-se no lugar de outros espectadores, na
pluralidade de olhares, de pontos de vistas, de receptores diversos. Baseando-se numa
metodologia de tentativas e erros, a ação curatorial contém uma porção grande de
subjetividade. Antes de tudo, o curador deve gostar de instigar o cidadão a sentir o
prazer de interagir com a manifestação artística. Tanto quanto gostar de arte, o curador
precisa amar divulgar o prazer que o desenvolvimento da apreciação artística provoca
na vida.

Notas:

(1) Tradução minha.

Referências bibliográficas:

ALVES, Cauê. “A curadoria como historicidade viva.” In: RAMOS, Dias Alexandre
(org).Sobre o ofício do curador. Porto Alegre /RS: Zouk, 2010.
BECKER, Howard S. Mundos da Arte. Lisboa, Portugal: Livros Horizonte, 2010.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CINTRÃO, Rejane. “As montagens de exposições de arte: dos Salões de Paris ao
MoMA.” In: Ramos, Dias Alexandre (org). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre /RS:
Zouk, 2010.
COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. 2ª ed. São Paulo:
Iluminuras/FAPESP, 1999.
COELHO, Teixeira. O que é Ação Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2008.
CUNHA, Maria Helena Melo da. Gestão Cultural: profissão em formação. Belo Horizonte:
Duo Editorial, 2007.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,1997.
FERREIRA, Glória. “Escolhas e experiências.” In: RAMOS, Dias Alexandre (org). Sobre
o ofício do curador. Porto Alegre /RS: Zouk, 2010.
FERSEN, Alessandro. O Teatro, em Suma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
LEONZINI, Nessia. Apresentação in Uma breve História da Curadoria, de Hans Ulrich
Obrist. São Paulo: BEI Comunicação, 2010, p.10.
OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. São Paulo: BEI Comunicação,
2010.
RAMOS, Alexandre Dias (org). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre/RS: Zouk, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa, Portugal: Orfeu Negro, 2010.
REZENDE, Renato; BUENO, Guilherme. Conversas com curadores e críticos de arte. Rio
de Janeiro; Editora Circuito, Lamparina, 2013.
RIBEIRO, António Pinto. Ser Feliz é imoral? Ensaios sobre cultura, cidades e
distribuição.Lisboa/Portugal: Edições Cotovia, 2000.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Formação em Organização da Cultura no Brasil.”
In:Revista Observatório Itaú Cultural. OIC-nº6, São Paulo: Itaú Cultural, jul./set. 2008.
SARLO, Beatriz. A Cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2014.
SEN, Amartya & KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em primeiro lugar: a ética do
desenvolvimento do muno globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger
sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação
Liberdade, 2000.
WARNER, Michael. Públicos y contrapúblicos. Barcelona, Espanha: Museu d’Arte
Contemporani de Barcelona, 2008.
Sidnei Cruz é dramaturgo, diretor teatral e gestor cultural. Criou e coordenou o Projeto Palco
Giratório – Rede Sesc de Intercâmbio e Difusão das Artes Cênicas (de 1998 a 2007) e publicou
o livro Palco Giratório, uma difusão caleidoscópica das artes cênicas (Dantes, 2010).
Atualmente é gerente de cultura da Escola Sesc de Ensino Médio.

Você também pode gostar