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“A impopularidade da nova arte”

Entre as muitas ideias geniais, mesmo que mal desenvolvidas, do


genial francês Guyau[1], há que se contar a sua tentativa de estudar a arte do
ponto de vista sociológico. Imediatamente se poderia pensar que semelhante
tema seja estéril. Tomar a arte pelo lado de seus efeitos sociais se parece
muito com trocar os pés pelas mãos ou estudar o homem pela sua sombra.
Os efeitos sociais da arte são, à primeira vista, coisa tão extrínseca, tão
distante da essência estética, que não se vê como, partindo deles, se pode
penetrar na intimidade dos estilos. Guyau, certamente, não extraiu da sua
genial tentativa o melhor sumo. A brevidade da sua vida e aquela pressa para
a morte impediram que ele serenasse suas inspirações, e, deixando de lado
tudo o que é óbvio e primário, pudesse insistir no mais substancial e
recôndito. Pode-se dizer que seu livro A Arte do Ponto de vista Sociológico,
só existe, o título; o resto ainda está para ser escrito.
A fecundidade de uma sociologia da arte me foi revelada
inesperadamente quando, há alguns anos, ocorreu-me um dia escrever algo
sobre a nova época musical que começa com Debussy[2]. Eu me propunha
definir com a maior clareza possível a diferença de estilo entre a nova música
e a tradicional. O problema era rigorosamente estético e, não obstante,
percebi que o caminho mais curto até ele partia de um fenômeno sociológico:
a impopularidade da nova música.
Eu gostaria de falar mais genericamente e referir-me a todas as artes
que ainda possuem na Europa algum vigor; portanto, ao lado da música nova,
a nova pintura, a nova poesia, o novo teatro. É, na verdade, surpreendente e
misteriosa a compacta solidariedade consigo mesma que cada época
histórica mantém em todas as suas manifestações. Uma inspiração idêntica,
um mesmo estilo biológico pulsa nas artes mais diversas. Sem dar-se conta
disso, o músico jovem aspira a realizar com sons exatamente os mesmos
valores estéticos que o pintor, o poeta e o dramaturgo, seus contemporâneos.
E essa identidade de sentido artístico devia render, a rigor idêntica
consequência sociológica. Com efeito, à impopularidade da nova música
correspondente uma impopularidade de igual aspecto nas demais musas.
Toda arte jovem é impopular, não por acaso ou acidente, mas em virtude do
seu destino essencial.
Dir-se-à que todos estilo recém-chegado sobre uma etapa de
quarentena e recorda-se-á a batalha de Hernani[3]e os demais combates
ocorridos no advento do romantismo. Entretanto, a impopularidade da nova
arte é de fisionomia muito diferente. Convém distinguir o que não é popular
do que é impopular. O estilo que inova demora certo tempo para conquistar
a popularidade; não é popular, mas tampouco é impopular. O exemplo da
irrupção romântica que se costuma aduzir foi, como fenômeno sociológico,
perfeitamente inverso do que agora oferece a arte. O romantismo conquistou
rapidamente o “povo”, para o qual a velha arte clássica nunca havia sido
coisa íntima. O inimigo contra quem o romantismo teve que brigar foi
justamente uma minoria seleta que havia ficado anquilosada nas formas
arcaicas do “antigo regime” poético. As obras românticas são as primeiras –
desde a invenção da imprensa – que gozam de grandes tiragens. O
romantismo foi, por excelência, o estilo popular. Primogênito da democracia,
foi tratado com o maior mimo pela massa.
Em contrapartida, a nova arte tem a massa contra si e a terá sempre. É
impopular por essência; mais ainda, é antipopular. Uma obra qualquer por
ela criada produz no público, automaticamente, um curioso efeito
sociológico. Divide-o em duas porções: uma mínima, formada por reduzido
número de pessoas que lhe são favoráveis; outra majoritária, inumerável, que
lhe é hostil.” (ORTEGA Y GASSET, J. A desumanização da arte. Trad.
Ricardo Araújo. Rev. Trad. Vicente Cechelero. 4. ed. São Paulo: Cortez,
2003. p. 20-21).

[1] Jean-Marie Guyau (1854-1888), filósofo francês de influência


nietzschiana, combateu a moral tradicional e propunha uma vida mais
espontânea. (N. do T.)
[2] Veja-se “Musicalia”, em El Espectador [tomo III] . (N. do A.)
[3] Hernani, poema dramático de Victor Hugo, composto em cinco atos. Sua
ação se passa na Espanha. Foi representado em Paris no dia 25 de fevereiro
de 1830. Causou tal quiproquó que a data é lembrada como o triunfo da
escola romântica francesa. (N. do T)

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