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GEOGRAFIA REGIONAL E DO

BRASIL
AULA 1

Prof. Kauê Avanzi


CONVERSA INICIAL

Nesta aula, pretende-se trabalhar a Geografia do Brasil visando


apresentar esta como fração periférica do espaço no mundo contemporâneo.
Portanto, com base nos conceitos de Estado, Nação, Território e Fronteira,
pretende-se compreender a nossa formação socioespacial enquanto país. Logo,
a intenção é aproximar a reflexão geográfica do cotidiano, estabelecendo pontes
entre o passado e o presente, assim como entre processos simultâneos que
ocorrem na dinâmica geral do capitalismo globalizado contemporâneo e seus
impactos no Brasil.
Dentro da parte – o Brasil – encontramos elementos que, por serem
gerais, ajudam na compreensão do todo. Portanto, pretendemos dar conta de
trabalhar com elementos que proponham uma assimilação e uma reflexão crítica
a respeito da Geografia do Brasil contemporâneo.

TEMA 1 – FORMAÇÃO DO CONCEITO DE PAÍS, ESTADO, NAÇÃO E


TERRITÓRIO NACIONAL

O território que chamamos hoje de Brasil não nasceu pronto e acabado e


não surgiu do nada. Existe uma história de embates, conflitos e disputas por
poder que dão origem ao nosso país. O Brasil, como todo território, é a
materialização, no espaço geográfico, das relações de poder vigentes em cada
sociedade (Moraes, 2011). Darcy Ribeiro dizia que “Gente do mundo inteiro deu
sua ajuda no fazimento dos brasileiros” (Ribeiro, 2011, p. 21). Conhecer a nossa
formação espacial é revisitar combates que se dão simultaneamente nos
campos político, ideológico e militar e que trazem rebatimentos reais e concretos
em nossa sociedade até hoje.
Antes da invasão europeia, o nome Brasil definia uma ilha mítica da
cultura celta, significando literalmente vermelho como brasa (Moraes, 2011). No
recorte que abrange o nosso atual território, viviam e vivem uma imensa
diversidade de povos originários, com suas culturas, religiões, idiomas,
cosmologias, visões de mundo e epistemologias próprias, e cada uma delas
nomeava o território sob seu domínio a sua maneira.
Mas todas essas nações – Guaranis, Jês, Tupinambás, Pataxós,
Kaingang, Xokleng, entre centenas de outras – foram submetidas e reduzidas a
um adjetivo comum: o índio (Krenak, 2019; Castro, 2016). “Foram chamados

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‘índios’ por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na
América, pensavam ter chegado à Índia.”, conforme nos aponta Eduardo
Viveiros de Castro no livro Os involuntários da Pátria (2016, p. 8).
A chegada dos portugueses às terras definidas como suas possessões
pelo Tratado de Tordesilhas (1494) – que dividia as índias Ocidentais entre
Portugal e Espanha – causa uma intensa desordem nas relações sociais aqui
existentes.
Enquanto os povos indígenas enxergavam os europeus que
desembarcavam – cansados, doentes e esfomeados – na costa como mais um
povo na diversidade de sociabilidades ali existente, os portugueses cada vez
mais entendiam esse território e esses povos como recursos a serem explorados
(Krenak, 2019).
Por muito tempo, os portugueses tiveram sua ocupação restrita às vilas
litorâneas, explorando a extração da planta pau-brasil, cujo caule apresenta
coloração avermelhada. Mas para a necessidade de uma ocupação mais
permanente do território, tendo em vista evitar perdas para outras nações
europeias que já se engajavam em projetos de expansão marítima e colonização
de terras na América, foi necessária a interiorização da ocupação colonial, onde
dois grupos se destacaram: os bandeirantes e os jesuítas (Moraes, 2011).
Os bandeirantes se aliavam a grupos de indígenas que conheciam o
território, utilizando-se das rivalidades e inimizades entre nações diferentes para
ocupar os interiores do Brasil, ultrapassando, inclusive, a fronteira com os
territórios da coroa espanhola (Maack, 2012). Seu objetivo principal era
encontrar riquezas e capturar indígenas com vistas a escravizá-los, em especial
na nascente produção de cana-de-açúcar. Utilizavam-se dos rios para adentrar
ao território, mapeando caminhos, inventariando riquezas e populações (Moraes,
2011).
Os jesuítas, por outro lado, exerciam outra forma de hegemonia.
Adentravam aos territórios indígenas com o principal objetivo de criar
aldeamentos, disciplinar ao trabalho e reduzir à fé cristã e à cultura europeia os
povos estabelecidos nas regiões em que atuavam.
Aqui, com seus idiomas, culturas e modos de viver apagados pela doutrina
cristã, os povos indígenas submetidos passaram a formar a população das
primeiras vilas brasileiras. Neste sentido, foi fundamental para os jesuítas
conhecer os idiomas e as visões de mundo dos povos originários para melhor

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dominá-los, adequando parte das histórias dos santos católicos à tradição oral,
imagética e mítica dos indígenas, conforme nos aponta Sérgio Buarque de
Holanda em seu livro A Visão do Paraíso (1982).
Quando da negociação do tratado de Madrid (1750), os portugueses
definiram as fronteiras de seu território, muito maior que aqueles que lhe
pertenciam anteriormente, de acordo com cartas e mapas que haviam
elaborado. A superioridade do conhecimento geográfico sobre as colônias por
parte de Portugal redefiniu os limites em favor desta (Moraes, 2011).
Mas no movimento de expansão e consolidação da colônia, povos inteiros
foram exterminados, pela guerra ou por doenças, provocando uma drástica
queda populacional dos povos originários. Havia terras, mas não havia
trabalhadores suficientes para que a empresa colonial representada pelo Brasil
funcionasse em favor do Estado português (Prado Junior, 1974).
Portugal já havia feito experiências bem-sucedidas com o plantio de cana-
de-açúcar e com a indústria açucareira nas Ilhas dos Açores e da Madeira. Para
que o empreendimento colonial da América portuguesa fosse próspero, era
necessário que Portugal expandisse um setor comercial no qual foi pioneira: o
tráfico de escravos a partir do continente africano, trazendo levas cada vez
maiores de negros escravizados das regiões onde hoje encontram-se Angola,
Guiné-Bissau, Moçambique e Senegal.
Congos, Bantos, Iorubás, Mandingas, Sudaneses e diversos outros povos
eram retirados à força de suas nações e territórios e – a partir dos portos de
Luanda, Benguela, Cabinda, Bissau e Cacheu – eram batizados cristãos e
carregados como mercadorias a serem vendidas nos principais portos brasileiros
– Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís e Belém – como mão de obra nos
latifúndios de cana-de-açúcar e, posteriormente, nas Minas Gerais, mas também
como trabalhadores em todos os setores da economia agrária e também urbana
(Souza, 2014).
A partir do momento em que eram embarcados, não podiam comunicar-
se uns com os outros. Perdiam seus nomes, tornando-se Josés, Marias, Souzas
e Silvas, assim como práticas embasadas em diversas leis do período colonial e
do Império os impediam de dizer suas línguas, praticar suas religiões e exercer
sua cultura de matriz africana. A música era punida pelas leis contra a vadiagem
e vagabundagem; os orixás tiveram suas imagens associadas ao mau, aos
demônios cristãos; a capoeira perseguida pela polícia.

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Mas nada disso impediu as inúmeras revoltas de negros que ocorreram
ao longo da constituição de nosso país. Com a maioria da população negra e
escravizada, as revoltas e a constituição de Quilombos – dos quais o de
Palmares era o mais temido, já que pareava em população com cidades como
Recife à época – botavam para tremer a estrutura econômica escravista de
nosso país (Carril, 1997), ainda mais depois do violento processo de
independência do Haiti (James, 2011).
Órgãos de Estado como o Instituto Histórico Geográfico surgem, então,
no período do império (1838), com a intenção de explorar e conhecer o território
Nacional, com a clara intenção de criar uma coesão nacional “civilizadora” em
terras com população tão diversa, conduzindo o desenvolvimento nacional hora
em direção a projetos de “modernização”, com intensa exploração da mão de
obra cativa negra, hora em projetos de branqueamento populacional pela
atração de imigrantes europeus, política que se estende, com verniz mais
“moderno” ao período da primeira República com as políticas higienistas (ou
eugenistas), que determinaram a urbanização de Cidades como o Rio de
Janeiro, contribuindo para a formação das primeiras favelas brasileiras
(Chaulhoub, 2018).
Tal concepção de nação via na própria população um obstáculo ao
desenvolvimento do país, sendo necessária a importação do componente
estrangeiro branco e ação do Estado contra os “inimigos internos” negros e
indígenas, produzindo um apagamento destes na constituição da identidade
nacional brasileira (Moraes, 2011).
Fronteira significa aquele que está defronte, à frente, aquele com o qual
se tem um pacto de não invasão sobre o território que se domina. Ela representa
a tensão entre poderes constituídos que exercem sua força e sua dominação
sobre uma fração do Espaço (Grataloup, 2015). José de Souza Martins define
que

a fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica.


Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira de civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial,
fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira
da história e da historicidade do homem. Nesse sentido, a fronteira tem
um caráter litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para,
desse modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e
explora. (Martins, 2014. p. 10)

O caso é que no Brasil formou-se um território e um Estado sem que se


formasse um povo homogêneo étnica e ou culturalmente. Por aqui, o processo

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de dominação territorial se deu, historicamente, pela violência do Estado, gerido
por europeus e seus descendentes, sobre povos subalternizados de origem
indígena e negra.
Formou-se o país, mas não uma identidade nacional coesa, baseada em
heróis e mitos fundadores. Apesar da existência de um Estado-nação, as
fronteiras entre estes diversos grupos seguem em suas disputas e conflitos. A
nossa geografia e nossa história foram escritas a partir desse embate, que se
arrasta, a sua maneira, até o Brasil contemporâneo (Moraes, 2011).
Cada expansão de fronteira foi e é fruto de conflitos, guerras, relações de
exploração e dominação, exercício da força. As páginas que contam a formação
territorial do Brasil e dos brasileiros bem podiam ser escritas em cor de sangue:
vermelho como brasa.

TEMA 2 – FORMAÇÃO SOCIAL, ÉTNICA E CULTURAL BRASILEIRA

Iracema, virgem dos lábios de mel, de cabelos mais negros do que a asa
da graúna, de lábios mais doces que o favo de jati, e o hálito fresco como a brisa
da manhã. Virgem, intocada, misteriosa, lendária. Sua presença remete à
romântica visão do objeto intocável, pelo qual a busca justifica o sentido do ser.
Porém um rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. A virgem, ao
erguer os olhos depara-se com uma sedutora visão; cativante e perturbador está
ali, à sua frente, a imagem de seu contrário, moderno e altivo, com a mão
pousada sobre a espada, o sangue enrubescendo sua face pálida. Um belo
sorriso no rosto, que não se sabia ser alegria ou sarcasmo. Era Martim, o
conquistador europeu, civilizado e desenvolvido que se colocava em cena.
O livro Iracema, do cearense José de Alencar, certamente é uma obra
importante na constituição de nossa atual identidade nacional. Tem-se, a partir
da leitura de suas páginas, a construção de um mito fundador do Brasil, criado
com o encontro entre Iracema – um anagrama para América – e Martim,
colonizador europeu.
Na literatura romântica desse período, construiu-se a noção de um
encontro harmonioso entre esses dois elementos – a indígena, no feminino, a
ser dominada pelo europeu, no masculino – que em seu amor davam origem a
Moacir, filho da dor e da noite: o primeiro brasileiro.
A realidade é que somos, até hoje, uma nação bastante diversa. Existem
muitos brasis convivendo em nosso território. Segundo o IBGE, na Pesquisa

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Nacional por Amostra de Domicílios de 2020, somos 213 milhões de brasileiros,
dos quais 42,7% brancos, 9,4% pretos, 46,8% pardos e 1,1% indígenas. Somos
51,1% de mulheres e 48,9% de homens. Mas esses dados assim, brutos, dizem
muito pouco a respeito da diversidade de nossa população. Dramatizemos esses
dados (Damiani, 2004).
Durante grande parte da nossa história, tivemos fortes embates entre
diversos grupos populacionais. Tanto os povos originários quanto os de origem
africana sofreram uma tensão violenta para que sua cultura e modo de vida
fossem apagados em favor do homem branco europeu.
Ainda assim, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), atualmente
se falam 154 idiomas indígenas – tupi, macro-jê, aruak, karib, pano, yanomami,
naduhup, nambikwara, kanôe, kwazá, irantxe, trumai, tikuna, máku, aikanã e
tantos outros – falados e vividos por indivíduos divididos em 567 terras
indígenas, fora aqueles grupos indígenas que vivem em cidades, como os
Pankararu, na favela do Real Parque na cidade de São Paulo (Coelho, 2020), ou
os Guarani M’bya, no bairro do Jaraguá, também São Paulo, e no bairro do
Caximba, região Sul de Curitiba.
Junto a isso temos, segundo a fundação Palmares, 3.471 territórios
remanescentes de quilombos, também com seus idiomas e culturas particulares
(Yorubá, Banto etc.), para além dos quilombos urbanos, que vieram a constituir
muitas das favelas brasileiras (Carril, 2006). A imigração italiana, espanhola,
japonesa, árabe e chinesa também contribuem para deixar a nossa composição
populacional ainda mais diversa.
Neste sentido, se mostra insuficiente analisarmos os dados sem pensar
nessa outra complexidade de gente e de paisagens que formam a nação
brasileira. Pensemos no componente pardo da população. Ele é fruto da
miscigenação entre diferentes grupos, provocando um apagamento de parte das
identidades culturais não brancas, já que aqueles que se declaram dessa
maneira não conseguem se identificar plenamente como brancos, pretos ou
indígenas.
O pardo, sozinho, pode representar um sem número de grupos
populacionais miscigenados, ou aqueles que não tiveram a possibilidade de se
autorrepresentar. Lembremos que só foi possível declarar-se indígena a partir
do censo de 1991, como reflexo direto das mobilizações destes na elaboração
da constituição de 1988 (Coelho, 2020).

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Construir uma identidade nacional nesse contexto parece desafiador. Por
isso, a construção de representações sobre o que é ser brasileiro ao longo de
nossa história traz elementos que são mais valorizados em detrimento de outros,
e isso é visível em toda a nossa produção cultural.
O movimento modernista, de Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Di
Cavalcanti e Raul Bopp faz este esforço em suas obras. Milton Santos, em seu
livro Por uma Outra Globalização (2001), fala em um embate entre duas nações
em nosso território, sendo elas o que ele chama de nação ativa, “aquela que
comparece eficazmente na contabilidade nacional e na contabilidade
internacional, tem seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas
burguesias nacionais associadas” e que seriam responsáveis pela produção de
uma cultura de massas a ser consumida pela nação passiva, representada pelos
diversos grupos populacionais subalternizados, caiçaras, faxinalenses,
favelados etc., que produzem no seu espaço e tempo a cultura popular.
O interessante a se observar sobre esse olhar é que o que se chama de
nação passiva não recebe as influências hegemônicas sem distorcê-las,
transformá-las ou negá-las, se comportando de maneira ativa, por exemplo,
quando o funk produzidos nas favelas (cultura popular) chega à grande mídia
(cultura de massas).
Assim como o que se chama de nação ativa se comporta eventualmente
de maneira passiva, ao ceder às diversas formas de resistência à
homogeneização da chamada nação passiva, como quando a partir da Lei n.
10.639 de 2013, indígenas e negros conquistam o direito de serem
representados nos currículos escolares e universitários.
A nação e a identidade nacional brasileiras são frutos do embate entre
essas duas nações. Não se trata de conceitos prontos e acabados, resumido às
cores da bandeira ou ao hino nacional. Ambas permeiam toda a nossa vivência,
a forma como nos alimentamos, vestimos e convivemos ou não em famílias.
Trata-se uma construção constante, fruto de embates, disputas, vitórias e
derrotas para um ou outro setor da sociedade – raça, gênero, classe etc. –, e
que é mais democrática quanto mais abriga as diferentes formas de ser
brasileiro.

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TEMA 3 – FORMAÇÃO ECONÔMICA BRASILEIRA

Este tema nos exige compreender como alguns conceitos fundamentais


em Geografia, e um deles é o Estado, e seu papel nas economias capitalistas. A
concepção de Estado, assim como suas funções, se transformam a cada época,
mas essa forma de organização humana está presente desde o Período Antigo.
Rousseau o definia como a relação entre instituições que organizam a vida
econômica, social e política de populações que estabelecem um contrato social
entre si (Rousseau, 2011).
Hegel o definia como a expressão da vontade geral da sociedade civil
organizada (Marx, 2006). O Estado Moderno surge e se expande pelo mundo
levando consigo as relações capitalistas de produção onde quer que tenha se
instalado (Wallerstein, 1974). Estado e economia estão intimamente
relacionados. Neste sentido, economias como as nossas, que ao longo da
história sofreram com a colonização e o imperialismo, convencionou-se chamar
países subdesenvolvidos (Oliveira, 2011).
Levamos em conta aqui a concepção de subdesenvolvimento desenhada
por Francisco de Oliveira, em seu texto “O Ornitorrinco”:

O subdesenvolvimento, assim, não se inscrevia numa cadeia de


evolução que começava no mundo primitivo até alcançar, por meio de
estágios sucessivos, o pleno desenvolvimento. Antes, tratou-se de
uma singularidade histórica, a forma do desenvolvimento capitalista
nas ex-colônias transformadas em periferia, cuja função histórica era
fornecer elementos para a acumulação de capital no centro. (Oliveira,
2011, p. 126)

O Brasil nasce da exploração do trabalho. Caio Prado Junior, em seu livro


História Econômica do Brasil (1974), mostra como nos diversos ciclos
econômicos de nossa história (cana-de-açúcar, ouro, borracha, café etc.)
especializamos a produção nacional com vistas a abastecer um mercado
mundial.
Surgimos como Estado na forma de uma empresa colonial de Portugal,
mantendo-nos economicamente dependentes de produtos estrangeiros
industrializados. Não que não houvesse industrialização desde a colonização.
Os engenhos de açúcar do período colonial e durante o império eram grandes
plantas industriais com o que havia de mais avançado em tecnologia no setor
para a época, movimentada pelo trabalho escravo indígena e negro. O Estado
viabilizou a constituição de grandes latifúndios monocultores com vistas a
atender a demanda mundial por um produto agrícola específico, permitindo a

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manutenção, por muito tempo, de uma elite possuidora de terras e uma imensa
massa de pobres sitiantes e arrendatários intensamente explorados (Martins,
2010). Neste sentido, é interessante observar a palavra brasileiro, que define a
nossa nacionalidade: perceba que o sufixo é o mesmo que é usado para uma
profissão (ferreiro, pedreiro, ou padeiro).
Não se pode, no entanto, isolar essa característica das relações
econômicas globais. Apesar de ser um território colonial, o Brasil já estava
inserido na economia-mundo capitalista (Wallerstein, 1974) desde a sua origem,
produzindo mercadorias que circulavam nos portos e bolsas de valores de todo
o planeta.
Constituímo-nos enquanto uma economia periférica no capitalismo global.
A grande crise de 1929 redefine a divisão internacional do trabalho, fazendo com
que grande parte dos países centrais transfira parte de sua produção industrial
para países periféricos. A intenção é baixar os custos de produção, tendo em
vista que a manutenção de um trabalhador é mais barata países da África, Ásia
e América do que na Europa. A década de 1930 foi marcada no Brasil pela
ideologia do desenvolvimentismo, e a nossa base industrial foi criada a partir do
Estado autoritário governado por Getulio Vargas (Oliveira, 2011).
O período da década de 1930 no Brasil mostra como o Estado se
reformula e se moderniza de maneira violenta a partir da mudança das
necessidades de produção e de consumo global. A transformação tecnológica
inserida via capital estrangeiro, induzido pelo Estado, cria plantas industriais no
setor da mineração, da metalurgia e dos combustíveis à base de petróleo
desenvolvendo, em especial após a década de 1950, as condições para a
instalação da indústria automobilística (Oliveira, 2011).
Enquanto isso, no campo, a reestruturação produtiva e o avanço
tecnológico leva muitos pequenos agricultores a não conseguir mais manter-se
em concorrência com uma agricultura cada vez mais mecanizada e
especializada. Nos centros urbanos, a industrialização cria a possibilidade para
grandes planos de reurbanização. Um número importante da população rural
migra para as cidades (Gráfico 1) e são colocados, via projetos de urbanização
de cunho autoritário, – do qual a cidade de Curitiba é um grande exemplo –, a
viver em áreas periféricas cada vez mais distantes de seus locais de trabalho. O
Estado em conjunto com indústrias, e empresas do setor imobiliário, bancário e

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do transporte público desenhavam as cidades de acordo com seus interesses
econômicos (Avanzi, 2017).

Gráfico 1 – População e demografia: população por situação de domicílio –


Censo Demográfico 1940/2000

Fonte: IBGE, 2012.

Esse processo, simultâneo, de desenvolvimento tecnológico,


planejamento estatal e o desemprego estrutural causado pela substituição do
trabalho humano pela automação é um processo que vivemos na atualidade com
uma velocidade incrível, graças às recentes descobertas no ramo da inteligência
artificial.
O caso da agricultura mecanizada no Brasil atual é, neste caso,
emblemático. No setor da cana-de-açúcar, por exemplo, uma máquina
colheitadeira é capaz de substituir o trabalho de 200 pessoas (Gazeta do Povo,
2007). Assim, quanto maior a eficiência técnica de uma máquina colheitadeira,
maior é o esforço de um trabalhador rural para “acompanhá-la” em sua
racionalidade produtiva. As mesmas corporações donas de grandes extensões
de terras, maquinários de última tecnologia, e laboratórios avançadíssimos nas
melhores universidades empregam trabalhadores superexplorados (Oliveira,
2011).
Com isso, no passado e no presente, gera-se uma crise internacional de
produção, consumo e, sobretudo, trabalho, gerando intensos fluxos migratórios
rumo a qualquer lugar onde se possa obter qualquer trabalho ou renda.

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Como não há vagas para todos no mercado de trabalho, vemos a criação
de uma imensa massa de desempregados, que sobrevivem à base de
subempregos, doações e incentivos governamentais nas periferias do país.
Assim sendo, desenvolver é também des-envolver, no sentido que
comunidades inteiras continuam perdendo o envolvimento com ambientes que
as sustentaram por gerações para viver ora em favelas nas grandes cidades ora
como boias-frias no campo (Porto-Gonçalves, 2006). Daí a nossa compreensão
da lógica do desenvolvimento desigual e combinado que rege o modo capitalista
de produção, onde a relação simultânea entre centro e periferia (países e
territórios desenvolvidos e não-desenvolvidos) é a própria força motriz do capital.
Não há centro sem periferia e vice-versa, no sistema econômico mundial vigente
(Oliveira, 2011). Não somos subdesenvolvidos, somos periferia.

TEMA 4 – FORMAÇÃO DAS IDEOLOGIAS GEOGRÁFICAS E DA


CENTRALIDADE POLÍTICA BRASILEIRAS

Yves Lacoste, geógrafo francês, diz que a Geografia serve, antes de tudo,
para fazer a guerra (Lacoste, 1988). E não há guerras sem ideologias. Cada
época possui um conjunto de valores que regem a sociedade como um todo, tal
uma força homogeneizante. O que é aceito ou negado, o que é liberado ou
oprimido socialmente.
A ideologia está na roupa que vestimos, em nosso trabalho, nas palavras
que dizemos, em nossas relações familiares. Vivemos e respiramos ideologia
em nosso cotidiano (Moraes, 2002). Podemos exemplificar essa questão
pensando a forma como as ideologias geográficas constituíram o Brasil
contemporâneo.
Nossa população é formada por uma maioria descendente dos diversos
grupos indígenas e africanos, que foram a base de nossa sociedade. No entanto,
a cultura de matriz europeia é considerada no senso comum como superior em
relação a todas as demais. Esta é uma ideologia construída em nossa formação
social, fruto de um projeto nacional desenhado pelas elites brasileiras.
Em 1838, o Império fundou o Instituto Histórico Geográfico com o objetivo
de construir um reconhecimento do território brasileiro, uma imagem e uma
identidade nacional capaz de manter a coesão territorial do país. Os estudos
deram a base para uma série de políticas nacionais de cunho dito “civilizador”
em relação a territórios considerados “atrasados”, entendendo como fator de

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atraso exatamente as manifestações sociais e culturais das populações nativas
e de origem africana (Moraes, 2011).
Foi intensa a perseguição, pelo Estado, de parte destas populações e de
suas manifestações culturais. A capoeira, os tambores, cantos, a língua nativa
eram, literalmente, caso de polícia, passíveis de prisão.
Durante todo o período do império, com receio das revoltas de escravos
– e em especial após a revolução haitiana de 1804 –, criou-se uma série de
instituições de Estado para lidar com as populações marginalizadas, tais como
as casas de correção e as polícias, com as funções de perseguir escravos
fugitivos, conter revoltas, reprimir manifestações culturais nativas e punir os
negros indisciplinados com castigos físicos (Chaulhoub, 2012).
Iniciam-se políticas de branquemento da população com a abolição em
1888, substituindo o trabalho cativo negro pelo dos imigrantes europeus, em
especial italianos e espanhóis, facilitando o acesso destes à terra.
Toda Geografia que é produzida possui uma intencionalidade. Essa
ciência, quando ensinada na escola, por exemplo, constrói nos estudantes
representações de mundo, sobre a realidade em que vivem.
Nossa ciência pode reforçar ou problematizar estereótipos e preconceitos
em sala de aula, mas não só. A Geografia está na sociedade inteira e na maneira
como as pessoas se relacionam entre si, a quais grupos possuem ou não poder,
identidade e pertencimento.
A Geografia institucional, praticada pelo Estado, produz um discurso
geográfico que legitima, ou não, intervenções e projetos de nação sobre o
território. A Geografia das empresas privadas produz relatórios que permitem,
ou não, que plantas industriais possam se instalar em determinado local. A
Geografia tem a ver com a forma como nos entendemos como país e quais
caminhos a se traçar para efetivarmos nossos projetos de nação. A Geografia é
toda ideológica (Moraes, 2002).

TEMA 5 – A DISCIPLINA DE GEOGRAFIA DO BRASIL

A escola é, em qualquer país, uma instituição de Estado. Mackinder, em


fins do século XIX e começo do século XX, já chamava atenção para esse fato
quando fala que os pilares do sistema cultural da Alemanha eram o sistema
militar compulsório, a escola básica compulsória e as universidades. A escola
serviria, sobretudo, para criar a “filosofia do patriotismo” em toda uma população

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por meio da ação dos professores de Geografia, fazendo com que todos se
engajassem nos “Problemas nacionais alemães”, ou seja, desde a infância se
forjaria uma “mentalidade estratégica” no povo, acostumando-os com as
fronteiras e legitimando o Estado-nação com base em mapas, descrições e
representações (Costa, 2008).
O Brasil é um país muito extenso territorialmente. Com isso, torna-se difícil
conhecê-lo em todos os seus detalhes e particularidades. Quando produzimos e
ensinamos Geografia, estamos construindo representações do que seja o nosso
país e a nossa população que são, necessariamente, a base sobre a qual
crianças, jovens e adultos vão embasar sua visão de mundo sobre si, sobre os
outros e sobre os problemas nacionais. Quando aprendemos, ensinamos e
produzimos uma Geografia do Brasil, estamos, de alguma forma, produzindo o
próprio Brasil.

NA PRÁTICA

Em nosso território, segundo nossa constituição, temos um único país,


uma única nação. Nosso idioma oficial é o português – e documentos oficiais são
escritos somente neste idioma –, nossa religião oficial a cristã católica – assim
como nossos feriados e datas comemorativas. Nos organizamos dessa forma,
apesar de existirem pelo Brasil uma infinidade de populações, idiomas, religiões
e visões de mundo.
É diferente, por exemplo, do caso boliviano. Após uma série de revoltas
indígenas e camponesas que tinham como tema central o abastecimento de
água no país, grupos indígenas de diversas etnias – Quechuas, Aymaras,
Guaranis etc. – passam a se reivindicar como nações autônomas, criando o
ambiente social propício à eleição de Evo Morales, o primeiro presidente
indígena no país.
Em 25 de Janeiro de 2009, o Estado boliviano, a partir de uma assembleia
constituinte que se deu pela via da consulta popular, refunda o Estado boliviano
como Estado Plurinacional, ou seja, um Estado que comporta em si várias
nações, buscando refletir a realidade étnica de um território onde vivem 70% de
indígenas e mestiços (Arbona; Canedo; Medeiros; Tassi, 2016).
O Estado e a nação são uma construção sempre inacabada, que vão
sendo forjados conforme os embates e disputas de poder e por território se
desenrolam. Os conceitos, como a realidade, não são imóveis. A nação Guarani,

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por exemplo, é atravessada pelos territórios do Brasil, Paraguai, Argentina e
Bolívia (Guarani Retã). São as relações sociais que produzem Estados e nações,
e não o contrário.

FINALIZANDO

Vimos como, ao longo do processo de nossa formação territorial, o Brasil


se constituiu como Estado, como foi sua expansão territorial, a formação de sua
identidade nacional e parte dos conflitos sociais e culturais provenientes desse
processo.
Somos um território pluriétnico e multicultural e, a partir do processo de
urbanização e migração do campo para a cidade, esses grupos passam a
conviver entre si, trazendo à tona uma série de discursos geográficos que
pautam uma disputa sobre a nossa concepção de país. Neste sentido, foi
necessário ir para além de uma exposição sobre as mudanças no ordenamento
jurídico do território, mas compreender a dinâmica social que determina a forma
como nós, brasileiros, nos enxergamos e nos projetamos diante de nós mesmos
e do mundo.

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