Você está na página 1de 60

INTERCORRÊNCIAS

AGUDAS NA DOENÇA
FALCIFORME (DF)
Gabriela Dalvi Quintaes de Morais
Pediatra e Hematologista Pediátrica

Uberlândia, 20/09/23
Sobre o que iremos conversar?

Febre na DF

Crise álgica

Síndrome torácica aguda (STA)

Sequestro esplênico

Crise aplástica

Priapismo

AVC na DF
Mas antes de começar...

Vamos revisar a doença e sua


fisiopatologia!
O que é DF?
O que é? Doença falciforme

> 50% HbS na eletroforese de Hb


Anemia falciforme

Doença falciforme: Sβ0


Sβ+
SC
SD
Etc...

Anemia falciforme: apenas SS

Voltar ao índice

Onimoe and Rotz, 2020


Qual a causa? HbA1: 2α + 2β (96-98%)
HbA2: 2α + 2Δ (2-3,5%)
HbF: 2α + 2γ (0-1%)

Doença genética e hereditária

Autossômica recessiva

Hemoglobinopatia: substituição do ácido Porfiria /


Talassemia
glutâmico por valina na posição 6 da cadeia β e DF
Globina: 2α
da hemoglobina = HbS (em foice) + 2β

Acometimento multissistêmico

Hemoglobina
Voltar ao índice
= heme +
globina

Onimoe and Rotz, 2020


A HbS

Voltar ao índice

Correia, 2018
Galiza Neto e Pitombeira, 2002
A falcização

Voltar ao índice

AnatPat, Unicamp, acesso em 10/09/23


O padrão de herança

25%
Voltar ao índice
50% 25%

NUPAD, acesso em 03/09/23


O acometimento multissistêmico

Voltar ao índice

Piel at al, 2017


Incidência e
prevalência
Como são os números? É a Hb anormal
mais comum no
2014 a 2020:
média de 1087
Brasil novos casos/ano
=
3,78/10 mil NV

Atualmente: 60 a
100 mil

BA, DF e PI

MS, 2022
Braga et al, 2016
Como são os números?

MS, 2022
Como são os números?

Piel at al, 2017


MS, 2015
Fisiopatologia
Como funciona?
Desoxigenação, acidose,
oscilações de temperatura
Polimerização da Hb = falcização dos
eritrócitos

Menor maleabilidade, maior agregação e


Efeito
aderência à parede endotelial, maior protetor da
HbF (< 4-6
viscosidade meses)

Oclusão da microcirculação,
Voltar ao índice

vasoconstricção, estado pró-inflamatório,


ativação da via extrínseca Sundd et al, 2020
Loggetto et al, 2014
Como funciona?

Voltar ao índice

MS , 2012
1ª coisa a fazer quando começar
atender o paciente com DF...

Pergunte os dados basais (Hb,


leucometria, plaquetometria, satO2,
baço e fígado) e veja se o responsável
trouxe o cartão do Hemominas!
Febre na DF
É urgência médica!

Febre = avaliação médica sempre

Asplenia funcional (auto-esplenectomia) ou


cirúrgica

Nas crianças, as infecções são a principal


causa de óbito

O risco de septicemia e/ou meningite por


Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus
influenzae chega a ser 600x maior do que em
Voltar ao índice

crianças sem DF

MS, 2012
É urgência médica!
Internação se:
< 1 ano
Leucometria > 30 mil ou < 5 mil ou desvio à E
Toxemia ou suspeita de meningite
Temperatura > 39-40°C
Hipotensão, vômitos significativos ou
desidratação
Antecedente de bacteremia ou sepse
Associações com outras complicações agudas
da DF
Pais não confiáveis ou dificuldade de retorno ao
serviço
Voltar ao índice

MS, 2012
USP, 2009
Anvisa, 2002
Solicitação padrão de exames

HMG, PCR, HMC, ret, EAS, URO e RX tórax

LCR se toxemia ou suspeita de infeção de


SNC

Sempre
individualizar

Crise álgica:
isquemia e
liberação de
Voltar ao índice pirógenos
endógenos

USP , 2009
Prescrição padrão Se FSSL e sem indicação de
internação:
> 5 anos: amoxicilina ou
amoxicilina-clavulanato
Ceftriaxone 100mg/kg/dia < 5 anos: ceftriaxone EV ou
IM

Guiar de acordo com foco

Cobrir Salmonella e Staphylococcus aureus


se suspeita de osteomielite
Sempre
individualizar
Avaliar necessidade de AAS em dose anti-
agregante (3-5 mg/kg/dia) em caso de
plaquetose > 1 milhão Em vigência de
ATB
terapêutico,
Voltar ao índice suspender
profilático

MS, 2012
USP, 2009
Crise álgica
O que é?

Crise de dor secundária à isquemia dos


tecidos (ossos, articulações, músculo, etc)
por causa da oclusão da microcirculação
pelos eritrócitos falcizados

Ocorre processo inflamatório adjacente, o


que pode amplificar sua extensão e Lembrar
sempre da

intensidade dactilite!

É o sintoma mais comum da DF, sendo o


motivo da
Voltar ao maior parte da internações
índice

Braga et al, 2016


USP, 2016
Loggetto et al, 2014
O que é?

A dor pode oscilar de intensidade e mudar de


localização, o que gera dúvidas na avaliação
do paciente e leva, frequentemente, ainda
nos dias de hoje, ao sub-tratamento, uso de
placebo, interrupção precoce no tratamento,
imobilização de extremidades e outras Paciente bem

medidas não recomendadas orientado: já


inicia a
analgesia em
casa

É uma experiência desagradável e recorrente,


devendo ser tratada prontamente, sendo uma
urgência médica - 1h!
Voltar ao índice

ASH, 2020
USP, 2016
Fatores desencadeantes

Infecção
Mudanças bruscas de temperatura (frio/calor)
Hipóxia
Grandes altitudes
Acidose
Desidratação
Atividade física extenuante
Estresse emocional
Má adesão ao uso de HU
Não identificado
Voltar ao índice

Braga et al, 2016


USP, 2016
Solicitação padrão de exames

A princípio, não há necessidade


Infecção
Palidez
Etc...

Sempre
individualizar

Voltar ao índice
USP, 2016
USP, 2016
Prescrição padrão Analgesia step-down

Morfina VO
1m - 1a: 0,15 mg/kg de 4/4h
1a - 12a: 0,3 mg/kg de 4/4h Quando dose de morfina
0,05 mg/kg EV, trocar para
morfina VO (3x a dose) ou
Morfina EV (potência 3x>) tramadol VO para programar
SC em casos selecionados alta 12-24h após
1m - 2a: 0,1 mg/kg de 4/4h
2a - 12a: 0,1-0,2 mg/kg de 4/4h

Morfina resgate (ACM)


10% da dose diária de morfina
Se usar doses de resgate, deve-se ajustar a dose de morfina
diária guiando-se pela quantidade de morfina recebida de
resgate, com aumento de no máximo 50% em 24h

Desmame da morfina
Voltar ao índice
Se bom controle álgico: reduzir 20% da dose da morfina a cada 12-24h
Até 7 dias: suspender / Mais de 7 dias: diminuir 10% da dose a cada 24h
Mais de 14 dias: a dose deve ser reduzida em não mais que 10-
20% por semana USP, 2016
Prescrição padrão
Tramadol (Off-label < 1 ano / < 12 anos)
1 - 2 mg/kg/dose a cada 6-8h

Codeína (Off-label < 12 anos)


0,5 - 1 mg/kg/dose de 4/4h

Dipirona
Até 25 mg/kg/dose de 6/6h

Paracetamol
10 - 15 mg/kg/dose de 6/6h

Ibuprofeno
Voltar ao índice

5 - 10 mg/kg/dose a cada 6-8h

USP, 2016
Prescrição padrão
Cetoprofeno
1 mg/kg/dose de 8/8h

Cetorolaco (Off-label < 16 anos)


0,5 mg/kg/dose a cada 6-8h

Avaliar necessidade de AAS em dose anti-


agregante (3-5 mg/kg/dia) em caso de
plaquetose > 1 milhão

Voltar ao índice

USP, 2016
Prescrição padrão
Exemplo

3a, crise álgica de forte intensidade, sem


outros sintomas associados, boa ingesta VO,
15kg

Dieta laxativa + estimular ingesta hídrica VO


Lactulose 15ml 12/12h
Morfina EV 1,5mg 4/4h
Resgate 0,9mg ACM
Dipirona 6/6h
Voltar ao índice

Usou 3 resgates nas últimas 24h: aumentar


morfina para 2mg 4/4h
Síndrome
torácica aguda
(STA)
O que é?

Principal causa de mortalidade na DF e 2ª


principal causa de internação

PNM, atelectasia, oclusão vascular, edema


pulmonar, broncoespasmo

Imagem nova no Rx de tórax (pode aparecer


na evolução), que pode estar associado a
febre, dor torácica e sintomas respiratórios

Sempre internar!
Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


NIH, 2014
USP, 2009
Solicitação padrão de exames

HMG, ret, HMC, gaso arterial s/n e RX de


tórax

Sempre
individualizar

Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


Prescrição padrão

O2 s/n

Analgesia

Ceftriaxone 100 mg/kg/doa

Macrolídeo se 5 anos ou mais ou infiltrado Sempre


individualizar
difuso

Oseltamivir
Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


Prescrição padrão

Salbutamol 6/6h

Fisio respiratória e espirometria de incentivo

Tranfusão de CH 10-15 ml/kg leucorreduzido


e fenotipado se refratariedade clínica ou
queda da Hb 2g/dL ou mais em relação ao Sempre
individualizar
basal
Não elevar Hb pós-transfusional acima de 10
Caso Hb pré-transfusional seja > 10, fazer transfusão de troca

Avaliar necessidade de AAS em dose anti-


Voltar ao índice

agregante (3-5 mg/kg/dia) em caso de


plaquetose > 1 milhão Loggetto et al, 2014
USP, 2009
Sequestro
esplênico
O que é?

É a 2ª causa de morte em crianças com DF

É uma urgência médica!

Recorrência de até 50% após o 1º episódio

Aumento do baço em relação ao basal

Queda de 2 pontos ou mais da Hb em relação ao


basal
Voltar ao índice

Pode ocorrer leucopenia e plaquetopenia


Loggetto et al, 2014
USP, 2009
Solicitação padrão de exames

HMG e ret (elevado)

Sempre
individualizar

Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


USP, 2009
Prescrição padrão

Expansão volêmica 20ml/kg

Sempre
individualizar

Loggetto et al, 2014


Crise aplástica
O que é? T 1/2 da Hm na DF:
10 a 15 dias

Queda de Hb em relação ao basal associada


à reticulocitopenia e sem esplenomegalia A imunidade após a infecção
pelo Parvovírus B19 parece ser
permanente, pois não há relatos
comprovados de crise aplástica
Pode ocorrer leucopenia e plaquetopenia recorrente com esta etiologia

Ocorre após processos infecciosos,


principalmente causados pelo eritrovírus
humano

Supressão temporária da eritropoiese


Voltar ao índice
Curso clínico auto-limitado de 7 a 10 dias

Loggetto et al, 2014


USP, 2009
Solicitação padrão de exames

HMG, ret (baixo), sorologia ou PCR para


parvovírus B19

IgM permanece positivo por até 3 meses


após a infecção aguda

IgG aparece uma semana após o início da Sempre


individualizar
doença

Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


Prescrição padrão

Expansão 20ml/kg

Transfusão de CH leucorreduzido e
fenotipado 10-15 ml/kg nos casos de anemia
sintomática

Casos graves e persistentes: imunoglobulina Sempre


individualizar

Orienta-se o uso de ácido fólico devido à


grande solicitação medular durante a fase de
recuperação
Voltar ao índice

Loggetto et al, 2014


USP, 2009
Priapismo
O que é?

Ereção persistente e dolorosa, não relacionada


ao estímulo sexual

Na maior parte dos casos, afeta apenas os


corpos cavernosos e é do tipo veno-oclusivo
(ausência ou baixo fluxo sanguíneo cavernoso)

Mais prevalente após a puberdade

Risco de impotência sexual

Voltar ao índice
Fisiopatologia semelhante à do sequestro

Loggetto et al, 2014


O que é?

Fatores desencadeantes:
Febre
Desidratação
Hipóxia
Acidose
Atividade sexual
Exposição ao álcool
Uso de maconha, cocaína e outros agentes
psicotrópicos

Voltar ao índice

ASH, 2022
Loggetto et al, 2014
USP, 2009
Solicitação padrão de exames

Diagnóstico clínico

USG com doppler: reduzido ou nenhum fluxo


sanguíneo na a. cavernosa

Gasometria do sangue aspirado do corpo


cavernoso: pH ácido e hipoxemia Sempre
individualizar

Voltar ao índice

ASH, 2022
Loggetto et al, 2014
Prescrição padrão
Em casa: aumento da ingesta hídrica, analgesia,
banho/compressa morna, praticar exercícios leves

Se após 2h não resolver: atendimento médico para


analgesia EV + hidratação (=crise álgica)

Se após 4h não resolver: Uro = aspiração de corpo


cavernoso com injeção de agentes adrenérgicos
(fenilefrina ou etilefrina) Sempre
individualizar

Se após 12h não resolver: shunt entre os corpos


cavernosos e o esponjoso

Voltar ao índice
Transfusão vem sendo questionada: ausência de
evidência de eficácia e risco de indução de AVC
ASH, 2022
(ponte para o shunt?) Loggetto et al, 2014
USP, 2009
AVC na DF
O que é?

Cerca de 11% dos pacientes com AF terão 1


AVCi antes dos 20 anos
Pico de incidência: entre 2 e 7 anos

SS 4x > que SC

É uma das complicações mais graves da DF

Recorrência próximo a 14%

DF Voltar
+ sintomas
ao índice neurológicos agudos =
internação
Loggetto et al, 2014
USP, 2009
Solicitação padrão de exames

HMG, ret e eletroforese de Hb

TC

RNM (pode detectar a isquemia mais


precocemente)
Sempre
individualizar
AngioTC/angioRNM

Arteriografia
Voltar ao índice

Seguimento em conjunto com Neurologia


Loggetto et al, 2014
MS, 2012
Prescrição padrão

Terapia neuroprotetora

Proceder rapidamente com transfusão para


HbS < 30%
Simples se Ht < 30% ou Hb < 10, seguida por
transfusão de troca
De troca se Ht > 30% eou Hb > 10 Sempre
Manter Hb em torno de 10 individualizar

Entrarão em programa de transfusão crônica

Voltar ao índice

JAMA, 2022
Blood, 2015
Loggetto et al, 2014
USP, 2009
Não há indicação
de
hiperhidratação
em nenhuma
situação!

ASH, 2020
Braga et al, 2016
MS, 2012
USP, 2009
Gualandro et al, 2007
Que a gente nunca marginalize essa
doença!

A triagem de hemoglobinopatias está


incluída no teste do pezinho desde
2001.

A DF, por sua relevância, está incluída


na Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da População Negra e no
regulamento do SUS desde 2009.
OBRIGADA!

Gabriela Dalvi Quintaes de Morais


Pediatra (Unicamp)
Hematologista Pediátrica (USP/SP)
Título de especialista em Pediatria e em Hematologia Pediátrica

@dragabrieladalvi
dragabrieladalvi@gmail.com

Você também pode gostar