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A comunidade humana e a acolhida aos estrangeiros:

um desafio atual

Eduardo Luis Haas1

Resumo
A mobilidade das pessoas é algo que atinge dimensões surpreendentes. Além de tantos fenômenos migratórios,
antigos ou recentes, há um que se destaca: os refugiados que chegam em grande número a muitos países,
especialmente à Europa, arriscando a vida em travessias clandestinas. Este artigo pretende articular os conceitos
de comunidade e de hospitalidade, tendo presente a realidade da migração. Para o cristianismo há um imperativo
evangélico de acolhida – “Eu era estrangeiro e me acolhestes em casa” (Mt 25, 35c). Este imperativo se encontra
enraizado no Antigo Testamento, onde o povo de Israel é orientado a acolher o estrangeiro, pois o próprio povo
foi estrangeiro no Egito: “Amai o estrangeiro, porque vós também fostes estrangeiros no Egito” (Dt 10,19).
Leonardo Boff afirma que “a acolhida não deve ser vivida como uma condenação porque não temos outra saída.
Devemos viver a acolhida jovialmente como quem vê no outro um próximo, um companheiro de caminhada, um
irmão e uma irmã [...]”.2 É claro que o fenômeno da migração, ainda mais quando envolve um número grande de
pessoas, causa forte impacto pelas necessidades que se apresentam, exigindo políticas públicas de acolhida. O
percurso metodológico deste trabalho é partir de uma realidade: o fenômeno migratório que traz milhões de
refugiados, sobretudo para a Europa. Diante dessa realidade, como a comunidade humana, estruturada em países
com demarcação territorial e identidade cultural pode ver na chegada de estrangeiros um chamado à hospitalidade,
e não apenas uma ameaça? Conclui-se que as raízes judaico-cristãs, que estão na base da identidade do Ocidente,
apontam a hospitalidade como um imperativo, donde a necessidade de acolhida. A manutenção da identidade e
das próprias conquistas econômico-sociais de uma nação não pode impedir a acolhida de quem vem à procura de
condições mínimas de vida com dignidade. A dignidade da pessoa humana é um valor que chama a comunidade
humana à acolhida de quem vem à procura de sobrevivência.
Palavras-chave: comunidade, migração, hospitalidade.

1 INTRODUÇÃO
O presente texto é resultado de um estudo que tem por finalidade estruturar a relação entre
os seguintes temas: o grande número de refugiados que há hoje pelo mundo, a situação dos
países que são desafiados a acolher essas pessoas e o conceito de hospitalidade.
Entende-se que a hospitalidade é a saída possível e necessária para essa problemática. Além
de situá-la no âmbito dos direitos fundamentais para quem se vê obrigado a deixar sua terra
para sobreviver, ela está na identidade cristã como valor inquestionável. A Bíblia aponta a
hospitalidade, a acolhida ao estrangeiro como um imperativo. Por isso, procura-se mostrar que
a hospitalidade se fundamenta tanto por um dever humanitário quanto religioso.

1
Eduardo Luis Haas possui licenciatura em Filosofia pela PUCRS (2005), bacharelado em Teologia pela PUCRS
(2010) e é mestrando em Teologia pela mesma instituição, como bolsista do CNPq.
2
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 167.
2

2 O FENÔMENO ATUAL DAS MIGRAÇÕES FORÇADAS: OS


REFUGIADOS
Nos últimos anos as notícias sobre o fenômeno das migrações forçadas são alarmantes.
O número dos que chegaram só à Europa atinge os milhões. A Síria é o país de origem do maior
número de refugiados, mas há muitos outros países donde também saem pessoas com destino à
Europa, normalmente em travessias perigosas.
Já o reconhecimento de alguém como refugiado ou imigrante é delicado. Reconhecer
alguém como refugiado lhe dá um status singular e, com isso, direitos específicos. O refugiado
é alguém que se vê forçado a sair de seu país para sobreviver, por sofrer perseguição ou grave
ameaça à vida.

Há dois grandes tipos de migrações: a de mão de obra, de um lado, e, de outro,


a dos refugiados e dos que buscam asilo. [...] A imigração é definida,
juridicamente, como o fato de uma pessoa vir a residir num país estrangeiro,
o mais das vezes a fim de nele procurar ou exercer um emprego.
Evidentemente, o asilo se aproxima da imigração, mas se distingue dela por
implicar uma saída do país de origem provocada pelo temor da perseguição.3

O interesse do poder público pela temática da imigração é inadiável, pois a realidade o


obriga a isso. Não há apenas um motivo que leve as pessoas a cruzarem as fronteiras dos seus
países e até continentes. É interessante notar que, “numa espécie de círculo vicioso, quanto mais
se estreita a via da imigração legal, mais os imigrantes clandestinos recorrem ao asilo”.4
Com a constituição da União Europeia há um fato novo: “o estrangeiro é o que vem de fora
da Comunidade, o oriundo de ‘países terceiros’”.5 Cita-se isso porque os países da União
Europeia protagonizam hoje os maiores debates em torno da acolhida aos refugiados.

A questão das migrações revela um paradoxo maior do discurso neoliberal,


que prega a flexibilidade e a livre circulação dos bens, serviços e capitais, mas
muda as regras quando se trata da livre circulação de pessoas, [recorrendo,
então] a qualquer meio de que se disponha para restringir essa liberdade.6

A crítica apontada acima é contundente ao atual modelo de controle do acesso de pessoas.


Os capitais, bens e serviços são considerados úteis, geradores de prosperidade econômica.
Então, para eles não há limite que se imponha.

3
DUROUX, Rose. Imigração, p. 1051.
4
DUROUX, Rose. Imigração, p. 1070.
5
DUROUX, Rose. Imigração, p. 1067.
6
DUROUX, Rose. Imigração, p. 1072.
3

A situação dos refugiados é uma nova categoria de pobreza nesses tempos. Um olhar
retrospectivo, no que se refere à relação com a pobreza, nos revela que na Idade Média os pobres
eram considerados como a imagem de Cristo, pessoas concretas que garantiam a ligação do
nosso mundo com o céu. Depois, a única fonte da legitimidade social passa a ser o trabalho,
especialmente a partir da segunda metade do século XVII.7 Mesmo os países europeus que hoje
se defrontam com a problemática do grande número de refugiados, vêm há anos acolhendo
pessoas de muitas nacionalidades para atuarem como mão-de-obra em postos de trabalho para
os quais não havia mais pessoas suficientes ou interessadas. Agora, como a demanda não
consegue absorver a todos para o trabalho – fonte de legitimidade social –, está instalado o
impasse.
Além de vir de outro país, um estrangeiro vem, normalmente, de outra cultura, é alguém
que não participa dos valores fundamentais do grupo ou sociedade na qual ingressa. Essa
relação entre aquele que chega – e é diferente daqueles que o acolhem – põe a questão da
assimilação. “Quando um estrangeiro é assimilado, lhe é pedido renunciar à sua identidade para
se fundir com o corpo social: rejeitar sua língua, seu sotaque, seus costumes, seus hábitos, sua
cultura, etc.”8 Tal maneira de pensar a assimilação de um estrangeiro (refugiado ou não), não é
uma negação de alteridade? Não fica ele privado de sua própria identidade?
“O estrangeiro é sempre um exilado de uma terra, de uma nação ou de uma cidade”.9
Sócrates preferiu a morte ao exílio. Recorda-se esse fato para que se perceba o aspecto difícil,
trágico, da migração forçada. Esse exemplo nos mostra o drama dessa realidade humana que
perpassa os séculos. Hoje, no entanto, as dimensões numéricas da questão são gigantescas. As
regiões de fronteiras entre países são ocupadas por acampamentos de refugiados, tanto antes de
deixar seus países quanto ao chegarem em terras estrangeiras. São situações degradantes,
precárias, vergonhosas.

3 AS COMUNIDADES CONSTITUÍDAS COMO NAÇÕES OU PAÍSES


DIANTE DA CHEGADA DOS REFUGIADOS
O elevado número de refugiados que chegam a tantos países traz uma pergunta: onde se
fundamenta o direito de alguém definir quem entra ou não em determinado território? É
evidente que há normas sociais, contratos, acordos e consensos internacionais. Contudo, diante

7
Cf. BESSONE, M. Exclusão, p. 1095.
8
BESSONE, M. Exclusão, p. 1097.
9
BESSONE, M. Exclusão, p. 1097.
4

de uma situação extrema como é a que estamos vivendo, é legítimo barrar o ingresso de alguém
que vem fugindo de seu país?
Para o filósofo alemão Immanuel Kant, a terra é de todos os seres humanos, o que não dá
a uns maior direito de ocupação do que a outros. Mas o próprio Kant fala de um direito de visita,
ou seja, um direito que é provisório.

A acolhida dos exilados entra assim, progressivamente, em uma problemática


do “tornar-se direito” e a hospitalidade do Estado nasce no século XIX. É
principalmente o século XX que vê se multiplicarem os estatutos tanto
nacionais quanto internacionais. A codificação jurídica parece necessária em
razão do próprio desenvolvimento dos deslocamentos humanos e das pressões
que os condicionam. A hospitalidade, que até o século anterior era concedida
a indivíduos singulares ou a comunidades restritas, passa a ser, com as guerras
cíveis e os regimes autoritários, confrontada com um número crescente de
refugiados. A hospitalidade parece, então, uma forma ultrapassada, pois não
corresponde mais à necessidade das estruturas de acolhida.10

O fato de serem muitos os refugiados que se deslocam pelo mundo, de fato, dá dimensões
novas à problemática. Se forem somados os deslocados internos (aqueles que são obrigados a
fugir para sobreviver, mas permanecem dentro de seu país) com os refugiados, tem-se milhões
de pessoas.
É o controle das fronteiras, feito pelos Estados nacionais, que determina a população que
lhe pertence. Ser admitido no território de um Estado é condição para receber dele o direito de
cidadania. E “essa é a forma de Estado nação que cria o ‘refugiado’”.11 O que significa, afinal,
conceder a alguém o direito de cidadania? Não há uma resposta consensual, mas é possível
indicar algumas compreensões sobre isso.
O direito de cidadania pode ser compreendido como o simples direito de circulação, pelo
qual o Estado pode “autorizar uma pessoa a entrar em um território, circular nele e permanecer
por um tempo”.12 Conceder cidadania é também permitir que alguém fixe domicílio permanente
num território. Indo mais além, tornar-se cidadão é adquirir o direito de participar na vida
política da cidade. E, por fim, pode-se entender o “direito de cidadania como aquisição da
nacionalidade, ou seja, como direito de ser protegido por um Estado por ser seu membro”.13
O que determina que um Estado conceda ou não o direito de cidadania aos estrangeiros? O
principal argumento é o chamado “interesse de Estado”. Na verdade, o interesse de Estado

10
APRILE, S. Exílio, p. 1039-1040.
11
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1025.
12
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1027.
13
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1027.
5

orienta-se pelos benefícios ao próprio Estado ou à população, não tanto aos estrangeiros. “A
argumentação econômica desenvolvida pelos governos nos séculos XIX e XX, a partir da
questão dos fluxos de mão de obra, parte da mesma lógica do interesse do Estado”.14 Se acolher
os estrangeiros é interessante ao Estado, seja para povoar seu território, seja para conseguir mão
de obra (mais barata ou abundante), então é mais fácil que haja a concessão do direito de
cidadania.
Atualmente a origem dos refugiados que chegam sobretudo à Europa é de países com outra
identidade cultural e religiosa. Isso traz mais um elemento: a afinidade ideológica. As pessoas
que integram determinado Estado compartilham uma identidade – isso é chamado de “bem
social”. Então, “apesar da existência de um princípio de ajuda mútua, seus membros decidem
sobre seu [do bem social] compartilhamento ou não com outros”.15
A discussão em torno do tema é grande. Com o acento que há na liberdade do sujeito,
conquista da democracia liberal, há quem se pergunte por que é o Estado, e não o indivíduo,
quem decide sobre a hospitalidade e cidadania?16 O direito de imigrar não deveria ser incluído
no sistema das liberdades fundamentais?17 Uma restrição que é bastante consensual, mesmo
entre os que defendem maior abertura à acolhida dos estrangeiros, é que os recém-chegados
“não devem por em perigo a liberdade dos cidadãos”.18

4 A HOSPITALIDADE COMO SOLUÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA


O fenômeno das migrações forçadas, como se viu na primeira parte deste trabalho e se
pode acompanhar pelos noticiários recentes, é algo que adquiriu dimensões nunca antes vistas.
Além disso, há a problemática da postura dos Estados diante da acolhida de quem chega, que
não é sem problemas para os países envolvidos nessa questão. Agora se pretende apontar a
hospitalidade, desde uma perspectiva cristã, como uma solução possível e necessária para o
drama dos refugiados.
“Desde a Bíblia, as noções de exílio e de hospitalidade estão estreitamente imbricadas uma
na outra”.19 O povo de Deus foi exilado. Daí vem o imperativo para que não esqueça de sua
história e se disponha a acolher os estrangeiros (Cf. Dt 10,19). Contudo, o contexto social

14
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania p. 1028.
15
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania escritas, p. 1028.
16
Cf. GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1033.
17
Cf. GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania p. 1034.
18
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1034.
19
MONTANDON, A. O livro da hospitalidade, p. 996.
6

mudou muito e hospitalidade não é uma prática marcante desses tempos. Além disso, não
convém esquecer os riscos e dificuldades que ela comporta:

Na verdade, ela é um grande risco, é uma prova da qual se pode sair mal, e
precisamos tratar do medo à hospitalidade, da hospitalidade parcial e seletiva.
Será necessário levar em conta também a fragilização e até a perda do ethos
hospitaleiro no Ocidente marcado pelo individualismo, pelo utilitarismo e
pelo economicismo.20

Antes de tudo é preciso olhar para quem é o refugiado. Ele é “aquele que não é protegido
pelo Estado onde vive; o refugiado é a vítima impotente de convulsões sociais e políticas; enfim,
o refugiado teme a perseguição em seu próprio país e deseja viver livre em outro”.21 O refugiado
não tem opção: ele é refugiado por uma necessidade premente de sobrevivência. Essa
característica deve ser levada em conta, pois mostra a necessidade de uma atitude que possa
preservar a vida e a dignidade deste que chega.
A motivação cristã para a hospitalidade exerce grande importância no posicionamento
diante dessa temática. “Na fragilidade e na vulnerabilidade de quem não tem credenciais para
ser hospedado com honras já estabelecidas, transcende-se tudo o que há neste mundo para
receber, na nudez de quem chega, a pureza da transcendência, inclusive da transcendência
divina”.22
Leonardo Boff, em seu livro Virtudes para um outro mundo possível: a hospitalidade,
aponta elementos importantes para a temática abordada neste trabalho.

Os impasses contemporâneos à hospitalidade são de grande monta. Sequer


sabemos exatamente como enfrentar de forma hospitaleira os graves
problemas mundiais das migrações, especialmente por motivos de guerra ou
de crise econômica e da mobilidade natural entre povos e culturas. Nem por
isso devemos renunciar ao ideal da hospitalidade que está na base da
humanidade e da convivência civilizada. Sem ela regrediríamos à sociedade
selvagem dos lobos, ao que é chamado de “estado natural”.23

Serão apresentadas agora, brevemente, as principais intuições de Boff para a temática aqui
estudada. Ele começa apontando atitudes e comportamentos. Num segundo momento, indica
políticas possíveis para a hospitalidade.

20
SUSIN, L. C. Deus hóspede, p. 9.
21
GAILLE-NIKODIMOV, M. Direito de cidadania, p. 1030.
22
SUSIN, L. C. Deus hóspede, p. 9.
23
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 163.
7

A boa vontade incondicional é o ponto de partida, no dizer do autor, a atitude prévia a tudo
o que se faz. Sabe-se que há muitos interesses pessoais, nacionais e até internacionais,
econômicos, religiosos e políticos envolvidos na questão da acolhida aos refugiados. Antes das
desconfianças, dos medos e das reservas é necessário que esteja a boa vontade. Sem ela, todo
projeto fracassará por uma espécie de vício de origem. “Em todos vigora um mínimo de capital
de boa vontade. Se cada um, de fato, quisesse que a humanidade desse certo, com a boa vontade
de todos ela daria certo”.24
Acolher generosamente é a segunda indicação. Antes dos preconceitos é preciso colocar
acolhida generosa. “A acolhida não deve ser vivida como uma condenação porque não temos
outra saída”.25 A globalização que acontece no mundo chega também ao aspecto populacional.
Diante disso, a acolhida faz-se necessária, como atitude pessoal e coletiva.
A escuta atenta situa-se no intuito de acolher o outro como uma pessoa que chega, e não
como um número de uma estatística. Cada ser humano tem uma história que marca sua
identidade. E isso é mais importante do que aquilo que se pensa sobre o outro antes de conhecê-
lo.
Dialogar francamente entre pessoas e culturas é necessário. O diálogo faz ver o que é
diferente e o que é igual entre as pessoas e as culturas. Só um diálogo franco pode revelar os
valores que existem na grande família humana.
Negociar honestamente é atitude imprescindível quando há interesses diferentes em
questão. Aquele que chega e aquele que recebe têm que se dispor a ceder, a negociar, a fazer
combinações. Por isso, uma verdadeira negociação que leve a assumir compromissos recíprocos
é necessária.
Renunciar desinteressadamente significa “a capacidade política de priorizar o que é
realmente importante para todos”.26 Os interesses comuns devem sobrepor-se à simples
manutenção dos benefícios individuais.
Responsabilizar-se conscientemente é a disposição de acolher o diferente sem negar as
dificuldades que isso traz. Ao mesmo tempo, supõe atitude de quem vê na pluralidade e na
diversidade que o contato com o estrangeiro traz não uma ameaça, mas um enriquecimento.
Relativizar corajosamente não é negar a própria identidade e valores. Significa, isso sim,
entender que o outro também tem valores e percepções válidas, com os quais posso dialogar.
Relativo no sentido de relação com o diferente, não de menosprezo da própria posição.

24
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 166-167.
25
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 167.
26
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 171.
8

Transfigurar inteligentemente sugere aproveitar a dimensão de agressividade que está em


nós para utilizá-la positivamente. “A competição, por exemplo, que marginaliza e exclui tantas
pessoas, [...] deve ser transfigurada através de formas benevolentes como competições
esportivas, culturais, artísticas e outros concursos”.27
As atitudes e comportamentos indicados acima situam-se no âmbito pessoal,
prioritariamente. São importantes, necessárias e sem elas fica difícil pensar em solução para a
questão dos estrangeiros que chegam e pedem asilo. Contudo, são necessárias também políticas
de hospitalidade, que abranjam estruturas de governo e outras organizações. Boff apresenta
cinco políticas possíveis para a hospitalidade.
Justiça mínima em todos os níveis é a primeira delas. “O fosso entre ricos e pobres
aumentou entre 1960 e 1990 de 30 a 60 vezes, o que configura perversa injustiça social e
verdadeira barbárie humana”.28 Um dos graves problemas é que a política está refém da
economia. E a economia vive da competição, não da cooperação. Isso precisa mudar.
Direitos humanos a partir das maiorias é a segunda indicação de política de hospitalidade.
“Se bem repararmos, a luta da grande maioria dos seres humanos é por alimentação, por
trabalho, por saúde, por moradia e por segurança”.29 Quando se fala desses direitos básicos não
se está pensando numa minoria de pessoas, mas na maioria da população que sofre com
condições precárias de vida. Basta olhar para o número de refugiados e de deslocados internos
para ver que esse contingente populacional não pode ser chamado de “minoria”.
Democracia aberta e perfectível. “No momento atual do processo de globalização
econômico-financeira, a democracia está sendo desvirtuada servindo de cobertura ideológica
para processos de dominação imperial negadores da democracia”. 30 Cada vez mais se observa
que alguns grupos econômicos adquirem mais poder e influência, fazendo inclusive que os
países tenham menor autonomia sobre si mesmos. É preciso fortalecer a democracia, baseada
na maturidade de cada indivíduo, ancorada em estruturas que assegurem a participação e a
igualdade.
Interculturação: desafio para a humanidade é a quarta política apresentada. “Toda cultura
desempenha duas funções básicas: para dentro é cimento de coesão e de identidade; para fora é
fator de distinção e de diálogo com outras culturas”.31 Identidade e distinção é que vão permitir
a interculturação, que não quer negar as identidades locais, étnicas, religiosas e culturais. A

27
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 173.
28
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 175.
29
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 179.
30
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 181.
31
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 187.
9

interculturação prevê o encontro entre as culturas, focando na complementaridade entre os


diferentes.
Outro mundo possível: novo paradigma de civilização. Boff conclui afirmando a
possibilidade de que é possível outro mundo, assentado sobre novo paradigma civilizacional. E
como eixo integrador ou articulador, a vida é que aparece em destaque. “A proposição da vida
como o eixo articulador de tudo poderá criar as condições para o surgimento de uma ética do
cuidado, da prevenção, da proteção, da responsabilidade e da compaixão”.32
A realidade desafiadora deve nos chamar à esperança, não ao desânimo ou fechamento. O
outro não é ameaça, problema, dificuldade. Antes de tudo ele deve ser visto como vida que tem
valor soberano a quaisquer interesses.

5 CONCLUSÃO
Situações novas e de dimensões grandes exigem um esforço conjunto e revisão das atuais
respostas que se dá aos problemas. Falando dos refugiados, não é possível pensar que fechar as
fronteiras nacionais seja solução para o problema. É preciso ir mais longe.
O principal indicativo que este trabalho intenta dar é a urgência da hospitalidade ao que
chega. Sem negar as dificuldades, impactos e até renúncias de privilégios que isso comporta
para quem acolhe, reitera-se que a vida humana ameaçada chama à ação.
É importante também uma atenção aos países de origem dos refugiados, para que se possa
identificar as causas que criam um ambiente que obriga as pessoas a arriscarem a vida e
deixarem tudo para trás em busca de asilo. Situações que exigem apoio internacional, sem
desrespeitar a identidade e liberdade daqueles países.
Outro elemento é criar uma rede internacional de acolhida, que possa ajudar a dar
sustentação aos países que são mais atingidos pela chegada em grande número de refugiados.
Por fim, como se viu nas indicações de Leonardo Boff, são necessárias atitudes pessoais –
que demandam uma nova postura – e políticas públicas – que exigem novos mecanismos e
outros valores orientadores.
“A hospitalidade desapropria o os limites da propriedade”.33 Na terra todas as pessoas são
hóspedes. Pensar sobre isso poderá ajudar a repensar a acolhida aos refugiados.

32
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível, p. 193.
33
MONTANDON, A. O livro da hospitalidade, p. 35.
10

REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2002.
BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. Vol. I: hospitalidade – direito e dever de
todos. Petrópolis: Vozes, 2005.
APRILE, Sylvie. Exílio. In: MONTANDON, Alain (Org). O livro da hospitalidade. Acolhida do
estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac, 2011. p. 1039-1050.
BESSONE, Magali. Exclusão. In: MONTANDON, Alain (Org). O livro da hospitalidade. Acolhida do
estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac, 2011. p. 1089-1102.
DUROUX, Rose. Imigração. In: MONTANDON, Alain (Org). O livro da hospitalidade. Acolhida do
estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac, 2011. p. 1051-1078.
GAILLE-NIKODIMOV, Marie. Direito de cidadania. In: MONTANDON, Alain (Org). O livro da
hospitalidade. Acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac, 2011. p. 1025-
1038.
MONTANDON, Alain (Org). O livro da hospitalidade. Acolhida do estrangeiro na história e nas
culturas. São Paulo: Senac, 2011.
SUSIN, Luiz Carlos. Deus hóspede: hospitalidade e transcendência. Thaumazein, Ano V,
Número 12, Santa Maria, Dezembro de 2013.
http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/. Acesso em 17.08.2016, às 11h10min.
http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=100. Acesso em 17.08.2016.
http://www.ihu.unisinos.br/559771-acolher-os-refugiados-e-uma-obrigacao-moral-entrevista-com-
agnes-heller. Acesso em 06.09.2016.

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