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A VENDA FORÇADA DE IMÓVEIS

PARA FINS URBANÍSTICOS

Claudio Monteiro1

Resumo: O Autor reflete sobre a venda forçada de imóveis e a expropriação por utilidade pública
para fins urbanísticos, concluindo que a primeira apresenta vantagens relativamente à segunda.

Palavras-chave: Venda forçada; expropriação; função social da propriedade.

Sumário: 1. Os antecedentes históricos da venda forçada de imóveis. 2. A expropriação por


utilidade pública para fins urbanísticos. A expropriação por zonas e a questão da admissibilidade
da expropriação em benefício de privados. 3. A venda forçada de imóveis como uma alternativa à
expropriação no RJRU. O debate constitucional e o Acórdão do TC n.º 421/2009. 4. A venda forçada
de imóveis como um instrumento de execução dos planos na LBPSOTU. A função social da proprie-
dade e o controle da iniciativa da urbanização e da edificação. 5. A venda forçada ainda vale a pena?
Vantagens e desvantagens da sua utilização.

A (re)introdução na legislação urbanística portuguesa do instituto da venda


forçada de imóveis, através da sua previsão no Regime Jurídico da Reabilitação
Urbana (RJRU) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, sus-
citou, à data, um intenso debate sobre a sua constitucionalidade, dando origem
ao importante Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2009, que a viabilizou.
O regime da venda forçada de imóveis foi, inclusive, ampliado pela Lei de
Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de
Urbanismo (LBPSOTU), aprovada pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio.
A venda forçada não tem tido, é certo, uma aplicação prática relevante,
nos quase quinze anos de vigência que já leva, mas a sua menor efetividade,
que em parte é explicável por razões económicas e sociais de âmbito geral,
estranhas aos condicionalismos impostos pelo seu regime jurídico, não diminui
o seu interesse, doutrinário e jurisprudencial, sobretudo num contexto em que o
debate sobre os limites da funcionalização do direito de propriedade privada à
satisfação de interesses gerais da coletividade foi reaberto pela aprovação do
Programa Mais Habitação que, entre outros, prevê o arrendamento forçado de
fogos devolutos.

1
Juiz do Supremo Tribunal Administrativo e Professor da Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa.

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023


28 Claudio Monteiro

1. OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA VENDA FORÇADA DE IMÓVEIS

1.1. A venda forçada de terrenos vagos ou não utilizados no povo-


amento do território na Idade Média

A origem remota da venda forçada de imóveis para fins urbanísticos pode


encontrar-se no direito antigo português, nomeadamente na Lei das Sesmarias,
outorgada pelo Rei D. Fernando I de Portugal em 1375.
Embora se atribua à referida lei, principalmente, uma finalidade agrícola,
associada ao cultivo da terra e ao aumento da produção cerealífera, como res-
posta à situação de crise económica que então se vivia, a sua aplicação em
contexto urbano está extensivamente documentada2.
A sesmaria é, aliás, uma instituição anterior à própria Lei das Sesmarias,
destinada a promover o povoamento do território através da concessão de terras
públicas, adquiridas pela Coroa por ocupação ou apresamento, no âmbito da
designada reconquista cristã do território, pelo que também se aplicava às dadas
de terrenos para edificação ou reedificação no interior das cidades, vilas e demais
povoações. Foi aquela lei, no entanto, que introduziu no seu regime um elemento
finalístico, destinado a assegurar a utilidade e a efetividade do aproveitamento
da propriedade – a sua função social, como se diria modernamente -, ao impor
a concessão em regime de sesmaria de todas as propriedades improdutivas,
que se encontrassem devolutas ou não tivessem dono conhecido.3
A abertura da Lei das Sesmarias à propriedade urbana está bem patente
no seu texto, que nos chegou através de uma carta de D. João I, de 25 de feve-
reiro de 1427, que se incorporou nas Ordenações Afonsinas, e se consolidou
nas Ordenações Manuelinas e Filipinas como “as dadas de terras, casas ou
pardieiros, que forão, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo
foram lavradas e aproveitadas e agora não são”.4

1.2. A venda forçada de direitos de construção na reconstrução de


Lisboa depois do Terramoto de 1755

A origem próxima do instituto da venda forçada de imóveis para fins urbanís-


ticos encontra-se, porém, na legislação urbanística que enquadrou a reconstrução

2
Veja-se, por exemplo, a Carta de D. João I aos Procuradores da Vila de Santarém às Cortes
de Braga de 1387, em que, perante as queixas por eles apresentadas, de que na referida vila
existiam muitos pardieiros insalubres, determinou que se “vejam os tais pardieiros que há na dita
vila. E que daqui em diante os donos deles (...) sejam constrangidos a tapá-los e a repará-los,
e se lhes determine um prazo de seis meses para o fazer. E se o não fizerem no tempo que
lhes for determinado, que os deem a quem o faça, para que os tomem para si e para os seus
herdeiros e descendentes (...)” – cfr. ANTT, CHR, D. João III, Livro 17, fl. 130v.
3
Sobre o regime das sesmarias no direito português antigo, v. RAU, Virgínia Rau, Sesmarias
medievais portuguesas. Lisboa, Presença, 1992.
4
Cfr. Ordenações Filipinas, Liv. 4, Tit. 48.

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de Lisboa depois do Terramoto de 1755, em especial na Lei de 31 de maio de


1758, que definiu os direitos públicos e privados da reedificação da cidade5.
A referida lei, que precedeu a aprovação do plano de reconstrução, criou
os instrumentos jurídicos que permitiram ao Governo, sem prévia expropriação
sistemática dos primitivos proprietários, assumir o controlo sobre o território da
Baixa, assegurando, por um lado, a disponibilidade dos terrenos necessários
à formação das ruas, praças e jardins e, por outro, a adjudicação dos lotes de
terreno para a edificação privada.
De acordo com as regras nela estabelecidas, os terrenos eram adjudicados
pela Inspeção dos Bairros de Lisboa às pessoas que se obrigassem a edificar em
conformidade com o plano, preferindo em primeiro lugar os seus proprietários, é
certo, mas podendo os terrenos ser adjudicados a terceiros, no caso de aqueles
não quererem ou não poderem edificar na sobredita forma.
Os terrenos eram adjudicados aos seus proprietários na condição de aque-
les se obrigarem “efficazmente a darem as obras acabadas no termo de cinco
annos, sucessivos, e contados dia, em que assinarem a obrigação”6, sob pena
de os mesmos poderem ser adjudicados a terceiros, de acordo com a res-
pectiva ordem de preferências, “pagando aos donos dos terrenos o justo valor
delles”7.
De um ponto de vista jurídico, a venda forçada operava-se de duas formas
distintas. Inicialmente, através da aplicação dos referidos critérios subsidiários
de adjudicação, nos termos estabelecidos pelo plano aprovado Alvará de Lei
de 12 de Junho de 1758, com a alteração resultante do Alvará de Lei de 12 de
Junho de 1759, nos casos em que o primitivo adjudicatário não tivesse iniciado
a edificação no prazo de cinco anos estabelecido naquele primeiro diploma. Num
segundo momento, através da aplicação dos diplomas legais que permitiram,
primeiro, e impuseram, depois, a venda em hasta pública dos lotes ainda não
edificados, respetivamente, o Decreto de 6 de Março de 1769, e o Alvará de Lei
de 23 de Fevereiro de 1771. Estes dois últimos diplomas foram ainda comple-
mentados pelo Decreto de 7 de Dezembro de 1772, que estendeu a aplicação
da venda forçada para fora da área do plano, à venda de casas arruinadas e
pardieiros não incendiados, a quem se obrigasse a edificá-los de acordo com
os prospetos estabelecidos para as respetivas ruas ou praças.
A diferença fundamental entre a aplicação dos critérios subsidiários de adju-
dicação de terrenos estabelecidos naqueles primeiros diplomas, e a aplicação
destes últimos, é que enquanto os primeiros não exigiam uma hasta pública ou
qualquer outro procedimento adjudicatório competitivo, sendo a nova adjudicação
decidida por mero despacho do Regedor da Inspeção dos Bairros de Lisboa,

5
Sobre a referida lei e, em geral, sobre o enquadramento jurídico do processo de reconstrução
de Lisboa, v. o que escrevemos em MONTEIRO, Claudio, Escrever Direito por linhas rectas.
Legislação e planeamento urbanístico na Baixa de Lisboa (1755-1833), Lisboa, AAFDL, 2010.
6
Cfr. parágrafo I.
7
Cfr. parágrafo II.

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os últimos implicavam a arrematação dos terrenos “a quem por elles mais der
ficando livres sem encargo algum”8.
A generalidade dos casos em que o primitivo adjudicatário foi forçado a
vender o seu lote de terreno foi, no entanto, realizada com base no regime
estabelecido nestes últimos diplomas, em especial no Decreto de 6 de Março de
1769, o que de facto ocorreu de forma sistemática, sobretudo nas décadas de
setenta e de oitenta, período em que a grande maioria dos lotes que não foram
imediatamente edificados mudou de mãos.
Acresce ainda que o Alvará de Lei de 23 de Fevereiro de 1771 não se limitou
a impor a venda dos terrenos ainda não edificados, tendo além disso alterado
o prazo de cinco anos fixado no Alvará de Lei de 12 de Junho de 1758, ao dar
por “por finda a sobredita espera”.
A partir dessa data, todas as adjudicações, tanto as originárias, nomeada-
mente nas zonas mais periférica, que ainda não haviam sido feitas, como as
que resultaram da venda forçada de um lote adjudicado e ainda não edificado,
foram feitas pelo prazo de apenas um ano, sob pena de nova venda forçada.
Isso permitiu que alguns terrenos tivessem mudado de mãos duas ou mesmo
três vezes, até se encontrar alguém com meios e disposição para edificar dentro
daquele prazo, garantindo assim a execução integral do plano.
No final do longo processo de execução do plano, que apenas se pode dar
por concluído nos primeiros anos do século XIX, estima-se que cerca de setenta
e cinco por cento dos primitivos proprietários dos terrenos abrangidos pelo Plano
da Baixa foram substituídos através da expropriação e, principalmente, da venda
força dos lotes de terreno adjudicados.

1.3. A venda forçada de imóveis na génese da legislação urbanística


portuguesa

A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos sobreviveu à transição


do Antigo Regime para o Estado Liberal de Direito, mantendo-se prevista Lei de
31 de dezembro de 1864, diploma fundador do moderno direito do urbanismo
português, que, embora tivesse por objeto principal a construção, conservação
e polícia das estradas, continha um corpo significativo de disposições aplicáveis
à construção nas vias urbanas das cidades, vilas e povoações, em especial nas
cidades de Lisboa e do Porto9.
No artigo 47.º daquela lei estipulava-se que “os proprietários de terrenos que
confinem com as vias publicas são obrigados a construir edificações n’esses ter-
renos, segundo os projectos que forem approvados, devendo começar as obras

8
Cfr. Decreto de 6 de março de 1769.
9
Sobre a génese da moderna legislação urbanística portuguesa, e sobre a Lei de 31 de Dezembro
de 1864 em especial, v. Gonçalves, Fernando, «Evolução histórica do Direito do Urbanismo em
Portugal (1851-1988)», Direito do Urbanismo (Comunicações apresentadas no curso realizado
no Instituto Nacional da Administração), Oeiras, INA, 1989, pp. 225 ss.

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dentro do praso de um anno, a contar da data da arrematação”. Não o fazendo,


prosseguia-se no § 1º do mesmo artigo, “(...) serão os terrenos avaliados por
ajuste amigável ou processo judicial, nos termos das leis geraes de expropriação
e vendidos em hasta publica a quem por elles mais der e se obrigar a começar
a construção no praso de um anno, a contar da arrematação”.
No entanto, a venda forçada de imóveis não teve, no liberalismo, a efeti-
vidade que tinha tido na reconstrução de Lisboa depois do Terramoto de 1755,
sendo preterida como instrumento de execução dos novos planos de expansão
da cidade em favor do uso sistemático da expropriação por utilidade pública.

2. A EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA PARA FINS URBA-


NÍSTICOS. A QUESTÃO DA ADMISSIBILIDADE DA EXPROPRIAÇÃO
EM BENEFÍCIO DE PRIVADOS

No Antigo Regime, a abertura de novas ruas, ou o alargamento das exis-


tentes, não podia ser feita pelas câmaras municipais sem a intervenção do
Rei, quer pela falta de meios financeiros próprios para realizar as obras, quer
sobretudo pela falta de enquadramento legal específico para a aquisição dos
terrenos necessários para o efeito.
Com efeito, o direito antigo português não configurava a expropriação como
um instituto jurídico autónomo, nem previa qualquer outro ato jurídico-público
capaz de, por si só, obter o efeito da extinção do direito de propriedade privada
e a consequente transferência do bem para a esfera pública10.
Com a aprovação da Constituição de 1822, a expropriação por utilidade
pública passou a dispor de um enquadramento constitucional específico, que limi-
tava a sua utilização aos casos de “necessidade pública e urgente” 11, mediante
prévia indemnização. A matéria foi, inclusive, objeto de uma regulamentação
geral, que até então não tinha tido, com a aprovação da Lei de 17 de Abril de
1838, que seria mais tarde substituída pela Lei de 23 de Julho de 1850.
Nunca existiram dúvidas de que a urbanização constituía um motivo de
necessidade ou utilidade pública atendível no regime das expropriações, na
medida em que a mesma se consubstanciava na dotação do território de infra-
estruturas públicas. Na doutrina clássica, aqueles conceitos identificavam-se,
no essencial, com o conceito de obra pública, chegando mesmo alguns autores
a defender que uma expropriação só tem utilidade pública quando se destinar
à constituição de domínio público através da realização de uma obra pública12.

10
Sobre a expropriação por utilidade pública no Direito antigo português, v. MATTA, José Caeiro
da, O direito de propriedade e a utilidade pública das expropriações, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1906, pp. 209 ss.; v. também CARVALHO, Rivera Martins de, «Subsídios para a
história da expropriação em Portugal», Boletim do Ministério da Justiça (21), 1950, pp. 5 ss..
11
Cfr. artigo 6.º, n.º 2.
12
Neste sentido, v. CABRAL, Margarida Olazabal, «Poder de expropriação e discricionariedade»,
In Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, Junho (2), 1994, pp. 83-84, e a doutrina aí
citada.

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A utilidade pública urbanística da expropriação foi, aliás, reconhecida


expressamente pela Lei de 31 de Dezembro de 1864 como instrumento de
execução do plano de melhoramentos da capital, reconhecimento que viria a ser
alargado pela Carta de Lei de 10 de Maio de 1872 a todas as expropriações que
fossem necessárias “para o melhoramento das ruas, praças, jardins e edificações
existentes nas cidades e vilas do reino, para a construção nas mesmas vilas
e cidades de novas ruas, praças, jardins e para as edificações adjacentes”13,
independentemente da existência de um plano de melhoramentos aprovado.
A referência discreta às “edificações adjacentes” constante deste último
diploma legal não era inocente, numa lei que foi aprovada nas vésperas do início
das obras de construção da Avenida da Liberdade e das demais avenidas novas
do plano de expansão da cidade de Lisboa elaborado pelo Engenheiro Ressano
Garcia. É que a questão de fundo do regime das expropriações para fins urba-
nísticos, que viria, aliás, a ser objeto de acesa polémica ao longo das últimas
décadas do século XIX, era precisamente a questão de saber se a expropriação
podia abranger, para além dos terrenos destinados à construção das obras de
urbanização propriamente ditas, terrenos destinados à construção de edifícios
nas margens das novas ruas, praças e jardins.
Apesar da polémica14, a Lei de 13 de Julho de 1888 aprovou o regime das
designadas expropriações por zonas15 que, além das expropriações necessárias
“para construir o parque da avenida da Liberdade e ruas adjacentes, paralellas
ou incidentes, e para a abertura da avenidas das Picoas ao campo Grande e
ruas adjacentes, paralellas ou incidentes”16, permitiu também as expropriações
de “uma faixa annexa e exterior aos respectivos perímetros até à largura de 50
metros”17.
Assim, e pela primeira vez no constitucionalismo liberal, o legislador per-
mitiu que a expropriação não se fizesse para realizar uma obra pública, ou para
constituir domínio público, pois as faixas assim adquiridas integravam o domínio
privado da Administração e eram posteriormente vendidas em hasta pública aos
particulares interessados na sua edificação.

13
Cfr. artigo 1.º, n.º 1.
14
Veja-se, principalmente, o intenso debate parlamentar a que foi sujeito o Projeto de Lei n.º 171, que
deu origem à Lei de 13 de julho de 1888, tanto na Câmara dos Deputados, como na Câmara dos
Pares, respetivamente, nas sessões de 28 e 30 de junho de 1888, e de 9 a 11 de julho do mesmo
ano, que pode ser consultado online no sítio da Assembleia da República, em Debates Parlamentares,
Monarquia Constitucional, disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc.
15
A Lei de 13 de julho de 1888 inspirou-se no regime das expropriações por zonas francês, que
permitiu ao Barão de Hausserman, que foi Prefeito de Paris, promover a renovação urbana
daquela cidade nas décadas precedentes, regime que também foi adotado com sucesso na
expansão urbana da cidade de Bruxelas, na Bélgica. Sobre a expropriação por zonas, v. Dirat,
A., De l’expropriation par zones, Toulouse, Imprimerie du Centre, 1921; e Leblicq, Yvan, «De
l’expropriation pour cause d’utilité publique à l’expropriation par zones em Belgique et en France
au XIX siècle», L’expropriation. Recueils de la Societé Jean Bodin, LXVII (Deuxième partie),
Bruxelas, De Boeck, 2000, pp. 105 ss.
16
Cfr. artigo 1.º.
17
Cfr. artigo 1º, §º.

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O sistema destinava-se a permitir que a Câmara Municipal de Lisboa recu-


perasse a mais-valia gerada pela realização das obras de urbanização, assegu-
rando, simultaneamente, o seu financiamento e o controlo sobre o subsequente
processo de edificação das suas margens. Se os proprietários não usassem
do direito de preferência que a mesma lei lhes concedia para assumirem a
responsabilidade pela realização das obras de urbanização, de acordo com os
projetos aprovados pela câmara, procedia-se à expropriação pelo valor que os
prédios tinham antes da execução das obras, procedendo-se, posteriormente, “à
venda em hasta pública, por conta da câmara e dos proprietários, dos prédios ou
parte d’elles que sobrarem das obras municpaes, pertencendo à câmara, alem
do primitivo preço da expropriação, 75 por cento do augmento do valor obtido
em praça, e 25 por cento do mesmo augmento aos respectivos proprietários”18.
Cabia, à Câmara Municipal de Lisboa, formar os lotes para a venda em
hasta pública, o que ela obviamente fazia em conformidade com o plano por si
previamente elaborado. No regime equivalente, que viria a ser estabelecido com
carácter geral pela Lei de 26 de Julho de 1912, que definiu o quadro legal das
expropriações por utilidade pública, estabelecia-se de uma forma mais perentó-
ria que “as faixas de que trata o § 2º do artigo 6º, uma vez expropriadas, serão
postas à venda em hasta publica, talhadas em chão, regulares de dimensões e
condições, acomodadas às exigências duma boa edificação urbana”19. O mesmo
se tendo estabelecido, por outras palavras20, na Lei nº 2.030, de 12 de Junho
de 1948, que manteve aquele regime, embora condicionando-o à existência de
“plano geral ou parcial de urbanização, aprovado nos termos da lei”21.
Apesar da devolução dos terrenos ao mercado imobiliário, através da venda
em hasta pública dos lotes de terreno para construção, a expropriação por zonas
permitia à Administração ter o controlo quase total sobre a edificação privada, o
que explica a longevidade do instituto, e a sua utilização sistemática até meados
do século XX.
A expropriação por zonas continua, aliás, a estar prevista na legislação
urbanística atualmente em vigor22, embora sem grande efetividade, dado que,
sobretudo a partir de 1965, a iniciativa do próprio processo de urbanização foi
devolvida aos particulares, através da realização de operações de loteamento
urbano, e a obtenção dos terrenos necessários à construção de infraestruturas e
equipamentos de utilização coletiva passou a fazer-se, primordialmente, através
das cedências obrigatórias previstas nos respetivo regime jurídico.

18
Cfr. artigo 3.º, §3º.
19
Cfr. artigo 7.º.
20
Nos termos do artigo 7º, n.º 1, “os terrenos expropriados para a construção, não destinada a
fim de interesse público ou a casas económicas a fazer pelo Estado, serão vendidos em hasta
pública e em lotes acomodados às obras previstas”, o que tem de ser interpretado no sentido
de se referir às obras previstas nos planos gerais ou parciais de urbanização cuja execução
legitimava a sua expropriação.
21
Cfr. artigo 5.º, n.º 2.
22
Cfr. Artigo 159.º, n.º 3, alínea a) do RJIGT; v. também o artigo 4.º do Código das Expropriações,
relativo à expropriação por zonas ou lanços, embora o regime aí estabelecido esteja pensado,
principalmente, para as expropriações necessárias à construção de estradas.

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A questão continua, no entanto, a ser atual, embora sob uma nova pers-
petiva, dada a [progressiva] mudança de paradigma do nosso modelo de urba-
nização, que já não assenta exclusivamente na construção de «cidade nova»,
através da sua expansão urbana, mas, preferencialmente, na regeneração e
reabilitação da malha urbana da «cidade existente». Trata-se, agora, de saber
se é lícito à Administração expropriar, ou promover a venda forçada, de terrenos
que o plano destina à edificação privada, não apenas no contexto da abertura
de novas ruas, mas, em termos mais amplos, como forma de superar a inércia
dos proprietários na sua edificação ou reabilitação, sempre que a realização
daquelas obras esteja pressuposta na execução daquele instrumento.

2.1. O caso Kelo vs City of New London

O debate contemporâneo sobre a expropriação de imóveis em benefício


de privados está marcado, no plano internacional, por uma polémica decisão do
Supremo Tribunal Federal Americano, proferida em 2005 no caso Kelo v. City of
New London23, em que se discutia se a câmara municipal daquela cidade podia
expropriar os terrenos necessários à construção de um grande empreendimento
imobiliário privado, destinado à instalação de uma empresa multinacional da
indústria farmacêutica, considerando, no reconhecimento da utilidade pública da
obra, os benefícios económicos e sociais que, indiretamente, a sua realização
traria aos habitantes da cidade.
Tratava-se, portanto, de uma expropriação que não tinha por finalidade a
extinção do direito de propriedade privada dos expropriados, e a transferência
dos seus imóveis para o domínio da Administração, mas que visava, em última
análise, a transferência da propriedade dos mesmos para um outro particular. E
que também não satisfazia, direta e imediatamente, qualquer necessidade pública,
legitimando-se, apenas, no interesse económico e social do empreendimento, que
geraria emprego e arrecadação fiscal para a cidade e para os seus habitantes,
bem como na previsão do plano urbanístico que enquadrava a sua realização.
Apesar da forte oposição dos movimentos cívicos reunidos no Property
Rights Movement24, que intervieram no processo como amicus curiae, em apoio
da posição dos expropriados, o Supremo Tribunal Federal, por uma maioria
tangencial de cinco votos a favor e quatro contra, validou as expropriações
promovidas pelo município de New London, cuja posição, do mesmo modo,
recebeu o apoio processual da poderosa American Planners Association (APA).

23
Cfr. Kelo v. City of New London, 545 U.S. 469 (2005). Para uma apreciação global do caso, v. a
obra colectiva editada por Merriam, Dwight H. e Ross, Mary Massaron, Eminent domain use
and abuse: Kelo in contexto, Chicago, ABA, 2006.
24
Sobre a emergência do Property Rights Movement e a sua influência legislativa e jurisprudencial
nos EUA, v. Jacobs, Harvey M., «The future of an american ideal», Private property in the 21st
century: the future of an american ideal, Madison, Elgar, 2003, e «Social conflict over property
rights», Land Lines, Edição Eletrónica, Vol. 14, pp. 14 ss.

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O argumento central que foi utilizado pelo Tribunal para chegar à sua decisão
é o de que, naquele caso, o exercício do poder expropriatório estava legitimado
pelo prévio exercício dos poderes de planeamento urbanístico do município,
cujo plano estabeleceu os termos da regeneração urbana da área ocupada
pelo empreendimento imobiliário projetado pelos beneficiários da expropriação.
Nessa perspetiva, o recurso à expropriação está centrado no processo
de planeamento, e não na definição material de utilidade publica, que emerge
naturalmente como o resultado da ponderação de interesses feita pelo plano.

2.2. O caso do Plano de Pormenor das Antas

Os tribunais administrativos e fiscais portugueses também já foram confron-


tados com a questão das expropriações urbanísticas que beneficiam privados,
no caso do Plano de Pormenor das Antas, embora a discussão, nesse caso,
tenha estado centrada na legalidade da operação de reparcelamento prevista
no plano, e não no destino final dos terrenos.25
O Plano de Pormenor das Antas, aprovado pela Assembleia Municipal do
Porto, em 29 de abril de 2002, procedeu ao enquadramento da construção do
novo Estádio do Dragão, no âmbito da organização do Euro 2004, e à reurbani-
zação dos terrenos do antigo Estádio das Antas, nele se prevendo, entre outros,
uma operação de reparcelamento urbano, da qual resultou uma efetiva trans-
ferência da propriedade de cerca de quinze terrenos em benefício do Futebol
Clube do Porto e de outros privados a quem foram adjudicados os direitos de
construção previstos pelo plano para financiar a sua execução.
Nesse âmbito, foram expropriados os proprietários que manifestaram o
seu desacordo ao projeto de reparcelamento contido no regulamento do plano,
nos termos então previstos no número 7 do artigo 131.º do Regime Jurídico
dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º
380/99, de 22 de setembro26.
A necessidade de utilizar a via expropriatória para ultrapassar o desacordo
do proprietário em relação às opções do plano é reveladora do respeito que o
legislador tem pelo monopólio do aproveitamento económico do bem imóvel
que o direito de propriedade confere ao seu titular, cujo consentimento é uma
condição sine qua non para que o seu terreno possa ser afeto à realização de
um aproveitamento urbanístico concedido pelo plano a um terceiro.

25
V. Acórdãos da 1ª Secção do STA, de 7 de novembro de 2006, proferido no Processo nº 613/06,
e de 28 de fevereiro de 2018, proferido no Processo 588/13, ambos disponíveis para consulta em
www.dgsi.pt. O caso deu ainda origem a um outro acórdão da 1ª Secção do STA, de 17 de maio
de 2018, proferido no Processo n.º 1201/16, e ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 127/12,
de 7 de março de 2012, mas estes diziam respeito a uma questão de reversão de expropriações
pretéritas, realizadas no século XX para a construção do antigo Estádio das Antas.
26
Corresponde ao artigo 167.º, n.º 2, do RJIGT atualmente em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 80/2015, de 14 de maio.

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No entanto e tendo em conta a possibilidade que a lei confere, de adjudi-


cação das parcelas resultantes do reparcelamento a outras entidades interes-
sadas na operação27, a expropriação por utilidade pública pode ter, neste caso,
um efeito equivalente ao da venda forçada de imóveis para fins urbanísticos,
embora com a desvantagem de a escolha dos terceiros adquirentes não ser
feita através de ofertas realizadas em hasta pública, mas de um «ajuste direto»
com a câmara municipal.

3. A VENDA FORÇADA DE IMÓVEIS COMO UMA ALTERNATIVA


À EXPROPRIAÇÃO NO REGIME JURÍDICO DA REABILITAÇÃO
URBANA DE 2009. O DEBATE CONSTITUCIONAL E O ACÓRDÃO
DO TC N.º 421/2009

3.1. As principais linhas do regime da venda forçada no Regime


Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) no Decreto-Lei n.º
307/2009, de 23 de outubro

A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos foi (re)introduzida na


legislação urbanística portuguesa pelo Regime Jurídico da Reabilitação Urbana
(RJRU) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, essencial-
mente, como uma alternativa à expropriação por utilidade pública.
O carácter alternativo da venda forçada está bem patente no número 1 do
artigo 62.º do RJRU, nos termos do qual “se os proprietários não cumprirem
a obrigação de reabilitar nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 55.º, ou
responderem à respetiva notificação alegando que não podem ou não querem
realizar as obras e trabalhos indicados, a entidade gestora pode, em alternativa
à expropriação a que se alude no n.º 2 do artigo anterior, proceder à venda do
edifício ou fração em causa em hasta pública a quem oferecer melhor preço e se
dispuser a cumprir a obrigação de reabilitação no prazo inicialmente estabelecido
para o efeito, contado da data da arrematação.”
A venda forçada é, pois, uma consequência (possível) do incumprimento da
obrigação de reabilitar, configurada no artigo 55.º daquele diploma legal como
uma ordem ou imposição administrativa de natureza policial, destinada a afastar
os perigos concretos que possam ser causados pelas deficientes condições de
segurança, salubridade e arranjo estético do edifício.
A imposição da obrigação de reabilitar assume, neste contexto, a natureza
de um ato de concretização de uma utilidade pública que está pressuposta no
próprio ato de delimitação de uma área de reabilitação urbana sistemática que,
nos termos do artigo 32.º do RJRU, na sua redação original, “tem como efeito
directo e imediato a declaração de utilidade pública da expropriação ou da venda
forçada dos imóveis existentes”28.

27
Cfr. artigo 168.º, n.º 2 do RJIGT.
28
Na redação que foi dada ao artigo 32.º pela Lei n.º 32/2012, de 14 de agosto, apenas a aprovação
de uma operação de reabilitação urbana sistemática, e não a mera declaração da respetiva área

JULGAR - N.º 51 - 2023 Almedina ®


A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos 37

O prévio reconhecimento da sua utilidade pública é, pois, um requisito


indispensável para que um edifício ou fração autónoma que seja necessário à
execução de uma operação de reabilitação urbana sistemática possa ser sujeito
à expropriação por utilidade pública ou a venda forçada. Mas não é o único.
No regime jurídico da reabilitação urbana, a expropriação por utilidade
pública ou a venda forçada só podem ser impostas se o proprietário de um
edifício ou fração autónoma não tiver meios ou vontade de o(a) reabilitar de
acordo com o programa de reabilitação definido para aquela área, o que supõe
um incumprimento, não necessariamente culposo, da função social da proprie-
dade do imóvel.
Isso mesmo resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 307/2009, onde se
destaca “o mecanismo da venda forçada de imóveis, que obriga os proprietários
que não realizem as obras e trabalhos ordenados à sua alienação em hasta
pública, permitindo assim a sua substituição por outros que, sem prejuízo da
sua utilidade particular, estejam na disponibilidade de realizar a função social
da propriedade”.
Na verdade, através da venda forçada o proprietário é coagido pelas auto-
ridades a vender o imóvel em hasta pública a outro proprietário que esteja dis-
posto a cumprir a obrigação de reabilitar que o onera, dando assim execução
ao programa de reabilitação definido para a respetiva área.
No mesmo preâmbulo, “o procedimento de venda forçada é construído de
forma próxima ao da expropriação, consagrando-se as garantias equivalentes
às previstas no Código das Expropriações e garantindo-se o pagamento ao
proprietário de um valor nunca inferior ao de uma justa indemnização.”
Daí que, se o preço da venda em hasta pública não for equivalente à justa
indemnização o proprietário pode exigir a diferença da Administração, que deve
prestar as garantias previstas no Código das Expropriações29.

3.2. As alterações ao regime da venda forçada introduzidas pela Lei


n.º 32/2012, de 14 de agosto

A Lei n.º 32/2012, de 14 de agosto, introduziu alterações relevantes ao


regime jurídico da reabilitação urbana estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 30772009.
A referida lei traduz o compromisso de simplificação de procedimentos
para obras de reabilitação urbana que foi assumido pelo governo português no
memorando de entendimento que assinou no dia 7 de maio de 2011 com a desig-
nada «troika» de credores, no quadro do Programa de Assistência Económica e
Financeira a que o país foi sujeito durante a crise financeira de 2010-2014, pelo

de reabilitação, “constitui causa de utilidade pública para efeitos da expropriação ou da venda


forçada dos imóveis existentes na área abrangida”.
29
Cfr. artigo 63.º, n.º 6 do RJRU, na redação que lhe foi dada inicialmente pelo Decreto-Lei n.º
307/2009.

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023


38 Claudio Monteiro

que as suas alterações incidiram, principalmente, sobre as normas de procedi-


mento relativas à realização de operações de reabilitação urbana.
Não obstante, a Lei n.º 32/2012 também alterou o mecanismo de cálculo
do justo preço da venda forçada de edifícios ou suas frações autónomas.
Sem pôr em causa o princípio da equivalência entre o justo preço da venda
forçada e a justa indemnização da expropriação por utilidade pública, a nova
redação do artigo 63.º do RJRU antecipa a discussão sobre o cálculo do respetivo
valor para o momento da fixação do valor base da hasta pública.
Assim, nos termos dos número 2 e 3 daquele artigo, na redação atual-
mente em vigor, caso o proprietário não se conforme com o valor base proposto
pela entidade gestora da operação de reabilitação urbana, e tenha apresentado
contraproposta de valor superior, “esta promove uma tentativa de acordo sobre
o valor base da venda em hasta pública, nos termos previstos no Código das
Expropriações para a expropriação amigável”, aplicando-se, na falta de acordo,
“o disposto no Código das Expropriações para a expropriação litigiosa, desig-
nadamente sobre a arbitragem, a designação de árbitros, a arguição de irregu-
laridades e o recurso da decisão arbitral”.
Uma vez fixado o valor base, nos termos descritos, a entidade gestora pro-
move a realização da hasta pública e entrega o produto da venda ao proprietário,
que pode, por isso, ser superior, mas nunca inferior, ao justo preço do imóvel.

3.3. O debate constitucional e o Acórdão do TC n.º 421/2009

As dúvidas sobre a constitucionalidade da venda forçada que se suscitaram


durante os trabalhos preparatórios do regime jurídico da reabilitação urbana, tanto
nos meios académicos, como políticos, culminou com um pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade requerido pelo Presidente da República da Lei
n.º 95-A/2009, de 2 de setembro, ao abrigo da qual foi elaborado o Decreto-Lei
n.º 307/209, de 23 de outubro, que o aprovou.
O principal argumento utilizado naquele requerimento foi o de que “ao dis-
por, no n.º 4 do artigo 65.º, sobre a política de ocupação, uso e transformação
de solos urbanos, a Constituição prevê unicamente a figura da expropriação por
utilidade pública como instrumento de privação da propriedade privada apto à
satisfação de fins de utilidade pública urbanística”, pelo que se deve entender
que a mesma estabelece um numerus clausus, que não consente a previsão
legal de outros instrumentos de restrição análogos.
Argumentou-se também que venda forçada não se pode subsumir no conceito
de expropriação por utilidade pública, quer porque a mesma não assegura que os
bens que constituam o seu objeto sejam efetivamente afetos a um fim de interesse
público, não pressupondo, sequer, uma prévia declaração de utilidade pública do
mesmo, quer porque ela também não assegura a plenitude e a contemporaneidade
do pagamento da indemnização ou compensação devida ao proprietário.
Os referidos argumentos não foram acolhidos pelo Tribunal, que por decisão
unânime contida no seu Acórdão n.º 421/2009, de que foi relatora a Juíza Conse-

JULGAR - N.º 51 - 2023 Almedina ®


A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos 39

lheira Maria Lúcia Amaral, entendeu não se pronunciar pela inconstitucionalidade


da norma habilitante da venda forçada de imóveis para fins urbanísticos.
Desde logo, porque considerou que o número 4 do artigo 65.º da Constitui-
ção não instituiu um numerus clausus ou um princípio de tipicidade das medidas
necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística, visando, pelo
contrário, “enquadrar políticas prestativas complexas e, por definição, abertas”.
Por outro lado, porque se considerou que, não obstante a sua natureza
análoga a direitos, liberdades e garantias, o direito à propriedade privada garan-
tido no número 1 do artigo 62.º da Constituição pode ser restringido, nos termos
estabelecidos no seu artigo18.º, “desde que a restrição se justifique por razões de
interesse público, se efectue por intermédio do procedimento devido em Direito
e inclua, para o afectado, a devida compensação”, condições que o Tribunal
considerou verificadas.
Da fundamentação do acórdão em análise se retém, principalmente, a
importante afirmação de que, “apesar de a redacção literal do preceito cons-
titucional não conter, como é frequente em direito comparado, uma referência
expressa às funções que a lei ordinária desempenha enquanto instrumento de
modelação do conteúdo e limites da “propriedade”, em ordem a assegurar a
conformação do seu exercício com outros bens e valores constitucionalmente
protegidos, a verdade é que essa remissão para a lei se deve considerar implícita
na “ordem de regulação” que é endereçada ao legislador na parte final do n.º 1
do artigo 62.º, e que o vincula a definir a ordem da propriedade nos termos da
Constituição”.
Ora, para o Tribunal Constitucional, a obrigação legal imposta aos pro-
prietários, de realização de obras de reabilitação urbana nos seus edifícios ou
frações autónomas, tem de ser entendida como o resultado da necessária com-
patibilização entre aquele direito e valores expressos no número 4 do artigo
65.º, i.e., como uma expressão da função social da propriedade. Daí que não
se possa duvidar que a venda forçada daqueles imóveis, porque visa assegurar
o cumprimento daquela obrigação legal, se justifica plenamente por razões de
interesse ou de utilidade pública.
O Tribunal não afrontou diretamente a questão de saber se a utilidade
pública da venda forçada de imóveis é prejudicada pelo facto de a mesma bene-
ficiar um privado, pondo o enfase da fundamentação da sua decisão, não apenas
na margem de liberdade conferida ao legislador para conformar socialmente a
propriedade privada, mas no respeito pelo “procedimento devido em Direito”.
E, na verdade, a questão central não é tanto se a propriedade será titulada
e usada pelo público, mas se as decisões relativas à sua titularidade e utiliza-
ção são tomadas no interesse geral da comunidade, de acordo com nomas de
procedimento que assegurem a afetação do bem aos fins de interesse público
previamente estabelecidos e, ao mesmo tempo, garantam o respeito pelos direi-
tos do proprietário sacrificado.
Nesse quadro, todas as normas de procedimento assumem uma importân-
cia decisiva na legitimação da restrição imposta aos proprietários pelo recurso
à venda forçada, quer as normas que se encontram a montante da decisão de

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023


40 Claudio Monteiro

a promover, nomeadamente as relativas à elaboração, aprovação e execução


de planos municipais ou, neste caso, à realização de operações de reabilitação
urbana, quer as próprias normas do procedimento de venda forçada, nomea-
damente as que impões a realização de uma hasta pública. As primeiras são
essenciais para assegurar a participação do interessado na definição dos fins
de interesse público urbanístico que justificam a restrição que lhe é imposta,
enquanto as últimas asseguram a publicidade, a concorrência e a transparência
de todo o procedimento de venda.
Por outro lado, e ao contrário daquilo que pretendia o Presidente da Repú-
blica, o Tribunal não sentiu necessidade de exigir a «plenitude» da indemnização,
i.e., a total equivalência do preço de venda do imóvel com a indemnização cal-
culada nos termos do Código das Expropriações, como condição de conformi-
dade constitucional do instituto da venda forçada, limitando-se a referir, a esse
propósito, a necessidade de assegurar ao proprietário a “devida compensação”.
O legislador, porventura condicionado pelo debate político que precedeu
a aprovação do diploma, não quis correr o risco de ver a sua decisão legis-
lativa censurada pelo Tribunal Constitucional30, reiterando no preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 307/2009, e no seu articulado, que “o procedimento de venda
forçada é construído de forma próxima ao da expropriação, consagrando-se as
garantias equivalentes às previstas no Código das Expropriações e garantindo-
-se o pagamento ao proprietário de um valor nunca inferior ao de uma justa
indemnização”.
A exigência dessa equivalência está longe de estar constitucionalmente
justificada, considerando que a venda em hasta pública, feita em condições
reais de mercado, assegura as condições necessárias para que se alcance o
justo valor do imóvel, nomeadamente através da publicidade, da concorrência
e da transparência do procedimento. É certo que, sendo privado da iniciativa
da venda, o proprietário fica sujeito às condições de mercado existentes ao
momento em que a mesma é desencadeada pela Administração, não podendo
escolher o ciclo de mercado ideal para a realizar, mas ao contrário do que acon-
tece nos processos de expropriação por utilidade pública, em que a necessidade
pública do bem é independente da atuação do expropriado, a venda força de
imóveis pressupõe o incumprimento da função social da propriedade, pelo que
é duvidoso que o proprietário possa, com fundamento naquele mesmo direito,
reclamar essa liberdade.
No caso da venda forçada de imóveis para reabilitação urbana, além do
mais, não se trata apena de um incumprimento objetivo da função social da

30
A equivalência entre o preço de venda do imóvel e o valor da sua indemnização, calculada nos
termos do Código das Expropriações, não constava do anteprojeto elaborado pelos consultores
externos contratados pelo Governo para o efeito, tendo sido introduzida no articulado durante
o processo de decisão política. E embora a pronúncia do Tribunal Constitucional tenha incidido
sobre a lei de autorização legislativa, o projeto de decreto-lei autorizado, que viria a constituir o
Decreto-Lei n.º 30772009, já era conhecido à data em que o Acórdão n.º 421/2009 foi proferido,
dado que o mesmo acompanhou o respetivo pedido de autorização legislativa.

JULGAR - N.º 51 - 2023 Almedina ®


A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos 41

propriedade do imóvel, dado que se verifica, também, uma recusa expressa


de cumprir uma ordem que o constituiu na obrigação concreta de o reabilitar.
Recorde-se, além do mais, que na génese da obrigação de reabilitar um imóvel
está, necessariamente, um incumprimento do seu dever de conservação, nos
termos estabelecidos no regime jurídico da urbanização e edificação31.

4. A VENDA FORÇADA DE IMÓVEIS COMO UM INSTRUMENTO DE


EXECUÇÃO DOS PLANOS NA LBPSOTU. A FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE E O CONTROLE DA INICIATIVA DA URBANIZAÇÃO
E DA EDIFICAÇÃO

Apesar da sua escassa utilização, tendo em conta, nomeadamente, a situ-


ação de crise económica e financeira que se viveu em Portugal entre 2010 e
2014, que reduziu drasticamente a atividade do mercado imobiliário, a LBPSOTU,
aprovada no último ano da crise, não só estabeleceu as bases do regime da
venda forçada de imóveis, consolidando a previsão constante do RJRU, como,
inclusive, ampliou o seu âmbito de aplicação.
Nos termos do número 1 do seu artigo 35.º, “os proprietários que não
cumpram os ónus e deveres decorrentes de operação de regeneração prevista
em plano territorial de âmbito intermunicipal ou municipal ou de operação de
reabilitação urbana podem ser sujeitos a venda forçada, nos termos da lei, em
alternativa à expropriação, por motivo de utilidade pública”32.
Adicionalmente, podem ser sujeitos a venda forçada “os edifícios em estado
de ruína ou sem condições de habitabilidade, bem como as parcelas de terrenos
resultantes da sua demolição”, para os quais os planos municipais estabeleçam
ónus e deveres específicos de edificação.
Desta forma, a venda forçada passou a constituir, também, um instrumento
de urbanização e de edificação, no quadro da execução dos planos municipais
e intermunicipais, ainda que a sua aplicação continue restrita à cidade existente,
e não se destine a promover a sua expansão urbana.
À semelhança do que se prevê no RJRU, a Administração apenas pode
lançar mão da venda forçada depois de, individualizadamente, ter imposto ao
proprietário, sem sucesso, a obrigação de realizar as operações urbanísticas
necessárias à execução do plano, “incluindo, nomeadamente, a obrigação de nele

31
Cfr. artigo 89.º, n.º 1, do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na
redação que lhe é dada atualmente pelo Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, nos termos do
qual “as edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada
período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as
obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético”; v. também
o artigo 6.º do RJRU.
32
De acordo com a definição constante do número 2 do artigo 62.º da LBPSOTU, a regeneração
urbana “é a forma de intervenção territorial integrada que combina ações de reabilitação com
obras de demolição e construção nova e com medidas adequadas de revitalização económica,
social e cultural e de reforço da coesão e do potencial territorial”.

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023


42 Claudio Monteiro

construir, de conservar, reabilitar e demolir as construções e edificações que nele


existam ou de as utilizar em conformidade com o previsto em plano territorial”33.
Ao permitir que a Administração imponha ao proprietário deveres concretos
de construção, conservação, reabilitação e demolição de edifícios, e não apenas
um dever genérico de “adequar as suas pretensões aos objetivos e priorida-
des definidos nos planos”34, a LBPSOTU estabeleceu as bases de um novo
paradigma de planeamento, centrado, não tanto na conformação do conteúdo
do aproveitamento urbanístico da propriedade, mas, sobretudo, no controlo da
iniciativa de urbanização e edificação dos solos.
Na verdade, e até à aprovação da referida lei, a Administração não dispu-
nha de poderes para impor obrigações de faccere aos particulares no âmbito da
execução do plano. O proprietário gozava – e no essencial ainda goza – de um
monopólio do aproveitamento económico do imóvel, inerente ao seu ius exclu-
dendi alios, pelo que decidia se e quando realizava o aproveitamento urbanístico
definido pelo plano para o seu terreno, ou se dava o seu acordo à realização das
operações de transformação fundiária necessárias à sua execução.
A expropriação por utilidade pública constituía, então, a única forma de
ultrapassar a sua resistência, ou a sua inércia, não podendo a Administração,
contra a sua vontade, realizar, no seu terreno quaisquer edificações ou outras
construções necessárias à execução do plano.
A situação não se alterou substancialmente com a aprovação da LBPSOTU,
que não foi ao ponto de questionar o monopólio de aproveitamento económico
do bem pelo proprietário, mas ao permitir a imposição de obrigações positivas no
âmbito da execução do plano, e ao prever de uma forma mais ampla o recurso
à venda forçada, ou ao arrendamento forçado, de edifícios ou suas frações
autónomas, a referida lei, confortada pela margem de liberdade que o Tribunal
Constitucional reconheceu ao legislador para conformar socialmente a proprie-
dade privada, veio colocar uma maior pressão sobre o âmbito da autonomia do
proprietário.
Inquestionavelmente, a propriedade obriga, e essa obrigação não afeta
apenas o poder de transformação do bem, inerente à sua faculdade de dispo-
sição material, afeta também a própria faculdade de uso do imóvel, com o que
isso implica em termos de constrangimento moral, económico e social do titular
do direito. Mas, precisamente porque o constrangimento é maior, maior será
também o nível de exigência dos testes de proporcionalidade que as restrições
impostas nesse âmbito terão de passar, nos termos exigidos pelo número 2 do
artigo 18.º da Constituição.

33
Cfr. artigo 16.º, n.º 1 da LBPSOTU.
34
Cfr. artigo 54.º, n.º 2 da LBPSOTU.

JULGAR - N.º 51 - 2023 Almedina ®


A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos 43

5. A VENDA FORÇADA DE IMÓVEIS AINDA VALE A PENA? VANTA-


GENS E DESVANTAGENS DA SUA UTILIZAÇÃO

A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos tem sido marginalmente


utilizada pelas câmaras municipais e pelas entidades gestoras de operações
de reabilitação urbana.
É certo que este défice de utilização afeta também o próprio instituto da
expropriação por utilidade pública, outrora dominante no desenvolvimento do
processo urbano em Portugal, e hoje reduzido à irrelevância estatística, em
detrimento de outras formas de obtenção dos solos necessários à construção de
infraestruturas e equipamento públicos, nomeadamente as cedências gratuitas
de terrenos no âmbito das operações de loteamento urbano ou dos contratos
de urbanização.
Para o referido défice de utilização concorrem também as vicissitudes dos
ciclos económicos, que favorecem ou dificultam o funcionamento do mercado
imobiliário, do qual depende, em grande medida, o sucesso da utilização da
venda forçada de imóveis como instrumento de política urbanística. Desde que
ela foi prevista na lei em 2009, o mercado tem alternado entre ciclos de depres-
são profunda, em que não existe procura que justifique a venda dos imóveis
carentes de reabilitação ou regeneração urbanas, e ciclos de euforia, em que o
excesso de procura de imóveis para aqueles fins torna a coerção desnecessária.
Mas, se a venda forçada não constitui, verdadeiramente, uma alternativa à
expropriação por utilidade pública, não sendo um instrumento eficaz de execução
dos planos urbanísticos, ou da realização de operações urbanísticas, apesar
de estar prevista na lei há quase quinze anos, e de ter um âmbito de aplicação
alargado, a questão que se impõe é a de saber se ela ainda vale a pena?
Não subsistem, pelo menos no plano teórico, quaisquer dúvidas sobre as
suas vantagens relativamente à expropriação por utilidade pública, das quais
se destacam as três mais importantes.
Em primeiro lugar, a venda forçada permite que a prossecução do interesse
público pressuposto nos planos e demais instrumentos de gestão urbanística seja
realizada sem necessidade de mobilizar fundos públicos. É sabido que um dos
principais constrangimentos à utilização pelos municípios da expropriação por
utilidade é de natureza orçamental, pelo que a possibilidade de onerar um terceiro
com o custo da aquisição do bem necessário à satisfação daquela necessidade
constitui inquestionavelmente uma vantagem.
Em segundo lugar, o recurso à venda forçada permite manter em mãos
privadas a propriedade de terrenos, edifícios ou frações autónomas que não
necessitam de ingressar no domínio da Administração para prosseguir a sua
função social, evitando, assim, os incómodos inerentes à gestão burocrática
desse património imobiliário público.
No domínio urbanístico, deve respeitar-se a divisão tradicional de tarefas
entre a Administração, que promove a urbanização, através da construção de
infraestruturas e equipamentos públicos, e os particulares, que promovem a
edificação privada através da construção e da reabilitação de edifícios. Isso

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023


44 Claudio Monteiro

não significa que o Estado ou as câmaras municipais não devam promover


a construção de edifícios, quando isso corresponda direta e imediatamente á
satisfação de uma necessidade pública, nomeadamente no domínio da política
de habitação, mas nos demais casos aquelas entidades devem abster-se de se
comportar como promotores ou mediadores imobiliários.
Em terceiro e em último lugar, a publicidade inerente ao procedimento de
venda da propriedade em hasta pública reduz o risco de uso indevido dos pode-
res da Administração em benefício de um único particular, criando condições
de transparência e de concorrência que o recurso à expropriação por utilidade
pública em benefício de privados não favorece.
Na verdade, o procedimento de expropriação por utilidade pública não con-
templa um mecanismo de escolha do beneficiário da expropriação, pelo que,
se o mesmo não for pré-determinado por lei, e o fim de interesse público que o
justifica não implicar o ingresso do bem no património da Administração, esta
fica livre para ajustar, com quem bem entender, a venda subsequente do imóvel,
com os riscos inerentes a essa liberdade.
A estas três vantagens da venda forçada sobre a expropriação por utilidade
pública opõe-se, no entanto, uma única e decisiva desvantagem, que se prende
com a forma como se determina o seu preço.
Na redação inicial do artigo 63.º do Decreto-Lei n.º 307/2009, o risco de
desvalorização da propriedade era suportado exclusivamente pela Administração,
que estava obrigada a pagar ao proprietário a diferença entre o valor da venda em
hasta pública e o «valor de mercado» do imóvel, o que tornava a venda forçada
desinteressante para a entidade gestora da operação de reabilitação urbana.
Na redação que foi dada ao referido artigo pela Lei n.º 32/2012, o preço base da
venda equivale, no mínimo, ao valor da justa indemnização calculada nos termos
do Código das Expropriações35, o que torna a venda forçada desinteressante
para os potenciais adquirentes.
Na verdade, a equivalência significa, em muitos casos, um valor superior ao
valor real de mercado do bem, sobretudo tratando-se da avaliação de propriedade
urbana, qualificada como solo apto para construção nos termos do número 2
do artigo 25.º, e do artigo 26.º, do Código das Expropriações, que incorpora no
respetivo cálculo as mais valias da operação urbanística prevista no plano ou no
programa da operação de reabilitação urbana, sem que o proprietário se tenha
que sujeitar à álea do mercado, e aos riscos inerentes à atividade de promoção
imobiliária. E sem que o preço base assim fixado tenha folga suficiente para que
os potenciais adquirentes possam realizar, eles próprios, uma mais-valia que
justifique o investimento.
Ora, sendo a hasta pública, ela própria, uma expressão do funcionamento
real do mercado, não faz sentido remeter a determinação do seu preço base da
venda para critérios legais de avaliação da propriedade que ficcionam a existência

35
O preço da venda pode, inclusive, exceder o valor da justa indemnização calculada de acordo
com os critérios do Código das Expropriações.

JULGAR - N.º 51 - 2023 Almedina ®


A venda forçada de imóveis para fins urbanísticos 45

de um valor ideal de mercado, calculado com base no seu funcionamento perfeito,


que não tem, no mais das vezes, qualquer correspondência com a realidade.
Ao fazê-lo, o legislador comprometeu decisivamente o interesse dos parti-
culares na aquisição de imóveis em regime de venda forçada.
A que acresce que, ao antecipar para a fase da determinação do preço base
da venda a discussão sobre a sua equivalência com o valor da justa indemniza-
ção, mandando aplicar, “com as necessárias adaptações, o disposto no Código
das Expropriações para a expropriação litigiosa, designadamente sobre a arbi-
tragem, a designação de árbitros, a arguição de irregularidades e o recurso da
decisão arbitral”36, o legislador, do mesmo modo, comprometeu decisivamente
a utilidade da venda forçada para a própria Administração, que não pode, deste
modo, compatibilizá-la com um calendário viável da execução do plano, ou da
realização da operação de reabilitação urbana. É que, ao contrário do que acon-
tece nas expropriações, em que é possível declarar a urgência na sua realização,
sendo a Administração imediatamente investida na posse do imóvel enquanto
litiga com o expropriado sobre o cálculo do valor da indemnização37, neste caso,
a venda do mesmo apenas pode ser realizada depois de definitivamente fixado
o referido preço base e, consequentemente, nenhuma operação urbanística de
construção, reabilitação ou demolição de edifícios pode ser iniciada antes disso.
Nessas condições, sempre que tiver de lançar mão de um instrumento de
coerção para assegurar a afetação de um imóvel a um fim de interesse público
urbanístico, a Administração preferirá a expropriação sobre a venda forçada.
Será imediatamente investida na sua posse, mediante prévia declaração de
urgência, e poderá livremente negociar o seu destino final enquanto discute com
o expropriado o valor da indemnização.
Impõe-se, por isso, que o legislador assuma que o valor devido pela venda
do imóvel é aquele que o mercado se dispõe a pagar numa licitação aberta e
concorrencial. O risco de a venda ocorrer em contraciclo, e de o respetivo preço
não corresponder à expectativa do proprietário, não é maior do que aquele que
se verifica quando ele se vê constrangido a vender o imóvel por uma qualquer
vicissitude inesperada da sua vida privada, com a diferença que, neste caso,
ele pode prevenir a verificação desse risco, não se colocando voluntariamente
numa situação de incumprimento da função social da propriedade.
A venda forçada não é equivalente à expropriação, porque o sacrifício
imposto ao proprietário que não se conforma com a função a que seu imóvel
se encontra socialmente vinculado não é um sacrifício especial e anormal. Não
se argumente, por isso, com a desigualdade imposta ao proprietário sacrificado
para justificar a equivalência do preço de venda com o valor da indemnização
por expropriação por utilidade pública.
Não há igualdade na ilegalidade.

36
Cfr. artigo 63.º, n.º 2.
37
V. artigos 15.º, 19.º e 20.º do Código das Expropriações.

Almedina ® JULGAR - N.º 51 - 2023

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