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DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

Curioso perceber que o direito de superfície já obteve regramento no Brasil, à época


anterior ao Código Civil de 1916. Quando vigia no Brasil a legislação do Reino de Portugal,
havia disciplina sobre o instituto. Com o Código Civil de 1916, porém, o direito de superfície
deixou de ser contemplado legalmente em terras tupiniquins, retomando o Código Civil de
2002 o prestígio do tema. O direito de superfície é regulado na Itália, na Alemanha, na Suíça,
na Holanda, entre outros importantes países, sempre com a finalidade de permitir a construção
ou plantação em terreno alheio.
Trata-se de um direito real na coisa alheia de uso e fruição, que está disciplinado em
dois diplomas jurídicos: (a) no Estatuto da Cidade, Lei Federal n° 10.257/2001, arts. 21 a 24;
e (b) No Código Civil, arts. 1.269/1.377. Teria o Código Civil revogado o Estatuto da Cidade
na parte em que esta disciplina o direito de superfície? Sobre o tema, afirma Flávio Tartuce a
existência de dois posicionamentos doutrinários, ambos fincados na redação do art. 2° da Lei
de Introdução às Normas do Direito brasileiro (LINDB):
Posicionamento 1. O novo Código Civil revogou tacitamente as regras do Estatuto da Cidade
concernentes ao direito de superfície, por se tratar de lei nova sobre o mesmo tema. Nessa
esteira repousa o posicionamento de Carlos Roberto Gonçalves.
Posicionamento 2. Não há revogação alguma porque o Código Civil é norma geral que não
poderá revogar norma especial, de modo que devemos harmonizar ambos os institutos.
Recorda-se que o Estatuto da Cidade é um instrumento de regramento da política de
desenvolvimento urbano. Nessa linha de pensamento caminham Sílvio de Salvo Venosa e
Flávio Tartuce.
Esta segunda tese é a que ganhou maior espaço na atualidade. A está nos filiamos de
forma que iremos trabalhar tanto na perspectiva do Código Civil, quanto na perspectiva do
Estatuto das Cidades. Na forma do art. 1.369 do CC o proprietário está autorizado a conceder
a outrem 0 direito de construir ou plantar em seu terreno, por determinado tempo, mediante
escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A hipótese é
típica de uma propriedade resolúvel (CC, art. 1.359) - Torna-se possível com este direito real
de uso e fruição na coisa alheia a construção ou plantação mediante concessão realizada em
benefício do superficiário.
O Estatuto das Cidades (Lei Federal n° 10.257/01) em seu art. 21 também disciplina o
direito de superfície, com uma importante diferenciação para o Código Civil, qual seja: a
possibilidade de constituição da superfície por tempo indeterminado. É a superfície, portanto,
o direito real pela qual o proprietário concede, por tempo determinado ou indeterminado,
gratuita ou onerosamente, a outrem o direito de construir, ou plantar em seu terreno urbano ou
rural, mediante escritura pública, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Há exploração da terra por sujeito de direito que não é proprietário dela. Prossegue da
doutrina conceituando o instituto nos seguintes termos: A superfície é o instituto real pelo
qual o proprietário concede a outrem, por tempo determinado ou indeterminado, gratuita ou
onerosamente, o direito de construir ou plantar em seu terreno. Tal direito real de gozo ou
fruição recai sempre sobre bens imóveis, mediante escritura pública, devidamente registrada
no Cartório de Registro de Imóveis. Recorda o ilustre civilista ser este o mais abrangente
direito real de gozo e fruição, envolvendo o proprietário(fundieiro) e o superficiário. Em que
pese a omissão normativa do Código Civil a este respeito, o superficiário poderá utilizar do
espaço aéreo, uma vez que constitui ele parte integrante do solo. O mesmo raciocínio, por
consequência, aplicar-se-á ao subsolo; recordando-se que apenas é possível o uso do espaço
aéreo e subsolo úteis ao exercício da propriedade. O direito de superfície abrange a utilização
não apenas do solo, mas do subsolo ou do espaço aéreo relativo ao terreno, na forma
estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevarão, atendida a legislação
urbanística.
Esse entendimento coaduna-se com a previsão específica do direito de superfície no
Estatuto das Cidades, O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou
o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a
legislação urbanística. Infere-se que o parágrafo único do art. 1.369 afirma que o direito de
superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. Percebe-
se, portanto, certa polêmica sobre o assunto. A premissa para as provas, como sempre, há de
ser o texto normativo. Logo, o direito de superfície não autorizará obras no subsolo, salvo se
inerente à concessão. Quanto ao uso do subsolo e espaço aéreo correspondente, tem-se como
factível, segundo o critério da utilidade, na forma estabelecida em contrato e consoante a
legislação urbanística.
Diante do dito, seria viável ao Poder Público cobrar contraprestação pelo uso de seu
espaço aéreo ou subsolo pelas empresas concessionárias de serviço público, no que concerne
à passagem de redes de eletricidade, telefonia, TV a cabo... Outrossim, factível a aquisição da
propriedade superficiário por condôminos, a partir de determinada altura, do terreno vizinho,
com o escopo de impedir qualquer edificação no imóvel contíguo que ultrapasse determinada
altura e lhe retire a vista, o sossego e a privacidade. No que concerne ao uso do subsolo, art.
1.230 do Código Civil, impedirá a utilização dos recursos minerais, que a rigor pertencem à
União. Logo, a propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais,
muito menos os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens
referidos em lei especial; razão pela qual jamais será possível admitir esta prerrogativa de
fruição ao direito de superfície.
Na forma do art. 1.473 do CC, a mesma propriedade superficiário poderá ser
simultaneamente objeto de outro direito real na coisa alheia, a exemplo de uma hipoteca do
próprio direito superficiário. Concordamos com isso, até porque não se trata de relação
jurídica intuito personae e inalienável, razão pela qual será viável a transmissão do direito de
superfície a terceiros (CC, art. 1.372). Interessante reflexão se faz ao advertir que o direito de
superfície efetivamente constitui exceção ao princípio de que o acessório acompanha o
principal, pois a lei concede ao superficiário um direito real sobre construção ou plantação
feita em terreno alheio, utilizando sua superfície, aspecto que afasta a acessão, ou melhor, a
ideia segundo a qual tudo que se acrescenta ao solo deverá pertencer ao seu proprietário
(superfícies solos cedit).
O direito de superfície poderá ser constituído por escritura pública, por carta de
sentença ou por testamento; havendo ainda quem sustente a possibilidade de aquisição pela
via da usucapião. Em todos estes casos, este título deverá ser registrado no cartório de
imóveis, a teor do art. 1.277 do CC. Os direitos reais sobre imóveis constituídos ou
transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de
Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos em lei.
Constituído o direito de superfície, surgirá no caso concreto um conjunto de
obrigações e direitos próprios da construção ou da plantação, autônomos e distintos do terreno
em si, de modo que responderão cada um dos seus titulares exclusivamente por suas próprias
dívidas e obrigações, ressalvadas as de natureza tributária. Esta divisão entre dois blocos de
patrimônios jurídicos decorrente da constituição do direito de superfície enseja uma série de
efeitos interessantes, como o direito do superficiário e do proprietário à indenização oriunda
de eventual desapropriação, bem como o supletivo dever de pagamento dos respectivos
tributos sobre a propriedade superficiário na proporção da parte do imóvel objeto do gozo e
fruição, havendo nítida independência da superfície. A doutrina sustenta que as partes terão
liberdade plena para deliberar no contrato respectivo sobre o eventual rateio destes encargos e
tributos. Assim, nada impede que haja ajuste de rateio igualitário, desigual, proporcional etc.
Na hipótese, porém, de silêncio do ajuste sobre a questão do rateio, incidirá a supletiva
e supracitada norma do Estatuto das Cidades, a qual prevê o pagamento proporcional de tais
despesas quando a concessão envolver apenas parte do terreno. Chama-se esta norma de
supletiva diante da percepção de que poderá ser afastada pelo regramento das partes,
sobrepondo-se a autonomia à lei. Este direito de superfície poderá ser concedido
onerosamente, ou mesmo de forma gratuita, de acordo com a autonomia privada do
proprietário. De fato, o proprietário poderá usar e dispor da coisa como lhe aprouver (CC,
arts. 1.228 e 1.370). Nota-se que existirá necessariamente um contrato disciplinando as partes
e o objeto desta concessão da superfície. O pagamento de eventual contraprestação é
doutrinariamente chamado de cânon ou solarium, podendo se realizar de uma só vez ou
parceladamente. Mas e se O contrato for silente sobre a questão da onerosidade ou
gratuidade? Acaso neste pacto as partes sejam silentes sobre a onerosidade, na forma dos arts.
112 e 114 do CC, deve-se admitir a modalidade gratuita para o uso da superfície. De qualquer
modo, "O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidem sobre o imóvel"
(CC, art. 1.371).
O direito de superfície é transmissível, seja por ato Inter vivos ou mortis causa. Nas
pegadas do texto codificado, seja a transferência em vida ou após a morte, restará inviável a
cobrança de qualquer valor (CC, art. 1.372). Ocorre, porém, que a dita restrição ao pagamento
pela transferência não é vista no Estatuto das Cidades. Por essa razão, entende-se que o caso
de se aplicar a Lex Especialis e admitir o caráter especulativo desta transferência para
situações de superfície em áreas urbanas. Que fique claro: em áreas urbanas, ante o objeto de
incidência do Estatuto. Seguindo no regramento do tema, o legislador civilista trabalha com o
direito de preferência, também denominado preempção ou mesmo prelação legal (CC, art.
1.373) - Trata-se de um regramento recíproco, pois aplicável tanto ao proprietário como ao
superficiário.
Ambos, portanto, na hipótese de alienação, terão o direito de exercitar sua preferência
tanto por tanto - nas mesmas condições de pagamento de preço - consolidando a propriedade
de forma plena (solo, construção e/ou plantação). Assim, desejando o proprietário alienar o
bem, preferirá o superficiário; e se este intentar alienar a superfície, preferirá o proprietário.
Nessa toada, no momento da alienação o alienante haverá de notificar ao outro para que este,
então, tenha a prerrogativa de exercitar, ou não, o seu direito de preferência, tanto por tanto.
Curioso perceber que a norma é omissa quanto ao prazo, ou mesmo a forma de se
implementar este direito de preferência. Recorda Flávio Tartuce da existência de três
correntes doutrinárias:

• Corrente 1 - A inobservância do direito de preferência ensejaria apenas direito à reparação


civil, aplicando-se por analogia o art. 518 do CC. Ante a omissão normativa, seria utilizado o
recurso da analogia e aplicado os arts. 513 a 520 do CC.

• Corrente 2 - A analogia deveria ser com o art. 33 da Lei do Inquilinato. Logo, quando do
desrespeito à preferência surgiria ao interessado a alternativa de reaver o bem para si,
depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, desde que o direito de
superfície estivesse registrado há pelo menos trinta dias e o exercício do direito pelo
prejudicado se desse em até seis meses. Caso não mais houvesse interesse ao preterido de
reaver o bem para si, o mesmo art. 33 da Lei do Inquilinato lhe autorizaria o pedido de perdas
e danos.
• Corrente 3 - Seria o caso de se aplicar o art. 504 do CC: utilizar o direito de preferência
disciplinado no condomínio para, com isso, permitir no prazo decadencial de 180 dias para o
ajuizamento de ação de adjudicação.

A segunda tese vem ganhando ares de majoritária, ao superficiário que não foi
previamente notificado pelo proprietário para exercer o direito de preferência previsto no art.
1.373 do CC é assegurado o direito de, no prazo de seis meses, contado do registro da
alienação, adjudicar para si o bem mediante depósito do preço. Extinta a concessão por este
ou qualquer outro motivo proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno,
construção ou mesmo plantação, independentemente de indenização, se as partes não
houverem estipulado coisa distinta no contrato (CC, art. 1.375).
Havendo uma desapropriação o direito de superfície, por via de consequência, será
extinto. Nesse caso, o art. 1.376 do CC prevê cabível indenização tanto ao proprietário do
terreno, quanto ao superficiário no valor correspondente ao direito real de cada um. O
momento da desapropriação e as condições da concessão superficiário serão considerados
para fins da divisão do montante indenizatório (art. 1.376, CC), constituindo-se litisconsórcio
passivo necessário simples entre proprietário e superficiário.
Não caberá usucapião entre superficiário e proprietário, na medida em que o uso e a
fruição do terreno se darão sem animus domini, requisito essencial à prescrição aquisitiva. Por
fim, recorda-se que o direito de superfície será extinto: com o vencimento de seu termo, para
o caso de se ter um ajuste por tempo determinado; por descumprimento das obrigações
assumidas; resilição unilateral ou bilateral; causas gerais de extinção dos negócios jurídicos,
tais quais a consolidação, o perecimento, a desapropriação etc.

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