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Christina Dodd

Tiamat World
The Governess Brides 05

Christina Dodd
Entre seus Braços
(Lost In Your Arms)
Série Instrutoras ou The Governess Brides 05
Enid MacLean vive por fim uma vida tranquila quando recebe a notícia
de que uma explosão feriu ao marido que pensava, aliviada, nunca
voltar a ver. Embora não goste, aceita o dever de cuidar dele mas,
exceto por seus inconfundíveis olhos verdes, o homem ao que tem
que devolver a saúde não é nem longe o que ela recorda...
E ele não recorda nada. Do abismo de sua amnésia, estende a mão à
mulher que acredita sua esposa, a põe a prova com ardentes palavras
e uma paixão asfixiante às que ela não pode resistir. E enquanto Enid
rende seu coração a este dolorosamente familiar estranho se
pergunta como pôde seu marido se converter neste homem altamente
sedutor... e que segredos guardará em sua memória perdida...

Disp em Esp: Ellloras Traduciones


Envio do arquivo e Trad: Gisa
Revisão: Rosilene Xavier
Revisão Final: Matias Jr.
Formatação: Greicy
Tiamat - World
Christina Dodd
Tiamat World
The Governess Brides 05

Comentário da Rosilene: Depois da toalhinha...


“MacLean lhe impôs o gozo com uma mão leve, acariciando sua parte
mais sensível, prendendo fogo em suas vísceras. O algodão puxava e
esfregava, e o tecido acrescentava uma áspera textura que apressava Enid
para a gratificação.” Textura do algodão hum?... dessa o Matias ainda não tinha
falado...

Comentário do Matias Jr.: Mais um excelente livro da Christina Dodd.


Ela gosta de criar cenários onde os personagens de outros livros se cruzam em
algum momento da trama. Acredito que, depois de uma pesquisa ela sentiu
que isso animava os leitores. Dessa vez não tivemos nenhuma "virgem" fatal,
mas sim uma garota com uma personalidade muito forte... mas, fraca das
carnes. É uma pena que sempre fica uma ponta solta para um próximo livro...
Ficamos sem saber o destino dos vilões da Inglaterra. Sabemos apenas dos
vilões imediatos. Risos. Um excelente passatempo.

Dedico este livro, com meu agradecimento, a Luke Skywalker,


pela ajuda constante que me prestou ao escrever minhas novelas. Luke,
nenhum outro gato poderia se sentar em um teclado, Soltar pelos sobre um
computador
ou escolher os momentos mais inoportunos para te exigir que o acaricie.
Que a força o acompanhe.

Capítulo 1

Londres, 1843
— Por favor, senhora MacLean, você quer nos falar de seu casamento?
Com a boca cheia de bolo, Enid contemplou o círculo de rostos femininos
que a rodeavam no salão de lady Halifax, todos eles radiantes de felicidade, e
à moça loira e de cara arredondada em cuja honra se reuniram. A jovem
formulara a pergunta. A jovem que em menos de quinze dias se converteria na
tímida noiva do mordomo de lady Halifax. Enid tragou saliva e respirou fundo.
— Minhas bodas? OH, não queiram saber nada de minhas bodas!
— Pois claro que queremos!
Respondeu um animado coro, um coro formado pelas criadas do andar
superior de lady Halifax, as criadas do andar inferior e as criadas da cozinha,
todas elas moças com a cabeça cheia de sonhos de amor que eram como
folhado1.
Enid, à amadurecida idade de vinte e seis anos, tinha pelo menos cinco
1
Aqui, a autora se refere ao folhado como algo gostoso de saborear. Fazendo assim uma analogia aos
sonhos de amor de alguém que não teve de provar algo ruim, ou menos saboroso quanto ao ”folhado”.

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mais que todas elas, e as ultrapassava cinco séculos em cinismo.


— Seu casamento foi tão maravilhoso como vai ser o meu? — perguntou
Kay, ao mesmo tempo em que levava as mãos ao peito. Com as flores e as
fitas no cabelo, a moça estava resplandecente, rodeada pelos presentes de
suas amigas e brilhando com a luz do amor.
Então, Enid tentou com todas suas forças desviar a conversação.
— Nada poderia ser tão maravilhoso como vai ser seu casamento, essa
renda que lady Halifax me pediu que te desse como presente de casamento
será um precioso colarinho de seu vestido nupcial.
— É claro que sim. — Kay deu uns tapinhas a elegante renda costurada a
máquina que Enid lhe dera. — Lady Halifax é uma grande senhora, e deve você
transmitir a ela meu agradecimento. Diga-me, senhora MacLean, seu vestido
tinha renda?
O problema, tal como o via Enid, baseava-se em que era uma mulher
misteriosa.
Bom, na realidade não. Estava a três anos vivendo na casa londrina como
enfermeira e dama de companhia de lady Halifax. No princípio fizera pouco
mais que dar a bengala a lady Halifax e se assegurar que tivesse um lenço
limpo. Mas com o transcurso do tempo, à medida que a devastadora
enfermidade debilitava à senhora, Enid se convertera em sua boca e seus
ouvidos na mansão. Informara lady Halifax das atividades domésticas e
irradiara as instruções desta aos criados. Mas nunca, jamais, fazia a ninguém
confidências sobre seu passado.
Sabia que a especulação se estendera. Devido ao acento de classe alta de
Enid, sua educação e suas maneiras, as donzelas acreditavam que era uma
dama que ficara pobre e optara por trabalhar para se manter. E ela não fez
nada para dissuadi-las dessa ideia.
Agora a apanharam com seu oferecimento de chá e bolo, sua grande
esperança e suas fabulosas imaginações.
— Por favor, senhora MacLean — rogou Sarah, a criada do salão superior.
— Por favor... — disse Shirley, uma adolescente recém-chegada do campo,
que, ao aplaudir, derrubou seu prato de bolo sobre o colo e o tapete.
Todas se levantaram como acionadas por uma mola, mas Enid sossegou as
horrorizadas exclamações e ajudou a limpar o desastre.
— Não importa, querida. Vê? Não aconteceu nada. — E com ânimo de
distrair à chorosa Shirley, acrescentou: — Deixa de chorar para que possa
escutar os detalhes de meu casamento.
Shirley cobriu a cara com o lenço e sorveu pelo nariz.
— Sim.
— Ande, nos conte — insistiu Kay.
Enid jamais poderia confessar a verdade, então devia lhes dizer uma

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mentira.
— Se casou em uma grande igreja? — quis saber Ardelia, feúcha, gordinha
e morena, enquanto recolhia os últimos miolos do bolo os pressionando com o
polegar.
Enid colocou o garfo no prato e deixou tudo na mesinha de canto que
estava a seu lado. Decidira que, se ia dizer uma mentira, muito bem poderia
ser colossal.
— Um bispo em uma catedral me casou.
— Uma catedral? - Os olhos castanhos de Sarah se abriram como pratos.
— Me casei numa formosa e ensolarada manhã de junho, com um ramo de
rosas silvestres no braço e acompanhada por todos os meus amigos.
— Vestia de branco, como a rainha Vitória? — Ardelia estremeceu de
emoção.
— Não, de branco não.
As donzelas balbuciaram, decepcionadas.
— Sua Majestade ainda não havia se casado, e esse não era então o estilo
de moda. Mas usava uma blusa azul de algodão, muito elegante— com o
trançado mais barato, — uma esplêndida saia, luvas de renda negras —
emprestadas pela esposa do vigário — e um chapéu de veludo azul com véu
negro - que Stephen lhe dera; Deus sabia onde o conseguira, e era de esperar
que tivesse sido por meios legais. Transportada por seu entusiasmo, Enid
acrescentou: — E as botas negras estavam tão lustrosas que podia ver minha
cara refletida nelas.
— Com seus olhos azuis e o cabelo negro, devia ter um aspecto
esplendido, senhora MacLean - a adulou Glória, uma moça insossa que
admirava Enid de uma maneira extravagante. — Como ia penteada?
Enid tocou o frouxo coque recolhido em uma rede para cabelo negra na
base do pescoço.
— É tão liso que nunca posso fazer muito mais que isto.
Com os longos olhos cheios de inocência, Ardelia perguntou:
— Por que não pediu a sua donzela que a penteasse?
Empenhada em contar o melhor relato, o mais espetacular que as garotas
já tivessem escutado, Enid lhes disse:
— Não tinha donzela.
As moças trocaram olhares de compreensão.
— Minha família teve alguns reversos... — Enid enxugou os olhos
perfeitamente secos.
Senhor, aquelas garotas acreditariam em tudo!
— Ah. — Sarah adorava uma boa representação teatral mais que a
ninguém, e sabia qual deveria ser o final daquela história: sua família perdeu
sua fortuna, mas seu Stephen a resgatou.

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O amor jamais resgatava a ninguém. Enid poderia ter tido a amabilidade


de lhes dizer a verdade e desiludir às garotas, mas sabia que não lhe dariam
crédito. Os jovens nunca o faziam. Ela mesma não o fizera.
— Seu cabelo está muito bem assim, senhora MacLean — lhe disse Shirley.
— Obrigado.
Ardelia se inclinou para frente, os olhos brilhantes.
— Seu pai a acompanhou ao altar?
— Não, meu pai tinha morrido. — "As palavras Que se apodreça" cruzaram
por sua mente. — Mas só necessitava a meu Stephen.
— Seu marido era um cavalheiro alto e arrumado? — A simples menção
desta imagem fez que o amplo peito de Dana se agitasse.
— Tinha uma espessa cabeleira dourada, tão brilhante que quase
superava ao sol, e a pele fina e pálida. — Enid olhou pela janela o jardim
urbano de lady Halifax, mas as flores de verão lhe passaram despercebidas
enquanto tratava de recordar como Stephen MacLean a olhou aquele dia, nove
anos atrás. A memória lhe evocou um retrato deslustrado pelo tempo, mas
essa resposta nunca convenceria a umas jovens que queriam acreditar no
amor eterno. — Seus olhos... jamais esquecerei a cor de seus olhos...
Isso, pelo menos, era certo. Tinha os olhos de um verde intenso, quase
como o mar em um dia tormentoso, e com umas franjas douradas que
pareciam raios.
— Raios verde mar — disse Ardelia em um tom de temor reverencial.
— Mas não tinha nem um ápice de vaidade. — Stephen foi o homem mais
vaidoso que Enid já conhecera, mas em seu conto de fadas se converteu em
um príncipe. — Ria alegremente e dizia que a nenhum homem as orelhas
sobressaíam tanto como as suas. — Demonstrou como eram colocando as
mãos abertas aos lados da cabeça. — Podia ser diferente, mas tinha um ar de
aventura e entusiasmo que nunca fraquejava.
— Era um aventureiro? — inquiriu Shirley com a voz entrecortada.
— É claro que sim. Era filho de uma família nobre, injustamente
despossuído por seu malvado primo, então percorreu os caminhos da Inglaterra
ajudando aos anciões e fazendo justiça aos pobres.
— Como Robin Hood — disse Sarah.
— Precisamente. Enid estava exagerando em seu relato.
— Se apaixonou perdidamente como meu Roger? - perguntou Kay.
— Assim é. Assim que nos conhecemos, afirmou que eu era a mulher que
andava procurando. — Isso, infelizmente, era certo. Enid não compreendeu o
motivo subjacente dessa afirmação. — Me propôs que nos casássemos aquela
mesma noite, mas eu estava decidida a ser judiciosa e me neguei durante
quinze dias. — Riu de sua temeridade, — só tinha dezessete anos. Duas
semanas era muito tempo.

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— Eu também tenho dezessete! — exclamou Kay. — E parece que falta


uma eternidade para que me case com meu Roger.
— O tempo passará — prometeu Enid.
Kay fez uma careta.
— Você fala como minha mãe, senhora MacLean.
As palavras de Kay cravaram a bolha de Enid, e desejou que a terra a
tragasse. Vinte e seis anos de idade e aquela garota a comparava com sua
mãe? Como era possível que Enid tivesse passado com tal rapidez da juvenil
indiscrição à sabedoria da idade amadurecida? Como se tornara parecida com
a mãe de alguém quando jamais teve uma criatura nos braços e... e por culpa
de Stephen nunca a teria?
Esforçava-se por não pensar nunca nisso, mas ali estava, olhando furiosa
ao grupo de moças que pouco a pouco se endireitavam nas cadeiras e olhavam
os pés.
— É... você está bem, senhora MacLean? — perguntou Kay timidamente.
Enid se levantou e se aproximou da janela para ocultar sua expressão.
— Estou perdida em minhas lembranças — lhes disse.
Isto era muito certo, e uma lástima.
Sarah rompeu o breve e alarmante momento de silêncio:
— Se não for inconveniente que o pergunte, senhora MacLean, o que
ocorreu a seu marido?
Enid titubeou, desviou a cabeça e pensou na maneira de concluir o relato.
Finalmente, com uma delicada modéstia, replicou:
— Montava um dia em seu cavalo e... e...
— Ia ao resgate de alguma pobre anciã?
Kay se voltou furiosa para Ardelia.
— Chist...!
— Isso. — Enid sorriu, revestida de uma coragem trágica. — Agora se foi
para sempre de meu lado.
Dana deu uma ligeira cotovelada as costelas de Shirley.
— Você disse que era como uma dessas heroínas trágicas que você tanto
gosta.
Suas mentiras condenariam Enid ao inferno. Sabia. Mas, com inferno ou
sem ele, não pôde resistir a uma última afirmação.
— Não passa um só dia sem que pense nele nenhuma noite em que não
deseje ver seu rosto uma vez mais. — De frente às donzelas, adotou uma pose
dramática, agarrando a borda dourada das cortinas que pendiam a cada lado
dela.
— Daria tudo por vê-lo uma vez mais.
Emocionada as donzelas suspiraram ao uníssono.
A voz trêmula de lady Halifax lhes chegou da soleira.

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— Enid, querida, o senhor Kinman chegou para satisfazer seu maior


desejo.
Surpreendida! Dedicada a escandalosos jogos teatrais, e por lady Halifax,
uma mulher para a quem Enid professava uma grande admiração.
Havia mais de uma rota para ir ao inferno.
Enid se apressou a abandonar sua afetada pose. Lady Halifax, que sofria
dores e estava confinada a uma cadeira de rodas, a observava com olhos
afligidos e incrédulos.
Atrás dela se encontrava um desconhecido de aspecto solícito, vestido
com apropriados objetos de tweed marrom. Seu semblante avermelhado, de
boxeador, tinha também uma expressão solene.
Enid sentiu que o temor apertava sua garganta. O que dissera lady
Halifax? "Seu maior desejo..."
Um sussurro de preocupação se estendeu entre as donzelas.
Enid fez uma reverência e perguntou:
— O que quer dizer, senhora?
— Senhor Kinman — lady Halifax fez um gesto ao cavalheiro, — você quer
explicar a situação à senhora MacLean?
— É certo. — O senhor Kinman deu um passo à frente, dando voltas a seu
chapéu cogumelo com os dedos roliços. — Foi encontrado o seu marido,
Stephen... vivo.

Vestida com seus resistentes e escuros objetos de viagem, Enid deixou a


mala no chão do hall de lady Halifax. Depois de dar um golpe suave na porta,
entrou no penumbroso quarto. A nova enfermeira se levantou de sua cadeira
ao lado da cama e se aproximou.
— A senhora Halifax está descansando — informou em voz baixa, — mas
se nega a dormir até tê-la visto.
Depois de dar a Enid uma ligeira palmada no ombro, expressando assim
sua solidariedade, a enfermeira saiu do quarto e fechou a porta atrás dela.
Enquanto Enid esperava que seus olhos se adaptassem à escuridão, aspirou os
aromas familiares da lavanda, o xarope para a tosse, a velhice e a coragem
forjada pelo sofrimento.
Então, com um frufrú de anáguas, tomou assento ao lado da cama.
Lady Halifax jazia de barriga para cima, o cobertor subido até o queixo e
preso ali por uns dedos semelhantes a garras. Seus olhos escuros cintilavam.
— Um... marido, Enid? Por que não me disse?
Certamente, lady Halifax era uma pessoa que ia direto ao fundo do
assunto.
Enid colocou um travesseiro sob os ossudos ombros da anciã para lhe
facilitar a trabalhosa respiração.

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— Um casamento fracassado não é algo do que alguém possa se


pavonear, e uma mulher incapaz de conservar a seu marido é, no melhor dos
casos, objeto de lástima.
— Lástima? Você? — lady Halifax se pôs a rir até que teve um acesso de
tosse, e então descansou até que pôde completar seu pensamento. —
Sobreviveu e prosperou. Não há nada nisso que inspire lástima.
Enid ordenou a mesinha de noite enquanto refletia sobre estas palavras.
Dava-se conta que, ali onde outras mulheres teriam se dado por vencidas, ela
saíra vitoriosa. Era uma pessoa independente. Certamente, também perdera
pelo caminho uma parte considerável da moça que foi. Era cínica, sarcástica.
Nunca se abandonava à faceta mais suave de sua natureza, nem sequer sabia
se a faceta mais suave seguia existindo.
Mas existia, é obvio, e a prova estava estendida ante seus olhos. Lady
Halifax, fraca e de língua afiada, de mau gênio no melhor dos casos, inspirava
um afeto profundo.
— Não quero abandoná-la, senhora — disse Enid em voz baixa.
— Mas deve fazê-lo, querida. — Lady Halifax deslizou um dedo trêmulo. —
À margem do que tenha feito, esse Stephen é seu marido. Necessita que o
cuide amorosamente.
— Amor... — Enid revestiu à palavra de desprezo.
— Devia lhe amar quando se casou com ele.
— Era amor, algo que se cura facilmente. Nada mata ao amor tanto como
ter que escutar as lamentações de um homem porque o mundo o trata mal,
dizendo não ter a culpa de quanto lhe ocorre, que tudo se deve à má sorte e ao
fato que o senhor do clã MacLean não gosta dele. — Sem se dar conta, Enid se
pôs a falar com acento escocês. — E ele é um MacLean, por Deus, mas um
MacLean da ilha de Mull.
Lady Halifax ficou boquiaberta, e fez um esforço para se endireitar se
apoiando no cotovelo.
— Você... casou-se com um desses MacLean? Conheço-os. De quando ia
caçar na Escócia.
Enid agasalhou bem as pernas de lady Halifax com as mantas.
— São tão diferentes e orgulhosos como Stephen me disse?
— Pelo menos são orgulhosos. Sobreviveram seguindo a parte do governo
inglês, mas quando se veem cara a cara com um de nós, parece como se lhes
tivessem posto diante uma terrina de creme polvilhada de percevejos.
Apostaria que seu casamento zangou ao senhor.
— E muito. O homem me escreveu uma carta muito mordaz, em que me
informava que uma órfã ambiciosa como eu jamais participaria da vida ou da
fortuna do clã MacLean.
— Enid apertou os punhos ao recordar essa velha humilhação. — Como se

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me importasse formar parte dessa família.


— Eu teria pensado que uma órfã quereria pertencer a uma família.
Lady Halifax tinha razão, certamente. Enid sonhara na reunião com a mãe,
a tia e os primos de Stephen, na vida que levaria no castelo MacLean, em
conhecer um clã estabelecido naquelas terras desde séculos atrás, e imaginar
que ela também formava parte dessa tradição. Sacudiu a cabeça e não quis
admitir nada.
Inquieta, lady Halifax moveu a cabeça nos travesseiros.
— Essa enfermeira nova não sabe o que está fazendo. Já sabe que eu não
gosto de ter postas as forquilhas quando durmo. Solte-me o cabelo.
Enid fez o que sua senhora pedia, e então passou uma escova pelas
pontas do cabelo e trançou as longas mechas cinza.
Lady Halifax suspirou aliviada enquanto voltava a se acomodar.
— Trabalha com esforço, Enid. Não cheira tão mal como a última garota
que tive e não me fatiga frequentemente se queixando por nada.
Isso era um autêntico elogio nos lábios de lady Halifax.
— Entretanto, é econômica. Economiza até o último tostão. Veste
sobriamente, sem indício de rendas. — Lady Halifax a olhou com curiosidade,
os olhos entrecerrados sob as agrestes sobrancelhas cinza. — Para que
economiza?
Enid olhou a lady Halifax pela extremidade do olho e pensou: "por que
não?".
— Quero terra.
— Terra? Como... um imóvel? Quer se casar com um homem rico? — Lady
Halifax estalou a língua com uma expressão de incredulidade. — É uma garota
inteligente, mas não tem nem o aspecto nem a idade para isso.
— Ora! O que faria eu com dois maridos? Quero terra. Um ou dois acres,
isso é tudo, mas tem que ser um terreno apropriado. Um pouco de restinga, um
pouco de montanha, com chão fértil e sol.
— O que vai fazer com esse terreno?
— Ter vizinhos aos que visitar de vez em quando. Ir a uma igreja do
povoado, levantada ha quinhentos anos, e escutar ao mesmo vigário durante o
resto de minha vida. Cultivar ervas, fazer unguentos, poções, vendê-los e não
trabalhar nunca mais por conta alheia. Ter um lar.
Um calafrio supersticioso percorreu as costas de Enid enquanto
expressava seu desejo mais profundo. Era tanto como desejar uma estrela?
Quando expressava em voz alta seu sonho mais querido, chamava a atenção
das fúrias... ou estas já a descobriram quando tropeçou com seu marido?
— Seria mais inteligente casar com um homem rico — afirmou lady
Halifax.
— Já estou casada. — Enid não desejara a morte de MacLean, pois sua

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amargura não chegava a tal extremo, mas se atrevera a sonhar que algum dia
seria livre. — Se enviuvasse, não vejo nenhuma razão para repetir a
experiência matrimonial.
— As garotas de hoje não têm sentido do decoro. — Lady Halifax franziu os
lábios como se chupasse um limão, e as rugas do lábio superior pareceram
ravinas na pele. — Fazer unguentos. Grande bobagem.
— Não é tão uma tolice. Seria proprietária de meu destino. — O peito de
Enid se esticou enquanto considerava a realidade. — Temo que quando
descobrir o verdadeiro alcance das dívidas de MacLean me encontrarei de novo
na pobreza.
— Se preocupa por nada. Será recompensada por haver feito o correto, se
não aqui, pelo menos no céu.
Enid ouvira essas promessas anos atrás, aos membros das instituições de
beneficência que a aconselhavam a aceitar seu destino com resignação, algo
que ela rechaçava tão vigorosamente então como agora.
— Sou uma pobre e infeliz criatura mortal que quer ir ao céu, mas ainda
não, e, certamente, não morrendo de fome.
Lady Halifax se arriscou a dar uma breve palmada na mão de Enid.
— Prometo que isso não acontecerá. Conseguirá essa terra que deseja.
Enid se imaginou caminhando por seu jardim, umas tesouras na mão
enluvada e um cesto no braço.
— Sim, conseguirei. Só confio em que MacLean...
— É inútil que se preocupe disso agora. — Lady Halifax se moveu inquieta
nos travesseiros. - Muito em breve descobrirá a verdade.
Enid viu as sombras sob os olhos de lady Halifax e alisou o cobertor em
um vão esforço por contribuir com comodidade por meio do esmero.
— Não quero abandonar a casa Halifax, senhora.
Enid se deu conta de que sua voz tremia, e compreendeu também que
chegara a ter um vínculo afetivo não só com a mansão, mas também com sua
proprietária.
— Sim, bom, se requer energia.
Lady Halifax não admitia a piedade, nem para Enid nem para si mesmo.
Entretanto, seu afeto mútuo se cimentou em noites de insônia e dias de
sofrimento, e já eram muito poucos os que ficavam a lady Halifax.
Provavelmente Enid não voltaria a ver à anciã viva, e ambas sabiam. Esse era
o inferno que amedrontava Enid. A dor da separação, a angústia do ingrato
dever.
Enid piscou para conter as lágrimas. Lady Halifax não lhe agradeceria que
se mostrasse muito sensível.
— Deixei um pote de creme de romeiro para você. Peça a sua nova dama
de companhia que esfregue suas costas com ela cada noite, e que lhe dê a

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volta frequentemente. — Tomou a mão da anciã e estampou um beijo de


despedida nos descarnados nódulos. — Que Deus lhe conceda paz, senhora.
— Não seja tão chorona e sentimental, MacLean. Isso não resulta atraente.
Lady Halifax voltou a cabeça, mas Enid teve tempo de ver as sombras sob
seus olhos.
Rapidamente, antes que Enid pudesse permitir que as dúvidas a
detivessem, se apressou a sair do quarto e deixou lady Halifax sozinha.

Capítulo 2

Uma negra porta de ferro forjado com a letra T, com vistosos arabescos e
gravada no metal, se achava na entrada do inferno. O carro do inferno tinha
boas balestras, assentos acolchoados e estofos de veludo e cortinas
combinando que, devido à insistência do senhor Kinman, permaneceram
fechadas durante a maior parte da viagem. Só agora, enquanto esperavam ao
porteiro, o senhor Kinman permitiu que Enid desse uma olhada no exterior.
O inferno se parecia muito a Suffolk. As flores de verão brilhavam nas
colinas ondulantes, e a estrada que se estendia ante eles produzia uma
sensação de isolamento rural. Suffolk, o mesmo que o inferno, tinha a
reputação de ser um lugar remoto, pois os pântanos ao norte e o bosque de
Epping ao sul apresentavam obstáculos ao caminho das vias férreas, e as
estradas eram escassas. Se Enid tivesse capacidade de se surpreender - e
naquele momento não se acreditava capaz de experimentar nenhuma emoção
que fosse - teria se maravilhado ao descobrir que era difícil se aproximar do
inferno. No fim das contas, sempre ouvira dizer que todos os caminhos
conduziam ali.
Quando o porteiro se aproximou da carruagem, o senhor Kinman baixou o
guichê.
— Saudações, Harry. — Sua voz evidenciava débeis restos de um acento
do leste de Londres. — Trago sua esposa.
Para Enid essas palavras soaram sinistras, quase como se ela fosse um
pacote, envolta cuidadosamente em papel marrom e atada com cordão.
Harry subiu ao estribo do lacaio e examinou o interior. Era bonito, jovem, o
rosto de feições duras. Examinou os cantos do veículo, mas no chão não havia
mais que dois pares de pés, e a bolsa de Enid, por isso fez um gesto de
assentimento e, com um acento educado, disse:
— Muito bem. Vão diretamente ao jardim.
Seu olhar se deteve em Enid, em seu arrumado vestido de viagem
marrom, o chapéu de palha e as luvas de pelica de cor canela.
O senhor Kinman também olhava com fixidez para Enid.
A mescla de cautela e esperança que mostravam aqueles homens

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incomodava Enid; não é que de todos os modos não se sentisse incomodada


ante a perspectiva de ver Stephen uma vez mais.
Harry saltou ao chão.
— Adiante — disse ao chofer.
— Que porteiro tão raro — comentou Enid, desejosa de conversar sobre
algo enquanto avançavam através de um pequeno pinheiral e subiam uma
colina.
— Harry é um bom homem. Você pode confiar nele. — O rosto carnudo do
senhor Kinman transparecia sinceridade. — Todos aos que a apresente serão
homens de boa fé, mas, por favor, senhora MacLean, não confie em
desconhecidos.
— Com quantos desconhecidos me encontrarei? — inquiriu Enid.
Parecia como se ao senhor Kinman apertassem seu colarinho branco
engomado, pois passou um dedo descrevendo um semicírculo por seu interior.
— Com nenhum, senhora. Não deveria se encontrar com nenhum.
Exceto MacLean, e ele era o mais desconhecido de todos. Enid temia que,
como um trem descarrilado, a atropelasse uma vez mais, a esmagasse e a
deixasse se retorcendo na destruição de sua vida antes de avançar para outra
aventura, outra conquista.
A ideia de ver de novo MacLean apertava suas vísceras, e, combinado com
o movimento oscilante do carro, a fazia desejar que a viagem terminasse
quanto antes.
Ao passar ante uma colina coroada por um castelo em ruínas coberto de
hera e madressilva, o senhor Kinman disse com veemência:
— A casa familiar Blythe é um lugar encantador, próximo à costa e à beira
do rio Blythe.
— Teria jurado que era a Lacuna Estigia — respondeu ela.
O senhor Kinman franziu a testa larga enquanto tratava de compreender a
enigmática referência mitológica de Enid à lacuna infernal.
— Não, senhora, não sei por que pensa tal coisa. É o rio Blythe. O imóvel é
a casa familiar Blythe. Seu anfitrião é o senhor Throckmorton, um cavalheiro
rico e leal súdito de Sua Majestade.
— Ele me dará então os detalhes da lesão que meu marido sofreu?
— Sim, senhora.
As perguntas e os comentários de Enid faziam que o senhor Kinman se
sentisse francamente incômodo, e em qualquer outro momento, em quaisquer
outras circunstâncias, teria piedade dele. Mas não ali, não naquele momento.
Abandonara a uma moribunda para ir ao imóvel e ver Stephen MacLean. Seria
melhor que não se tratasse de uma das armações do MacLean, pois do
contrário ela se encarregaria pessoalmente que ele resultasse lesado.
— O senhor Throckmorton ordenou que facilitasse a você tudo que deseje,

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— seguiu dizendo o senhor Kinman. — Nós, todos os que servimos ao senhor


Throckmorton, faremos tudo o que esteja em nossas mãos para atender suas
necessidades. Encarregaremos-nos que sua estadia aqui seja pelo menos
passível.
Passível? Ela voltou a cabeça e olhou pelo guichê. Não, aquela obrigação
não seria passível. O engano marital de sua juventude a perseguiria sempre.
O caminho serpenteava através de pequenos bosques e formosos jardins,
e em uma ocasião Enid teve um vislumbre da mansão, alta e gloriosa à luz de
um entardecer de verão. Entretanto, seguiram avançando até um jardim
próximo. Ali a carruagem se deteve e um cavalheiro desceu da pracinha. Alto,
moreno e ossudo, estava revestido de autoridade como se fosse uma segunda
pele.
— O senhor Throckmorton é pessoa de confiança— informou o senhor
Kinman enquanto o lacaio abria a portinhola da carruagem.
Mas Enid não se moveu. Não estava precisamente desejosa de acelerar
aquele momento. Não quando o senhor Kinman a empurrava por trás e o
senhor Throckmorton, que avançava para lhe estender a mão, parecia tão
sombrio como a morte.
Entretanto, ela não tinha escolha e, com um suspiro e um calafrio, desceu
do carro.
A musculatura de suas coxas doíam. Desde que saíram de Londres,
pregara os saltos no chão, em uma vã e compulsiva tentativa de deter o
avanço para seu destino.
— É um prazer conhecê-la, senhora MacLean. — O senhor Throckmorton
fez uma reverência formal, e seus olhos cinza pareceram avaliá-la. Então se
dirigiu ao senhor Kinman: — Fique na carruagem.
Voltaremos logo, e a acompanhará à quinta.
O senhor Kinman fez um gesto como de soldado que saúda um superior, e
ato seguido surpreendeu Enid ao lhe fazer uma saudação similar.
O senhor Throckmorton a conduziu ao jardim, onde umas margaridas de
viva cor amarela se balançavam junto aos atalhos de altos arbustos de lavanda
floresciam contra as paredes cobertas de hera.
— Kinman gosta de você, e isso é bom; é um homem perspicaz, com bom
olho para julgar, e, ao me inteirar que seu marido e você estão separados,
hesitava em me pôr em contato com você.
— Como soube que estamos separados? Como me encontrou? MacLean é
amigo dele?
— Seu marido? Sim, amigo e colega. — Indicou um banco sob uma
pracinha. — Quer sentar?
— Passei muito tempo sentada. — Era evidente que o senhor
Throckmorton sabia muito a respeito de MacLean. Em consequência, sabia

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coisas a respeito dela, e isso não gostava. Descobrira que o anonimato é muito
melhor que a notoriedade. — Com sua permissão, preferiria estar de pé.
— Como você desejar. — Segurou o braço dela e a conduziu pelo pequeno
círculo que formava o caminho no interior do jardim. — Imagino que a notícia
da lesão sofrida por MacLean a perturbou.
— É a pior noticia possível. — Porque a fizera abandonar lady Halifax. —
Me diga, senhor Throckmorton, quanto tempo você acredita que estarei aqui?
Deixei a uma querida paciente em uma situação muito crítica e queria retornar
a seu lado o antes possível.
O senhor Throckmorton arqueou altivamente uma sobrancelha.
— A Distinta Academia de Instrutoras lhe proporcionou outra enfermeira,
não é certo?
— Lady Halifax está se deteriorando muito, e sei o que necessita, como
pensa. — Seu coração se encolhia ao pensar na anciã que com tanta coragem
a despedira. — Eu gostaria de estar com ela.
O senhor Throckmorton a observou atentamente, e então emitiu seu
julgamento crítico:
— Você é uma boa enfermeira.
— Assim é.
— Pois bem, seu marido necessita de uma enfermeira neste momento.
A saia de Enid girou sobre as corolas das flores que se balançavam, e tal
era seu estado de ânimo que de boa vontade as teria pisoteado. Pobres flores,
ser umas substitutas daquele descarado do Stephen MacLean!
— O que MacLean fez? — inquiriu mordazmente. — Entrou em um
dormitório alheio e recebeu um tiro de um marido irado? Apostar que podia
tocar a seus cavalos pelo caminho de pedágio e derrubar o carro? Se
embebedar e ser trapaceado por seus velhos amigos?
A amargura que aparecia em suas palavras não surpreendeu ao senhor
Throckmorton. Pelo contrario, respondeu como se sua censura fosse o mais
natural do mundo.
— Uma explosão o afetou.
Enid pensou que deveria se envergonhar de suas acusações, mas não era
assim. Não eram acusações irracionais, não quando se tratava de Stephen
MacLean.
— Uma explosão. Acaso estava brincando com bombas?
— Foi uma bomba. Encontrava-se na Crimea. Em um lugar inadequado e
um momento inoportuno. Um agente russo causou a explosão. O companheiro
de MacLean morreu.
— Um agente russo? — se interrompeu e, com os olhos muito abertos,
transbordantes de compreensão, olhou fixamente ao senhor Throckmorton.
Não era de estranhar que tivesse aquele ar de autoridade! Na realidade, nunca

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conhecera a ninguém como ele, porque, depois de se separar de MacLean,


procurou assiduamente a quietude na vida. Mas os jornais sensacionalistas e a
imprensa em geral estimularam sua imaginação com relatos de espiões tanto
em casa como no estrangeiro. E agora se encontrava precisamente com um de
tais homens. Então passou por sua mente. — MacLean estava espionando?
O senhor Throckmorton se sobressaltou e pigarreou, como se a acuidade
de Enid o desgostasse.
— Não, quem espionava era o outro homem... mas não posso lhe dizer
mais.
A breve esperança de Enid veio abaixo.
— Era muito formoso confiar em que MacLean tivesse realizado um
honorável serviço ao governo de Sua Majestade. Entretanto, teria pensado que
uma atividade tão arriscada atrairia a meu marido.
— Ele foi um transeunte inocente - assegurou o senhor Throckmorton. —
Seja como for, agora necessita a você.
— Você não compreende. Meu marido não desejaria que eu viesse cuidar
dele. Não quer me ver nunca mais. — Enid exaltou lentamente antes de
acrescentar: — Nem eu a ele.
— Sim, compreendemos, mas MacLean não está em condições de se
negar. — O senhor Throckmorton se deteve e pegou a mão enluvada de Enid
entre as suas. — Seu marido está morrendo, senhora MacLean.

Capítulo 3

— Está morrendo? — repetiu Enid, e cobriu a boca com a mão.


Resultava curioso, mas apesar de todas as descrições do senhor
Throckmorton, não passou por sua cabeça a ideia de um MacLean agonizante.
Aquele homem, que tinha tanta energia como a negligência de um menino,
nunca caminhava, mas sim corria; nunca falava, mas sim gritava; nunca sorria,
mas sim era presa de uma risada histérica. Para ele, a morte seria a aventura
definitiva. Às vezes ela pensava que MacLean só desejara abraçar a morte em
um dramático e final coup de théâtre2.
— O acidente ocorreu faz um mês. — O senhor Throckmorton a conduziu
ao assento que ela desdenhara pouco antes, e ela se sentou maquinalmente.
— O que ocorreu a ele? Perdeu algum membro? Por que... está morrendo?
— Os fragmentos de vidro o cortaram na cara e no peito, e tem uma perna
quebrada. Disseram-me que o osso lhe sobressaía da pele.
Ela estremeceu. As fraturas múltiplas costumavam matar a uma pessoa.
— Como pôde retornar a Inglaterra?
— Viajou de navio, uma travessia terrível por mares enfurecidos.
2
A expressão significa “golpe de teatro”, que diz respeito ao sucesso teatral de produção dramática.

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Recuperava o sentido pelo menos uma vez ao dia, mas agora... está tão fraco
que esses momentos são menos frequentes. — O senhor Throckmorton a
olhava sem pestanejar. — A menos que possamos alimentá-lo, não há
esperança. Não pedimos a você que se ocupe da tarefa mais dura. Há uma
enfermeira, e o doutor vem diariamente.
— Então por que me fizeram vir?
— Confiamos em que o som de sua doce voz possa fazê-lo voltar a si.
— Da borda da morte? As possibilidades que isso aconteça são escassas.
Digo a verdade. Ele não sente nenhum carinho pelo som de minha voz.
Mas Enid estava liderando uma batalha perdida, e sabia.
— Me nego a abandonar a esperança. Todos quantos o conhecemos nos
negamos a abandonar a esperança.
— É obvio. — Ela compreendia esse sentimento. Fora abençoada, ou
amaldiçoada, segundo como se olhasse, com uma alma em que, apesar de
suas penalidades, florescia uma eterna esperança. Por muito que repreendesse
a si mesma, por muito frequentemente que exigisse a si mesma bom senso,
sempre acreditava em uma vida melhor... amanhã. Seu vigário de Londres lhe
dissera que sua fé era inquebrável, mas ela se dizia que o que tinha era uma
insensatez insondável. — Mas se, como temo, não posso ajudá-lo...
— Se você não pode lhe ajudar e ele está condenado a uma morte que
não merece... se tal for o caso, a família desejará que se transporte o cadáver
a Escócia. E você, como sua esposa, o acompanhará, é obvio.
As coisas estavam cada vez pior. Enid elevou a voz, em um raivoso tom de
desafio.
— Lady Halifax me necessita. E... e o clã MacLean não quer saber nada de
mim.
— Stephen MacLean poderia ter deixado a você uma herança.
A insinuação a cobiça a impulsionou e fez que Enid ficasse lívida. Ficando
em pé, olhou de frente ao senhor Throckmorton.
— Estive casada com o Stephen MacLean, e asseguro que o mais provável
é que tenha me deixado um montão de dívidas.
O senhor Throckmorton reconheceu essa possibilidade, pois replicou:
— A família MacLean é rica. Poderiam estar dispostos a ajudá-la.
— E aceitaria qualquer ajuda, senhor Throckmorton, porque mantive a
meu marido durante os três meses que durou nosso casamento. Não seria mais
que um pagamento de atrasados. Mas não procuro a ajuda dos MacLean.
Depois do casamento, o Senhor deixou claro na carta que me escreveu: meu
marido carecia de fortuna própria, e Kiernan MacLean preferiria apodrecer
antes de manter a uma pessoa tão oportunista como eu.
Pela primeira vez durante a conversação, o senhor Throckmorton pareceu
confuso.

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— Estou seguro que o Senhor não queria dizer...


— Queria dizer exatamente o que disse. Não, senhor Throckmorton, sou
uma mulher só sem nada que se interponha entre mim e a fome mais que meu
duro trabalho, e não vou incomodar a seus parentes escoceses.
O senhor Throckmorton se levantou e, completamente erguido, inclinou a
cabeça para olhá-la com fixidez. Devolveu-lhe o olhar.
— Se a discussão tiver terminado, senhor Throckmorton, queria comprovar
como se encontra meu paciente. Quanto antes recuperar a saúde, antes
poderei partir.
O homem abandonou sua rigidez e observou:
— Você não se intimida facilmente, senhora MacLean.
— Não — replicou ela, e se encaminhou para a entrada do jardim.
O senhor Kinman caminhava ao lado da carruagem, corpulento como um
urso e arrastando os pés; suas roupas deviam ser pequenas, incômodas e
restritivas. Sua cara se iluminou ao ver Enid, e se apressou a lhe ajudar a subir
à carruagem.
— Eu disse que o senhor Throckmorton explicaria tudo — disse com
orgulho.
— Certamente o fez — replicou Enid enquanto se acomodava no interior.
O veículo se inclinou quando o volumoso senhor Kinman tomou assento.
— Você acredita que poderá ajudar MacLean?
— Primeiro terei que examiná-lo — respondeu Enid zangada e incômoda
sem deixar de olhar para frente.
— Senhora MacLean! — O senhor Throckmorton saiu correndo do jardim e
se aproximou da portinhola aberta da carruagem. — Me permita lhe
assegurar... você está realizando um serviço para o governo de Sua Majestade,
e lhe será retribuído. À margem do legado de seu marido, você não estará na
miséria quando tiver finalizado seus serviços.
O senhor Kinman pareceu surpreso de que se falasse de dinheiro, mas
Enid se sentiu profundamente aliviada.
— Muito obrigado, senhor Throckmorton. É bom saber disso.
— Enquanto esteja aqui, se necessitar algo, o que seja, peça a Kinman.
— Farei o que você me peça com supremo gosto — replicou o senhor
Kinman em tom áspero.
— Instalamos MacLean em uma das quintas com que conta o imóvel. Vou
me casar em primeiro de setembro. — No rosto do senhor Throckmorton
apareceu um sorriso breve e sincero, mas a seriedade voltou imediatamente
para seu semblante. — A quinta é mais tranquila e mais apropriada para a
recuperação de um doente que a casa principal, com seu constante ir e vir de
comerciantes.
"A quinta é mais fácil de defender", pensou Enid. E recordou que, no trem

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que a trouxera de Londres, dois guardiães permaneceram no exterior de seu


compartimento.
Tanto o senhor Throckmorton como o senhor Kinman estavam
preocupados com algo... ou por alguém.
Mentiram para ela? Corria algum tipo de perigo?
Mas Enid não formulou essas perguntas. Encontrava-se entre homens, e os
melhores homens acreditavam que teriam que proteger a uma mulher das
verdades desagradáveis, enquanto que os piores estavam convencidos que, se
contassem um segredo às mulheres, estas não poderiam resistir à fofoca.
Parecia que o senhor Throckmorton e o senhor Kinman formavam parte dos
homens melhores, e se mentiram uma vez, voltariam a fazê-lo.
Então, se limitou a dizer:
— Não se preocupe, senhor Throckmorton. Protegerei-me... e protegerei
também a meu paciente.
A carruagem chegou a uma encantadora casa de pedra rodeada por uma
cerca de estacas brancas e coberta de rosas trepadeiras. O senhor Kinman
aproximou mais o rosto ao guichê e explorou a zona.
— Convertemos o sótão em um quarto de doente. Enviaram-nos o melhor
médico de Londres para que cuide de MacLean, mas não acredito...
A carruagem se deteve com uma leve sacudida. Antes que o senhor
Kinman pudesse terminar sua frase, Enid se levantou, e antes que os lacaios
pudessem descer, ela mesma abriu a portinhola. Agora que compreendia a
extensão das lesões que MacLean sofrera, ansiava comprovar por si mesma a
que tipo de horrenda situação enfrentava.
Observou que os lacaios se apressavam a descer o estribo, e o senhor
Kinman a segurou por trás enquanto ela descia. Os criados estavam ao lado da
entrada, e fizeram reverências quando ela passou. Enid inclinou a cabeça, mas
não se deteve. Agora só lhe importava o ferido.
Cruzou a soleira e entrou em uma sala grande e brilhantemente
iluminada. Junto à lareira havia uma mesa com bancos, e sobre as chamas uma
pequena panela borbulhava e emitia vapor. Em um dos cantos havia uma
cama. Entretanto, nada do que havia ali interessava Enid, que se concentrou
na escada de madeira que partia do centro da sala, uma escada reta e longa
que dava acesso a penumbrosa abertura no teto. Pôs o pé no primeiro degrau,
pensando aonde ia conduzir aquela escada. De retorno a Stephen MacLean e o
transtorno de ser sua esposa... ou sua viúva.
À medida que subia, a atmosfera ia ficando imóvel e sufocante,
impregnada de aromas de enfermidade. Chegou ao sótão. As cortinas das
janelas estavam corridas e só permitiam a entrada da luz pelos finos
interstícios. Quando seus olhos se adaptaram à penumbra, viu a cama e a
figura imóvel que jazia nela. As pranchas do chão rangeram quando avançou

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devagar para MacLean.


Como o senhor Throckmorton dissera, a cara e o peito do ferido estavam
envoltos em bandagens, e o cobertor cobria o resto de seu corpo. Estava tão
imóvel, tão silencioso, que nem sequer se notava o movimento de seu peito ao
respirar. Cheia de temor, Enid se inclinou por cima dele e o tocou no braço.
Ainda estava quente. Ainda vivia.
— MacLean — disse.
Não houve resposta. A pele estava muito quente, os músculos sob a mão
de Enid pareciam inertes. A morte pairava muito perto, e, em um acesso de
fúria, Enid se dirigiu à janela, separou a cortina e abriu o marco corrediço. O ar
fresco e a luz do sol penetraram na sala.
— Ei! — grasnou uma voz feminina.
Enid se voltou para a criada que se levantava de seu assento no canto, e
que passou inadvertida.
— Não pode fazer isso! — exclamou a corpulenta mulher, os olhos
carregados de sono. — O doutor...
— É um néscio se tiver ordenado isto — concluiu Enid. Ouviu o ruído surdo
de umas botas, e ao cabo de um instante apareceu o senhor Kinman. — Vá
abrir essa outra janela. Não é possível reanimar a um homem se não souber
que o sol está brilhando!
O senhor Kinman ficou boquiaberto, mas reagiu em seguida.
— Não sei se deveria...
— Faça o que lhe digo, senhor Kinman!
O homem obedeceu.
Enid retornou ao lado de MacLean e retirou as pesadas roupas de cama.
— Tem febre! — protestou a criada.
— Isso é evidente. Quem não a teria, envolto como uma múmia egípcia?
— Olhe, senhorita, não sei quem é você, mas lhe digo...
— Sou sua esposa. — Enid pronunciou estas palavras espaçadas, as
convertendo em uma ameaça.
A mulher pareceu se acovardar, mas então recuperou a confiança em si
mesma e avançou para Enid.
— Você é sua esposa? Pois está aqui para falar com ele, não para dizer a
quem sabe mais que você como têm que fazer seu trabalho.
O aroma que despendia fez Enid dar um passo atrás.
— Senhor Kinman, por favor, destitua a esta senhora. Cheira a genebra,
dorme em seu posto, e este quarto está sujo e desorganizado.
O senhor Kinman fez uma inclinação de cabeça e pegou a mulher pelo
braço.
— Você não pode me destituir. Trabalho para o doutor Bridges! — gritou a
criada enquanto seguia ao Senhor Kinman. — Vai se inteirar de você, já verá!

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Enid não prestou atenção aos protestos que se desvaneciam escada


abaixo. Inclinou-se sobre seu marido e o examinou. A testa e um lado da cara
estavam enfaixados, mas não importava; jamais o teria reconhecido. Tinha o
nariz quebrado, e o inchaço desfigurava toda a parte visível de suas feições. O
sangue gotejava através das ataduras de linho ao redor do peito, e à medida
que Enid foi retirando as roupas de cama, viu que as bandagens se estendiam
ao estômago e por baixo dos calções curtos que vestia. A perna... a perna
estava entalada e elevada sobre uns travesseiros, e o corpo inteiro fedia a suor
e enfermidade.
No que estiveram pensando para lhe tratar como a um caminhante caído
no atalho da vida? Se aquilo era o melhor que podia fazer o governo de Sua
Majestade, então o governo de Sua Majestade estava cheio de filisteus e
enganadores. Dirigiu-se à escada e gritou:
— Senhor Kinman!
— Senhora? — O homem pareceu atônito ante sua ferocidade.
—Quero água quente imediatamente!
— Sim, senhora. — Se aproximou do pé da escada e elevou a vista,
olhando à dama que estava no alto com algo parecido ao temor reverencial. —
O senhor Throckmorton vem para aqui, senhora.
— Muito bem. Tenho que dizer umas quantas coisas ao senhor
Throckmorton. — Certamente que ia dizer.
Enquanto retirava a primeira das ataduras, praticou as palavras que diria:
"Se você quiser salvar a vida de um homem, não contrate a uma enfermeira
que é uma mulher suja e desalinhada, nem recorra a um médico que é um
caipira, um incompetente que não se preocupa...".
Céu santo. Suas mãos se moveram com mais lentidão ao revelar o rosto
de MacLean. Jamais o teria reconhecido. Era evidente que a explosão se
produziu no lado direito, pois a face fora cortada por uma dúzia de fragmentos.
Cada um dos profundos cortes foi cuidadosamente costurado, mas o inchaço e
o hematoma desfiguravam a face. Perdera o lóbulo da orelha, e se tinha
alguma lesão na mandíbula, estava oculta sob a barba espessa. A febre abrira
sulcos profundos em seus lábios carnudos.
Inclinou-se mais para seu rosto e o olhou de novo.
— MacLean?
O tocou com as pontas dos dedos. Aquele calor não se devia somente à
febre, mas sim evidenciava sua vontade de viver. Se pudesse se mover,
agarraria a vida com ambas as mãos e a seguraria com todas as suas forças.
Enid teria que fazê-lo por ele.
Mas não gostava do aspecto que apresentavam as feridas.
— Senhor Kinman! — chamou.
— Senhora?

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O homem subira em silêncio a escada e inclusive agora avançava para ela


nas pontas dos pés, com toalhas ao redor do braço, lhe estendendo a bacia
como se temesse aproximá-la mais.
— Deixe-a sobre a mesinha de noite.
Ele obedeceu.
Enid tirou as bandagens do pescoço, do peito e dos braços de MacLean.
Alguns se aderiam, e ela olhou a seu redor.
— Trapos limpos — disse. — Toalhas.
O senhor Kinman lhe deu o que pedia, e então se afastou quanto pôde
sem abandonar a sala.
Enid empapou o trapo em água quente, limpou o rosto imóvel de MacLean
e procurou nele algum resto do homem que foi. Sob o inchaço descobriu as
longas maçãs do rosto, a testa e a mandíbula angulosa que davam a seu
marido tanta atitude. Mas o nariz, que estava destroçado, parecia maior e mais
afiado do que ela recordava. O passar do tempo, os efeitos da explosão e suas
próprias lembranças a traíam.
— O que tem feito, MacLean? — murmurou.
Deixou cair ao chão as bandagens cobertas de manchas vermelhas, que
foram formando um montão cada vez maior.
— Senhor Kinman, necessito um balde para jogar tudo isto, e quando tiver
terminado de lhe lavar, necessitarei ajuda para trocar os lençóis.
O senhor Kinman emitiu um estranho som, e o olhou.
Com uma fascinação horrorizada, o homem contemplava as terríveis
feridas que ela pôs a descoberto. A cor desapareceu de suas faces, pôs os
olhos em branco, como os de um cavalo sem domar, e caiu ao chão com um
ruído surdo.
Lástima. Poderia ter sido de ajuda a Enid, mas agora esta não tinha tempo
para se preocupar por ele. O senhor Kinman voltaria em si por seus próprios
meios, enquanto que o paciente jazia imóvel sob as mãos de sua esposa.
— Seu amigo não serve para nada, sabia? — perguntou a MacLean como
se estivessem conversando. — É um homem agradável, e provavelmente um
bom lutador, mas caiu como uma bola. Diverte-me. E a você? — Escrutinou
MacLean em busca de qualquer sinal que suas palavras tivessem chegado até
ele.
Não houve nenhuma.
— Essa explosão causou um dano assombroso. — Empurrou brandamente
as costelas. — É possível que tenha algumas costelas fraturadas, mas não há
nenhuma quebrada e que esteja ferroando tecidos.
Foi lhe lavando por partes, secando cada uma com cuidado e cobrindo-a
com a manta.
Cada vez que o tocava, a sensação de contato entre ambos se expandia.

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Quando estava são e eram marido e mulher, ela nunca experimentou algo
assim. Talvez a tragédia o tivesse alterado, ou possivelmente os anos o fizeram
maturar, impregnaram sua essência até tal ponto que ela os discernia. Talvez
fosse ela a que mudou, se abrandou, estava disposta a perdoar. Ou
possivelmente percebia que a morte pairava por cima deles como um grande
corvo negro, disposto a arrebatá-lo antes que os dois pudessem escrever novos
capítulos de sua história.
Enid ouviu o ruído de homens que se moviam abaixo, uma saudação e
então o som de passos na escada. Atrás dela, o senhor Kinman se movia e
gemia, um homem tão volumoso que se assustava ao ver sangue. Mas agora
só uma coisa era importante, dar a MacLean uma oportunidade de viver.
— MacLean — repetiu seu nome, pensando que sem dúvida o ferido
responderia a essa palavra mais que a quaisquer outras. — Um fragmento de
vidro poderia ter te deixado sem um olho, mas nesse aspecto também teve
sorte, E a fratura da perna é tremenda. — Enquanto o som de uns pés
embainhados em botas se aproximava, iniciou a operação cruelmente dolorosa
de tirar a bandagem da extremidade. — Mas de algum jeito se livrou de
qualquer infecção. Voltará a caminhar. Assim me diga, MacLean, por que ainda
está dormindo?
— Está dormindo, jovem senhora, devido ao golpe que sofreu na cabeça.
— Um cavalheiro de grande bigode estava no alto da escada, vestido de tweed
marrom e emitindo um aroma de tabaco.
Um cavalheiro com ares de suficiência e, a julgar por sua expressão, com
tendência ao desdém e a uma altivez injustificada. — Sou o doutor Bridges, e
exijo saber o que você acredita que está fazendo!
O senhor Throckmorton estava atrás dele, na penumbra, e apesar de ter
permitido que o doutor Bridges tomasse a iniciativa, Enid fez caso omisso do
médico e se dirigiu somente a ele.
— Estou lavando MacLean, senhor Throckmorton. Estava sujo. — Jogou o
trapo na bacia. — Senhor Kinman, seria tão amável de atirar esta água e trazer
mais, limpa e quente?
O senhor Kinman voltou a se queixar, e então avançou engatinhando para
ela e elevou as mãos. Enid lhe deu a bacia e advertiu:
— Não a derrame!
— Não o farei — sussurrou o senhor Kinman.
Levantou-se cambaleando e foi para a escada.
O doutor Bridges estava tão indignado pelo descaso que a dama lhe dirigia
que as pontas do exuberante bigode tremiam.
— Olhe, jovem, sou um médico experiente, graduado por Oxford, e o que
você está fazendo é um engano.
— Talvez seja, mas o que você faz o está matando.

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Disse em voz baixa, porque, se não se contivesse, teria começado a gritar


de novo, e isso poderia incomodar ao paciente.
Contemplou as feições inertes de MacLean.
Embora fosse possível que se gritasse de novo, isso serviria para despertá-
lo.
— Inclusive um doente merece que o lavem e descansar em lençóis limpos
- comentou.
— Essas ataduras eram a única coisa que mantinham o inchaço a raia. - O
doutor Bridges fez um gesto para MacLean. - Olhe para ele! Agora que as tirou,
está inchando como um sapo.
Assim era, em efeito, e Enid sentiu que seu coração encolhia. Oxalá
tivesse tido tempo para terminar o exame de MacLean antes de enfrentar a
aquele homem que era seu adversário e seu juiz.
— Aplicarei gelo para manter o inchaço controlado. Senhor Throckmorton,
você poderia me encontrar gelo?
— Certamente.
O senhor Throckmorton foi à escada, chamou abaixo, deu a ordem e
retornou ao lado de Enid e do doutor, observando a ambos com uma austera
resolução.
Quando o senhor Kinman retornou, parecia um pouco menos indisposto e
muito mais interessado na conversação. Deixou a bacia no suporte e ofereceu
trapos limpos e uma pequena toalha atada pelos extremos que continha gelo.
Quando Enid pegou o material, fez um rápido gesto com a cabeça para ele, o
dispensando.
Tampouco o senhor Kinman gostava do médico. Deu um passo atrás, até
ficar ao lado do senhor Throckmorton.
Enid colocou a toalha sobre o nariz e os olhos de MacLean, pondo cuidado
para não obstruir sua via respiratória. Umedeceu o trapo e esfregou a coxa do
ferido. Via claramente a cicatriz no lugar onde o osso se sobressaíra da pele;
entretanto, a solda foi perfeita. Se o ferido sobrevivia, voltaria a caminhar, e
ela reconheceu que era um milagre.
— Ar fresco... enquanto o está lavando! — Como um espectador em uma
partida de tênis, os olhos do doutor Bridges foram de uma janela à outra. — O
frio o matará.
Enid voltou a ser presa da indignação.
— Este quarto era como um mausoléu, não o quarto de um doente. Como
MacLean vai saber quando tem que despertar se o tem encerrado em uma
prisão?
— Despertar? Você acredita que vai despertar? Mal podemos conseguir
que trague água, e eu gostaria de saber, senhora, como você vai melhorar seu
estado! — O bigode do ofendido doutor tremeu. — Ela tirou a bandagem da

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perna. Espero que não a tenha arruinado também.


Enquanto secava brandamente a perna com uma toalha, Enid considerou
a situação. O Senhor Throckmorton não tinha nenhum motivo para confiar em
sua habilidade, enquanto que o doutor Bridges estava em posse de um título
outorgado pela faculdade de medicina mais prestigiosa da Inglaterra. Mas ela
precisava ficar com MacLean. Ele necessitava dela para sobreviver. Ainda mais,
o homem inconsciente e gasto estendido na cama a comovia e a fazia sentir no
mais fundo o desejo de lhe ajudar. Enid não sabia por que; para ela deveria ser
tão só um paciente como qualquer outro.
De fato, se MacLean vivesse, ela seguiria atada a ele, e que se morresse
enquanto cuidava dele, seria livre. Entretanto, havia algo nele que lhe produzia
uma estranha atração, inclusive estando inconsciente exsudava uma aura de
fortaleza, de poder, de fascinação irresistível. Então, ela faria tudo, suplicaria,
lutaria, inclusive apaziguaria ao doutor, com tal de ter a oportunidade de fazer
que MacLean voltasse para a vida. Nenhuma outra coisa era aceitável.
Por isso, embora a reconciliação lhe atravessasse na garganta, Enid
ofereceu um ramo de oliveira.
— Você fez um trabalho excelente com a perna, doutor Bridges, — por
assombroso que parecesse, fizera. — Uma fratura difícil. Felicito-lhe.
Fez-se um profundo silêncio na sala, e ela elevou a vista do que estava
fazendo.
— Um médico árabe recompôs o osso — revelou o senhor Throckmorton.
O doutor Bridges girou sobre seus calcanhares para enfrentar ao
cavalheiro.
— Vai morrer de todas as maneiras! Que mais dá que a fratura esteja bem
resolvida?
A expressão do senhor Throckmorton se imobilizou. Seus olhos se
tornaram tão frios que a temperatura da sala desceu de uma maneira
perceptível.
— Você quer dizer que esteve tratando sem atenção a meu amigo porque
acredita que não é possível salvá-lo?
O doutor Bridges não era um homem intuitivo, porque respondeu:
— Fiz o que pude por ele, mas jamais vi umas feridas tão terríveis. Claro
que não tem salvação.
O senhor Throckmorton estalou os dedos e então se aproximou de Enid e
permaneceu a seu lado. O senhor Kinman, sem fazer caso dos protestos do
doutor, o pegou pelo braço e o levou escada abaixo.
— Pedi que lhe atendesse o melhor possível — disse o senhor
Throckmorton, com uma gélida raiva em seu tom. — E o que é que consegui?
A ansiedade que atendia a garganta de Enid relaxou, e com prudência, em
um tom indicador de que não desejava se erigir em juiz, replicou:

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— O doutor Gerritson, o mestre que me ensinou, estava acostumado a


dizer que o problema surge quando os médicos acreditam em sua própria
infalibilidade.
— Seu doutor Gerritson parece um homem inteligente. Como é que se
adestrou para trabalhar como enfermeira?
— Depois que MacLean me abandonou, tive que pagar suas dívidas. Então
ajudava ao médico do povoado e presenciava todo tipo de lesões e
enfermidades. Não desmaiava ao ver o sangue... vi muitas coisas no orfanato
para sentir repugnância por nada, depois que o ajudou a compor a clavícula do
cavalariço, me ofereceu um posto de trabalho em seu consultório. Sua esposa
dizia que era muito velho para trabalhar tanto. Tinha razão. O doutor morreu ao
cabo de três anos, e aqui me tem.
O senhor Throckmorton observou em silêncio enquanto ela lavava as
feridas de MacLean.
— Você será capaz de salvá-lo?
— Não sei — respondeu ela. O estado do paciente era muito crítico. —
Nem sequer sei se poderei conseguir que sobreviva esta noite. Mas tentarei.
Não lhe fez nenhuma recriminação.
— O que posso fazer para ajudá-la? — perguntou.
"Oxalá todos os homens fossem tão ardilosos!", pensou Enid.
— Necessito uma criada, uma mulher robusta, forte e sensata que me
ajude a movê-lo, lhe dar água e alimentar se chegar a recuperar o sentido.
— Enviarei à senhora Brown. É nossa babá, e a mulher mais judiciosa que
já conheci.
— Eu não gosto absolutamente da ideia de privar a seus filhos de sua
babá.
— Minha filha e minha sobrinha, e asseguro que minha prometida estará
encantada de ficar com as meninas. — O sorriso de senhor Throckmorton se
curvava para cima em uma comissura da boca e para baixo a outra, e isso o
fazia parecer um homem que não sabia se estava encantado ou privado de
algo. - Minha prometida foi previamente a governanta da casa, você
compreende?
Enid não compreendia, mas tampouco lhe importava. Enquanto o senhor
Throckmorton satisfizesse suas necessidades, ele e sua prometida podiam
fazer o que lhes desse vontade.
— Se a senhora Brown for a pessoa mais apropriada disponível, a aceitarei
com muito prazer. Quero que as donzelas limpem o quarto, de modo que possa
pôr certa ordem nos unguentos, os panos e... — Mostrou o montão de objetos a
seu redor. Enfrentada a uma tarefa tão delicada, necessitava higiene e
organização, pois do contrário seu metódico espírito se rebelaria. — Donzelas.
Em seguida. E necessito ervas.

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— Meu jardineiro a atenderá.


Ela assentiu, satisfeita, e voltou a se inclinar sobre MacLean.
— Queria lhe pedir que, enquanto esteja aqui, permaneça dentro da
quinta, a menos que um de meus homens a acompanhe.
O olhou severamente. Mais precauções.
— Na verdade, não acredito que deseje ir a nenhuma parte enquanto
MacLean esteja se recuperando.
— Acredito que será necessário um passeio pelo jardim todos os dias. — O
senhor Throckmorton tirou a jaqueta e a arregaçou. — Posto que a senhora
Brown ainda não está disponível, eu a ajudarei a trocar os lençóis.
Enquanto trabalhavam, deslizando os lençóis sujos por baixo de MacLean,
colocando os novos, movendo o paciente de um lado a outro com o maior
cuidado; o sol do entardecer penetrou pela janela e empreendeu uma lenta
ascensão cama acima, até que chegou ao rosto de MacLean e descansou sobre
as marcadas feições.
E dando um suspiro longo e áspero, MacLean abriu os olhos.
Aqueles olhos inconfundíveis, nos que se mesclava o verde e o dourado.

Capítulo 4

Cada vez que MacLean despertava, a via, brilhante como uma vela na
escuridão. No princípio machucava seus olhos, tal era o brilho que irradiava de
seu interior, mas a olhava tanto como lhe era possível antes de deslizar uma
vez mais no vazio.
Mais adiante ouviu uma voz feminina que lhe falava, e soube que era ela.
Enchia sua mente com imagens de árvores coalhadas de flores rosadas, de
gente bruscas e alegres, de canções entoadas na véspera do sábado. Cada
imagem desaparecia logo que ele tentava agarrá-la, e qualquer esforço lhe
causava dor. Dor na perna, no peito, na cara. Estava cansado de lutar contra a
dor, por isso procurava refúgio no vazio.
Então brigava com ele, o chamava, e a lembrança daquele rosto radiante
o fazia voltar a si. Cada vez que abria os olhos, ela estava ali.
Sempre se precipitava sobre ele, o elevava, o enchia de todo tipo de
líquidos, e essa imprecisão o turvava vagamente. Seu corpo não ansiava nada,
mas sua mente exigia vê-la, e se ser alimentado era o preço que teria que
pagar, pagaria.
Ele sempre cumpria com suas obrigações.
Em geral, voltava a si quando a luz do sol penetrava no quarto, mas uma
vez ouviu o estrépito dos trovões e abriu os olhos na noite, ela também estava
formosa então, a chama mais brilhante em uma sala cheia de velas. Movia-se
com tal elegância quando se inclinava sobre ele, a bata rosa com rendas

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ligeiramente atada, o cabelo recolhido em uma trança de ébano. A própria pele


lhe brilhava como primoroso veludo pálido, com um trêmulo resplendor rosado
nas faces, um rosa mais intenso no carnudo lábio inferior, uma leve pátina
dourada no V que a bata formava no peito. Cada relâmpago iluminava algo
mais dela: as delicadas conchas de suas orelhas, seus dedos movidos por uma
compaixão divina.
Aquela noite, pela primeira vez, ele descobriu que queria que o levantasse
e lhe desse água ou caldo ou algo que ela quisesse, pois se sustentava sua
cabeça contra seu seio, os braços dela a seu redor, poderia morrer feliz.
MacLean franziu o cenho.
Morrer? Não ia morrer.
Isso estava totalmente descartado.
— Que formosa manhã, senhorita, depois da tormenta de ontem à noite.
— A senhora Brown entrou apressadamente no quarto ensolarado, o avental
branco alisado sobre o vestido de algodão pardo, a bandeja com o café da
manhã de Enid nas mãos. — Os velhos que estão nas nuvens fizeram um
grande trabalho ontem à noite, jogando boliches.
Com os braços elevados, Enid, que esteve ante o pequeno espelho
pendurado da parede, se voltou para a mulher que lhe dera uma ajuda
inestimável durante a última e sombria quinzena.
— Estive acordada.
Não podia esperar para compartilhar as notícias... embora não todas.
Certas coisas devia manter em segredo.
A senhora Brown deixou a bandeja sobre a mesa ao lado da janela e se
aproximou de Enid para ajudá-la a recolher o cabelo. A escura e abundante
cascata, que se estendia por baixo dos quadris de Enid, se ondulava como se
tivesse vida própria, mas a senhora Brown não criara dezenove filhos por nada.
A alta e robusta mulher lhe trançou as mechas com suas robustas mãos, até
que os olhos de Enid se inclinaram e a dor a fez se elevar nas pontas dos pés.
Mas não se queixou; a novidade e a alegria de receber uns cuidados maternais
excediam em muito ao desconforto.
Enquanto a senhora Brown colocava a rede para cabelo e a assegurava
com agulhas, perguntou:
— A tormenta a incomodou, senhorita? — Seu largo rosto estava sério,
enquanto fazia um gesto para MacLean, silencioso e insensível na cama.
Enid sorriu, animada.
— Despertei a meia-noite, e ele tinha os olhos abertos.
— Ah, então, é certo?
A senhora Brown recebeu a informação com uma serenidade
característica, mas Enid percebeu em seus amáveis olhos a satisfação que
experimentava. O inquebrável bom senso e a atitude jovial da mulher

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sustentaram Enid quando, se não fosse por ela, o esgotamento e o desalento a


teriam feito verter lágrimas.
A senhora Brown também cuidava de Enid, a fazia passear, enviava às
donzelas de um lado a outro para que trouxessem a roupa de cama, fizessem a
limpeza e engomassem os vestidos de Enid.
— Isso é uma boa notícia, — disse a senhora Brown. Pegou Enid pelos
ombros e a encaminhou à mesa onde estava a bandeja do café da manhã. —
Nunca despertou sem que você lhe falasse antes.
— Uma notícia muito boa, diria eu. — Enid olhou a figura imóvel no leito
enquanto tomava assento.
— Sua carta está aqui — lhe indicou a senhora Brown.
Enid pegou a branca folha de papel e rompeu o selo. Leu as primeiras
linhas. Lady Halifax afirmava se encontrar bem e, de fato, estava o bastante
bem para fazer umas ásperas observações a respeito de sua nova enfermeira,
o imóvel e o estado do mundo em geral. As cartas semanais mantinham a raia
a má consciência de Enid, e o engenho da anciã sempre a fazia rir. Deixou a
carta sobre a mesa.
— Escreverei a ela esta tarde. — Sacudiu o guardanapo e disse: —
Acredito que MacLean está melhorando.
Estava melhorando, em efeito, pois quando ela terminara de lhe dar o
caldo e se inclinou para agasalhá-lo, ele deslizou a mão no interior da bata e
lhe tocou o seio! Não de um modo vacilante nem com agitação, a não ser com
a suave confiança de um conquistador.
Ela retrocedeu de um salto e sufocou um grito, e, como se o esforço o
tivesse extenuado, a mão de MacLean caiu a seu lado e fechou os olhos.
Enid se manteve bem separada da cama, segurando as bordas da bata e
dizendo em um tom indignado:
— Isso está errado, senhor!
Como se ele pudesse ouvi-la. Como se tivesse consciência de seus atos.
E onde MacLean aprendera a fazer uma coisa assim? Comportou-se como
um louco na vida, e isso também incluía o leito conjugal; normalmente, em seu
frenesi e pressa, a deixara atrasada.
— Sem dúvida está melhorando, senhorita. Reage a você, a sua voz. — A
senhora Brown retirou a cadeira e elevou as tampas dos recipientes. — A seu
contato.
— Acredito que tem razão. Um acesso de alegria animou Enid. Teve êxito.
MacLean a tocara. Com toda segurança MacLean ia viver.
— Tome o café da manhã. Esther enviou o primeiro pêssego da temporada
para você.
Esther, a cozinheira, enviava a Enid os melhores frutos do pomar e as
comidas mais deliciosas três vezes ao dia. Às vezes um prato de bolachas

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quentes ou um pedaço de empanada fria chegavam entre as refeições. Milford,


o jardineiro, trazia as ervas que Enid requeresse para seus remédios, e cada
dia havia no quarto do doente um buquê de flores. O senhor Kinman se
apresentava com frequência para comprovar como seguia Enid, embora nunca
ficasse o tempo suficiente para observar qualquer ritual no quarto do doente, e
os outros três cavalheiros que protegiam a quinta eram indiferentes e amáveis.
Mas Enid se concentrava em seu paciente. Inclusive agora, enquanto
comia empanado recheado de porco e batata e bebia cidra, seu olhar posava
em MacLean. Este estava acostumado a recuperar a consciência uma vez ao
dia, normalmente ao entardecer, quando a luz do sol batia em sua cara. A
olhava com fixidez, mas nunca dizia nada. Tomava o caldo e a água que lhe
dava, mas nunca elevava um dedo para ajudar. Era como se seu corpo exigisse
atenção e ele respondesse, mas sua mente nunca saísse à superfície a fim de
realizar as funções necessárias para a continuidade da existência.
O senhor Throckmorton estava francamente desalentado.
Mas MacLean estava ali. Enid sabia que estava. Percebia vida nele, um
espírito, forte e decidido. Todos os dias se dirigia a aquele espírito, contava a
história de sua vida, lia o jornal, comentava o tempo que fazia, dava sua
opinião sobre a política. No princípio, a senhora Brown tinha atuado como se
Enid estivesse um pouco louca, mas logo, pouco a pouco, a volumosa mulher
de cabelo cinza e rosto suave se convenceu que ele a ouvia. Quando Enid saía
para dar seu passeio cotidiano, a senhora Brown conversava com ele sobre os
acontecimentos do imóvel e do povoado.
— Mas gosta mais de escutar a você, senhorita — dizia com frequência a
Enid. — Dou conta.
A mulher foi então à cama e pôs uma mão na testa do doente.
— Não tem febre. — Franziu o cenho ao ver que tinha a palma cheia de
óleo. — Ardo em desejos de lhe lavar o cabelo, lavar de verdade em uma bacia.
Está tão sujo que mal se distingue de que cor é.
— Era de um loiro bastante avermelhado.
A senhora Brown o olhou com os olhos entrecerrados.
— Debaixo de todo esse óleo me parece assim como castanho
avermelhado.
— Suponho que se obscureceu com a idade. — Uma lembrança foi a sua
mente, e soltou uma risada. — Sempre acreditava que estava perdendo o
cabelo. Olhava os fios presos na escova e se queixava a gritos.
— Pois parece que estava equivocado.
— Quando despertar e possa se mover, o banharemos. — Enid roçou a
pele rosada do pêssego com os dedos e aspirou o doce aroma da fruta
amadurecida. — Suponho que gostará disso.
— Os homens são umas criaturas estranhas. Tive um filho que passou um

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mês sem trocar a roupa de baixo, e logo protestou quando a queimei.


A senhora Brown falou em um tom lento, moderado, como uma guia que
encabeçasse uma excursão pelas peculiaridades masculinas.
O que acabava de ouvir fez que Enid enrugasse o nariz.
— MacLean estará tão fraco que não poderá opor resistência.
— Suponho que estará tão fraco que mal poderá elevar a cabeça. — A
senhora Brown pegou um braço do doente e ficou a lhe massagear os
músculos flácidos. — Vão lhe pôr em forma — lhe disse ao adormecido. — Um
homem forte como você que está de cama a quase dois meses. Deve estar
mortalmente aborrecido consigo mesmo.
Suas grandes mãos passaram ao ombro e percorreram as cicatrizes do
peito. Então moveram e estiraram o braço. O exercitavam duas vezes ao dia, a
fim de acautelar no possível e inevitável atrofia muscular.
Enid o observava pensativamente. Inclusive agora ao cabo de várias
semanas de serviço, mal podia reconhecê-lo como seu marido. O inchaço da
cara retrocedera graças a constante aplicação de gelo. As cicatrizes do peito e
do ombro direito passaram do vermelho à rosa e, em ocasiões, uma lasca de
vidro abria caminho até a superfície. Todos os cortes desapareceram, e lhe
movia a perna com cautela mas com maior confiança a cada dia que passava.
Mas seus traços, destroçados pela explosão, mudaram até o ponto de que
eram quase irreconhecíveis. Só a curva da face e as orelhas, sempre grandes e
muito protuberantes, eram as mesmas. E os olhos, é obvio. Ela poderia
identificar aqueles olhos em qualquer parte, de um verde tão pálido como a
erva primaveril, intercalado de raios de sol dourados. Foram seus olhos a
primeira coisa no qual ela se fixou nove anos atrás, e rezava diariamente para
que os abrisse e voltasse a olhá-la de novo, a reconhecendo.
— Se sentiria muito melhor se despertasse e comesse, senhor. — A
senhora Brown lhe deu brandamente a volta e, quando esteve de barriga para
baixo, esfregou suas costas. — Um homem como você necessita batata e
carne, não essas minúsculas taças de caldo para menino de teta que o fazemos
tomar.
— Senhora Brown! — Enid se engasgou com o pêssego. — Não gostaria
que o chamassem menino de teta, asseguro.
— Então deveria despertar e me dizer isso.
— Sim, deveria. — Ainda comendo a fruta fresca, Enid se aproximou da
cama. Ele tinha a cabeça voltada para o lado sobre o travesseiro, a face
afundada no limpo tecido branco. — Acredito que poderia nos dizer muitas
coisas se despertasse. — Passou o pêssego sob o nariz dele. — Cheira isto,
MacLean. Não cheira como as manhãs do verão no pomar? Não recorda o que é
recolher um balde de pêssegos, notar o pelo que se desliza pelas costas, se
reúne nas dobras do pescoço e te arde? Não deseja estar aí fora, estendido na

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erva, comendo um pêssego recém arrancado da árvore e contemplando o sol


que se filtra através das folhas enquanto uma brisa leve o acaricia nas faces?
As mãos da senhora Brown se moviam lentamente ao longo das costas do
doente enquanto Enid lhe falava.
Entusiasmada pela imagem que tinha criado, Enid se ajoelhou ao lado da
cama e lhe falou em voz baixa, com insistência, ao ouvido.
— É tudo tão formoso aí fora... Um verão como não houve outro igual nem
voltará a haver, e o está desperdiçando neste quarto. — Afastou-lhe o cabelo
da cara, o penteando para trás, desejando com todas suas forças que ele
abrisse os olhos e falasse. Esforçou-se muito por lhe devolver a saúde para
deixá-lo adoecer naquele estado de inconsciência. Por debaixo da superfície
sua mente se movia, e ela ansiava se comunicar com ele, descobrir se sua aura
de poder e honra era uma verdadeira representação de seu ser... ou se ela a
costurou com fragmentos de desejos e fios de solidão. Tentou lhe persuadir
com a voz, as palavras e o contato. — Poderíamos rir juntos, como tolos
preguiçosos que somos, e nos contar anedotas sobre outros verões mais
esplêndidos que este, mas saberíamos que estávamos mentindo, porque esta é
a melhor época do mundo. O sol é nosso, o céu é azul, os aromas são
exuberantes e há uma infinidade de fruta amadurecida que pende das árvores
e todo tipo de flores. Volta para mim, MacLean, e o levarei ali.
Então ele abriu os olhos e disse:
— De acordo, pode me levar ali, mas primeiro me diga... quem é?

Capítulo 5

A mulher o olhava com fixidez, seus assombrosos olhos azuis sem piscar,
os lábios rosados algo abertos, como se estivesse surpreendida. Inalou longa e
lentamente, e em um tom moderado respondeu:
— Quem... sou... eu?
Se ela fosse um homem, teria lhe quebrado seu nariz por essa idiotice,
mas as mulheres eram sua fraqueza, todas as mulheres, e aquela jovem era
atraente. Tão atraente, na realidade, que o surpreendia não recordar seu nome.
A vira antes, e não desejava mais que tocá-la, mas se contentou olhando-a tão
só por que... por que... por que não recordava dela? Fez um esforço de
memória. Sua excelente memória, que nunca falhou até então. Por que não
recordava dela?
O que lhe fizera aquela mulher?
A voz de MacLean era áspera, carregada de suspeita, quando perguntou:
— Quem é? Recordo de você, radiante, o cabelo caído sobre os ombros,
mas... não posso recordar... seu nome.
— Louvado seja Deus, está acordado! — exclamou outra mulher atrás

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dele.
Tentou se voltar para ver quem estava ali, a suas costas desprotegidas.
A dor invadiu suas articulações, os músculos, a perna. Lançando uma
virulenta maldição, se deixou cair na cama. A mulher que estava ajoelhada a
seu lado ficou em pé e o agarrou pelos ombros. A outra mulher também o
agarrou.
— Cãibras musculares, senhor, não é surpreendente em seu estado — lhe
disse.
As mulheres, fossem quem fosse, não o deixaram quieto até que o tiveram
colocado de barriga para cima. A perna, o centro daquela dor lacerante, resistia
a se mover até que a segunda mulher a levantou e a pôs sobre um travesseiro.
Então o doente caiu para trás, ofegante.
A outra mulher era mais velha, gordinha e de olhos vivos, segundo todos
os indícios uma típica aldeã inglesa. Não representava nenhuma ameaça.
Agora não. Olhou a seu redor. Ao outro lado das janelas abertas oscilavam as
copas das árvores, o teto estava inclinado e com as vigas visíveis... assim, se
encontrava em um sótão. Com que objetivo?
O que lhe ocorria? Onde estava?
Quem era?
Estava entrando em pânico. Um pânico que dominou em seguida,
enquanto permitia que o furor aumentasse, porque desconhecia a resposta à
pergunta mais básica de todas. Mas obteria essa resposta. E imediatamente.
Olhou de novo à moça. Devolveu-lhe o olhar, os olhos muito abertos e
brilhantes. A conhecia, sim, mas lhe era impossível recordar seu nome.
Recordava ter ouvido sua voz suave lhe contando as anedotas da jornada.
Recordava ter visto sua cara em forma de coração inclinada sobre ele quando
despertava. Recordava como seus olhos se iluminavam quando sorria, como
suas tenras mãos lhe alisavam os lençóis, como seu cabelo espesso e escuro
caía ao redor de seus ombros e acariciava sua face. Recordava a deliciosa
curva de seu seio aparecendo da bata.
Mas não recordava ter se intimado com ela na cama e, por que outra
razão a veria vestida com um objeto tão íntimo? O que estava ocorrendo? O
que recordava?
Nada. Absolutamente nada.
Tratou de se levantar por que seu corpo não se movia? e perguntou: —
Quem diabos sou?
A mulher soltou uma exclamação e deslizou um braço sob sua cabeça.
— Como vê, prezado senhor, não está em condições de brigar — disse a
outra mulher, a suas costas, e o agarrou pelos ombros. — Quero me sentar.
Dificilmente se poderia expressar a irritação que sentia por sua fraqueza.
Um espaço em branco foi crescendo em sua mente até enchê-la por completo.

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Por muito que tentasse, por muito que procurasse lembranças, não encontrava
nada.
Assumiu o comando como o fazia sempre, dando ordens naquele tom
cortante que obtinha uns resultados instantâneos. Mas como sabia isso?
— Vão me dizer agora mesmo quem sou e o que estou fazendo aqui. — Se
não respondiam, iriam pagar caro... mas como? Quem era ele?
— Tranquilamente, mais devagar.
A mulher de cara suarenta, a que tinha aqueles extraordinários olhos azuis
e os seios vivazes, se inclinou sobre ele enquanto MacLean manobrava na
cama, tratando de encontrar uma postura cômoda.
— Esteve muito doente — lhe disse.
— Isso já deduzi, boba.
Ofendida, lançando um breve bufo, a mulher se apressou a se erguer. Mas
ele não era propenso a ter tato.
— Estou na cama, é de dia, e não me deito de dia a menos que esteja
doente. Tenho muitas coisas a fazer.
Mas que fazia?
A outra mulher, a do cabelo cinza e semblante maternal - ele também a
reconhecia, mas por quê? aproximou-se. Olhou aos olhos e, em um tom de voz
que devia ter aperfeiçoado no transcurso de inumeráveis sermões, disse-lhe:
— Você tinha um aspecto de inquietação inclusive quando estava
inconsciente, Agora me escute, jovem. Sou a senhora Brown e vou em busca
do senhor. Ele explicará tudo, mas enquanto isso esta jovem dama cuidará de
você. Não faça nenhuma estupidez. Não tente se levantar, porque não será
capaz de fazê-lo. Seja obediente e faça exatamente o que esta amável senhora
lhe diga.
— Por que deveria fazê-lo? — replicou ele, como um menino mal-
humorado.
— Porque foi ela quem o fez voltar da beira da morte, e eu sou quem
limpou seu traseiro.
MacLean a olhou fixamente.
Ela sustentou o olhar.
Sabia que era um guerreiro, e um guerreiro reconhece quando foi
derrotado. Assentiu a contra gosto e, arrastando as solas de couro de seus
sapatos, a mulher mais velha saiu da sala.
A mulher mais jovem se pôs a rir, com uma mão sobre os olhos.
— O que é tão divertido? — perguntou ele em tom brusco, como se não
soubesse.
Ela ergueu a cabeça.
— Nos preocupava tanto que nunca despertasse... e agora que o fez, é
mais inculto do que já foi algum dia.

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Duas coisas chamaram a atenção de MacLean. Chamou-lhe inculto, de


modo que o conhecia, e tinha os olhos úmidos. Ria, mas também chorou.
Resultava curioso que uma rapariga atuasse assim. Mas aquele dia todo
parecia curioso. Seu corpo, que normalmente respondia a seus desejos,
estremecia de dor. A cara lhe doía ao falar, e a perna... o que fez à perna para
que lhe doesse de um modo tão atroz? Mal podia levantar a mão, e quando o
fez, ficou olhando-a fixamente. Esquelética, jogada a perder. A precariedade de
sua condição física era cada vez mais evidente, e o enfurecia. O enfurecia
quase tanto como o vasto espaço em branco que continha sua cabeça. Olhou a
jovem e viu que o estava olhando com uma expressão séria.
— Não tenho muita vontade de esperar a esse senhor do que me falou —
lhe disse. — Você sabe quem sou. Diga-me.
Ela o disse sem a menor vacilação.
— É Stephen MacLean da ilha de Mull. — Se interrompeu, à espera
enquanto ele saboreava o nome na língua.
— Stephen MacLean. — Essas eram sílabas familiares? Eram os sons uma
compilação de sua pessoa? Sacudiu a cabeça. — Não o conheço. — Pronunciou
estas últimas palavras em dialeto escocês.
Ela soltou uma risada, mas o som era um regozijo estremecido de emoção.
— Não há dúvida de que esteve doente, pois do contrário não te ocorreria
falar em escocês. Antes só sentia desprezo pela Escócia.
— O melhor lugar do mundo — disse ele, e franziu o cenho. Não recordava
ter dito jamais essas palavras, mas as pronunciou com um ardor involuntário.
— Quem é?
Enid o olhou fixamente, como se sopesasse sua fortaleza.
Como se atrevia ela considerar sequer que tinha direito a tomar decisões a
respeito de seu bem-estar? Ele, que era o... quem era ele? Ele falou espaçando
as palavras, como uma lenta e mesurada ameaça.
— Vai me dizer em seguida quem é.
Ela levantou garbosamente a formosa cabeça, um sorriso desdenhoso nos
lábios.
— Sou sua esposa — disse.
Sem desviar o olhar dela, MacLean fez caso omisso da dor e pouco a
pouco se ergueu sobre os cotovelos.
— Mentirosa.
Enid arqueou as sobrancelhas e abriu ligeiramente a boca. O olhou com
fixidez, e então jogou a cabeça atrás e deu rédea solta à risada.
Se pudesse se levantar, ele a teria estrangulado.
Mas Enid deixou de rir quase imediatamente.
— Olhe, imaginei esta cena muitas vezes, mas nunca imaginei que essa
seria sua resposta. — Se aproximou mais a ele com passo lento e precavido e

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perguntou: — Por que acredita que sou uma embusteira?


— Não recordo de você.
— Mas afirma que não recorda absolutamente nada.
Aquela mulher, aquela fêmea, aquela embusteira não acreditava em sua
asseveração de que perdera a memória. Ninguém duvidava jamais de sua
palavra, por que... não sabia por que, mas estava seguro que era um modelo
de honestidade e integridade. Era...
Pálido de irritação, perguntou a ela:
— Se atreve... atreve-se a duvidar de mim?
— Assim estamos igualados.
O olhar de MacLean a percorreu da cabeça aos pés. Ela usava um vestido
de algodão verde escuro, um tom quase militar por sua severidade, e fechado
até o pescoço. A cintura era fina, e se as anáguas ocultavam a curva dos
quadris... bom, perdeu a memória mas não a imaginação, e agora a utilizou.
Uma mulher de bom aspecto. Um pouco magra, mas era evidente que havia
feito de tudo desde sua infância para chegar a ter semelhante figura.
Se sua avaliação incomodou Enid, esta não mostrou indício algum de que
assim fosse. Tampouco revelou um entusiasmo sem inibições ou um interesse
pícaro. Permaneceu com as mãos enlaçadas na cintura, o olhando com um
sereno interesse, à espera de seu veredicto.
Sua esposa? Não era provável. Se fosse sua esposa, ao olhá-la assim, com
uma atenção francamente carnal, não poderia por menos que reagir com um
sorriso e um bater das negras pestanas.
Afundou-se de novo nos travesseiros. Casado. Não. Não com aquela
mulher.
— Não é minha esposa —lhe disse sem o menor escrúpulo.—Nenhum
homem se esqueceria de ter feito amor com você.
Ela não se ruborizou nem fez nenhum movimento, e quando falou, sua voz
continha todo o frio do vento que sopra do mar do Norte.
— Pois parece que você esqueceu.
De modo que estavam desforrados... e incomodados mutuamente.
Por que ela mentiu? Por que ele estava ali? Uma leve inquietação se
insinuou por sua espinha dorsal enquanto, uma vez mais, tentava recordar...
recordar o que? Algo mau, algo perigoso. Seu instinto o advertia desse perigo,
e ele sempre confiava em seu instinto.
— Como se chama? — perguntou a ela.
— Enid MacLean.
— Enid... — Bonito nome. Gostava, embora não estava seguro que não lhe
tivesse mentido também nesse aspecto. — Onde estou?
— Em Suffolk, na Inglaterra.
Respondia-lhe de boa vontade.

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— O que me ocorreu?
— Estava de visita na Crimea.
— Sem você? — perguntou ele no tom mais neutro de que era capaz, e
observou um momento de vacilação na mulher.
— Sim — disse ela depois da breve pausa. — Houve uma explosão.
Resultou ferido, o outro homem morreu.
A península da Crimea. Não recordava essa viagem, embora sabia bem
que Crimea era uma extensão de terra e areia que se internava no mar Negro.
Por que recordava isso?
Uma explosão. Tratou de se endireitar e examinar seu corpo, mas seus
fracos esforços anteriores tinham esgotado suas forças, e essa constatação o
enfureceu ainda mais.
— Tenho todos os membros intactos? — quis saber.
— Sim.
Não acreditava. Moveu os dedos dos pés. Moveu braços e pernas, sem
deixar de sentir dor.
— Dê a volta, se tiver recato — pediu à mulher.
O obedeceu, mas quando teve terminado de se apalpar, depois de
encontrar que as partes importantes seguiam realmente ali, observou que um
intenso rubor invadia o pescoço da jovem.
— Não posso acreditar que esteja sobressaltada, moça. Aqui me tem sem
mais que umas calças cortadas pelos joelhos, e certamente há muitas
correntes de ar nesta sala.
— Assim nos resultava mais fácil cuidar de suas feridas - se defendeu ela
com rigidez.
— Já pode se voltar.
Ela se voltou com cautela, e quando viu que ele tinha as mãos sobre o
cobertor da cama, o olhou de novo.
— Se fosse na verdade minha esposa, deveria se alegrar que ainda possuo
os meios para te dar prazer.
— Se fosse um marido como é devido, me alegraria.
— Se pudesse me levantar desta cama, não me diria isso à cara.
— Não me conhece absolutamente.
Sentia-se algum afeto por ele, se tinha um ápice de carinho, o ocultava
atrás de uns traços inexpressivos, disciplinando a si mesma como um sargento
militar encarregado da intendência.
Uma prova mais de que não era sua esposa.
— Quando teve lugar a explosão?
— Faz seis, quase sete semanas.
Ele soltou um bufido.
— Vamos, senhorita, não espera que eu acredite nisso. Em seis semanas já

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teria morrido.
— Deveria estar morto.
Não parecia uma mulher enganosa, mas ele conhecera antes
embusteiras... onde? E a suspeita o acossava por que... por quê? O que o fazia
observá-la de uma maneira tão cínica, quando tudo nela refletia sinceridade?
— Quererá beber algo, não é? Foi rapidamente à mesa onde estava a jarra
e verteu água em uma tigela.
— Sim, obrigado. —- Seu estômago retumbava, e compreendeu que as
exigências de seu corpo dominaram às da mente. — E comer! — Astutamente,
inquiriu — estive na prisão? Passei fome?
— Em certo modo, sim. — Se aproximou de seu lado, apoiou o quadril na
cama e deslizou o braço por trás de seus ombros para levantá-lo. Ele tentou
pegar a tigela, mas ela a manteve fora de seu alcance.
— Cairá de suas mãos.
— Uma tigela?
— O que você acha?
Ele pensou que gostaria de se apertar contra seu seio. Parecia que já o
fizera antes. Reconheceu o leve perfume de gardênia que saia dela.
Intimidade... uma intimidade familiar.
Deixou que aproximasse a tigela de seus lábios e bebeu com avidez, o
sabor antigo em sua pureza. Era possível que estivesse equivocado? Que
tivesse se esquecido de quando fazia amor com ela, que fosse realmente sua
esposa?
Não, Por Deus, não poderia ter se esquecido de uma coisa assim.
— O senhor Throckmorton fez que lhe trouxessem água de um manancial
de Yorkshire — lhe disse. — De vez em quando recuperava a consciência, o
suficiente para nos deixar te dar água e caldo, mas não falava e não parecia
nos ouvir. — Suas mãos tremeram, e a tigela tilintou contra os dentes de
MacLean. — Recorda agora? As lembranças voltaram?
Ele ofegou enquanto bebia a água... inclusive uma atividade tão mínima o
extenuava.
— Não. — Fez um esforço para lhe agarrar o pulso e mantê-la ali. — Quem
é o senhor Throckmorton?
— É o dono da casa familiar Blythe, a pessoa que a senhora Brown foi
procurar. É... seu amigo? Havia outra pergunta por baixo daquela: "Recorda
dele?". MacLean respondeu fazendo um gesto negativo com a cabeça.
— O senhor Throckmorton é o proprietário deste imóvel em que se está
recuperando. — Se afastou antes de acrescentar — deixe que vá te buscar algo
de comer. Encaminhou-se à escada, o deixando indignado porque escapou dele
com tão pouco esforço, desolado pela perda do contato com ela e ressentido
por depender até tal ponto de uma mulher, embora fosse uma mulher que

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afirmava ser sua esposa.


— O que quer dizer com isso de que sou inculto?
Ela se voltou para olhar a ele e sacudiu a cabeça, como se estivesse
confusa.
— O que?
— Disse que era tão inculto como sempre.
— Ah. — Enid jogou uma olhada à escada, como se desejasse
desaparecer, e então deu um lento passo para ele. — Você e eu estamos
separados.
— Tolices — replicou ele sem pensar. — Jamais me separaria de minha
esposa.
— De novo me chama mentirosa. Como eu disse... um inculto. — Com um
movimento de impaciência, se dirigiu à escada e chamou a alguém que estava
abaixo. — Necessito uma tigela de caldo. Não demore!
Enquanto retornava a seu lado, viu a chama que ardia nela com tal
brilhantismo que lhe provocou uma lembrança. A noite. Os relâmpagos. O peso
de seu seio na mão. A intensa sensação de propriedade, de que esse gesto era
correto.
De acordo. Era possível. Talvez fosse sua esposa. Uma esposa que seria
como uma Jezabel embusteira, mas se casou com ela era porque antes a
domesticou. Voltaria a domesticá-la.
— Venha aqui — disse em voz baixa mas em um tom imperioso.
Se sua ordem a impressionou, ela o ocultou bem. Com as mãos nos
quadris, perguntou:
— O que quer?
Ele não acreditava que pudesse manipulá-la facilmente, mas sua fraqueza
o impedia de ir atrás dela, por isso devia tentá-lo.
— Teme a mim. Uma jovem forte como você, e me teme.
— Não é certo!
— Então venha aqui. Não é como se não pudesse partir quando quiser.
— OH, Por Deus... — Enid se ajoelhou ao lado da cama, adotando a mesma
posição em que estava quando ele despertou. — Que deseja?
Ah, era uma moça sem nenhuma experiência da astúcia masculina. Uma
jovem com a que ele poderia jogar como com uma isca prateada em um anzol.
Voltou-se de lado e pegou sua cara nas mãos.
Ela retrocedeu.
— Quero te beijar — ele disse.
— Por quê? Não sou sua mulher. Sou uma embusteira.
— Que sarcástica é! — Acariciou-lhe a curva do pescoço. — E diz que
também eu sou um embusteiro, que lembro e não o admito. Grande par de
suspeitos somos você e eu. Mas o certo é que não recordo nada. Nem meu

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nome nem minha casa nem por que sofro nem como aconteceu. Então estou
procurando uma lembrança e, se for minha esposa, então é a chave. A única
coisa aqui em Suffolk, na Inglaterra, que me parece familiar. Por isso me
conceda o beijo que te peço, porque preciso saber quem sou, e estou muito
fraco para te reter.
O sentimento de culpa lhe concedeu o que a força não podia lhe dar. Ela
mordeu o lábio e então suspirou com uma petulância extravagante, fechou os
olhos e franziu os lábios.
Ele riu baixinho e lhe inclinou a cabeça. Ah, o contato da tenra boca
feminina com a sua! Não importava que ela não quisesse ou que estivesse
exasperada. Da mesma maneira que ele sabia onde estava situada a Crimea,
que era um guerreiro e escocês, e que tinha motivos para suspeitar de suas
circunstâncias, também sabia como suavizar com beijos a uma mulher
relutante.
Beijou Enid uma e outra vez, uns beijos breves, leves, rápidos, nas
comissuras da boca, no lábio inferior, inclusive na ponta do nariz. Sua
encantadora careta de desdém foi se dissipando à medida que tratava de
conservar a serenidade, de compreender a estratégia de MacLean. Foi então
quando a boca deste se amoldou com precisão à sua. Explorou os contornos de
seus lábios, sua textura felpuda aquela doce depressão no alto, a largura que
fazia maquinar a um homem deleites eróticos. Enquanto isso, ela retinha o
fôlego uma e outra vez, como se a surpreendesse cada um dos avanços de
MacLean. Por um momento ele pensou em separar e lhe perguntar durante
quanto tempo estiveram separados. Então chegou à conclusão de que isso era
uma loucura e deslizou os dedos entre a cabeleira feminina para lhe segurar a
cabeça.
Ela observou em seguida que a aprisionara. Tentou se retirar, mas ele não
estava tão fraco como ela teria gostado. Pelo menos quando tinha uma boa e
justificada razão para empregar sua força. A reteve, a persuadiu, a coagiu... e o
beijo se fez mais profundo. A boca de Enid se abriu sob a dele, e o estremeceu
com sua doce umidade, o sabor de especiarias e o calor estupendo. Ela retirou
a língua, por isso ele foi procurá-la, pequenas incursões nas profundidades de
sua boca, em busca de seus segredos, que foi achando um após o outro, e lhe
mostrando quão bem podia usar esses segredos contra ela. Enid reagiu com
vacilação no começo, e então, à medida que se acostumava a ele e a sua
perversidade, elevou as mãos e lhe rodeou com elas a cara tal como ele
rodeara a sua.
Uma mulher o deixava cativo. Uma mulher que afirmava ser sua esposa e,
embora não fosse, não demoraria para se agitar debaixo dele, embargada de
gozo.
Não havia no mundo maior prazer que o de persuadir a uma mulher

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relutante.
MacLean desejou rir quando seu corpo - enfermo, ferido, fraco -
experimentou um acesso de vitalidade. Mal podia elevar a cabeça, a perna lhe
ardia e, pelo que ele sabia, esteve à beira da morte. Mas seu membro viril,
valente, agressivo, não muito judicioso, ainda erguia sua impudica cabeça e
exigia que o mimassem. Ah, que grande coisa era ser homem, estar vivo
naquele dia ensolarado... Estar beijando a aquela jovem ossuda que lhe dava
semelhante incentivo para ficar bem. Mas não agora. Algo que tentasse agora
terminaria em um desmoronamento ignominioso. Além disso...
Se retirando pouco a pouco, pôs fim ao beijo. Beijou-lhe o pulso, alisou o
cabelo, o afastando da cara, e aguardou que ela abrisse os olhos. As pálpebras
caídas e a expressão aturdida alimentavam seu orgulho masculino, e por um
instante quase voltou para a perseguição. Mas carecia da força necessária, e
por isso lhe disse:
— Temos companhia, querida.

Capítulo 6

Com um grito afogado Enid se apressou a levantar e cobriu com as mãos


as ardentes faces.
O senhor Throckmorton, o senhor Kinman, a senhora Brown, Sally, uma
das donzelas da cozinha que tão frequentemente trazia a refeição. Aquele
porteiro de rosto duro que estava na entrada do imóvel... como se chamava?
Harry. E um desconhecido a que nunca vira até então. Todos em fileira os
olhando fixamente, como se nunca tivessem visto um homem beijar a uma
mulher.
O senhor Kinman estava boquiaberto.
Quanto tempo estavam ali... e por que ela não os ouvira subir a escada?
Como se não soubesse.
Porque esteve experimentando o beijo mais delicioso, mais exótico, mais
erótico que lhe deram em vários anos.
De acordo: que jamais lhe deram.
Inclusive agora suas mãos tremiam, tinha a respiração entrecortada e o
calor de seu rosto não se devia tão só à vergonha. MacLean a fez arder, e se
estivessem a sós, se ele estivesse em condições físicas, ela teria... e bem
olhado, até que ponto precisava estar são um homem para atuar entre os
lençóis? Lady Halifax afirmava que os homens eram capazes de todo tipo de
comportamentos licenciosos independente de sua idade, sua inteligência e seu
vigor.
Enid saudou os presentes com uma inclinação de cabeça e gaguejou:
— Se... senhor Throckmorton! Desculpe-me. Sinto muito. Não os vi.

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— Não precisa se desculpar — murmurou a senhora Brown.


— Não, por favor, senhora MacLean, nos desculpe você. — O senhor
Throckmorton demonstrou sua discrição ao inclinar a cabeça e, sem tão só
uma furtiva piscada, acrescentou: — interrompemos insensatamente uma
reunião aguardada durante longo tempo.
"Não, não é certo — queria dizer Enid. — Não estive esperando MacLean
absolutamente."
Não via nenhuma maneira elegante de sair daquele apuro, e quando ouviu
o som de uma risada indulgente da cama, a suas costas, quis se voltar para
MacLean e lhe dar uma bofetada. Talvez se esqueceu das numerosas
habilidades pugilísticas que ela aprendeu no orfanato... bom, certamente
esqueceu, se era certo que não recordava nada, mas com gosto ela refrescaria
sua memória.
— MacLean. — O senhor Throckmorton se aproximou da cama. Pegou
delicadamente a mão enfraquecida do convalescente e a estreitou. —
Estávamos preocupados.
MacLean não parecia agradado que um homem tão importante
abandonasse todos seus assuntos para atendê-lo. Olhava com frieza ao senhor
Throckmorton, o medindo com a vista antes de lhe outorgar sua confiança.
MacLean tinha um... descaramento... mas isso Enid já descobrira antes.
O senhor Kinman se aproximou então arrastando os pés, um homenzarrão
que parecia um menino muito crescido, e olhou para MacLean com um sorriso
nos lábios.
— Já era hora que despertasse — disse.
Possivelmente MacLean não o recordava, mas tal era o encanto sem
malícia do senhor Kinman, que MacLean lhe devolveu o sorriso.
— Preguiçoso como um cão velho e covarde, assim sou eu.
O senhor Kinman lhe deu um golpezinho cauteloso no ombro.
— Assim é você — disse com voz ressonante e afogada pela emoção.
Enid sentiu um nó no estômago ao constatar a importância de MacLean
para aqueles homens. Durante as últimas semanas ela se concentrou em
MacLean de corpo e alma. Doente, inconsciente, ferido como esteve, fora dela.
Agora estava acordado, falava, ele escutava, olhava a todos os outros. Ela foi
degradada ao papel de cuidadora, o que na realidade era, certamente. Enid
preferia esse papel.
"Pelo menos não beija aos outros", pensou, e em seguida sua mesma
tolice a fez ruborizar.
— Que tal se encontra? — o senhor Throckmorton perguntou a MacLean.
— Como se tivessem me espancado e condenado a passar fome. —
MacLean apontou para a donzela. —É comida o que há nessa bandeja?
— Sim, senhor. — A senhora Brown correu para ele, seguida por Sally. —

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Me deixe lhe pôr outro travesseiro debaixo dos ombros e lhe daremos um
caldinho.
— Caldo! Não quero caldo, quero comida de verdade.
Despertara em toda extensão da palavra.
— A senhora MacLean é quem tem a última palavra quanto ao que
convém a seu estado. — A senhora Brown se voltou cortesmente para Enid. —
O que diz você a isso, senhora MacLean?
— Mm... — Enid fez um esforço mental para desentender de suas emoções
e voltar para a vida prática. —Olhe, agora lhe daremos o caldo, e quando nos
certificarmos que te sente bem, começaremos com mantimentos leves.
O doente gemeu.
— Eu gosto muito dos pêssegos.
— Amanhã — ela prometeu, mas sem o olhar.
Não podia olhar para ele. Presumido, cheio de si. Quando aprendeu a
beijar daquela maneira? E com quem? E por que agora ela tinha ciúmes de
alguma mulher sem rosto quando durante oito anos tudo o que pedira ao
destino era que MacLean permanecesse longe, o mais longe possível dela?
Dispôs-se a ajudar à senhora Brown, que ia erguer ao doente na cama,
mas se viu suplantada pelo senhor Throckmorton e o senhor Kinman, que
ajudou à senhora Brown sem esforço. Enid observou enquanto a mulher
pegava a tigela de caldo da bandeja, e chegou à conclusão de que não a
necessitavam e se alegrou disso.
— Sou Throckmorton — se apresentou, — e este é Kinman, meu braço
direito. Ali, junto à porta, está Harry, encarregado do portão, e esse homem de
braços cruzados é Jackson. O contratei como seu camareiro, para que cuide de
você e de seus objetos de vestir, o barbeie e banhe como deseja.
Um camareiro? Enid olhou para Jackson, que se aproximou da cama e
saudou com uma inclinação de cabeça. Era um homem de estatura e idade
medianas, o cabelo castanho, ligeiramente espadaúdo, com óculos de aros
dourado e as costeletas mais impressionantes que ela jamais vira. Poderia ter
sido inofensivo, salvo por seu ar de superioridade, que tantos camareiros
consideravam uma parte imprescindível de sua natureza.
Um camareiro. Os deveres de Enid desapareciam com rapidez.
A jovem se encaminhou à escada, onde estava Harry.
— MacLean despertou - disse sem necessidade.
— Assim é. — Harry não desviava o olhar da cama. — Se recuperará?
— É muito cedo para saber — replicou ela, vacilante. — Mas sim. Acredito
que sim. Se a pura força de vontade pode obter tal coisa, se recuperará.
— A força de vontade. — Harry parecia cético. — Tanto significa isso?
— É tudo. Cuidei de muitos pacientes, e é sua vontade o que os mantém
com vida além de sua hora. A força de vontade é o que os conduz à

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recuperação. Ou a falta de vontade é o que os leva a um final prematuro.


— De todos os homens que conheci, MacLean é o que sempre teve mais
integridade.
Integridade? Stephen MacLean tinha integridade?
— Nunca o teria reconhecido. — Harry a olhou com seus notáveis olhos
grandes e castanhos. — E você?
Enid se deu conta que não gostava de Harry, nem gostava nem confiava
nele de forma alguma. Aquele homem a olhava com uma intensidade
exagerada. Vestia-se de escuro, era muito alto e tinha a rigidez enroscada de
um cabo de aço. Sua estatura, sua força, tudo que o deveria ter convertido em
um bom guarda-costas, exsudava em troca uma leve baforada de ameaça.
Mas não o conhecia. Certamente, o senhor Kinman confiava nele e, o que
era mais importante, o senhor Throckmorton.
E ela... ela sofrera ultimamente muitas mudanças em sua vida. Dormira
muito pouco e se preocupou em excesso. Deveria recordar... demonstrou ser
um juiz muito deficiente da personalidade. Casou-se com Stephen MacLean.
— MacLean mudou muito — se limitou a dizer.
— Enid! — gritou o doente em tom irritado. — Venha aqui, Enid. Sabe que
estou muito fraco para sustentar essa tigela.
O obedeceu, mas que confessasse tal fraqueza lhe pareceu muito
suspeito. Aproximou-se. Os visitantes que rodeavam a cama se afastaram.
Como se fosse um potentado oriental, se recostou nos travesseiros. Com que
facilidade passou do estado de coma a dominar uma sala cheia de gente! E
estava tratando de estender a ela esse domínio.
Enid avançou mais devagar. Ardia em desejos de lhe desafiar.
Ele a olhou com o cenho franzido, ordenou que o atendesse com o olhar.
Quem acreditava que era?
Seu marido.
Mas não. Ele sabia que a jovem mentira a ele. Dissera que não acreditava
que estivessem casados. Era seu marido, Stephen MacLean, bêbado, jogador,
velhaco, provavelmente cometera perjúrio ao afirmar que não recordava nada.
Stephen MacLean foi sempre o tipo de homem que preferiria dizer uma mentira
quando a verdade viria ao caso. Mas havia algo nele - a breve exibição de
pânico, a fúria irracional - que inclinava Enid a pensar que, pelo menos nessa
questão, dizia a verdade.
Enid pegou a tigela que a senhora Brown estendia e se sentou a seu lado
na cama. Colocou o braço por trás de sua cabeça e aproximou a tigela de seus
lábios. Engoliu o caldo com a mesma avidez com que bebera a água, e deu a
tigela à senhora Brown para que voltasse a enchê-la.
Ergueu a vista para olhá-la, e então a deslizou para o restante das
pessoas.

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— Bom, querida moça, vai me dar uns leves golpes para que arrote?
Os homens riram, aliviados da tensão criada ao ver um dos seus
alimentado como um bebê.
As mulheres trocaram olhadas exasperadas.
Enid pegou a tigela e a sustentou para que MacLean tomasse. Nesta
ocasião ele o fez mais lentamente e com muito mais cautela. O observou como
tinha feito nas últimas semanas, confiando em que lhe sentaria bem, rogando
para que desta vez, quando dormisse, voltasse a despertar. Agora estava
acordado, e ela não podia deixar de vigiá-lo. Não era saudável para um homem
ser o centro da existência dos que o rodeavam, levando em conta que os
homens já tinham umas ideias exageradas sobre sua importância.
O senhor Throckmorton olhou a seus homens.
— Embora já sabem, devo insistir na importância do silêncio. Terão que
evitar que no exterior se conheça a recuperação de MacLean. A data de meu
casamento se aproxima, e a casa Blythe estará cheia de convidados. Um só
engano poderia pôr sua vida em perigo.
Todos os semblantes tinham um aspecto sério. Todas as cabeças
assentiram. Todas exceto a de MacLean, quem olhava ao senhor Throckmorton
com um cínico interesse.
Tampouco Enid assentiu, e uma vez mais se perguntou o motivo que
estendessem semelhante rede protetora sobre a pessoa de seu marido.
— Falarei a sós com MacLean - disse o senhor Throckmorton.
Sally foi a primeira a sair, fazendo uma reverência, e a senhora Brown a
seguiu. Jackson voltou a inclinar a cabeça e então desceu a escada. O senhor
Kinman se encaminhou à porta e se deteve ao lado de Harry, quem
permanecia imóvel, os olhos castanhos fixos em MacLean e logo em Enid,
aquele seu olhar sério e intenso.
A maneira em que os olhava fez que Enid se sentisse incômoda. Deu-se
conta que a cabeça de MacLean repousava em seu braço dobrado, e que esse
gesto devia parecer protetor e... carinhoso.
Tentou retirar o braço.
MacLean pegou sua mão e a sustentou com firmeza.
Ela poderia ter se liberado, porque os músculos atrofiados do
convalescente careciam de força. Mas pelo pouco que sabia daquele MacLean,
não cederia sem lutar primeiro. Uma luta que careceria de dignidade.
O senhor Kinman pôs a mão sobre o ombro de Harry.
— Vamos, homem, temos que beber para celebrar, e logo voltar ao
trabalho. Há muito que fazer nas semanas que faltam para o casamento.
Depois de um último e circunspeto olhar, o porteiro desceu a escada.
Enid tentou se mover para deixar a tigela na mesa e partir, mas MacLean
lhe deu um ligeiro apertão nos dedos e desafiou o senhor Throckmorton com

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seu tom.
— Você não, você é minha mulher.
— Agora sou sua mulher? — zombou Enid. — Que mudança em tão só uma
hora.
— Claro que você é sua esposa — disse o senhor Throckmorton, — e
deveria ficar.
MacLean esfregou a face contra a mão da jovem.
— Aí tem. Uma autoridade o opinou. Somos marido e mulher.
Enid queria lhe dar uma réplica engenhosa, mas ficou em segundo plano
enquanto os dois homens se olhavam receosamente, como se medindo. Sua
concentração, a sensação de poder que emanava de cada um deles,
assombraram Enid. É obvio, o senhor Throckmorton possuía esse infatigável ar
de autoridade, mas também MacLean parecia o ter, e isso era toda uma
novidade para ela.
— Então aqui vai ter um casamento — disse MacLean. — Quem se casa?
— Eu. — O senhor Throckmorton se dirigiu à abertura no chão, fechou a
porta que dava acesso à escada e a sala de baixo.
— Senhora MacLean, queria que você fechasse a porta sempre que estiver
a sós com seu marido.
— Por quê? — perguntaram os dois ao uníssono.
— Com a ocasião de meu casamento virá aqui um grande número de
forasteiros, e me sentiria muito mais tranquilo se soubesse que não os têm
descoberto.
Semelhante resposta não era absolutamente uma resposta, mas antes que
Enid o pudesse interrogar mais, MacLean interveio.
— O felicito por suas núpcias iminentes. Não posso imaginar que tipo de
mulher seria tão tola que se uniria a um filho de puta taciturno como você.
MacLean pareceu surpreso de seu engraçado e amigável comentário.
— Espera até que a veja — replicou o senhor Throckmorton. — Celeste é
formosa, é encantadora. É muito inteligente para seu próprio bem. Então sim
que se perguntará no que está pensando.
— É rico?
O senhor Throckmorton assentiu.
— E se encontra ela em similar circunstância?
— É mais pobre que um camundongo de igreja, mas me ama por mim
mesmo.
Nem um indício de sarcasmo coloriu seu tom; o senhor Throckmorton era
um homem feliz e não lhe importava quem soubesse.
As comissuras da boca de MacLean se inclinaram para baixo.
— Seriamente acredita nisso?
Enid interveio então, consternada.

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— Como pode ser tão grosseiro, MacLean? — o repreendeu.


MacLean pegou a mão, que descansava em seu ombro, e a beijou.
— Temo que sou um tipo grosseiro.
Mas o senhor Throckmorton não parecia ofendido pela insolência de
MacLean. Apoiou os punhos no colchão e se inclinou sobre o doente.
— Embora não acreditasse, não me importaria. Se tivesse que suborná-la
para que se casasse comigo, faria. Faria tudo para ter Celeste.
— Então é um tolo — disse MacLean.
O senhor Throckmorton sorriu.
— Mentiu... sem dúvida como uma salvaguarda. Ainda conserva a
memória.
Enid ficou à expectativa, ofegante. Recordava, em efeito, MacLean?
— Não. — MacLean olhou o outro aos olhos. — Não recordo nada.
A esperança se desvaneceu uma vez mais, e Enid exalou um suspiro.
Fez-se o silêncio no quarto. Não um silêncio como o que os tinha envolvido
na última quinzena, a não ser um silêncio reflexivo. Um silêncio precavido.
Enid observava aos dois homens, se perguntando como o senhor
Throckmorton reagiria à decepção e vendo que MacLean aguardava, na
aparência relaxado.
O dono da casa se endireitou.
— É um homem suspeito — comentou. — Sempre foi. Essa é uma das
qualidades que atraíram primeiro minha atenção.
— Ainda o sou, embora não posso te dizer por que. — MacLean elevou os
olhos para olhar Enid. — Sobretudo quando tomei a uma mulher tão fraca por
esposa.
O olhar do senhor Throckmorton se deslocou de um ao outro.
— É obvio, ela me diz que estávamos separados.
— Eu... sim, em efeito, estavam.
O senhor Throckmorton se afastou uns passos.
— Talvez essa seja a razão de seu cinismo.
MacLean fechou um momento os olhos, como se a excitação o tivesse
fatigado.
Em um tom tão evasivo que chegava à secura, o senhor Throckmorton
replicou:
— Tive que trazer aqui à senhora MacLean com a esperança de que
reviveria para ela.
— E assim foi. Foi sua doce voz o que me guiou de retorno à consciência.
— O fino rosto de MacLean se enrugou ao sorrir à mulher, um sorriso cortante
como uma faca. — Mas não me devolveu a memória.
O senhor Throckmorton retornou ao pé da cama e agarrou o corrimão.
— Vou te dizer a verdade, MacLean. Não posso eliminar a suspeita de que

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recorda tudo, mas temo que posso ter te traído. Não obstante, se tivesse algo a
ver com a explosão, agora estaria morto.
Encontra-se em minhas terras; não teria sido nenhum problema acabar
com sua vida.
— Posso ter uma informação que precisa - disse MacLean sem rodeios.
— Assim é.
A tensão que havia entre eles inquietou Enid.
— Acreditamos... — disse o senhor Throckmorton — confiamos em que
tem certo conhecimento de quem pôs a bomba, matou a nosso homem e o
feriu. Se não tivesse querido que essa informação se soubesse, poderia ter
feito que o matassem. E agora que sabe isto, devo te perguntar de novo... é
certo que não recorda nada?
Enid reteve o fôlego.
— Nada — sussurrou o doente, como se estivesse triste, e fechou as
pálpebras. — Não recordo nada.
— Muito bem — disse o senhor Throckmorton. — Acredito em você. Não
tenho alternativa.
— Onde...? — MacLean pareceu se esforçar por permanecer acordado. —
Onde estão minhas coisas?
Enid se sobressaltou.
— Suas coisas?
— Devo ter alguns pertences. Se pudesse ver, tocar e cheirar os objetos
de meu passado, talvez pudesse recordar...
— Saiu da explosão tão só com a saia escocesa3 e a bolsa.
— Minha bolsa. Quero minha bolsa. — Com tanta rapidez como MacLean
despertou, desabou agora sobre os travesseiros.
Presa do pânico, Enid se inclinou sobre seu rosto. Aplicou os dedos no
pulso do pescoço e comprovou que os batimentos do coração eram fortes.
Aliviada, respondeu à pergunta tácita do senhor Throckmorton.
— Está bem, só exausto.
— Voltará a despertar?
— Quando se trata da saúde humana, não se pode afirmar nada de um
modo terminante... mas sim, acredito que sim.
O dono da casa suspirou. Encaminhou-se à janela e contemplou o jardim.
— Quanto durará esta perda de memória?
— Não sei. Careço de experiência nos enigmas da mente. — Deixou a
tigela sobre a bandeja e observou que seu marido tremia. — Ouvi pacientes
dizer que não recordavam nada, mas sempre me pareceu uma tolice, uma
3
É preciso explicar que, sempre ouve implicância dos ingleses com essa vestimenta dos
homens escoceses. Tanto que, foi proibido o uso após o último levante, o de 1745, como é
citado no livro. Então quando um inglês se refere ao traje, ele diz “saia escocesa”, mas quando
é um escocês falando, ele fala corretamente “kilt”. Explicação do Matias.

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história forjada pela culpa ou a loucura.


O senhor Throckmorton se voltou para ela.
— MacLean não tem nenhum motivo para se sentir culpado — disse em
um tom de irritação.
— Confio em que não.
Em qualquer caso, não teria nenhuma razão recente.
— E não está louco.
— Céus, não! — Enid sacudiu a cabeça com um pouco mais de calma. —
Não, não o está.
— De acordo, — o senhor Throckmorton pegou suas mãos. — O alimente,
faça que se sinta melhor. Quando seu corpo esteja são, sua mente; também
sanará.
— Isso espero — replicou ela, embora gostava mais daquele marido
debilitado que o fisicamente íntegro que teve antes. — Assim acredito.
— Enviarei à senhora Brown. — O senhor Throckmorton se encaminhou a
porta e a abriu. — Fecha isto atrás de mim e só abra a quem conhece.
Enid o olhou com fixidez, e então se apressou a obedecer. O grosso
ferrolho deslizou em seu lugar com um estalo. O atoleiro em que Enid se
encontrava era mais profundo e mais perigoso a cada momento que passava, e
temia que a engolisse. Temia inclusive mais, em face às seguranças que o
senhor Throckmorton lhe dera, MacLean poderia correr perigo, e ela conhecia a
si mesma muito bem. Enquanto estivesse indefeso, ela faria o que fosse,
inclusive arriscar sua vida, por lhe salvar.
Disse a si mesma que com toda segurança faria o mesmo por qualquer
paciente. Claro que sim; não havia nada em MacLean e aquele beijo que
pudesse eliminar o remorso de oito anos de pobreza e dívidas.
— Qual é sua impressão de Throckmorton?
Ao ouvir o som áspero da voz de MacLean, o coração de Enid se acelerou.
Voltou-se para ele e viu como se esforçava por manter os olhos abertos, como
sua pele tinha se descolorido até adquirir a tonalidade do pergaminho, como
permanecia acordado só graças ao exercício da vontade.
— Precisa dormir — disse. — Não está em condições de fazer estes
esforços.
— O que pensa de Throckmorton?
Fraco como um cordeiro novo, teimoso como uma mula MacLean não
deixaria de lhe perguntar até que desse sua opinião, assim que o fez.
— Eu gosto.
MacLean soltou uma risada entrecortada.
— Mas está dizendo a verdade?
— Sim. Quero dizer que assim acredito. Não me deu nenhum motivo para
pensar de outra maneira. — Se aproximou ao lado de MacLean, elevou sua

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cabeça e lhe deu outro gole de água. — Tem razão. Poderia ter feito que o
matassem a qualquer momento.
— Se tiver descoberto uma informação que ele quer, e a informação existe
somente dentro de minha mente, então Throckmorton desejará me manter
com vida até que lhe dê essa informação.
Quando a tiver, poderá me matar.
— Certo. — Ela não pensou nisso. — Nunca me destaquei por minha
lógica.
— Para isso me tem. — MacLean fechou as pálpebras e sua voz se fez
indistinta. — Talvez Throckmorton não seja um aliado. Muito bem poderia ser
meu verdugo.
— Então é certo que não o recorda.
Ele sacudiu a cabeça, sorridente.
Entretanto, Enid começava a compreender o labirinto de desconfiança e
ceticismo pelo que os dois erravam.
— Mas trabalho para o senhor Throckmorton, e não recorda que sou sua
esposa.
— Não tem uma lógica tão má, depois de tudo. — Lhe dirigiu aquele
sorriso cruel, cortante. — Você também poderia ser meu verdugo. — suas
pálpebras fecharam. — E não posso fazer absolutamente nada a respeito. —
Adormeceu.
Ela permaneceu ali, o olhando. O inchaço da cara baixara, deixando a
áspera estrutura óssea sem o acolchoado de carne sã que a suavizaria. A pele
tinha cortes e cicatrizes, o fino nariz se tornou farpado por causa da fratura,
tinha uma barba espessa, loira e castanho avermelhado com alguns fios cinza.
Seus lábios... no princípio da estadia de Enid na casa os tinha gretados por
causa da febre. Ela lhes aplicou unguento e lhes devolveu a suavidade, embora
estivessem pálidos. Não ia chegar tão longe como imaginar outro beijo, mas a
forma daqueles lábios, sua textura aveludada, a maneira em que podiam lhe
roçar o pescoço, o seio, o... bem, sua textura aveludada procurou prazer.
Ainda não reconhecia Stephen MacLean, mas com o passar dos dias,
concentrada exclusivamente no homem que jazia na cama, as velhas
lembranças se desvaneceram. Nunca voltaria a se parecer ao homem com
quem se casou, mas talvez isso fosse bom, pois ele dava todos os indícios de
querer... coisas que ela não estava preparada para lhe dar.
A beijou. Mais importante ainda, ela devolveu o beijo. O êxito daquele
beijo se devia a que MacLean a pegou despreparada. Sim, era isso. A pegou de
surpresa, e sua resposta foi mais uma reação aos anos de abstinência que uma
autêntica paixão. Precisava recordar quem era ele, o que fez, a ela e também a
outras pessoas. A Stephen MacLean nunca interessou dizer a verdade ou
permitir a outros que retivessem o que era dele. Brigaram por isso, e em

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muitas ocasiões ele zombou dela, lhe disse que era uma órfã que não
compreendia a maneira de viver de quem era melhor que ela.
Quando aquele homem recuperasse a memória, voltaria a ter sua
irresponsável personalidade anterior. Ela sabia. Nenhum homem mudava como
MacLean o fez. Ela precisava recordar isso por que... porque se seguisse sendo
o homem que foi durante aquela breve hora, poderia se apaixonar por ele.
Já sofreu uma vez por causa do amor, e as consequências quase a fizeram
se ajoelhar. A ideia de voltar a cair na mesma armadilha a assustava como não
lhe ocorrera em oito longos anos. Fixou o olhar no homem inconsciente,
separou os dedos entrelaçados com os dele e se separou da cama.
Acossado em seu sonho por terrores, ele estremeceu e exalou um gemido.
Abriu os olhos e olhou freneticamente a seu redor. Ao ver Enid, suspirou.
— Fica comigo.
Ela percebeu a corrente subterrânea de desespero em sua voz. Não queria
sentir lástima dele. Não queria fazer promessas.
MacLean tentou se erguer sobre os cotovelos.
— Fica — insistiu.
— Estarei aqui quando despertar.
Ele estendeu a mão.
Incapaz de resistir, ela voltou.
MacLean agarrou seus dedos.
Sem dúvida não havia nenhum mal em lhe prometer algo tão simples.
— Não partirei.
Tranquilizado por essa segurança, ele dormiu. Desta vez dormiu
seriamente, mas inclusive em seu torpor se agarrava a ela.
Enid exalou um suspiro e com o pé aproximou a cadeira de respaldo reto
para se sentar.
— Quero que entenda uma coisa — disse ao homem dormido. — Não te
prometo que irei ficar para sempre.

Capítulo 7

MacLean abriu os olhos na sala iluminada pela luz das velas.


Imediatamente soube onde se encontrava. Em um sótão em Suffolk, seu corpo
esmigalhado por uma explosão, a mente vazia e imóvel e a mulher que dizia
ser sua esposa perto dele como um espírito inquieto.
— O que acontece, mulher? — ele perguntou bruscamente.
Enid se ergueu, as costas doloridas pela má postura, e deu um longo e
lento passo para ele.
— Dormiu muito, dez horas desde esta manhã. Temíamos que não voltasse
a despertar.

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— Não terá essa sorte outra vez. — Doía-lhe a perna e o traseiro, e


apalpou a seu redor em busca de outro travesseiro para colocar sob os ombros.
Enid se apressou a lhe ajudar.
— É um homem mais agradável quando está inconsciente.
A aldeã que viu antes, a senhora Brown, estava ao pé da cama, e deu a
opinião que ninguém pediu.
— Isso acontece com a maioria dos homens, e também aos bebês.
O sorriso de Enid foi tão repentino como a faísca produzida pela
pederneira.
— Suponho que é uma lição que devemos aprender.
Embora ele quisesse beliscá-la por sua insolência, o encantava tanto a
covinha de seu queixo, o timbre de sua voz, o brilho de seus dentes que não
podia fazer mais que olhá-la fixamente. Era certo, quando ela era feliz tudo que
a rodeava fazia eco de seu júbilo. Não lhe sorriu até então. Nenhuma só vez.
Nunca.
Não era possível que a tivesse esquecido.
Maldição! Seu nome, seu lar, seus pais, seus familiares. O que aquela
explosão fez a ele? Esqueceu-se de tudo. Afligido por um lúcido desespero,
levou-se as mãos à testa.
Enid as afastou brandamente e olhou aos olhos.
— Dói a cabeça?
Não o olhava com um interesse romântico; examinava suas pupilas,
tratando de ver se eram normais. Sua esposa. Ela afirmara que era sua esposa,
mas como se transformou sua esposa naquela mulher de frios olhos azuis e voz
firme? Dizia que estavam separados. Acaso não tinha ela doces lembranças do
tempo em que viveram juntos?
A senhora Brown lhe ofereceu uma tigela fumegante, com um forte aroma
de salsinha e carne.
A boca de MacLean se encheu de água, e estendeu a mão.
Enid segurou a tigela para maior segurança.
Ele engoliu o líquido com tal rapidez que lhe queimou a língua. O caldo
estava salgado e suculento.
— Dói sua cabeça? — Enid voltou a perguntar.
Ele olhou à senhora Brown. A mulher estava do outro lado do quarto,
dobrando roupa branca na mesa, muito afastada para ouvi-lo, por isso ele
admitiu em voz baixa:
— Mais que uma dor de cabeça. Não sei quem sou.
Então amaldiçoou a si mesmo por mostrar a Enid sua fraqueza. As
mulheres desprezavam a um homem fraco.
Mas Enid não reagiu com desprezo, e lhe respondeu também em voz
baixa.

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— Cuidarei de você até que saiba quem é.


Ainda vestia o vestido verde escuro, um pouco mais enrugado que antes,
arregaçado até os cotovelos. A luz das velas a acariciava, mas tinha olheiras de
fadiga e da rede para cabelo que lhe continha o cabelo escapavam mechas
dispersas. Pegou a sua mão.
— E depois também.
— Se me quiser. — Seu tom deixou claro que duvidava.
De novo uma lembrança deslizou fora da espessa névoa que envolvia sua
mente. Enid inclinada por cima dele, a bata jogada sobre os ombros, a luz
dourada das velas resplandecia nas curvas superiores de seus seios.
Por que ele não podia recordar o que aconteceu depois? Só esse farrapo
de cor bastava para despertar o seu membro viril, e ele necessitava recordar
tudo a respeito dela, necessitava mais que recordar todo o resto de sua vida.
Queria lhe beijar os dedos, deslizar um braço ao redor de sua cintura, levá-
la a algum lugar privado e lhe fazer o amor até que aquela tensa expressão de
inquietação e domínio de si mesmo declinasse para converter-se em tenra
paixão.
Ele queria fazer tudo isso, mas contemplava suas mãos entrelaçadas e a
diferença entre as suas e as dela lhe estremecia. Enid tinha uns dedos fortes,
as unhas curtas, a pele rosada e sã. As mãos de MacLean eram esqueléticas,
pelancudas, as mãos de um inválido. Carecia da força necessária para possuí-
la, mas o mais importante era que nenhuma mulher o aceitaria em semelhante
estado.
Um pensamento cruzou por sua mente e o pânico escapou bruscamente
de entre os barrotes de sua prisão.
— Que idade tenho?
— Me deixe pensar. — Ela enrugou a testa e contou com os dedos. — Tem
trinta e cinco anos.
Ele se sentiu aliviado.
— Então não sou velho.
— Absolutamente.
— Tão teimoso como o demônio — manifestou a senhora Brown.
Sorriu-lhe.
— Reconhece a seu senhor?
A mulher seguiu com sua tarefa, de modo algum ofendida.
— Ah, que malicioso é você, senhor MacLean.
Enid lhe levou um espelho de mão.
No princípio as cicatrizes o impressionaram.
— Pareço o monstro de Frankenstein.
Não lhe respondeu.
— Leu Frankenstein?

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— Sim.
— Quem o escreveu?
— Mary Shelley. — Ele compreendia agora Enid, e lhe disse: — Desconheço
por que sei esse dado, mas o certo é que sei. Posso citar versículos da Bíblia as
centenas, e recitar todo o solilóquio de Hamlet. — Fez um gesto imponente e
acrescentou: — "Ser ou não ser, eis a questão; se é mais nobre sofrer no ânimo
os tiros e flechadas da insultante Fortuna, ou se erguer em armas contra
muitas agitações...".
— "E se enfrentando com elas" — o interrompeu Enid. — Acredito em você
quando diz que recorda Hamlet.
— Posso te dizer como apanhar um coelho— prosseguiu ele — e tratá-lo
para o assado, e como fazer pelo menos uma dúzia de nós. Mas não recordo
quem sou, e isso é o que quero saber.
— De acordo.
Ele não acreditava que ela tivesse aceito sua explicação, e lhe exigiu em
silêncio que o fizesse.
— De acordo! — Enid abriu os braços, as mãos estendidas. — Não
compreendo como isto funciona, admito. Concederá-me que tenha momentos
de dúvida.
— Pode duvidar do que queira, mas não de mim. Aqui sou o único homem
que está te dizendo a verdade.
— Como sabe isso?
— Por instinto. — Que ela interpretasse esta resposta como melhor lhe
parecesse.
Ergueu de novo o espelho e tocou ligeiramente as cicatrizes com as
pontas dos dedos. Aquilo explicava por que notava a face rígida e dolorida
quando falava. Alargou os olhos, flexionou a mandíbula, inclinou a cabeça. O
homem refletido no espelho fazia também os movimentos, mas não o
reconhecia. Aquela justaposição de linhas muito marcadas, cicatrizes pálidas e
barba escura parecia totalmente alheio a ele.
Não obstante, Enid não parecia encontrar nada fora do comum em seus
traços.
— Se reconhece?
— Absolutamente.
— Você é um homem na flor da vida — comentou a senhora Brown
enquanto ia de um lado a outro da sala, recolhendo as roupas de cama.
— Se tiver que limpar um traseiro, se alegra que seja o meu, não é certo?
— brincou ele.
Enid sufocou um grito.
— MacLean!
Mas a senhora Brown soltou uma gargalhada.

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— Estou ficando velha, senhor, mas tenho boa vista e o que vejo nessas
ocasiões é do mais agradável.
— Senhora Brown!
Enid parecia inclusive mais escandalizada pela criada que pelo próprio
MacLean.
O senhor MacLean e a senhora Brown trocaram sorrisos.
Deu o espelho a Enid.
— Por um momento me perguntei se esbanjara a vida dormindo.
— Seria mais apropriado de você que a tivesse esbanjado no jogo.
Ele franziu o cenho. Não a compreendia.
— Eu não jogo.
— É um vício que tem.
Tampouco compreendia esta última afirmação. Sabia que existiam as
cartas, sabia de homens que passavam dias e noites em salas cheias de
fumaça apostando seus pagamentos a um só arremesso de jogo de dados, mas
ele não era assim. Levava a mal a insinuação de que ele era um fracote como...
o pensamento se esfumou quase com a mesma rapidez com que surgira. Como
quem? Alguém cujo rosto via, cheio de agitação até resultar grosseiro
enquanto apostava tudo por uma ilusão.
A emoção de MacLean remeteu antes que tivesse oportunidade de
desenvolver a cena. Os rostos desfilavam por sua mente em um contexto que
não se diferenciava do de um sonho, e até que pudesse resgatar as
lembranças das profundidades se veria impossibilitado de entendê-los.
Impossibilitado... estava impossibilitado, por todos os diabos! Estendeu a
tigela.
— Quero mais caldo — pediu, — e desta vez que contenha verdadeiro
alimento.
Ela imitou sua voz profunda.
— Por favor, Enid, poderia me dar um pouco mais de caldo?
— Se não lhe rogar isso, seguirá me matando de fome?
— Não quero que me rogue, só quero que me trate com um mínimo de
cortesia. Mas me esqueci! — Estalou os dedos. — Não mostra ter maneiras a
menos que o esforço o beneficie.
O mau era que ele se inclinava a acreditar que Enid estava certa. Dar
ordens lhe parecia correto, o mesmo que revelar impaciência. Palavras como
"por favor" e "obrigado" lhe pareciam estranhas, alheias a seu vocabulário.
— Por favor, Enid — disse em um tom de absoluta irritação. — Quer me
dar um pouco mais de caldo?
Ela pegou a tigela.
— Será um prazer para mim te dar mais caldo.
— E desta vez acrescente algum alimento sólido.

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A chama que era Enid ardia vibrante e incansável, mas contida por sua
força de vontade, e seu sorriso refletia altivez. Jogou garbosamente a cabeça
atrás e de novo umas mechas frisadas e errantes se sobressaíram da rede para
cabelo e lhe caíram sobre os ombros. A saia lhe rangia enquanto descia a
escada.
Ele a olhou até que a última mecha de cabelo desapareceu de sua vista.
— Aonde vai? — perguntou à senhora Brown.
— Abaixo temos um fogão com alguém sempre preparado para cozinhar,
se por acaso você deseja algo. — Se aproximou ao lado da cama, os braços
cheios de roupa branca, o semblante simples, amável, enrugado pelo sorriso.
— O senhor Throckmorton se incomodou muito por você.
— Não me cabe dúvida. Também há guardiães abaixo?
— Noite e dia. Muitos incômodos, certamente.
— Considera que sou digno de que se incomode tanto.
— Mas que arrogante chega a ser você. — O olhou até que teve a
sensação que podia ver através de sua pele. — Não está morto de medo,
senhor?
Ele estremeceu, e o movimento lhe produziu uma sensação dolorosa em
todo o corpo.
— O que quer dizer?
— Todo mundo se pergunta se você está fingindo com isso de que não
recorda nada. Sei que não é assim, porque nesse caso não gritaria e se
mostraria desagradável para ocultar seu terror.
— Não estou apavorado.
Não estava!
— Claro que não. Criei a uma dúzia de filhos, e algo sei dos homens. —
Deixou um amontoamento de toalhas sobre a mesa que estava ao lado da
cama. — Para seu banho dessa manhã.
— Não vou me banhar.
— Já falamos sobre isso, a senhora MacLean e eu, e vamos lava-lo com
uma esponja, tal como nós o fazemos a cada dois dias.
— Um caralho que farão isso.
Negava-se a mostrar a ninguém seu corpo branco e enfraquecido, e
certamente não o mostraria a uma mulher que certa vez o lisonjeara por sua
força e sua masculinidade. Lisonjeara-lhe o suficiente para se casar com ele, se
a acreditava.
O sorriso da senhora Brown se alargou.
— Vê? Aí o tem. Está tão apavorado que salta por qualquer coisinha.
— Não é nenhuma coisinha —replicou ele com os dentes apertados.
— A questão é que tenho um grande afeto à senhora MacLean. Observei
como o fazia voltar da beira da morte, lhe falar quando me parecia louca por

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fazer tal coisa, a vi dar a volta a seu corpinho inerte para que não lhe saíssem
úlceras de decúbito, quando é uma mulher frágil que não deveria levantar nem
sequer sua xícara de chá. — A senhora Brown apoiou as mãos em seus largos
quadris. — Agora compreendo que você é um homem com seus temores, como
compreendo que é um homem acostumado a mandar, mas quando ouço como
é tão desagradável com a senhora MacLean, penso que deveria explicar a ela
quão assustado está, para ela não se ofender.
Ele olhava com fixidez à mulher, e via a robustez sob a amabilidade. O
ameaçava de contar a Enid que, por debaixo de suas maneiras ásperas, havia
um menino assustado. Enid seria amável com ele, certamente, mas ele sabia
que a capa de sua cortesia ocultaria a condescendência que todas as mulheres
sentem pelos homens fracos.
Mas ele não era débil. Não o assustava a grande brecha aberta em sua
mente nem tampouco a possibilidade de não voltar a encontrar jamais a si
mesmo. Isso não era certo... mas não importava.
A senhora Brown diria que o era e o rechaço de MacLean chegaria a
ouvidos surdos.
— É obvio, só sou uma criada, e o que devo fazer é manter a boca
fechada. — O rosto da senhora Brown perdeu por completo sua amabilidade e
brilhou com uma determinação demoníaca.
— E não diria nem um pio se você tivesse a consideração de ser um pouco
mais cortês com nossa querida senhora MacLean.
Um trato. A senhora Brown lhe estava oferecendo um trato! E viu uma
maneira de aumentar a aposta.
— Você me liberará de tomar o banho.
— É que cheira.
— As mulheres são muito suscetíveis a respeito da limpeza.
— Não tomou um banho de verdade pelo menos em sete semanas. As
vacas do estábulo se queixaram do fedor.
— Não vou permitir que ela me banhe — replicou ele com uma enunciação
lenta e precisa.
— Ah, então põe obstáculos a que seja ela. —A mulher assentiu. — Não
quer que o banhe. Bom, posso arrumar isso.
A senhora Brown se separou da cama antes que ele pudesse dizer algo
mais, e então MacLean ouviu os passos de Enid na escada. Quando entrou na
sala, a criada estava no outro extremo, limpando a mesa.
Enid sustentava uma tigela e, sob o braço, um pacote envolto em papel
marrom. Aproximou-se dele e lhe ofereceu a tigela. Ele a olhou como se fosse
uma beberagem com poderes sobrenaturais.
— Basta de caldo.
— Espessado com papa — assegurou Enid.

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Excelente! Naqueles momentos, umas papa eram para ele como o maná
celestial.
Enid deixou que ele segurasse a tigela, equilibrando-a como se fosse um
menino que poderia se sujar. E ele admitiu que tal coisa seria possível, pois
suas mãos tremiam de fraqueza e queria engolir tudo de uma vez.
Ela não permitia. Depois de cada gole lhe retirava a tigela e lhe dava
água.
Seu estômago se encheu com rapidez, Não podia acreditar que meia tigela
de caldo e umas papas leves bastassem para satisfazê-lo.
Enid o compreendeu sem dizer uma só palavra. A senhora Brown
permanecia ao fundo, os observando com uma inquietação que desmentia sua
brutalidade anterior. Enid lhe deu a tigela.
— Não leve isso muito longe.
— Logo quererá mais — disse a senhora Brown ao paciente. — Seu
estômago encolheu, e essas papas são mais do que tomou em várias semanas.
Ele voltou a olhar as mãos. Estendeu os braços para frente, logo a um lado
e finalmente atrás até uni-los. Os músculos tremiam por causa do esforço, mas
seria possível adestrá-los para que se rendessem de novo a sua vontade. Em
troca, do outro aspecto de sua situação não sabia nada, não tinha a menor
ideia de como evoluiria sua mente.
— As minhas lembranças voltarão?
— Quando tiver recuperado as forças— assegurou Enid.
— É isso o que diz o doutor?
— Despedi o doutor.
— Então sabe do que está falando.
— Não.
Ele ficou olhando fixamente. Precisava ser uma mulher muito audaz para
acreditar que estava melhor informada que um profissional da medicina.
Entretanto, ele conheceu alguns médicos - embora não recordasse
detalhes concretos de nenhum deles - e foram uns tolos, e arrogantes além
disso. Preferia pôr sua vida nas esbeltas mãos de Enid que nas daqueles
idiotas.
— De acordo — se limitou a dizer.
Enid se tranquilizou, e ele se deu conta que esteve esperando que
destrambelhasse contra ela. A jovem lhe estendeu o pacote.
— O senhor Throckmorton envia isto.
Enid teve que cortar a corda que o atava, mas quando abriu o pacote de
papel marrom, ele não reconheceu os restos chamuscados do kilt escocês. As
cores dos quadros eram vermelhas, um verde tão escuro que era quase negro
e um fio amarelo. A pele da bolsa estava queimada e o fechamento de couro
tão deteriorado que era impossível abri-lo, mas aquela era sua bolsa, embora

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ele não sabia por que tinha essa certeza.


Enid pegou as toalhas da mesa que estava junto à cama e as sacudiu ante
sua cara.
— Vamos te banhar.
Ele dirigiu um olhar à senhora Brown, a qual assentiu. MacLean envolveu
os restos de seu passado com o papel marrom e deixou o pacote na mesinha
de noite.
— Não vou me despir diante de você, moça.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Não vejo nenhum motivo que justifique essa atitude.
— Não é nenhum folguedo, e não vai me banhar.
— Não sou nenhum folguedo? Pelo menos sei quando tenho mau cheiro.
MacLean se sentia sujo, e desde que a senhora Brown o mencionou,
notava que despedia certo aroma, mas não estava disposto a admitir.
— É um bom aroma varonil.
— Se os homens cheirarem como algo tirado de um montão de lixo — Enid
se apressou a replicar. — Talvez não cheire a você mesmo, mas, me diga a
verdade — seu tom tinha um toque persuasivo, — não nota sua pele áspera?
Não ia permitir que uma moça o dirigisse como se fosse um pedaço de
carne. E muito menos se a mulher era Enid, quem já se mostrou capaz de lhe
provocar um ofegante estímulo tão só com um beijo. Enid, que dizia ser sua
esposa, de quem suspeitava que mentia enquanto confiava que lhe dissesse a
verdade para que algum dia tivesse direito de se deitar com ela.
— Uma ligeira lavagem não servirá de nada — disse astutamente. — Se
for me pôr em uma situação perigosa, então me banhe seriamente em uma
banheira.
— Não podemos. Não está em condições de caminhar. Emagreceu, mas de
todos os modos pesa muito para que nós o erguemos, e para ir até a banheira
teríamos que te levar nos braços.
— Pois pede aos homens que me levem. Esse Kinman e o tal Harry, e
Jackson, o camareiro que o senhor Throckmorton contratou para mim.
— Te mover assim faria mal, seria prejudicial para a perna.
Mas ela já estava cedendo, o qual indicava a MacLean quão mau
realmente devia cheirar.
— A senhora Brown pode fiscalizá-los — propôs, — lhes dizer que façam o
que ela lhes diga.
Enid titubeava; era evidente que se sentia tentada.
— O senhor tem razão, senhorita Enid — interveio a senhora Brown,
aproveitando a circunstância que ele a tinha renomado. — Podemos usar a
banheira que o senhor Throckmorton tem em seu dormitório, tão grande que o
senhor MacLean quase pode se estirar nela. As donzelas porão água para

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ferver, os homens a subirão e eu me ocuparei de que o senhor MacLean não


sofra o menor dano.
— Bom... — Enid mordeu o lábio e olhou com fixidez ao convalescente.
— O faremos amanhã, aproveitando o calor da primeira hora da tarde. — A
senhora Brown pegou as toalhas que Enid sustentava.
— Não se fala mais. — Tudo saiu tal como ele se propôs, e sorriu para Enid,
seguro de que ela se alegrava da decisão que ele tomara. — Tudo arrumado.
Não lhe devolveu o sorriso. O olhando aos olhos, perguntou:
— Por que a senhora Brown? Por que não eu?
MacLean trocou um olhar exasperado com a senhora Brown.
— Porque não me assustará com nada... — respondeu a senhora Brown.
— Pelo amor de Deus! Não é como se eu... — Enid mordeu o lábio.
— Não é como se você... o que?
"Não era como se não o tivesse visto nu antes."
Ele quase podia ouvir suas palavras carregadas de condescendência, mas
ela não terminou a frase e ele detectou um leve rubor em suas faces. Era
provável que Enid tivesse visto seus atributos viris durante seu casamento,
mas disso fazia anos. E também era possível que os tivesse visto enquanto ele
estava inconsciente, mas inclusive uma moça tão estrita como Enid devia se
dar conta que haveria uma enorme diferença, e dava a "enorme" um sentido
literal, entre ambas as circunstâncias.
— Nem sequer pode sustentar uma tigela. Quem vai sustentar sua cunha
para que faça suas necessidades? — perguntou ela com tal presunção que ele
sentiu desejo de estrangulá-la.
— Mijarei no chão — replicou ele bruscamente.
Rindo entre dentes, a senhora Brown interrompeu a discussão.
— Só tem que gritar, senhor, e alguém irá em sua ajuda.
Enid deixou de olhar para MacLean para dirigir um olhar furioso à senhora
Brown. Esta a encaixou de bom humor, e quando ele já se acreditava vitorioso,
Enid se vingou.
Tocou com o cotovelo à senhora Brown, como se ele não estivesse
presente.
— Como não vamos banhá-lo, faremos que se exercite.
MacLean, que começou a relaxar, se irritou de novo.
— Dá a impressão que sou um cavalo— replicou. — O que quer dizer isso
de que vai me exercitar?
Pegou sua mão e fez girar o primeiro pulso a um lado e logo ao outro.
A senhora Brown fez o mesmo com a outra mão.
Ele não podia separar as mãos que lhe agarraram, e sabia que tentar seria
uma besteira. Compreendeu que lhe faziam aquilo para que seus membros não
atrofiassem; inclusive apreciava os cuidados que prodigalizaram a um homem

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inconsciente. Mas como detestava aquela fraqueza! Ser empurrado, sacudido,


movido daqui para lá, ser incapaz de se mover por si mesmo?
Como um espectador, observou às mulheres que elevavam seus braços
por cima da cabeça com um ritmo lento. Os músculos estirados lhe doíam. Sua
impotência atendia suas vísceras, e embora as duas mulheres faziam o esforço
por ele, faltava-lhe o fôlego.
— Lhe demos um pouco de água — disse Enid.
— Sim, lhe demos — replicou ele com sarcasmo.
Elas o olharam como se as surpreendesse o ouvir falar, e ele se jurou que
aquilo não voltaria a ocorrer. A partir do dia seguinte, ele mesmo faria os
exercícios e iria até o limite de sua resistência. Deixaria de se preocupar pelo
estado de sua mente e se concentraria no funcionamento de seu corpo até que
cada articulação e cada músculo se movesse com a força e a destreza do aço
bem lubrificado.
Aceitou a água com semblante carrancudo, bebeu e observou como as
duas mulheres exercitavam a parte inferior de seu corpo. Depois de lhe pôr o
lençol sobre os quadris e elevar suas pernas, primeiro moveram seu tornozelo
acima e abaixo e logo dobraram sua perna, levando o joelho para o estômago.
Enid sustentava a perna fraturada, movia-a com lentidão e perseverança, mas
a dor era tão intensa que ele entrecerrava os olhos e o suor se deslizava por
seu corpo.
— Poderei me apoiar nessa perna? — perguntou quando elas terminaram.
— Claro que sim! — A pergunta pareceu surpreender Enid. — A menos que
haja algum dano que não está à vista, poderá se apoiar nela e caminhar.
Ele enxugou o suor da testa com a toalha que lhe oferecia, e observou
como o limpavam com panos umedecidos e o secavam por partes. Também
queria pôr obstáculos a essa operação, mas salvo a perna fraturada, que lhe
doía seriamente, seus músculos experimentavam uma fadiga prazerosa, e
descobriu que era agradável a atenção que recebia.
— Farei que cumpra sua promessa, moça.
— Sim, faça-o. — Enid alisou o cobertor em cima dele. — Faça-o.

Capítulo 8

Enid estava sozinha, sentada na cadeira de balanço, escutando os


rangidos das pranchas do chão enquanto se balançava e fingindo ler um
exemplar muito manuseado da abadia de Northanger. O sol do entardecer
esquentava o sótão, a brisa penetrava pelas janelas abertas e, pela primeira
vez em um mês e meio - não, em oito anos - dispunha de tempo livre e não
sabia no que empregá-lo.
Seu olhar posou na cama onde MacLean estava deitado. O banho o

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extenuou, mas não o prejudicou. O senhor Throckmorton ordenou o


procedimento, e tudo saiu de acordo com o planejado. A senhora Brown se
ocupou da supervisão. Harry, o senhor Kinman e Jackson o levaram a banheira.
MacLean permaneceu submerso na água quente enquanto um exército de
criados retiravam as roupas de sua cama, esfregavam o chão e inclusive
trocavam o colchão por um novo cheio de plumas.
Agora, enquanto a luz do dia acariciava as pranchas polidas e permanecia
um longo momento na sala, iluminando todos os cantos, e a senhora Brown se
foi de visita, o sótão já não cheirava como um quarto de doente e MacLean
estava perdido no sono dos inocentes.
Fizeram tudo sem a ajuda de Enid. Esta não interviera em nada. Passeara
pelo jardim, gozara do sol, aspirara o perfume das flores... de vez em quando
olhava para a janela e retorcia as mãos, esperando que a chamassem...
Quão estranho era se sentir traída pelo fato de que o homem ao que
cuidou durante um mês e meio se recuperou o suficiente para poder prescindir
dela durante uma hora.
Tinha muito melhor aspecto. Suas faces já se encheram e os olhos não
estavam afundados nas órbitas. O cabelo loiro avermelhado brilhava, recém
lavado, e as feridas da cara se curaram, deixando umas cicatrizes pálidas.
Jackson recortara a barba até reduzi-la ao mínimo, e agora podia ver a
protuberante e quadrada mandíbula que dava a seu rosto a determinação de
um bulldog. As maçãs do rosto se revelaram muito altas e o pobre nariz
quebrado tinha um avultamento que lhe dava o aspecto de um valentão
desumano. Talvez quando o barbeassem e cortassem o cabelo se pareceria
com Stephen MacLean, e então deixaria de ser para ela um desconhecido que
fazia seu coração pulsar com mais força.
Sorriu enquanto olhava as mãos. Em qualquer caso, ele fazia seu coração
pulsar com mais força quando estava dormindo. Ao despertar, seguia sendo
um bruto arrogante e desagradável.
Pensou que devia sentir a confusão que experimenta uma mãe quando
seu doce e feliz bebê dá seus primeiros passos e diz sua primeira palavra... e
essa palavra é: Não!
Um gemido procedente da cama a fez erguer a cabeça.
MacLean se estirou com lentidão e cuidado, ao mesmo tempo em que a
olhava.
— Que sorriso tão inquietante—- lhe disse.
Ela apertou o livro entre suas mãos. Quando MacLean estava acordado, o
sangue corria tumultuoso por suas veias, doía-lhe respirar e temia as coisas
ferinas que lhe diria. Temia-as... e as esperava, porque algo nela, algum
subtraio de desenfreio que acreditava esmagado pela vida muito tempo atrás,
gozava de seus intercâmbios. Replicava-lhe com todo seu engenho. Nunca

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mais ele voltaria a tratá-la com uma desconsiderada insensibilidade. Não


existia entre eles a relação de um inválido e sua enfermeira, nem tampouco a
da esposa ofendida e o ousado canalha. Eram MacLean e Enid, adversários que
compartilhavam um objetivo: o retorno da saúde e a memória de MacLean.
Quando ele recordasse... então tudo mudaria.
Deixou de se estirar, mas seguia olhando-a com fixidez, a observando
enquanto ela se balançava na cadeira de balanço para frente e para trás com
uns movimentos lentos e suaves. Não queria se balançar mais rápido porque
ele a punha nervosa; embora a matassem manteria um ar sereno.
— Durante quanto tempo estivemos casados? — ele quis saber.
Enid ficou imóvel. A cadeira de balanço se deteve. Apoiou os pés no chão
e se perguntou se a mente de MacLean, que levava tanto tempo em branco,
cessava alguma vez em sua insaciável exigência de informação.
— Nove anos.
— Infidelidade?
— Não acredito — entrecerrou os olhos para o olhar, — embora esteja
segura que você cometeu muitas depois.
— Me referia a você! — exclamou ele.
— Ah. — Enid perdeu por completo a equanimidade e começou a se
balançar com rapidez, a serenidade desvanecida. — Não, claro que não. Como
se me importassem tanto suas aventuras que queria me desforrar te
enganando.
Estas palavras feriram seu orgulho masculino, ela pôde vê-lo na maneira
em que esticou a boca. Não lhe importava. Enid opinava que ele tinha muito
orgulho masculino, e sem nenhum motivo.
Mas ela sabia. Compartilhou o leito com ele, e a experiência não era nada
do que se gabar. O perito beijo que lhe deu no dia anterior poderia alterar essa
percepção, e seria melhor que ela, que seu corpo, tivesse presente o que
aconteceu na última vez que cedeu aos rogos daquele homem. Acabou casada
e no começo de um longo caminho, solitário e assediado pela pobreza.
Não obstante, a maneira em que MacLean a observara na noite anterior,
não dormira em seguida, como ela acreditou que faria, mas sim permaneceu
acordado, observando-a, enquanto ela ia e vinha pela sala, se asseando antes
de deitar. Quando desapareceu atrás do biombo para colocar a camisa de
dormir, não deixou de ser consciente nem um só momento de que ele escutava
cada um de seus movimentos e o sussurro de suas anáguas. Despiu-se com
cautela, vestindo primeiro a camisa de dormir antes de tirar as roupas íntimas,
a fim de mostrar seu corpo o menos possível. Como se ele pudesse vê-la!
Depois de vestir a bata, emergiu descalça do biombo e se deslocou sem o
olhar para ver se ele seguia observando-a, embora estava segura que assim
era. Apagou todas as velas menos uma, que deixaria arder se por acaso ele

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despertasse em plena noite e a necessitasse. E não lhe ocultava que assim


teria suficiente luz para que, se ele desejasse, a olhasse quando tirasse a bata
e se deitasse. A observou, naturalmente. Nunca duvidou disso.
Recordou-se de uma coisa que a fez levantar.
— Posso te trazer algo de comer?
— Sim. — Ao que parece sua réplica do dia anterior surtira efeito, porque
ele acrescentou: — Por favor.
— Muito bem. — Enid deixou o livro na cadeira de balanço e tratou de
cercar uma conversação cortês. — Me alegro que tenha apetite.
— Por quê? — se voltou para ela na cama e perguntou em um tom
zombador: — Se sou tão indiferente para você, que mais dá que viva ou morra?
Acabou a conversação cortês.
— Quanto mais coma e beba, mais se afastará de você o espectro da
morte, e apesar de que é um exímio descarado, isso me satisfaz. Fiz um
enorme esforço para te devolver à vida e não aceitarei nada que não seja sua
recuperação total. — Pensou que aí tinha ele um motivo de reflexão. - Em
seguida volto.
Demorou muito pouco tempo em realizar a tarefa, e embora não gostara
de estar ausente enquanto banhavam MacLean, agora lhe arrebentava voltar
para seu lado. Por que aquele homem precisava ser tão desagradável? Se
seriamente não recordava seu casamento, não tinha nada que objetar. Mas por
que precisava interrogá-la e então desconfiar com tal descaramento do que ela
dizia? Acreditava-se melhor pessoa do que era e, em consequência, acusava a
ela de ser pior do que era. Isso era injusto, e enquanto Enid subia a escada
com uma terrina de guisado e uma concha de sopa, quadrou os ombros e
endireitou as costas.
Ele nem sequer esperou que ela chegasse à sala para começar.
— Estamos separados — lhe disse.
— Sim.
Deixou a bandeja sobre a mesa e pegou uma das tigelas que a senhora
Brown lhe dera.
— Vive em minha casa?
— Não.
— Às mulheres gostam de falar, nunca se calam — disse em um tom cheio
de irritação. — Por que não fala?
Ela golpeou o recipiente com a concha de sopa, tão forte que o rompeu.
— Me fale, mulher. Onde esteve? O que tem feito?
Com mais paciência da que seria razoável esperar de qualquer mulher tão
maltratada, pegou outra tigela e a encheu.
— Vivi na Inglaterra.
— Sozinha?

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Ela se deteve, a tigela na mão, e lhe dirigiu um olhar furioso.


— Está me acusando de ter tido um amante?
O olhar de MacLean posou em seus lábios, e sorriu.
— Não, provavelmente não.
O que queria dizer com isso, e por que sorria?
— Durante quanto tempo viveu na Inglaterra?
— Toda a vida.
— Não pode ter mais de vinte e cinco anos.
— Vinte e seis.
— Que idade tinha quando nos casamos?
— Dezessete.
— Era uma menina!
— Isso é uma desculpa. — Utilizou seu sorriso como um aguilhão. — Em
geral digo a mim mesma que sou uma néscia.
— Vivemos juntos menos de um ano?
— Muito bem — replicou ela, como se o felicitasse. — Face à perda de
memória, ainda pode fazer contas. Vivemos três meses juntos.
Apesar da rudeza de Enid, ele teve a desfaçatez de se mostrar satisfeito
de si mesmo.
— Vê? Agora está me falando.
Com a tigela fumegante de guisado na mão, ela pensou em derramá-la no
meio das pernas. Mas não ia fazer isso só porque não seria justo; não faria tal
coisa quando ele não podia ficar em pé para verter água fria na cueca. Mas
quando pudesse se levantar...
Ele nem sequer se deu conta do perigo que corria nem de que estava
pondo a prova o domínio de si mesma que tinha Enid.
— Poderiam ser piores as coisas. Isto demonstra que a aliança entre
ingleses e escoceses é impossível. — Então, como um asno, zurrou a mesma
canção. — Não acredito que estejamos casados. Sou muito preparado para ter
me casado com uma mulher que não é escocesa.
Que asno, que homem tão estúpido.
— Se o senhor Throckmorton faz parte de uma conspiração para te fazer
uma armadilha, por que tentaria te enganar apresentando uma esposa que o
desagrada de uma maneira tão evidente?
— Não me desagrada. — Teve o descaramento de deslizar a mão pelo
braço de Enid, para tranquiliza-la. — A única coisa que ocorre é que é uma
mulher difícil e de língua mordaz.
— Enquanto que você é a voz da sabedoria e da cortesia. — Escapou de
seu contato. — Não tínhamos nenhum motivo para acreditar que, ao despertar,
teria ficado sem suas lembranças.
— Não há nada pior que uma mulher com lógica - concedeu ele.

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— A menos que seja um homem que não tem nem um pingo.


MacLean não acusou o golpe. Claro que não. Como vai admitir um homem
que uma mulher é mais esperta que ele? Jamais!
Fingindo que ela nem sequer falara, disse-lhe em um tom imperioso:
— Bom, vou comer.
— Suas maneiras voltaram a se desintegrar.
— Por favor, senhora, posso comer mais? — Olhou-a enquanto ela elevava
a colher e lhe sugeriu astutamente: — um pouco de cordeiro não viria mau, ou
um pouco de couve e um caneco de vinho.
— Hoje o caldo contém purê de cenoura e batatas. — Deu-lhe colheradas
até que ele pegou a tigela e ficou a comer sem ajuda. — Se tolerar isto,
amanhã poderá comer um pouco de carne picada.
Ao terminar limpou a boca com o guardanapo que ela estendia.
— Que seja hoje, mais tarde.
— Talvez — disse ela, e encheu de novo a tigela.
MacLean comeu até se saciar, e então suspirou e deixou a tigela sobre a
mesinha de noite.
— Quando poderei comer um pêssego? — perguntou. — Quando durmo
sonho com pêssegos, e tenho uma vontade enorme de saborear sua carne
doce e tenra.
E embora ele a olhava à cara, ela teria jurado que ele estava falando de
algo completamente diferente.
— O caminho mais rápido para chegar ao coração de um homem é através
de seu estômago — comentou então MacLean com um sorriso.
— O caminho mais rápido para chegar ao coração de um homem é através
do peito. — Enid se inclinou, se aproximando mais a ele, e se por acaso ele não
entendera, esclareceu: — Com uma adaga.
— Harpia.
— Não o esqueça nunca.
Ele a reconhecera como uma força com a que era preciso contar, e isso
emocionou Enid. Os olhos verdes e dourados de MacLean se travaram com os
seus. E se encontrou presa em uma resistência implacável para ver qual dos
dois desviava primeiro a vista.
Ao princípio o olhou resolutamente, segura de que aquele enfrentamento
era uma escaramuça sem importância que, uma vez mais, demonstraria a
MacLean que ela não se deixava intimidar.
O silêncio entre eles foi se intensificando, e Enid compreendeu que o seu
era mais que um enfrentamento de vontades. MacLean a olhava como se ela
fosse um bocado e ele um faminto... e o que era pior, ela sabia que, em efeito,
estava faminto, de comida, de amor... não, de amor não. De fornicação. Oito
anos atrás, MacLean queria adoração e obediência, não amor.

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Já que Enid sabia tais coisas, por que queria avançar no vazio de seu
silêncio, lhe tocar a mandíbula coberta pela curta e escura barba e saborear
seus lábios? Por que imaginava o que sentiria ao apoiar os seios em seu peito
para se abandonar aos beijos longos, lentos e profundos e notar as carícias das
mãos masculinas em sua pele?
Abriu a boca enquanto sua respiração acelerava, embriagada pela
iminência do contato. Um calor delicioso invadia sua pele. A tensão que
experimentara sem cessar desde que ele despertou ia aumentando e percorria
suas terminações nervosas, se instalando em sua matriz como uma carga que
respirava e se movia e exigia atenção.
Teria desviado a vista... se pudesse. Concederia de bom grado a vitória a
ele em sua pequena batalha se tão só pudesse evitar aquela... aquela o que?
Aquela humilhação? Aquela armadilha? Aquele prazer?
— Senhora MacLean? — Uma vibrante voz feminina desconhecida a
chamava de baixo.
O feitiço se rompeu. Enid piscou. Suas mãos descansavam sobre o
colchão, estava se inclinando para ele... jogou a cabeça para trás com
brutalidade.
— Bonjour madame! Você está aí?
Enid olhou a seu redor, perplexa pelo abrupto retorno à realidade,
agradecida que alguém, uma mulher, uma desconhecida, a tivesse resgatado.
— Sim, aqui estou — respondeu, e se encaminhou à escada.
Mas MacLean pegou sua mão, disposto a não soltá-la até que o olhasse.
Contemplou-a sem sorrir.
— Salva — sussurrou. — Mas não por muito tempo.

Capítulo 9

Enid fingiu que não lhe entendia, mas a MacLean não importou. Era
evidente que o entendia. Sabia que quase acontecera. A paixão entre eles
pulsava e ardia como sangue fresco e um novo fogo.
Com sensual lentidão, deslizou um dedo por seu braço e o deteve no
pulso.
Ela liberou a mão de um puxão e se dirigiu à escada, onde se ouvia um
som de pegadas.
Uma cabeça surgiu da abertura, uma mulher bonita e sorridente, revestida
de alegria como se fosse um objeto, uma dessas mulheres que fazem felizes a
quantos as rodeiam. Ao ver Enid, perguntou-lhe:
— Madame MacLean?
Quando a mulher entrou na sala, Enid viu que era miúda e bonita, e
inclusive sem necessidade de apresentações soube que era a mulher com a

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que Throckmorton ia se casar. Nenhuma outra mulher teria conseguido que


aquele velho e sério filho de cadela se casasse com ela sem ter fortuna nem
título algum.
MacLean piscou. Que revelação! Certamente, conhecera antes
Throckmorton e fora seu amigo, pois do contrário MacLean não refletiria nele
com o alegre regozijo com que um homem preso pensa em outro.
Preso... dirigiu um olhar a Enid. Casado. Com ela. Talvez não quisesse
pensar que se casaria com uma inglesa, mas ela tinha razão. Se Throckmorton
desejava lhe enganar teria apresentado uma bela donzela com mel nos lábios,
não aquela harpia.
A espera se mesclou com a amargura de saber que não fizera feliz a sua
companheira. Não recordava, mas Enid era sua esposa, e acumularia novas
lembranças com ela. Devia planejar a maneira de seduzi-la, e isso seria algo a
esperar com ilusão.
Celeste usava o cabelo de cor dourada como o mel recolhido em um
daqueles complicados estilos que irritavam a qualquer homem judicioso, com
tranças aqui e lá que lhe cobriam as orelhas e a parte superior da cabeça, e
passadores com brilhantes que se sobressaíam e cintilavam de tal maneira que
MacLean quis lhe dizer que apagassem as velas.
Como uma moça tola, Enid levou as mãos à rede para cabelo negra, em
uma vã tentativa de endireitar a magnífica e rebelde cabeleira.
— Não o faça — lhe disse Celeste, com um leve acento francês. — Espere!
— Avançou a grandes passos, a saia de vivida cor rosa batendo as asas e com
um buquê de flores escorado nos braços. — Me permita.
— Extraiu as forquilhas do cabelo de Enid e lhe tirou a rede para cabelo
negra.
A frisada cabeleira se derramou sobre os ombros de Enid em total
desordem, e ergueu as mãos para retê-lo. Com os braços levantados e uma
expressão de assombro, até tal ponto que parecia uma mulher surpreendida no
ato de se arrumar que MacLean quase gemeu de desejo. Dobrando um joelho,
ocultou seu cardo florido sob o lençol em forma de tenda e observou com um
deleite de olheiro enquanto Celeste afastava as mãos de Enid e a penteava
com os dedos. A cabeleira da jovem chegava à cintura. Ele teve vislumbres a
noite anterior à luz da vela, e agora queria acariciar cada fio, lhe beijar os
lábios, a cobrir de...
— Olhe isto! — exclamou Celeste. — Que sorte tem você. Meu cabelo é
liso e fino, mas o seu... o seu é magnífico! — se voltou para MacLean e disse: —
Não adora seu cabelo, monsieur?
"Hoje. Ontem à noite. Amanhã, estendido sobre o travesseiro
absolutamente em desordem." Mas se limitou a dizer:
— É esplêndido.

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Enid o olhou surpreendida, e a paixão que ele escondia com o joelho


dobrado deve ter se transmitido a sua voz, porque ela ficou vermelha como o
grão e pegou bruscamente a ridícula rede para cabelo.
— É claro que sim! — exclamou Celeste, rindo, transbordante de encanto.
— Madame MacLean, não me apresentei, e você está se perguntando quem
sou. Meu nome é Celeste Milford. Vou casar me com o senhor Throckmorton.
A alegria de Celeste era contagiosa. MacLean sorriu, e inclusive Enid,
empenhada em introduzir sua cabeleira naquela armadilha capilar, riu entre
dentes.
— Sei — replicou.
— Ele disse?
Celeste deu uns ligeiros saltos que expressavam seu júbilo.
— Nos disse — respondeu Enid.
Celeste enlaçou as mãos nos joelhos e riu.
—Não é maravilhoso que me ame?
— Eu diria que a ama porque você é maravilhosa — replicou Enid.
As duas mulheres se olharam, e uma faísca de amizade saltou entre elas,
pois se puseram a rir e se abraçaram.
Essa imagem fez que fosse à mente de MacLean a lembrança de sua irmã
e suas tolas amigas, que sempre riam sem motivo algum e falavam quando
não tinham nada a dizer. Podia vê-las agora... agarrou os lençóis à medida que
a cena se perfilava em sua mente. Sua irmã, erguida sobre uma rocha na borda
do mar e agitando os braços como um pássaro enquanto o vento fazia ondear
sua cabeleira loira avermelhada...
— Throckmorton me pediu que não os incomode porque vocês estão
ocupados e não quer que me intrometa — tagarelava Celeste.
MacLean ergueu os olhos. Recordou algo. Sim, realmente recordou algo,
mas as mulheres não perceberam isso.
— Isso significa que deseja que me ocupe de meus próprios assuntos.
Assim trouxe um buquê de flores que meu pai cortou, a fim de conhecê-la. —
Celeste estendeu as flores a Enid. — Gosta?
E MacLean tampouco lhes diria que um retalho dourado de seu passado
acabava de emergir das profundezas de sua mente. Ainda não. Não o faria até
que soubesse o que significava, se era só um tesouro que lhe concedera ou o
começo de um filão cada vez mais longo.
Enid aceitou as flores um tanto murchas com tal entusiasmo que pareceu
como se nunca até então tivessem lhe dado um presente floral.
— Também tenho uma carta para você. — Celeste colocou a mão em um
bolso e estendeu a Enid uma folha dobrada e selada.
Enid a olhou e, como se contivesse uma mensagem preciosa que não
podia ser compartilhada, a guardou no bolso.

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— Muito obrigado! A estava esperando.


— De quem é? — perguntou MacLean. — Quem escreve para você?
— Uma velha amiga. — Se voltou para Celeste. — Não tenho nenhum
vaso, então encheremos uma terrina de água.
— Isso será perfeito —replicou Celeste.
A carta. Enid evitava a carta, e aquela folha de papel contribuía com um
vínculo com a vida passada da jovem. O único do qual MacLean não sabia
nada.
— Não vai ler a carta?
Como se estivesse sobressaltada, Enid o olhou com o cenho franzido.
— Temos companhia.
MacLean não insistiu, mas não se esqueceria.
Celeste verteu a água da jarra em uma terrina. Enid colocou as flores na
água, e MacLean viu que sua séria e suscetível mulher ria entre dentes ao ver
que caíam pelos lados.
Então Celeste as cortou e arrumou, e Enid recebeu instruções com viva
atenção e sem o menor indício de beligerância. MacLean nunca imaginou
aquela transformação da enfermeira carregada de responsabilidades em uma
moça livre de cuidados.
— Necessita de algo, MacLean? — perguntou-lhe.
A ele não teria ocorrido interrompê-las, não quando tinha uma janela de
acesso à conduta de Enid com alguém a quem ela podia considerar uma
amiga.
— Acredito que vou dormir um pouco.
— Não devemos fazer ruído — murmurou Celeste enquanto se
encaminhava nas pontas dos pés para as cadeiras que estavam perto da janela
e fazia um gesto a Enid para que se sentasse. — Chis, chis.
Por sorte para MacLean, tinha um ouvido de caçador.
— Você é da Distinta Academia de Instrutoras — disse Celeste.
— Sim, lady Bucknell me encontrou meu último emprego.
A pura curiosidade fez que MacLean não resistisse a intervir.
— Distinta Academia de Instrutoras? O que é isso?
— Acreditava que estava dormindo. — A julgar por seu tom, Enid sabia
muito bem que ele se propôs a escutá-las.
— Ainda não — replicou ele, pensando que fazia uma imitação razoável da
inocência.
— A chamamos Distinta Academia de Instrutoras— lhe explicou Celeste. —
É a instituição que lady Bucknell dirige, que encontra emprego a muitas jovens.
— Então, como se carecesse de importância, se voltou para Enid: — Eu
também pertenço à Distinta Academia de Instrutoras. Lady Bucknell me
ensinou a ser instrutora, logo me enviou a França e então retornei aqui porque

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Throckmorton necessitava de uma instrutora e eu queria me casar com seu


irmão.
Confuso, MacLean lhe perguntou:
— Então você se casa com o irmão de Throckmorton?
— Não, casa com o senhor Throckmorton. — Enid sacudiu a cabeça, como
se ele fosse duro de moleira.
Entretanto, MacLean sabia muito bem que acabava de ouvir celeste dizer
que voltara para a casa familiar Blythe para se casar com o irmão de
Throckmorton.
Como se comunicavam as mulheres de semelhante maneira, pelo amor de
Deus?
— Quando retornou da França? — inquiriu Enid.
— Faz poucos meses, mas Throckmorton me cortejou, embora na
realidade não desejava fazê-lo, mas agora mudou de ideia e deseja se casar o
antes possível. Sua mãe, a querida lady Philberta, não queria que estivéssemos
juntos na casa, pois a preocupa que tenhamos um filho muito cedo. Poderia lhe
dizer que vamos tê-lo, mas isso estragaria a surpresa.
— OH! — Enid ficou em pé de um salto e abraçou a Celeste. — Que boa
notícia! Quando?
— Bem feito, Throckmorton! — MacLean sorriu.
Quem teria pensado que aquele homem esquivaria as regras até o ponto
de se meter na cama daquela garota?
— Estou segura que nossos demais meninos demorarão nove meses a
nascer, mas este não vai demorar mais de sete — informou Celeste, e duas
covinhas apareceram em suas faces. — Não dirão a Throckmorton, não é?
Surpreso, MacLean se ergueu se apoiando no cotovelo.
— Não disse ao pai?
Celeste se ruborizou.
— Vá dormir!
— De acordo, mas deve você dizer a ele imediatamente. Já nos disse isso,
e ele não sabe.
As duas mulheres trocaram olhares, e deram de ombros ao uníssono.
— Uma mulher gosta de dar primeiro este tipo de notícias a outra mulher
— explicou Enid. — Os homens não entendem.
Ele massageou a testa com as pontas dos dedos.
— Claro que o entendemos. Vai ter um filho. É um fato natural.
— Isso é o que os homens não entendem, — Celeste sacudiu a cabeça
com uma expressão triste. — Dizem que é uma função natural. Nem sequer
acreditam que têm algo a ver com isso.
— Nós... algo a ver com isso? Sim, claro que temos a ver — balbuciou
MacLean. — Eu gostaria de ver vocês fazendo isso sozinhas!

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Enid tocou o sutiã, como se seu coração lhe falasse.


— Os filhos são um milagre de Deus.
Celeste se mostrou de acordo e, ao mesmo tempo, fez caso omisso de
MacLean.
— Exato. Então minha querida lady Philberta me fez voltar em seguida
para Paris, onde compramos meu enxoval. — Esta saia é o estilo mais
moderno. Não gosta?
— É preciosa, — Enid tocou o tecido. — Espumilla4, acredito.
Como uma mulher sabia isso?, se perguntou MacLean. Olhavam a outra
mulher, embelezada com um vestido que não parecia diferente aos que
usavam as demais, e diziam que a cor era pavão ou espuma ou creme ou
qualquer outra substância que era um objeto, não uma cor. Podiam distinguir o
material, a malha, se a dama usava calcinhas com babados e o número de
costureiras que tinham costurado o objeto. Tudo por um vestido!
Agora bem, se pudessem falar dos cavalos com o mesmo conhecimento
de causa, isso sim que valeria a pena.
— As mangas e o sutiã são de veludo. Não sei se eu gosto de um tecido
assim para um vestido de dia, mas a costureira insistiu em que era chique e
Throckmorton gosta da sensação ao tato quando... — Celeste fechou a boca e
olhou para MacLean.
Ele fechou os olhos e fingiu dormir.
— Tenho pouca experiência com os homens, mas Throckmorton é muito
viril — revelou Celeste, baixando a voz. — Sempre muito apaixonado. Seu
marido também é assim?
Ah, ele ardia em desejos de ouvir a resposta de Enid!
— Sempre o interessaram mais as cartas e os jogos de dados.
Enid não se incomodou em sussurrar, e ele teria apostado que ela sabia
que estava acordado.
— Me surpreende. Throckmorton tem em grande estima a seu marido, e
não aprova o jogo nem a vida desordenada. — Celeste pareceu decepcionada,
mas em seguida se animou.
— Agora que o senhor MacLean se esqueceu de tudo, talvez recordará
como se faz amor.
— Talvez — disse Enid em tom dúbio. — Mas não falemos dele. Você dizia
que também é da Distinta Academia de Instrutoras.
— Sim, e sabe a quem encontrei aqui, na casa familiar Blythe? Às
fundadoras da Distinta Academia de Instrutoras!
Enid sufocou um grito.
— Seriamente? São autênticas lendas. Que aspecto têm? O que lhe
disseram?
4
A autora comparou a saia com suspiro ou merenguinho, dependendo da região.

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— São jovens, são bonitas, são inteligentes, naturalmente...


MacLean, sonolento, escutava o bate-papo com um ouvido. Estava limpo,
acabava de ter um vislumbre da mente de sua esposa e recordara a sua irmã.
Foi um bom dia. O dia seguinte seria melhor. No dia seguinte se inteiraria do
conteúdo daquela carta e recordaria tudo a respeito de si mesmo, de sua
família... e de sua esposa. Sua difícil, complexa e atraente esposa.

Capítulo 10

MacLean despertou em plena noite. Uma só vela, colocada perto do chão,


iluminava a sala, alargando as sombras. Enid jazia na cama que estava junto à
parede, a trança sobre o travesseiro, uma mão pálida aberta e um pouco
curvada. Roncava com um relaxamento absoluto.
Ele sorriu. Roncava... com suavidade, certamente, mas roncava. Que
agradável era saber que sua perfeita esposa possuía pelo menos uma
vulnerabilidade humana.
Por outro lado, lhe caía muito mal a despertar de um sono tão profundo,
mas tinha muita sede. Mediu com o olhar a distância entre sua cama e a mesa
sobre a que se encontrava a jarra. Não mais de cinco passos. Exceto por alguns
achaques e dores e a persistente debilidade da perna, se sentia são. Só cinco
passos. Sem dúvida poderia percorrê-los e servir um copo de água.
Sim, poderia fazê-lo.
Se levantou... a condenada perna não resistiu e caiu ao chão com um
ruído surdo que reverberou através das pranchas e cada osso e músculo de seu
corpo. A mesinha de noite caiu com ele. As toalhas voaram. A bacia de
porcelana se rompeu em pedaços que se espalhavam por toda parte.
Ainda se moviam os fragmentos quando Enid apareceu a seu lado.
— Estou bem, estou bem! — exclamou MacLean, furioso, sobressaltado,
dolorido.
Enid lhe fez caso omisso.
— Se machucou? Quebrou algo?
Seu orgulho. Nada importante.
— A bacia — disse bruscamente.
— Me refiro a você — replicou ela com irritação.
— Estou bem — repetiu ele. — Recolhe os fragmentos.
Dois homens apareceram no alto da escada, pistola na mão.
MacLean reagiu de uma maneira instintiva: agarrou Enid e a jogou no
chão.
Ela gritou como uma galinha assustada.
Os homens examinaram o quarto, e MacLean compreendeu que eram seus
guarda-costas. Soltou Enid e lhe permitiu se sentar.

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— O que está fazendo? Ficou louco? — Ela olhou aos homens que
embainhavam suas pistolas. — OH. — Adotou o papel de cuidadora. — Não se
preocupe. São Harry e Sandeman. Não lhe farão mal.
MacLean queria lhe dizer que não gostava que o tranquilizasse como a um
menino que despertou de um pesadelo, sobretudo diante dos homens, mas ela
pôs um braço ao redor dos ombros para o ajudar enquanto ele se esforçava por
se sentar, e os braços femininos eram um lugar de primeira classe onde
permanecer.
O sustentando como se fosse um menino que, ao tropeçar, abrira uma
brecha na cabeça, Enid se dirigiu aos homens armados.
— Vocês! Harry, Sandeman! Me ajudem a deitá-lo de novo.
MacLean tinha a força suficiente para afastá-la.
— Se calce primeiro. Vai se cortar com a porcelana quebrada.
— Nós o levaremos, senhorita.
MacLean reconheceu ao homem que falou. Harry.
— Faça o que MacLean lhe diz e calce os sapatos - disse Harry.
— Quero ajudar...
MacLean observou que os dois homens olhavam fixamente o teto. Olhou
para Enid.
Céu santo, salvo pela longa e transparente camisa de dormir de verão,
estava quase nua.
Olhou-a porque não podia evitar. E gozou porque um homem teria que
estar morto para não gozar. Então lhe disse em voz baixa e pronunciando
lentamente:
— Vá vestir uma bata.
Ela baixou a vista para se olhar.
— Homens! — exclamou, em um tom que expressava a repugnância
absoluta que sentia por uns seres que, em um momento de crise como aquela,
pensavam na nudez de uma mulher.
MacLean poderia ter dito a ela que os homens eram capazes de pensar na
nudez de uma mulher durante a mais atroz das torturas, durante uma
audiência com a rainha, inclusive sob os raios de uma tormenta. Mas às vezes
um excesso de conhecimento era mau para uma mulher.
Se afastou exagerando os movimentos do corpo, os homens olhando ainda
a outra parte, e assim que se foi, Harry se ajoelhou ao lado de MacLean.
— Quebrou algo?
— Não.
— Sangue?
— Não.
— Muito bem, então.
Os dois homens elevaram MacLean e, com um mínimo de dificuldade, o

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deitaram de novo.
MacLean gemeu enquanto assimilava os diversos incômodos e dores que
acrescentara as que já possuía, mas não se fez um dano permanente, e
observou a seu guarda-costas. Harry esteve no quarto aquele primeiro dia em
que MacLean abriu os olhos, e embora embainhara sua arma, o ferido não
esqueceria facilmente que, com a pistola na mão, parecia totalmente à
vontade.
— Sempre estão abaixo? — perguntou.
— Há alguém a todo momento. — Olhou detrás dele. — Aqui está.
Enid tinha vestido a bata de algodão rosa e os sapatos rapidamente, e
Harry e seu amigo se fizeram a um lado. A mulher se inclinou sobre MacLean,
cheia de preocupação. A trança lhe caía sobre o ombro, e ele notou o aroma de
flores e brisas primaveris que era fruto de seu passeio.
— Você caiu da cama?
— Não, tentei me levantar para beber água.
— Não seja tolo. Cair da cama não é nada embaraçoso... — Enid sacudiu a
cabeça, como se tivesse compreendido por fim a frase de MacLean. De algum
jeito se deu conta que lhe dizia a verdade, e ali, ante os olhos do ferido, a
cuidadora se transformou em uma esposa indignada. Apertou o cinto da bata e
lhe perguntou: — Está me dizendo que, quando só faz dois dias que se
alimenta e com suas lesões, acreditou que poderia caminhar até a mesa?
— Não podiam ser mais de três passos. — Subtraiu dois de seu cálculo
inicial.
— Está a dois meses sem caminhar! Tem a perna quebrada! — Soltou um
bufido de irritação. — Será que não tem senso comum?
— Não! — gritou ele. — Não o tenho! Só sou um estúpido que não
compreende de onde vêm os bebês, recorda?
Se fez um silêncio opressivo na sala. Os homens armados, depois de trocar
um olhar, posaram a vista no chão.
Enid olhou fixamente para MacLean e logo aos homens. Voltou a lhe olhar
e se pôs a rir. Ele exalou um suspiro de alívio. Detectava uma nota de histeria
no júbilo de Enid, mas a histeria era melhor que a alternativa... pensou que ela
voltaria a lhe quebrar a perna.
Enid cobriu a testa com a mão.
— Pensou que poderia ir por você só em busca de água? — Se aproximou
da janela e voltou a rir.
— Para que usam armas, moços? — perguntou MacLean com naturalidade.
— Alguém tratou de lhe matar na Crimea, e isso preocupa ao governo de
Sua Majestade — respondeu Harry.
— Só três passos! — exclamou Enid.
MacLean mantinha uma calma notável.

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— Acaso o governo de Sua Majestade espera uma repetição do atentado


na Inglaterra?
— Talvez. — Harry tocou com o cotovelo a seu companheiro, e os dois
retrocederam para a escada.
— Não sabe de onde vêm os bebês. — O júbilo de Enid demorava para se
extinguir.
Não duraria muito mais. Uma lástima, porque MacLean pensava que a
seguir viriam as recriminações. Se permitiu olhar para a janela.
Ela estava sentada no parapeito, com os braços cruzados e o olhando.
Embora ele não recordava ter estado casado, algo sabia da maneira em que se
devia tratar a uma mulher.
— Sinto muito — disse. — Essa queda foi estúpida, e eu tive a culpa.
Ela acariciou a trança. MacLean voltou a tentar.
— Fez que me sentisse bem com tanta rapidez, que tive um excesso de
confiança.
Ela suspirou, ficou em pé e foi para a mesa onde estava a jarra.
— Por favor, posso beber água? — ele pediu.
Ela se voltou para MacLean com tal rapidez que quase queimou as
pranchas do chão.
— Não é tão difícil pedir: "Por favor, Enid, me dê água". "Água, Enid,
água." Inclusive: "Se levante, mulher, e me traga água". Talvez eu não goste
de suas maneiras quando se leva como um bárbaro ofensivo, mas nunca te
nego nada, não é certo? Me diga, não é certo?
Este novo acesso de furor pegou MacLean despreparado, e ao lhe
responder o fez em seu tom mais tranquilizador.
— É tudo que um homem pode desejar de uma esposa.
— Não, não sou. Sempre fez todo o possível para que soubesse disso. Mas
sou uma enfermeira estupenda. — Se aproximou com passo gracioso e
estendeu o copo de água. — Aqui tem.
Ele tomou um gole, e quando reparou na severidade com que o olhava, se
apressou a tomar o resto.
— Se machucou? — perguntou ela em um tom mais razoável.
— Um machucado — admitiu ele. — Nada importante.
Ela pegou o copo e voltou a enchê-lo.
— Tem fome?
— Posso comer pão? Por favor.
Ela devia ter previsto seu pedido, pois ergueu a toalha que cobria uma
fogaça de pão sobre a mesa, arrancou um pequeno pedaço e o ofereceu.
MacLean contemplou a casca dourada.
— Não acreditava que foste permitir comer pão. Me disse que só podia
tomar caldo e verduras.

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Ela tentou lhe tirar o pedaço de pão, e ele o pôs fora de seu alcance.
— Mas comerei isso.
— Pouco a pouco — ela o aconselhou, e então se ajoelhou para recolher os
restos da bacia quebrada. Um incômodo formigamento percorreu a espinha
dorsal de MacLean. Não gostava de vê-la de joelhos, recolhendo o desastre que
ele causara. O fazia se sentir... incômodo.
— Chama uma criada para que o faça.
— Estão dormindo — replicou ela, a cabeça inclinada enquanto recolhia os
fragmentos. Era evidente que fazia de bom grado aquela tarefa. — Além
disso... fiz coisas piores.
O pão tinha sabor de levedura, era suculento e tão delicioso que ele
desejava meter todo o pedaço na boca. A curiosidade o deteve. Queria fazer
algumas perguntas a Enid.
— Coisas como o emprego de instrutora?
— Nunca fui instrutora.
— Mas disse que trabalhou para a Distinta Academia de Instrutoras.
— Não, disse que lady Bucknell me encontrou meu último emprego. —
Jogou os fragmentos maiores da bacia ao balde do lixo e foi ao canto em busca
da vassoura. — Sou enfermeira.
Ele era um homem orgulhoso. Sabia que era. E não obstante permitira que
sua esposa se separasse dele? E aquela mulher se viu obrigada a realizar um
duro trabalho entre desconhecidos para ganhar a vida? De enfermeira? As
enfermeiras eram pouco melhores que as prostitutas.
Enid deve ter lido sua mente, porque deixou de varrer e lhe perguntou:
— Teria preferido que um homem me mantivesse?
— Não.
MacLean olhou para Enid. Esbelta, erguida, de olhar claro. Parecia como se
nenhum homem jamais a tivesse tocado. Certamente, não dava a impressão
de ter passado anos entre a sujeira dos quartos de doentes. Ele não acreditava
que tivesse trabalhado de enfermeira. Não acreditava que ele tivesse permitido
semelhante coisa.
Não obstante... não obstante ela exsudava desdém, ressentimento,
desconfiança... e tudo isso causado por ele. Sem dúvida nenhuma mulher
poderia fingir semelhante intensidade de suas emoções.
— Cuidava de... gente. De quem?
— De pessoas doentes.
Enid sabia o que ele estava perguntando, e zombava dele lhe dando muito
pouca informação.
— Homens?
— Sim.
MacLean quis lhe gritar. Em vez de fazer isso, pediu em um tom

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suplicante:
— Me fale, Enid.
Apoiada na vassoura, ela exalou um suspiro e cedeu.
— Deixei de me ocupar dos cavalheiros. Até os mais anciões retrocediam
da beira da morte para me oferecer a posição de sua querida.
MacLean se irritou. Notou a raiva escondida em suas vísceras, mas era
uma raiva pelas circunstâncias que se interpunham entre eles, por sua perda
de memória, pelo ressentimento para ele contra o que não podia fazer nada.
Não queria escutar, e ao mesmo tempo precisava compreender.
— Como se fez... enfermeira?
— Havia um doutor no povoado onde vivemos algum tempo.
— Onde você e eu vivemos?
— Sim. — Ela varreu sob a cama, sob a mesinha de noite, procurando
fragmentos de porcelana em todos os cantos.
— Um povoado da Escócia?
— Não, em Little Bidewell, ao norte dos York.
— Por que eu vivia na Inglaterra?
— Provavelmente o jogaram da Escócia. — Enid reuniu os fragmentos na
pá. — Vamos encontrar lascas neste chão durante meses.
— Enid.
Em silêncio, ele pediu que contasse tudo.
— Você não vai gostar disso — advertiu ela, e pareceu que a jovem
lamentava ter que dizer. — Foi um aventureiro, um jogador. Sempre foi de um
lado a outro. Vivíamos em alguma parte umas duas semanas, e então
estragava a acolhida que nos dispensaram ao ganhar do chefe de polícia
jogando às cartas ou apostar com o hospedeiro e ficar com sua melhor baixela
de prata. E então nos púnhamos de novo em caminho.
— Não posso acreditar tal coisa.
Se Enid dizia a verdade, era o tipo de homem que ele desprezava. E
entretanto... entretanto, não podia deixar de acreditar nela. Não sabia nada de
si mesmo. Não recordava nada de seu passado. E mais ainda, nos últimos dias,
submetido a seus cuidados e entre contínuas discrepâncias, adquirira uma
crescente confiança nela.
Enid irradiava um brilho como o da chama mais clara de uma vela.
Cumpria com seu dever sem a menor queixa: recolheu os fragmentos da bacia
e deixou a vassoura e a pá em seu lugar; dava-lhe de comer a qualquer hora,
respondia com engenho e suas réplicas sérias eram como as ondas que
rompiam no mar do Norte. O fazia pensar, o fazia sentir, o fazia querer. Ele
desejava esquentar as mãos em seu corpo, estreitá-la contra si até que o
enchesse de sua luz... e ele a enchesse de si mesmo.
— Posto que você despertou — disse ela, — pensei que sofrera uma

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mudança.
Precisava haver uma razão para que ela desdenhasse de um modo tão
inflexível ao homem que ele foi antes. Não podia estar tão equivocado.
Ao olhá-la, via uma mulher bonita vestida com uma desgastada bata rosa,
bela por sua inteligência e a força de sua personalidade. O tipo de mulher que
examinaria uma situação determinada, decidiria como era e se ateria a sua
opinião à margem do toscamente equivocada que estivesse. Isso devia explicar
a discrepância entre o homem que ele era e o que recordava. Via sua relação
com os olhos de uma juventude inflexível, e o que recordava não podia ser a
verdade.
Sim, isso tinha que ser. Quando recuperasse a memória, descobriria que
seu casamento fora uma série de enganos juvenis, que no caso dela o tempo
alterou os fatos e que com a maturidade de sua idade atual poderiam corrigir
os antigos enganos.
As seguintes palavras que ela disse o fizeram abandonar abruptamente
suas reflexões e atendê-la.
— Mantenho a esperança de que nos anos que estivemos separados tenha
se reconciliado com sua família. Sempre disse que seus parentes eram
importantes para você, mas desafiá-los era o que guiava todas as suas ações.
— Estava renhido com minha família? — Teria jurado que era o mais
entregue a sua família de todos os homens. Provavelmente ela se equivocava
também nesse aspecto.
— Por isso se casou comigo. Eu não era a noiva que os MacLean teriam
escolhido. — Sua boca se curvou em um sorriso amargo. — Seu primo, o
senhor do clã MacLean, se opunha por completo a nosso casamento.
— Tinha um primo. — A lembrança da moça sobre a rocha cruzou por sua
mente uma vez mais, e ele perguntou astutamente. — Alguém mais? Mãe, pai,
irmã?
— Tinha a sua mãe, mas não mostrava o menor interesse por ela. Só
falava de Kiernan. Kiernan era seco como um pau. Kiernan se acreditava muito
inteligente. Contava maravilhas de Kiernan. Morria de inveja de Kiernan.
— Kiernan. — Ele se ergueu lentamente. O nome lhe soava. — O recordo.
Ela correu a seu lado, a voz vibrante de esperança.
— Seriamente?
— Não, quero dizer... lembro o nome, ou pelo menos não me resulta
desconhecido.
Tentou. Pôs todo seu empenho, se esforçando por avivar a memória, mas o
que havia atrás do nome o evitava. Como todas as pessoas e todo o resto,
Kiernan se abatia fora do alcance nas brumas de sua mente.
Extenuado pelo esforço, se deixou cair sobre os travesseiros.
— Não está aqui.

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Ela franziu a testa.


— Quer que o informemos que está vivo? Estou segura que sua família
deve estar preocupada.
— Não tenho a impressão de que o estejam. — Talvez fosse cruel descartar
assim ao clã que lhe dera a vida, mas não enfrentaria a uns desconhecidos aos
que não recordava nem trataria de justificar uma existência entregue à
dissipação... se realmente tal era a vida que levou. — Bom, me fale desse
doutor, que ensinou sua profissão.
— O doutor Gerritson era um homem de setenta e tantos anos, e viveu em
Little Bidewell toda sua vida, curando a todo ser doente que podia, tanto
humano como animal. Fiquei com ele. O ajudei a tratar de seus pacientes e
aprendi tudo o que podia me ensinar.
Segurando-a pelo extremo da trança, MacLean a atraiu mais perto da
cama.
— O que fez após?
— Cuidei de anciões, sobretudo, e de pessoas muito doentes.
Ele introduziu os dedos entre os fios da trança, e se maravilhou de quão
sedosa era sua textura.
— Durante os três últimos anos vivi com lady Halifax como sua enfermeira
e dama de companhia.
Então, Enid esteve vivendo com uma mulher.
— É uma anciã decrépita?
— Eu diria que não. É uma pessoa desagradável, queixosa, exigente e
difícil. Mas também é inteligente, perspicaz, justa e a melhor das mulheres.
Tenho uma grande admiração por ela.
— Ela enviou a carta que recebeu?
— Em efeito.
MacLean se tranquilizou pelo menos em um aspecto.
— Mas está muito doente. Já não pode escrever, mas dita a sua nova
enfermeira. — Enid olhou as mãos entrelaçadas. — A deixei para vir a seu lado.
Sua voz carecia de expressão, mas o que melhor manifestava era seu
obstinado ressentimento. Ele apertou a trança dela.
— Preferiu cuidar de uma anciã que de mim — lhe disse. — Escolheu
limpar a um doente e sustentar a mão de um moribundo que viver comigo. Por
muito escandalosa que fosse minha moral, como pôde me deixar para levar
semelhante existência?
— Me interpreta mal. Não fui eu quem o deixei. — Se separou dele e
liberou seu cabelo de um puxão. — Você me abandonou.

Capítulo 11

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— Você sabe o que é se remoer, senhora? — A senhora Brown o observava


da cadeira de balanço enquanto MacLean se erguia se apoiando na barra
situada em cima de sua cama pela décima segunda vez aquela manhã. — Estar
se exercitando dia e noite e desenvolvendo esses músculos como se, por não
fazê-lo, fosse acontecer algo mau.
— Suponho que quer ser capaz de se levantar e caminhar de novo. — Enid
dobrou as toalhas, as preparando para o banho de MacLean. Há três semanas,
se banhava diariamente... depois dos exercícios. — Desde aquela noite em que
caiu, tomou a firme resolução de chegar a se manter em pé.
A senhora Brown olhou para Enid de soslaio.
— Cedo ou tarde você vai ter que o deixar tentar, sabe, não é?
— Sei. — Enid sopesou as toalhas que tinha na mão. — Essa fratura
múltipla me preocupa. Nunca cuidei de uma coisa assim, mas o velho doutor
Gerritson sim, e dizia que ao paciente teria que dar um tiro, como a um cavalo,
para lhe economizar sofrimentos. Não quero que MacLean morra.
— Não depois de todo o trabalho que tivemos para que chegasse até aqui.
— A senhora Brown enfiou a agulha com fio prateado de seda para costurar um
frágil pedaço de renda em umas anáguas de menina. — Mas se ia morrer, já o
teria feito, e conhecendo o homem e a determinação que tem, não teríamos
podido fazer nada para evitá-lo.
— Você tem razão. Estou de acordo.
Mas isso não tranquilizou Enid. De noite, quando jazia insone, imaginava o
pior: MacLean caía ao chão preso de atrozes dores, sua perna inchava por
causa de um coágulo de sangue, sua mente voltava a ficar ausente. Tudo isso
eram conjeturas absurdas; ela sabia, mas em seus sonhos perseguia infrutuoso
fantasmas de infortúnio.
Sem fazer o menor caso às mulheres, MacLean elevava os pesos que o
senhor Throckmorton lhe proporcionara. A seguir exercitaria as pernas, as
levantaria e flexionaria, como se a fratura múltipla nunca tivesse existido. Ia
reconstruir seu corpo de uma maneira implacável, como se tivesse um
encontro com o destino... e talvez assim fosse.
— Tem melhor aspecto — comentou a senhora Brown. — Está engordando
que dá gosto.
Não era exatamente que estivesse engordando. À medida que os pesos de
ferro se elevavam uma e outra vez por cima da cabeça de MacLean, os
músculos de seus ombros e braços se contraíam e relaxavam.
— Claro, é lógico que com o que come agora esteja se enchendo —
acrescentou a senhora Brown.
Uns músculos longos, lisos e tensos se desenvolveram sobre a robusta
ossatura, e o convalescente passou de ser um esqueleto a um deus grego que
vivia e respirava. E Enid esteve sozinha muito tempo se comparava a Stephen

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MacLean com o Apolo por qualquer motivo que não fosse o da libertinagem.
— Deveria vestir uma camisa — disse Enid, inquieta.
A senhora Brown olhou para MacLean.
— Por quê? Uma mulher de minha idade não tem frequentemente ocasião
de dar a seus olhos um prazer semelhante.
— Senhora Brown! — exclamou Enid, escandalizada pela sincera
apreciação da mulher mais velha, pois as mulheres de sua idade não deveriam
olhar aos homens.
— Alguém teria que estar cega ou morta para não apreciar a beleza deste
homem. — A senhora Brown riu entre dentes. —Mas suponho que por essa
razão você quer lhe vestir. Mal se dirige a você, assim suponho que não
compartilha sua cama.
— Isso não é seu assunto — disse Enid com arrogância.
— Então é que não — concluiu a senhora Brown. — Já me parecia. Seria
muito mais fácil estar com vocês dois se dançassem o minueto na hora de se
deitar.
Enid não necessitava uma confidente nem uma assessora. Era
perfeitamente capaz de organizar sua vida sem a ajuda de ninguém.
Naturalmente, teria gostado de falar com alguém do verdadeiro problema
de MacLean e ver se ele poderia perdoá-la algum dia. Pois foi ela a iniciadora
daquele frenesi de desenvolvimento muscular. Lhe disse quem era, e ele não
gostara de se inteirar que jogava, enganava e passava a vida indo de um lugar
a outro. Lhe enfurecera a relação de suas faltas. E quando lhe disse que foi ele
quem a abandonou, a tachou de farsante, de impostora, de hipócrita.
Se compadecia daquele homem. Era evidente que suas revelações o
desconcertaram. Por isso permitira que a insultasse sem dizer uma só palavra,
e o que conseguira em troca? Ele mal se dignava olhá-la. Depois disso não
mantiveram uma verdadeira conversação. Não houve ocasião de ver se ela
tolerava de novo uma de suas manhas de criança.
Pior ainda, ele se exercitava para alcançar uma perfeita forma física, a fim
de poder se mover, averiguar a verdade e, quando soubesse, enfrentar a Enid.
Ela sabia que, assim que lhe pedisse para se levantar, e face aos temores de
que a perna fraturada não o sustentasse, ela o permitiria. Que ele já não
tivesse tratado de se levantar era surpreendente.
Mas não podia confiar na senhora Brown. Certo que esta não necessitava
um convite para comentar a tensa situação na sala onde jazia o doente. Ao que
parecia, a mulher mais velha considerava Enid como uma filha, e amontoava
sabedoria sobre a cabeça da jovem, tanto se Enid a aceitava de bom grado
como se não.
— Não quero aprender.
— Então é uma tola. Todas as mulheres têm que saber tratar a seu

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homem. Do contrário, como vai conseguir que o muito bobo faça o que você
deseja?
— Não quero que faça nada — replicou Enid, com a sensação que estava
gritando ao vento.
E a senhora Brown parecia presa de uma contida exasperação.
— Tem que romper esse hábito de dizer falsidades, senhora MacLean. Isso
é mau para o espírito. Não sei o que disse ao senhor MacLean para que ele
tivesse semelhante arranque de fúria, mas...
— Eu disse que foi um esbanjador de proporções olímpicas.
— Aí tem. Vê? Não tem que lhe dizer essas coisinhas. Se lhe dissesse que
era um príncipe entre os homens, talvez representaria esse papel. Em troca,
você se deixa levar pelo rancor e protesto por cada pequena dificuldade...
A cabeça de Enid doía, e a sustentou entre as mãos.
— Você diz que não deveria dizer falsidades. Por que deveria então afirmar
que era um príncipe entre os homens?
— Dizer uma falsidade a seu marido não é realmente uma falsidade, mas
sim se trata mais de forçar a verdade. O senhor a perdoará se o faz porque
busca a felicidade de seu marido.
— Não me importa que seja feliz ou não.
— O que vai! É seu marido. Você não tem alternativa. O casamento é para
sempre, e será melhor que se adapte e se conforme, como fazem todas as
mulheres casadas.
Enid nunca ouvira a senhora Brown falar com tanta franqueza.
— Foi isso o que você fez? Se conformar?
— Sim, querida. O homem com o que me casei não estava a minha altura,
como acontece a todas as mulheres. — A senhora Brown terminou de costurar
as anáguas e fez um gesto de assentimento, como se estivesse satisfeita. — Se
hoje já não for me necessitar, senhora, irei aos aposentos dos meninos para
cuidar da senhorita Penélope e da senhorita Kiki. Quando só falta um mês para
as bodas, estão transbordantes de entusiasmo.
— Já imagino.
Enid desfrutara escutando os detalhes dos preparativos cada vez que
Celeste a visitava, coisa que fazia pelo menos um par de vezes à semana,
sempre com flores, algum objeto de penteadeira e, em ocasiões, um livro. Enid
teria estado agradecida à mulher por sua consideração se não fosse porque
MacLean falava com Celeste, brincava com ela. E Enid estava cansada de
permanecer à margem, cansada de sentir inveja de uma amiga, da inquieta e
vagamente culpada sensação cada vez que via MacLean totalmente
concentrado em recuperar as forças.
Em uma palavra, estava farta.
— Vá se ocupar dos meninos — disse à senhora Brown. — Eu atenderei

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MacLean.
— Parece um pouco cansada — observou a senhora Brown, mas nada
turvava a placidez daquela mulher. — Não seja muito brusca com ele, você só
tem a perder.
Enid teria posto objeções a essa última afirmação, mas embora pensava
que poderia vencer MacLean e seu estúpido ressentimento, sabia que jamais
sairia vitoriosa se enfrentava a uma mulher tão prática como a senhora Brown.
Enid enlaçou as mãos e baixou a cabeça, com uma fingida docilidade.
— Lerei o jornal de Londres para ele.
— Isso ele gosta. — A senhora Brown dobrou as anáguas e as guardou no
cesto de costura. — Assim o tempo passa com rapidez enquanto se exercita.
— Como você sabe? — perguntou Enid.
— Ele me disse isso. — A senhora Brown se dispôs a descer a escada. —
Deveria lhe falar alguma vez, querida. Em realidade é um homem muito
simpático.
Simpático? MacLean era mais ou menos tão simpático como um
conquistador romano saqueando uma aldeia. E no espaço de uma manhã, Enid
o comparou com um deus grego e um conquistador romano. Logo seria um
cavalheiro medieval, e ele não tinha nada de cavalheiresco. Nada
absolutamente.
Ao lhe olhar descobriu que ele a estava olhando ao mesmo tempo em que
se voltava para um lado e outro e apoiava o cotovelo no joelho oposto, uma e
outra vez. Tinha aquela expressão no semblante, como se queria abrir sua
cabeça e examinar seu conteúdo.
Vá, aquilo era interessante. MacLean decidira de repente que podia se
interessar por ela. Não o surpreenderia descobrir seus pensamentos?
Enid pegou o Sunday News of the World, que o senhor Throckmorton lhe
enviava todas as semanas, e se aproximou ao lado da cama.
— Quer que leia o jornal para você?
Ele assentiu, como sempre fazia, pois exercitava a mente tanto como o
corpo. Escutava as notícias, pedia explicações e, em ocasiões, contribuía um
comentário que demonstrava que recordava... algo. Entretanto, insistia em que
não recuperava a memória, e ela não tinha razão para duvidar dele. Ao fim e
ao cabo, se recordasse, saberia quem era e quem foi, e Enid lhe pediria
desculpas por ter duvidado dele.
Satisfeita ao descobrir que seu senso de humor não a abandonara, ela
sorriu.
Colocou a cadeira ao lado da cama, se sentou, abriu o jornal e leu um
artigo sobre o SS Great Britain, o primeiro grande vapor com casco de ferro e
propulsado por hélice, que seria lançado em 19 de julho.
— Não poderá cruzar o Atlântico — resmungou ele.

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Ela leu que estavam elevando a estátua de lorde Nelson ao alto da coluna
levantada no Trafalgar Square.
— Já era hora — disse ele, e flexionou o torso para diante e atrás, uma e
outra vez, até que o estômago de Enid doía tão só de vê-lo.
Estava lendo um artigo cujo autor atacava o príncipe Albert por ser
estrangeiro, quando MacLean a interrompeu sem cerimônias.
— E sua família? Quem são?
Aí ficava isso. Uma pergunta pessoal exposta no tom mais abrupto. Ela
deixou o jornal sobre o colo.
— É a primeira vez em três semanas que me pergunta algo pessoal, e
quer se informar a respeito de minha família? Não me diz "Sinto ter sido um
velhaco" ou "Me senti muito só sem sua amável conversação", mas sim me
pergunta por minha família.
Ele não se deixou impressionar, arqueou uma sobrancelha e elevou o peso
mais pesado.
— Bom, quem são?
É obvio, foi direto à essência do assunto. Queria saber por que razão o
ogro que estava à frente de seu clã considerou Enid uma noiva inapropriada.
Pois bem, ela podia responder facilmente a essa pergunta.
— Não tenho família.
— Todo mundo tem família.
— Os bastardos não.
Este último chamou a atenção do convalescente. Deixou de elevar os
pesos e lhe dirigiu um olhar crítico. O que importava que ele soubesse? Quando
recuperasse a memória, jogaria em sua cara o fato de que era filha ilegítima.
Sempre o fez.
— Nem mãe nem pai?
Seu peito nu se elevava e descia, uma bomba potente que insuflava ar a
seus pulmões.
O olhou, viu os músculos que se ondulavam sob a pele, a capa de
encaracolado pelo avermelhado que lhe cobria os peitorais, e imaginou o
aspecto que teria quando tivesse recuperado toda sua força.
— Não... pelo menos uns pais dos que valha a pena falar. — Precisava se
concentrar na conversa em vez de opinar. — Minha mãe morreu durante o
parto. Meu pai me pagou o ensino na escola de senhoritas da senhora Palmer
até que cumpri os quatorze.
— Então tem pai. Quem é?
— Era, MacLean. Foi o honorável conde de Binghamton.
— Por suas veias corre sangue inglês nobre. — Seu acento escocês se fez
mais marcado. — Sangue dos estúpidos, vãos e inúteis conquistadores
aristocráticos.

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— Sou inglesa de pura cepa e estou orgulhosa de sê-lo — replicou ela com
veemência. — Nunca poderá fazer nada para trocar essa circunstância, mas
ninguém é menos nobre que uma menina educada entre quem são melhores
que ela.
— Suas companheiras de classe eram melhores que você?
— Acreditavam sê-lo. — Viu mentalmente os longos corredores da escola
da senhora Palmer, cheios de meninas insípidas e espinhentas com má
dentadura, todas elas depreciativas para aquela senhorita Enid que não tinha
sobrenome. — Filhas legítimas de condes e barões, filhas legítimas de clérigos
e cavalheiros, filhas legítimas de ricos e arrivistas mercadores. Aos olhos da
sociedade, todas são melhores que eu.
— Então, se foi à escola da senhora Palmer, era uma organização
excelente e prestigiosa?
— Acredito que tinha essa reputação.
— Isso explica muitas coisas de você. — Olhou para Enid como se pudesse
retirar as capas de equanimidade e ver a menina trêmula escondida debaixo.
— Fala com um acento de classe alta britânica, conhece os clássicos, faz ponto
de agulha e te ouvi falar em francês com a senhorita Celeste. Muito
impressionante.
Ela não apreciou o catálogo de suas virtudes recitado por um rude e
bárbaro esbanjador cuja única habilidade verdadeira eram os jogos de jogo de
dados, tão melhor se jogava no chão de um estábulo. Altivamente, e Enid tinha
aprendido a altivez de quem era melhores que ela, replicou:
— Não se esqueça de meu conhecimento do piano-forte e minha
habilidade para dançar a valsa.
Lhe dirigiu um olhar penetrante.
— Além disso, tem um ágil engenho... suponho que o desenvolveria para
se defender das outras garotas e de seus sarcasmos. O conde de Binghamton
te possibilitaria se mover em círculos superiores.
Sem dúvida estará agradecida a ele.
— Agradecida...
Enid pronunciou a palavra em um tom sarcástico. Em sua infância lhe
disseram frequentemente que deveria estar agradecida a seu pai por mantê-la,
mas gratidão não era o que sentia, mas sim experimentava mais uma profunda
impaciência ante o fato de que julgassem generoso e até honorável a um
homem incapaz de manter suas calças grampeadas. Certamente, não deixou
estipulado que quando ele morresse Enid tivesse suas necessidades cobertas,
e procurou que nunca o visse.
— Não está agradecida, não é? Não é estúpida, senhora MacLean.
— OH, por favor, senhor MacLean. Semelhante adulação fará esta pobre
garota perder a cabeça.

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Lhe sorriu, um súbito brilho de regozijo indissimulado.


Enid reteve o fôlego. MacLean não lhe sorrira no transcurso de três
semanas, e a mudança de um ressentimento a um encanto sem reservas
quase a assustou. Se atuava sempre assim, ela poderia esquecer todas as
ofensas e, como uma donzela incauta, se apaixonar por ele como se nunca o
tivesse amado antes.
Por sorte para ela, MacLean não podia manter o encanto durante muito
tempo.
— Você disse que esteve na escola da senhora Palmer até os quatorze
anos — lhe disse. — O que ocorreu então?
— Binghamton morreu. Me expulsaram da escola e me enviaram ao Lar de
Órfãos Indigentes. — Um centro que fazia parecer os corredores cheios de
esnobes da senhora Palmer os passadiços do céu. — A esposa e os filhos
legítimos de Sua Senhoria não se preocuparam de seguir mantendo a
benevolência do defunto.
Ele deixou os pesos sobre a mesa ao lado da cama.
— Isso deve ter sido um golpe duro — lhe disse brandamente.
— Passar de uma escola onde o mestre de dança ia as terças-feiras e o
chá se servia às três em ponto a um centro cheio de meninos sujos que
padeciam todo tipo de enfermidades, onde roubar era a única maneira de ter o
suficiente para comer e o diretor me batia cada vez que falava em inglês
refinado? — Um tenso sorriso apareceu nos lábios de Enid. — Sim, foi duro.
Para alívio de Enid, MacLean não mostrou nem surpresa nem simpatia.
— Como sobreviveu?
— A esposa do diretor viu uma maneira de conseguir dinheiro, e quando
cumpri os dezesseis me vendeu como governanta à esposa do vigário. Essa
mulher tinha pretensões de linhagem; queria que seus filhos aprendessem a
falar com um acento de bom tom, como ela dizia. — Enid sorriu com um
regozijo mais autêntico. - Durante minha estadia ali compreendi que não tinha
vocação docente.
— Então me conheceu.
— Provavelmente seria melhor que ambos esquecêssemos como nos
conhecemos. — Enid dobrou o jornal e se dispôs a levantar.
Nunca contou a ninguém sua história, mal permitiu a si mesma recordá-la,
mas, liberadas do dique da reserva, as palavras saíram em desordem. Não
obstante, o orgulho impediu Enid lhe contar a continuação. Conhecera
MacLean, e nenhuma moça, antes ou depois dela, fora tão estúpida. Tão
crédula. Sentia desejos de chorar pela moça que foi, e não queria contar a
ninguém a história de seu casamento... nem sequer ao homem com quem se
casou.
— Diz que a abandonei. — MacLean se inclinou para frente e lhe agarrou o

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pulso, detendo sua fuga antes que pudesse iniciá-la. — Me conte essas
circunstâncias.
— Seria melhor que também as esquecêssemos.
— Eu as esqueci. Esqueci tudo, mas você está tão ofendida por essas
circunstâncias que nunca as esquecerá. — Agarrava o pulso dela sem apertar
mas ela não tinha chance de escapar. — Então me conte para que os dois
saibamos.
— Não— sussurrou ela, o olhando aos olhos. — Não quero fazê-lo. — Não
se referia a sua conversação a não ser ao fato que ele a atraía inexoravelmente
para si. — Não, MacLean.
— O que? — Ele rodeou sua cintura com o braço e a ergueu até pô-la em
cima de seu corpo. — Não o que?
Estava suado, e sua pele era pegajosa ao tato. Cheirava como um
operário. E mesmo assim ela deslizou os braços no travesseiro ao lado de sua
cabeça e inclinou a cara para a dele.
— Por que faz isto? É algum tipo de vingança porque te disse a verdade a
respeito de si mesmo?
— É minha mulher, minha outra metade. Se me vingo de você, prejudico a
mim mesmo.
O fôlego de MacLean sussurrava sobre a pele de Enid. Sua voz era baixa e
profunda. Sua proximidade vibrava através dela, seduzindo-a, e se sentia uma
tola por querer lhe beijar como ele a beijou umas semanas atrás.
— O casamento é um voto até que a morte nos separe — ele seguiu
dizendo. — Não posso te matar, por muito que em ocasiões deseje fazê-lo.
Ela tentou se separar, mas se encontrou com a jaula dos braços
masculinos e replicou fracamente:
— Eu o desejo mais que tão só em ocasiões.
Ele a agarrou com mais força.
— Não podemos nos liberar um do outro, por isso aprenderemos a
conviver.
Ela compreendeu.
— Esteve falando com a senhora Brown.
— Tenho-o feito. E você também.
— Sim — admitiu Enid sem entusiasmo.
— Tem razão, sei. — Afastou o cabelo que cobria o rosto de Enid. — E você
também sabe.
— Não quero estar junto a você.
Enid preservava com teimosia uns poucos centímetros de espaço entre
seus corpos.
— Vou dizer à senhora Brown que disse isso.
— Não fará tal coisa!

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— Não o farei se me der um beijo. — Estava rindo dela. — Um beijo, Enid.


Já sabe o que quero.
Ela sabia, o patife estava certo, e sem poder resistir a sua insistência
inclinou a cabeça, os lábios entreabertos enquanto fechava os olhos. Ele
inclinou a boca, ao encontro da sua, de modo que a saboreou em seguida. Enid
gozou do calor e da umidade íntimas. O prazer reverberou em sua mente, seu
coração, seu baixo ventre. Deslizou profundamente a língua, e ele a lambeu
com suavidade. A estimulou com as mãos, que percorriam suas costas acima e
abaixo, e a sensação era tão agradável... e tão má. Como a tentação. Como o
pecado. Como o prazer.
Aqueles poucos centímetros de distância entre eles que ela preservou com
tanto cuidado desapareceram, e se apertou contra ele. A sensação de outro
corpo humano tão perto do seu a fez gemer fracamente. Jamais experimentou
uma excitação como aquela, que a fazia dobrar os dedos dos pés; queria
devorá-lo, bebê-lo absorvê-lo em seu organismo. Teve que reter o fôlego, mas
não suportava a ideia que ele se afastasse - como se pudesse ou quisesse fazê-
lo! - e por isso segurou a cabeça dele enquanto elevava a sua... e teve um
vislumbre de seu sorriso de triunfo.
O muito asno. O asno exímio. Se atrevia a se mostrar... a se mostrar
seguro de si mesmo. Como se a paixão de Enid fosse... fosse uma rendição.
Como se pudesse dominá-la quando não era mais que um vagabundo, um
aventureiro e um sedutor de mulheres.
E como podia ela ter esquecido isso?
Se liberou bruscamente e foi para a escada.
Em meio dos degraus se encontrou com o senhor Kinman, que subia
naquele momento. O homem lhe sorriu amavelmente, como sempre que a via.
Estendeu uma folha de papel branco selada.
— Trago-lhe uma carta de lady Halifax, senhora MacLean.
Ela arrebatou a missiva e lhe fez uma reverência.
— Obrigado, é bom saber que pelo menos resta um cavalheiro no mundo.
E se apressou a descer, sem olhar para trás.

Capítulo 12

Com as mãos nos quadris, Kinman ficou olhando à mulher que desaparecia
escada abaixo.
— O que lhe ocorre? — inquiriu no tom perplexo de homem que felizmente
carece de ataduras conjugais.
— É preciso que pergunte? — MacLean se ergueu e se voltou, de modo
que seus pés penduraram fora da cama. — É mulher.
Kinman olhou para MacLean, e seu largo rosto se escureceu lentamente.

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— Não se trata disso, e você sabe. Tornou a irritá-la.


— Tratava de fazê-la muito feliz. — MacLean refletiu com amarga
irracionalidade em todas as mulheres e de sua esposa em particular. — Não
sabe o que é bom para ela.
Kinman deu uns passos apressados, pegou uma bengala que estava atrás
da mesinha de noite e a ofereceu.
— Não sei o que acontece com você, MacLean. Tem uma bela esposa que
lhe cuida... como se fosse digno de que o salvassem e o que faz? A afugenta
como se a perseguissem os sabujos.
Se movendo com muita lentidão, MacLean apoiou os pés no chão e se
incorporou.
— Não demoraremos para chegar a um acordo — afirmou.
Estava decidido que fosse assim. Durante as três últimas semanas, a
maltratou por lhe dizer o que ela considerava a verdade. Enid tolerou seu mau
humor, cuidando dele apesar do ressentimento que lhe mostrava.
Certamente, lhe respondeu de um modo inteligente cada vez que lhe
grunhia em vez de falar, e em ocasiões MacLean se absteve com muita
dificuldade de soltar uma gargalhada quando ela fazia algum comentário
rápido e engenhoso.
A mão de Kinman se abatia próxima ao braço de MacLean enquanto este
dava os primeiros passos, mas finalmente se separou dele.
— Não necessitará a bengala durante muito mais tempo — lhe disse.
— A verdade é que nem tão só a necessito agora.
Sentia um formigamento nos pés, seus quadris doíam e lhe pulsava a
perna fraturada, mas tinha em conta que permaneceu naquela cama sem se
mover durante dois meses, tudo funcionava notavelmente bem. Pendurou a
bengala no braço e empreendeu a rotina cotidiana que estabelecera
aproveitando os momentos em que ela estava dando seu passeio.
Enid... agora sabia por que, em um passado remoto que não recordava, se
casou com ela.
Por muito que se empenhasse no contrário, gostava. Apesar de sua
corrompida herança inglesa, se a conhecesse hoje trataria de conquistá-la com
todas suas forças. Conhecia os detalhes de seu corpo. Cada noite aguardava
que saísse daquele biombo embainhada na camisa de dormir transparente e
com a andrajosa bata rosa, e embora não recordava a nenhuma outra mulher,
sabia que ansiava esse vislumbre de sua forma feminina mais que o prazer que
pudesse lhe dar qualquer outra.
Enid o agarrara pela virilha.
Faria todo o possível para que não soubesse, pois se chegava a conhecer a
facilidade com que poderia lhe manipular, seria ela quem seguraria as rédeas
de seu casamento. Enid já tendia a ser dominante quando, como mulher que

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era, deveria ser submissa de modo que ele tivesse a frigideira pelo cabo.
Quando voltassem a ter uma proximidade tão íntima, e esse momento não
demoraria para chegar, ele a enrolaria e seduziria, e faria que seu casamento,
à margem do que foi no passado, fosse exemplar.
Kinman empurrou a banheira do canto onde estava.
— Quer fazer à senhora MacLean feliz? Diga a ela que pode caminhar.
— Ainda não. — Durante as últimas semanas aumentou a sensação de
perigo que sentia MacLean. O desastre se abatia sobre o horizonte, não sabia
por que nem como, mas devia estar preparado, e ainda não recuperara a
plenitude de suas forças. Não queria que as pessoas soubessem o que era
capaz de fazer. Precisava ter a seu lado o elemento da surpresa. — Onde está
Throckmorton? — perguntou, pois o dono da casa acudia diariamente para
conversar e lhe informar de qualquer acontecimento, e também, MacLean se
dava conta disso, para comprovar se recuperou a memória.
— Está a caminho — respondeu Kinman. — Acreditava que já estaria aqui,
mas começaram a chegar os convidados das bodas. Hoje foi um dia muito
atarefado para ele.
— Já? — MacLean percorreu a sala de um lado a outro, contando as vezes
que o fazia. — Falta um mês para as bodas.
Kinman deu de ombros.
— Estes aristocratas não têm nada mais a fazer que visitar as grandes
casas familiares, e a hospitalidade de Throckmorton não pode ficar em
interdição.
Quando MacLean deu tantas voltas como no dia anterior, acrescentou
outras dez.
— Serve um bom brandy?
— O melhor.
MacLean indicou a escada com um gesto da cabeça, e Kinman desceu.
Quando subiu de novo disse:
— Não há mouros na costa.
Agarrando a bengala, MacLean desceu e subiu a escada uma e outra vez
até que seus músculos enrijeceram. As coxas, sobretudo, ardiam por causa do
esforço, mas não abandonou até ter superado seu recorde anterior. Então
voltou a passear pelo sótão de um lado a outro, exigindo-se sempre um esforço
mais. Só quando caminhou tanto que temia que Enid retornasse, se deixou cair
em uma poltrona para descansar.
— Está preparado para o banho? — perguntou Kinman.
MacLean assentiu, aspirando fundo, satisfeito de sua melhoria ao mesmo
tempo que amaldiçoava sua fraqueza. Precisava estar preparado. Não sabia
para que era premente que estivesse preparado.
— Então pedirei que subam a água.

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Kinman apareceu à janela e fez um gesto com a mão, e quase


imediatamente MacLean ouviu o som de atividade na sala de baixo. A aquela
hora do dia a água estava sempre fervendo no caldeirão. Se ouviram vozes
masculinas, e então o primeiro de uma longa série de lacaios subiu
estrepitosamente a escada; conduziam pesados baldes de água
alternativamente quente e fria. Duas criadas, Sally e Jennifer, eliminaram o pó
e varreram, retiraram as roupas de cama, puseram lençóis limpos e levaram os
objetos interiores sujos. Jackson lhe trouxe uma muda e uma camisa branca
engomada, sem colarinho nem punhos, e umas calças engomadas e cortadas
pelos joelhos.
MacLean sorriu enquanto o camareiro expressava a opinião que lhe
mereciam as calças sacudindo a cabeça com uma expressão desdenhosa,
Jackson era realmente um tipo estirado, um tolo inglês com ombros curvados.
MacLean o teria despedido com o desdém que merecia se não fosse pelo fato
de que era um gênio com a navalha de barbear. Face às cicatrizes que cobriam
as faces e o pescoço de MacLean, Jackson sabia lhe barbear limpamente sem
fazer jamais um arranhão, e MacLean se negava a arriscar sua pele tão só
porque o pequeno verme se desse umas presunções que estavam fora de
lugar.
MacLean esfregou o queixo. A barba de um dia lhe roçou a mão, o qual era
de tudo inconveniente. A pele de Enid tinha a suave cor e a delicadeza de um
pêssego, que fazia pensar nas delícias interiores, e ele não correria o risco de
machucá-la quando a beijasse de novo, como se propunha fazer... e logo.
Com um movimento rápido do pulso, Jackson pôs uma toalha sobre a
mesa ao lado da bacia e depositou a navalha, a taça e o pincel. Deu uma
palmada e assinalou a um dos lacaios.
— Necessito água quente!
O lacaio verteu água de seu balde, derramando um pouco sobre a mesa.
Jackson exalou um longo e cansado suspiro e secou a água derramada. Então,
com a eficácia que caracterizava todos seus movimentos, barbeou MacLean.
Throckmorton chegou em meio do caos organizado, saudou os homens
chamando a cada um por seu nome. Quando a banheira esteve cheia, os
lacaios se foram e Jackson recolheu suas coisas e também partiu.
O senhor da casa comentou:
— Não é frequente encontrar um camareiro que faz o trabalho tão bem
como ele afirma.
— É muito bom. — MacLean esfregou o cetim da face sem cicatrizes. —
Mas não tem muito senso de humor.
Kinman fez uma careta de repugnância.
— E se barbeia tão bem, por que não barbeia a si mesmo? Parece como se
larvas se arrastassem por sua cara.

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Throckmorton se pôs a rir.


— Enquanto faça seu trabalho, pode ter o aspecto que deseje. Deu seu
passeio, MacLean?
— E um bom passeio — disse Kinman. — Já não necessita de minha ajuda.
— Segue com ele, por favor — lhe pediu Throckmorton. — Não desejo
enfrentar à senhora MacLean se cair.
— Se caio e faço mal a mim mesmo, ponha fim a meus sofrimentos em
seguida, pois se a senhora MacLean se inteira, me torturará até a morte.
MacLean começou a se despir. Throckmorton e Kinman lhe deram as
costas e olharam pela janela. Quando MacLean se inundou na banheira,
Throckmorton disse:
— É possível que tenhamos que te transladar.
MacLean já previra essa possibilidade.
— Devido aos convidados do casamento?
A água quente lhe aliviava a dor dos músculos. Teria gostado de
permanecer imóvel um bom momento, mas se ensaboou imediatamente.
Sempre temia que Enid retornasse antes do tempo, o surpreendesse ainda na
banheira e se perguntasse por que demorava tanto tempo em se banhar.
—Quanto mais gente saiba que está aqui, menos poderei garantir sua
segurança. — Throckmorton se balançou para frente e para trás sobre os
calcanhares, as mãos enlaçadas as costas. — Com sua permissão, fiz os
acertos necessários para que volte para a Escócia.
MacLean soltou o pedaço de sabão, que caiu à água com um chapinho.
— Escócia?
— Confio em que a volta a casa o fará recuperar a memória.
— Claro. — MacLean procurou o pedaço de sabão do fundo da banheira. —
Embora não me receberão com os braços abertos se for o perdido que Enid
afirma que sou.
Throckmorton deixou de se balançar. Durante o longo e profundo silêncio
que seguiu, MacLean viu que Kinman e Throckmorton trocavam olhares.
— Eu não diria de você que é um perdido — disse.
— Ultimamente não — acrescentou Throckmorton.
Se mostravam precavidos. Conspiradores. Estiveram mentindo para ele.
— O que diria que sou?
— Um cavalheiro que se reformou — Throckmorton disse com firmeza.
Aquilo não podia ser mais interessante.
— Precisava me reformar?
Throckmorton e Kinman voltaram a trocar olhares.
— É hora de que me contem isso tudo— disse MacLean antes que
Throckmorton pudesse falar.
— Ainda não — replicou o dono da casa com um suspiro.

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Esta atitude enfureceu MacLean.


— Ainda não? Estão me ocultando informação por capricho?
— Não é por capricho. É mais por sua própria segurança.
— É muito difícil aceitar isso. — Mas se MacLean aprendeu algo nas
últimas semanas, era que não podia forçar Throckmorton nem o convencer
com adulações. — Quando me dirá toda a verdade?
— Na Escócia. Kinman irá com você. Ele te dirá toda a verdade.
MacLean terminou de se banhar com o vigor da raiva que experimentava.
— Mentir a um homem que perdeu a memória é uma jogada repugnante.
— Confiávamos em que a estas alturas o assunto já estaria resolvido—
disse Throckmorton. — Que já recordaria.
— Confiavam — murmurou MacLean, enquanto se levantava e saía da
banheira.
Depois daquele único e emocionante momento em que recordou a sua
irmã, não voltou a se produzir nenhum outro movimento em seu cérebro. Todos
seus esforços por recordar foram em vão. Toda sua frustração fora inútil. A
única coisa que sabia com segurança era a natureza de seu caráter... e Enid
afirmava que essa lembrança era defeituosa. De modo que não tinha nada.
Enquanto atava a toalha ao redor da cintura, perguntou:
— Minha esposa também mente para mim?
— A senhora MacLean é tal como se mostra — assegurou Throckmorton.
De modo que a mulher de doce rosto e língua azeda tampouco lhe mentiu.
Esta admissão fez que se extinguisse parte da ira que MacLean sentia, quase
toda ela, na realidade.
MacLean procedeu a se secar e se vestir.
— Então Enid não é uma empregada sua?
— Quer dizer se é uma atriz que representa um papel? Absolutamente.
— Muito bem. Estou vestido. — MacLean aguardou até que os dois homens
se voltassem para ele. Então, cruzando os braços, disse-lhes: —De momento,
faremos isto a sua maneira. Mas quero certas garantias. Quero ter certo
controle da situação. Quero dispor de certas coisas. Espero que agora me
consigam isso.

Enid retornava à quinta quando ao dobrar a esquina se encontrou com


Celeste, que caminhava devagar pelo atalho, de braços dados com um casal
elegante e já velhos. Celeste pareceu horrorizada.
E Enid estava horrorizada... Não esquecera as advertências que lhe
fizeram quando chegou, como tampouco que MacLean poderia correr perigo,
mas em todos seus passeios nunca encontrou com um desconhecido, e chegou
a se sentir muito segura em seu entorno. Deveria ter sido mais prudente.
Inclinou cortesmente a cabeça e se fez a um lado, confiando em que seu traje

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simples a faria passar por uma criada, ou uma das de mais categoria, e que os
aristocratas não se fixariam nela.
Mas os aristocratas sempre faziam o contrário. A alta e robusta dama
vestida de reluzente shantung de cor lavanda, da sombrinha com rendas até a
prega da ampla saia, e as papadas lhe tremiam enquanto examinava Enid
através do monóculo.
— Quem é esta jovem, Celeste?
— É... uma de minhas amigas da Distinta Academia de Instrutoras —
respondeu Celeste. Enid sentiu desejos de aplaudir a Celeste por sua rapidez
de reflexos. Em rigor, não era uma mentira, mas sim uma patranha que as
levaria por mau caminho.
— Não querem ver os crisântemos, senhores? — disse Celeste, apontando
a abundância de flores douradas e alaranjadas que brilhavam no caminho do
serpenteante atalho.
— Primeiro nos apresente a esta encantadora jovem. — O ancião deu uns
passos cambaleantes, escrutinou o rosto de Enid e até lhe deu um ligeiro
beliscão na face.
Quando lady Halifax lhe disse que não havia maior tolo como um velho
tolo, poderia ter se referido concretamente a aquele homem. Alto e magro,
tocado com a cartola mais alta que Enid já vira, o cavalheiro lhe sorria e movia
as sobrancelhas como se ela fosse uma senhorita inexperiente que não
conhecesse nada melhor que paquerar com um lorde. E diante de sua esposa!
Enid desejava lhe dar um soco. Mas isso seria fatal.
— A apresentar. Sim, claro, a apresentar que estupidez a minha. — Celeste
sorriu como a mais tola das garotas. — Às vezes me escapa a cortesia mais
elementar. Isso se deve a que sou a filha do jardineiro. Sim, devo lhes
apresentar.
E Enid recordou que seu sobrenome a trairia.
Celeste aspirou fundo.
— Lorde e lady Featherstonebaugh, os apresento a...
Com o tom vivo e prático de uma mulher que não está acostumada aos
rituais corteses, Enid disse:
— É um prazer lhes conhecer, senhores. Sou Enid Seywell.
Lady Featherstonebaugh franziu o cenho, pensativa, e então se animou.
— Seywell? É o sobrenome do conde de Binghamton.
Enid se sobressaltou. Céu santo, aquelas pessoas conheciam seu pai!
— Você está aparentada com o conde de Binghamton? — inquiriu lorde
Featherstonebaugh.
— É possível. — Enid manteve a voz firme e o olhar sereno, mas não pôde
dominar o rubor que lhe cobria o peito, o pescoço e as pontas das orelhas.
Lady Featherstonebaugh elevou o monóculo, examinou Enid da cabeça

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aos pés e se atrasou nas faces vermelhas.


— Lembro de um escândalo que teve lugar faz anos, quando morreu
Binghamton. Algo a respeito de uma filha bastarda.
— Sim. — Lorde Featherstonebaugh pronunciou a palavra com um chiado
acentuado pela dentadura postiça. — Recordo. Sua família descobriu que
esteve mantendo à moça, e não lhes fez nenhuma graça.
Celeste retorcia as mãos.
— Lady Binghamton era tão miserável que podia apertar um guiné até que
o ouro se fundisse. — Se voltando ao lorde idoso, a dama inquiriu: — Não se
chamava Enid a menina, querido?
— Acredito que sim. — Lorde Featherstonebaugh olhou fixamente para
Enid. — Por são Jorge, acredito que deste no prego, querida. Tem os olhos de
Binghamton.
"Não é certo", pensou Enid, mas manteve a boca fechada. Não queria que
a reconhecessem, não queria que aquele casal de idosos mexericasse a
respeito dela em seus próprios narizes. E que Celeste descobrisse seu passado
dessa maneira! A vergonha envolvia suas vísceras, e não se atrevia a olhar
para Celeste. Não podia fazer nada, pois o escândalo proporcionava uma tela
atrás da qual MacLean podia se esconder.
— É como ver o velho divertido revivido — disse lorde Featherstonebaugh.
— Nos diga, querida, é você a filha de Binghamton?
Pela segurança de MacLean, Enid podia sacrificar sua dignidade. Pelo
menos, assim supunha.
Mas ele estaria ainda mais em dívida com ela.
— Sou — respondeu.
Enid ouvira dizer que os casais que estão casados há muitos anos
frequentemente começam a se parecer. Era evidente que lorde e lady
Featherstonebaugh estavam casados há muito tempo, porque seus rostos se
tornaram máscaras idênticas de júbilo. Piscavam ao mesmo ritmo e se olhavam
no mesmo momento.
— Senhorita Seywell, estaria encantado de acompanhá-la para jantar—
disse lorde Featherstonebaugh.
— Preciso retornar à Distinta Academia de Instrutoras— mentiu Enid com
naturalidade.
A dama se endireitou e disse em um tom severo:
— Estou segura que isso é desnecessário. Pode ficar um dia mais.
Enid não deixava de sorrir.
— Não posso. Sinto muito.
— É uma moça que trabalha e deve partir. — Celeste ficou ao lado de Enid
e a puxou pelo braço. — Me decepciona tanto perder a minha amiga antes do
casamento, mas o dever a chama!

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— OH. — Lady Featherstonebaugh trocou a posição da sombrinha. — Que


decepcionante. Me iludia ter um amistoso bate-papo com você, senhorita
Seywell.
— E a mim também — disse ele.
Para Enid parecia um velho cavalheiro desonroso, mas fez uma reverência
antes de se voltar.
— Sigam adiante, senhores. Em seguida estarei com vocês.
As duas jovens se voltaram e avançaram com a maior rapidez possível na
direção contraria, mantendo um silêncio absoluto até que estiveram bem
afastadas do casal idoso.
— Não deveria ter saído. — Enid mordeu o lábio e se disse que não deveria
se preocupar por MacLean, aquele tipo imperioso pelo que ela precisava passar
tão maus momentos.
— Não é sua culpa — replicou Celeste.
— Não me dava conta que havia visitantes no imóvel, e não podia
permanecer nessa casa um minuto mais.
Porque Enid estaria beijando MacLean, e uma mulher precisava estar louca
para o beijar.
— Nem sequer é minha culpa, embora esteja segura que Garrick não o
verá assim.
— Quem? Ah, se refere ao senhor Throckmorton. MacLean é sem dúvida
alguma o pior dos velhacos. - E pensou que ela estava louca de atar.
— Garrick me acusa de atrair problemas, como se o fizesse de propósito!
— Os olhos de Celeste cintilaram. — Não sou a senhorita com a cabeça cheia
de vento que ele poderia desejar.
— É obvio que não! Nem eu sou uma mulher a quem alguém se limita a
acariciar e fazer caso omisso. — Por muito atraentes que fossem as carícias.
— Não nos apreciam. — Celeste se deteve bruscamente junto a um banco,
diante de um salgueiro de enorme tronco, olhou para Enid e, em um tom
transbordante de afeto, acrescentou. — Todos os problemas começam com um
homem.
Enid estava cansada de atuar como uma mulher adulta. Queria se
comportar como uma fera. Como MacLean.
— Os homens são todos iguais — sentenciou mal-humorada.
Celeste deu uns leves golpes no lábio e particularizou:
— Oxalá isso fosse certo, mas cada um deles resulta exasperante a sua
própria maneira.
— Vou deixar de ser uma professora de maneiras gratuita para MacLean.
Que descubra por si mesmo como deve se comportar na sociedade civilizada
sem que eu esteja envolvida.
Em qualquer caso, Enid não queria se envolver em nenhuma mais das

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escapadas de MacLean. Ele já estava bem. Era hora de o abandonar. Isso seria
justo, o abandonar como ele a abandonou em seu dia, e retornar quando a
necessitasse.
Meteu a mão no bolso e tocou a carta de lady Halifax. Naquelas missivas
semanais a velha dama parecia tão robusta e valente como sempre, mas Enid
sabia a verdade. A morte pairava muito perto, e nenhuma das animadas cartas
com que lhe respondia eram o mesmo que estar pessoalmente ao lado da
querida e arisca idosa.
Mas resistia a imaginar a cena quando comunicasse a MacLean que partia,
por isso prescindiu de seus próprios problemas e por um momento considerou
os de Celeste.
— O senhor Throckmorton a adora. Estou segura que esse é o motivo de
que seja irracional.
Celeste se deixou cair no banco.
— Quer dizer que os homens necessitam de uma desculpa para ser
irracionais?
Enid sorriu e tomou assento ao lado de sua amiga.
A irritação de Celeste remeteu.
— Os Featherstonebaugh são velhos amigos da família, uns idosos
amáveis...
— Não reparei nisso — replicou Enid, com a frieza do orgulho ferido.
— Não, com você não foram amáveis, e sinto muito. — Celeste olhou a um
e outro lado. — E se tiver que ser justa, não me caem tão bem como outros
membros da família Throckmorton. A verdade é que os Throckmorton
desculpam a má conduta dos Featherstonebaugh dizendo que são os
fofoqueiros mais terríveis de toda a Inglaterra, mas eu aguentei o mais robusto
de sua fofoca, e é bastante fastidioso.
— Nem tampouco é desculpável. — Enid tratou de abordar o tema com
delicadeza. — Devo te agradecer que não tenha me rechaçado. Sei que não é
nada agradável descobrir que alguém com quem foi amável é filha ilegítima,
mas...
A ira abrilhantou os olhos de Celeste.
— Não diga nenhuma palavra mais ou me sentirei ofendida. Não escolho a
minhas amigas por quem são seus pais, nem você tampouco, pois do contrário
não seria tão generosa comigo, a filha de um jardineiro.
— Para mim não tem a menor importância...
— Para mim tampouco. — Celeste ficou em pé e sacudiu a saia. — De
modo que assunto concluído. É minha amiga, temos uma afinidade e acredito
que partirá logo, mas quando sua aventura terminar me visitará. Me promete
isso?
— Prometo.

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Celeste tocou o ombro de Enid.


— Agora devo ir em busca de lorde e lady Featherstonebaugh e desviar as
perguntas que me façam sobre você, então tenho que dizer a Garrick que a
viram e escutar suas queixas. — Fez uma careta, sacudiu uma mão e se
afastou.
As palavras de Celeste chegaram ao mais profundo do coração de Enid e a
fizeram recordar a carta que tinha no bolso. Ao tirá-la, contemplou o familiar e
nobre selo dos Halifax, e então a volteou e viu uma caligrafia desconhecida.
Lady Halifax ditara a carta a outra de suas criadas. Cuidadosamente Enid
rompeu o selo e desdobrou a folha.
Leu a primeira linha. Voltou a lê-la. Então leu com rapidez o resto. Se
dobrou até que a cabeça lhe tocou os joelhos e chorou.

Capítulo 13

MacLean reconheceu o som das pegadas de Enid, e nem sequer aguardou


a que a cabeça da jovem aparecesse no alto da escada.
— Onde diabos estiveste? — perguntou-lhe bruscamente.
Enid se fez a um lado para deixar passar a Sally, que desapareceu escada
abaixo.
— No inferno, é obvio.
A luz das velas era insuficiente, mas ela parecia incólume, mas como,
assim como a frieza de seu tom e sua réplica, enfureceu a um homem que
mostrara uma notável paciência depois do que sem dúvida foi uma briga sem
importância. Golpeou o montão de travesseiros que lhe ajudavam a manter-se
erguido.
— Há-me feito esperar — lhe acusou.
— Para que? Aqui sempre há alguém a sua disposição se necessitar de
algo.
— Foi uma espécie de mesquinha vingança porque tentei te beijar?
Lhe dirigiu um olhar furioso, e então, com um gesto ostentoso, fechou a
porta com tal rudeza que tremeu o chão.
— Não.
E esta negativa enfureceu ainda mais ao MacLean.
— Porque sua atitude é infantil. É minha esposa, e se quero te beijar,
posso fazê-lo.
Ela correu o ferrolho com o pé, e então, com uma enunciação lenta e
precisa, disse-lhe:
— Não pode se não está em condições de me apanhar.
MacLean se elevou apoiando-se nos cotovelos.
— Seu descaramento é excessivo, quando ainda não faz seis horas tinha a

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língua em minha boca.


— Não queria te beijar. Só foi uma amostra de cortesia!
Ele se pôs a rir.
— Veem aqui e mostre-me quão cortês pode ser.
— Te apodreça primeiro!
A jovem se aproximou da mesa onde estava a bacia, lavou as mãos e
procurou uma toalha a seu redor. Ao não encontrar uma em seguida, secou-se
com a saia.
Ele a olhava fixamente. Enid secou as mãos com a saia. Aquela mulher de
hábitos tão delicados que lhe arreganhava por beber água diretamente da jarra
secou as mãos com a saia. Algo muito estranho estava ocorrendo.
MacLean moderou seu tom.
— Não é razoável. Foi só um beijo.
Ela estalou os dedos e desviou a cara.
— Não foi nada.
Afastava-o de si, e sem nenhum motivo aparente. Ele ardia em desejos de
levantar-se, aproximar-se a ela, tomá-la pelos ombros e sacudi-la. Mas Enid já
estava tremendo. Só era um leve tremor dos dedos, e imediatamente meteu as
mãos nos bolsos para que ele não percebesse.
— Se não foi nada, por que atuava então como se exigisse meus direitos
conjugais?
— Não está o bastante recuperado para exigir nada, e muito menos
direitos conjugais.
Ele poderia ter retirado o lençol para lhe mostrar a prova de seu engano,
mas ou as sombras faziam das suas com suas feições ou esteve chorando.
Tinha os olhos avermelhados, o nariz úmido e torcido.
Sim, chorou. Diabos. Ela entrou na sala de mau humor. Ele podia pensar
em uma explicação fácil, mas um homem não vivia com uma mulher tão
intimamente como ele viveu com a Enid sem saber um pouco dela, e teve a
regra dez dias atrás. assim, o que lhe acontecia agora?
Ela deu a volta.
— Não tenho vontades de discutir contigo.
MacLean a pôs a prova.
— Isso é uma mudança.
Enid não mordeu o anzol.
— Vou deitar me.
Por que a beijara? Ele se manteve em silêncio, à expectativa, enquanto ela
tirava a rede e as forquilhas do cabelo e as deixava sobre a mesa.
O cabelo encaracolado e escuro se esparramou ao redor de seus ombros.
Jogou-o atrás com um movimento da cabeça, passou-se os dedos pelo couro
cabeludo e então levou as mãos à cabeça e fechou os olhos, como se retivesse

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a razão com as mãos. Ao abrir os olhos viu a maneira em que ele a estava
observando, e no tom de uma mulher levada ao limite da paciência lhe disse:
— Sabe? Não queria vir à mansão Blythe e cuidar de ti. Tinha um posto na
casa de lady Halifax. Tinha uma responsabilidade para aquela dama. E a
abandonei para vir aqui e cuidar de meu marido. Esse marido que é um
velhaco, um inútil que não serve para nada, e que me abandonou faz nove
anos. Há algo irônico, se parar para examinar, mas não vou fazê-lo. — Tirou os
alfinetes do colarinho. — Não vou fazê-lo.
Tirou também os alfinetes dos punhos, e os atirou sobre a mesa, em cima
das forquilhas. Ela, que até então nunca se desabotoou um só botão diante
dele, despiu-se sem pensar nas consequências.
Depois de descalçar-se, sentou-se ao lado da mesa.
— Não vais recolher os sapatos? — inquiriu ele.
— Por quê? Estarão aqui pela manhã. — Fez a um lado o montão de roupa.
— Não é como se você tivesse que recolhê-los.
Aquela mulher sempre estava arrumando a sala, dobrando as toalhas e as
guardando quando ao cabo de cinco minutos precisava as desdobrar para
limpar algo. "Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar", dizia
sempre.
— Quando podia andar, jamais recolhia nada.
É cruel. Aquela mulher que lhe cuidava meigamente se mostrava cruel.
Lhe teria perguntado o que lhe ocorreu... mas ela subiu a saia até os joelhos.
Ao MacLean lhe secou a boca.
— Sabe o que foi? Um jogador ambulante. — Disse as palavras em um tom
de mordaz desdém. — Foi bonito, elegante. Recitava poesia pronunciando-as à
escocesa, atraía-me com a promessa de aventura, e eu era tão débil mental
que sortiu efeito.
Ele teria se sentido ofendido e furioso de não ser por um vislumbre das
brancas calcinhas de Enid, as lisas e brilhantes panturrilhas embainhadas nas
meias e a liga colocada perto do joelho.
— Tinha um posto de instrutora, e fugi contigo para nos casar. — Desatou
as ligas e tirou as meias, que também deixou cair ao chão.
Quando ficou em pé e sacudiu a saia, ele deixou escapar um suspiro
entrecortado. O coração lhe pulsava acelerado e com força, e aspirava grandes
baforadas de ar.
— Isso aconteceu faz muito tempo, Enid. Não pode seguir zangada... não
é...?
Lhe dirigiu um olhar letal, os extraordinários olhos azuis cheios de
escárnio, e então foi à cômoda, tirou uma de suas singelas camisas de dormir
brancas e a apertou contra seu peito.
— Meu posto em casa da senhora Halifax foi o segundo trabalho que

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deixei por ti, mas só porque ela me disse que devia fazê-lo. Aprendi a lição
quando abandonei minhas responsabilidades como instrutora e recebi o que
merecia. Abandonou-me. Já está, tornei a dizê-lo. Abandonou-me, a mim.
Estava-lhe provocando. Aquela mulherzinha de tornozelos esbeltos e
cabeleira negra e agreste lhe estava cravando como se ele fosse um urso ao
que acossar!
— Por quê? — perguntou ele com a fronte enrugada.
Poderia lhe haver perguntado por que o provocava, mas não lhe daria a
resposta.
— A que te refere?
— Por que te abandonei?
Lhe respondeu fazendo uma torpe e zombadora imitação de seu acento
escocês.
— "Porque é uma âncora ao redor de meu pescoço, querida."
Interessante.
— E era isso certo? Era uma âncora ao redor de meu pescoço?
— Certamente. Queria me estabelecer, estar casada e viver em um lar
autêntico com um jardim e uma cerca. Ter filhos. Ser normal.
Lhe gostaria de fazer todo isso com ela, começando pelo que se requeria
para ter filhos.
— Você queria ser irresponsável, temerário e imaturo — seguiu dizendo a
jovem.
Mas ele teria que chegar primeiro ao fundo do desconcertante e ilógico
temperamento daquela mulher. Estavam a sós, a porta fechada com ferrolho, a
sala iluminada pela luz oscilante das velas, e uma brisa cálida que conduzia os
aromas do verão entrava pelas janelas abertas. Era uma noite adequada para
fazer confissões.
— Assim no Little Bidewell, quando te teve jogado o cavalo, roubou-o e
fugiu como um ladrão, coisa que foi, abandonou-me e tive que pagar suas
dívidas.
Ele dirigiu a vista à jarra de água que estava sobre a mesa ao lado da
cama.
— Por favor, posso tomar um gole de água?
Enid se aproximou.
— Isso foi jogo sujo, Stephen MacLean, e nunca te perdoei. Sabe o perto
que estive do asilo de pobres? — Verteu água no copo, derramando-a em
parte. — Todos aqueles anos de vergonha, sabendo que a meu marido
importava tão pouco me deixar em uma situação desesperada, e nunca
perguntou sequer por meu bem-estar. Finalmente consigo um posto de
trabalho em uma casa cuja senhora me necessita, necessita-me seriamente...
e tenho que deixá-la para me ocupar de ti. Não posso... — tremeu-lhe a voz, —

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não posso acreditar que me deixasse convencer por lady Halifax para vir aqui
quando ela estava tão... — Aproximou-se. Ele tomou a mão de Enid e a atraiu
para si. — ... tão doente e próxima à morte...
Embora Enid se mantivesse com os pés bem firmes no chão, MacLean a
puxou com força e a fez sentar-se na cama. Então lhe tirou o copo da mão e o
deixou sobre a mesa. O quadril de Enid tocava o seu. Não lhe olhava. Sua voz
era quase inaudível quando acrescentou:
— E agora não voltarei a vê-la jamais.
Como era possível que ele tivesse interpretado mal os sinais? Enid se
debatia não contra uma paixão fora de lugar a não ser contra a culpa e o pesar.
Lady Halifax morrera, e sua orgulhosa e desafiante esposa se desmoronava
ante seus olhos.
— Veem aqui, carinho. — Rodeando-a com os braços, atraiu-a a seu lado
de modo que a cabeça feminina descansou sobre seu ombro. — Chist...! —
Beijou-a na fronte, separou-lhe o cabelo da cara. — Não tem nada do que te
arrepender, querida. Ela te enviou aqui para que fizesse o que estava bem, e o
fez, e agora as duas demonstraram suas resoluções.
— Mas ela morreu — sussurrou Enid, e lhe quebrou a voz.
Os ombros lhe agitaram, e as lágrimas que contivera brotaram como uma
corrente. Apertou a boca contra a pele nua do MacLean para afogar os soluços.
Ele a ergueu, fez-lhe adotar uma postura mais cômoda, apoiar nele todo seu
corpo.
— Deus cuidará dela. Me deixe cuidar de ti.
A jovem ainda tinha a camisa de dormir nos braços, agarrando-a como se
o suave e desgastado algodão pudesse lhe dar consolo em um mundo
desolado.
MacLean a tirou de um puxão e lhe enxugou as faces com a borda. Então a
pôs no nariz.
— Lhe assoe — lhe ordenou.
Ela pareceu horrorizada, e os soluços interromperam quase cada uma de
suas palavras.
— Não... vou ... me soar o nariz... com mi... camisa de dormir.
Se ela não estivesse vivendo uma tragédia, MacLean poderia ter rido.
— Então segue sendo a Enid de sempre — lhe disse com ironia.
Ela se ergueu, retirou uma toalha do amontoamento que estava sobre a
mesa ao lado da cama e, inclinando a cabeça, soluçou nela. Não compreendia.
Nem sequer agora compreendia. Ele voltou a tomá-la em seus braços e pôs a
face contra seu peito.
— Não importa quantas vezes te separe, seguirei aqui para te abraçar.
Ela não podia conter os soluços.
— Está... morta. Fria... só na tumba. Morrer... vi o que é.

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Claro que o vira, pois se dedicara a cuidar dos doentes. Mas ele não
pensara em como lhe afetaria. Os dedos de Enid lhe aferraram os braços, e se
contorsionou como se os soluços lhe fizessem mal.
— Morrer é tão... tão solitário.
Ele se sentia profundamente de causar pena. Passou uma perna por cima
da sua, para lhe procurar consolo envolvendo-a com seu corpo, e deslizou as
mãos acima e abaixo de suas costas.
— Eu queria... queria lhe sustentar... a mão... quando ela... chegasse ao
fim.
MacLean acariciou ao Enid, murmurou-lhe ao ouvido fragmentárias
expressões de fôlego, e se maravilhou de quão profundo era seu afeto para
aquela pessoa a que servira. E pensou que ela devia estar no certo, que ele
devia ser um porco egoísta, pois do contrário não estaria abraçando-a
enquanto ela soluçava, desejando consolá-la e, ao mesmo tempo, desejando
sua ardente entrega.
Por Cristo que lhe adoraria com todo o ardor e a paixão de seu ser.
MacLean se encarregaria de que assim fosse. Mas de momento ocultava suas
intenções com murmúrios consoladores e carícias longas e lentas.
— Agora... não posso... ajudá-la. Agora... não posso fazer... nada. — Elevou
a voz e lhe golpeou uma só vez, em pleno peito.
Ele reteve o fôlego. A dama destrambelhava contra o destino, fazia
responsável ao MacLean e tinha o punho duro.
— Quero retroceder no tempo. Quero estar com ela. — Moveu a cabeça de
um lado a outro sobre o peito masculino. — Arruma-o... Arruma-o!
— Farei-o. — O cabelo do Enid ficou aceso da barba que lhe cobria o
queixo, e o leve aroma de gardênias e ar livre se elevou dos fios. — O
arrumarei tudo.
Por fim os soluços remeteram. enxugou os olhos com uma toalha,
esfregou-lhe com os dedos o lugar onde lhe golpeou e deixou que se
emaranhassem com o sedoso pelo peitoral. Estava muito turvada. Não sabia o
que estava fazendo, não percebia como afetaria a ele seu mais breve contato.
Pela primeira vez ele estreitava o corpo de uma Enid aquiescente. Seu próprio
corpo lhe exigia consolá-la de uma maneira física. Era o bastante sensato para
lhe fazer caso omisso; seu pênis dirigia a outros órgãos, e seu pênis nunca lhe
dava bons conselhos. Mediante um esforço de concentração, conservou um
mínimo de bom julgamento.
— Mostre-me a carta.
Ela se ergueu, tirou do bolso a folha enrugada e a sustentou um momento
como se não pudesse soltá-la. A estendeu lentamente.
— Tem-na escrito o advogado de lady Halifax. Oxalá pudesse ler uma das
que me escrevia ela. Engenhosa e ... — voltou a lhe tremer a voz — e mordaz.

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— Voltou a apoiar a cabeça em seu ombro.


Como se ali se encontrasse a sua casa. Ele teve que fazer um esforço para
não elevar o punho em sinal de vitória. Tomou uma toalha, empapou-a na água
da bacia e umedeceu as ardentes faces de Enid.
— Sente-se melhor?
Ela assentiu, tomou a toalha e a aplicou aos olhos inchados.
MacLean examinou a carta em silêncio, e então voltou a dobrá-la e a deu a
ela.
— Devia te querer muito. Deixou-te uma herança.
Enid clareou a garganta e guardou de novo a carta no bolso.
— Estou segura de que deixou uma herança a todos seus criados.
Não deveria rebaixar-se tão facilmente.
— Você não foi sua criada. Foi sua companheira.
— Imagino que deixou um presente a todos que estavam a seu serviço.
— Depois do que fez por mim, se fosse morrer hoje quereria te legar o
mundo. Conheço você, Enid MacLean, e deu a lady Halifax o melhor de si
mesma. — Pegou a toalha, voltou a molhá-la e esfregou brandamente a testa
da jovem. — Seu legado para você não é simbólico, a não ser uma mensagem
pessoal de afeto.
— Isso espero. Eu gostaria de ter sua escova com o reverso de prata.
Lembro... — outra vez sua voz tremeu, e fez uma pausa até superar o acesso
de emoção, — lembro que escovava o cabelo dela de noite antes que dormisse.
Me dizia que isso a fazia dormir melhor.
Sua mão seguiu a elevação de músculo que formavam os peitorais
masculinos. Distraidamente, ele estava seguro.
— Então talvez terá a escova com o reverso de prata.
Lhe rodeou os mamilos com as pontas dos dedos.
Tanto se o fez distraída como se não, era preciso que se detivesse.
Agarrou a mão dela e a separou de seu peito.
— Me parte o coração quando chora. Oxalá pudesse fazer que tudo fosse
melhor para você. — Aspirou fundo. — Mas sou um homem. Sou seu marido.
Quero te consolar à maneira clássica, me compreende? — Com o polegar lhe
ergueu a cara até que esteve à altura da dele.
Os sinais de aflição estavam se desvanecendo, eliminadas pelo pano frio e
úmido, e aquela luz interior que fez MacLean voltar da morte brilhava em seus
magníficos olhos azuis e através de sua cútis aveludada. A luz o atraiu. Queria
esquentar as mãos nela, absorvê-la em seu ser, e a tensão da disciplina que
ele mesmo se impunha dotava de aspereza a sua voz.
— Se me tocar assim a consolarei como um marido consola a sua esposa,
e logo não aceitarei que me acuse de ter me aproveitado de sua aflição.
O olhou fixamente e franziu o cenho com uma expressão de furor contido.

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Muito bem. Enid estava tomando séria nota de suas boas intenções. Talvez
lhe seriam reconhecidas, pois bem sabia Deus que não obtinha nenhuma
satisfação do rechaço.
Com voz vacilante, ela disse:
— Me sinto cansada de me sentir zangada, e de morder a língua quando
você... quando me repreende.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Mordeu a língua?
— Estou cansada de fazer o que é correto, de estar sozinha, de suportar...
uma cama fria.
Tudo no corpo ingovernável de MacLean estava em expectativa.
— Estou cansada de desejar... desejar...
Agora ela não podia se deter!
— O que?
O separou de um empurrão, se levantou da cama e lhe deu as costas,
esfregando os braços acima e abaixo. MacLean soltou uma maldição silenciosa.
Se ela queria lhe fazer pagar por seu mau caráter, estava fazendo maravilha.
Desejava gritar com ela, mas os ombros encurvados e a cabeça encurvada da
jovem o detiveram. Durante todas aquelas semanas foi forte como uma torre.
Uma Enid frágil, era uma nova experiência que afetava seu coração tanto como
o corpo.
— Não vá. Não vou me jogar sobre você.
— Eu... sei. Não se trata disso. — se voltou e o contemplou, a cabeça
inclinada. — Estava recordando... o muito que o amei uma vez.
Foi ele realmente um homem tão espantoso?
Ou acaso ela ia lhe amar de novo?
— Não fique aí. — Ergueu as roupas de cama com um gesto tentador. —
Pode voltar para meus braços.
Ela se aproximou cautelosamente ao leito, pegou a mão e entrelaçou os
dedos com os seus. MacLean esfregou a palma dela com o polegar e notou as
durezas produzidas pelo duro trabalho.
— Deixei tudo por você, porque é meu marido. Tive todos os deveres e
nenhum dos privilégios. Nem seu apoio econômico nem seu afeto, nem sequer
sua presença. — Ergueu o queixo. — Então, só por esta noite, vamos fazer as
coisas a minha maneira.
O coração de MacLean pulsou com força. A atraiu para si.
Ela se sentou na cama a seu lado.
— Tudo o que quero é a você.

Capítulo 14

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— Quer dizer como marido e mulher? — MacLean apertou brandamente a


mão dela. — Nus em uma cama?
— Nós dois.
Durante os dias em que Enid cuidou de MacLean, chegou a saber por sua
maneira de sorrir, pelo vigor de seus beijos, pela ondulação de seus músculos,
que aquele homem poderia lhe proporcionar prazer.
— Não pensa as coisas com uma mínima clareza.
— Se equivoca. Penso com muita clareza. — Agora que a amargura e o
pesar ficaram para trás, estava totalmente absorta nele, no duro plano de seus
músculos sob ela, no aroma de sua pele, um aroma de sabão com essência de
hortelã. —Estou pensando em que se encontra muito fraco para fazer nada
mais que estar aqui deitado enquanto eu procuro obter prazer com você.
— Se isso for uma ameaça, a verdade é que não me causa temor.
— Pois deveria causar. As cicatrizes do peito lhe separavam o pelo em
nítidas linhas, mas as feridas se curaram bem e ganhou peso de um modo
surpreendente. Os exercícios que realizava diariamente o dotaram de duros
músculos e tendões. Ela deslizou a palma pelo pelo encaracolado loiro
avermelhado que lhe crescia sobre os peitorais, do centro do esterno, e
desaparecia sob o lençol.
— Porque tenho intenção de te fazer sofrer.
Talvez se tratasse tão só de que Enid levava tanto tempo sem tocar a
outro ser humano que desejava prolongar a doce sensação que a embargava.
Talvez fosse uma mulher perversa que tratava de agarrar ao voo qualquer
oportunidade de prazer.
Rodeou com as pontas dos dedos os mamilos masculinos.
Talvez o necessitasse.
— Deveríamos ser judiciosos — observou ele, mas sua voz se fez mais
fraca quando ela desceu da cama.
As cortinas corridas das janelas inchavam, se movendo com a leve brisa,
mas a noite envolvia a quinta. Enid desabotoou o primeiro botão do colarinho.
— A quem importa? — replicou ela. Já não. Experimentou muita aflição, e
agora queria saborear a vida. — Quero algo mais que deveres e
responsabilidades. O que tem isso de mau?
— Está muito perturbada — disse ele com a voz enrouquecida.
— Basta de insípidos murmúrios. Não é o momento de aperfeiçoar a
moral.
Ele a desejava. Fazia semanas que ela sabia, e não só porque a beijara. As
olhada que lhe dirigia eram ardentes. O irritava que ela risse com o senhor
Kinman ou com Harry. Detestava cada vez mais que o atendesse como se fosse
um inválido.
O desejava. Não queria, mas desde o dia em que o viu inconsciente, desde

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o momento em que ele abriu aqueles extraordinários olhos verdes e dourados,


desejou seu contato, seu corpo, sua aprovação. Vestia a roupa de baixo mais
simples, mas pela maneira em que ele a olhava poderia ter brilhante seda e
rendas. Os músculos se esticaram no pescoço de MacLean e fechou os punhos.
Abriu a boca com pasmo ao vê-la se desprender da roupa com uma refinada
despreocupação que não teria igualado qualquer dia no que regesse a
prudência.
Ela gozava ao ver seu assombro.
— Além disso — disse, — estamos casados. Recorda?
— Não. Não recordo.
— Asseguro isso.
— Acredito. Aceito tudo o que me diz. — Os olhos dele ardiam, mas o tom
de sua voz era frio. — É a razão de que siga aqui. Sem você já teria partido em
busca de respostas.
Ela jogou o vestido ao chão e se inclinou para deslizar as mãos por seus
ombros, com um longo e lento movimento.
— Não pensou seriamente em partir?
— Não sei quem sou. —- Agarrou-lhe os pulsos e os levou, um após outro,
aos lábios. — Não sei o que fiz. Não sei quem me busca. — Beijou-lhe os
pulsos, com beijos lentos, quentes e úmidos que fizeram a jovem fechar os
olhos para saborear o prazer. — Um homem como eu necessita respostas. Mas
você me retém aqui com seus sorrisos breves e luminosos, com sua língua
mordaz e sincera, o rebolado de seus quadris e sua constante atenção.
Acreditava acaso que o estava enrolando de propósito?
— Não tentei te seduzir — disse em voz baixa.
— Isso já sei. — Esfregou sua pele úmida com o polegar.
O que queria dizer, então?
— Só quero que melhore.
—Estou melhor. — Passou a língua pelo polegar dela e então mordiscou a
ponta. — Lhe demonstrarei isso.
Quando ele a tocava assim, ela mal podia respirar. Quando a olhava como
se fosse um bocado delicioso e ele um lobo faminto, se sentia confusa e queria
fugir. Mas mais ainda desejava ficar e alimentar o apetite daquele homem... e o
seu próprio.
Lhe dando as costas, tirou os calções. Quando levou as mãos à costas
para desatar as anáguas, os dedos de MacLean afastaram os seus. Ela olhou
para trás. Ele tinha meio corpo fora da cama, uma expressão resolvida no
semblante, a larga e formosa boca séria. Iniciou à tarefa com os olhos
entrecerrados, a atraiu mais para si e a liberou com eficácia das anáguas.
— Abandonou suas débeis tentativas de ser sensato? — Emitiu uma risada
leve, com a efervescência borbulhante em suas veias.

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— A sensatez me abandona quando você está presente.


Acariciou sua camisa e agarrou a barra da branca camisa de cambraia.
Enid se voltou para ele, apoiou um joelho na cama e lhe pôs as mãos nos
ombros.
— Eu me encarrego disto. Fica quieto e faz o que te diga.
Seus olhos posaram com avidez nos seios que, liberado do espartilho,
empurravam a camisa. Ela suspeitou que quase podia vê-los através do fino
tecido; sabia que seus mamilos se puseram em posição de firmes e que ele o
via. Aspirou longa e lentamente; o estava provocando cada vez mais.
— Me deixe que te desate o espartilho — sussurrou ele, enquanto seus
lábios formavam cada palavra com uma encantadora precisão.
Enid observou os movimentos e soube que ele queria saltar sobre ela.
Mas, por uma vez em sua vida, ela conservou o domínio de si mesma. MacLean
ia fazer o que ela queria, porque se não o fazia ela se iria ao outro lado do
quarto e ele não poderia segui-la. Era implacável. Era insensível. Se vingava ao
mesmo tempo que exigia uma promessa de êxtase, e estava gozando da
situação.
— Me desate o espartilho — pediu ela.
Ele pôs mãos à obra, umas mãos algo trêmulas, mas desatou as fitas e,
com longos e lentos movimentos, começou a liberá-la do que era quase o
último de seus objetos. Debaixo do espartilho estava a camisa, e debaixo desta
o corpo nu de Enid. Ela sabia, MacLean sabia, e ele ansiava tanto vê-la que
essa certeza produziu na jovem uma sensação de triunfo que lhe coloriu a pele.
Toda a pele.
E assim, para se mostrar tal qual era, desatou a fita no colarinho da
camisa.
O objeto lhe caiu sobre um ombro.
A emoção embargou MacLean.
Ela deslizou a mão ao longo da clavícula e sob o folgado objeto. Sem
desviar o olhar da cara de MacLean, retirou a camisa braço abaixo. A fita
tropeçou com o mamilo e se deteve somente um instante, e então o seio ficou
livre.
MacLean emitiu um gemido que alimentou a alma faminta de prazer de
Enid.
Ela ergueu os dedos braço acima até chegar ao mamilo ereto, e o tocou
com a unha enquanto ele a olhava sem pestanejar, extasiado por aquela visão.
— Não vai terminar com o espartilho? — perguntou-lhe.
MacLean puxou a fita com tanta força que rasgou a malha ao redor da
casa. Ela deveria ter-se alterado, porque não tinha outro espartilho, mas riu. A
velocidade e a força que ele empregou para tirar seu espartilho jogou do lado
da camisa que cobria seu outro seio e lhe descobriu a metade do ventre. O

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ajudou a passar a camisa pelos quadris, e enquanto finalizava a operação ele


se adiantou e, puxando o objeto braço abaixo, o tirou de todo.
Enid estava nua, e ele tinha pressa... tudo se desenvolvia tal como ela
recordava que foi no passado. Mas antes que pudesse se decepcionar, ele se
deteve. A agarrando pelos flancos, a olhou e, em um tom que refletia uma
veneração absoluta, disse:
— Meu Deus, que formosa é.
O que podia dizer a isso uma moça?
— Obrigado.
Se sentia formosa. Ele fazia que se sentisse formosa.
As crescidas mechas do cabelo loiro avermelhado de MacLean brilhavam
contra o fundo branco do travesseiro. Seus olhos tinham uma suave inclinação,
com uma pálpebra mais caída que a outra, um dos resultados da explosão. As
cicatrizes da cara estavam desaparecendo, mas aquelas linhas, junto com a
mandíbula proeminente, emprestavam a seu rosto uma dureza que nunca teve
antes. Apesar de que não podia andar, seu corpo musculoso dava uma
sensação de força contida. Era como se ela se despisse ante um pirata, um rei
de ladrões, um desconhecido, e a impressão de perigo latente a fez vacilar e,
vergonhosamente, vibrar de excitação.
Uma tolice, certamente. Ele não era nenhum desconhecido. Estavam
casados. Talvez o tempo tivesse melhorado o caráter daquele homem, mas ela
conhecia Stephen MacLean. Era um ator, e embora o envolvia um ar de bravia
ameaça, em realidade não era mais que um ladrão de pouca fé e um jogador
inveterado. O estava utilizando e isso estava bem. MacLean se achava em
dívida com ela.
Com uma oscilação dos quadris, ela se liberou da camisa.
O olhar de MacLean percorreu sua curvatura.
— Tão formosa — disse com a voz rouca.
Enid sentia um comichão na pele, e agarrou o pulso masculino quando ele
estava a ponto de afundar os dedos no arbusto de pelo entre suas coxas.
— Ainda não — disse.
Enid pensou que ele poderia pôr objeções a aquele freio, inclusive poderia
se liberar e tratar de agarrá-la. Mas MacLean tinha um sorriso enviesado nos
lábios, e se adveio a aguardar até que o soltou. Então, sem chegar a tocá-la,
seguiu com a mão a forma de seu quadril.
Ela tragou saliva.
Aquela pantomima lenta e sensual saciava sua fome, mas deixava intacta
sua sede ao mesmo tempo. Ele deslizou a palma pelo ventre feminino, mas,
uma vez mais, sem chegar a tocá-lo, e redesenhou a rotundez dos seios. Ela
retinha o fôlego uma e outra vez, quando o contato parecia iminente e se
iniciava a sensação. Cada movimento era como uma promessa sem cumprir, e

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ela, que só desejou promessas, agora ansiava que se cumprissem.


Enid oscilou para frente, mas a mão de MacLean escapuliu, subiu até
quase lhe acariciar a clavícula, até quase lhe tocar o pescoço, e então tomou
entre dois dedos uma das tranças e curvou o extremo ao redor de um mamilo,
lhe dando um ar escrupuloso devido à ocultação.
Ah, mas ela também sabia lhe perseguir. Agarrou o lençol e o retirou, o
submetendo à tortura, que ela compartilhava, de revelar pouco a pouco o
corpo reconstruído com tanto esforço. Os ombros e braços apresentavam uma
musculatura imponente, que exsudava potência viril. Por debaixo, as costelas
ainda se sobressaíam mais do que teria gostado, mas o exercício constante
cobrira com uma capa de músculo as elevações antes muito definidas, e sua
figura, em conjunto, era digna de se ver.
A distância entre a clavícula e a cintura era considerável, e o lugar onde o
corpo desaparecia sob o cinto das calças puídas e cortadas pelos joelhos era
muito provocador. Ela havia visto muitas vezes seu torso; fora impossível não
vê-lo enquanto ele erguia os pesos e torturava o próprio corpo. Mas nunca vira
o que ocultavam as calças.
E queria ver.
Ele riu entre dentes.
— Sente curiosidade, carinho? Há respostas pendentes.
MacLean não levava a sério o domínio de Enid. Parecia acreditar que podia
governá-la com sorrisos encantadores e exalando desejo. Era um jogo ao que
um casal podia se entregar. Ela pôs a mão sobre o vulto em suas calças.
Ele deixou de sorrir.
A magnitude do que havia ali debaixo a deixou pasmada. Sua mão não
podia abranger a longitude daquilo... e isso por que tentava. Estirou a ponta do
dedo mais comprido para a base e o pulso para a ponta, e compreendeu que
esquecera mais coisas de MacLean das que recordava. Retirou a mão e lhe
dirigiu um olhar furioso.
— Se dá conta que faz oito anos que não faço isto?
— Diabos, mulher. — Se equilibrou sobre ela, rodeou sua cintura e a
estendeu sobre ele. —A julgar pelo que lembro, é possível que eu não o tenha
feito!
Ela riu de sua veemência, e então o impacto do peito nu de MacLean
contra o seu a deixou sem respiração. A agarrando pela nuca, aproximou os
lábios aos seus. Ela acudiu avidamente a seu encontro. Uniram as bocas, se
saborearam mutuamente, consumiram o um ao outro. Os seios nus contra o
peito masculino pareciam perversos e gloriosos, e ela se movia para frente e
para trás, o suficiente para que o pelo encaracolado lhe roçasse os mamilos.
MacLean retirou seus lábios.
— Mulher — disse. Só isso, mas se movia com ela como se a proximidade

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também o deleitasse. Deslizou os dedos entre seu cabelo e seguiu dizendo: —


quis te amar desde a primeira vez que a vi. Quero te mimar, ver se sua cara
quando se entrega ao amor se é suave e cálida... e está disposta a seguir
gozando. — Massageou o couro cabeludo com lentos movimentos circulares, e
ergueu a cabeça dela para olhá-la aos olhos.
— É a razão de que não tenha morrido, sabia?
— Não — sussurrou ela.
Enquanto lhe percorria as costelas com as palmas das mãos, desejava que
ele deixasse de falar. Entretanto, se deleitava com suas adulações. Não parecia
escandalizado pela conduta licenciosa de Enid. Ao contrário, a estimulava a
seguir adiante. Não parecia sentir repulsa a não ser estar orgulhoso de si
mesmo. Orgulhoso dela. E esse orgulho se mostrava na tumescência que
pressionava o abdômen da jovem.
Agora ele a descrevia como se ela fosse um anjo.
— Me conte — incitou.
— Cada vez que abria os olhos, estava ali, me dando de comer, me
falando, me banhando...
— Estava tão magro... — Beijou-lhe o pulso. — E agora está tão forte...
— Às vezes, de noite, vestia essa espantosa bata rosa...
A indignação de Enid a fez sair de seu suave ninho de satisfação, e tratou
de se endireitar.
— Minha bata não tem nada de mau!
— ... e quando se inclinava, podia ver seus seios por debaixo do colarinho.
— Contemplou os seios e acariciou um com a maior ternura. — Seus seios
arrancaram a um homem das garras da morte.
Ela riu, uma risada tola, mas ele parecia falar tão a sério e o dia foi tão
atroz e esta... esta ocasião era diferente, um sonho que encaixava em sua
fantasia de amor perdido muito tempo atrás.
Enid acreditou que, ao se casar, esbanjou para sempre essa fantasia, mas
aquela noite, só por um momento, aquele homem era o príncipe com o que
sempre sonhou. Lhe daria satisfação, e lhe devolveria o favor.
— Espera para ver o que meu corpo é capaz de atrair.
Debaixo dela, o membro retido pelas calças se flexionou.
Lhe beijou no ombro e seus lábios se atrasaram em uma das cicatrizes que
tinha ali.
— Dói?
— Não, melhorou com seu beijo.
— OH! — ela gostou dessa resposta. — E aqui? — Beijou uma cicatriz do
peito.
— Também a melhorou.
— E aqui? — se atrasou no mamilo, rodeando-o com a língua.

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— Poderia levantar os mortos — disse ele ardentemente.


Ela foi lhe percorrendo o torso com seus beijos, procurando cada cicatriz e
cada costela, acariciando uma atrás da outra até que as considerava bem
servidas, e por fim chegou à cintura. Colocou os dedos entre a calça e a pele e
ergueu a vista.
Ele a olhava fixamente com o rosto imóvel, assolado pela necessidade.
— Tenho a sensação de que te esperei toda a vida.
Enid aplicou os lábios no vulto sob as calças e aspirou o aroma de sabão,
de pele limpa, de MacLean. Era seu marido. Queria lhe fazer feliz, e sê-lo
também ela... e sabia como. Desabotoou as calças dele e introduziu os dedos.
O ventre masculino se ondulava sob suas carícias; encontrou em seguida o
membro duro, e o explorou com ternura.
Ela se esquecera de muitas coisas; a cabeça firme e suave, a vara
marmórea. Seu tamanho, seu calor, a maneira em que os quadris de MacLean
se moviam enquanto o acariciava.
As calças baixaram um pouco; ele as estava tirando.
— Temos toda a noite pela frente - ela o repreendeu.
— Não ficam mais de cinco minutos antes que o desejo me faça expirar.
Quando as calças estiveram mais baixas, Enid tomou o membro na boca.
Sabia bem, que gosto teria um animal macho e limpo, e quando o sugou e fez
girar a língua, o sabor se voltou um pingo salgado.
Ele estava perto, muito perto...
MacLean se ergueu e a atraiu até que ficou sentada sobre ele, nas coxas,
as nádegas apoiadas em seus calcanhares. As calças caíram ao chão. Ela
pensou que a deitaria na cama e a investiria, e se preparou para aguentar o
desconforto. Mas ele a elevou e a estendeu em cima de seu corpo com os seios
tocando seu peito. A olhou fixamente à cara, com os olhos ardentes de
exigência e desejo.
Notou que a glande a tocava, procurando a entrada. Se agarrou a seus
ombros; seu corpo se abrandou, se umedeceu com o desejo.
— Me ajude, Enid. — A agarrou pelos quadris. — Não posso fazer tudo eu
sozinho. Tem que colaborar.
Ela caiu então na conta... e se sentiu turvada.
Queria lhe guiar, o levar ao mais íntimo de seu ser.
Era uma mulher experimentada. Uma esposa. A esposa de MacLean.
Entretanto, não esteve com um homem em oito anos. MacLean estava tão
colado a ela que notava sua respiração nos lábios e via aumentarem suas
pupilas enquanto a olhava e aguardava que se decidisse... faria isso?
—Tem que me ajudar — insistiu ele com um fio de voz. — Não posso fazê-
lo sem você. Estaria perdido... sem você.
O que era mais importante... ficaria com ele? Pois era isso o que ele

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estava pedindo.
Cessou a precipitação para a euforia. Os traços imóveis de MacLean
poderiam ter estado esvaziados em aço; suas cicatrizes, o nariz quebrado, a
rude mandíbula refletiam a um guerreiro, um homem dotado de uma força
selvagem que se retinha.
Só seus olhos tinham vida. Aqueles olhos sem par, uma mescla de verde e
ouro, e lhe ordenavam que o aceitasse, que decidisse livremente se unir a ele.
— Necessito que me aceite - disse, - que fique comigo... para sempre.
O silêncio no sótão aumentou até adquirir umas proporções imensas. Ela
ansiava correr, se esconder, não ter que efetuar jamais aquela escolha. Pois
quando o fizesse seria sua esposa, não só por aquela noite, a não ser para
sempre. Tal era o preço que pagava pela dissipação daqueles momentos; se se
negava, ele não insistiria. Tinha um caráter o bastante forte para fazer isso...
mas reataria o ataque outro dia. Mais tarde ou mais cedo, ele se imporia.
Enid tragou saliva. Sentia que se avivavam todos seus temores.
Ninguém jamais a amou. Não de uma maneira eterna. E ela podia amar,
amou, muitas vezes, e se vira a um lado do caminho e sozinha. Mas MacLean
era seu marido. Mudara. Era um homem diferente. Parecia honorável. E ao fim
e ao cabo, se se equivocava com ele não importaria, porque não o amava. Pela
manhã, como todas as manhãs, seguiriam unidos pelas promessas que fizeram
nove anos atrás, mas não o amaria.
Aquela noite Enid poderia correr o risco porque não se permitiria amar.
Não voltaria a se deixar embargar pela angústia e pela aflição. Estaria sempre
livre da emboscada do amor. Lentamente, ela deslizou a mão entre os dois e
colocou seu pênis exatamente no lugar correto. Se adaptou e empurrou para
baixo.
Ele sorriu, com um sorriso leve, duro, breve.
Então demonstrou quão profunda era sua duplicidade. Deslizou as mãos
ao redor das coxas do Enid, a abriu mais, empurrando para cima com os
quadris. E a penetrou. Centímetro a centímetro foi entrando nela. Enid fazia
caretas, sempre a beira do desconforto, decidida a não se encetar em um inútil
combate enquanto tratasse de se liberar. Oito anos era muito tempo, ela fora
muito jovem, seu corpo se recuperou dos antigos assaltos de MacLean e voltou
a se fechar.
Mas ele seguiu entrando, inexorável, a dilatando de tal maneira que ela
soube que jamais experimentaria prazer. Exatamente como no passado. Ia ficar
insatisfeita. Tratou de ocultar sua decepção, mas ele viu o apuro em que se
achava. Observava tudo. Era muito perceptivo, e ela lamentava, assim fechou
os olhos e voltou a cabeça. E ele deslizou uma mão entre eles. Utilizou dois
dedos para que a adaptação fosse melhor. Tocou-a, e esse contato foi o mais
tênue retalho de voluptuosidade. Ela reteve o fôlego. Flexionou as coxas e se

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ergueu ligeiramente. Aquilo fora... agradável. O dedo de MacLean voltou a


tocá-la.
Tudo nela se flexionou.
Abriu os olhos e o olhou fixamente com a esperança e a paixão brotando
ao uníssono.
— Está melhor assim, carinho? — Embora sua voz fosse áspera, exercia
uma sedução aveludada. — O notei dentro de você. Se agarrava a mim, e já é
tão... estreita.
Ela se ergueu pela metade, mas voltou a se colocar na posição anterior.
— É como uma luva de veludo a meu redor que me acaricia. Me sinto...
arrebatado.
Tudo encaixava de um modo um pouco mais cômodo.
Ela se ergueu.
— Vou te possuir. Vai saber, constantemente que é minha. Vai me querer
dentro de você toda a noite.
Ao ouvir esta advertência proferida em voz rouca, os joelhos de Enid
cederam. Se deixou cair sobre ele até que a penetração foi total.
Então se moveram juntos. Com violência, sem moderação, um choque de
corpos. Ele se deixou cair sobre os travesseiros. Ela se inclinou para frente em
cima dele e apoiou as mãos em seus ombros. Ele a guiou com as mãos sob
suas coxas. Os músculos de Enid doíam enquanto se movia com ele. MacLean
movia velozmente os quadris debaixo dela. A enchia. A olhava a cara, forçava o
ritmo, exigia em silencio com seu furor voluptuoso que chegasse ao paroxismo
em cima dele. Mas ela não ia permitir que a dominasse. Não o permitiria ao
fazer amor. Enid decidiu se entregar a ele. Era sua enfermeira, sua esposa. O
obrigaria a lhe mostrar sua excitação.
Se movia ao ritmo de MacLean, mas olhava a sua vez. Deslizou as mãos
pelo ventre masculino. Se inclinou para trás, pôs as mãos nas coxas dele e
exibiu com orgulho os seios.
A disciplina o abandonou. Tinha os olhos entrecerrados, a cabeça jogada
para trás, a respiração entrecortada, o pescoço tenso pela fúria da paixão. Ela
deveria ter experimentado uma sensação de triunfo, mas ao vê-lo debaixo de
seu corpo, se contorcendo, preso de um prazer que desejava a liberação,
dobrou e redobrou sua própria paixão. Gemia a cada movimento.
Saber que encontrara semelhante deleite violento... esse era o verdadeiro
afrodisíaco.
O mundo inteiro estava encapsulado em uma cama de lençóis enrugados,
um montão de travesseiros e um MacLean avermelhado e eufórico, cativo
entre as pernas de Enid. Se moveram juntos, cada vez com mais rapidez, e ela
não pôde seguir se contendo. Seu corpo, já esquentado pela paixão, alcançou o
orgasmo. Jogou a cabeça para trás. No mais profundo de seu ser os músculos

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se convulsionaram, e quis... procurou... OH, Deus... encontrou.


Enid gritou de prazer.
Ele se dominava, seguia com o movimento, agora leve, contido. Então,
quando ela chegou ao topo, ele prescindiu de sua reserva. Investiu nela, a
levando a outro orgasmo, e outro e, ao mesmo tempo, verteu nela sua
semente, um poderoso, viril, majestoso acoplamento. Os batimentos do
coração de Enid se normalizaram gradualmente. A letargia ocupou o lugar da
paixão, e se estendeu em cima dele, a cabeça em seu peito, as coxas trêmulas
ao redor de seus quadris. O ar de sua respiração acelerada esquentava seus
pulmões. Enid se perguntou por um instante se alguém os teria ouvido no
quarto de baixo, e decidiu que não ia se preocupar por isso. No dia seguinte,
talvez.
Então pensaria em coisas como...
Como o fato de que MacLean daria por sentado que prometeu coisas que
nunca ia lhe dar.
Esse pensamento fez que seus músculos se esticassem. A letargia
desapareceu e ela fingiu que se retirava com naturalidade. Se podia se
levantar e ir a sua cama... Como se pudesse o abandonar sem que ele se desse
conta.
MacLean a agarrou com firmeza, a impedindo de se mover.
— Muito cedo, está presa do pânico — ele disse.
Como sabia?
— Mas isso não deve ser. Agora é minha, e eu me ocuparei de tudo. —
Deslizou os dedos pelas costas de Enid, pegou a beira das roupas de cama e
cobriu aos dois. — Cuidarei de você.
Ela fechou com força os olhos e fingiu que dormia.

De madrugada, uns golpes na porta e os gritos dos homens a fizeram sair


das profundidades do sono: — Fogo! Saiam, Por Deus! A quinta está em
chamas!

Capítulo 15

MacLean. Enid se levantou com dificuldade da cama. Precisava tirar


MacLean da quinta, e não sabia como. Não podia levá-lo nos braços, não podia
arrastá-lo... talvez os guardiães que estavam abaixo...
Mas MacLean já estava em pé e avançava para ela, com a bata rosa de
Enid na mão.
Ela lançou um grito e tratou de lhe deter.
— Chist...! Estou bem. — Introduziu-lhe um braço na manga. — Se
apresse. Temos que sair daqui.

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Era um milagre. Outro milagre, tão grande como o que se produziu quando
abriu os olhos e falou. Podia andar!
E o fogo ia lhe matar...e a ela também.
Os golpes na porta continuavam.
— Despertem! Despertem! Fogo!
Fogo. Céu santo. Fogo. A fumaça penetrava pelas fendas das pranchas do
chão. Uma estranha luz iluminava o lado oeste do quarto. MacLean já vestira as
calças. Se ajoelhou aos pés de Enid e a ajudou a calçar um de seus sapatos,
enquanto ela colocava o braço na outra manga e atava o cinto.
— Não se preocupe por mim — disse ela com a voz enrouquecida. —
Segue adiante!
MacLean se movia sem nenhum sinal de angústia, como se não visse
motivo algum para se apressar, como se enfrentasse todos os dias a uma crise,
como se nunca tivesse deixado de caminhar. Ela queria lhe gritar que se
apressasse, que tomasse cuidado. O espreitavam todo tipo de perigos. Poderia
cair. A perna fraturada poderia voltar a quebrar.
O fogo poderia acabar com ele.
Enid calçou o outro sapato enquanto ele tentava abrir o fecho da porta no
chão. Afastou bruscamente a mão e a sacudiu como se tivesse se queimado.
Lhe lançou uma toalha. Ele envolveu os dedos com o tecido, abriu o fecho e
puxou a porta. Quem quer que estivesse debaixo empurrava ao mesmo
momento. A porta se abriu para trás e se chocou com o chão. Uma fumaça
penetrou no quarto. Enid ouviu o fragor das chamas que consumiam as
paredes de madeira no interior da quinta.
Cobrindo a cara com uma toalha, Harry subiu a escada e fechou a porta do
quarto atrás dele.
— Abaixo a saída está bloqueada. Temos que sair pela janela.
— MacLean não pode sair pela janela — protestou Enid, e tossiu por causa
da fumaça que envolvia sua cara. — A perna...
Mas os homens não a escutavam. Puseram mãos à obra, e tiraram uma
corda de uma bolsa que MacLean tinha guardado debaixo da cama. Em um
abrir e fechar de olhos, Enid se encontrou a ponto de se meter entre as
espessas roseiras que cresciam ao lado da quinta. Umas mãos a agarraram de
baixo, a afastando das sarças.
Os homens lançaram a MacLean gritos de incentivo quando começou a
descer. Ela também queria gritar, mas não podia. O terror fechava sua
garganta. Temia muito por ele. Então MacLean chegou a seu lado e a puxou
pelo braço. Foram até a cerca de estacas.
— Fique aqui até que venha te buscar — disse, e foi ajudar Harry, que
descia pela corda, e se assegurar que não ficava ninguém mais no interior da
casa.

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Com que recursos contava? Queria organizar uma operação de resgate?


Esteve doente. Enid chorou de novo, ela que nunca o fazia. Os muros de pedra
da quinta brilhavam com uma luz difusa por causa do calor que irradiava o
interior do edifício. Lady Halifax morrera. Enid, como uma tola, tinha
consumado seu casamento, permitindo que MacLean assumisse todo tipo de
coisas errôneas. Agora um incêndio devorava tudo enquanto ele ia de um lado
a outro como um homem capaz de empreender resgates, de embarcar em
aventuras... a abandonando uma vez mais.
Os soluços estremeciam seus membros. Quando ela se permitiu pensar na
recuperação de MacLean, imaginou que o conduziria, lenta e cuidadosamente,
para o pleno uso da capacidade de se deslocar.
Mas ele não a necessitava. Já não era seu paciente. Tudo mudou.
O que ela ia fazer?
Alguém a agarrou ligeiramente pelo braço e cruzou com ela a cancela, se
afastando da crescente multidão que gritava e apontava as chamas que
surgiam do telhado.
— Senhora MacLean? Se encontra bem?
Era o senhor Throckmorton, com o rosto iluminado pela luz misteriosa e
oscilante. Não usava gravata nem colarinho na camisa, e tinha o cabelo
totalmente desordenado, mas seu tom era tranquilizador e seu olhar inquieto.
Ela aspirou ar. Trêmula.
— Estou bem.
— Você está chorando. — Estendeu seu lenço. — Por que chora?
Ah, como se ela fosse lhe dizer isso!
— Tudo está controlado. — O dono da casa lhe deu uns tapinhas no ombro.
— Todo mundo se encontra a salvo, e isso é o que realmente importa. E sei que
você perdeu todas as suas posses, mas prometo que as substituiremos na
medida de nossas possibilidades.
Suas coisas! Nem sequer pensou... seus objetos, as cartas de lady Halifax,
o xale de renda no que trabalhou minuciosamente durante mais de quatro
anos... seus soluços se intensificaram. O telhado da quinta veio abaixo com
estrondo, e os homens se disseminaram em todas as direções. Enid esqueceu
seu pesar e olhou com frenesi a seu redor, tratando de localizar MacLean.
Com o rosto sujo de fuligem e cheirando a fumaça, ele apareceu a seu
lado e a tomou em seus braços. Enid se apertou contra ele e soluçou.
Aquilo ia caminho de se converter em um hábito, ao que ela não deveria
ceder, mas estava fatigada e tudo era horrível.
— Se machucou? — ele perguntou.
Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
— Está um pouco preocupada com seus pertences —disse o senhor
Throckmorton.

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MacLean a rodeou com os braços e a balançou.


— Não se preocupe por suas coisas. O importante é que estamos a salvo.
Cheia de furor contra ele, contra o senhor Throckmorton, contra o estúpido
mundo, o afastou.
— Não estou... preocupada... por minhas... posses! — exclamou elevando
de tal maneira a voz que os cães ladraram. Não se importou. — Como pode me
considerar tão... tola para me preocupar com minhas... coisas?
O senhor Kinman se reuniu com eles, Harry também estava ali, e os quatro
tinham no semblante a expressão claramente incômoda dos homens obrigados
a ser testemunhas das emoções femininas.
— É somente... o incêndio e... te ver andar e... — se conteve antes de
mencionar que ela e MacLean passaram a noite fornicando como coelhos.
Mas desejava fazê-lo.
MacLean também se deu conta disso, pois voltou a rodeá-la com os braços
e fez que apoiasse a cabeça em seu peito.
— Sinto muito. Throckmorton e eu estávamos equivocados a respeito de
você.
— As cartas de lady Halifax — replicou ela, emitindo um último soluço.
MacLean lhe acariciou o cabelo e teve o bom senso de não lhe responder.
Ela deslizou os dedos pelo peito nu de seu marido e sorveu pelo nariz.
— Por que nunca usa camisa, MacLean? Estou cansada de te umedecer
com minhas lágrimas.
— Está zangada — comentou Harry.
— Absolutamente — murmurou ela.
— A próxima vez que tenha um incêndio em plena noite — disse MacLean
em um tom de regozijo, — a resgataremos, mas sem despertá-la.
Enid soube que os homens assentiam, e sentiu desejos de esbofetear a
todos. Primeiro a MacLean, logo ao senhor Throckmorton, para seguir com o
senhor Kinman e terminar com Harry... e então de novo a MacLean.
Eles não a compreendiam.
— Todos os homens justificaram o que estavam fazendo no momento em
que se produziu a catástrofe — explicou o senhor Kinman.
Por cima da cabeça de Enid, MacLean falou no tom cortante e imperioso
que normalmente reservava para ela.
— Bom, Throckmorton, qual foi a causa do incêndio?
— Averiguaremos — respondeu o dono da casa.
— A verdade é que isto me parece bastante suspeito — acrescentou Harry.
Um longo silencio seguiu a este comentário. Enid elevou a cabeça e viu
que tanto MacLean como o senhor Kinman e o senhor Throckmorton olhavam
severamente para Harry. Os olhos de Harry brilhavam à luz das chamas
moribundas, e moveu o polegar, apontando para Enid.

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— Ela não é estúpida, sabem?


— Acredita que alguém causou o incêndio?
Harry meteu um dedo em uma orelha e o sacudiu. Ela havia voltado a
elevar a voz.
— Acredito que alguém foi descuidado, e quem quer que seja, o melhor
será afastá-lo deste encargo — disse o senhor Throckmorton com firmeza. —
Não tem nada de que se preocupar, senhora MacLean.
Não acreditou nele. Já fazia algum tempo que não dava crédito às
seguranças que lhe dava a respeito dela e de MacLean. Talvez um assassino
acabasse o que a bomba tinha iniciado. Um assassino prenderia fogo,
apanharia a um inválido e este morreria entre as chamas.
Harry tinha razão. Ela não era estúpida. No futuro estaria de olho atento.
O senhor Throckmorton lhe falou em tom suave.
— A levaremos a casa principal. Ali as mulheres poderão lhe cuidar. —
Então se dirigiu a MacLean. — Pedi que tragam uma carruagem.
— Muito bem. — MacLean pigarreou e baixou a voz, por isso só o ouviu
dizer: — Não acredito que possa caminhar tanto.
Estas palavras a fizeram se sentir culpada. Pelo amor de Deus, esteve
pensando nela mesma e suas cartas, enquanto MacLean se levantou pela
primeira vez em vários meses e caminhava! E, é obvio, como era um homem
tão teimoso como um asno, não queria admitir a fadiga diante de outros
homens. Com o cenho franzido, Enid olhou para Harry e o senhor Kinman, o
qual se apressou a retroceder, e então puxou o braço de MacLean.
— Conseguiremos objetos de vestir e tudo que necessite para a viagem.
A viagem?
Mas MacLean deu a entender que compreendera.
— Então fixou a data da partida?
— O antes possível. Não acredito nas coincidências, e isto... — O senhor
Throckmorton se interrompeu, e quando ouviu que alguém o chamava pareceu
aliviado.
— Pode ir sozinho até o banco? Não está longe. — MacLean fez um gesto
de assentimento e o dono do imóvel se apressou a partir.
O banco de pedra estava a uns passos. Enid se alegrou de que MacLean se
apoiasse por completo nela. Sua viagem? Faria uma viagem! Soltando seu
braço, deu-lhe um empurrão.
Ele perdeu o equilíbrio e caiu sobre o banco.
— Tome cuidado, Enid. A perna...
Ela conseguiu manter um tom razoável.
— Sua viagem? Aonde vai?
— A Escócia.
— A Escócia...

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Lá ia ele, a abandonando, e ninguém lhe havia dito uma só palavra.


Claro, por que teriam que fazê-lo? Ela não era mais que sua enfermeira.
Não era mais que sua esposa.
— Throckmorton confia em que, quando me encontrar em minha terra,
recuperarei a memória — acrescentou MacLean.
— Lástima que se incendiou a casa, não é? — replicou ela em tom
sarcástico. — se não fosse pelo fogo, poderia ter se largado sem ter que
enfrentar a mim.
Ele fez uma boa imitação de um homem sobressaltado e ofendido.
— Me interpretou mal, Enid.
Seu tom sério, de comiseração, lhe produziu náuseas.
— Como o interpretei mal? Absolutamente. Volta a me abandonar. Pode
expô-lo nos termos mais suaves, mas o certo é que volta a me abandonar! —
colocou os punhos nos quadris, um gesto que lhe dava o aspecto de uma
lavadeira, mas tudo era melhor que ceder à tentação de o golpear. — Fez o que
quis comigo, e agora larga a casa...
— Não, carinho, escuta...
— Sei que não sou a esposa que queria. Sei que não sou nenhuma
maravilha na cama, mas isso talvez se deva a que não tive suficiente prática, e
de quem é a culpa?
Ele olhou às pessoas que, a seu redor, contemplava as chamas
moribundas.
— Cala.
Ela elevou a voz.
— Não vou me calar! E o que têm de mau meus métodos, não é?
Certamente esta noite parecia satisfeito!
— Estava. Entendeu mal, Enid!
— O que entendi mal? Que vai me deixar aqui sem uma posição com a
que me manter, vai me jogar de novo à pobreza, me abandonar...?
— Pelo amor de Deus, mulher, fecha o bico de uma vez! - gritou ele.
Ela se calou, cruzou os braços sobre o peito e o olhou furiosa.
MacLean a olhou de cima abaixo, e então lhe estendeu a mão.
— Me ajude a me levantar.
Ela não queria fazê-lo. Não queria descruzar os braços nem lhe dar a mão.
Suspeitava que lhe faria alguma jogada. Suspeitava que tentaria convencê-la e
ela teria que voltar a lhe empurrar.
Mas quando ele começou a se levantar com dificuldade, Enid estendeu a
mão.
— Aqui tem.
Pegou a mão, se levantou e a abraçou com o mesmo movimento.
— Vai vir comigo.

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Ela reteve o fôlego.


— OH.
MacLean apoiou a face no alto de sua cabeça.
— Não iria a nenhuma parte sem você. Nem agora nem nunca.
— OH — repetiu ela, se sentindo vagamente tola.
Se perguntou quantas pessoas teriam ouvido sua diatribe. Se perguntou
se isso lhe importaria pela manhã.
— Throckmorton e eu falamos disso hoje enquanto estava ausente. Ontem
à noite não tive tempo de lhe dizer isso. —Baixou a voz e disse em um quente
sussurro: — Já sabe por que.
Sim, ela sabia por que. Ali em pé, rodeada por seus braços, o corpo
alagado de sensações, sabia muito bem.
— Assim por fim vou a Escócia para conhecer sua família.
Se perguntou que recebimento lhe dariam, se Kiernan MacLean a
desdenharia. Se Stephen MacLean recuperaria a memória e ela estaria uma
vez mais sozinha. MacLean elevou seu queixo e os sulcos entre suas
sobrancelhas desapareceram.
— Não se preocupe. Me ocuparei de tudo. Cuidarei de você.
Ela olhou a cara de feições fortes e expressão tenaz, decidida, e pela
primeira vez compreendeu que poderiam ter êxito como marido e mulher.
Inclusive quando MacLean recuperasse a memória, não poderia retornar à
imaturidade e o egoísmo. Era impossível que um caráter sofresse uma
regressão tão profunda, e aquele novo MacLean era tudo que ela sonhou. Não,
era mais do que sempre se permitiu sonhar.
— Parece tão aturdida e está tão... bonita, — Sorriu-lhe com todo o sinuoso
encanto que permitia sua cara lesada. — Estava pensando... ali deitado,
quando você tinha o controle de tudo, pensava que era uma autêntica gigante,
e em realidade é muito miúda, acreditei que era mais alta.
— Sim, bom, eu acreditei que era...
Se sentiu um pouco consternada. Mais baixo, acreditou que ele era mais
baixo. Seu marido, Stephen MacLean, media não menos de um metro e oitenta.
Aquele homem, aquele marido, era pelo menos oito centímetros mais alto.
— Acreditava que era... o que? — Seguia sorrindo para ela com seu
semblante de desconhecido.
Ela procurou com desespero uma explicação.
Se esqueceu de sua estatura tanto como de sua cara.
Não, não se esquecera. Uma mulher sempre recorda os momentos em que
olhou a seu marido durante a cerimônia de casamento, e a parte superior de
sua cabeça chegara ao queixo de Stephen.
Ele crescera.
Era impossível. Stephen tinha vinte e seis anos quando se casou com ela.

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Só ficava uma explicação.


— O que acontece? — MacLean a agarrou pelos ombros. — O que
acontece, Enid? Parece como se estivesse a ponto de desmaiar.
Aquele homem não era Stephen.
Aquele homem não era seu marido.

Capítulo 16

— Posso lhe ajudar em algo antes que parta, senhora MacLean?


Enid olhou a seu redor, contemplou o pandemônio controlado naquela sala
separada do centro da casa, as donzelas que dobravam objetos de vestir e os
colocavam nos baús, à senhora Brown, com amontoamentos de roupa branca
nos braços, e Harry, que estava ao lado da porta, de braços cruzados, o
epítome do receio beligerante. Então Enid olhou ao senhor Throckmorton.
Queria lhe gritar: "Sim, me diga por que você fez isto".
Respirava com dificuldade, e tentava aspirar fundo para não sofrer uma
vertigem. Cada vez que pensava no tremendo engano, se fazia um nó no
estômago, suas mãos tremiam e temia ser presa de um acesso de histeria.
Porque o homem que cuidou durante dois meses, o homem pelo qual ela
mudou toda sua vida... o homem ao qual tinha entregue seu corpo... não era
seu marido.
Entretanto, aqueles olhos eram os do Stephen. Nisso não podia se
equivocar.
Mas sua cara... não era somente que estivesse desfigurada pela explosão,
mas sim era outra cara. Era... tinha que ser... Kiernan MacLean, o senhor do clã
MacLean.
Kiernan MacLean, quem quando ela contraiu casamento com Stephen,
escreveu tão cruelmente para rechaçá-la. Não estava segura de que o senhor
Throckmorton soubesse. O aspecto de MacLean enganou Enid, de modo que
talvez... enfim, não sabia. Não sabia se deveria dizer ao senhor Throckmorton.
Não sabia se sua confissão causaria mais problemas e aumentaria o
perigo.
— Não compreendo — se limitou a dizer. — Por que razão vamos a Escócia
hoje mesmo?
O sol mal tinha aparecido sobre o horizonte, mas se dedicavam a fazer a
bagagem desde sua chegada à casa principal.
—São nossas precauções normais em uma situação como esta —
assegurou o senhor Throckmorton. — O governo de Sua Majestade não releva o
assassinato ou a tentativa de assassinato de seus súditos por parte de uma
potência estrangeira.
Talvez fosse assim, mas dada a extensão cada vez maior do império, a

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Enid resultava difícil acreditar que o governo de Sua Majestade se esforçasse


tanto por cada assassinato individual.
— Não poderíamos esperar pelo menos até que MacLean se recupere da
comoção do incêndio?
O senhor Throckmorton tomou assento na poltrona, frente a ela.
— MacLean parece se encontrar perfeitamente bem.
Isso era certo. O convalescente tinha boa cor, sua expressão era animada.
Pedira que lhe cortassem o cabelo, e as mechas loira avermelhada que ela
deslizara entre seus dedos a noite anterior foram reduzidos a uma longitude
mais própria de um cavalheiro. Era evidente que a inatividade no quarto do
doente o cansara e que empreendia com satisfação a partida. Não obstante,
em ocasiões olhava para Enid, a examinava como se estivesse preocupado por
ela.
Tinha seus motivos, pois ela esteve a um triz de desmaiar diante da quinta
em chamas, e ele não parecia saber por que. Na realidade, o exonerava de
fingir, pois MacLean acreditava seriamente que era seu marido.
Mas não era. Não era.
— Você é quem me preocupa — disse o senhor Throckmorton. — Perdoe
que lhe diga isto, mas está pálida e tem olheiras. Preparamos um quarto para
você. Por que não trata de dormir um pouco?
— Não poderia dormir.
Se tentasse, veria os olhos verdes e dourados de MacLean ante ela e
saberia... saberia que cometera fornicação.
MacLean a surpreendeu o olhando, e ali mesmo, diante de todos, lhe
enviou um beijo soprando a mão. Um gesto tolo, romântico. Ela sentia desejos
de se esconder, pois quando ele descobrisse a verdade, ficaria furioso.
Céu santo, fornicou com Kiernan MacLean.
— Não se preocupe com os objetos perdidos. — O senhor Kiernan parecia
tratar de tranquiliza-la em todos os aspectos. — Celeste está se ocupando da
bagagem, e sei que alguns dos vestidos são de seu próprio enxoval.
— Não deveria tê-lo feito. — Enid alisou a saia do traje de viagem de
tweed verde que Celeste insistira em lhe dar de presente. Duas costureiras
trabalhavam como umas loucas em uma variedade de vestidos, roupas que
Enid nunca teria imaginado usar, as alterando para as adaptar a sua altura
superior. — Nunca poderei lhe pagar.
O senhor Throckmorton pareceu sentido.
— Por favor, senhora MacLean. O fogo que destruiu seus pertences é
minha responsabilidade. Prometo que encarregarei novos vestidos para ela. —
Olhou para Celeste, que estava falando com as costureiras. Minha prometida é
generosa e inteligente, e não deve tratar de se opor a ela neste ou qualquer
outro assunto se não quiser que se zangue e lhe dê um tiro. — Se voltou para

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Enid, com uma expressão sardônica na boca. — Tenho as cicatrizes que o


demonstram.
À margem do que lhe dissesse, por muito que todo mundo tentasse fazer
Enid sentir que aquela agitação da partida era natural e estupenda, estava
aniquilada pela precipitação dos acontecimentos. Oxalá pudesse deter um
momento, pensar, raciocinar e decidir que curso de ação seria o correto. Mas o
senhor Throckmorton queria que partissem dali. Alguém tratou de matar
MacLean.
Pensou que deveria se despedir dele e deixar que partisse sozinho, mas se
fizesse tal coisa perderia todo direito a saber qual fora a sorte daquele homem.
E talvez, só talvez, ela estava atuando como uma camuflagem para ele. Depois
de tudo, parecia ser uma esposa totalmente entregue a seu marido. A Stephen
MacLean.
Ah!, por que mentir a si mesma? Estava totalmente entregue a ele.
Só que... muito assustada pelo que poderia acontecer se alguém
atentasse de novo contra ele. E consternada ao imaginar justificada cólera de
MacLean quando descobrissem que tinha jazido com a desprezada esposa de
seu primo.
Seu primo, que morrera.
Stephen MacLean era - tinha que ser - o homem que morrera na explosão.
Agora ela era viúva, livre de fazer o que desejasse. Exceto... que não era,
porque estava a ponto de partir para a Escócia. Queria cobrir a cara e chorar
de desolação e confusão, mas jurou a si mesma que não voltaria a chorar.
Precisava fazer uma só pergunta. Uma pergunta cuja resposta necessitava
com desespero.
— Senhor Throckmorton — disse em um tom penosamente cortês. — Isso
de ir... à ilha de Mull me produz uma sensação estranha, você sabe? É como se
eu não tivesse nada a ver com esse lugar.
O senhor Throckmorton percebeu sua confusão e a olhou atentamente.
— Senhora MacLean, compreende por que queria que MacLean
recordasse, por si mesmo, quem é e os acontecimentos que conduziram a este
acidente?
— Eu... sim, suponho que sim. Você quer que recorde sem ajuda de
ninguém.
— Exatamente. Temo que se lhe dissermos o que tem que pensar, nossa
influência viciará suas lembranças.
Enid soube que aquele homem lhe estava fazendo uma súplica e uma
advertência. "Não diga a MacLean nada de seu passado...", mas o que podia
lhe dizer ela exceto que não era o homem que disseram que era?
Que ela não era a esposa que ele acreditava? Não gostava dessa
conversação, e chegaria o momento, mais cedo ou mais tarde, em que ele

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recordaria. Se não recordava antes que chegassem à ilha de Mull, ela


enfrentaria a uma situação muito incômoda. Enfrentaria a sua família, e eles
saberiam a verdade. Mais importante ainda era que poderia se ver com...
Entrelaçou as mãos e apertou os dedos até que lhe fizeram marcas.
— Me fale dos MacLean. Quem são? A que se dedicam?
Throckmorton lhe respondeu sem vacilar.
— São uma ampla família com um imóvel imenso e multidão de primos e
servidores.
Enid expôs com delicadeza a pergunta que resolveria sua dúvida.
— A mãe de Stephen MacLean está viva?
— Vive, em efeito. Tenho entendido que é uma bela mulher que adora a
seu filho e acredita que não pode fazer nada errado. — O rosto de
Throckmorton permaneceu impassível. — Se chama lady Catriona MacLean.
— Lady Catriona MacLean. — Enid memorizou o nome. — Mas sei que o
pai de MacLean está morto. — Olhou para MacLean enquanto falava.
Seus olhares se cruzaram, e aquele homem corpulento e peludo que
acreditava que seus seios o devolveram à vida, que a beijara até levá-la ao
êxtase e a fizera dele, sorriu para ela.
Ela desviou o olhar.
— E o que me diz de... de sua tia?
— Você deve se referir a lady Bess Hamilton. A vi uma vez, faz anos. É
uma mulher completamente excêntrica. Usa turbantes e fuma charutos.
Quando a conheci me pareceu encantada — Throckmorton sorriu.
— Em troca, seu filho não me parece isso.
O coração de Enid começou a pulsar com força, e pela primeira vez,
sabendo o que sabia, pronunciou seu nome.
— Seu filho é Kiernan MacLean, o atual chefe do clã?
— Sim, tem também uma filha, a irmã de Kiernan. Se chama Caitlin.
Um ligeiro suor cobriu a testa de Enid, e se inclinou para frente.
— E o senhor do clã? Está... está casado?
Throckmorton se voltou para trás em seu assento e a olhou, Quando falou,
fez lentamente, arrastando as palavras.
— Não. Não, é um mulherengo. Nunca se casou.
Ela exalou o longo suspiro que reprimira.
— Bem. Isso está muito bem.

A carruagem puxada por quatro cavalos estava disposta. Carregaram os


baús. MacLean se deteve nos longos degraus, aspirou fundo e experimentou o
familiar aguilhão do entusiasmo. Então se pôs a rir. Não recordava por que o
aguilhão era familiar, mas adorava. Se sentia muito bem, dono uma vez mais
de seu destino. Moldaria os acontecimentos como desejasse, logo resolveriam

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todos os mistérios, recuperaria a memória e as águas transbordadas voltariam


para seu leito.
Então viu Enid, vestida com traje de viagem de grossa lã cor verde
garrafa, chapéu, uma saia negra de fio de lã, jaqueta de veludo verde garrafa e
um esplêndido lenço de seda vermelho tijolo. Sua expressão era serena, tinha
um ar de competência e se notava a preocupação contida por ele. Antes do
incêndio, esteve aturdida, ardente, fora uma esposa cheia de prazer. Agora lhe
sorria com uma amabilidade impessoal, atuava como o tipo de mulher que
permitiria que a contratassem em lugar de emprestar seus serviços
impulsionada tão só pela bondade de seu coração.
Inclusive lhe perguntou se se sentia casado.
— Agora sim — respondera ele, a olhando com uma exagerada expressão
de luxúria.
Ela não riu.
O certo é que Enid não refletira nenhuma emoção sincera, mas ele
percebia os sinais da tensão. Tinha pendurada no braço uma formosa capa de
lã verde combinando, e com as bordas de pele, e segurava a pequena bolsa
com tal força que MacLean teria apostado que debaixo das luvas de pele negra
tinha os nódulos brancos.
Enid. A noite anterior respondera por completo a suas expectativas.
Entregou-se lascivamente, fora generosa com suas carícias e tão ardente que
ele quase se derreteu de prazer. Certamente, pôs objeções a sua exigência de
que não se separasse dele, e inclusive depois não se mostrou convencida de
que sua união fosse correta.
Mas ele estava tão convencido que bastava pelos dois. Embora soubesse a
certo nível que ela não era a mulher mais deslumbrante da terra, quando a
olhava via a perfeição encarnada. Era sua mulher, e ele superaria suas
dúvidas. Só desejava que, quando o olhasse, evidenciasse um pouco de afeto.
A aflição que via em seus olhos azuis o turvava. Era quase como se estivesse
lhe dizendo adeus.
E o certo era que não deixava de olhá-la porque temia que, de um
momento a outro, empreendesse a fuga.
Throckmorton se aproximou.
— Preparado?
MacLean soltou uma risada.
— Faz tempo que estou.
— As coisas que você pediu estão à mão, distribuídas em diversos lugares,
tal como queria. — Sem deixar de lhe observar com uma expressão séria,
acrescentou: — Atua com receio e cautela, como fez sempre.
Está seguro que não recorda nada?
— Não, não recordo, mas é certo que esta atitude me parece natural. E

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ontem à noite minha cautela nos salvou a vida, a de minha mulher e a minha.
Throckmorton baixou a voz.
— Sally desapareceu— informou.
— Sally? — MacLean recordou a jovem que o atendeu e que parecia tão
desejosa de agradar. — A donzela?
— Ontem à noite foi à quinta para falar com o vigia. Harry a encontrou
inconsciente, e os carvões da lareira estavam disseminados pelas pranchas do
chão.
MacLean expressou seu pensamento em voz alta.
— Alguém lhe pagou. Alguém queria que me eliminassem.
— Se soubessem que podia caminhar, a ação teria sido mais direta.
— Não é de estranhar que tenha tanta pressa para que partamos daqui.
Throckmorton meteu as mãos nos bolsos e golpeou com o pé o degrau.
— O acompanharia se não estivesse a ponto de casar — lhe disse.
— Certamente, precisa estar presente na cerimônia. — MacLean passou a
palma da mão pelas cicatrizes da face. — Não tem ideia de quem está atrás de
mim?
O dono da casa voltou a baixar a voz.
— Ainda não, mas vai partir nesta carruagem à vista de qualquer um que
possa estar observando. Dentro de umas horas se deterão em uma estalagem
para a mudança dos cavalos. Ficarão ali enquanto outro casal sobe à
carruagem para reatar a viagem. Você...
— E Enid.
Throckmorton assentiu.
— Você e Enid ficarão para trás, e então subirão a um trem particular que
os levará a Edimburgo. Uma vez ali, subirão a outra carruagem e partirão com
direção a Oban, de onde um transportador os levará a Mull. Nossos homens os
acompanharão na viagem. Não posso prometer que não acontecerá nada,
como é evidente, depois de ontem à noite, não posso prometer tal coisa, mas
os dotei com o maior amparo possível.
— Minha família sabe que estamos a caminho?
— Ninguém deve saber.
— De modo que adiantaremos às dificuldades.
— A retirada é nossa primeira linha de defesa.
A necessidade de saber fez que MacLean adotasse uma atitude
beligerante.
— Já é hora que me diga a verdade.
Throckmorton titubeou, como se estivesse tentado.
— Já conhece a maior parte da verdade. Sabe o que te ocorreu, que
alguém quis que morresse. Temo que se lhe dissesse tudo isso antes que o
recorde por si mesmo, suas lembranças seriam confusas.

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E necessitamos dessas lembranças. Quem quer que te montou essa


armadilha e matou a outro é uma pessoa muito nervosa, e se pudéssemos
descobrir seu nome...
— Lhe direi isso assim que saiba, mas não me faz nenhuma graça que não
me dê toda a informação.
— Se lhe dissesse isso agora, empreenderia a gritos comigo, e não
podemos nos permitir uma cena dessas proporções. — Throckmorton lhe
estendeu a mão. — Confia em mim um pouco mais. O que sei não pode te
prejudicar.
MacLean lhe estreitou a mão estendida. Nenhum outro homem dos que
havia ali merecia uma confiança absoluta. Nem Harry, vestido de negro e
perigoso, nem Kinman, um tipo de olhar penetrante que ocultava sua
inteligência atrás de sua aparência de homem inepto, nem Jackson, o
camareiro arrogante que dirigia com tal perícia a navalha de barbear. Alguém
tratava de lhe matar e, com ele, a sua esposa.
— Então está partindo, senhor? — perguntou a senhora Brown, que estava
atrás dele, nos degraus.
— Assim é. — MacLean olhou à mulher cujo bom senso tanto chegara a
apreciar. — Sentirá minha falta?
— De você e da senhora MacLean. — A mulher o olhou de cima abaixo
com satisfação. — Sabia que nos ocultava algo, senhor. Sabia que caminhava
pelo quarto.
— E como você soube isso?
— Porque lhe saíram calos nos pés.
— Não há maneira de enganar à senhora Brown — disse Throckmorton,
sorridente. — Criou a muitos filhos.
— Isso é o que me disse. — MacLean pegou a mão dela e a beijou, e então
acrescentou com malícia: - Lhe agradeço, senhora Brown, por ter limpado meu
traseiro.
A mulher levou uma mão ao cabelo, ruborizada, e se pôs a rir.
Enid os olhava como se desejasse se reunir com eles. Lhe fez um gesto
tentador com a mão, mas ela fingiu que não viu. A senhora Brown o olhou com
o cenho franzido.
— Senhor MacLean, acredito ter dito que tomasse cuidado com seu
casamento.
— E o tenho.
— Então, por que ela está irritada?
— Por que você acredita que tenho a culpa de sua conduta? — replicou ele
em um tom irascível.
— Porque você é homem e sempre tem a culpa — disse cortante a
senhora Brown.

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Throckmorton lhe deu um empurrãozinho com o cotovelo.


— Não poderá ganhar nunca da senhora Brown. Não sei por que tenta.
Uma voz familiar, com um ligeiro acento, o chamou do alto da escada.
Throckmorton voltou a cabeça e, ao ver Celeste, sorriu de uma maneira
tão carinhosa e tola que MacLean esteve a ponto de rir. A jovem tinha a aquele
homem no bolso.
Sorridente e agitando uma mão, Celeste passou apressadamente pelo lado
dos homens, com a energia de um dínamo, e foi ao encontro de Enid. Agarrou a
mão de sua amiga e lhe disse:
— Oxalá não precisasse ir.
— OH! — Enid a beijou na face. — Tampouco eu queria partir. Quanto
sentirei sua falta!
MacLean olhava às mulheres, desejoso que fossem amigas, mas sentia
ciúmes do sorriso que iluminou o rosto de Enid ao ver celeste. Nunca o olhou
daquela maneira, e, desde a noite anterior, ela atuava como se estivesse
disposta a lhe ferir.
— E eu a você. Deve me prometer que virá de visita — Celeste baixou a
voz, mas MacLean a ouviu — aconteça o que acontecer.
— Não sei se quererá minha companhia quando descobrir...
Enid se interrompeu. Olhou para MacLean e, ao ver que ele a estava
olhando fixamente, seu rosto adquiriu uma tonalidade escarlate.
Não o olhou furiosa, não fez nenhum comentário. Se limitou a se voltar,
como se a presença de MacLean a humilhasse. Ele sentia desejos de lhe gritar,
de lhe dizer que não se sentisse envergonhada pelo que fizeram. Queria falar
com ela, explicar que eram marido e mulher e que estariam juntos para
sempre.
Desejava beijá-la até que Enid relaxasse apoiada nele. Por cima de tudo,
queria irritá-la com sua ironia até que a esposa de ágil língua lhe replicasse
com engenho e ele tivesse a segurança absoluta que lhe pertencia.
— Tudo está preparado — disse Throckmorton, lhe dando uma palmada
nas costas. — É hora de partir.

Capítulo 17

O estrépito das rodas metálicas na via despertou Enid, e notou o estalo


continuado do trem. Ainda era de dia quando por fim cedeu ao sono no
compartimento especialmente construído que era como um minúsculo
dormitório. Agora, no candelabro da parede ardia uma só vela. Quando Enid
separou as cortinas de veludo para olhar ao exterior, não viu mais que a negra
noite, sem uma só estrela nem um vislumbre da lua. Deviam estar cruzando
uma região desolada, ela, MacLean e outros. Supunha que eram as terras do

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norte, ou talvez inclusive tivessem cruzado o limite com a Escócia. Ela não
sabia quanto tempo levava viajar até tão longe.
Era a primeira vez que viajava de trem.
Se ergueu na cama, piscando. Alguém a agasalhou com uma manta leve,
supôs que Kiernan MacLean. Se perguntou aonde teria ido ele e então se
amaldiçoou por sua curiosidade. Estava a seu lado quando ela dormiu; não a
deixou nem um momento desde que partiram da casa familiar Blythe,
conversou com ela, acariciou seu cabelo, atuou de tal modo como um marido
amoroso, que ela sentiu desejos de chorar ou gritar ou se agarrar a ele e rogar
que lhe dissesse que tudo ia sair bem. Não o fez. Manteve um aspecto de
serenidade, mas temia que não o enganava absolutamente.
Enid desceu do beliche e realizou pausadamente suas abluções.
Não podia importunar MacLean. Certamente, não podia fazer o amor com
ele de novo. Não era seu marido. Não podia tratá-lo como se fosse.
Embora - se olhou no espelhinho pendurado sobre a mesa do canto -
atuava como um marido. Desatara o lenço de seda de lã vermelha que ela
levava no pescoço e afrouxara os botões da jaqueta de veludo verde, a abrira,
despindo seu colarinho até o V que formavam os seios. Talvez o fez para que
ela se sentisse cômoda, mas sabia que ele se deleitou na visão de sua pele nua
e em seu direito de despi-la.
Sorveu pelo nariz, sacudiu a saia, calçou as robustas botas negras de
viagem e adquiriu de novo um aspecto de respeitabilidade. Pelo menos ele não
tentara fazer amor com ela. Ela não poderia lhe permitir tal coisa. Era certo
que já deram uma dentada à maçã, mas agora ela conhecia os fatos. Distinguia
o bem do mal.
Se agarrando a sua moral em tempos difíceis, quando abandoná-la teria
feito a vida muito mais fácil. Nunca poderia fazer de novo amor com MacLean,
e a irritava se sentir doída por isso.
Quase desejava poder dizer a ele, mas o senhor Throckmorton lhe dera
umas instruções muito precisas, e Enid temia que aquele homem estivesse
certo. Talvez se dificultassem a MacLean a recuperação de suas lembranças,
ele nunca descobriria a verdade que espreitava sob a superfície de sua mente.
Ouviu o murmúrio de vozes masculinas no compartimento anexo ao
dormitório. Abriu a porta e apareceu com cautela.
MacLean estava sentado, as pernas apoiadas no assento da frente,
falando com Harry.
Harry adotara uma postura similar, e entretanto, apesar de seu aparente
repouso, os dois homens davam uma impressão de estar à espreita que
contrastava com suas posturas. Ambos vestiam de negro e marrom, umas
cores monótonas que lhes davam um aspecto de empresários de pompas
fúnebres. Jaquetas negras, calças negras, botas negras que não foram

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lustradas até lhes tirar brilho mas sim tinham uma tonalidade apagada, como
se o couro tivesse sido desgastado de propósito. Os coletes eram de cor
marrom escura e as gravatas combinavam.
Havia uma mesinha entre eles com um candelabro fixo que tinha cinco
velas, uma garrafa de vinho aberta e dois copos cheios pela metade.
Enfrascados na conversação, não repararam nela. Enid voltou com cautela ao
beliche, se sentou e contemplou o chão. Ainda não compreendia como
MacLean fizera para passar com semelhante rapidez de ser um inválido a um
homem de ação.
Quanto mais fácil seria tratar com ele se seguisse preso na cama.
O que ia fazer ela nos dias seguintes, enquanto os homens de
Throckmorton os levassem de um lado a outro e MacLean estivesse cada vez
mais perto de seu lar? O nó que sentia no estômago se esticou ainda mais.
Considerava a si mesma uma mulher que raciocinava bem e tinha lógica, com
um excesso de etiqueta e um toque de saudável instinto de conservação, mas
se estava deixando levar pelos acontecimentos porque não sabia que outra
coisa fazer.
Certamente, não existia nenhum precedente com o qual se orientar. Ele
não tinha necessidade de pensar que ela mentira. Ou teve um tremendo
engano, ou lhes mentiram a ambos, e MacLean só teria que escutar suas
explicações antes de derrubar sobre ela seu desprezo.
Enid não merecia o desprezo e não o aceitaria.
— Despertarei. —A voz de MacLean lhe chegou do outro lado da porta. Em
um tom humorístico, e como resposta a um comentário que o outro murmurou,
disse: — Não, obrigado, Harry, posso me ocupar eu sozinho de minha esposa.
Enid se levantou com tal rapidez que as botas que chegavam até seus
tornozelos produziram um ruído surdo ao golpear o chão.
Ele abriu a porta e ficou olhando à mulher que estava frente a ele com o
queixo elevado.
— Ouviu isso, não foi? — Dirigiu-lhe um olhar muito afetuoso. — Está tão
bonita como sempre. —Antes de que Enid pudesse replicar, ele seguiu dizendo:
— dentro de pouco mais de uma hora chegaremos a Edimburgo.
Teremos que descer do trem a toda pressa.
Ela poderia ter se mostrado surpreendida, mas já eram tantas as
surpresas recebidas que nada poderia pegá-la despreparada.
— Estou preparada.
Ele estendeu seu longo braço e a atraiu para si.
— É assim eu gosto, é uma garota resolvida.
Harry riu alegremente a suas costas.
Harry. Seguia sem gostar daquele homem, embora sem mais motivos que
o fato de que emitia julgamentos quando não deveria fazê-lo e utilizava a

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cautela como se fosse um escudo. Então, como ela sabia que sua hostilidade
carecia de lógica, sorriu placidamente para ele enquanto se liberava do abraço
de MacLean.
— Se formos seguir viajando, cavalheiros, espero que os dois durmam.
Harry fez uma inclinação de cabeça.
— Sim, senhora. Sou um soldado e durmo quando tenho um momento
para fazê-lo.
— E eu. Dormi com você até uma hora atrás. — MacLean passou um dedo
pelo seu lábio inferior. — Estava extenuada. Se sente melhor agora?
Tudo em MacLean refletia preocupação: sua voz, profunda e vibrante, seus
olhos, cheios e vibrantes, a maneira em que a tocava como se fosse preciosa
para ele.
E por isso ela voltou a retroceder.
— Estou melhor — disse. — Só quero me assegurar de que minhas coisas
estão...
O trem se deteve em seco de repente e Enid caiu sobre MacLean. Ele
cambaleou para trás, levando-a com ele. Harry saltou por cima dos assentos.
Os freios chiaram, os revestimentos de madeira do vagão rangeram, os vidros
se quebraram e duas das velas caíram ao chão e se apagaram. O silêncio que
se fez então aterrou Enid. Dois vagões mais adiante a locomotiva soprava
lentamente, mas não chegava som algum dos vagões, onde se encontravam os
restantes homens do senhor Throckmorton.
Harry foi o primeiro a recuperar o fôlego e soltou uma maldição, com
virulência e sem ter em conta a delicada sensibilidade de Enid; isso satisfazia
uma profunda necessidade que ela sentia, por isso esteve agradecida a ele.
MacLean acabava de se levantar de seu leito de doente, e agora foi jogado
com violência ao chão.
— Está bem, MacLean?
— Não pesa tão pouco como parece — grunhiu ele, e a pôs a um lado.
Ela tentou mantê-lo imóvel.
— Que tal os joelhos? E a perna? Está sangrando?
Ele se levantou, a agarrou pelos ombros e, a imobilizando, a olhou aos
olhos.
— Estou bem. E você?
— Eu? Claro que estou bem. Mas você...
— Não sou um inválido. — Disse em um tom tão cortante e seu aspecto
era tão imponente que ela se tranquilizou.
Mas o observou com atenção enquanto ele se levantava sem ajuda e lhe
estendia uma mão.
— Eu também estou bem, obrigado por perguntar — disse Harry, enquanto
o ajudava a se levantar.

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— Está sangrando? — perguntou MacLean.


— Um pouco. — Harry tocou o couro cabeludo, e ao retirar os dedos
estavam manchados de vermelho. — Torci um pé.
— Mau assunto. — MacLean olhou para os vagões dianteiros. — Eu não
gosto disto.
— A mim tampouco. — Harry avançou mancando para a frente do vagão.
— Irei ver o que ocorreu.
MacLean permaneceu à espera até que Harry abriu a portinhola e voltou a
fechá-la, e então entrou em ação. Vestiu o casaco e estendeu a Enid a capa e o
chapéu.
Assustada pela carrancuda expressão de MacLean, ela colocou os objetos
sem titubear.
— As luvas? — inquiriu ele.
— As tenho aqui.
Não sabia a que se propunha fazer ele, mas quando o viu tirar de debaixo
da cama uma bolsa marrom longa de tecido atapetado teve uma sensação de
náusea.
— Pode levar isto? — perguntou.
A bolsa pesava tanto que esticava seus braços, mas ele não aguardou sua
resposta. Tirou outra bolsa similar, maior, que esteve debaixo da mesa. Extraiu
algo de seu interior (ela teria jurado que tinha uma faca na mão) e então
pendurou a bolsa no ombro.
— Me olhe — disse.
Ela obedeceu e teve a sensação de que sua boca secava.
— Isto é uma emboscada. Vamos sair daqui, e rogue a Deus que não seja
muito tarde.
Ela assentiu.
— Vou à porta traseira. Necessito que apague estas velas e venha comigo.
Pode fazê-lo?
— Claro que posso.
"E, naturalmente, estou morta de medo", poderia ter acrescentado, mas
do que teria servido? Calculou a distância entre ela e a porta e então apagou
as velas. Em uma escuridão absoluta, avançou entre os escombros até chegar
ao lado de MacLean, enquanto os fragmentos de vidro rangiam sob suas botas.
Como se pudesse vê-la, ele encontrou sua mão e a agarrou. Então a
empurrou contra a parede.
— Fique aqui — lhe sussurrou, e abriu a porta.
O ar fresco acariciou o rosto de Enid. Não muito longe dali estavam os
homens, cujos gritos chegavam a seus ouvidos. Mas no lugar onde se
encontravam não se ouvia nenhum movimento.
— Muito bem. — MacLean saltou à via sem fazer ruído algum. — Salta,

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Enid, estou aqui — lhe disse.


O obedeceu sem vacilar. MacLean a pegou nos braços e a separou das
vias.
Os gritos se intensificaram, e se ouviu um disparo.
Enid se sobressaltou e se agarrou a ele.
Sem um instante de hesitação, MacLean a afastou rapidamente do trem e
sumiram na escuridão.

Quando o sol iluminou por fim o triste dia, estavam subindo por uma costa
solitária em um bom ritmo, mas Enid se sentia a ponto de desfalecer.
MacLean o observou, certamente. Naquela excursão pelo campo às
escuras demonstrou uma e outra vez que se fixava em tudo. Conseguira evitar
as casas de campo que apareciam de vez em quando em seu caminho.
Conduziu Enid sem pausa ao redor de penhascos e por acidentados atalhos. E
quando lhe comentou que devia estar muito cansado e necessitava um
descanso, procurou uma rocha atrás da que se ocultar de modo que ela tivesse
intimidade para fazer suas necessidades.
Não achava engraçado que ele a compreendesse tão bem.
E no fim das contas, por que ele não necessitava descansar? Percorreram
uma grande distancia a passo vivo e ele seguia adiante sem parar, enquanto
que ela...
— Faremos uma parada aqui. — MacLean deixou sua bengala junto a um
montão de pedras brutas. — Descansa e eu vigiarei o terreno, verei aonde
vamos, verei se nos seguem.
Ela deixou cair sua bolsa e o olhou furiosa, com a respiração entrecortada.
— Esteve... doente. Por que... não está... esgotado?
— Estou um pouco cansado, moça. — Seu acento escocês foi se tornando
mais marcado à medida que entravam no campo. — Mas você também está
indo bem.
— Estou... ofegando! — Se apoiando em uma rocha, Enid levou uma mão
ao flanco.
— As mulheres inglesas não fazem exercício como deveriam. Ar fresco,
isso é o que faz falta, e bons passeios ao sol.
Ela jogou a cabeça para trás.
— É um burro.
— Se pode me insultar, é por que se sente bastante bem — observou ele.
— Toma.
Ofereceu-lhe uma pele de água que encheu em um arroio pelo menos dez
anos atrás e a meio caminho de distância.
— Obrigado — disse ela, mas se limitou a olhar fixamente a pele. — Me
doem tanto os braços de levar essa bolsa... que não posso levantá-los. O que

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contém, pedras?
Ele sacudiu a cabeça, desenroscou o plugue da pele e a ofereceu para que
bebesse. Enid tragou a água com avidez e, quando terminou, deslizou para
baixo pela lisa superfície da rocha. A umidade que havia ali a esfriava até os
ossos, mas tinha os pés no alto e as pernas estendidas, e não precisava mover
um só de seus doloridos músculos.
— Uma faca — disse ele.
Ela olhou para MacLean, que permanecia em pé ante ela.
— O que?
— Uma faca, bolachas de navio, queijo, carne seca, mantas, ataduras,
unguento, cordas.
— Me deu a bolsa pesada!
Ela sabia que isso era uma tolice, mas não sentia nenhuma necessidade
de ser razoável.
— Eu levo o mesmo mas em mais quantidade. Trouxe meu kilt escocês e a
bolsa. Apesar de chamuscadas como estão, não podia abandoná-las. — Tirou o
capote, dobrou-o e o meteu em sua bolsa. — Também te trouxe um pente.
Se ele esperava que o elogiasse, não deveria dizer essas coisas a uma
mulher cujas coxas tremiam de fadiga. Em tom de queixa, escolheu o detalhe
mais tolo para se queixar.
— Não necessitamos de duas facas.
Ele não poderia ter-se revelado mais paciente.
— Uma é para usar, a outra para troca. Há um longo trecho até Escócia, e
a comida não durará eternamente.
— Não podemos fazer uma parada e comprar algo? Trouxe todas essas
coisas mas nada de dinheiro?
— Algo há também, mas com um pouco de sorte não encontraremos a
ninguém. Se o fizermos, não mostraremos o dinheiro e o economizaremos se
por acaso surge uma emergência.
Ela desejava gemer, mas não tinha fôlego para isso. Observou MacLean
que subia ao alto da colina e se deitava sobre as rochas para examinar o
terreno em todas as direções. O vento afastava o cabelo loiro avermelhado do
familiar rosto do desconhecido. Olhava com os olhos entrecerrados a direção
por onde vieram, e logo a que iam seguir. Suas roupas se mesclavam com a
paisagem (claro, isso explicava a monotonia do negro e do marrom), mas ela
ainda podia ver seus largos ombros e o estreito quadril. E suas pernas... Enid
fez uma careta de irritação; as pernas daquele homem eram musculosas.
Como foi tão tola de atribuir semelhantes coxas e panturrilhas aos exercícios
que fez na cama? Caminhou, isso era evidente. Não era de estranhar que todo
mundo insistisse em que ela tirasse longas pausas de suas pesadas tarefas.
Os homens.

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O que estava ela fazendo ali? A noite anterior, não, na outra noite, fizeram
amor tão apaixonadamente como jamais dois amantes fizeram. Ela se
maravilhou de sua força, a assombrou sua habilidade, descobriu seu corpo
como se nunca o tivesse experimentado até então.
Porque nunca esteve antes com ele. Porque agora, depois de oito anos de
solidão e inumeráveis oferecimentos de muitos homens dissolutos, ela se
convertera sem se propor em uma mulher lasciva. As coisas nunca poderiam
voltar para a situação anterior; enfermeira e paciente, esposa abandonada e
marido do que sua mulher se separou. Por isso ela tomou a resolução de se
manter serena, forte, capaz de resistir a tormenta que via se abater no
horizonte.
O problema persistia em que seguia pensando que de algum jeito seria
possível evitar a tormenta.
"Se ele não recuperasse jamais a memória, ela poderia lhe deixar
acreditar indefinidamente que estavam casados."
Mas sua família sabia a verdade e o diriam.
"Se não fosse por sua família, ela poderia manter a mentira."
Embora bem visto, por quê? Não o amava.
Mas tinha... sentimentos... para ele, e sabia que, quando ele descobrisse a
verdade, se enfureceria com ela, ou pior ainda, a olharia fixamente com
aqueles olhos verdes frios como o gelo. Entretanto, ela não era covarde. O que
a preocupava era a mente de MacLean, cujo cérebro já sofrera muitas
comoções, e ela temia as consequências de uma verdade tão abrupta e
terrível...
Sim que era covarde, e com uma moral escassa, além disso, pois ainda
desejava a aquele homem. Talvez se só lhe desse um vislumbre da verdade,
esse vislumbre poderia desencadear todas as suas lembranças. Sim, talvez um
só vislumbre...
Só que... precisava permanecer tranquila. Se acabaram as réplicas
engraçadas e as brincadeiras.
MacLean saltou das rochas e aterrissou aos pés de Enid.
— Não há ninguém a um nem a outro lado do vale. Enquanto estes
valentões não tenham cães, os despistamos. Se levante.
— O que? Por quê?
— Está sentada no chão frio. Vamos estender uma manta para que não
pegue friagem.
Ela queria protestar, lhe dizer que não valia a pena o incômodo de se
levantar, mas ele tinha aquela sua expressão no rosto, a expressão que dizia:
"Sei o que te convém".
Por isso se levantou com fadiga, deixou que MacLean estendesse uma
manta e se deixou cair nela.

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— Quanto caminhamos?
— Vinte quilômetros, pelo menos. Agora não estamos longe das vias do
trem.
— O que?
— Caminhamos em círculo, voltando um pouco atrás para que perdessem
nossa pista. — Se deitou de barriga para cima aos pés de Enid. — Vai preparar
algo para tomar o café da manhã?
— Claro. — Ela puxou a pesada bolsa que estava a seu lado e tirou pão e
queijo. — O homem explora e a mulher faz o verdadeiro trabalho.
A serenidade teria que esperar outra ocasião, um dia menos rodeado de
perigo.
Ele se deitou de lado e apoiou a cabeça com a mão.
— A exploração é uma dura tarefa. Requer anos de adestramento e
perícia. Não esqueça tampouco que fui na frente, abrindo um caminho através
da escuridão e do frio.
A noite anterior, apesar dos círculos e dos retrocessos, ele levou a
dianteira com tal segurança que era como se pudesse ver naquela escuridão
de masmorra. Ela foi incapaz de distinguir nada, cada passo foi uma aventura,
e teve que confiar em que não a faria se chocar com uma árvore ou cair em
uma ravina.
E acreditara nele, certamente. As façanhas de MacLean a deixaram
impressionada, mas agora dava menos importância.
— Pois trocaria a posição agora mesmo— lhe disse.
Ele pegou a bolsa.
— De acordo.
Ela agarrou com força a correia e o olhou furiosa.
De algum jeito, o equilíbrio entre eles mudou. Ela passou a seu território, o
do caçador e a presa. Jamais poderia sobreviver ali, mas MacLean se revestiu
de autoridade como se fosse uma armadura, e enquanto que antes a salvação
de sua vida dependera dela, agora a vida de Enid dependia dele.
— Eu me poria à frente, mas não com a dor nas pernas que tenho.
Ele sorriu, soltou a bolsa e não lhe disse que ela não tinha a mais remota
ideia da direção que deviam tomar.
— Além disso, lá no imóvel Blythe me enganou, não me disse que podia
andar...
Ele arqueou as sobrancelhas mas não negou, o muito patife.
— ... Mas suponho que agora está cansado?
— Estou — ele se limitou a admitir.
— Deveria te dar tão só o pedaço menor de pão como castigo. E pensar
em quão angustiada estava quando deu o primeiro passo! Mas cuidei de você
durante muito tempo para comprometer meu trabalho.

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Partiu o pão, pôs um pedaço sobre um guardanapo e o empurrou para ele.


— É certo, pôs um grande empenho em cuidar de meu corpo, e lhe
agradeço isso. — Sorriu de um modo tão luxurioso que ela soube que não se
referia a sua habilidade de enfermeira.
Ela pegou a faca e a desembainhou. Enid deslizou um dedo pela afiada
folha e sorriu por sua vez. Se tivesse podido conter o rubor, teria sido a perfeita
ameaça.
— Me dê isso, moça, antes que lhe entre a tentação de usá-lo
incorretamente.
MacLean se ergueu e pegou a faca e o queijo.
Enid admitiu que ele dirigia a faca com habilidade, pois as fatias que
depositou sobre seu pão eram finas e uniformes, tal como ela gostava. E como
não podia evitar se preocupar por cada minúcia, se preocupava que ele a
tivesse observado enquanto comia e recordasse de suas preferências. Um
homem considerado faria isso por sua esposa.
Ah, que o céu a salvasse dos homens considerados! Pegou os primeiros
bocados do pão com sabor de nozes e o áspero queijo.
— Quem nos segue? — se apressou a perguntar.
— Não posso recordar, moça, mas tudo parece indicar que se trata de
pessoas que querem me ver morto.
Enid rebuscou na bolsa e encontrou umas frutas secas. Não só maçãs, a
não ser frutas mais exóticas. As mostrou a seu companheiro.
— Olhe. Isto é estupendo!
— Vejo que sua amiga Celeste se ocupou do assunto. — MacLean sorriu ao
ver a satisfação sem inibições da jovem. — Quando os homens fazem a
bagagem, não pomos coisas tão deliciosas.
— Querida Celeste.
Ela mordeu o damasco e o sabor ácido e doce da fruta a fez estremecer de
prazer.
MacLean agarrou sua mão, a aproximou da boca e pegou com os dentes a
outra metade da fruta.
Se alimentavam mutuamente, algo do mais primitivo, do mais sedutor. E a
maneira em que ele a olhava, como se se propunha a se inclinar para frente e
beijá-la... aqueles beijos profundos, fabulosos, que conduziam ao pecado e ao
pesar. Ela tratou de retirar a mão e ele acompanhou o movimento, pressionou
a jovem contra a rocha, com uma mão em seu ombro, e desceu de súbito a
cabeça para lhe cobrir os lábios com os seus.
O beijo era o que ela temia. Uma isca descarada, porque ele não ia forçar
sua submissão, o muito canalha. Roçava-lhe os lábios com os seus, docemente,
com rapidez, uns passos suaves que a faziam tremer de desejo de lhe agarrar
o cabelo e retê-lo para o beijar. O contato a acalorava, apressava seu coração,

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a ruborizava. Ele cheirava tão bem, cheirava a segurança, a marido, a amor...


Pondo uma mão no peito dele, o afastou e aspirou fundo, trêmula.
— Olhe, este é o tipo de dificuldade que temia.
— Dificuldade? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Chama a isto
dificuldade?
— Poderia ser, se nos deixamos levar e esses velhacos nos encontram em
flagrante delito...
Ele riu entre dentes.
— Com as calças baixadas e as saias erguidas, por assim dizer.
— Deveria seguir adiante sem mim.
— Não quer ir por aí com um homem perseguido? — replicou ele, lacônico
e absolutamente preocupado.
— Isso não é tudo, como muito bem sabe. Eu o retenho. Se move mais
rápido e mais silencioso que eu, se mescla com o campo, parece um nativo...
Ele colocou a mão na bolsa que estava ao lado de Enid, tirou uma rodela
de maçã seca e a examinou.
— É que sou um nativo...
— Poderia ir a sua casa duas vezes mais rápido sem mim.
MacLean esteve um longo momento sem dizer nada, e então suspirou.
— Ah, as coisas que pensa de mim.
— As coisas que eu... o que quer dizer?
Ele ergueu a vista, e ela mudou de ideia a respeito de sua calma. Os olhos
dele brilhavam, o queixo se sobressaía; estava furioso.
— Que sou o tipo de homem que abandonaria a sua esposa em meio das
agrestes terras escocesas para salvar a pele. Que iria a minha casa sem você,
sem saber jamais se sobreviveu ou não.
— Ergueu a mão para a impedir de falar. — Talvez antes fui esse tipo de
homem. Não recordo.
Ela se sentiu afligida.
— Não, você não!
— Mas sei que agora não farei tal coisa, e pode tirar isso da mente.
— Mas e se eu... — Enid tragou saliva.
— Se você o que?
— E se te dissesse que não sou sua esposa? — respondeu ela
apressadamente.
A fúria de MacLean não se manifestou a gritos. Chegou em um sussurro
ameaçador.
— Então diria que faz um par de noites fez uma imitação muito boa de
uma esposa. — Tomou ar a fundo. — Temos um longo caminho pela frente. É
inútil que me venha com esses ardis.
Ela não podia acreditar. Se armando de coragem, lhe confessara o grande

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engano... e ele não acreditava!


— É minha amada esposa, e se a capturam, a torturarão até que me
entregue.
Enid não pensou nisso, nem em que eles, quaisquer pessoas que fossem,
dariam a suas palavras o mesmo crédito nulo que MacLean.
— Se entregaria por mim?
Enid piscou. De onde saíra isso?
— Pois o que acredita você, moça?
A olhou fixamente aos olhos, e ela reteve o fôlego. Stephen MacLean a
teria abandonado sem pensar nisso duas vezes. Kiernan MacLean não só se
entregaria pela mulher a que via como sua esposa, mas sim lutaria por ela... e
também morreria por ela.
As diferenças entre os dois homens eram tão grandes que Enid não
compreendia como podia ter se deixado enganar. Sentiu um nó no estômago
ao pensar na grande honra que seria estar casada com Kiernan MacLean, e a
embargou a tentação de se considerar dele. Mas se ele tinha honra, ela
também.
— Por muito que aprecie o elogio que me faz, devo insistir...
Ele agitou o ar com a mão.
— Já é suficiente. Como está seu calçado?
MacLean se convertera em alguém a quem Enid não reconhecia, um
guerreiro decidido a protegê-la e defender aos dois. Ela não sabia como lhe
convencer da verdade.
Não queria lhe convencer.
O convenceria mais à frente. Sem dúvida naquelas circunstâncias a
covardia era compreensível.
— Estão... bem.
— Não lhe saíram bolhas nos calcanhares? Não estão furadas as meias?
— São cômodas. MacLean...
— Muito bem, então. Seguiremos caminhando até meio-dia, ou até que
encontremos um refúgio apropriado. A princípio viajaremos pela manhã e a
noite, e logo, quando tivermos a segurança de que os despistamos, viajaremos
durante todo o dia. — Pegando as mãos, a olhou suplicante aos olhos: — Confia
em mim, Enid. Juntos encontraremos o caminho para casa.

Capítulo 18

— Abaixo, moça.
MacLean pegou Enid pela cintura, a desceu da carroça e observou que lhe
sobressaíam as costelas. Nos doze dias que levavam no caminho, Enid perdeu
muito peso embora ainda fosse uma mulher atraente. Tão atraente, com seus

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seios admiráveis e suas feições delicadas, que lhe resultara difícil manter em
todo momento a disciplina.
Pendurou no ombro uma bolsa de provisões, estendeu a Enid a sua e se
despediu do granjeiro lhe agradecendo e agitando a mão.
MacLean queria ter Enid entre seus braços e ouvi-la gemer como o fizera
na quinta de Suffolk. Queria lhe ensinar novos prazeres e beijá-la até que os
dois estivessem sem fôlego e ansiosos por chegar à culminação. Queria tudo
isto, e devia se contentar tendo-a em seus braços enquanto dormiam.
Assim que chegassem a casa as coisas iam mudar. Muito em breve, se ele
conseguisse.
— Seguimos adiante? — perguntou ele, segurando-a pelo braço.
Enid olhou a seu redor. Estavam em um lugar desabitado das Terras Altas
escocesas: inóspitos escarpados, colinas cobertas de plantas e urze, pinheirais
e dois estreitos sulcos a modo de caminho.
— Só é meio-dia— respondeu ela.— Depois de uma viagenzinha tão
cômoda — dirigiu um significativo olhar a carroça que estralava, — deveríamos
ser capazes de caminhar até meia-noite.
— Boa ideia. Me alegro que tenha pensado nisso.
Mas apesar de seu sarcasmo, estava preocupado por Enid, cujas queixas
não eram tão incisivas como antes. Estava se debilitando. Isso explicava o
motivo de que, quatro dias atrás, ele tivesse abandonado as paragens agrestes
para avançar pelo caminho.
É obvio, a maior parte do que os habitantes das Terras Altas chamavam
civilização provavelmente lhe parecia muito tosco a uma mulher educada na
Inglaterra. Umas poucas choças apertadas à beira de um lago constituíam uma
cidade, e as granjas eram escassas e estavam muito distanciadas. O primeiro
dia pagaram a um jovem janota para que lhes permitisse viajar no assento
elevado do lacaio de sua carruagem de estilo inglês usado, e assim
percorreram muitas léguas antes que anoitecesse. No dia seguinte viajaram
com a lentidão da carreta de feno que os transportava e passaram a maior
parte do dia dormindo. Na noite anterior encontraram uma granja com uma
horta minúscula, uns pobres campos e uma mísera choça. MacLean fez uma
troca com o granjeiro para que lhes permitisse se alojar no estábulo, e com a
esposa do granjeiro por dois pratos de empanada e duas jarras de cerveja. Enid
comeu como se nunca tivesse provado semelhante aprimoramento, e dormiu a
perna solta5 com um teto sobre a cabeça.
E hoje o granjeiro os levou em sua carroça, a caminho do mercado.
Mas estavam se aproximando da costa ocidental e do mar. MacLean
notava o aroma na atmosfera e a mudança do vento. Mais ainda, descobriu um
caminho prometedor, afastado do caminho principal e à esquerda. Um atalho
5
dormir muito bem e profundamente

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de cabras, como a maior parte dos atalhos que percorreram, mas, ao contrário
dos outros atalhos, MacLean reconheceu aquele vagamente. Tanto o atalho
como a costa pela qual subiam resultavam familiares. E pensava... suspeitava
que os levaria aonde queriam ir.
Reconheceria o que se encontrava do outro lado? MacLean se separou do
caminho e entrou em um pequeno bosque. Enid não o seguiu. Ele se voltou e
lhe disse:
— Anda, vamos.
— Não me trate como se fosse um cão de caça!
Ele reteve o fôlego. Enid estava a ponto de sofrer um ataque de nervos
feminino.
— Fiquemos em algum lugar onde haja fogo e um banho — pediu ela em
um tom de desespero. — Leva dias sem ver ninguém suspeito.
Ele retornou a seu lado, pegou a mão dela e a olhou aos olhos, aqueles
grandes olhos azuis bordeados de negras pestanas.
— Não, não vi a ninguém suspeito. Estou convencido que despistamos a
quem quer que nos estivesse seguindo. Mas não confio em ninguém de Suffolk
nem confio em ninguém a quem não conheça, porque talvez eles me
conheçam e estejam dispostos a me matar. Passar a noite em uma estalagem
poderia significar nosso fim, disso não há dúvida.
No estado de ânimo em que se encontrava, Enid não podia ser razoável. O
lábio inferior lhe sobressaiu e ficou a tremer.
Ele a conduziu para as árvores e perguntou razoavelmente:
— Como pagaríamos o alojamento?
— Com o dinheiro que você trouxe.
Ele estava inquieto pela crescente sensação de familiaridade que
experimentava naquelas paragens.
— Já gastamos muito, e esse dinheiro é para uma emergência.
— Estou cheirando mal. Isso não te parece uma emergência?
— Pois não a cheiro — assegurou ele enquanto abandonavam as árvores.
Olhou a seu redor para se assegurar que ninguém os via e apressou a
jovem através dos campos.
— Isso é porque você também cheira mal. — Seu tom era duro e mal-
humorado.
Ele a examinou com o cuidado de uma donzela de uma dama. A parte
inferior de sua capa estava rígida, coberta de lama da altura dos joelhos para
baixo. Dormiram sob uma carreta tombada, com o resultado de que o chapéu
de Enid se deformou sem remédio. Enid lavava a cara todas as manhãs, mas
cada vez que faziam uma parada se deixava cair ao chão poeirento, e sempre
tinha a cútis suja. Seus olhos azuis conservavam seu brilho, a cor de sua pele
era saudável, se fortaleceu com o exercício e inclusive estava mais bonita, mas

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chegou a pensar que a viagem não terminaria jamais.


Semelhante atitude podia lhe levar a se desentender de sua própria
segurança, e ele não podia permitir tal coisa.
Quando chegaram ao caminho, ela exalou um dramático suspiro e
apontou para trás.
— As pousadas estão nessa direção.
Ele olhou a seu redor. Conhecia aquela paragem. Não sabia por que, mas
reconhecia os salientes rochosos, a costa pronunciada até o topo da elevação,
a maneira em que o vento açoitava seu rosto quando coroaram o topo e
iniciaram a descida pelo outro lado... e o modo em que o atalho serpenteava
pela vertente de outra colina.
Se ele estava certo... se recordava corretamente... poderia encontrar um
banho. Um banho e uma macia cama e um marido disposto, embora ela não
desejasse este último.
— Vou te levar a um lugar que é melhor que uma estalagem — disse ele.
Embora Enid confiasse em que a guiasse, não lhe confiava seu amor. Ela
não disse, mas MacLean não podia esquecer a loucura que brotou de seus
lábios na primeira jornada do caminho: "Não sou sua esposa". Ela podia desejar
tudo o que quisesse, mas dizer as palavras não converteria seus desejos em
realidade, e ele se propunha lhe demonstrar com exatidão que estavam
casados. À primeira oportunidade, dedicaria toda sua atenção a Enid. Criaria
uma oportunidade, e Por Deus que descobriria por que razão ela se calava
quando lhe perguntava por seu passado, por que tinha o aspecto de um coelho
apanhado quando lhe falava de seu futuro.
MacLean seguia caminhando a passo vivo, sempre de olho atento, mas
também apostando consigo mesmo enquanto caminhava. Do outro lado
daquela crista veria uma cascata à esquerda. Uma deteriorada cerca de pedra
se estendia passando pelo atalho até a linha das árvores. Um pomar de
frutíferos, os ramos coalhados de verdes folhas se balançando sob a brisa no
estreito vale que se abria abaixo.
Acertava sempre. Estavam se aproximando, ele sabia no mais profundo de
seu ser. Logo estaria com sua família, e quando isso acontecesse... ah, quando
isso acontecesse voltaria a ser um homem íntegro, com suas lembranças e
uma mãe e uma irmã... saberia quem eram seus inimigos e poderia exorcizá-
los.
— Ali. — Se detendo pendente abaixo, MacLean apontou algo. — Vê isso?
Ela tirou da cara a borda do chapéu.
— Há um terreno baixo.
— É melhor do que parece.
Ela estava tão fatigada que não lhe perguntou como sabia.
E era melhor que não perguntasse por que ele não tinha ideia de como

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sabia. Se pôs a andar na frente dela, a ajudando com uma mão sob seu
cotovelo.
Giraram para tomar outro atalho, mais estreito, apenas uma franja riscada
na erva que cobria a vertente. Avançaram entre um amontoamento de rochas
mais altas que ele, e de repente estiveram ali, em um pequeno terreno baixo
esquentado pelo sol e rodeada pelos montes.
Ele quase podia recordar que de moço ia ali correndo e visitava... a
alguém. A uma pessoa idosa. Mas não, seu rosto o evitava por completo...
O rosto de uma mulher. Vivia ali solitária, com uma vaca e umas quantas
galinhas. Tinha um pomar pequeno, protegida do pior do inverno por umas
enormes rochas graníticas, onde cultivava ameixas e maçãs, e uma parcela de
verduras. Ah, os espinafres mais deliciosos que ele jamais comera.
A mulher, quem quer que fosse, não estava ali, e os animais
desapareceram com ela. Agora reinava no lugar um completo abandono. A
casa de pedra parecia desabitada, as venezianas fechadas, a porta fechada por
fora com aldrava, e da lareira não surgia fumaça. Não obstante, ele tinha a
sensação de que ali se encontrava a salvo.
Sim, estava recordando.
Quase temia ouvir o que Enid diria sobre o lugar. Ao fim e ao cabo, ela
vivera com uma grande dama em Londres e com ele na casa familiar Blythe, e
a quinta em que se alojaram ali tinha dez vezes o tamanho daquela cabana.
Mas Enid exalou um suspiro de prazer.
— É uma maravilha.
— Baixou muito a fita de seda.
— Não, é uma casinha perfeita, seriamente. É... é bonita. — Elevou a cara
ao sol. — Cheira a maçãs, e aqui o clima é quente. Ouço o vento que sopra no
alto, mas aqui estamos protegidos.
Enquanto a olhava, ele compreendeu até que ponto suas circunstâncias
mudaram. Enid era delicada e não estava acostumada aos desafios físicos, mas
mostrava tanto ânimo como qualquer escocesa. Subia as costas e se queixava,
descia por atalhos lamacentos e se queixava, se escondia em um terreno baixo
durante um par de horas e não dizia uma só palavra.
MacLean podia confiar nela. Mais ainda, a adorava.
— Por que me olha dessa maneira? — Ela tocou a própria cara; seu sentido
feminino da boa aparência lhe dava a voz de alarme: — Me queimou a pele,
não foi?
Ele soltou uma risada.
— Saíram-lhe umas quantas sardas, e são encantadoras. Veem ver isto. É
inesquecível.
Precedeu a Enid por um curto caminho que serpenteava entre lajes, se
guiou pelo som de água em movimento e encontrou um recipiente artificial,

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uma bacia do tamanho justo para lavar pratos nela. Um ramal de um arroio se
despenhava por uma rocha para alimentar um lago arenoso de água clara e
superficial, enquanto outro ramal descia e se perdia ao redor de uma curva.
MacLean experimentou uma sensação de orgulho, como se aquele lugar lhe
pertencesse e fosse um segredo que só podia compartilhar com o ser mais
querido.
— OH, é precioso! Está tão limpo! Poderia tomar um...
— ... banho. — Lhe desatou as fitas do chapéu e começou a lhe tirar a
capa.
Ela segurou o colarinho do objeto, como se temesse suas intenções.
E devia temê-las. Ele disse antes; às mulheres impressionava a limpeza
muito mais que aos homens. Não lhe teria importado esperar para se banhar
até que chegassem à ilha de Mull, mas ela era diferente.
— Agora faz calor, mas as montanhas impedirão a luz de passar muito
antes que o sol fique no resto do terreno, por isso será melhor que retire o pó
da cabana e acenda o fogo. Se quer se banhar, se apresse.
Ela seguia o olhando com fixidez.
— Se não se importar, pode me ajudar a limpar a cabana.
Ela atirou a capa a um lado, se sentou em uma pedra e tirou as botas
cobertas de barro seco. Podia ser recatada, mas acima de tudo era prática.
Ele ficou a assobiar, se aproximou do barracão e abriu a porta. Ouviu os
ratos que escapuliam, seu olfato percebeu o aroma de fechado e a umidade e o
leve aroma de uma vaca que outrora viveu ali. Foi às janelas, abriu as
venezianas e deixou que penetrasse o ar e a luz. Havia um montão de lenha ao
lado da lareira, e junto à porta um balde reluzente. A cama tinha um
amontoado de cordas cobertas com lona, e ao pé havia mantas envoltas em
uma capa para as liberar do pó.
MacLean olhou a seu redor. A cabana devia se encontrar nas terras de um
homem importante, pois estava muito bem mantida. Aquele era o território de
MacLean? Exigia o senhor do clã que aquele lugar se mantivesse em bom
estado para o caminhante solitário que percorresse as colinas? Era, pois, de
justiça que ele encontrasse abrigo ali durante sua viagem para o lar de sua
família. MacLean tirou o capote e a jaqueta, e arregaçou as mangas. Empunhou
a vassoura, eliminou a sujeira dos cantos e então varreu minuciosamente o
sujo chão. Com um trapo úmido limpou a mesa e o banco.
A lareira já estava preparada e só teve que acender o fogo. Jogou as
mantas ao exterior, as sacudiu, entrou de novo e as estendeu sobre a cama.
Pegou o balde, mas fez uma pausa para voltar a cabeça e contemplar a sala.
Tudo estava tal como recordava. Limpo, seco, acolhedor.
Dele.
Fechou os olhos e a viu. A anciã com cara de maçã seca. E um lunar

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marrom escuro no queixo. "Venha quando quiser, moço. Este lugar é seu."
As lembranças voltavam para sua mente.
Retornou ao arroio sem sigilo, dando ao Enid a oportunidade de correr
para se esconder atrás de uma rocha se desejasse, e, para maior vergonha,
supôs que ela desejaria fazer isso. Mas quando dobrou a esquina, se deteve em
seco. Ali estava ela, sentada no pequeno lago, com as pernas cruzadas, os
olhos fechados, com uma expressão de prazer no semblante e...
completamente nua. Seus braços eram graciosos, os mamilos floresciam
brandamente.
Parecia tão fresca como um casulo enrubescido. A água clara lhe chegava
à cintura, e entre as pernas fortes e musculosas sua esplêndida e rosada
abertura recebia a líquida carícia. Ele deve ter emitido algum ruído abafado,
porque ela abriu os olhos. Tinha dormitado. MacLean o via nas pálpebras caídas
e sonolentas, na estupidez de seus movimentos ao mesmo tempo que tratava
de se encarregar da situação. Não lhe importava. Deixou cair o balde e se
encaminhou para ela.
Ela ficou em pé como Afrodite se elevando das ondas.
Quando se voltava para se pôr a correr, ele deu um salto e rodeou sua
cintura.
— Não! — exclamou ela. — Não podemos. Não sou... não sou...
— Não me importa o que acredita. É minha.
A erguendo da água, levou-a a uma rocha plana e baixa aquecida pelo sol.
Tombou-a brandamente de barriga para cima, com os quadris na borda da
rocha e os pés pendurados. A posição perfeita.
Com um joelho entre as pernas dela, ele se apressou a desabotoar a
braguilha.
—Planejou isto! — gritou Enid, tratando de se voltar a um lado.
— Se tivesse planejado, já teria tirado as malditas calças. — extraiu o
membro, baixou as calças e imobilizou a jovem contra a rocha. — Sou eu quem
poderia te acusar de planejar isto. Estava nua.
— Assim é como me banho!
Ele desejava lhe sorrir, tão molhada e indignada estava, mas não podia
obter que sua boca se movesse para falar. Todo seu controle muscular se
concentrava em se reter para não possuí-la imediatamente. Precisava penetrá-
la. O sangue lhe corria com fúria nas veias. Precisava saber que ela
compreendia que era dele.
— Não sou sua esposa.
O tom de sua voz parecia suplicante. Pôs uma mão no ombro dele e o
olhou aos olhos.
Bom, era natural que olhasse aos olhos. Não se atrevia a olhar mais
abaixo.

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— Me escute — disse ela. — Houve um engano.


— Tem a sensação de que isto é um engano? — Pegou a cara entre as
mãos e a beijou. O desejo ardia em suas vísceras. — Isto é um engano? —
perguntou-lhe em um tom gutural, e deslizou os lábios ao longo de sua
garganta até os seios.
Ela emitiu um gemido quando aplicou os lábios a um mamilo e o sugou.
— Não deveria...
— E isto? — Colocou os dedos no arbusto frisado entre as coxas da jovem
e rapidamente deslizou o polegar pela abertura, a alargando.
Quando ele a tocou, Enid pôs os pés sobre a rocha e elevou os quadris.
Dizia que não, mas o desejava tanto como ele a ela. E estava disposta.
MacLean não podia esperar. Transcorrera muito tempo. Deu um passo adiante
e lhe separou as pernas, se colocou em posição e a penetrou.
Apertada. Que extraordinariamente apertada era. E úmida e cálida e
acolhedora. Nenhum outro homem, dissera ela. Disso não havia dúvida. A
maneira em que seu corpo o retinha, o massageava, era um milagre de deleite.
A possuía. Era seu proprietário. Era dele. Ela tinha acessado aquela noite
na quinta, e ele não permitiria que uma exibição de nervosismo estragasse sua
união. Em toda a história do mundo nunca existiu uma adaptação mais
maravilhosa entre um homem e uma mulher.
Como se acabasse de se dar conta do que estava acontecendo, Enid
estremeceu e lutou para se afastar dele. Ele agarrou as coxas dela e a reteve,
as pernas bem abertas, de modo que pudesse dominá-la.
— Minha — lhe disse.
— Não — sussurrou ela.
Como se atrevia a discrepar?
— Toda minha.
E então empreendeu um ritmo que com toda segurança ia deixa-la sem
fôlego e levá-la ao êxtase. Empurrava com força, esfregando a pélvis contra o
púbis feminino, pressionando-a com uma luxúria sem travas, elementar.
Ela reagiu como ele sabia que ia fazer. Como o exigia seu corpo. Jogou a
cabeça para trás, e uns cachos do longo e negro cabelo pulverizaram pela
áspera superfície da rocha. Gemeu uma e outra vez. Chegou em seguida ao
ponto culminante, cada potente espasmo uma súplica, até que as contrações
cederam caminho a um estremecimento e gritou de novo.
E enquanto isso ele não deixava de se mover em seu interior. Seu corpo
expor exigências e, em troca, tinha o membro retido e embalado de todas as
maneiras eróticas, carnais. Não podia fazê-lo durar, mas tampouco desejava. O
amor sem pressas podia esperar para mais tarde; agora ela reconheceria a seu
dono. Seus testículos se elevaram, tensos. Se moveu mais febrilmente.
— MacLean, céu santo. MacLean!

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Como tormentas invernais procedentes do mar, os orgasmos percorreram


o corpo de Enid com uma força arrasadora.
Ele se deteve, a borda da culminação, ao ver o aspecto que ela tinha com
a cara para o céu, os olhos fechados, o prazer evidente em cada linha de seu
tenso corpo. Então se apressou a possuí-la, a enchê-la com sua semente. A se
apropriar dela como ela merecia que ele a apropriasse.
MacLean não aguardou recuperar o fôlego, nem sequer a que os últimos
espasmos deixassem de estremecê-los. Se inclinou para o rosto dela.
— Me olhe — disse.
Ela pestanejou e abriu os olhos, e então em rápido e aberto desafio, voltou
a fechá-los.
— Me olhe!
Ela estava muito fraca para resistir. Aqueles maravilhosos olhos azuis se
abriram e o olharam cheios de afeto. Por muito que Enid desejasse que as
coisas fossem diferentes, o queria.
MacLean a estreitou com força entre seus braços.
— Sou o sangue de suas veias — disse, — a medula de seus ossos. Nunca
irá a nenhuma parte sem saber que estou dentro de você, te apoiando,
mantendo viva. Faço parte de você. E você é parte de mim.
Estamos unidos para sempre.
— Não, não... — Mas Enid o sentia dentro dela, a alargando, a enchendo. A
rodeava com seu aroma, com seu corpo. A olhava aos olhos, invadia sua
mente, a mantinha cativa em seus braços. — Não diga essas coisas.
— Digo a verdade, amor. Será melhor que a aceite.
Esse era o problema. Ela queria. Ela queria acreditar que poderiam estar
unidos para sempre.
Que bobagem. Pondo uma mão no peito dele o afastou brandamente.
Se surpreendeu ao ver que ele não se opunha. Ao que parecia, acreditava
ter causado suficiente impacto ao possuí-la e com suas palavras.
Poderia ter estado certo... salvo que ela sabia que não era seu marido.
Quando ele se retirou, Enid se sentou na rocha.
MacLean pôs a mão sob o cotovelo dela, a ajudando a se erguer.
— Devagar. Temos todo o tempo do mundo.
Ela não queria lhe olhar. Não queria vê-lo, orgulhosamente nu e muito
satisfeito de si mesmo. Assim, com uma mão trêmula jogou o cabelo atrás e
olhou a seu redor. O sol poente encheu até as bordas o pequeno vale de calor e
de cor. A brisa era mais penetrante e mais aromática, com o aroma dos
pessegueiros do pomar. Debaixo de Enid, a rocha cinza parecia arrepiada como
um alfineteiro. Em um ramo uma cotovia cantava como se assistisse a uma
celebração de casamento. Isso era o que MacLean lhe causou; impulsionou seu
sangue através das veias, lhe fez ver e respirar e sentir como se o fizesse pela

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primeira vez, fazia que cada um de seus sentidos gozassem na celebração da


vida.
Deveria lhe odiar, mas não o fazia.
Deveria ter resistido, mas não o fez. Se cansou de ansiar o contato de
Kiernan MacLean... estava cansada de o amar com o coração quando sua
mente sabia que não deveria fazê-lo.
O amor. Ele. MacLean.
Embargada de horror e incredulidade se separou dele e se apressou a ficar
em pé.
— O que te passa? — MacLean agarrou a mão dela antes de que pudesse
fugir.
Tolices. Não podia lhe amar. Não era seu marido.
— Enid... Te fiz mal?
— Não... não. — Deveria ter tido em conta que estava nua. Agora só podia
cambalear sob o peso de seus pensamentos. — Estou bem... só me sinto...
aturdida.
— Não a assustei? — Se aproximou mais. — Precisava compreender como
são as coisas entre nós.
— Como você decretou que o sejam.
"O sangue de suas veias, a medula de seus ossos, estamos unidos para
sempre." A assustavam estas palavras? Sim, mas nem tanto, nem muito
menos, como suas próprias meditações.
Amar Kiernan MacLean.
Algumas pessoas, a senhora Brown, por exemplo, poderiam dizer a Enid
que o amava e que por isso o beijava com um desejo tão desesperado, por isso
ria de suas brincadeiras e lhe doía seu desdém. O amor... OH, essa seria uma
explicação fácil de por que não podia resistir a ele. Estava louca por ele.
Mas não estava.
Não podia estar. Percorrera antes esse caminho.
O que ocorria era que recebera um tipo de homem diferente em Kiernan
MacLean, inclusive quando estava inconsciente. Um homem feito de aço, honra
e integridade. Lutou por ele, chegou a ser inseparável dele, lhe devolveu a
vida. Embora pusesse dúvidas a seu caráter inflexível, o admirou, assim como
sua obstinada determinação.
Se o amasse, experimentaria algo mais que um simples amor. Se amasse
Kiernan Maclean, esse amor seria autêntico.
— Por que me olha dessa maneira?
MacLean lhe separou do ombro uma mecha de cabelo, deslizou uma mão
até o final de suas costas, a marcou com seu contato.
Enid não se deu conta que o olhava fixamente. Olhava os largos ombros,
os fortes quadris, as coxas com seus músculos proeminentes. Examinava sua

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larga cara, suas feições marcadas, as cicatrizes de sua pele.


O amor sempre terminava em dor.
Mas embora isso fosse certo, ela não amava MacLean. Não se permitiria
amar MacLean.
Então, o que importaria que... fizessem amor aquela noite?
— Eu somente... eu gosto de seu aspecto.
Queria fazer amor de novo. Necessitava que a intimidade afastasse à
tristeza, à certeza de que logo se separariam. Desejava a paixão e o
esquecimento que poderia lhe contribuir. Fazer amor com aquele homem não
significaria nada. Nada.
De modo que voltaria a fazê-lo, uma e outra vez.
— Vamos ao lago. — Com um sorriso composto em partes iguais de
sedução, incerteza e paixão, Enid acrescentou: — A água está quase quente e
é muito... refrescante.

Capítulo 19

Pouco antes do pôr do sol, Enid se acocorou atrás de um cabo enrolado no


úmido e solitário embarcadouro e olhou para MacLean com uma expressão de
horror.
— Vamos roubar essa embarcação?
— Os pescadores terminaram sua jornada e se foram a casa. — Falava em
voz baixa enquanto transferia todos os seus pertences a uma só bolsa. Corda,
mantas... nada de comida. Não comeram nada desde manhã, quando saíram
da cabana após terem comido a última bolacha de navio. — Agora estão todos
jantando.
O estômago de Enid grunhia.
— Mas isto é roubar.
— Roubar é uma palavra forte. Vamos tomar a embarcação emprestada.
— Isso é enganoso.
— Devolverei a embarcação a seu dono com uma recompensa pelo
incômodo. — MacLean meteu uma das duas facas sob a manga. — Te ocorre
uma ideia melhor? Quem nos persegue sabem aonde vamos. Apostaria que
estão vigiando a barca, e não vim até aqui, depois de uma viagem tão longa,
para que me matem às portas de minha casa.
— Não — disse ela. Não podia suportar essa ideia.
— Seja como for, a barca só navega uma vez por semana.
Os batimentos do coração de Enid aceleraram.
— Como sabe?
Ele a olhou com uma expressão melancólica.
— Acabo de recordar.

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Ela retrocedeu, levando a mão à garganta.


— Tudo?
— Tudo não. Ainda não. Mas vão chegando lembranças.
Iam chegando. Suas palavras ressoaram na mente de Enid. Não tinha
necessidade de contemplar o movimento das ondas que se chocavam contra o
muro da barca para sentir náuseas. O momento que esperava, o momento que
temia, se aproximava. Não faltava muito para que ele soubesse a verdade.
— Estupendo — disse.
Ele seguiu enchendo a bolsa.
— Comecei a recordar, em casa da avó Aileen...
— A avó Aileen?
A olhou de novo, mas desta vez sorriu.
— Na cabana do vale.
Enid não podia pensar naquela cabana sem recordar como a tarde de
esplendorosa paixão sob o sol prosseguira em um crepúsculo de amor lento,
suave, que cedeu passagem a uma noite cheia de quentes abraços, de
exigências sussurradas, de amor.
— Não sabia que era capaz de responder tantas vezes, mas necessitava
carinho desde que a conheci, e queria te fazer feliz. Te fiz feliz? — MacLean lhe
tocou a face. — Me diga Enid.
— Sim. — Ela tentou lhe sorrir, mas os lábios não deixavam de tremer. —
Sempre guardarei como um tesouro o que vivemos ali.
Depois que a possuiu pela primeira vez, depois que ela quebrou a
promessa que fez a si mesma e jazesse com ele, jogou pela amurada a ética e
o bom senso e o ajudou a se banhar. Isso conduziu a um episódio na erva, esta
vez com ele debaixo, porque ela já se arranhara com a áspera superfície da
rocha.
Lhe saiu uma erupção cutânea.
Voltaram a se lavar mutuamente. Ele estendeu uma manta e os dois se
deitaram nela e dormitaram ao sol.
Ambos se queimaram um pouco e receberam umas quantas picadas de
mosquito.
Quando o sol desapareceu atrás da montanha e o frio fez Enid tremer,
entraram na cabana. MacLean acendeu o fogo e tirou a empanada fria que
comprou a noite anterior. A esposa do granjeiro não se destacava como
cozinheira, pois a metade da casca estava queimada. Mas a comeram toda, e,
uma vez satisfeito o apetite, fizeram a cama e exploraram outro tipo de
apetite. E de noite Enid despertou para descobrir que ele a levava de novo em
uma viagem erótica como a que Enid jamais imaginou.
A libertinagem a que se entregaram deveria ter lhe escandalizado.
Tão só desejava que tivesse durado mais.

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Não lhe importavam os arranhões nas costas nem o bronzeado do sol que
se estendia pelo lado esquerdo de seu corpo. A única coisa que lhe importava
era que tinha lembranças entesouradas, lembranças de uns momentos
mágicos, breves, gloriosos e separados da realidade. Ela sabia que havia
prescindido da moral. Sabia que logo receberia o açoite da verdade. Mas nada
do que acontecesse poderia lhe fazer esquecer aquelas breves horas na
cabana da avó Aileen. Eram dela.
As entesouraria... porque MacLean estava recuperando a memória.
Rodeou sua cintura com o braço.
— Faz bom tempo para cruzar o estuário. Vento regular, o céu nublado e o
fluxo está tranquilo.
Enid contemplou as águas agitadas da baía e pensou que, se aquilo era
um fluxo tranquilo, confiava em não ver nunca um tormentoso.
— Acredito que poderemos atravessar o estuário a remo em umas cinco
horas.
— Não pode remar durante cinco horas seguidas. Acaba de abandonar o
leito de doente!
Ele não riu dessa absurda objeção, tomou tão a sério como qualquer
homem que percorreu a pé toda a extensão da Escócia.
— Tomarei um descanso de vez em quando.
— Não ficam cinco horas antes que anoiteça!
— Posso encontrar a ilha na escuridão. — Deu-lhe um rápido beijo nos
lábios. — Tirarei a amarra do barco, e então salta a bordo e empurra o muro
para desatracar. Pode fazer isso?
A pergunta irritou a Enid.
— Pois claro que posso.
— Boa garota. — Pendurou a bolsa no ombro e voltou a lhe dar um beijo
leve e rápido. — Sempre posso confiar em você.
MacLean ficou em pé, saltou por cima dos barris e das redes e aterrissou
na embarcação de quatro metros e meio de comprimento. Bamboleou, mas
ele, como um homem acostumado ao mar, se manteve firme com as pernas
separadas. Soltou o cabo de amarração e fez um gesto a Enid.
Ela se levantou, o coração pulsando com força, mas avançou pelo
embarcadouro como se estivesse de passeio.
— O que está fazendo? — perguntou ele. — Se apresse!
Ela se deteve ao lado do barco e lhe estendeu a mão.
— Se tiver que roubar uma embarcação, o farei à maneira de uma dama.
Pegou a mão e a ajudou a descer à proa.
— Está completamente louca, sabe?
— Não mais louca que um homem que não quer ir ver o pároco e lhe pedir
ajuda para se transladar a sua ilha.

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Não era a primeira vez que tinham essa discussão.


— Voltarei para casa por meus próprios meios. — colocou os remos nas
braçadeiras.
Ela utilizou um remo sobressalente para aplicá-lo ao muro do
embarcadouro e empurrar.
— Pois eu vou me ater aos cânones enquanto roubo.
— Certamente está louca. — Ele soltou uma alegre gargalhada. —
Completamente louca. Como vou suportar toda uma vida a seu lado?
— Não acredito que isso vá ser um problema. — Enid se sentou, de frente
a ele, enquanto MacLean dobrava as costas e movia os remos.
Um aroma de pescado impregnava a madeira. A água golpeava os lados.
Pouco depois que tivessem zarpado do Oban, o estuário revelou sua verdadeira
natureza e sacudiu o barco de um lado a outro. A tarde declinava, monótona,
amedrontadora. O sol deslizava por debaixo do horizonte, com um resplendor
rosa e violáceo contra o mar cada vez mais escuro.
Enid agarrava as amuradas e escrutinava o horizonte.
— Está obscurecendo. Está seguro que não perderemos a ilha?
Ele mostrava uma firmeza absoluta.
— A encontrarei na noite mais escura. Sou como um salmão que volta
para casa para desovar. Não necessito nenhum mapa, sei onde está.
Exatamente o que ela temia.
— Se tranquilize, carinho, e deixa que os pés descansem. — Sorriu-lhe. —
Estão melhor depois da massagem?
Pela manhã, antes que abandonassem a cabana, e apesar dos protestos
de Enid, ele insistira em lhe massagear os pés. Ao princípio lhe fizera cócegas.
Logo, à medida que relaxava, os dedos de MacLean adquiriram uma magia
própria. Ela gemeu e se retorceu, e quando ele pôs fim à massagem, se
desprenderam das roupas e se abraçaram.
— Muito melhor — replicou ela, recatadamente, como se não soubesse no
que ele estava pensando.
MacLean sorriu uma vez mais.
Enid contemplou as ondas, o céu e então, quando ele movia os remos com
tanta força como lhe era possível, o observou. Eram as últimas horas que
passava com ele. Quando recordasse (e a recuperação de sua memória estava
muito adiantada) se envergonharia dela e a despediria. Por isso monopolizava
lembranças dele: as caretas que fazia ao empurrar os remos através da água, a
ondulação dos músculos sob sua camisa, a barba de uma semana,
desalinhada, a face com as cicatrizes, o cabelo loiro avermelhado revolto pela
brisa.
O vento se elevou enquanto o céu se voltava de um violeta escuro antes
que chegasse a mais negra das noites. Seu traseiro doía após permanecer

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tanto tempo sentada na incômoda tábua, tremia de frio. Não podia ver nada,
nem a luz das estrelas nem o lugar onde terra e mar se encontravam. O barco
cabeceava entre as ondas, levando-a para onde ela carecia de senso de
direção, onde nenhuma luz podia orientá-la. O temor fechou sua garganta e
mal pôde exalar um trêmulo suspiro. Não queria chegar a seu destino.
Entretanto... já não deveriam ter chegado? Teriam deixado atrás a ilha
sem vê-la? Rodeando os joelhos com os braços, Enid se amassou em seu
manto, aconchegada no chão do barco.
— Se cubra com meu capote.
A voz profunda de MacLean saiu da escuridão como a de Poseidon que lhe
desse uma ordem.
Ela titubeou.
— Não tem frio?
Ele soltou uma risada áspera que tinha uma vibração perigosa, um tipo de
risada diferente da que ela ouvira até então.
— Ponha por cima meu capote e se sente no banquinho. Permanece
atenta, para ver se vê as luzes. Estamos nos aproximando.
Ela ouviu o som das ondas que rompiam na borda... ou talvez em umas
rochas entre as que naufragariam. A luz significaria um porto. Enid explorou o
horizonte em todas as direções, procurando com desespero qualquer sinal de
terra.
Por fim apareceram umas débeis piscadas luminosas.
— Olhe — apontou. — Ali!
O chapinhar dos remos se deteve.
— O porto— disse ele com satisfação.
Os remos voltaram a se mover, com mais rapidez.
— É perigoso? — ela perguntou.
— Conheço o caminho.
Sua voz parecia diferente, mais dominante, com uma confiança absoluta.
Ah, era possível que o barco não naufragasse, mas o coração de Enid sim.
O fragor das ondas se fez mais intenso. A luminosidade foi se
fragmentando, concentrada em quadrados: janelas, casas.
De repente, o barco mudou de direção.
— Está se afastando! — exclamou ela.
— Desembarcaremos no oeste. Está mais perto do castelo.
Ela fechou os olhos. Não era Poseidon quem lhe falava, nem nenhum outro
Deus. Era Kiernan, o senhor dos MacLean.
O barco roçou a areia, e cabeceou quando ele deixou os remos e saltou à
água para empurrá-lo até a praia. Agarrou o braço de Enid e a fez levantar.
— Vamos, moça, veem aqui e salta à agraciada terra da ilha de Mull.
Na escuridão, ela avançou entre as redes e os banquinhos.

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Ele emitiu um grunhido de impaciência, a ergueu e a levou nos braços a


terra.
— Não se mova daqui — disse após depositá-la na areia.
Como se ela pudesse partir. Enid ainda não via nada, embora ele parecia
estar fazendo as coisas bem.
— Aonde vai?
MacLean não lhe respondeu. Já se fora.
Enid se perguntou se aquilo era alguma brincadeira cruel, se ele partiria
deixando-a ali, envolta pela escuridão, até a manhã. Talvez se encontrasse em
uma enseada onde subia a maré, que a levaria mar dentro, e ele riria
cruelmente enquanto caminhasse para sua casa, ao encontro de sua família.
Talvez...
MacLean apareceu a seu lado.
— As nuvens se afastam e a lua não demorará para subir — disse. —
Ficaremos aqui sentados até que possamos empreender o caminho ao castelo.
Ela levou as mãos ao peito e confiou em que ele não tivesse ouvido seu
grito abafado de terror. Não era tão estúpida para acreditar que ele queria
realmente se sentar. Queria falar, e qualquer admissão de terror poria Enid em
desvantagem.
— Então sente.
Enid permaneceu toscamente em pé.
Também ele ficou em pé a seu lado, e quando falou, sua voz tinha aquele
timbre severo, ressoante.
— Ah, esta brisa marinha... noto os aromas de meu lar, passam por minha
mente as imagens do caminho que serpenteia entre as cercas e sobe a colina
para o outro lado da costa, onde está o castelo MacLean. Nasci aqui, me criei
aqui, e me faz mal saber como posso tê-lo esquecido tudo.
— Devido a um tremendo golpe na cabeça — murmurou ela.
O tom de MacLean mudou, se voltou furioso.
— Não sou Stephen MacLean, e você não é minha esposa!
Ela aspirou fundo. Temia esta confrontação, mas agora que se produzia,
quase notava uma sensação de alívio. Um alívio devido a que o pior passou.
Ele estava zangado e a culpava, e ela podia dar rédea solta a sua ira e lhe
gritar... e não pensar na solidão com a que iria ao exílio.
— Não é ele e não sou sua esposa.
— Sabe quem sou?
— É Kiernan MacLean.
— Tem razão, claro, isso sabe bem. — Enid pensou que oxalá o fogo que
ele exalava ao respirar pudesse iluminar a noite. — Como se propõe explicar
seu papel neste detestável engano?
Ele sofrera uma comoção, por isso Enid tratou de ser paciente.

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— Quando descobri a verdade, eu falei. Eu disse que não era sua esposa.
— Quando levávamos dois meses vivendo juntos. Depois de uma noite
fodendo tão bem como nunca fiz em minha vida!
Escandalizada por sua rudeza, ela balbuciou:
— É... é um bárbaro!
— Eu poderia te chamar algo pior. Está me pedindo que acredite que não
reconheceu a seu marido?
Paciente? Acreditou ela que podia ser paciente? Não quando lhe falava em
semelhante tom.
— Passaram nove anos desde a última vez que vi Stephen, e quando
cheguei ao imóvel Blythe tinha uma barba espessa, meia cara enfaixada e,
quando lhe tiramos as ataduras, a face cheia de cicatrizes.
— As ferida se curaram de todo durante o último mês.
— Não sei que aspecto tinha antes, mas suponho que sua família ficará
desconcertada ao ver a mudança que sofreu. Como me ocorreu quando
acreditava que era Stephen!
— Mal nos parecemos, ele e eu — replicou ele, se ajoelhando.
Enid o ouviu procurar algo... supôs que estava revolvendo o interior da
bolsa.
— Uma semelhança suficiente. Os olhos eram idênticos, e durante várias
semanas, te ver abrir esses formosos olhos era tudo o que importava. Quando
despertou, estava acostumada a você e não pensei... bem, você o disse então
que pensei que era prudente.
— Me disse que não estamos casados depois que nos atacaram no trem!
— Pôs uma manta sobre os ombros dela. - Era um pouco tarde para essa
confissão.
Ela se amassou no grosso tecido de lã.
— Não preciso jurar.
— Jura! — Ele elevou a voz. — Deveria me pedir que não a estrangule e
deixe seu corpo abandonado na areia.
Isso não a preocupava.
— Suponho que assim fica cancelado o do sangue em minhas veias e a
medula de meus ossos.
— Maldita seja, mulher, não é minha esposa!
Ela também elevou a voz.
— Não soube até depois do incêndio!
As ondas rompiam na borda, um grilo chiava na noite, e MacLean
guardava silêncio.
Ela confiou em que isso significasse que estava pensando.
— Quando estava a meu lado? — inquiriu ele, com muito mais calma.
— Sim! — respondeu ela. Em efeito, estava pensando.

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— Aquela noite me olhou com os olhos muito abertos e uma expressão de


horror, como se te tivesse se dado conta da realidade.
— E assim foi. Mas então não podia lhe dizer isso. Estava confusa. Não
sabia o que pensar. — Olhou para o lugar onde supunha que ele se encontrava.
— Somente sabia que o senhor Throckmorton me pediu que o deixasse se
recuperar sem te impor minhas lembranças. Pensei que talvez, se te dava um
indício, recordaria, mas lhe disse que não era sua esposa, pensou que estava...
não sei...
— Pensei que temia o que fizemos. É algo muito potente, este desejo entre
nós, mas... quando os homens querem ser insultantes e afirmar que todas as
mulheres são iguais na cama, dizem isso de que na escuridão todos os gatos
são pardos. Sou eu um gato pardo indistinguível de meu primo?
Ela retorceu os dedos.
— Não. Mas passaram... nove anos, e pensei que você... que ele...
praticara muito e aprendido a fundo de outras mulheres.
— Devo tomar isso como uma adulação? — replicou ele com a voz rouca.
— Não me importa se isso o adula! — exclamou ela, indignada.
Ouviu o ruído de suas pegadas ao se afastar na grossa areia da borda, e
então retornou.
— Bem — disse ele em voz tão baixa que era quase inaudível.
Ao que parecia, ele a escutava quando lhe gritava. Isso era algo que Enid
não devia esquecer... claro que não teria necessidade, porque não seguiriam
juntos.
— Fisicamente era muito diferente — admitiu baixando mais a voz, — mas
isso era algo que eu esperava. Estava... estava fodendo, como você diz, com
um homem que esteve a ponto de morrer em uma explosão. Teria me
surpreendido que seu corpo fosse o mesmo de antes!
— Por que não me disse isso aquela noite? A noite em que se deu conta
que não era Stephen.
— Alguém acabava de atentar contra sua vida provocando um incêndio,
depois de ter feito um bom trabalho, que quase o matou, com um explosivo. —
Tal como MacLean havia predito, a luz ia aumentando. Enid podia ver agora seu
contorno, alto e sombrio, recortado contra o céu. — Pensei que se te contava o
que sabia, talvez te faria correr mais perigo. E não sabia se o próprio senhor
Throckmorton se dava conta da verdade.
— Sabia — disse MacLean, sem uma sombra de dúvida.
— Suponho que sim. — Notou um sabor amargo na boca. — Ante o
verdadeiramente importante, os sentimentos e o corpo de uma mulher não
contam grande coisa.
— Não quando se contrapõem ao bem da Grã-Bretanha. Os homens como
Throckmorton fazem o que for por fomentar a causa da Inglaterra.

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— E você? — Enid atou a manta a seu redor como se fosse uma capa. — O
que estava fazendo na Crimea?
— Procurava a meu reprovado primo Stephen. Como a convenceram que
deveria cuidar de mim?
— Me disseram que Stephen sofrera umas horríveis lesões e que estava
morrendo, então que eu...
— Foi com a esperança de herdar? — disse MacLean em tom zombador.
— Estou farta que me considere uma mercenária — replicou Enid com os
dentes apertados.
— Mercenária? Você? A órfã que se casou com meu primo? Me responda a
isto, Enid... lhe pagaram para cuidar de mim?
Ela viu a armadilha, mas já estava tão fatigada que não lhe importava. Ele
já tomara sua decisão.
— Sim, muito.
— Pagaram o suficiente para me seduzir quando pensei em partir?
Enid reteve o fôlego. Sim que lhe importava, pois do contrário o desdém
daquele homem não teria sido como uma punhalada.
— Bastardo — sussurrou.
— Se lembro corretamente, a bastarda é você.
Ela encaixou o golpe baixo. Não era a primeira vez que a chamavam
bastarda, e podia superar isso. E certamente o superaria se lhe dizia que era
uma puta. Inclusive esperou pela metade do tempo o ouvir dizer tal coisa.
Não esperou sangrar e morrer, não por causa dos insultos de um homem
ao que ela se negava a amar. Com a voz um pouco entrecortada, perguntou:
— Devo ficar na praia e ir ao porto pela manhã? Estou segura que poderei
conseguir que um pesqueiro me leve a costa.
Ele a rodeou com o braço, um movimento tão rápido que poderia ter sido
o de uma serpente ao apanhar seu primeiro alimento do dia.
— Não vai se liberar disto tão facilmente, moça. Veio até aqui, e pode
enfrentar aos MacLean com seus pecados patentes na cara.

Capítulo 20

— Assim veio correndo a meu lado, ou melhor ao lado de Stephen, não


porque quisesse o dinheiro, mas sim porque me amava seriamente? o amava?
Enquanto avançavam pelo escuro bosque e o prado úmido para o castelo
MacLean, Kiernan a rodeava.
Lhe deu uma cotovelada nos joelhos.
Ele fez uma careta de dor mas seguiu caminhando, ao mesmo tempo que
se esforçava por dominar sua decepção. Mas descobrir que a mulher em que
acreditou, a que amou e respeitou, a que acreditou ter legítimo direito não era

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sua esposa! Sim, recuperou suas velhas lembranças, mas também tinha outras
recentes. Recordava ter vivido com Enid, falado com ela, recordava que cuidou
dele, o ajudou, brincou e discutiu com ele. Sabia que era mordaz, conhecia sua
esplêndida risada e sua maneira de bocejar pouco antes de dormir.
Sabia o aspecto que tinha nua.
Fora sua mulher, e queria que seguisse sendo.
Ela caminhava a seu lado, igualando não só os longos passos de MacLean
mas também sua irritação.
— Fui cuidar de meu marido porque era meu dever. O senhor Kinman
pareceu escandalizado que não me importasse o que lhe acontecera. A
senhora Halifax insistiu em que corresse a seu lado... ao lado de Stephen... e
me comportasse como uma esposa decente e humanitária. E o fiz. Fiz que
retornasse da beira da morte, porco ingrato, e não o esqueça.
— Porque a pagavam!
— Poderia ter te deixado morrer e de todos os modos me teriam pago, e
assim teria economizado dores de cabeça e os pés feitos como pedaço de
carvão vegetal além disso.
Condenada mulher. Não se dava conta de que o ferira no mais vivo? Lhe
confundira com Stephen! Com seu inútil e depravado primo Stephen. Não foi
capaz de distingui-los.
— Me honra que não me matasse para receber a herança.
— A herança? Stephen nunca teve um urinol no que mijar nenhuma janela
pela que jogar a urina, e quando me abandonou a única coisa que me deixou
foram dívidas. Eu não tinha nenhuma razão para acreditar que desta vez seria
diferente. E, certamente, sabia que de você não ia receber herança alguma,
poderoso senhor do castelo. Isso o deixou perfeitamente claro na carta que me
enviou durante a feliz ocasião de meu casamento.
Ele recordava essa carta. Ficou furioso com Stephen por se casar com uma
mulher de classe inferior à sua. Quando sua tia Catriona se lamentou por seu
pobre e crédulo filho, MacLean recordou a suscetibilidade de Stephen às
adulações, e por isso imaginou Enid como uma mulher sedutora e oportunista.
— Stephen não a abandonou. Você o abandonou quando não pôde te
proporcionar a boa vida que esperava do sobrinho de um lorde.
— Certamente Stephen te disse isso.
— Assim foi. — A honestidade o impulsionou a acrescentar. — Suponho
que mentia para salvar a cara.
— Suponho que sim — replicou ela em tom sarcástico. — Tive um marido
MacLean. Não quero outro. De modo que, por favor, não se preocupe se por
acaso, depois de nossa intimidade, tenho más intenções com respeito a você.
— Disse a si mesma que não deveria negar seu interesse com tanto
empenho. Em um tom mais suave, inquiriu: - Então estou certa. Stephen

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morreu por causa da explosão?


— Sim. — Pobre diabo. — Se livrou dele, não foi?
Ela exalou um breve suspiro.
— Jamais desejei a morte de Stephen, eu tão só queria...
— Se desembaraçar dele?
— Sim— admitiu ela. — Queria poder viver sem saber que talvez algum
dia Stephen apareceria para destruir de novo minha vida. Não desejava me
sentir mais envergonhada.
— Então admite que tinha motivos para se envergonhar?
— É claro que sim. Me casei humildemente.
Céu santo, aquela mulher aguilhoava seu orgulho, o coração, a mente.
— Stephen era um MacLean!
— Stephen era um canalha.
— Que caráter tão seco, como o bacalhau antes de pô-lo de molho.
— Exato, seca e fedida, mas é um tolo se acredita em qualquer das
mentiras que Stephen te contou a respeito de mim.
Tudo que ela dizia era certo, mas não era isso o que ele queria. Sim,
queria ser Kiernan, o senhor do clã MacLean, mas também queria ser o amante
de Enid. Queria levá-la a seu castelo, tê-la a seu lado, apresentá-la a sua mãe e
sua irmã, obter que sorrisse, tanto a elas como a ele. E quando a recepção
tivesse finalizado, queria levá-la a seu leito e amá-la como merecia ser amada.
Em troca, a única coisa que obtinha era acidez e lamentos.
— Vamos. Não quero que cheguemos tarde, ou nos será difícil despertar a
alguém.
Mais importante que essa possibilidade era a inquietação que deslizava
seu frio dedo ao longo da espinha de MacLean. Ao fim e ao cabo, alguém
queria que morresse. Atraiu Enid para si e reataram a marcha através do
último lance de bosque.
O passo forçado deve ter aumentado a aversão da jovem, pois lhe
perguntou:
— Quando Stephen te contou mentiras a respeito de seu casamento?
Quando correu a casa em busca de dinheiro? Ou foi acaso na Crimea, quando o
quis resgatar de sua própria temeridade?
Estas palavras puseram MacLean de sobreaviso.
— O que sabe de sua temeridade na Crimea?
— Meu casamento com MacLean durou três meses. Sabia o tipo de homem
que era. Se foi a Crimea, o fez com a intenção de ganhar algum dinheiro e se
divertir, e se viu envolto em algo que não podia controlar. Então lá foi você, seu
querido primo, a lhe salvar de suas loucuras uma vez mais, e os dois saltaram
pelos ares. Não é isso o que ocorreu?
O coração de MacLean se acelerou ao lhe ouvir falar de um modo tão

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irresponsável de algo que só deveria se expressar em sussurros.


— Para ser uma enfermeira sabe muito.
— Como disse Harry... não sou precisamente tola. — Respirava com
dificuldade e mantinha a mão no flanco, como se tivesse uma ferida. — O que
não sei é... para quem espiava Stephen? Para Grã-Bretanha ou para a Rússia?
— Me diga isso você. Era seu marido.
— Pelo menos sei que sua traição não manchou a minha família.
Que audaz era aquela mulher!
— Está me dizendo que estou manchado pelas ações de meu primo?
— Eu não estou relacionada com ele por laços de sangue.
Não era de estranhar que Kiernan desejasse tão intensamente a Enid. Não
lhe importava quem era nem a posição que tinha. Não ia permitir que a
pisoteasse. Defendia a si mesma. Não havia nada que ele desejasse tanto
como beijá-la, mas... ergueu a cabeça e caminhou mais devagar.
— Chist...!
— Por quê? Não quer ouvir a verdade? Poderia te contar coisas de Stephen
que lhe poriam os cabelos...
Ele se deteve e lhe cobriu a boca com a mão.
— Cala e não faça ruído — lhe disse ao ouvido.
Ela teve o bom senso de não resistir. MacLean afastou a mão e ela
permaneceu imóvel enquanto tratava de discernir que o único som, estranho e
nítido, o fez acreditar que os espreitavam.
Ele não ouviu nada. Voltou a rodeá-la com o braço e avançaram com
cautela para o castelo. Ficavam menos de dois quilômetros de distância, e não
permitiria que agora ocorresse nada a Enid. Elevou a cabeça e lançou o canto
alongado e grave do mocho.
E obteve resposta. Não longe de onde estavam, um pouco à esquerda,
fazia o esconderijo dos cervos 6. MacLean mudou de direção, olhou de novo
para o lugar de onde procedia o ruído e voltou a imitar o canto do mocho. A
resposta lhe chegou uma vez mais. E a reconheceu! Era o jovem Graeme
MacQuarrie. Todos os membros do clã MacQuarrie podiam ser mais pesados
que o chumbo, mas eram o outro clã da ilha e ele se alegraria muito de vê-los.
Enid, esperta moça, guardava silêncio e permanecia perto de Kiernan. Era
mais ruidosa que ele, mas o que podia esperar um homem de uma garota que
não era escocesa, tinha os pés torturados e levava muitas anáguas?
As chamada foram se aproximando, até que Graeme saiu saltando do
esconderijo dos cervos e deu uma palmada nas costas de MacLean.
6
esconderijo feito no caminho que os cervos fazem, seja para se alimentar, para ir a algum
bebedouro natural, ou até mesmo de imigração. São disfarçados com plantas e, por estarem
sempre ali, os animais não os consideram perigosos. Dai, os caçadores só precisam esperar e
disparar no momento mais adequado. Portanto, é um esconderijo disfarçado no meio da
vegetação. Uma excelente camuflagem para um vigia.

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— Não posso acreditar que por fim o tenha conseguido, velho cabeça de
vento!
O forte acento escocês de Graeme era o som mais doce que jamais
MacLean ouvira.
— E te encontrar aqui, em terras dos MacLean, quando o surrei uma e
outra vez o traseiro e te disse que voltasse correndo com mamãe! — Kiernan
soltou Enid e, a sua vez, deu uma palmada ao jovem.
— Como está, Graeme?
— Bem, se tivermos em conta que passei todas as frias noites esperando
para te ajudar a voltar mancando a casa. O que esteve fazendo todo este
tempo? Gemendo como uma donzela por sua delicada cútis?
Enid interveio então e mentiu sem o menor escrúpulo.
— Não fez nada mais que se queixar. Primeiro o incomodava o calor, logo
o frio, então lhe doíam os pés, a seguir se queixava de que tinha fome.
O assombro manteve Graeme mudo.
— Sabe como pôr a prova minha paciência, mulher! — exclamou MacLean
no tom que empregava para dar seu parecer com arrogância.
— Assim espero, pratiquei o bastante. — Enid se apoiou no tronco de uma
árvore. — Estamos perto do castelo?
— Sim, senhorita — se apressou a responder Graeme. — Nos disseram que
uma dama viria com MacLean, mas ninguém nos disse que seria tão
encantadora.
Isto significava que ninguém lhe havia dito que ela beliscaria a cauda do
leão dos MacLean. Com sua insolência já demonstrara o que valia e passado da
posição de zero à esquerda a de uma mulher importante.
E se apoiava em uma árvore, sinal que estava debilitada pela fome.
Rodeando-a de novo com o braço, MacLean reatou o caminho para o
castelo.
— Não comeu nada desde o café da manhã, que foi bem pouca coisa.
— E não gosta que falem dela como se não estivesse presente, da mesma
maneira que não gosta que a levem daqui para lá como se fosse um pacote! —
disse bruscamente Enid.
— Quando lhe ladra o estômago se volta um pouquinho colérica —
explicou MacLean.
— Qualquer mulher que caminhou através da Escócia pode ser tão colérica
como deseje. — Aquele condenado tolo do Graeme parecia respeitoso — Quer
que a leve nos braços, senhorita?
— Não, não quer — respondeu MacLean.
— Ah. — O jovem retrocedeu um pouco, e MacLean teve a certeza de que
sorria satisfeito. — É por aí por onde sopra o vento?
— Não! — respondeu Enid.

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Graeme soltou uma gargalhada.


MacLean lhe teria dado seu castigo, mas algo mais imperativo rondava
sua cabeça.
— Saiu alguém mais esta noite?
— Claro. Temos Jimmy MacGillivray no este, Rab Hardie no norte, e esse
inglês, Harry. É um tipo misterioso, eu não gostaria de cruzar com ele. Não
sabíamos como chegaria, mas os ingleses estavam seguros de que ia vir e lhes
preocupava que o atacassem pelo caminho. — Graeme se pôs a rir, mostrando
o desdém que lhe mereciam tais temores.
— Esta noite, quando atravessávamos o prado, acreditei ouvir o som que
alguém faz ao martelar um fuzil — disse a Graeme.
Enid tropeçou. MacLean a sustentou e seguiram adiante.
— Pelos pregos de Cristo, MacLean! Não saiu ninguém com armas —
afirmou rotundamente Graeme. — Não em uma noite com o céu nublado. Não
quando é quase meia-noite!
— Quanto falta? — perguntou Enid.
— Já se veem as luzes. Ali. — MacLean se deteve na beira do bosque e
mostrou o outeiro sobre o qual as torres e ameadas reluziam contra o céu
noturno coberto de nuvens, é o castelo MacLean.
— É formoso — disse Enid.
MacLean sorriu. A imagem do castelo podia ser romântica, mas ele sabia
que a realidade era outra.
— Espera que seja de dia antes de julgar. O castelo atravessou uns tempos
difíceis.
— Você conseguiu salvar o melhor dele — comentou Graeme, quanto mais
elogioso parecia mais se aproximava do fogo e da comida.
MacLean imitou de novo o canto do mocho e se deteve sob uma árvore
até que se abriram as grandes portas duplas.
Sua mãe, lady Bess Hamilton, estava na soleira, com as luzes do grande
vestíbulo brilhantes as suas costas. Ele a reconheceu por sua figura, que era
voluptuosa mais à frente do decoro, por seu turbante e pelo charuto aceso que
sustentava na mão estendida.
— Kiernan! — exclamou — Veem aqui agora mesmo!
Ah, ele tinha certos problemas com sua mãe, mas naqueles momentos a
áspera voz da dama lhe parecia tão doce como o gorjeio da cotovia.
— Vamos correr — disse MacLean a Enid. — Acredita que pode fazê-lo?
— Tenho que fazê-lo, não?
A jovem se pôs a correr como uma corça.
MacLean e Graeme proferiram uma maldição a uníssono e correram atrás
dela.
A alcançaram, é obvio, e então ficaram atrás, se movendo em ziguezague,

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a fim de confundir a qualquer pistoleiro que os vigiasse.


Três homens providos de tochas cruzaram a porta e avançaram para eles,
Kinman entre eles. No instante em que MacLean estava chegando à conclusão
de que só um idiota se atreveria a disparar quando havia tal número de
homens, soou um disparo de fuzil. Graeme caiu ao chão.
Lançando um grito de fúria, lady Bess avançou a passo vivo pelo atalho
para eles. Os homens com as tochas começaram a correr. Mais homens
cruzaram a porta.
Enid tentou se deter e se ajoelhar ao lado de Graeme.
MacLean a puxou para o castelo. Enid tentava escapar.
— Necessita minha ajuda, MacLean!
— O traremos. Aí fora há um criminoso com um fuzil.
— Mas já disparou!
Ele não se incomodou em lhe explicar que podia ter mais de um homem
ou mais de um fuzil. Era uma garota esperta. Sabia.
— Já a tenho. — Lady Bess, quase tão alta como seu filho, agarrou Enid
com firmeza. — Vai e ajuda a Graeme.
— Não! — Kinman agarrou MacLean com idêntica firmeza. — Não podemos
correr um risco com ele.
— Vai a merda! — exclamou MacLean, e retornou para o grupo de homens
que rodeavam Graeme.
Enid escapou de sua mãe.
— Não vou entrar se você não o faz.
MacLean a olhou furioso.
— Fará o que te digo!
— Não te curei para que lhe acertem um tiro a cem metros de sua própria
casa!
Lady Bless soltou um assobio.
— De modo que o vento sopra por aí.
— Não! — replicou Enid.
— Se levantou! —gritaram os homens que rodeavam Graeme.
MacLean viu que o jovem avançava cambaleando, e dois homens o
sustentavam enquanto o ferido sorria e limpava o sangue da fronte.
MacLean cedeu por fim.
— Vamos já!
Pegou Enid pelo braço e correu com ela colina acima sem que lhe
importasse o cansaço. Depois de tudo, a moça lhe pôs em ridículo ante seu
amigo e sua mãe, e só na primeira hora de sua volta.
Ouvia sua mãe rir e tossir enquanto caminhava para o castelo. A mulher
temia algo mais que um simples disparo. Kinman galopava a costas de
MacLean, com um movimento de ziguezague, tal como MacLean e Graeme

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faziam para proteger Enid.


A idosa governanta, Donaldina, estava na entrada e os saudava agitando a
mão.
E por razões que compreendia muito bem, MacLean pegou Enid nos braços
e cruzou com ela a soleira.

Capítulo 21

—Me deixe no chão, MacLean. — Humilhada, Enid se debateu nos braços


de MacLean enquanto cruzavam a soleira e entravam na sala de altas paredes
cheia de gente que gritava. — Eu disse que me deixe no chão, MacLean!
Agora é um pouco tarde para o cavalheirismo.
Então cessou o ruído. Ela deixou de lutar e olhou às pessoas ali reunidas.
Tochas e velas iluminavam a grande sala. Havia longas mesas alinhadas
nas paredes e cômodos assentos agrupados ao redor de duas enormes lareiras.
Os homens estavam armados com claymores, as espadas tradicionais
escocesas, e escudos. As mulheres sustentavam fuzis e chifres de pólvora. As
armas lhes caíram das mãos e permaneceram silenciosos e boquiabertos ao
ver seu senhor... e Enid.
O único ruído se produziu quando um dos cães, um animal de grande
tamanho e longas patas, viu MacLean e, soltando um ganido, correu para ele
meneando a cauda. Uma mulher miúda e desdentada com aspecto de pássaro
rompeu o silêncio. Falou com o acento escocês mais forte que Enid ouvira até
então.
— OH, olhem o que trouxe o senhor. Que bonita é, Meu deus, podemos
ficar com ela?
Todos os presentes se deram cotoveladas e trocaram sorrisos e gestos de
assentimento.
Enid queria ocultar a cabeça no ombro de MacLean, fazer algo para se
livrar de tantos olhos que a olhavam com fixidez. Céu santo, reconhecia a
algumas daquelas pessoas... como uma dúzia de homens de Throckmorton, o
qual aumentava sua humilhação.
Em vez de fazer isso elevou o queixo.
— Pelo amor de Deus, MacLean, me deixe no chão.
A obedeceu, mas o fez lentamente. Com o braço ao redor da cintura de
Enid, seu olhar percorreu aos presentes, um olhar possessivo, com um brilho
ameaçador.
Era como se tivesse posto uma marca na testa dela: "Propriedade do
senhor dos MacLean". Ela acreditara em sobreviver à estadia naquele lugar
com um mínimo de dignidade intacta, mas MacLean o impossibilitou.
MacLean se voltou para a anciã.

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— Está faminta. Quer se banhar e ir à cama. — Então se dirigiu a Enid. —


Vá com a Donaldina. Ela a atenderá.
A anciã fez uma reverência.
— Sim, receberá os melhores cuidados.
— Tenho que atender a Graeme —protestou Enid, teimosa.
— Faz o que te digo — replicou MacLean. — Está desfalecendo de fome.
Isso era certo e tinha uma sensação de atordoamento e a cabeça presa de
um estranho enjoo. Havia algo ali que parecia muito diferente.
— Por aqui, senhorita — disse amavelmente Donaldina.
Enid não se moveu. Algo na verdade muito diferente.
O senhor Kinman agarrou o ombro de MacLean.
— Estávamos preocupados. Meu Deus, o que ocorreu?
— Logo falaremos. No momento, descobre quem foi o autor do disparo. —
MacLean se agachou para acariciar ao cão imóvel.
O senhor Kinman transbordava de impaciência, mas MacLean o ignorou
sem o menor escrúpulo. Ah, essa era a diferença que Enid notara. Nunca vira
MacLean atuar como senhor do clã. Parecia mais alto, mais severo, mais forte,
com uma aura de autoridade que teria assustado a jovem se não resultasse tão
atraente a seu caráter feminino. Santo céu, se deitou com aquele homem! E
quando seus olhares se encontravam, ela não tinha dúvida alguma de que
seguia desejando-a. Sem mover um só músculo, ele a chamou a seu lado, a
atraiu com um escuro feitiço contra o que nada podiam os desacordos e as
dificuldades. Era o senhor do clã. Ela era uma bastarda inglesa. Mas as
diferenças de suas posições não importavam quando se contrapunham ao
desejo que ardia entre eles.
Enid dera um primeiro passo indeciso para ele quando os gritos a fizeram
sair de seu arroubo. Os homens que sustentavam Graeme cruzaram
bruscamente a porta, seguidos por Jackson e um dos guardiães ingleses.
Ela desviou os olhos de MacLean.
— Graeme necessita de minha ajuda — disse.
— Não corre perigo. — A voz áspera de lady Bess soou na entrada. — A
bala o roçou na cabeça, que não utiliza muito.
Este comentário provocou gargalhadas.
— Você é uma ingrata, minha senhora. — Ajudado por dois homens,
Graeme se aproximou cambaleando a uma cadeira e tomou assento.
Vá... Por Deus. Os escoceses usavam saias. Como Stephen as chamou?
Kilts. Na escuridão e confusão, Enid não notara. Agora desviou os olhos das
pernas ossudas e peludas dos homens.
— Salvei a pele de seu filho — disse Graeme.
— Se colocando no meio! — replicou MacLean.
— Mas valia a pena salvar essa pele. — Lady Bess fez um sinal a um

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criado, que ofereceu a Graeme uma jarra de cerveja. — Lhe agradeço isso.
Enid piscou enquanto olhava bem à mãe de MacLean. Era alta como ele,
mas aí terminava toda a semelhança. O gosto pela excentricidade poderia
explicar o charuto aceso que tinha entre os dedos, mas nada podia explicar sua
indumentária, os cosméticos, o aspecto indecoroso de uma mulher que devia
ter... pelo menos quarenta e cinco anos.
Era evidente que desprezava tanto o espartilho como as anáguas, e usava
um vestido mais apropriado à época de sua juventude que na moda atual e
mais escandaloso que de bom gosto. O tecido diáfano estava recolhido sob os
seios e lhe chegava reto aos pés, sem o obstáculo de nada tão decoroso como
um objeto interior. Em efeito, quando lady Bess passou ante a luz, Enid
distinguiu a silhueta de seus objetos, e o tecido se prendia a lugares onde não
deveria fazê-lo absolutamente. Pelo menos para manter a correção.
A mulher se aproximou de seu filho.
— Depois de uma ausência tão longa e toda esta animação, dará um
abraço a sua pobre e preocupada mãe?
— É obvio, senhora.
MacLean a abraçou, mas com uma ausência de afeto que a Enid pareceu
abominável. Então, desviou sua atenção do desagradável bruto e foi examinar
a Graeme. Um jovem criado sustentou um candelabro para lhe iluminar. Ela o
agradeceu com um sorriso.
Quando Graeme abriu a boca para falar, Enid notou uma acre baforada de
uísque.
— Estou bem, senhora. Não é mais que um arranhão.
— O arranhão está sangrando, e tem a roupa empapada em sangue. —
Enid jogou o cabelo dele para trás e examinou a brecha aberta no couro
cabeludo. — Curará melhor se lhe costurar isso.
Graeme pareceu alarmado até que MacLean se aproximou de seu outro
lado.
— A deixe fazer, homem — disse. — Conseguirá que tenha bom aspecto.
— Ela faz milagres, então? — inquiriu em voz rouca um dos escoceses
vestidos com saias.
Outro acesso de risadas saudou sua ocorrência.
— Não descansará até ter se convencido de que fez por você todo o
possível. — MacLean permanecia junto a Enid, reforçando a autoridade da
jovem. — Então fique quieto, Graeme, e aguenta o mal-estar como um homem.
Um homem vestido com o rude traje de um lenhador disse então:
— Se o aguentar como um homem, saberemos que, em efeito, esta
senhora faz milagres!
Desta vez as risadas se intensificaram, mas agora Enid compreendeu o
que ocorrera. Mesas e bancos estavam derrubados na sala, e alguns homens

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ainda tinham suas espadas na mão.


Lhes advertiram de um ataque contra seu senhor, por isso pegaram as
armas e se prepararam para lutar. Mas antes que pudessem entrar em ação,
lhes pediram que se retirassem. Agora todos eles, criados, cavalheiros e
damas, estavam inquietos e muito excitados. Se ela necessitava alguma prova
de que já não se encontrava na Inglaterra, aquele grupo de pessoas
heterogêneas e compenetradas a convenceu.
— Aqui tem uma agulha e fio cirúrgico, senhora. — Donaldina se
aproximara dela e lhe oferecia uma bandeja de prata que continha
instrumentos de aspecto profissional. — Lady Bess está acostumada a se
encarregar de costurar as feridas, mas não pensa muito na dor, então o
pequeno Graeme estará agradecido a você.
— Sim, senhora, assim é - disse Graeme, obediente.
Sentada em uma cadeira maciça à cabeceira de uma longa mesa, lady
Bess aspirava a fumaça de seu charuto.
— Recordarei isso a próxima vez que deva te atender, jovem Graeme.
Ele se encolheu na cadeira e pareceu tão apreensivo que Enid lhe
perguntou:
— Se machuca com frequência?
— Se houver uma flecha perdida ou um pedaço de vidro onde não deveria
estar, é seguro que nosso Graeme se encontrará com eles, mas esta é sua
primeira bala, não é certo, moço?
— A primeira e a última — respondeu Graeme, fazendo uma careta.
— Veremos se é verdade.
MacLean pôs a mão na nuca de Enid e lhe massageou os músculos rígidos.
Um pequeno gesto, mas todos o contemplaram com os olhos brilhantes.
Viram também que Enid afastava sua mão com brutalidade e que o olhava
furiosa. Não queria que MacLean acreditasse que podia se congraçar com ela
de uma maneira tão corriqueira. MacLean lhe sorriu com um afeto tão patente
que ela ficou nas pontas dos pés e lhe sussurrou com veemência.
— Quer deixar de fazer isso?
— O que?
— De agir como se tivéssemos algum tipo de vínculo. — Olhou a seu redor.
Todos os presentes na sala os olhavam com avidez.
A MacLean não pareceu importar, e não baixou a voz.
— Mas se temos, moça. É minha amante.
Ela ouviu os sussurros que se iniciavam a seu redor, e gritou com ele:
— Me disse que sou uma bastarda mercenária que se deitou com você por
seu dinheiro. Acreditava que ia esquecer isso?
MacLean pegou as mãos dela e as levou aos lábios. Beijou primeiro os
dorsos, logo as palmas, e então, quando ela fechou os punhos, beijou de novo

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os dorsos. Olhando-a aos olhos, murmurou:


— Isso esteve mau. Quererá me perdoar?
Ela se manteve firme e lutou para liberar suas mãos.
— Não.
Lhe perdoar? Se propunha entesourar suas ofensas. Era a única defesa
que tinha contra uns olhos verdes transbordantes de sentimentos e um sorriso
encantador.
— Por favor, me equivoquei ao te dizer essas coisas.
— Por quê? São certas.
Ele arqueou as sobrancelhas, fingindo assombro.
— Se deitou comigo por meu dinheiro?
— Não, isso não, mas sou uma bastarda mercenária e inglesa, além disso.
— Ah, todos temos nossos defeitos. — Começou a lhe beijar os dedos um a
um. — Perdoa?
Ela tinha dez dedos. Ele tinha toda a noite.
— De acordo. Perdoo!
MacLean deixou de beijá-la e permitiu que ela retirasse as mãos das dele.
— Obrigado.
Enid afastou o cabelo da testa febril e o jogou para trás. Até então nunca
se ruborizou tanto.
MacLean apontou para Graeme e, em um tom respeitoso, perguntou a
jovem:
— Vai costurá-lo já?
— Poderia me dar um pouco de seu uísque? — ela perguntou a Graeme.
O moço o ofereceu, sorridente.
— Sim, assim que a vi falar com Sua Senhoria, soube que era uma mulher
como é devido.
— Você pode tomar o nosso— disse Donaldina. — Embora esteja
acostumado a ser muito forte para os visitantes ingleses.
— Só usarei um pouco do dele.
Dito isto, Enid verteu uma boa quantidade de uísque sobre a ferida,
fazendo que Graeme se levantasse uivando. Os homens voltaram a rir, e
MacLean teve que pôr a mão no ombro de Graeme e empurrá-lo para que
voltasse a se sentar.
— Isto é o pior de tudo — disse Enid, e começou a lhe costurar a ferida
sem fazer caso dos dramalhões do moço.
MacLean se voltou para Donaldina.
— Comerá algo assim que tenha terminado.
— Sim, senhor. — Donaldina fez uma reverência. — Você comerá também
um pouco de pão?
— Quando ela esteja pronta.

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Seguido pelo cão, que lhe tocava a mão com o focinho na menor
oportunidade, MacLean foi ao encontro dos homens reunidos. Entre um e outro
ponto, Enid o olhava de esguelha. Ele sorria e estreitava mãos. Mais importante
ainda era que as pessoas faziam fila para lhe dar palmadas nas costas, lhe
sorrir, trocar uma palavra com ele.
— Ah, que bom lhe ter de volta — disse Donaldina, ainda ao lado de Enid,
com outro pedaço de linha cirúrgica preparada. — Sentimos falta do moço. É
um homem bom, ajuda quando há um problema, e em um imóvel do tamanho
deste sempre há um problema em alguma parte.
Enid esteve certa quando disse a MacLean que não deveria ter acreditado
no que Stephen contou dela; agora compreendia que ela não deveria ter
acreditado nas afirmações de Stephen sobre seu primo.
A gente de MacLean o adorava.
E isso não era engraçado. Era muito melhor acreditar que a carta cruel
que ela recebeu do primo de Stephen foi uma amostra da malevolência geral
de MacLean, e não que estava dirigida concretamente a ela.
Não obstante, aquela noite, no bosque, lhe chamou bastarda. Talvez
inclusive o tivesse dito a sério, posto que não era um homem cruel. Mas era
certo. Ela era uma bastarda inglesa empobrecida, e os bastardos não se
casavam com os nobres. Devia ter isso em mente.
— Pelo aspecto de sua cara, o senhor teve muitos contratempos desde
que partiu — seguiu dizendo Donaldina. — Você também lhe costurou as
feridas?
— Não, as costuraram antes que me chamassem a seu lado.
Donaldina ficou nas pontas dos pés e estirou o pescoço para ver o que
Enid fazia.
— Bom, isso explica as cicatrizes. Você é... você é maravilhosa dirigindo
essa agulha.
— Obrigado. — Enid terminou de costurar a ferida e deu umas palmadas
no ombro de Graeme. — Bom, já está.
Graeme se levantou e fez uma inclinação de cabeça.
— Obrigado por sua amabilidade, senhorita. Se posso fazer algo por você,
só tem que me chamar.
— Obrigado, Graeme — replicou ela, lhe devolvendo a reverência. — O
terei em conta.
Certamente, ela tinha motivos para acreditar que necessitaria toda a
ajuda que pudesse encontrar na remota ilha de MacLean.
Ao ver que Enid estava livre, lady Bess lhe disse:
— Venha e sente comigo, senhorita. Vamos falar você e eu.
Enid desejava comer, mas era uma convidada, alguém que despertara a
curiosidade de todos. Então, se dirigiu à cabeceira da mesa, seguida por uma

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donzela que levava uma bandeja com comida, o moço provido das velas e
Donaldina.
Lady Bess contemplou o desfile.
— Você tem todo um séquito.
Enid se negou a permitir que a mãe de MacLean a pusesse nervosa. Ao fim
e ao cabo, piores coisas lhe aconteceram que ser interrogada pela senhora da
casa familiar e os acontecimentos daquela mesma noite.
— Deixa a bandeja na mesa, por favor — disse à donzela, e se dirigiu ao
moço: — O fez muito bem, obrigado.
Donaldina se sentou no banco à direita de lady Bess, algo que para Enid
pareceu raro, se tratando de uma governanta. Mas posto que lady Bess não
encontrava nisso nada fora do comum, a jovem se acomodou no banco à
esquerda da dama.
A princípio, Enid se concentrou na comida, e descobriu que, assim que
terminava uma coisa, apareciam três mais na bandeja, cada uma mais
apetitosa que a anterior. Saciada por fim, teve que jogar o corpo atrás e
rechaçar com um gesto da mão os novos aprimoramentos que lhe ofereciam.
Lady Bess a esteve observando com atenção.
— Você tem muito bom apetite, isso é evidente. Me alegro de ver que não
é uma dessas raparigas modernas que sacrificarão uma refeição para manter a
cintura fina.
— Depois da semana que passei, minha cintura é tão fina como não o será
jamais — comentou Enid.
— Mmm... — Lady Bess depositou a cinza de seu charuto em um cinzeiro e
sorriu. — Sim, a meu filho não importa a finura de uma cintura.
Irritada pelas injustificadas hipóteses que todo mundo parecia estar
fazendo, Enid replicou:
— Para mim é indiferente o que importe a MacLean.
— Seriamente? — Lady Bess fez um gesto para ele.
MacLean parecia relaxado como nunca o vira até então. Estava entre um
grupo de homens, fazendo oscilar um morango enquanto falava. Os homens
soltavam gargalhadas, inclusive Jackson, a quem ela considerou um camareiro
muito insípido. Ao que parecia, Escócia o animou... da mesma maneira que
assustou ao senhor Kinman, que seguia a MacLean como se estivessem
colados.
Quando se abriu a porta exterior entraram dois homens e se aproximaram
de MacLean, sacudindo as cabeças.
— Vá, que lástima, não encontraram nada — disse lady Bess, e exalou um
suspiro. — De todos os modos, é magnífico que Kiernan esteja de volta. Eu levo
as rédeas bem até que os homens brigam, e então desejo golpear a cabeça de
um com a de outro até que ressoem. Kiernan é capaz de escutar suas

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estúpidas discussões e julgar sabiamente, e os homens fazem sem falar o que


ele dita.
— Também fazem o que você lhes diz, minha senhora. — Donaldina tomou
um gole da taça que lhe serviram e lambeu as gengivas.
— Me temem. A MacLean respeitam. — Lady Bess se ajeitou em seu
assento. — Olhe. O senhor MacQuarrie deve ter se levantado da cama para vir
aqui depressa e apresentar seus respeitos a Kiernan.
— O velho bobo — disse Donaldina em um tom afetuoso. — Suponho que
espera passar a noite em minha cama.
— E eu espero que o permita. — Lady Bess se voltou para Enid e apontou
com o charuto ao homem que estreitava a mão de MacLean. — Vê esse idoso
que parece ter algas na cabeça em vez de cabelo?
É o senhor dos MacQuarrie. Não sobreviveram às dificuldades tão bem
como os MacLean, então Kiernan os ajudou com um ou dois empréstimos.
Donaldina bufou em sua tigela.
— Me dá vontade de dizer a MacLean de onde saiu o dinheiro.
— Não te ocorra fazer tal coisa, Donaldina — disse lady Bess com firmeza.
— Olhe, Catriona desceu.
Donaldina se voltou a olhar enquanto a multidão ao redor de MacLean
cedia o caminho a uma dama mais velha que lady Bess e vestida na moda
mais elegante e moderna.
— Você acredita que terá um de seus arranques? — inquiriu Donaldina
com interesse.
— Vão dar más notícias, de modo que sim. — Lady Bess se dirigiu a Enid:
— Essa dama de cabelo cinza é lady Catriona MacLean, tia de Kiernan e
cunhada de meu marido.
Enid a olhou atentamente. De modo que aquela era a mãe de Stephen:
cara arredondada, de feições agradáveis, covinhas nas faces, nariz pequeno.
Entretanto o franzido de seu cenho era perpétuo.
— Sofreu muito na vida. Seu marido morreu antes que seu filho nascesse,
e este desapareceu faz mais de um ano. Todos soubemos que Stephen teve
problemas quando não voltou para casa nem sequer para pedir dinheiro
emprestado.
— Amém — disse Donaldina, e voltou a cobrir a cara com a tigela.
Lady Catriona se aproximou timidamente de MacLean, como se temesse
que ele pudesse rechaçá-la. Sua confusão surpreendeu Enid; todo mundo
respeitava MacLean, mas ninguém parecia absolutamente intimidado por ele.
Lady Bess observava a sua cunhada, sem que em sua expressão houvesse
o menor rastro de afeto.
— Kiernan, que tem um sentido excessivo do dever familiar, foi em busca
de Stephen.

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— Eu queria saber de onde tirou esse sentido excessivo do dever familiar,


minha senhora — interveio Donaldina.
— Eu disse que não íamos falar mais disso, Donaldina.
— Sim, minha senhora. — A governanta se voltou para Enid. — Mas
sabemos, não é certo?
Não, Enid não sabia, mas sentia curiosidade. Sentia curiosidade por lady
Bess e olhava com atenção à mãe de Stephen para ver como reagia à notícia
da morte de seu filho.
Stephen se referia a sua mãe com aberto desprezo. O que pensava
Catriona de seu filho?
— Kiernan esteve ausente durante mais de dez meses — disse lady Bess.
— Pelas cicatrizes de sua cara, suponho que encontrou Stephen, verdade?
Enid fez um gesto de assentimento.
— Deduzo que muito tarde para lhe salvar, e Kiernan resultou ferido
quando tratava de salvar do perigo a esse moço irrefletido, não é certo?
Enid assentiu de novo, o olhar fixo no drama que tinha lugar na grande
sala.
Quando MacLean viu sua tia, fez um gesto para que ela se aproximasse. O
abraçou com um tímido afeto, se pendurou em seu braço como se fosse hera, e
lhe falou.
Lhe rodeando os ombros com um braço, ele a acompanhou a um assento:
se ajoelhou a seu lado, sacudiu a cabeça e só disse umas poucas palavras
antes que ela se pusesse a chorar, o separasse de um empurrão, se levantasse
de um salto e fugisse da sala.
— Bom, já está. — Lady Bess aspirou a nociva fumaça de seu charuto e o
exalou até que lhe envolveu a cabeça. — Não deveria dizer tal coisa, mas a
morte de Stephen não é uma grande perda. Catriona consentia muito ao
menino, acreditava que tudo que fazia era perfeito. E aí tem! Nunca o permitiu
se converter em um homem. Não é de estranhar que se convertesse em um
esbanjador e um covarde.
Que interessante era aquilo. Pelos comentários de Stephen a respeito de
sua mãe, Enid deduziu o mesmo.
— Se meu filho tivesse morrido por culpa de Stephen — acrescentou lady
Bess, — o teria perseguido até o inferno para lhe dar um chute no traseiro.
Enid sufocou uma risada inapropriada.
— Alguém precisava lhe dar uma patada no... no traseiro.
Lady Bess endireitou os ombros.
Donaldina se ergueu em seu assento.
As duas mulheres trocaram olhares.
Em um tom cordial que não enganava Enid, lady Bess disse:
— Sabe, querida? Sou uma velha que não ouve bem, e não recordo ter

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ouvido seu nome.


MacLean não havia dito seu nome, como lady Bess sabia muito bem. Mas
Enid não podia retardar aquele momento terrível; devia lhe fazer frente com
coragem. E assim, em uma voz clara, que chegou até além da metade da
mesa, Enid respondeu:
— Sou Enid MacLean, a viúva de Stephen.

Todo mundo fora dormir exceto o pequeno contingente de ingleses.


Kinman, Jackson e cinco dos melhores homens de Throckmorton estavam
sentados ante o fogo com as pernas estiradas sobre a mesinha central,
fumando charutos e aguardando sua vez para falar com MacLean.
Antes de se reunir com eles e responder a suas impaciente perguntas,
Kinman conversou com sua mãe, que estava sentada à cabeceira da mesa. Um
charuto fumegava no cinzeiro, a seu lado, enquanto ela baralhava cartas e os
depositava em montes ordenados, se preparando para jogar solitário.
As cartas a apaixonavam sempre. Quando Kiernan era menino, lhe ensinou
todo tipo de jogos que aguçaram sua habilidade aritmética e, mais adiante,
aperfeiçoaram sua capacidade estratégica e sua inteligência. Sua mãe o
ensinou a interpretar o que se propunha seu adversário, a maneira de ganhar
com elegância e a de perder sem que lhe notasse a decepção. Utilizava
diariamente tais habilidades.
Entretanto, já não jogava às cartas com ela.
A mulher começou a se levantar quando ele se aproximava; MacLean lhe
pôs uma mão no ombro para que não o fizesse e se sentou em um dos bancos
que estavam a seu lado.
— Ganhou seu lugar à cabeceira da mesa — disse. — Me inteirei sobre o
de Torquil e Eck e sua disputa pelo cavalo de corridas de orelhas longas.
Lady Bess moveu o braço com um gesto indolente.
— Isso não foi nada. Não necessitei mais que a sabedoria salomônica para
que entrassem em razão.
MacLean os conhecia. Sua mãe não exagerava.
— Os dois são teimosos — reconheceu.
— São estúpidos... mas não o são todos os homens? — zombava um pouco
dele, como sempre fazia.
Sua mãe lhe dizia coisas que jamais diria a ninguém mais, e ele desejava
lhe responder com outras coisas que seria melhor calar, pois a muito
condenada não estava livre de pecado. Mas era sua mãe e merecia respeito; se
ocupou do imóvel com uma dedicação extraordinária.
— Já sabe o que vim perguntar — disse ele.
— Por isso fiquei aqui enquanto seus cavalheiros ingleses estão tascando o
freio. — Sorriu para Kinman, que tinha se voltado na cadeira para olhar a eles.

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Kinman ruborizou e se voltou em seu assento.


— Onde está minha irmã? — perguntou MacLean.
A mãe esfregou o charuto no cinzeiro até apagá-lo.
— Nesta ocasião não é uma boa notícia.
— É alguma vez? — A imagem de Caitlin, de longas pernas como uma
potranca, e tão selvagem como ela, cruzou pela mente de MacLean.
— Isto é o pior. — Lady Bess baixou os olhos e contemplou as cartas. —
Partiu para te vingar.
MacLean confiou em não ter ouvido bem.
— Para me vingar? O que quer dizer com isso?
— Temíamos que tivesse morrido. Caitlin estava transpassada de dor, e
tão enfurecida que partiu a toda pressa, decidida a seguir seus rastros e
castigar seu assassino.
— Não — disse MacLean; não era que não acreditasse em sua mãe, mas
sim pensar em sua irmã mais nova andando por aí em busca de problemas o
adoecia. — Como acredita que vai me vingar? Não, por favor, não me diga isso.
Me diga tão só que a procurou.
— Nos escreveu de Londres. Não dizia nada de sua tentativa de te vingar,
e quero pensar que foi a essa grande cidade e abandonou sua amalucada
ideia. — Lady Bess moveu uma carta sem olhá-la.
— Também eu quero pensar isso — replicou ele, mas não pensava nisso, e
o certo era que sua mãe tampouco. Caitlin tinha uma teimosia a toda prova e a
persistência de um bulldog. — O que está fazendo em Londres?
Uma nova preocupação se apoderou dele.
— O que faz para se manter?
— Ainda não está em Londres. Encontrou um posto de trabalho por meio
de... — Lady Bess tirou do decote uma folha de papel muito dobrada.. — da
Distinta Academia de Instrutoras.
Aquilo era um raio de esperança.
— Essa é a agência que encontrou para Enid um posto na mansão de lady
Halifax. Uma agência respeitável. Não a enviariam a um lugar onde corresse
perigo.
Lady Bess se inclinou para frente e agarrou o braço dele.
— Seriamente? Sabe com segurança?
Apesar da aparência indolente de sua mãe, ele se deu conta que estava
muito assustada pela situação de sua filha.
— Seriamente. Tem escrito a ela?
— Enviei uma carta e recebi uma resposta cortês de uma tal lady Bucknell.
Dizia que Caitlin parecia bastante judiciosa, tinha boas referências e afirmava
ter vinte e cinco anos, como assim é, por isso lady Bucknell lhe buscou um
emprego na região dos lagos. Dizia que escreveria a Caitlin e lhe pediria que

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entrasse em contato comigo, mas que ela não podia pedir à garota que
voltasse para casa.
— A garota é uma mulher — disse ele.
Se inclinando por cima da mesa colocou uma rainha vermelha sobre um
rei negro.
Lady Bess lhe deu uma ligeira palmada na mão.
— Não parece que esteja em perigo. Lady Bucknell a informou do
paradeiro de Caitlin?
— Está na Nação Ilhoa de Rasnull. Enviei um mensageiro em sua busca
quando me inteirei que estava vivo. Talvez a notícia faça que volte para casa.
— Sim. — Ele voltou a acariciar o queixo e disse em voz baixa. — E talvez
fique onde está e encontre aí a felicidade.
A umidade fez brilhar os olhos de lady Bess.
— Kiernan!
Lhe disse pela primeira vez o que ambos sabiam.
— Minha senhora mãe, aqui não pode se sentir satisfeita. Por muito que
tentemos protegê-la, todo mundo sussurra sobre o escândalo e ela se inteira.
— Sei. — Lady Bess riu sem humor enquanto refletia em seu próprio
escândalo. — Sei.
"Mas você merece os sussurros e a calúnia."
Não o disse, porque também Caitlin merecia os sussurros e a calúnia. Foi a
filha mimada do clã MacLean, e sacrificou seu bom nome gratuitamente por
uma víbora, um canalha, um homem a quem ele desejou como a um irmão.
— Então, no momento, suporemos que Caitlin está bem. — Lady Bess
pegou as cartas, as baralhou de novo e voltou a distribuí-las.
— Adquiriu uma grande prudência. — Parecia séria, e então lhe sorriu,
zombando dele a sua velha e familiar maneira. — Um homem tão prudente
como você deve reconhecer que chegou o momento de se casar.
MacLean jogou lentamente o corpo para trás.
— Você acredita?
— Me encarregar de tudo enquanto estava ausente me demonstrou que
sou muito velha para a carga que representam semelhantes responsabilidades.
— Não é tão velha — replicou ele.
E não o era. Trouxe-lhe para o mundo quando ela mal tinha dezesseis
anos, e não recordava época alguma em que sua mãe não lhe tivesse parecido
uma mulher formosa. E também uma mulher extravagante e corpulenta com a
que resultava difícil viver e que frequentemente o sobressaltava.
— Bom, você quase o é. — A mulher sacudiu a cabeça enquanto olhava as
cartas e as recolheu uma vez mais. — Não há muitas mulheres que queiram se
casar com um velhote como você, sobretudo um que não foi domado por uma
primeira esposa.

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— Pensou em alguém?
— Deixemos de jogos, filho. — Lady Bess golpeou a mesa com o baralho.
— Esta noite deixou bastante claro seu interesse por Enid.
— Não a incomoda que seja a esposa de meu primo?
— A viúva de Stephen, e não há dúvida que ela não é nenhuma das coisas
terríveis que ele disse que era. Mentiu para satisfazer Catriona. — O lábio de
lady Bess se curvou com a careta de desprezo que sempre fazia ao se referir à
tia de Kiernan. — Catriona jamais admitiria a outra mulher na vida de seu filho.
MacLean recordou como Catriona o afastou bruscamente quando ele
tratou de consolá-la pela perda de seu filho. Aquela mulher adorou Stephen
com um ardor fanático. O certo era que inclusive com sua morte os desonrou.
— Sei — replicou, procurando a mão de sua mãe. —- Então... você gosta
de Enid?
Lady Bess lhe apertou os dedos.
— Se case com ela, me dê netos e a adorarei.
MacLean notou que a emoção começava a lhe embargar. Deveria lhe ser
indiferente o que sua mãe pensasse. Deveria possuir Enid e fazê-la sua
esposa... aspirou fundo. Ah, então esse era seu plano.
Devia fazer Enid sua para se casar com ela.
— Fará o que te digo? — perguntou lady Bess.
E ele queria que lady Bess gostasse de Enid. Era evidente que gostava,
pois de outro modo aquela mulher que não tinha cabelos na língua teria
expressado com claridade seus sentimentos.
— Verá, nestes momentos para Enid não resulto muito simpático.
— Não é que você já tenha se incomodado em fazê-lo, mas poderia
cortejar à garota. — Ao mesmo tempo que se levantava, o fez se sentir ridículo
com seu sorriso. — Se necessitar conselho, me peça.
— Não o farei.
—Nunca pedirá conselho a sua velha e perversa mãe. — Tocou-lhe a face.
— Tão tolo é.
MacLean a contemplou enquanto ela cruzava a grande sala para seu
dormitório, atraindo os olhares de todos os homens sãos ainda acordados.
Condenada mulher. Zombava dele, e em cada ocasião ele respondia com
uma provocação instintiva. Sempre o provocava, sempre ria dele depois e ele
sempre se sentia como o tolo que ela dizia que era. Não, um tolo não... um
menino, arreganhado por sua mãe porque não vira a verdade. Mas ele
conhecia a verdade a respeito dela... não era certo?
MacLean foi à lareira e se sentou em uma das cômodas poltronas. Estava
cansado, tanto que cambaleava, mas percorreu com o olhar o círculo de
cavalheiros ingleses e lhes disse:
— Recuperei a memória. — Ao ver a expressão de surpresa de todos eles,

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sorriu, mas, ao reparar em uma ausência patente, seu sorriso se transformou


em um franzimento de cenho. —Primeiro me digam aonde foi Harry.

Capítulo 22

Enid despertou em uma cama enorme e luxuosa, em um esplêndido


dormitório, vestida com a encantadora camisa de dormir de renda que Celeste
lhe dera. Cobriu os olhos contra o sol da manhã e emitiu um gemido.
Na noite anterior vivera a humilhação definitiva. MacLean cruzou com ela
nos braços a porta do castelo, como se fosse delicada ou fosse uma noiva.
Logo, depois de se sentar à mesa com os MacLean, teve que se apresentar
à família. Pela segunda vez aquela noite se fez o silêncio, um silêncio que
partiu dela e chegou ao último canto da sala. Mais ainda, as cabeças se
desviaram de Enid a MacLean e voltaram para ela.
Mas precisava dizer aos MacLean. Inclusive depois daquela informação
assombrosa todo mundo seguiu sendo cordial. Encheram seu copo de vinho.
Contaram anedotas da juventude de Kiernan MacLean.
Umas anedotas que a fizeram rir, algo muito conveniente. Enfim. Estava
exausta, e o vinho era forte. Quando o próprio MacLean disse de maneira que
não admitia réplica a seus familiares, convidados e servidores que Enid estava
muito fatigada, a própria lady Bess a conduziu ao andar superior, ao banho e o
dormitório. Embora Enid quase dormiu em pé, recordava vagamente lady Bess
lhe explicando que naquele quarto dormira Robert De Bruce 7.
Enid confiou em que seu cérebro empapado em vinho tivesse inventado
essa fantasia, mas ao se erguer na cama e olhar a seu redor temeu ter ouvido
corretamente. O frufrú dos lençóis era o que produzia o algodão mais fino. Os
altos postes da cama, o travesseiro belamente esculpido, os painéis que
cobriam as paredes até o alto do respaldo das cadeiras, tudo era esplêndido,
de madeira de cerejeira polida. A colcha, as cobertas da cama, o elevado
dossel e os cortinados eram de damasco verde escuro. Inclusive o alto teto,
com suas nuvens e roliços querubins pintados, dava uma sensação de realeza.
Enid se perguntou quando poderia abandonar aquele buraco do inferno e voltar
para sua vida real.
O trinco de prata de lei se moveu com brutalidade, e Enid levou as roupas
de cama ao queixo.
— Adiante — disse.
O trinco da porta matraqueou de novo. Enid supôs que era uma donzela
que lhe trazia a bandeja do café da manhã, desceu da cama, tão alta que tinha
uns degraus, e se dirigiu à porta, que se abriu antes que ela chegasse.
MacLean entrou dando tropeções no quarto, caiu ao chão e ficou
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Rei da Escócia no século XIV. Encabeçou uma rebelião contra os ingleses.

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esparramado de bruços.
Enid chiou e agarrou a nova bata de brocado cor de vinho tinto e vermelha
que estava sobre a cadeira. Pondo o objeto diante dela, como um escudo,
olhou com atenção para MacLean e chegou à conclusão que não se machucara,
pois aterrissara sobre um tapete muito macio. Vestia a mesma roupa que usou
durante toda a viagem pela Escócia, e era evidente que bebera muito.
Provavelmente lhe doía a cabeça e era sensível à luz.
Ela se aproximou das janelas e abriu os cortinados.
E também era sensível aos ruídos.
— Não é meu marido — gritou. — Sai daqui!
MacLean a surpreendeu ao se levantar e olhá-la, pensativo e com os olhos
entrecerrados.
— Esta manhã tem muito melhor aspecto. — Agitou uma mão ante sua
cara. — Ontem à noite estava cansada e tinha a boca contraída e rodeada de
rugas.
Ela se sentiu meio insultada, meio divertida, meio desesperada... eram
muitas metades, mas nunca se dera bem com a aritmética.
— Que velhaco com bico de ouro parece. Anda, saia.
"Saia porque está muito bem inclusive coberto de sujeira e com aroma de
uísque."
— Quererá saber o que está ocorrendo... — deu uns leves golpes nos
lábios. — Sabe que passei a noite falando com os ingleses?
Enid se voltou para ele e vestiu a bata.
Ele não pareceu reparar no soberbo aspecto que embainhou no luxuoso
objeto.
— Disse a eles tudo o que recordava.
Ela se aproximou da porta, agarrou o trinco e apontou para fora.
— Fora.
— Mas foi muito interessante. Precisamente quando chegava a melhor
parte, não sabia nada!
Ela deixou de apontar a saída e o olhou com fixidez.
— O que quer dizer com isso de que não sabia nada?
— Será melhor que feche a porta. — Impôs silêncio com um empenho
extravagante. — Isto é segredo. Não devo dizer a ninguém.
- Pois está me dizendo isso.
— Falaria até mais. Durmo com você.
Por que alguma vez considerou aquele homem atraente? Abriu mais a
porta.
— Não, nada disso. Fora.
— Não consigo recordar a explosão.
Ela titubeou. Jogou uma olhada ao corredor para se assegurar que

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ninguém podia lhes escutar e voltou a olhar ao homem desalinhado que lhe
dizia tais coisas com toda naturalidade.
— A explosão que matou Stephen?
Ele assentiu.
— O que você recorda?
— Lembro que fui para a Inglaterra em busca de Stephen, pois suspeitava
que estava com más companhias. Isso era muito próprio dele. Ali encontrei
Throckmorton. Este me enviou a Crimea, onde se encontrava Stephen, e
então... — MacLean sacudiu a cabeça, entristecido. — Nada, não recordo nada.
A ela não deveria importar. Não deveria se preocupar pela segurança de
MacLean nem por aquela intriga, mas ela se viu envolvida e sentia curiosidade.
— Acredita então que quem tentou te matar na Crimea trata de consegui-
lo agora?
— Certamente.
— Acredita que o seguiu até aqui? É uma enorme distancia.
— Por que não? Viajar de trem é fácil, e se ele pode me silenciar antes que
possa lhe descobrir, estará a salvo. — MacLean se deixou cair em uma delicada
cadeira com tal brutalidade que a madeira produziu um rangido.
— Harry quase me abateu.
— O que? — Ela desistiu em sua atitude e fechou de uma portada. —
Quando?
— Já conhece Harry. Alto, moreno. — MacLean imitou um franzimento de
cenho feroz. — Sempre sério.
— Sei o que quer dizer, e suspeitava há muito tempo que ele era o
assassino.
— Não, não, não. Ele não. Chegou ontem à noite muito depois que todos
os outros, e tinha um fuzil. - MacLean tossiu como se lhe ardesse a garganta.
Enid foi à mesinha de noite, verteu água em um copo. Os hábitos
arraigados não desaparecem com facilidade.
— Por que Harry tinha um fuzil?
— Kinman e eu estivemos falando do tiroteio. Recorda os disparos de
ontem à noite?
Ela desejava lhe sacudir para que fosse ao ponto. Mas em vez de fazer
isso, estendeu o copo de água.
— Lembro os disparos.
Ele a olhou com os olhos debruados de vermelho e lhe tocou a bata.
— Que bata tão bonita. Vestiu isso para mim?
— Não. Bebe água. — Pôs bruscamente o copo na mão dele.
— Não — replicou ele, com um olhar de luxúria ridícula por seu exagero. —
Para mim não usaria nada.
Ela girou sobre seus calcanhares e se dirigiu à janela.

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— É uma lástima que Harry não o alcançasse.


MacLean teve a audácia de parecer doído.
— Que crueldade a sua. Se não for amável comigo, partirei.
— Me permita que te abra a porta.
— Está de brincadeira. — Se deixou cair na cadeira, —Harry esteve
procurando pelas imediações até que encontrou o fuzil, e estava muito
zangado. Esta bata é bonita seriamente. Faz que seu cabelo pareça...
ondulante.
— Meu cabelo é ondulante — replicou ela, mas se conteve. — Por que
Harry estava zangado?
— Porque é um fuzil inglês. — MacLean levou o copo aos lábios e bebeu
até apurá-lo. — Roubado da coleção pessoal de Throckmorton e deixado aqui
só para dispará-lo contra você.
— Contra mim?
— E também contra mim.
— Mas Harry não sabe quem foi o autor dos disparos?
— Não.
Ainda não estavam a salvo.
— Sabemos mais que antes — deduziu ela. — Sabemos que é um dos
guardiões.
— Hoje se vão a casa. Todos exceto Harry, Kinman e Jackson.
— Jackson? — inquiriu ela, surpreendida. — Permite que fique o camareiro?
— Tem umas referências impecáveis de lorde e lady Featherstonebaugh, e
Kinman me assegura que Jackson é de confiança. — MacLean tratou de parecer
patético e simpático ao mesmo tempo: — E além disso, me barbeia muito bem.
Enid contemplou o rosto de MacLean, as cicatrizes, a sujeira, a barba
descuidada. Sim, ele não quereria prescindir de Jackson por quão bem dirigia a
navalha de barbear.
— Deveria lhe pedir que o barbeie agora.
MacLean agitou o copo.
—Poderia tomar um pouco mais? — Quando ela se aproximou, agarrou os
dedos dela. — Está usando uma camisa de dormir de renda.
— Estava adormecida quando você chegou. — Era falso, mas não lhe
importava.
— O vi antes que a cobrisse com esta feia. A camisa de dormir é bonita. —
A atraiu para si.
Se ela não resistisse, ele a teria sentada em seu colo. Impulsionada pela
irritação que lhe causava o fato de que ele a considerasse tão fácil, assim como
o pânico, porque queria sê-lo, ela disse:
— Você não gosta, recorda? Sou a esposa mercenária de Stephen.
— Mercenária. — Ele franziu o cenho, mas não lhe soltou a mão. — Mas

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não como minha mãe.


— Sua mãe?
Lady Bess? Mercenária?
— Ela e eu falamos disto ontem à noite. Acredita que deveria me casar
com você.
Enid não sabia o que pensar nem como reagir.
— Se equivoca. Jamais nos casaremos. Não é o bastante judicioso para me
propor isso. Eu não estou tão desesperada para aceitar. Por que acredita que
sua mãe é uma mercenária?
O rosto de MacLean se contraiu como se experimentasse uma pontada de
dor.
— Foi uma boa mãe para mim quando era um moço. Então traiu a
memória de meu pai. Por dinheiro.
Se MacLean não estivesse bebido, nunca teria falado com tanta franqueza.
Mas estava bêbado, e Enid tropeçara com o motivo de que a desprezasse
tanto. Titubeou, pois sabia que bisbilhotar na vida de lady Bess era algo
desprezível, mas a curiosidade venceu a suas reservas.
— O que sua mãe fez?
— Não fazia dois meses que tínhamos enterrado a meu pai quando foi a
Edimburgo e se relacionou com um mercador. — A repugnância vibrava em sua
voz. — Era velho, absolutamente vulgar e muito rico.
A ideia de lady Bess, tão enérgica e afável, perdida nos braços de um
arrivista velho e grosseiro estremeceu Enid.
— Ela explicou os motivos?
— Minha mãe nunca dava a ninguém explicações do que fazia, e
certamente não as dava a um filho de quinze anos que ficou encarregado de
sua chorosa irmã de onze.
— Meu Deus.
— Minha mãe e seu marido foram a Londres, e ele facilitou sua entrada na
alta sociedade. As pessoas riam dela. Inclusive aqui ouvíamos como a
ridicularizavam. — MacLean olhou as mãos entrelaçadas. Minha irmã e eu
ficamos aqui, sentido a falta dela; eu me encarreguei do imóvel e Elizabeth
cuidava da casa. Minha mãe revoava por Londres, vestida com as melhores
roupas e fazendo caso omisso de suas obrigações.
Enid podia ver lady Bess revoando, mas não acreditava que aquela mulher
tivesse feito caso omisso de suas obrigações.
— Então, quando mal transcorrera um ano, o velho imbecil morreu, e
minha mãe voltou para casa, esperando receber uma calorosa boas-vindas. —
MacLean sacudiu a cabeça, seu rancor ainda vivo. — Me deu sua recém
conseguida fortuna para que a administrasse e pensou que deveria agradecer
a ela. Mas não ia deixar me subornar tão facilmente.

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— Muito bem feito. Assim terá que ser! — disse Enid em tom sarcástico. —
Provavelmente essa é a razão de que nunca teve necessidade de dinheiro.
— Se equivoca, como de costume. — Ao que parecia se tornou o bastante
sóbrio para lhe devolver o sarcasmo.— Os distúrbios de quarenta e cinco
golpearam duramente a minha família.
Enid supôs que os MacLean estiveram envolvidos no inútil levantamento
do século anterior.
— Os MacLean se recuperaram depois. Quando meu pai morreu não
deixou nada exceto as terras e o castelo, e nos consideram os afortunados com
essas posses. Necessidade de dinheiro? Claro, tinha quinze anos e estava
furioso.
De repente Enid compreendeu a verdade. Uma verdade tão evidente que
MacLean precisava ter sido cego para não vê-la.
Cego... ou embargado pela dor e a decepção de um jovem de quinze anos.
— Espera, espera. — Apertou-lhe os dedos para que atendesse. — Está me
dizendo que sua mãe se casou com um velho decrépito por dinheiro. Está me
dizendo que fez isso para se livrar de suas responsabilidades aqui, no castelo
MacLean, para viver a boa vida na Inglaterra enquanto você lutava, tratando
de sobreviver com uma renda miserável. Está me dizendo que, depois da
morte do mercador, retornou com a fortuna te deu na palma da mão, te deu
isso na íntegra, te disse que era muito preguiçosa para se ocupar dela, e agora
nunca sai da ilha de Mull. É isso o que me está dizendo?
Ele endireitou os ombros e a olhou com uma gélida franqueza.
— Sim.
— E atribui suas ações ao egoísmo? — Enfurecida, sacudiu a mão até a
liberar da de MacLean. — Deveria sabê-lo, ingrato, porco egoísta. Sua mãe
arrumou as coisas de modo que não tivesse que se casar com alguma
asquerosa herdeira para salvar seu imóvel!
MacLean entrecerrou os olhos verdes.
— Isso não é certo! — replicou ele com um grunhido.
Ela sacudiu o ar com as mãos.
— Não me fale. Se não pode se dar conta de que deveria amar a sua mãe
só pelo fato de sê-lo, muito menos por ser uma boa mãe... não só está bêbado
mas sim também é estúpido!
Ele ficou em pé. Parecia muito mais sóbrio.
— Ninguém mais pensa como você.
— É isso o que influi em você? O que pensem os outros? — Enid se
aproximou e agitou um dedo ante sua cara. — Posso te assegurar que todo
mundo sabe o que fez sua mãe. Pergunte a Donaldina o que pensa.
— Donaldina foi a babá de minha mãe — replicou ele, como se isso
explicasse tudo.

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— Muito bem. Pergunte aos homens. — Enid fez um amplo gesto. —


Graeme se queixa dela. Pergunte a Graeme o que pensa de sua mãe.
— Ela costura a roupa dele. O menino lhe tem afeto. — Agora MacLean ia a
provas, incapaz de enfrentar à verdade.
A Enid não importava. Queria justiça para lady Bess, e necessitava que
MacLean admitisse a verdade por si mesmo... e por ela.
— Lady Bess gosta de todo mundo. Todos a adoram. Me trouxe
pessoalmente a este quarto, e me contou uma bobagem a respeito de que
Robert De Bruce dormiu aqui...
— Isso é certo.
— E chorei até dormir porque nunca tive uma mãe como a sua, e se
queixa de que se vendeu para te salvar da escravidão conjugal. É um canalha
ingrato. — Enid sentia desejos de fazer algo violento como ficar a pisotear o
chão, mas endireitou os ombros e reteve a dignidade que lhe escapava
velozmente. — Assim não me compare com sua mãe. É uma mulher
maravilhosa, enquanto que eu... eu sou tão mercenária como teme.
— Enviei a alguém para que traga o barco de pesca.
— O que?
— O barco de pesca que tomamos emprestado para vir aqui.
— Muito bem. — Ele a confundia com sua retorcida conversação, e agora
Enid sabia que o fazia de propósito, para aturdi-la. Não se sairia com a sua. —
Já que o fiz chegar a este ponto, quero dizer... todo mundo sabe que não
estamos casados, de modo que não corro nenhum perigo. Quero ir para casa.
Ele dava a impressão de estar menos embriagado, menos cansado, e cada
vez, parecia mais o asno autoritário que ela conhecia.
— Não vai daqui até que eu tenha recordado tudo.
— É possível que nunca chegue a recordar tudo.
— Então passará aqui muito, muito tempo.
Ela apontou a porta.
— Saia e não volte.
Desta vez ele saiu.

— Você nunca pode sair sozinho.


Kinman se inclinou para a frente, as mãos enlaçadas nos joelhos, e olhou
para MacLean com a maior seriedade. Seu interlocutor seguia sob os efeitos da
ressaca.
— Tem razão.
O fogo crepitava na lareira, liberando na atmosfera da sala um leve aroma
de pinheiro. Na grande sala ressoavam a conversação e as risadas da
sobremesa. Tudo era como devia ser, pois MacLean se sentava com os três
ingleses e com Graeme MacQuarrie, Jimmy MacGillivray e Rab Hardie,

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enquanto as mulheres estavam no outro extremo da sala, junto a sua própria


lareira. Ali Donaldina tentava ensinar a Enid a fiar lã com um fuso, ao que
parecia com pouco êxito, a julgar pelas risadas. Tudo se estava desenvolvendo
tal como MacLean gostava, bate-papo de homens para ele, tarefas femininas
para elas.
— Hoje nos despedimos da maioria de nossos homens, que voltam para
casa — disse Kinman, — mas quem quer que o persegue está desesperado, e
deve haver mais de um.
Embora Jackson se sentasse um pouco afastado do grupo, o incluíam na
conversação. Por seu caráter e seu aspecto era quase invisível, mas agora
elevou a mão.
— Posso perguntar, senhor Kinman, como você sabe disso?
— O homem em quem disparou no ataque ao trem...
Isso era uma novidade para MacLean.
— Jackson disparou em alguém?
— Um inglês, um oficial da tropa com a reputação de ferocidade no
combate — respondeu Harry.
— Ao que parece, alguém mais estava em posse de sua lealdade —
comentou Graeme.
Kinman se ofendeu, como se Graeme caluniasse a todos os ingleses.
Harry assentiu, tranquilo como sempre.
— Isso parece, ia no trem como um de nossos defensores. Matou ao
maquinista e deteve o trem. Jackson disparou nele quando entrou no vagão.
MacLean olhou ao sombrio e suscetível Jackson com um novo respeito.
— Sabe disparar?
— Meu senhor anterior caçava pássaros em seu imóvel perto de
Edimburgo, e insistiu em que aprendesse.
— Acreditava que seu senhor anterior era um amigo de Throckmorton.
Lorde Featherstonebaugh, não?
Jackson fixou em MacLean seus notáveis olhos azuis.
— Trabalhei para vários cavalheiros em diferentes épocas de minha vida.
Fascinante. MacLean enviaria a alguém ao imóvel de Throckmorton para
que pedisse uma investigação mais precisa do passado de seu camareiro.
Um acesso de risadas femininas o distraiu, e olhou uma vez mais ao outro
lado da sala. Esteve constantemente com Enid durante meses. Não podia
deixá-la em falta porque levassem um dia separados, e nem tão só um dia
inteiro. Estremeceu ao recordar o momento em que entrou em seu dormitório
pela manhã. Não podia acreditar que estivesse tão embriagado para procurá-
la. Lhe contara todos os segredos de sua família porque, em alguma curva de
sua mente, decidira que ela merecia conhecê-los.
Inclusive agora, quando tinha um completo domínio de si mesmo, embora

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acompanhado pela ressaca, seguia acreditando que ela era merecedora de


suas confidências. Esteve com ele quase desde o começo daquela aventura.
Enid corria perigo por sua causa. Sem dúvida semelhante entrega
justificava que lhe informasse dos acontecimentos cotidianos no castelo,
inclusive de coisinhas que pareciam carecer de importância.
Kinman fez voltar a conversação ao tema que estavam comentando.
— Os outros homens subiram ao trem quando se deteve.
— Só vi dois — disse Jackson.
— Mas com a escuridão e a confusão era impossível contá-los — replicou
Harry. — Sei que outro pelo menos entrou no vagão de MacLean,
provavelmente pouco depois de que ele escapasse.
Kinman agarrou o braço de MacLean para que voltasse a prestar atenção
nele.
— Assim já vê, MacLean, sabemos que alguém virá atrás de você. Alguém
tentará de novo te matar. Alguém te armará uma emboscada.
Os homens se olharam uns aos outros com os olhos entrecerrados e a
determinação que os soldados mostram antes da batalha.
— Conheço você, MacLean — disse Kinman com veemência. — Sei que
resiste às limitações, mas deve compreender que são necessárias.
— Absolutamente necessárias —replicou MacLean.
Não podia entrar às escondidas no dormitório de Enid para conversar com
ela, porque aquela manhã ela conseguira tirá-lo de lá. Naturalmente, ainda não
estavam casados. Ela não conhecia ainda suas intenções, e deixara claro que
não aceitaria que a cortejasse. Não tinha nenhum direito de entrar em seu
dormitório, mas... queria ganhar esse direito.
Por desgraça, sua mãe estava certa. Ele não sabia cortejar uma mulher.
Nunca teve necessidade disso; como senhor do lugar, eram as mulheres as que
o cortejavam. Certamente, conhecia os rudimentos, a maneira de paquerar e
de mentir a uma mulher. Mas nunca até então desejara a uma mulher que não
o quisesse. Nunca até então isso importara tanto.
— Tem que atuar com naturalidade e, ao mesmo tempo, estar sempre em
guarda.
Kinman espremeu as mãos. O corpulento cavalheiro parecia tão nervoso
como sempre.
— Certamente.
Se MacLean não tivesse recuperado a memória, sem dúvida a teria
deixado grávida.
Se endireitou em seu assento.
Talvez um menino já estivesse crescendo em sua matriz, em cujo caso
teriam que se casar, à margem da falta de entusiasmo que ela mostrava.
Kinman já dissera antes, mas agora disse de novo.

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— Não sabemos que informação você oculta nas profundidades de sua


mente, mas o traidor demonstrou a importância que tem ao fazer o possível
para o eliminar.
— Você tem razão — repetiu MacLean, aturdido.
Um filho... com Enid? A ideia convulsionou suas vísceras e o coração.
Kinman ficou em pé de um salto.
— Maldito seja, MacLean, não está me escutando!
MacLean olhou piscando ao aporrinhado e avermelhado Kinman.
— Ouvi tudo o que me disse!
— E até que ponto isso é verossímil? — se queixou Kinman.
Agora que MacLean recuperou a memória, recordava a Kinman. Chegaram
a se conhecer bem quando MacLean foi a Inglaterra em busca de Stephen.
Kinman era um homem consciencioso, amável, submisso, que podia competir
com o melhor deles. Seu aspecto desarrumado ocultava uma mente aguda, e
MacLean o respeitava.
Mas Kinman parecia acreditar que MacLean não tinha remédio, e Kiernan o
tranquilizou de bom grado.
— Não tenho que sair sozinho — recitou. — A maioria dos guardiões
ingleses se foram, mas ainda não estou a salvo. Não sabemos o que sei, mas o
assassino demonstrou quão importante é esse conhecimento ao incendiar a
quinta, deter o trem, me perseguir através da Escócia e disparar contra mim.
Kinman olhou os pés e os mudou de lugar.
— Talvez o persiga mais de um assassino.
— Isso é evidente. — MacLean olhou os sérios rostos que o rodeavam. —
Eu diria que sou valente, mas não um estúpido. Não posso deter uma bala, e
não irei brincar de correr por aí sem guarda-costas.
Estão satisfeitos?
Todos assentiram.
— Muito bem, então. — MacLean ficou em pé. — Vou falar com as damas.
Venham se quiserem. O pior que fará qualquer delas é me cravar com o fuso.
Harry permaneceu em seu assento.
— E sabemos qual delas será.
MacLean lhe dirigiu um olhar furioso e cruzou a grande sala. Os homens o
seguiram, não para proteger, como ele sabia bem, mas sim pela diversão de
ver o senhor do clã MacLean se reunir com as damas.
Todos exceto Harry, que ficou onde estava e contemplou o fogo.
Quando MacLean cruzou a sala, as criadas se deram ligeiras cotoveladas
umas nas outras e sorriram, enquanto a mãe baralhava suas muito
manuseadas cartas. Ele quase se deteve para tocar o ombro dela. Enid não
podia estar certa com respeito a lady Bess. Sua mãe se vestia de uma maneira
lamentável. Fumava muito, bebia em excesso, jogava cartas. Não podia ter se

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sacrificado por ele e o imóvel.


Era impossível que ele tivesse sido tão duro de moleira para que lhe
passasse por cima a abnegação daquela mulher.
— Mãe...
Ela ergueu a vista.
— Me diga, filho.
Ele olhou a seu redor e viu que todo mundo o estava olhando. Ali não
podia interrogá-la.
— Nada — disse. — Não é o momento.
Chegou ante Enid e se perguntou o que deveria dizer a ela. Dificilmente
podia perguntar se teve a regra. Então, contemplou sua cabeça inclinada e
observou como a luz das velas piscava nas escuras ondulações de seu cabelo
com penteado alto, como as mechas se deslizavam por seu esbelto pescoço, a
maneira em que o vestido novo que Celeste deu a ela se atinha a suas curvas.
Enid era formosa.
Ele a queria. Seu corpo e seu instinto identificavam a seu doce e perfeito
casal.
A doce e perfeito casal elevou a vista e disse bruscamente:
— Vá embora ou sente. Está me tirando a luz.

Capítulo 23

No que Enid estava pensando quando jogou MacLean de seu dormitório?


Sabia, naturalmente. Esteve pensando em que retornaria logo ao lar... em
qualquer lugar que estivesse seu lar. Certamente não era ali, no castelo
MacLean, onde um inglês espreitava em cada canto, espreitado a sua vez por
um escocês, e a regularidade com que os encontrava lhe parecia suspeita. Nos
quatro dias transcorridos desde sua chegada começou a suspeitar que a
seguiam.
Se voltou com rapidez e olhou atrás. O longo corredor do andar de cima
estava sumido na penumbra, mas nada poderia justificar seu ataque de nervos.
Olhou o busto de mármore em um pedestal, examinou os vãos das janelas. Não
havia nada. Tudo o que podia ver do exterior era a chuva constante e torrencial
e a chegada do crepúsculo violeta.
Precisava se dominar e recordar quem era. Enid MacLean, uma mulher que
não demoraria para ter um trabalho monótono no que um dia seguiria ao outro
sem nenhuma mudança, nenhuma emoção... nem o desejo inútil de longas
noitadas na grande sala onde Kiernan MacLean se sentava, a olhando com
semblante reflexivo.
Todo mundo no castelo contemplava ao absorto MacLean com evidente
regozijo.

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Ela evitava lhe olhar a todo custo, mas sabia sempre que ele estava ali
sentado, com o traje tradicional escocês, meias de lã tecidas à mão e seguras
com ligas sob os joelhos, sua preciosa bolsa, atada à cintura, e uma saia
escocesa que permitia ocasionais e imponentes vislumbres de suas musculosas
coxas... e mais acima.
Enid suspirou. Isso explicava por que lhe custava tanto descer a sala para
jantar. Durante quatro dias encaixara aquele constante e fatigante escrutínio, e
começava a derramar coisas, a se esquecer do que acabava de dizer, a
ruborizar sem nenhum motivo. Aquela situação a estava afetando
negativamente. Disse a si mesma que oxalá ocorresse algo. Oxalá o malvado
se revelasse! Mas embora nenhum dos homens estivesse disposto a falar da
situação com ela, pois não queriam transtornar sua delicada sensibilidade
feminina, ela sabia que deviam estar sopesando a probabilidade de que seu
criminoso partiu com os guardiães ingleses.
Quanto tempo demorariam para declarar MacLean livre de risco e a ela em
condições de voltar para casa? Às vezes se perguntava se MacLean a mantinha
ali pelo prazer de atormentá-la. Sabia onde estava seu dormitório, e embora
ela agora passava a chave na porta, ele podia obter a chave. Estava decidida a
impedir que se deitasse com ela. Mas como desejava evitar essa prova!, pois
de noite seu corpo desejava o contato de MacLean. Quando dormia, sua mente
errava com ele pelas colinas escocesas, e sempre encontravam uma choça em
um lugar onde não soprava o vento e o sol esquentava, e faziam amor
enquanto as montanhas lhes sussurravam sua aprovação. Imaginava que,
desde alguma parte do castelo, MacLean lhe enviava pensamentos de desejo,
e parecia como se cada noite lhe ordenasse com crescente vigor que se
reunisse com ele.
Por isso imaginava que alguém a observava. Sempre confiava em que
fosse MacLean.
Com as mãos enlaçadas à costas, avançou de novo pelo longo corredor
com as paredes lotadas de retratos de senhores mortos muito tempo atrás, de
seus cães, seus cavalos e suas esposas. O retrato do extremo a atraía em
particular, a pintura em que aparecia o último senhor com sua esposa, lady
Bess, seus filhos, Kiernan e Elizabeth, lady Catriona... e Stephen. Enid
contemplou aos dois moços, um ao lado do outro, como se fossem amigos.
Stephen era mais velho que Kiernan, tinha dezessete anos e seu primo onze,
mas Kiernan já o superava em altura e largura dos ombros.
O artista inclusive captara o encanto que Stephen cultivava e a áspera
impaciência de Kiernan ao se ver obrigado a permanecer quieto. Dois MacLean,
criados juntos mas tão diferentes.
— Era arrumado, não era? — disse uma voz feminina entrecortada ao lado
de Enid.

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Enid se voltou, sobressaltada.


Embora não tivesse voltado a ver a dama desde a primeira noite,
reconheceu a lady Catriona. A mulher tinha o cabelo cinza recolhido em um
coque e toucado com um gorro de viúva de renda negro.
Seu rosto estava envelhecido, se vestia completamente de negro e tinha
um enrugado lenço entre os dedos nervosos. Não podia ser muito mais velha
que lady Bess; Enid pensou que inclusive devia ser mais jovem, mas os anos de
lady Catriona se revelavam nos ombros caídos, na figura maciça e nas rugas ao
redor da lânguida boca e nos olhos bordejados de vermelho.
— A alarmei? — Lady Catriona não ultrapassava em altura o queixo de
Enid. — Não era meu propósito. Estava tão absorta no retrato de meu querido
moço...
— Sim... estava.
Pelo menos assim ela supunha, mas lady Catriona devia ser capaz de
deslizar sem fazer o menor ruído para ter pego Enid tão despreparada.
— Sou lady Catriona MacLean. —Estendeu uma mão trêmula. — Peço
desculpas por não tê-la saudado antes, mas estive encerrada, chorando a
morte de meu filho.
— Claro. — Enid não podia se sentir mais incômoda. Era a viúva do filho
daquela mulher, mas ela não chorou sua morte. —- Lamento a perda que
sofreu.
— Obrigado. — Os esvaídos olhos azuis de lady Catriona se encheram de
lágrimas. — Mas é nossa perda, não é certo?
— Sim, obrigado — replicou Enid, embora lady Catriona não lhe deu
exatamente o pêsames.
— Não me senti com ânimos para comer com a família. Careceram por
completo dos sentimentos apropriados nestes tristes momentos.
— OH... sim. — Enid supôs que com essa observação a mulher queria dizer
que ninguém mostrara pesar pela ausência de seu filho. — Mas Stephen partiu
há tanto tempo atrás que estou segura de que já haviam lamentado antes sua
perda.
— Não desculpe seu comportamento. São uma vergonha.
Como ela mesma o era, supôs Enid, posto que defendia à família. Por
outra parte, algo matreiro no olhar de lady Catriona revelava sua desaprovação
de Enid, de cujo vestido de veludo vermelho rubi não podia se dizer que fosse
um traje de luto. Enid esteve a ponto de lhe dizer que tinha perdido todos seus
objetos em um incêndio, mas isso não serviria de desculpa a lady Catriona. A
mulher jamais tentara se relacionar com Enid depois do casamento, nunca
fizera o esforço de recebê-la em sua família, nunca até então lhe devotara sua
amizade. A falta de decoro não era somente de Enid.
Ao ver que a jovem não dizia nada mais, lady Catriona acrescentou:

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— Conheço Kiernan desde que era um bebê, e é o pior de todos. Um


fanfarrão astucioso que sempre se acreditou melhor que Stephen porque tem o
título.
— Seriamente? — Enid notou uma rigidez nos lábios. — Eu não teria
pensado tal coisa dele.
— Isso se deve a que Stephen nunca se queixou. Stephen sempre foi o
primo mais velho, amável e considerado. — Lady Catriona pronunciou devagar
o nome de seu filho, e seus olhos cintilaram ao acrescentar: — E Kiernan
sempre foi um ingrato.
Enid se sentiu impulsionada a protestar.
— Kiernan foi em busca de Stephen para resgatá-lo.
Lady Catriona ergueu a cabeça e sorriu com uma cortesia imóvel e fria.
— Chama Kiernan por seu nome de batismo?
Acaso aquela conversação estava semeada de armadilhas?
— O chamei como você o tem feito. Me dirijo a ele chamando MacLean.
Aqui todo mundo o chama assim.
— Ah. — Lady Catriona desviou a vista do retrato. — Bem, Kiernan não
resgatou Stephen, e meu pobre coração de mãe se pergunta se fracassou de
propósito.
Enid nem sequer pensou duas vezes antes de replicar bruscamente:
— Que barbaridade acaba de dizer, lady Catriona. MacLean jamais
fracassaria de propósito em qualquer missão que empreendesse!
— Deveria ter sabido que estava do lado dele. Stephen nem sequer pode
contar com sua própria esposa para o defender como merece. — As lágrimas
se amontoavam nos olhos de lady Catriona, e as enxugou com o lenço.
— Sou a única que compreendia a meu querido filho.
Aquela mulher era uma aranha manipuladora, e Enid permitira que lady
Catriona a dirigisse de uma maneira como ela jamais teria imaginado. Ansiava
partir dali, mas em vez de fazê-lo perguntou cortesmente à dama:
— Teremos esta noite o prazer de sua companhia?
— Não. — Lady Catriona exalou um suspiro. — Não. Queria te conhecer,
mas temo que esta profunda aflição me esgotou. Voltarei para meus
aposentos. Me trarão uma bandeja de comida, embora mal pude provar um
bocado.
Enid contemplou lady Catriona enquanto esta se afastava, uma alma
perdida na galeria de membros do clã MacLean prodigiosamente vibrantes.
Então olhou de novo o retrato de Stephen e, pela primeira vez em nove anos,
sentiu lástima por ele.

O jantar na grande sala do castelo MacLean era uma reunião com


abundância de manjares, festiva, em que estalavam as risadas, havia uma

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discussão de vez em quando e uma frequente paquera. Só quem ocupava a


cabeceira da mesa permaneciam sossegados. Ali MacLean e Enid se sentavam
em uma ilha de silêncio, um silêncio devido no qual MacLean parecia incapaz
de sustentar uma conversação. Quando lhe perguntavam algo respondia com
um sim ou um não. Inclusive em ocasiões podia formar frases completas. Mas,
em geral, olhava para Enid como se tentasse discernir algum assunto
importante que só concernisse a ele.
Uma vez retiradas as cobertas dos recipientes e servido o brandy, Enid
disse a si mesma que já estava farta do ameaçador olhar de MacLean.
— Esta noite falei com lady Catriona — anunciou em voz clara.
O tinido dos talheres de prata contra a louça diminuiu. Cessou a
conversação. Enid elevou a vista de seu prato e viu que todos os escoceses se
voltaram para olhá-la, todos com idênticas expressões de desgosto e simpatia.
— Deus meu — se limitou a dizer lady Bess, que normalmente era tão
eloquente.
Finalmente MacLean se viu obrigado a falar.
— O que te disse?
Enid alisou o guardanapo sobre seu colo.
— Queria me ver para que pudéssemos compartilhar nossa mútua aflição.
— Um bom gesto por sua parte — comentou MacLean. — Agora nos diga,
o que te disse realmente?
Enid brincou de novo com o guardanapo.
— Temo que a ofendi por não ter usado um traje de luto.
— Nesse aspecto todos a ofendemos. — Lady Bess acendeu um de seus
pestilentos charutos.
MacLean olhou para Enid sacudindo a cabeça com gesto solene.
— É impossível não ofender a minha tia. Se a insultou, peço perdão em
seu nome.
— Não. — Agora Enid se sentia como a própria lady Catriona, manipulando
MacLean para sua própria satisfação. — Me pareceu uma mulher desventurada.
Lady Bess exalou um jorro de fumaça.
— Isso ela é sempre.
— E um pouco... desequilibrada — concluiu Enid.
— Está como uma cabra, o mesmo que o resto de sua família — conveio
lady Bess. — Sempre o acreditei assim.
MacLean se voltou para sua mãe.
— Come pelo menos?
— OH, por favor — Lady Bess fez uma careta. — Quando viu lady Catriona
tão melancólica que não possa comer?
— Então não vou me preocupar com a possibilidade de que se consuma.
— MacLean retirou a cadeira para trás e se levantou. — Vamos à lareira?

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— Não. — Enid também se levantou. — Estou cansada. — E mal-humorada


e deprimida, todos eles sinais seguros de que lhe chegava a regra. — Vou a
meu quarto.
— A acompanharei — replicou MacLean.
— O que? — Enid olhou as pessoas reunidas, todos aqueles ouvidos
dispostos a escutar a declaração notavelmente comprometedora do senhor da
casa. — Por quê?
— Porque a escada é longa e está às escuras, assim como o corredor.
Necessita escolta, alguém que leve sua vela.
Ela franziu carrancudamente os lábios.
— Não é decoroso que acompanhe a meu dormitório.
— Querida minha — interveio lady Bess com um sorriso plácido, — isto
não é a Inglaterra, com todas suas regras caprichosas e sua severa etiqueta.
De fato, aqui, na Escócia, temos uma instituição chamada handfast, em que o
casal se casa por um ano e um dia e, se tiverem um filho, o casamento é
vinculado.
— E se não tiverem um filho, o que faz a mulher? Declarar um fracasso e
partir cabisbaixa? — As faces de Enid ardiam. Ela fora a esposa em um
casamento fracassado e sabia o que era ser objeto de lástima e desdém. — Por
que qualquer mulher consentiria em semelhante acerto?
— Não se trata exatamente de obter o consentimento da mulher —
replicou MacLean. — O handfast é uma herança do passado remoto, quando
um homem se apoderava da noiva à margem do que ela desejasse.
Para Enid não importava o tom e as palavras, e quis lhe afligir com uma
frase lapidária.
— Graças a Deus que vivemos em uma época iluminada.
Ele não pareceu afligido. Inclusive o leve sorriso que apareceu em seus
lábios a fez temer que talvez ele estivesse considerando a possibilidade de
levar a cabo uma ação tão drástica. Mas não, nada disso.
MacLean não queria se casar com ela. Já era bastante mau que tivesse
fornicado com ele, e não só uma vez... levou a palma da mão à testa. Fornicou
com ele uma e outra vez quando já conhecia sua verdadeira identidade!
— Sua cabeça dói? — perguntou MacLean no tom acariciante que lhe
recordava aquele dia nas montanhas escocesas, ao mesmo tempo que punha a
mão no seu ombro.
Ela escapou do contato e se afastou rapidamente.
— Estou bem! —replicou com brutalidade.
MacLean lhe sorriu de novo, e por sua maneira de olhá-la, transbordante
de força e domínio, Enid pensou que ele realmente esteve exercendo sua
vontade para levá-la a seu dormitório.
Se voltou para lady Bess.

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— Não sou escocesa e, portanto, não estou sujeita a suas leis arcaicas.
Lady Bess riu de boa vontade.
— Sim que está, querida, mas isso não se questiona.
— Não, o que se questiona é minha capacidade para levar minha vela —
replicou Enid com aspereza, — e o fiz perfeitamente durante quatro noites
seguidas. Posso voltar a fazê-lo esta noite.
— De todos os modos a acompanharei — disse MacLean com uma
segurança inflexível.
Se lhe respondia que esteve de brincadeira, que na realidade não ia à
cama, isso só teria servido para postergar o inevitável. Ao final, ele a
acompanharia. Posto que conhecia sua teimosia, sabia que era inútil seguir se
opondo. Mas a escoltaria somente até a porta do dormitório. Ela tomou a firme
decisão de que fosse assim.
De modo que sorriu, uma careta breve e tensa, sem efusão.
— Como deseja, meu senhor — replicou, e se encaminhou à escada. Ele
começou a segui-la. Enid se deteve. — Esqueceu da vela, MacLean.
Ele franziu o cenho, e Enid esperou que ele dissesse que não queria se
incomodar pela condenada vela. Mas quando uma sorridente criada lhe
ofereceu uma só vela acesa em uma palmatória, ele a aceitou e seguiu Enid
escada acima e pelo corredor dos retratos.
— Você gosta do castelo? — perguntou MacLean.
Enid piscou e se perguntou por que importava a aquele homem o que ela
pensasse.
— Sim, eu gosto muito. Aqui o peso da história resulta entristecedor.
— Cinquenta gerações de MacLean tiveram seu lar neste afloramento
rochoso. O primeiro dos MacLean chegou aqui com a maré e se estabeleceu no
primeiro lugar que o permitia se defender. Nunca partimos. — Como se lhe
tivessem secado as palavras, MacLean deixou de falar.
Mas aquela noite dissera mais coisas que nas quatro anteriores, por isso o
estimulou a seguir.
— O castelo é tão grande que nem sequer sei quantos níveis tem.
— Quatro. — MacLean pigarreou. — Quatro níveis. Uma multidão de
senhores do clã foram acrescentando partes ao castelo, O edifício original era
de madeira, com um fosso, pensado para lutar contra ingleses e vikings. Logo o
castelo se reconstruiu em pedra, com torres ameadas das que se podia vigiar a
terra e o mar.
Graças a sua estadia ali, agora Enid podia entender melhor a ilimitada
arrogância dos MacLean. Ou chamá-la como o que realmente era: sua
presunção.
Embora ele somente parecia prestar atenção à vela, perguntou-lhe:
— Por que sorri?

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Ela não percebeu que estava sorrindo, mas não tencionava lhe provocar.
— Então os MacLean repeliram ao inimigo durante todos estes anos?
— Sim... mas as mulheres MacLean também se saíram sempre com a sua.
Por isso há certas esculturas...
Mostrou uma cena de batalha esculpida em uma tábua de nogueira e
pendurada no meio do corredor. Enid examinou a imagem de uma decapitação,
do sangue que brotava, de inimigos arrastados sob um cavalo.
— Muito feminino — comentou.
— Que sarcástica é. De acordo. — Em um tom beligerante, disse: — O que
me diz disso? Um vaso.
Um vaso chinês da dinastia Ming sobre um pedestal de mármore.
— Incrivelmente formoso.
— Nenhum varão MacLean o comprou. — MacLean apontou o vaso com
um gesto da cabeça. - Alguma esposa MacLean o quis ter e seu marido não
pôde se negar.
Enid conteve seu regozijo.
— Suponho que isso explica também os tapetes e as tapeçarias.
— Sim, em efeito. Os varões MacLean não apreciam a beleza, mas mimam
sem cessar a suas mulheres.
— Então suponho que normalmente se casam com mulheres feias.
— O que? Não! —- A olhou fixamente. Seu olhar se suavizou. Sua voz se
converteu naquele ronrono adulador que estremecia a espinha dorsal de Enid.
— Não, os varões MacLean reconhecem a beleza em suas mulheres, e quando
encontram a seu verdadeiro amor, não veem beleza em nenhuma outra.
O sorriso afetado de Enid desapareceu de improviso. O comentário de
MacLean sobre o castelo era algo mais que a torpe tentativa de um homem de
entretê-la. Estava mostrando interesse por ela. A estava cortejando.
— Parece um tanto pasmada, moça —disse ele com um sorriso satisfeito.
— Está bem?
— Estou bem, obrigado — replicou ela, mas em um sussurro.
A estava cortejando.
Mas não era isso. Ela se equivocava.
Estava lhe apresentando seu lar como uma jóia em uma bandeja de prata.
Entretanto, disse de maneira terminante que era uma mercenária indigna
de lhe lavar os pés. A chamou de bastarda. Perguntou se Throckmorton pagou
para que se deitasse com ele.
Mas pediu desculpas. Enid esfregou a testa. Aquilo não podia estar
acontecendo. Antes foi desventurada, agora se sentia presa do pânico,
atemorizada, quase doente pela necessidade de se pôr a correr até que não
pudesse mais. E por quê? Tudo o que devia fazer era se negar. Não havia
armadilhas ocultas, ela conhecia todas. Pisara em todas.

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— Sim, tem dor de cabeça— afirmou ele em um tom meloso.


— Não.
Claro que não lhe doía a cabeça. Estava bem. Era forte.
— Deixe que eu massageie suas têmporas.
— Não!
Poderia superar o pânico que apertava suas vísceras uma vez que tivesse
enfrentado a verdade. Talvez a ideia de viver sob a generosidade de MacLean
fosse levianamente atraente, mas se consentia em ser sua esposa, sempre
saberia que ele estava decepcionado por sua escolha de uma órfã inglesa, e
sempre estaria à espera que voltasse a ser a mulher ambiciosa que, conforme
acreditava foi antes.
Cobiça... seu olhar percorreu os retratos, os vasos, a segurança
encapsulada pela mera exibição da riqueza. MacLean tinha uma casa
esplêndida, certamente. Uma família nobre. Se casava com ele, sempre estaria
segura. Fez um esforço para afugentar a tentação.
Então, ela sobreviveria a aquela penosa experiência se valendo do
engenho que adquirira nas difíceis circunstâncias de sua vida. Mudaria de
tema. Seguiu avançando pelo corredor.
— Tenho que te perguntar algo sobre seus costumes escoceses.
— Seriamente? — Seu acento lhe sentava como uma capa bem ajustada.
— Me alegra que deseje se informar sobre nossos costumes escoceses.
Por seu modo de dizer, parecia como se tivesse pedido que lhe mostrasse
seus costumes, e isso não era certo. Só necessita algo com que encher o
silêncio.
— Por que usa a saia escocesa e a bolsa? — perguntou apressadamente.
— Stephen me disse que são coisas antiquadas.
Quando MacLean inclinou a cabeça para olhá-la, parecia mais alto e largo
que nunca. Uma ilusão, certamente, pois embora seus passeios diários ao
redor do castelo, acompanhado pelos ingleses e seus escoceses,
provavelmente contribuíram para seu bem-estar, tinha muita idade para mudar
tanto de fisionomia como de maneira de pensar.
— Depois de quarenta e cinco, os britânicos trataram de eliminar o traje
tradicional, como tentaram eliminar aos próprios clãs. Se opunham sobretudo à
bolsa, posto que um homem podia ocultar uma arma nela. — MacLean tocou a
pele chamuscada. — A explosão destroçou a minha, mas, como pertenceu a
meu pai, a levarei sempre.
— Um sentimento admirável — comentou ela com os batimentos de seu
coração apaziguados.
— Aqui as lembranças se remontam a muito tempo atrás, e embora nos
vimos obrigados a conviver com os ingleses, não esquecemos nossas
tradições. — Seus lábios esboçaram um sorriso. — É curioso. Agora nos

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"permitem" vestir nossos tartãs e nossas saias, e estes objetos estão se pondo
de moda entre os ingleses aos que visito. — MacLean se aproximou mais a ela.
— Alguns diriam que a razão de que o escocês use saia é porque resulta mais
fácil elevá-la para as garotas. Quer que eleve a minha para você?
Lhe fizera uma pergunta inofensiva e, de algum jeito, ele fez que a
conversação avançasse por uns roteiros francamente escandalosos. E não é
que ela não se sentisse excitada. Cruzou os braços sobre o peito.
— Estou segura que debaixo veste algum tipo de objeto interior — disse
em um tom severo.
Ele franziu os lábios e fez um gesto negativo com a cabeça.
— É a tradição. Não quererá que rompa com a tradição, não é?
— Isso... é escandaloso!
E estava escandalizada de si mesma pelo número de vezes que
perguntara. Depois de o olhar com repugnância, reatou seu avanço pelo
corredor a grandes passo para se livrar dele quanto antes.
Foi em vão; MacLean a agarrou pelo braço, a obrigando a caminhar mais
devagar.
— Também eu tenho uma pergunta que fazer — disse. — Vivemos como
marido e mulher.
Segurava-lhe o braço contra seu flanco, e o calor que emanava dele a
excitava, tanto se queria como se não, e apressava os batimentos de seu
coração.
— Sim.
— Estivemos juntos durante mais de quinze dias e, segundo meus
cálculos, fizemos amor seis vezes.
— Talvez, não as contei.
Exatamente seis vezes.
— Então, devo te fazer a pergunta que qualquer homem faria a uma
mulher a que conheceu intimamente...
Ia pedir que se casasse com ele. Enid temia essa intimidade... essa
tentação.
— Não, por favor, não...
— Está esperando meu filho?
Ela ficou imóvel. A constatação de sua credibilidade a fez ruborizar. Queria
fechar os olhos e golpear a cabeça contra a parede... devido ao alívio, é obvio.
Se sentia aliviada. O mistério se resolveu. Ele insistira em acompanhá-la não
para lhe propor casamento, nem sequer para seduzi-la, a não ser para
descobrir se, por acidente, havia fecundado um filho.
E se ela seguia caindo rendida nos braços de MacLean, repetiria o engano
de sua mãe, teria um filho ilegítimo. Por alguma razão, durante aquele período
de confusão e viagem, nunca passou por sua mente a ideia de ficar grávida.

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— Não, não estou grávida — replicou em voz baixa.


— Está segura?
Enid apertou o punho. O interrogatório a teria exasperado em qualquer
momento, mas naquele preciso momento do mês a fazia sentir desejos de o
esbofetear.
— Sim, estou. Não poderia estar mais segura.
— Ah — disse ele, e assentiu.
Os desejos que ela tinha de o esbofetear redobraram. Como se atrevia a
se dar ares de perspicaz, como se compreendesse o funcionamento de seu
corpo? Nem sequer ela o compreendia, com suas cãibras e suas dores e com
seus desejos ilógicos que, se não ia com cuidado, poderiam conduzi-la a
cometer uma estupidez, como se deitar de novo com MacLean.
Chegaram ao final do corredor, e Enid agarrou a palmatória sem o olhar.
— Já averiguou o que queria saber. Não se incomode em seguir me
acompanhando.
Ele não soltou a vela.
— Não foi por isso pelo que a acompanhei.
— Compreendo. É um homem honorável. Ia me oferecer sua ajuda para o
menino. — Deu um puxão à vela. — Agradeço sua consideração.
Ele a escutava como um homem que via muito e não gostava do que via.
— Está me comparando com seu pai.
— Claro que o comparo com meu pai! Ambos são homens honoráveis.
Agora lamentava ter dito o que realmente pensava de seu pai.
— Seu pai era um covarde.
— Custeou minha educação. Que mais podia esperar dele? — se
dominava, não soltava a vela e estava muito orgulhosa de si mesma.
— A acolhida de sua família? Uma visita de vez em quando? Uma herança
a sua morte, pelo menos? — O tom da voz de MacLean ia aumentando.
Ela também elevou a voz ao lhe responder.
— Seria tão amável com nosso filho?
— Nosso filho terá um pai que estará sempre com ele.
— Não te permitiria jamais que me tirasse nosso filho.
— Não lhe tiraria nosso filho— protestou ele. —Me casaria com você!
— Não... não... é certo. — Enid puxou a vela. — Agora me deixe em paz!
Com um movimento tão rápido que ela não se deu conta de sua intenção,
a rodeou pela cintura com o braço, a atraiu para si e a beijou.
Não. Não, ela não queria aquilo. Cada vez que ele a beijava, se
aproximava da beira do desastre. O chão já estava desmoronando sob seus
pés. Não queria cair por aquele precipício.
Mas... o calor, a intimidade, a necessidade. Enid saboreou tudo isso nos
lábios de MacLean.

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E ela... ela estava zangada e angustiada, e essas emoções se


transformavam em paixão com muita facilidade. Nada podia se igualar à
sedução de aplicar as mãos ao peito de um homem forte e notar os violentos
batimentos de seu coração. O supremo prazer de saber que ele a queria tanto
era uma indução por si só.
Suas respirações se igualaram, seus corpos se moveram juntos na antiga,
primitiva dança do desejo. Ela espremeu a camisa de flexível linho que ele
vestia, entusiasmada com a textura do tecido e o peito musculoso que estava
debaixo. Ali, entre seus braços, se sentia segura, e nenhum grau de rechaço
poderia mudar isso. Se apertou contra ele, desejosa do contato, embora o
temia, a ele e à tentação que apresentava.
Ele tremia.
Ela se sentia exultante.
Então ele retrocedeu e sufocou um grito.
Enid se afastou em seguida. O rubor lhe coloriu as faces e subiu à testa.
Lhe beijara assim que se apresentou a oportunidade. Ele não esteve tão
cativado como ela; se conteve.
MacLean se apressou a deixar a vela no pedestal.
— Diabos, mulher, fez que me esquecesse da vela! — desprendeu do
pulso a cera ainda morna.
— OH. — Ela não deveria rir, mas se sentia tão aliviada que não pôde
evitá-lo. — Estava aturdido.
— Como sempre que estou a seu lado.
Lhe sorria, e embora era uma loucura pensar tal coisa, a olhava como se
fosse o mais precioso dos objetos belos. O único objeto belo que era capaz de
distinguir um varão MacLean.
Ela não podia ser o objeto de sua veneração. Não seria sua mulher.
Pôs as mãos no peito dele e empurrou.
Ele fez caso omisso, a abraçou e voltou a beijá-la.
Enid desviou a cabeça.
— Não!
MacLean pegou o queixo e aproximou seu rosto ao dele. Aplicou os lábios
aos da Enid com uns movimentos leves, suaves, doces. Gostava de beijá-la.
Diabo de homem! Ao que parecia, gostava de beijá-la inclusive quando sabia
que ela não podia lhe aceitar em sua cama. Ele deslizou uma mão por suas
costas e massageou sua nuca.
Enid pensou que não tinha nada que temer daquele abraço. Aquilo não era
ser objeto de uma perseguição. Era intimidade. Era prazer. Relaxando contra
ele sentiu a plenitude em seus seios e seu coração. Ela não soube como
aconteceu. O certo é que abriu os lábios aos dele, deu-lhe a língua e sugou
distraidamente a sua. Se deleitou na umidade, na paixão, no esplendor de

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MacLean. Como sempre que ela estava em seus braços, o futuro se


desvaneceu e ele derrotou ao espectro de seus temores.
Então, no silêncio do corredor, o estalo que se produz ao martelar um fuzil
de faísca ressoou de um extremo a outro.
MacLean ergueu bruscamente a cabeça.
Se ouviu um homem gritar.
— Ao chão, MacLean!
MacLean derrubou Enid ao chão e ficou sobre ela, cobrindo-a com seu
corpo.
O disparo ressoou no corredor.
Alguém caiu ao chão, gritando de dor.
Suas queixas se mesclaram com o som de uns saltos que se afastavam
pelo chão de pranchas, e uma porta distante se fechou com violência atrás de
seu aspirante a assassino.
MacLean ergueu a cabeça.
— Está bem, Enid?
Ele pesava mais ou menos como um javali, e a jogara ao tapete e então se
deixou cair em cima dela.
— Sim — ofegou ela. —- Quem está gritando?
MacLean se levantou de um salto e se pôs a correr para a vítima que se
retorcia no chão do corredor.
— Harry — ela o ouviu dizer. — Harry!

Capítulo 24

MacLean aguardou até que remeteram as efusivas saudações, os homens


se dispersaram e Harry esteve acomodado ante o fogo antes de se aproximar
com uma bandeja nas mãos.
Enid ainda estava atendendo ao ferido, mas se ergueu em seguida e olhou
para MacLean com altivez.
— O que quer?
Ah, que bela era, com aquele queixo orgulhosamente elevado que
mantinha a distância e seus esplêndidos seios que o convidavam a se
aproximar.
Os seios de Enid eram um dos motivos pelos que ele queria que Harry se
recuperasse, o quanto antes. Não era necessário que ela estendesse convites a
outros homens sem se dar conta.
— Quero falar com nosso salvador.
Apoiou uma mão no ombro ileso de Harry. O outro braço estava
fortemente enfaixado contra o corpo; a bala destroçara a clavícula.
— Sim, nos salvou, e posto que hoje é o primeiro dia que o permiti

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levantar, se absterá de o incomodar.


— Sim, senhora.
A dócil resposta de MacLean fez Harry sorrir.
— Isso é certo, MacLean. Recebi um balaço por você, e sabe Deus que
está em dívida comigo.
— E eu também estou. — Enid pôs uma manta sobre os joelhos de Harry.
A voz do ferido se suavizou.
— Embora você seja uma tirana no quarto do doente, pagou sua dívida.
MacLean não gostou deste tom, não gostou que Harry lhe recordasse que
passou seis dias o atendendo. Chegara a pensar que Enid fosse dele. Sua
enfermeira, sua mulher.
— Sei muito bem a tirana que é. — Pegando a mão dela, MacLean lhe
beijou os dedos. — Mas uma tirana a qual só desejo obedecer.
— Tolices, MacLean — replicou ela com energia, e pegou o fuso. — Os
deixarei para que falem, cavalheiros.
MacLean lhe reteve a mão.
— Fique.
Ela se deteve, trêmula.
— Acredito que será melhor que os deixe sozinhos — disse sem olhar para
ele.
— Será que sempre precisa estar contra o que digo? — perguntou ele no
tom baixo e vibrante que só utilizava para se dirigir a ela.
O olhou aos olhos e, por um momento, MacLean acreditou que parecia
assustada. Lhe dava medo. Por quê?
Enid liberou a mão e retrocedeu um passo.
—Harry e eu vamos falar sobre quem disparou na terça-feira passada e
como o capturaremos. Isso é algo que te interessa, não? — inquiriu em um tom
persuasivo.
Ela ainda se mostrava indecisa.
— Sem dúvida Harry não deseja que fique.
— Você está presa no meio desta situação, e se não lhe disse toda a
verdade, estou seguro que tirou as conclusões adequadas — replicou Harry. —
Me interessaria conhecer sua opinião em relação à maneira de capturar o
culpado.
Enid se deixou cair em uma poltrona diante de Harry.
— Como você deseja.
Raramente MacLean a ouvira pronunciar essa frase, e naquele momento o
exasperou. Pedia a Harry permissão para ficar com eles? Harry e ela tinham
intimado em tão pouco tempo?
— Te trouxe uma taça de ratafia3 — disse, lhe estendendo a bandeja.
— Obrigado — replicou ela, pegando uma das taças de cristal que

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continha a bandeja.
— Uísque, Harry? — perguntou MacLean.
— Preferiria um bom borgonha.
MacLean lhe indicou a segunda taça.
— Pensei nisso.
Harry posou em MacLean o olhar de seus olhos escuros.
— Então recorda o que costumava beber na Crimea?
Enid sufocou um leve grito de surpresa. Assombrado, MacLean, que estava
a ponto de se sentar na banqueta de madeira aos pés de Enid, se deteve.
— Esteve na Crimea comigo?
A resposta de Harry pareceu uma ordem.
— Deve recordá-lo.
— Pois não recordo.
MacLean se sentou. A banqueta era baixa, dura e incômoda, mas ele era
muito consciente do quadro que formava com Enid, ele com o cotovelo apoiado
na cadeira da jovem. Ela tinha a MacLean suplicante a seus pés. Sem dúvida,
Harry compreenderia o simbolismo da imagem. E era evidente que Enid
também compreenderia. Não obstante, afastou as pernas dele.
Que diabos ocorria a aquela mulher?
— Confia em mim agora? — perguntou Harry, destacando a ferida.
Harry viu o cano do fuzil que alguém sustentava por trás dos cortinados,
lançou um grito de advertência e correu para o atacante. Sua ação lhe valeu
receber um tiro.
— Tem minha confiança. — MacLean indicou Enid. —Salvou a ela e a mim,
e ganhou a eterna gratidão dos MacLean.
— Não quero sua gratidão — replicou Harry com impaciência. — Quero que
recorde. Se dá conta do que está em jogo? Não só sua segurança e a da
senhora MacLean, mas também a de nossos agentes de serviço. O futuro da
Inglaterra. Tudo isso depende de sua memória.
MacLean sacudiu a cabeça.
— A viagem é brumosa a partir do momento em que parto da Inglaterra
até que ponho pé de novo na ilha de Mull.
Entretanto, não dizia toda a verdade. Tinha fragmentos de cor,
disseminados como lascas de cristal quebrado na mente. Mas quando tentava
recuperar as lembranças, sentia uns golpes de dor e suava.
Algo permanecia oculto em seu cérebro, provavelmente a identidade do
traidor, e temia que se desvelasse... pois o preocupava que fosse seu
inconstante primo. O preocupava que Stephen tivesse tratado de lhe matar e,
em vez de acabar com MacLean, este tivesse acabado com ele.
Enid, a seu lado, fazia girar o fuso, e um fio longo e desigual saía da lã que
tinha no colo. Embora parecia de todo concentrada em sua atividade, MacLean

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percebia a tensão que a embargava. A jovem escutava cada palavra, e ele


suspeitava que temia o mesmo. Temia que seu marido tivesse tratado de
assassinar seu próprio primo.
— Throckmorton não gostaria do que estou a ponto de fazer, mas nada
mais surte efeito e temo que o tempo está acabando. — Harry respirou fundo.
—Assim vou te ajudar. Me diga o que recorda dessa viagem.
MacLean parecia repousado, mas o sangue corria acelerado por suas
veias. Naturalmente, pensou. Sem dúvida, com a ajuda de Harry recordaria.
— Viajei para a Crimea... sozinho.
— Eu já estava ali. Me trouxe a carta de apresentação de Throckmorton.
MacLean se endireitou em seu assento.
— É certo. Você disse: "Outro condenado escocês".
— E você me esmurrou.
— Então ainda estava em meu são julgamento.
Harry se pôs a rir, mas logo fez uma careta e levou a mão ao ombro.
— Estive vigiando a seu primo, A princípio, Stephen teve uma atuação
brilhante. Era um grande jogador e bebedor, o tipo de homem que visitaria um
botequim e se inteiraria dos segredos de qualquer oficial russo no transcurso
de uma tarde. Logo, ao cabo de um ano mais ou menos, a informação começou
a cheirar mau. Não toda ela nem sempre, a não ser quando era importante.
Enid fez girar o fuso mais devagar.
— Fui eu quem pediu ajuda a Throckmorton, e ele me enviou a você. —
Harry sorriu, mostrando os dentes. — Outro condenado escocês.
— Não sabia nada disso. — Certamente, Throckmorton não disse. — A mãe
de Stephen me voltava louco com os temores por sua segurança, de modo que
segui os passos de meu primo até dar com Throckmorton e lhe exigi que o
enviasse a casa.
— E Throckmorton enviou a você para que o trouxesse.
— Sim. — MacLean se esforçava por ver através da névoa que envolvia o
passado. — Sim, te dei a carta de apresentação. Me olhou de cima abaixo,
tratando de ter uma ideia de como era.
— Não te importava o que pensasse de você, e por isso cheguei à
conclusão que Throckmorton acertara. Foi digno de confiança.
— Então confiou em mim?
— Tanto como você confiou em mim.
— Tanto como confia em qualquer um.
Harry esboçou um sorriso.
— Talvez. Só sei que quando Stephen o viu, pareceu como se se sentisse
caçado. Então soube sem dúvida nenhuma que era culpado.
MacLean tomou um gole de uísque e procurou falar sem um tom de
recriminação.

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— Oxalá tivesse me dito o que suspeitava.


— Sim, oxalá o tivesse feito. — Harry fez uma careta, mostrando os dentes
cuja brancura abrilhantava a luz do fogo. — Durante o caminho de volta desde
a Crimea, quando estava destroçado por aquela bomba e acreditava que ia te
perder de um momento a outro, me recriminei por ter escondido a verdade de
você. Se soubesse imediatamente teria suficiente cautela para evitar a
armadilha.
MacLean temia saber a resposta, mas precisava formular a pergunta.
— Mas por que queriam me matar?
Harry o surpreendeu ao lhe dizer:
— A você não, a Stephen.
Enid soltou o fuso e deixou de fingir que estava fiando.
— Em seguida resultou evidente que exercia uma grande influencia sobre
seu primo, e que era incorruptível. — Harry olhava para MacLean enquanto
falava. — Stephen se deixava influenciar com facilidade, e os russos temiam
que voltasse a levá-lo ao lado inglês. Conhecia muitos agentes russos.
Provavelmente conhecia outros traidores ingleses, e não podiam se permitir
que te desse nomes. Então planejaram assassiná-lo, e se você caísse ao
mesmo tempo, tanto melhor.
— Lembro que caminhava por uma rua, discutindo com Stephen. Pensei...
temi... Stephen sempre foi um insensato, sem mais moral que um gato de
beco. Temi que tivesse traído a Inglaterra. E isso que não tenho precisamente
simpatia aos ingleses.
— Sabia— disse Harry, — mas pensei que, uma vez que tivesse expresso
sua lealdade a Throckmorton, se manteria firme.
MacLean assentiu.
— É certo. Throckmorton é hábil para se assegurar de sua fidelidade, mas
aqueles russos escorregadios nem sequer são meus inimigos. Não são nada
para mim, e quando bebia com eles...
— Recordava vagamente um botequim cheio de homens de áspero acento
e bigodes de pontas caídas, e recordava com muita claridade que detestava
sua arrogância e a maneira em que Stephen cortejava a seu chefe.
— Os russos são um punhado de bodes cheios de superioridade.
Harry sorriu e assentiu.
— A princípio detestava aos russos porque acreditavam competir com a
Inglaterra. Agora que os conheci, se trata de algo pessoal.
MacLean assentiu. As lembranças iam a sua mente enquanto Harry falava.
Harry franziu o cenho e acariciou a superfície da taça esculpida.
— Eu te seguia quando se produziu a explosão.
O coração de MacLean deu um salto.
— Por quê?

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— Me pediu que os seguisse, a você e a seu primo. Alguém queria lhes


ver.
— Sim... e isso me dava mau pressentimento. — Inclusive agora seguia
dando. — O que você viu? O que sabe?
— Estava discutindo com Stephen. Ele tratava de te fazer calar, de dizer
algo.
MacLean recordava essa cena. Deus, agora a recordava.
— Tinha uma lista de agentes russos na Inglaterra. Queria me dizer onde
se encontrava essa lista, mas eu estava muito zangado. Não escutava uma
palavra do que me dizia. — MacLean apertou a ponte do nariz.
— Sou um condenado tolo.
— Isso não vou discutir — disse Harry.
— Ele não sabia o que ia acontecer! — protestou Enid.
Os dois homens trocaram olhares. Que Deus a benzesse, defendera
MacLean, mas se ele guardasse suas reprimendas talvez soubessem onde
estaria a lista.
— Na Crimea— seguiu dizendo Harry, — quando iam a esse encontro... era
em uma esquina de uma rua deserta, com uma desmantelada carreta e barris
empilhados. Mas ali não havia ninguém. Eu estava atrás de você. Não sei o que
Stephen viu, mas o empurrou para que se protegesse atrás da carreta e ergueu
um dos barris para jogá-lo longe...
— E explodiu nas mãos dele. — MacLean cobriu a cara com as mãos, mas
seguia vendo a terrível cena. As lembranças eram lacerantes. Lhe revolvia o
estômago ao reviver os momentos de assombro e terror. — Me empurrou sem
prévio aviso, eu não sabia por que, mas ergui a cabeça e vi...
Enid lhe rodeou os ombros com o braço.
— Não diga.
Oxalá fosse tão fácil, mas agora ele não podia conter as lembranças.
— Stephen... saltou pelos ares. A explosão me ergueu, me queimou, me
alagou de dor. Me estilhaçou a perna. Havia sangue por toda parte, de Stephen
e meu.
O açougue superava seus mais horrendos pesadelos.
Aquela era a lembrança que evitara durante tanto tempo.
As lágrimas deslizavam entre seus dedos, não podia contê-las. Enid lhe
pôs um lenço na mão. Ele se esforçava por se dominar. Em algum lugar da sala
alguém o observava.
Se davam conta de que por fim recordara, o matariam sem piedade.
Entretanto, seu primo morrera, e MacLean se sentia aflito. Vê-lo em sua mente,
saber que brincaram juntos desde crianças, que Stephen teve um final tão
atroz... entretanto...
— Não me traiu — sussurrou. — Ao final me salvou.

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Ouviu que Enid dizia com um fio de voz:


— Graças a Deus por isso.
Agradecia a Deus que ele estivesse vivo? Ou que, depois de tudo, seu
marido se comportou de uma maneira honorável? MacLean tragou saliva e
confiou em que fossem ambas as coisas. Provavelmente eram.
— Depois disso, realmente não recordo nada absolutamente.
Harry prosseguiu com seu relato.
— Estava inconsciente. O peguei nos braços e me afastei dali a toda
pressa. Pensei que ia morrer em meus braços. O levei a minha casa, chamei
um médico inglês, que sacudiu a cabeça e disse que não tinha nenhuma
oportunidade. Procurei outro médico, um árabe, que te curou e entalou sua
perna. No porto estava um dos navios de Throckmorton... essa foi a única sorte
que tive em todo aquele dia. O árabe me disse como devia te cuidar. O fiz e,
embora pouco faltou para que morresse pelo caminho, consegui te trazer de
retorno a Inglaterra.
— Quem decidiu me levar ali me fazendo passar por sua esposa? —
inquiriu Enid em voz baixa.
Harry pareceu um pouco apurado.
— Throckmorton e eu ideamos o estratagema. MacLean estava tão ferido
que ninguém podia lhe reconhecer, e pensamos que seria melhor fazer os
russos acreditarem que Stephen sobrevivera.
— Por quê? — perguntou ela.
— Uma vez que Stephen estivesse de retorno na Inglaterra e não sob a
influência de MacLean, tinha motivos para nos ocultar suas atividades
traidoras. MacLean, por outro lado, nos contaria tudo isso assim que
recuperasse a consciência. Pensamos que estaria mais seguro se passasse por
Stephen. — Harry olhou para MacLean. — É obvio, não contávamos com que
perdesse a memória.
Os dois homens permaneceram em silêncio enquanto contemplavam seu
grande dilema.
— Não importa, não é? Tanto se souber algo como se não, os russos
temem que saiba e não retrocederão até me matar.
— Não! — Enid se levantou de um salto e, em voz baixa mas enérgica,
disse: — Não vou ficar aqui esperando que o matem. Vamos pô-lo a
descoberto.
— Boa ideia, senhora MacLean — replicou Harry em tom sarcástico. —
Alguma ideia de como o faremos?
Ela ergueu o queixo e sorriu friamente.
— Vamos celebrar o funeral de MacLean.
MacLean e Harry ficaram olhando-a.
Ela os olhou por sua vez com o queixo erguido e os lábios apertados.

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Harry deu uma palmada no joelho.


— Diabos, senhora MacLean, isso é brilhante!
— Brilhante — disse MacLean em voz baixa. — Ou pelo menos... é pela
metade.
Agora Harry e Enid o olharam com fixidez.
— O dia do funeral...
— Depois de amanhã — decretou Harry. Quando MacLean e Enid se
voltaram a lhe olhar, deu de ombros: — por que esperar?
MacLean inclinou a cabeça.
— Em efeito, por que esperar? O dia de meu funeral dirão que roguei que
me enterrem com minha bolsa. Explicarão que tudo que eu considerava de
valor estava nessa bolsa. É obvio, dado que a explosão afetou minha bolsa, o
fecho de couro ficou convertido em uma massa negra e é impossível abri-lo...
Os olhos de Harry brilharam.
— A levará no ataúde, e quando nosso criminoso tente tirar isso.
— Não, isso é uma tolice, é perigoso. —Enid se inclinou para MacLean. —
Quero que o criminoso acredite que está morto e o deixe em paz. Se já estiver
morto, ninguém tentará te dar um tiro.
MacLean se inclinou para Enid.
— Dá por obvio que o criminoso é inglês, alguém que se irá e não voltará
nunca. Mas poderia ser um escocês, e, em qualquer caso, essa não é a
maneira de operar própria dessa gente. Compram, contratam a quem querem.
Vigiam e esperam. A única maneira em que posso me liberar desta ameaça é
descobrir ao criminoso e dar a seus superiores motivo para acreditar que
conheço seus nomes... e que os passei a outros.
Suas cabeças quase se tocavam; falavam em voz baixa, mas com
veemência.
— Jazerá em um ataúde e será vulnerável a um ataque — disse ela.
— Ninguém atacará a um morto, mas o espião roubará a um cadáver se
acreditar que pode impedir que essa lista de agentes acabe em mãos dos
ingleses.
— Mas em realidade não tem a lista. Enviarão a alguém mais atrás de
você.
— Talvez, mas teremos capturado a um agente e possivelmente o
possamos convencer de que confesse para salvar a vida. — MacLean olhou o
rosto cansado e inquieto de Enid. — Sabe que tenho razão. Sabe que é isto o
que devo fazer.
Enid o olhou, e então cedeu lentamente.
— Sei. Tem razão. Faz o que tenha que fazer. — Acrescentou entre dentes:
— E por minha parte farei o que tenho que fazer.

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Capítulo 25

— Pobre lady Bess. — Com um patetismo que rompia o coração de Enid,


Graeme MacQuarrie enxugou com a manga uma lágrima da face. — Nunca vi
uma mulher tão turvada. Não se afasta do lado de MacLean, não deixa que
nenhum de nós a substitua no velório.
— Sim. — Jimmy MacGillivray se levantou e olhou escada acima. — Pobre
senhora. Perder sua filha dessa maneira e, quando encontra de novo a seu
filho, morre... — Sua voz se quebrou.
Que longa e espantosa fora a jornada! Enid mal podia olhar aos homens
que tratavam de fazer frente a sua dor. E as mulheres, com seu pranto
interminável, a estavam deixando louca. Queria gritar, dizer às desventuradas
mulheres e os homens angustiados que MacLean estava bem. Simplesmente,
passou o dia encerrado em seu quarto. No dia seguinte se deitaria por seus
próprios meios no ataúde e jazeria a espera que o traidor se revelasse. Mas
dizer a verdade arruinaria o esplêndido plano de Enid... e era realmente
esplêndido.
Embora desdenhava a parte do plano contribuída por MacLean. Este
desprezava o perigo. Ela sabia muito bem que um homem que se fizesse
passar por um cadáver seria assassinado antes que abrisse os olhos.
— Ontem à noite, quando se queixava de dor de barriga e se deitou cedo,
suspeitei que passava algo mau. Esse moço nunca esteve doente. — Donaldina
ajudara lady Bess a ocultar a verdade aos outros. Agora sentia prazer em
seguir representando o drama. — E esta manhã, quando lady Bess foi vê-lo,
seu grito me gelou o sangue.
— O pobre senhor. Nunca esquecerei a visão de seu corpo na cama, frio e
pálido. —- A donzela levou as mãos à cara e soluçou.
Estava pálido porque lady Bess aplicara minuciosamente uma capa de pós
às faces dele. O cosmético não teria resistido um vigoroso escrutínio, mas lady
Bess demonstrara sua tendência a atriz.
Quando Enid se aproximou da cama, lady Bess se jogou sobre seu filho,
presa de um frenesi de dor, e se converteu no centro da atenção. As pessoas
reunidas no dormitório de MacLean retiveram o fôlego enquanto aguardavam a
confirmação de Enid. Ela contemplou o rosto imóvel, e sentiu que o pânico lhe
atendia as vísceras. Teve que tocar as faces dele e perceber seu calor para se
certificar que respirava. Só então foi capaz de representar seu papel, de se
voltar para as pessoas e fazer um solene gesto de assentimento para confirmar
a triste noticia. Seu gesto ocasionou semelhante corrente de lamentos, que ela
desejou nunca ter sugerido um funeral.
Mas de que outro modo desmascarar ao malfeitor que espreitava e
perseguia? Se não descobrissem sua identidade ela nunca poderia partir dali.

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Se não descobrissem ao assassino, MacLean nunca estaria a salvo. E ela queria


partir. Mais ainda, não queria ter que se preocupar com MacLean. Na realidade,
não queria pensar nunca mais nele.
— Em Suffolk, quando estava tão doente que se acreditava à beira da
morte, solicitou que o enterrassem com o traje escocês completo... Harry falou
com voz o bastante alta para que chegasse a todo mundo.
— Embora tivesse perdido a memória, pediu que lhe pusessem a bolsa,
sua posse mais apreciada.
Os homens e mulheres escoceses assentiram com solenidade.
— Era de seu pai — disse Rab Hardie. — Feita com a pele de um texugo
que o velho MacLean matou com suas próprias mãos. Kiernan MacLean a
levava sempre consigo.
— Jamais o ouvi dizer nada de sua bolsa — protestou o senhor Kinman.
Pobre senhor Kinman. Estava aturdido e na aparência aflito, mas Harry
havia dito que quantos menos pessoas soubessem a verdade, seria melhor, e
MacLean esteve de acordo.
Graeme se encarregou de explicar a ele.
— A bolsa de um escocês é uma de suas posses mais importantes. Nela
guarda uma mecha do cabelo de sua mãe ou uma carta de sua apaixonada.
Enid olhou de soslaio para Harry e viu que este também a estava olhando
do mesmo modo. Sem ser conscientes disso, os escoceses estavam
contribuindo para enganar e dirigir ao traidor.
A jovem os estimulou a seguir.
— Guardava aí seus segredos?
— O senhor MacLean não tinha segredos — asseverou Donaldina. —
Nenhum absolutamente.
— Mas guardava em sua bolsa os objetos que tinha em grande apreço —
disse Graeme.
— Oxalá tivesse a bolsa de meu pobre Stephen. Oxalá tivesse podido ser
sepultado na terra dos MacLean. Oxalá tivesse podido celebrar um funeral por
Stephen. — Quando o som do pranto chegou a seu aposento, lady Catriona
baixou e permaneceu na grande sala como um fantasma que procurasse
distração no sofrimento. — Oxalá tivesse algo com que o recordar. A dor está
me destroçando. — Enxugou os olhos com o lenço.
— Pela manhã barbearei seu pobre e destroçado rosto — disse Jackson. Se
mantinha erguido, mas tremia como se estivesse a ponto de começar a chorar.
— Era um bom amo. É o mínimo que posso fazer por ele.
Enid fez um esforço para que não notasse a consternação. Se Jackson se
aproximasse de MacLean, saberia a verdade, e o camareiro era um dos
ingleses altamente suspeitos.
Então lady Bess falou do alto da escada.

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— Não. Jamais suportaria que alguém mais cuidasse dele nestes seus
últimos momentos no castelo MacLean. Eu mesma o barbeei. Está preparado.
Não lhe falta nada exceto sua bolsa.
Esta noite me encerrarei com ela em meu aposento e chorarei sobre essa
última relíquia que tenho de meu filho e meu marido. Amanhã a depositarei
sobre o pobre morto para enterrá-lo com ela. O novo acesso de pranto fez que
Enid refreasse suas próprias lágrimas. Por alguma razão, aquele pesar era
contagioso. Embora soubesse que MacLean seguia perfeitamente bem no
andar de cima, não podia evitar que os pensamentos cruzassem por sua
mente.
E se ela soubesse que MacLean se foi deste mundo? Como poderia
suportar a ideia de que aquele homem, a quem salvara quando estava à beira
da morte, já não sorria, não mostrava seu excelente humor, seu engenho, seu
sarcasmo, sua arrogância? O que faria ela se não voltasse a vê-lo jamais?
Lady Bess se dirigiu lentamente ao lado de Enid.
— Tenho que te pedir uma coisa.
Decidida a representar bem seu papel, Enid enxugou uma lágrima
inexistente, e deu uns tapinhas na mão de lady Bess.
— O que você deseje, senhora.
— Quero que presida o luto.
A respiração de Enid quase parou.
— Pre... presidir o luto? Mas, senhora, eu não tenho nenhuma relação com
MacLean...
— O ama. Isso está à vista de todo o mundo. Cuidou dele durante todos
estes meses. Fugiu com ele através da Escócia para trazê-lo para casa. Merece
a honra.
— Eu não... não posso... — Enid dirigiu a seu redor um olhar cheio de
pânico.
Os escoceses assentiram, e uns poucos sorrisos abriram caminho através
das lágrimas.
O senhor Kinman e Jackson estavam cabisbaixos e com as mãos
enlaçadas, mas eles também assentiram.
Só lady Catriona se ergueu quão alta era, escandalizada.
— Isso é uma sugestão vergonhosa, Bess. Enid é a viúva de Stephen, e
não teve a decência de se vestir de luto por ele. Agora quer que ocupe seu
lugar no funeral de seu filho? Será que não tem nenhum sentido da decência?
Lady Bess entrou na refrega.
-—Se Enid soubesse que um homem como Kiernan vivia em qualquer
parte do mundo, o teria procurado até dar com ele. Se conformou com
Stephen, e agora merece ocupar seu lugar como a esposa que ele desejaria ter.
Enid tratou de intervir.

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— Por favor, senhoras...


Lady Catriona soltou um bufido de raiva.
— Esta Enid não poderia ter feito nada melhor que se casar com meu
Stephen. Não merecia a um homem como meu Stephen.
Enid pensou que a longa e terrível jornada dificilmente poderia piorar, mas
o fez bruscamente. Uma vez mais lady Catriona mostrara as unhas e arranhara
lady Bess.
— Será uma honra para mim presidir o luto no funeral de MacLean.
Obrigado por me pedir isso.
Jogando a cabeça atrás, Enid se encaminhou à escada.
Ao fim e ao cabo, não lhe faria nenhum dano fingir que chorava por
MacLean. Sabia que não estava realmente morto. No dia seguinte, se tudo saía
bem, ela estaria no trem a caminho de Londres e nada poderia fazer que
retornasse a Escócia. Nada. Jamais.
Entrou em seu dormitório, fechou a porta e se apoiou nela. Olhou a seu
redor. O quarto tinha mais ou menos o mesmo aspecto que o primeiro dia:
muito grande, muito esplendido, muito régio. Se não voltasse logo para seu
encargo de enfermeira e dama de companhia, chegaria a pensar que tinha
direito a viver com semelhante esplendor.
A noite estava próxima, e uma das donzelas tinha prescindido de sua dor o
tempo suficiente para acender todas as velas, Mas as mulheres como Enid não
tinham criadas. O que mais a assustava era o conhecimento (sim, disso estava
quase segura) de que, se desejasse, poderia ter MacLean por marido. Certa
faceta dela, eternamente nostálgica, queria que ele a abraçasse e lhe dissesse
palavras como "para sempre", tal como o fez nas montanhas escocesas. Como
tinha expresso seu desejo de fazê-la sua?
"O sangue de suas veias, a medula de seus ossos. Nunca irá a nenhuma
parte sem saber que estou dentro de você, te apoiando, mantendo viva. Formo
parte de você. E você é parte de mim. Estamos unidos para sempre."
Se voltou de cara para a porta e acariciou a suave madeira. Naquele
momento ele disse completamente a sério, e a emocionou o escutar.
O dormitório de MacLean estava somente duas portas corredor abaixo.
Nas semanas que ela levava vivendo ali, sempre procurou não se inteirar de
onde se encontrava. Mas naquela manhã teve que entrar no quarto com a
família e o pessoal para contemplar seu corpo imóvel, e agora sabia onde
dormia ou, aquela noite, onde perambulava de um lado para outro. Sem
necessidade de que ele dissesse, sabia que a inatividade estava pondo
MacLean nervoso. Imaginava que desejava se informar sobre o estado das
pessoas. Enid não duvidava que seus desejos ondulavam como fumaça pelo
corredor e atravessavam sua porta, a ordenando que o fosse ver.
Ela queria ir a seu encontro. Exigia que ela fosse.

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Apoiada na porta, esfregou a testa contra a fria madeira.


E não para lhe perguntar como passou o dia ou quem se comportou de
uma maneira suspeita, mas sim porque MacLean a levaria a sua cama e a
castigaria por todas as noites em que ela se manteve separada dele... como
seguia estando.
Enid se afastou da porta, tirou o vestido negro e colocou uma das camisas
de dormir de algodão branco, abotoada na frente e adornada tão só com uma
minúscula agulha vertical que lhe fechava o decote. Se ia vê-lo aquela noite,
sabia que a submissão de uma só noite não o satisfaria. Ele esperaria mais.
Veria sua presença como uma capitulação, e pensaria que a tinha em seu
poder para o resto de sua vida.
Ela precisava resistir... mesmo que a resistência a fizesse sofrer.
Apagou as velas, afastou os pesados cortinados da janela e contemplou a
paisagem iluminada pela lua. Seu dormitório dava para o mar. Por debaixo dela
o muro do castelo descia reto para os escarpados, e as ondas troavam em sua
base, açoitando as rochas. A agreste e magnífica paisagem harmonizava com
MacLean e seu clã de loucos e excêntricos. Colou a face ao vidro e se
abandonou ao pequeno gozo da agradável sensação. Queria ir à cama de
MacLean. Desejava o prazer que ele dava. A necessidade fazia que lhe doesse
e pulsasse o ventre. Cobiçava o corpo de MacLean com uma paixão insaciável
que não poderia se satisfazer jamais.
Lá abaixo, o mar subia e baixava com um ritmo primitivo, cada movimento
uma tentação. Do outro lado do corredor, MacLean a chamava, seu desejo era
uma ordem cálida e brumosa.
Ela partiria no dia seguinte. À margem do que acontecesse, partiria no dia
seguinte. Que mal...? Mas não. Precisava retornar a Inglaterra. Se ficasse ali
perderia tudo, a dignidade, a honra e o amor próprio. Comparada com o
desejo, que valor tinha a dignidade? A honra... já perdera quando deitou com
um homem sabendo que não era seu marido. E o amor próprio... como teria
dito lady Halifax, Enid sobrevivera e prosperara quando outras mulheres se
teriam entregue ao desespero. Se Enid decidia passar a noite com MacLean,
seguiria tendo uma elevada consideração para si mesma.
Soltou as cortinas e se dirigiu à porta.
Era uma tola.
Jamais voltaria a ter aquela oportunidade.
Poderia ficar grávida.
Se voltou para o quarto.
Mas não fazia nem dois dias que sua regra finalizara. Não podia ficar
grávida.
Sua bata era um esplêndido objeto de brocado cor vinho tinto, jogada ao
revés na cadeira. A pegou e introduziu os braços nas mangas.

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Ia a seu encontro.
Seus pés descalços não produziam som algum enquanto avançava
apressadamente pelo penumbroso e deserto corredor para seu objetivo. A
porta deveria estar fechada com chave para evitar o possível descobrimento
de que MacLean estava muito vivo, mas o trinco girou facilmente. Ele a estava
esperando. Empurrou com suavidade a porta aberta, deslizou no interior do
dormitório e fechou atrás dela.
Deitado na enorme cama com os braços atrás da cabeça, MacLean a
observava com o rosto limpo de pós, da única fonte de luz do dormitório. As
cortinas azul celeste estavam corridas, deixando a noite do outro lado das
janelas. As paredes forradas de carvalho afogavam qualquer som procedente
dos demais quartos. O amplo tapete de suntuosas cores azul e rosa
emprestava ao dormitório um silêncio sobrenatural, um silêncio no qual Enid
ouviu sua própria respiração apressada.
A luz das velas deveria ter suavizado seu semblante, mas o certo era que
parecia tão severo e áspero como os escarpados que estavam ao outro lado de
sua janela. Os finos lençóis brancos abraçavam seu longo corpo. Só vestia uma
saia escocesa, por cima da qual seu peito se elevava em reluzentes ondulações
de músculo recoberto de encaracolado pelo loiro dourado. As velas jogavam
sombras através de suas feições curtidas e sulcadas de cicatrizes. Os olhos
verdes brilhavam com aquelas franjas douradas que semelhavam raios.
A esteve esperando, e sua resistência lhe produzira frustração e irritação.
— Fecha com chave — ordenou.
Descansava com a força em tensão de um grande felino leonado,
esperando para se equilibrar sobre sua presa. Ela moveu um braço para trás e
manuseou a chave.
MacLean permanecia imóvel, e ela compreendeu sua intenção. Não iria a
seu encontro. Ela se aproximaria sem necessidade de que ele a incitasse a
fazê-lo. Sua atitude irritou Enid. Estava zangado? Nesse caso, ela também
estava. Fora traída de todas as maneiras possíveis por quantos estavam em
condições de traí-la... e agora seu próprio corpo se converteu em traidor.
Deveria partir, em seguida, antes de ir mais à frente.
Mas não podia. Desejava tanto MacLean que o desejo nublou sua mente e
a fez dar o primeiro passo vacilante.
Imóvel na cama, ele a observava.
Seu olhar a despia, esfregava sua pele, via através da confusão de desejo
e impaciência.
Ela deu outro passo, seus pés se afundaram no macio tapete. Queria se
voltar e fugir, mas sua vontade ordenava que não o fizesse com a mesma
veemência que se tivesse dito pessoalmente. Como se atrevia a lhe dar
ordens? Por que o obedecia?

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Deu um passo mais. Seu coração pulsava com força. A tensão de seus
seios era dolorosa. Queria sorrir, suavizar sua severidade, mas os lábios
trêmulos não a obedeciam. Avançava para ele, enfurecida por seu ultimato,
irritada consigo mesma, mas o desejando com uma paixão que a impulsionava
adiante. O passo para subir ao soalho foi o mais longo que já dera.
Se deteve ao lado da cama e esperou ali que ele falasse, que se movesse.
Ele não o fez. Permaneceu imóvel, suas expectativas evidentes entre eles.
Aquela noite, só aquela noite, ela satisfaria essas expectativas. Desatou a
bata e deixou que o suntuoso brocado se deslizasse por seus braços.
O olhar de MacLean posou em seus seios. As aletas do nariz se alargaram.
Vestia uma camisa de dormir sem adornos, mas o algodão era fino e
suave, e seus mamilos elevavam a malha formando pequenas protuberâncias
que indicavam a MacLean com muita claridade seu estado de angustiante
desejo. Elevando a camisa de dormir, apoiou um joelho e ambas as mãos no
luxuoso colchão. Ele voltou a lhe olhar a cara, mas seguia sem mostrar o
menor sinal de que ia ajudá-la ou ceder.
Ela avançou até o centro da cama, onde ele estava deitado sobre um
montão de travesseiros. Inclinada, apoiando o quadril no leito, contemplou o
corpo masculino, procurando coragem, procurando inspiração. Os músculos e a
pele formosa e coberta de cicatrizes a incitavam a lhe tocar, a amar. Inclusive a
ereção que elevava a saia escocesa a chamava. Mas sabia que quando olhasse
aos olhos veria algo mais que simples desejo. Refletida neles veria obsessão,
uma pura paixão, uma loucura de insaciabilidade. Sabia por que ela padecia a
mesma demência que afligia a ele. Cheia de agitação, estendeu a mão sobre
seu peito, sobre seu coração. Pouco a pouco baixou a palma ao arbusto de pelo
loiro avermelhado e a pele. A textura de seu cabelo, o calor de seu corpo, a
energia que vibrava através dele, tudo a chamava. Tinha fome dele, o
necessitava, e por muito que o detestasse, nenhum outro homem poderia
satisfazer sua necessidade.
Aspirou fundo, conjurando seu atrevimento, e o olhou à cara.
Os olhos de MacLean tinham um brilho poderoso. Ela se entregou, e ele
não permitiria que se retirasse ou que mudasse de ideia ou que fingisse que as
coisas eram diferentes. Tinha-a em suas mãos e não a soltaria.
Sem mais demora, ele a estreitou em seus braços, a pôs debaixo dele e a
imobilizou com seu peso. Não fez o menor esforço por ser sutil; cada um de
seus movimentos aspirava a dominá-la.
MacLean havia ganho. Enid fora a ele.
Agora a convenceria que era dele.
O pânico que começava a sentir a fazia ofegar. Ela tomara a decisão de ir
ao encontro de MacLean, mas agora, quando o corpo masculino estava preso
ao dela, pensava que se precipitara.

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Tinha medo... não, estava zangada.


Ele contemplou seu rosto e viu os fragmentos de emoção, mas sua
paciência esgotara. Utilizando o joelho como uma poderosa alavanca, separou
as pernas dela. Não, a desejava tanto que nenhuma outra emoção podia existir
em seu interior. Sem preliminar alguma, MacLean pôs sua mão ali, em seu
lugar mais íntimo. A intimidade... muito cedo. E muito brusca. Ela se
sobressaltara, e quando ele amoldou com firmeza seus dedos, Enid afogou um
grito e se afastou.
Ele não ia permitir isso. O tecido de sua camisa de dormir não era nenhum
obstáculo. Encontrou a abertura de seu corpo e fez que o prazer de Enid
umedecesse o tecido. Deslizando o polegar para cima, acariciou o casulo mais
sensível da jovem, e o desejo floresceu em seu ventre. Exalou um gemido, o
suave e baixo gemido do desejo inesperado.
MacLean lhe impôs o gozo com uma mão leve, acariciando sua parte mais
sensível, prendendo fogo em suas vísceras. O algodão puxava e esfregava, e o
tecido acrescentava uma áspera textura que apressava Enid para a
gratificação. Ela não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. De uma
maneira tão rápida, sem prévio aviso... Tentou se voltar de lado, se afastar
dele. Mas não lhe dava folga. Não lhe dava pausa. Chegou a culminação, que a
voltou cega e alheia a tudo que não fosse ele e suas carícias. Potentes
espasmos de prazer a convulsionaram... então, lentamente, serenou.
Era humilhante deixar ele saber até que ponto o desejava, a facilidade
com que reagia a seu contato. Pensou que ele poderia rir, que poderia zombar
dela. Mas quando abriu os olhos viu que não estava regozijado, mas sim a
olhava com a intensa paixão de um homem extasiado, vestido de escura
ameaça e nada mais. Tirou a saia escocesa e seu membro apontou para Enid,
suas veias azuis, sua cabeça suave, rígido e exigente. Seus musculosos quadris
se moveram contra o ventre feminino, a acautelando, a preparando. Enquanto
a retinha, débil e ainda cativa, foi desabotoando a camisa, um botão atrás do
outro até a borda inferior. Os batimentos do coração de Enid tinham começado
a se tranquilizar, mas agora voltaram para a carga. Ela queria protestar dos
métodos de MacLean, mas não se atrevia. Não o temia, não se tratava
exatamente de temor. Mas o homem que a abraçava com tanta firmeza era um
conquistador, um guerreiro que superara grandes obstáculos para se reunir
com sua dama. Não permitiria nenhum desafio.
E ela... ela não tinha feito mais que o desafiar. Riu dele, lhe desobedecera,
desdenhara. Aquela noite não ficava nada entre eles salvo a luta do macho e
da fêmea pela supremacia. O resultado era inevitável, mas ela precisava lutar...
lhe tocando meigamente as cicatrizes do queixo e a face ou acariciando com
um dedo o lóbulo da orelha.
MacLean tinha os olhos meio fechados, era uma criatura entregue à

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sensualidade. Baixou a cabeça e lhe mordeu ligeiramente o lábio inferior, e


quando ela emitiu um grito, lambeu a pequena ferida. O fôlego cheirava a
hortelã e tinha sabor de luxúria. Obedecendo a uma tácita ordem, lhe deslizou
as mãos entre o cabelo e ofereceu a boca aberta. Ele a beijou como se fosse
devorá-la, inclinando os lábios para que encaixassem exatamente com os seus,
e introduziu a língua até o mais fundo. As lágrimas afloraram aos olhos de Enid;
dadas suas preferências, não deixaria a ela nada de si mesmo.
A beijou nas pálpebras, deslizou os lábios por sua face e a língua dentro da
orelha.
Ela acariciou os amplos ombros, embargada pela consciência primitiva de
que aquele varão estava absorto em subjugá-la. E ela estava disposta. Sim,
completamente disposta.
Era estranho. Quando pensava em si mesma, imaginava que era uma
mulher de caráter, forte e reta. Quando ele a tocava, descobria todos os
lugares brandos, os lugares femininos, aquelas peças que a desarmavam e
relaxavam.
O fôlego masculino que brincava com sua pele a estremecia enquanto ele
deslizava a mão sob a camisa de dormir e a amoldava a um seio. O polegar
acariciava o mamilo, a parte dianteira e a seu redor, e a ela entrecortava a
respiração. Elevou o joelho e separou o lado da bata com os botões, despindo
uma parte de seu corpo. Se erguendo por cima dela, ele contemplou as formas
meio cobertas e grunhiu.
Sim, grunhiu literalmente, como uma fera ante um banquete.
Se inclinou para aplicar a boca ao mamilo, e o prazer que ela sentia
enquanto o sugava a impulsionou a envolver o quadril dele com a perna e se
esfregar contra ele.
MacLean riu baixinho. Agora o condenado ria contra sua pele, e sua mão
percorria a espinha dorsal até a fenda inferior. A atraiu mais para si, apertando
com firmeza a coxa entre suas pernas e lhe dando prazer com as longas e
lentas carícias pela frente e a fricção leve e pausada com os dedos por trás. Ela
arqueou as costas e sacudiu a cabeça sobre os travesseiros.
Ele sugou o outro mamilo. O êxtase foi aumentando até alcançar umas
proporções insuportáveis. Cada parte do corpo de Enid vibrava, exigia, e não
obstante, quando tentava afastar a cabeça, ele agarrava seu pulso e a
mantinha imóvel contra o colchão. Então lambia a palma, e os nervos sob a
pele saltavam alvoroçados. Os gemidos surgiam das profundidades de sua
garganta.
A fez calar.
Por um só momento de prudência, ela saiu do fundo poço sibarítico 8 e
compreendeu que MacLean tinha razão. Não podiam gritar de prazer. Ninguém
8
Que se caracteriza por vida luxuriosa.

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que passasse pelo corredor podia saber que MacLean vivia, e os sons do amor
jamais poderiam ser confundidos com outra coisa. então, com exceção de suas
apressadas respirações e seus tênues e inevitáveis gemidos, deviam
prosseguir suas escaramuças em silêncio.
Lhe lambeu os dedos um após o outro.
Tudo aquilo era uma expressão do que Enid sentia por ele. O calor, a
fricção, o diabólico movimento que trazia o paraíso à terra. Enquanto ele a
submetia ao prazenteiro assalto, ela experimentava uma crescente sensação
de euforia na mente e no corpo. O silêncio aumentava no dormitório. O domínio
que cada um mantinha de si mesmo era quase afrodisíaco. Enid o queria em
cima dela, dentro dela. Tinha necessidade de que a enchesse.
— Agora — sussurrou, atormentada por essa necessidade. — Agora!
O muito uva sem semente lhe fez caso omisso. Ansiava possuí-la. Enid
sabia, porque notava os movimentos espasmódicos de seu membro contra ela.
Mas se retinha, atormentando-a para demonstrar quem estava à frente. A
beijava nos lábios, mas não deixava que lhe devolvesse os beijos. Mordiscou
sua orelha e riu entre dentes quando ela gemeu. Agarrou ambos os seios e
acariciou os mamilos com um movimento circular uma e outra vez. Introduziu
dois dedos e imitou o coito. Imitou tão bem que ela o mordeu no ombro,
transportada por um deleite animal.
A disciplina de MacLean não deu mais de si. Pondo-a de barriga para cima,
separou suas pernas e a montou. Não havia o menor indício de elegância em
sua conquista. Encontrou a entrada do corpo feminino e o invadiu, empurrando
com força as tenras malhas, procurando um lugar para si mesmo sem
consideração à delicadeza de Enid. Não lhe importava. Seu corpo cedia porque
ele o tinha umedecido com a mestria de seu tato.
Enid adorava. O calor, a luxúria, o desespero, Abriu ao máximo as pernas
e rodeou os quadris dele com elas, se entregando por completo.
Ele empreendeu um ritmo rápido, um movimento soberbo.
Lhe cravava as unhas nas nádegas, ansiosa de tudo o que ele tinha para
lhe oferecer.
Como um semental disparado, retrocedia e investia, dando tudo em um
êxtase dos sentidos, da vontade. Ela gemia, um gemido baixo e contínuo que
transmitia com toda claridade seu desespero. O momento culminante ia se
aproximando, mas sempre estava fora de alcance. Ele nunca reduzia o ritmo o
suficiente para que ela o agarrasse, mas estava ali. Muito perto.
Completamente selvagem.
No mesmo instante em que ela acreditava que não poderia suportar mais,
lhe agarrou os quadris, se deteve, se abateu por cima dela. Por um instante
estremecedor, a olhou com fixidez, os raios dourados de seus olhos ardentes
como um ferro de marcar.

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Ela queria fechar os olhos, os proteger daquele olhar, mas não podia.
Ele seguia atacando. Os espasmos se apoderaram de seu pênis. Seu
esperma encheu Enid, um grande esbanjamento de intemperança e domínio.
Então arremeteu de novo. Uma e outra vez. O momento culminante, atrasado
durante muito tempo, chegou para Enid como uma chicotada. Pôs a mão na
boca para afogar o grito que os trairia, enquanto se movia para frente e para
trás com um ritmo que prefaciava o prazer de Enid além da razão, além da
moderação, além do suportável. Seu corpo se ondulava e estremecia, cada
músculo de seu corpo estava em tensão e nas profundidades de seu ventre os
espasmos acumulavam força até que chegou a uma cúpula de satisfação tão
sublime que nunca voltaria a alcançá-la.
Exceto com Kiernan, sabia que com ele poderia.
Os travesseiros estavam disseminados, os lençóis separados do colchão e
umedecidos por seus esforços. A entreperna de Enid pulsava, e a evidência de
seus orgasmos respectivos lubrificava seus corpos como unguento
cerimonioso. Os espasmos remeteram pouco a pouco. O movimento de
MacLean foi se fazendo mais lento até que cessou. Pegou o queixo de Enid e o
ergueu para ele. Ela não se recuperou. Nunca poderia se recuperar, mas tinha
suficiente domínio de si mesma para afastar o queixo. Se levantou pela
metade, desejosa de evitar o penetrante olhar masculino, sua exigência tácita.
Não a permitiria levantar. Nem sequer se retiraria de seu corpo.
Enid procurava alguma maneira de pôr fim à situação.
Um dos dois precisava dizer algo.
Um dos dois devia tomar a iniciativa.
Foi ela, naturalmente.
— Te amo — sussurrou. — Te amo.

Capítulo 26

Nas primeiras horas da manhã, antes que amanhecesse, quando as velas


acesas durante a noite chispavam e a escuridão envolvia o castelo com seu
manto de veludo, Enid entrou em ação. Lenta, muito lentamente, se liberou do
abraço de Kiernan, que estava dormindo. Mal respirando, se moveu pouco a
pouco até a beira da cama e desceu primeiro um pé e logo o outro. Uma vez no
chão, tateou em busca da bata, com o ouvido atento se por acaso ele
despertasse e visse que ela escapara.
Mas ele estava exausto depois de seus esforços, e imaginava que a
conquistara de uma maneira irrefutável.
Deslizando com sigilo, colocou a bata e, quando chegou à porta, pôs a
mão na chave e rogou para que o fechamento estivesse engordurado. Seu
coração pulsava com força enquanto as cavilhas retrocediam, mas embora

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MacLean se movesse um pouco, voltou a imobilidade do sono.


Por um momento Enid desejou voltar para ele, se meter de novo na cama
a seu lado e deixar que sua vontade a guiasse. Mas não podia fazer tal coisa.
O corredor estava deserto. A porta se abriu e fechou atrás dela, e correu a
seu quarto. Se deitou, subiu as roupas de cama até o queixo e contemplou a
escuridão. Seguia com os olhos abertos quando amanheceu e a luz dourada do
sol penetrou pelos interstícios das cortinas. Então se ergueu e permaneceu
sentada na cama.
Conhecia Kiernan. Era um homem enérgico e de moral estrita, e deixou
clara suas intenções. Embora ela não esperasse um filho dele, a queria em sua
cama. Demonstrou isso vigorosamente uma e outra vez. Enid não supôs nem
por um momento que lhe oferecia a posição de uma amante. Tal era a retidão
daquele homem que a irritava como uma praga. Nenhum homem tinha direito
a ser tão honorável, e especialmente não o tinha o primo de Stephen. Não
obstante, MacLean a queria por esposa, e ela, que passou a vida procurando
um lar, uma fortuna, uma família, um casal, poderia ter nele todas essas
coisas.
O mero oferecimento a enchia de pânico. Estava mais assustada agora
que quando se declarou o incêndio, ou quando se deu conta que ele não era
seu marido, ou quando o trem se deteve. E por quê? Nem sequer compreendia
a si mesma.
Mas tinha medo. Quando pensava no plano de apanhar o malfeitor e o
perigo que espreitava MacLean, desejava com tal intensidade estar longe e a
salvo em Londres que, como uma menina, fechou os olhos e imaginou que
podia ir ali por arte de magia.
Uns golpes na porta a fizeram sair de seu sonho.
— Enid —disse lady Bess,— é hora de nos preparar.
Afligida pelo ressentimento, Enid golpeou com o punho o travesseiro.
Lady Bess estava ali para se certificar que Enid não desistira. A dama era
uma mulher inteligente.
— Enid. — Lady Bess golpeou a porta com mais força. — Prometeu que
presidiria o enterro, recorda?
— Sim, minha senhora — replicou Enid, e se maravilhou da clareza de sua
própria voz.
Certo que, da última vez que falou, o fez com bastante clareza: "Te amo",
dissera a MacLean.
Tratando de evitar a lembrança, se apressou a descer da cama. "Te amo."
Poderia ter dito algo com mais probabilidades de lhe causar problemas?
MacLean acreditava ter ganho tudo, posto que ganhou seu coração.
Mas não ganhou nada, e ela somente podia imaginar sua ira quando
despertasse aquela manhã e descobrisse que ela se foi. A surpreendia que não

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tivesse arrepiado a todos os habitantes do castelo e arruinado seu plano


enquanto ia feito uma fúria para seu aposento.
Lady Bess chamou de novo.
— Me deixe entrar. A ajudarei nos preparativos.
Enid fez girar a chave, abriu a porta e franqueou a entrada a lady Bess.
Enquanto a dama entrava apressadamente no quarto, Enid viu que
superou a austeridade de seu traje negro e parecia terrivelmente jubilosa.
— Que contente estou de que esta farsa quase tenha terminado. Estou
cansada de me preocupar com o menino e por você. —Olhou com atenção o
rosto de Enid e acrescentou: — Parece como se não tivesse pregado olho em
toda a noite.
Enid tocou a pele sob os olhos e notou que estava torcida e dolorida.
— Não, não pude dormir.
Embora não pelas razões que lady Bess imaginava.
— Bom, a pessoa que preside o enterro deve responder a seu papel. —
Com uma enérgica resolução, lady Bess vestiu Enid com uns objetos de luto de
lã leve e negra, pôs na cabeça um chapéu negro preso com uma agulha e um
véu negro ante a cara. Também pôs sob a manga um lenço negro. — Embora
não terá verdadeira necessidade de lenço, pode cobrir a cara com ele e
ninguém saberá que não está chorando.
Enid fez uma cortês inclinação de cabeça.
— MacLean já está no ataúde?
— Pois claro que sim, vestido com o tartán dos MacLean e a bolsa de seu
pai. Aquele homem estaria orgulhoso dele por ser tão valente, e orgulhoso de
você também, por ter ideado um estratagema tão inteligente. — Lady Bess
colocou um véu negro ante a cara e acompanhou Enid escada abaixo,
enquanto lhe sussurrava: — Mas temos que iniciar este funeral, porque não
podemos esperar eternamente. Mais cedo ou mais tarde, Kiernan terá
necessidade de urinar.
A Enid não divertiu de forma alguma a linguagem franca de lady Bess, e
tampouco notou o penetrante olhar que a dama lhe dirigia.
A capela era simples e antiga, e estava abarrotada de gente. Todos
permaneciam em pé, e cada um soluçava ruidosamente ou enxugava os olhos
avermelhados. Os servidores estavam nas últimas filas e saudaram com
inclinações de cabeça a lady Bess e Enid quando avançaram pelo corredor.
Donaldina conseguiu parecer afligida e forte ao mesmo tempo.
— Essa anciã poderia ter feito fortuna na cena londrina — murmurou lady
Bess a Enid. — Olhe, a sua direita. A família MacQuarrie completa. Faça uma
inclinação de cabeça ao senhor. Ah, parece triste. Tem muito afeto a Kiernan,
certamente, mas já verá que é manha de criança quando descobrir o embuste.
Aí está Graeme, e Rab a seu lado. Posto que os ingleses não só são nossos

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convidados mas também os principais suspeitos, colocamos o senhor Kinman


na primeira fila, junto com Harry e Jackson.
Enid dirigiu um olhar penetrante a Harry. Estava pálido e ainda inseguro
por causa da ferida de bala, mas permanecia em pé ao lado dos outros dois
homens.
As faces do senhor Kinman tinham a cor do pergaminho. Olhava o ataúde
e sacudia a cabeça com regularidade, ao mesmo tempo que movia os lábios.
Ela interpretou o que dizia: "Não posso acreditar".
Jackson vestia um traje negro, bem engomado e de impecável corte. Tinha
as mãos enlaçadas ante o abdômen. A expressão de seu rosto era
apropriadamente sombria, e olhava o chão.
— E no outro lado da primeira fila — suspirou lady Bess — temos lady
Catriona.
A miúda e roliça mulher se vestia de negro absoluto, como todo mundo,
mas conseguia ter um aspecto mais dramático com a adição de uma enorme
quantidade de rendas e um véu que se estendia do vasto chapéu ao chão.
— Suponho que você não poderia lhe dizer que se vá — disse Enid
secamente.
— Temo que não, mas a verdade é que acreditei que não viria. — Lady
Bess tocou o crucifixo de ébano que pendia de seu pescoço. — De todos os
modos, é melhor que esteja presente. Nosso pastor é velho. O senhor
Hedderwick viu crescer aos meninos, por isso falará de Stephen tanto como de
Kiernan. É obvio, branqueará totalmente o caráter de Stephen. A morte tende a
fazer isso pela gente.
Enid ocupou seu lugar no banco da família MacLean, na frente de lady
Bess. Saudou cortesmente a Catriona com uma inclinação de cabeça.
A dama lhe respondeu com um bufido desdenhoso.
— Acho que é Kinman— sussurrou lady Bess.
Enid a olhou sobressaltada.
— O que?
— Kinman é nosso malfeitor. É muito franco para ser real. Essa sinceridade
excessiva o converte em suspeito.
Enid protestou, consternada.
— OH, não. O senhor Kinman não.
— Harry recebeu um balaço no ombro por defender MacLean. — Lady Bess
olhava para frente enquanto falava em voz baixa. —- O camareiro é muito
insosso para que lhe interesse a intriga. Então tem que ser Kinman.
O patriotismo e a exasperação fizeram Enid dizer:
— Poderia ser um escocês.
Lady Bess apoiou a cabeça no ombro de Enid, como se a emoção a
embargasse.

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— Acredito que é muito possível que seja assim, mas um inglês está à
frente.
Assombrada pela admissão de lady Bess, Enid aspirou fundo e exalou. Os
nervos atacavam as vísceras. Era certo. Tudo que lady Bess dizia era certo.
Pela primeira vez se via obrigada a reconhecer que um dos homens aos que ela
conhecia tão bem era um assassino. Enquanto o pastor, vestido de negro e de
rosto severo, avançava com passo cambaleante, depois de entrar por uma
porta lateral junto ao altar, Enid olhou de novo ao senhor Kinman, Harry e
Jackson. Hoje enfrentaria ao traidor e saberia que, quem quer que fosse, tentou
matar, a ela e ao MacLean, a sangue frio e em três ocasiões diferentes.
A congregação guardou silêncio enquanto o senhor Hedderwick iniciava
seu discurso.
Enid não queria olhar para MacLean deitado no ataúde. Se o visse,
recordaria a noite passada e toda sua perversidade, todos seus prazeres, toda
a irritação, a luxúria... sua própria traição a si mesma.
Naquela loucura de prazer, dissera: "Te amo ". Seus dedos tremiam
enquanto secava as palmas úmidas com a saia. Se agora pensava em sua
impetuosa confissão; poderia desmaiar. Se pensava em MacLean e em como a
bolsa repousava sobre seu corpo, uma tentação para um assassino desumano,
sua cabeça estalaria.
Então, olhou dissimuladamente a seu redor.
A capela foi levantada tanto tempo atrás que os degraus de pedra que
conduziam ao altar estavam desgastados. Uns belos vitrais se elevavam para o
céu. Aos lados do pulpito, um pulpito tão antigo que se tivesse ouvidos teria
escutado séculos de sermões, se elevavam uns candelabros de ferro com
círios.
O ataúde estava colocado no centro, onde a luz da manhã incidia sobre o
corpo imóvel.
MacLean parecia assombrosamente... morto.
— Esta manhã tornei a lhe empoeirar a cara — murmurou lady Bess ao
ouvido de Enid.
A jovem desviou a vista. Decidira não pensar em MacLean naqueles
momentos. Embora soubesse a verdade, não gostava de vê-lo naquelas
circunstâncias. Por falso que fosse o funeral, de todos os modos a recordava
todos os funerais que perdera.
Menos de um mês atrás morrera lady Halifax, e Enid vertera sinceras
lágrimas por ela... durante umas poucas horas. Até que procurou consolo nos
braços de MacLean, foi expulsa por um incêndio e a enviaram a Escócia. Enid
mal pensou na idosa desde aquela primeira noite, e entretanto... Sentira um
grande afeto por lady Halifax. Em um momento determinado imaginou que
teria a oportunidade de assistir a seu funeral, escutar os hinos e rezar uma

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oração. Quase podia ouvir a voz áspera de lady Halifax lhe dizendo: "Enid, o
Senhor a escutará em qualquer lugar que reze, então não me venha com
desculpas".
Com a cabeça inclinada e as mãos entrelaçadas, Enid rezou por lady
Halifax e tentou não fazer caso da opressão que sentia na garganta.
As lágrimas pugnavam por brotar. A lembrança de lady Halifax lhe
provocava o pranto.
Enid tragou saliva e olhou para MacLean, vestido com uma camisa branca
bem engomada e gravata de renda e saia escocesa com o tartán de sua
família. "OH, Kiernan - perguntou em silêncio. - Como pode esconder sua
vitalidade atrás dessa pose de morto?"
Antes que lhe escapasse um soluço, se apressou a pensar em outra coisa.
Em seu marido, claro, em Stephen. Agora o pastor estava recordando
Stephen, falava de sua valentia e do sacrifício que fez por seu primo no
momento da explosão. O pastor recordou que Stephen fora um moço
encantador que contribuíra com felicidade e consolo a sua mãe viúva.
Lady Catriona chorava ruidosamente.
Stephen foi um moço travesso, risonho, sempre disposto a participar dos
jogos e conduzir a sua equipe à vitória. Brincava a respeito de seus grandes
atributos e sempre foi um favorito das damas, tanto jovens como velhas.
Enquanto o pastor falava, na mente de Enid se formou uma imagem de
Stephen. O certo era que, quando o conheceu, foi encantador. Enormemente
encantador. Gostou muito de uma órfã, uma moça que vivia um pesadelo
interminável, e a ensinou a rir.
Por isso se casou com Stephen. Porque com ele aprendeu a rir.
Ah, a risada não durou muito, mas durante umas breves e esplêndidas
semanas viveu o prazer do presente e o amou com todo seu coração. Agora ele
não retornaria jamais. Depois de nove anos de solidão, de dias nos que
amaldiçoava seu nome, de noites nas que se negava a recordar que realmente
houve bons tempos... ele se fora para sempre deste mundo.
— Meu Deus — sussurrou.
— ... e lhe sobrevivem sua amada mãe, lady Catriona MacLean — disse o
pastor em voz trêmula e monótona, — e sua fiel esposa. Enid MacLean.
Que estranho era descobrir que a morte de um marido delinquente era
quase tão tremenda como a morte de uma amada mentora.
Enid sorveu pelo nariz, tratando de dominar suas errantes emoções, mas
uma lágrima deslizou por sua face. Discretamente, introduziu o lenço por
debaixo do véu e a enxugou.
Lady Catriona, a seu lado, a tocou com o cotovelo, e quando Enid a olhou
de soslaio, a mulher lhe dirigiu um olhar tão maligno que Enid se aproximou
mais de lady Bess. Por que lady Catriona estava zangada? Aquele era o funeral

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que desejou para seu filho. Enid se vestia de negro, chorava por Stephen...
mas, naturalmente, Stephen compartilhava o serviço religioso com MacLean.
MacLean... através das lágrimas que enchiam seus olhos, o ataúde parecia
dançar. Queria que MacLean se levantasse, que demonstrasse que estava vivo!
— Catriona sempre quis Stephen todo para si — disse lady Bess, em voz
tão baixa que quase era inaudível. — Não pode suportar que você o tenha nem
sequer um momento.
O pastor elevou os braços para o céu.
— Oremos. Roguemos a nosso Pai que receba a Stephen em seu seio...
Nosso pai.
O pai de Enid.
Outro funeral ao qual não assistira. Outra tumba jamais visitada. Seu pai.
Ah, esse foi um homem que não mereceu o menor respeito nem carinho. Sim, a
manteve e educou quando pôde deixá-la no asilo. Ela teria morrido ali, é obvio,
como a maioria dos meninos internos. Em vez de fazer isso, a levou a um
internato e a abandonou. As demais meninas iam a casa pelo Natal e durante
os meses de verão, mas Enid ficou um mês atrás do outro, um ano atrás do
outro. E embora, à medida que ia crescendo, compreendia por que estava
condenada a viver em vazios e ressoantes corredores e isolados dormitórios
coletivos, jamais poderia perdoar a seu pai que tivesse sido tão fraco para
deixar a sua filha tão tristemente desamparada quando era ele quem cometeu
o pecado.
Jamais voltaria a ser tão fraca como ele fora... mas o certo era que fora.
Enquanto aquilatava todo o horror dessa verdade, cobriu o rosto com as mãos
vestidas em luvas negras. O dia que dormiu com MacLean na choça das
montanhas e não teve em conta para nada as consequências. Pior ainda... a
noite anterior, e embora sabia que frequentemente a gravidez se produzia em
um momento do mês que não correspondia, sucumbira de novo ao atrativo de
MacLean. A noite anterior não só se entregou a ele uma, a não ser três vezes,
ao desenfreio e ao prazer.
Exalou um trêmulo soluço. Então, o homem que foi seu pai não foi mais
que uma criatura como ela mesma, impulsionada por paixões que não era
possível dominar. E queria dizer a ele, dizer que o compreendia... mas não
podia fazê-lo. Ele estava morto; desaparecera para sempre, e ela, jamais o
veria.
Seus joelhos fraquejaram e caiu sobre o genuflexório. Suas mãos tremiam
ao mesmo tempo que procurava o lenço sob a manga.
Enquanto o tirava dali lhe chegaram as palavras do pastor.
— Falar de nosso senhor, Kiernan MacLean, é falar de um homem que se
regia pela honra.
Enid sentiu uma pontada de dor tão intensa que por um momento ficou

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sem respiração. MacLean jazia no ataúde.


Mas não estava morto. Ela sabia que não estava.
— Nosso senhor cuidou de nós, de todos e cada um, com um profundo e
constante sentido do dever e, mais ainda, com um afeto sincero, com autêntico
amor.
Amor? Enid sacudiu a cabeça. Amor não. Não por parte dele.
— Kiernan MacLean nunca deu sua confiança, sua amizade ou seu amor
com facilidade mas uma vez que os dava, a gente podia contar com ele para
sempre.
Para sempre. "Formo parte de você. E você é parte de mim. Estamos
unidos para sempre." Enid soluçou de novo, desta vez com mais intensidade, e
levou o lenço aos lábios para conter os gemidos que ameaçavam brotar como
uma corrente de aflição.
Lady Bess esfregou as costas de Enid, se inclinou para frente e lhe
sussurrou:
— Muito bem.
— Amado filho. Querido por nossa irmã Enid...
O pastor olhou para Enid jogando fogo pelos olhos, como se soubesse que
passara horas nos braços de MacLean, o beijando, o amando.
O amando.
O peito de Enid doía, a garganta doía, seus olhos ardiam e lágrimas de dor
se deslizavam, uma atrás da outra, por suas ardentes faces.
Amor. O amava, e sabia que não deveria se abandonar ao sentimento.
Sabia que a única coisa que podia se desprender de um amor como aquele
seria aflição. Ao longo de sua vida ninguém a amou jamais o suficiente para
ficar com ela. Se amava MacLean, se casava com ele, algum dia teria que
enfrentar a essa verdade. Algum dia as disputas os separariam, o abandono, a
morte, porque ninguém ficava jamais com ela.
— Enid... — Lady Bess pôs a mão sobre o ombro trêmulo da jovem. — Está
bem?
Enid não estava bem. Se sentia angustiada, chorava pelas relações que
nunca existiram, que jamais existiriam... chorava por si mesma. Amava a
MacLean. Se não partisse logo, esse amor que a prendia se faria mais profundo
e cresceria rapidamente, daria o coração e tudo que ela era a MacLean. Então
passaria a vida esperando que morresse ou a abandonasse. Nunca vira um
amor que merecesse a dor no final.
Nunca.
Precisava partir.

MacLean jazia no ataúde, imóvel, em guarda, esperando que o assassino


desse um passo... e furioso com Enid. Sem poder fazer nada mais que

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aguardar. O desafio da jovem o obcecava. A noite anterior, e pela primeira vez,


desde sua chegada a casa, dormiu de um modo profundo e agradável. Afirmou
seu direito sobre aquela mulher que lhe pertencia.
Enid compreendeu que seu lugar estava junto a ele. Não brigaria mais
com ele. Se adaptaria a sua nova vida e se comportaria. Ou assim MacLean
acreditou. Na capela, ouvia os soluços das mulheres e o ruído que faziam os
homens ao sorver pelo nariz. Uma das mulheres, sobretudo, chorava como se o
ar que respirava lhe fizesse mal nos pulmões, e por um grato instante
imaginou que era Enid, que sentava à frente. Era preciso que sentasse à frente.
Quando pensava nela não tinha em conta seus antecedentes nem seus
defeitos. Só recordava que o salvara quando estava à beira da morte, sua
valentia ante o perigo, a amabilidade para sua família e o prazer que lhe
davam as coisas simples. Todos os traços de seu caráter honrariam aos
MacLean. Imaginá-la vivendo longe, indo de um quarto de doente a outro,
sempre a disposição de algum inválido, o enfurecia.
Enid merecia o melhor. E o teria, porque ia casar com ele.
Ela admitira por fim que o amava. Era certo que ele forçara essa decisão,
mas Enid teve necessidade de se confessar, de compreender suas próprias
emoções antes que pudesse iniciar ali uma nova vida. Não obstante, ela fugira.
Se não precisasse representar seu papel naquela farsa, teria ido em sua busca
para obrigá-la a voltar com ele. O pastor deixou de pregar. MacLean se
concentrou enquanto os reunidos faziam fila para passar ante o féretro 9. Não
podia ver, mas aguçou seus demais sentidos, atento a uma tosse culpada,
farejando para perceber um suor devido ao nervosismo. Os sons das pegadas
passavam. Na cabeceira do ataúde, uma mulher se deteve e soluçou como se
seu coração estivesse rompendo.
Não. Não podia se tratar de Enid. por que choraria ela com semelhante
paixão?
Queria se levantar, ver, mas as pessoas prosseguiam com o desfile
interminável. Sua atenção se concentrava sobretudo na bolsa, fixada ao redor
da cintura com uma correia de couro. Se Enid e Harry faziam seu trabalho
corretamente, o espião acreditaria que dentro daquela bolsa estaria a possível
informação que Stephen deixara para MacLean.
As mãos o tocavam. Algumas pessoas comentaram que ainda estava
quente. Outras exclamaram que parecia como se estivesse dormindo. E houve
quem compadeceu a sua mãe e aquela pobre moça que o amava tanto e que
chorava com tal desconsolo.
De modo que era Enid quem estava chorando. Por quê? Imaginava acaso
que ele a deixaria partir? A fizera cruzar em seus braços a soleira do castelo

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Andor onde nos triunfos romanos se levavam os despojos dos vencidos. Caixão Mortuário,
Ataúde, esquife.

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MacLean. Ela era sua mulher. A capela ia ficando vazia e não acontecia nada.
No fundo, MacLean quase confiava secretamente em que o funeral não
servisse para desmascarar ao traidor. Então teria uma desculpa para manter
Enid a seu lado, para mantê-la a salvo.
Entretanto, sabia que o perigo seguiria existindo e que nunca teriam
liberdade para lutar e se amar como deveriam. Aguardava pacientemente. A
maior parte da cauda desfilou. Foi se fazendo o silêncio na capela enquanto as
pessoas se encaminhavam à grama onde teria lugar o banquete fúnebre. Só o
pranto de Enid não remetia.
A mãe de MacLean lhe sussurrava palavras de consolo, e ele somente
podia imaginar a incredulidade de lady Bess. Nem sequer ele podia acreditar
que Enid chorava por ele, que chorava por um homem que não estava morto...
mas, se não era por ele, por quem chorava? Temia que não acharia graça na
resposta. Então uns dedos deslizaram por seu abdômen, agarraram a bolsa e
cortaram a correia de couro. MacLean abriu os olhos e agarrou o braço.
Por um momento de incredulidade, Jackson ficou imóvel, o olhando, com
os olhos muito abertos e cheios de horror. Então lançou um grito.
MacLean o agarrou pela garganta.
Jackson retrocedeu, derrubando o ataúde, de modo que MacLean caiu
sobre o chão de pedra... e voltou a quebrar uma costela. Por um instante
essencial se dobrou por causa da dor. A recuperação de Jackson foi a mais
rápida que MacLean já presenciara. O camareiro compreendeu o estratagema e
se dispôs à lutar. De joelhos, cortou o ar com a navalha de barbear, seus frios
olhos azuis cheios de determinação.
Tinha os reflexos de um assassino.
Lady Bess agarrou Enid e a separou do ataúde. O pastor exortou aos
homens para que deixassem de brigar. Dos dois assistentes ao funeral que
ficavam, um era o lacaio que saiu da capela correndo e pedindo ajuda a gritos.
A outra pessoa, uma criada, se apertou contra a parede.
Com uma mão nas costelas, MacLean esquivou Jackson, retrocedendo, e
então se lançou contra ele pelo flanco. Veloz como uma serpente, Jackson
cortou o ar a escassa distância da garganta de MacLean. Este voltou a o
agarrar pelo braço, mas não podia vencê-lo com uma só mão. Por isso, apesar
da dor que lhe produzia se mover e respirar, MacLean deixou de apertar as
costelas e golpeou Jackson na cara com a mão livre.
O murro rompeu o nariz do camareiro.
Jackson golpeou a sua vez, tratando de alcançar MacLean na costela
quebrada. MacLean saltou para trás, soltando a sua presa. Jackson lançou outro
talho. MacLean estendeu uma perna e deu uma rasteira. O agarrando de novo
pelo braço que sustentava a navalha, reteve Jackson, sabendo que se não
ganhasse aquela briga, voltaria definitivamente para o ataúde.

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Oscilaram, travados por um breve momento em uma prova de força.


Jackson dirigia todo seu peso para MacLean. Este exercia pressão sobre o
camareiro. O pó branco se desprendia da cara de MacLean e formava uma
nuvem. A tensão estremecia os braços de ambos os homens, mas MacLean
entrecerrou os olhos para olhar Jackson e lhe sorriu. Um leve sorriso confiado,
destinado a fazer que a confiança de seu adversário cambaleasse.
— Está em minha terra. Não pode fazer o que quer.
Jackson respondeu encostando a navalha na garganta de MacLean.
Enid lançou um grito.
Mas MacLean o tinha bem agarrado, e aquele talho foi o último grande
esforço de Jackson.
— Não pode ganhar, se renda — disse MacLean.
Estava retorcendo o braço de Jackson para trás, o dirigindo a sua
garganta, quando Enid, com os olhos avermelhados e a expressão frenética,
surgiu atrás do camareiro. Elevou o alto candelabro de ferro que estava ao lado
do altar e o descarregou contra a parte posterior da cabeça do traidor. A força
do golpe lançou Jackson para frente. A navalha de barbear roçou a garganta de
MacLean.
Jackson caiu ao chão, inconsciente.
MacLean voltou a segurar as costelas e contemplou Jackson, que tinha a
cara coberta pelo sangue que lhe fluía do nariz e da cabeça partida.
Tocou o próprio pescoço e retirou os dedos vermelhos e pegajosos. Aspirou
fundo.
— Diabos, mulher! — gritou. — O estava fazendo bem. Agora, graças a
você, tenho a garganta cortada.

Capítulo 27

— De nada! — exclamou Enid. Aquele homem era um descarado ingrato.


Para Enid parecia mentira que tivesse chorado por ele. Não gostava
absolutamente. — Por que está apertando o peito? Quebrou as costelas, não é
certo?
— Não tantas!
Lhe indicou o banco da primeira fila.
Ainda com a mão no flanco, MacLean se aproximou mancando e tomou
assento.
— Estava ganhando a briga.
— Não o bastante rápido — replicou ela com brutalidade.
Harry apareceu na capela, e ao ver que o casal intercambiava gritos,
desapareceu.
Enid se voltou para lady Bess, que permanecia ali com a boca aberta.

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— Pode me conseguir um rolo longo de atadura?


Lady Bess assentiu em silêncio.
— E por favor, mãe, que alguém recolha esse lixo do chão — acrescentou
MacLean, apontando ao inerte Jackson.
— Em seguida — disse lady Bess.
— Uma briga na capela, na casa de Deus. — O senhor Hedderwick sacudiu
a cabeça coberta por uma peruca branca. — Sempre foi muito bom menino,
MacLean. O que aconteceu a você?
Enid jogou o véu para trás e olhou com curiosidade ao ancião clérigo. Vira
aquele homem levantar do ataúde, e a única coisa que lhe ocorria dizer era
que não deveria ter brigado?
— Me acompanha, senhor Hedderwick? — Lady Bess o puxou pelo braço.
— Vamos procurar ataduras para as costelas de Kiernan. — Olhou à
boquiaberta criada. — Todos nós vamos procurar ataduras para as costelas de
Kiernan, não é?
A criada fez uma reverência e se afastou a toda pressa pelo corredor para
dizer aos outros que MacLean estava vivo.
— Impedirei que alguém entre — lady Bess disse a seu filho.
— Obrigado, mãe — replicou ele entre dentes.
— Não estaria ferido se não brigasse — ouviu Enid dizer em voz de queixa
ao senhor Hedderwick enquanto lady Bess o conduzia ao exterior da capela.
Com as mãos nos quadris, Enid olhou para MacLean. O pó branco
salpicava sua roupa e cobria de uma maneira irregular sua cara. A olhou
furioso e fez uma careta de dor ao mesmo tempo. E estava vivo.
Graças a Deus, estava vivo.
— Não precisava brigar!
— Como diabos acreditava que ia terminar isto? — MacLean tocou o corte
gotejante da garganta. — Que aspecto tem este corte?
Enid o examinou.
— Não é mais que um arranhão, mas se quer posso fazer um torniquete.
A ideia de passar uma atadura muito apertada ao redor do pescoço a fez
sorrir malignamente.
— Muito divertido.
Lhe estendeu o lenço.
— Aplica-o à ferida. — Sem lhe dar fôlego, Enid voltou para a discussão. —
Pensei que Harry o apanharia.
— Por que Harry está em perfeitas condições?
A lógica de MacLean enfurecia a jovem.
— Pois o senhor Kinman.
— Devo recordar que não sabíamos se Kinman era o canalha e não lhe
dissemos que estava vivo.

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— Muito bem. De acordo! Sempre tem razão.


Ele fez caso omisso de seu sarcasmo.
— Queria que não o esquecesse.
A criada chegou correndo pelo corredor, com um rolo de atadura na mão.
Olhava para MacLean como se visse um fantasma e, depois de dar o cilindro a
Enid, escapuliu tão rápido como pôde.
— Podia ter se machucado — disse Enid.
— Me machuquei.
Que estúpido era.
— Machucar de verdade — explicou ela. — Esse homem poderia ter te
matado!
— Teria chorado por mim de novo?
Ela não quis responder a essa pergunta.
— Por que chorava, Enid? — inquiriu ele com uma suave insistência. —
Sabia que não estava morto.
Enid lhe desatou a gravata manchada de sangue.
— Tire a camisa desse lado.
— Algum dia terá que me dar uma resposta.
Ela resolveu não lhe fazer caso.
— Que costelas?
MacLean devia sofrer fortes dores, porque deixou de insistir e lhe
respondeu:
— Não sei. A julgar pela dor, poderiam ser todas.
Seu peito nu recordava a Enid com muita facilidade a noite passada, e o
quadriculado de cicatrizes lhe recordava o perto que esteve da morte não
muito tempo atrás... e naquele mesmo dia. Ela precisava partir dali. Antes que
voltasse a chorar. Antes de que cedesse à tentação. Antes que arruinasse sua
vida.
Mas primeiro... ajoelhada ante ele, deslizou os dedos por sua pele,
sondando em busca de fraturas. Sabia que dera com uma quando ele aspirava
o ar com brutalidade. Não se queixava, mas era terrível vê-lo sofrer daquele
modo.
Com briosos e destros movimentos, Enid procurou o extremo do cilindro de
ataduras.
— Pelo menos duas estão quebradas. Não lhe doerão tanto quando estiver
enfaixado.
Ele pôs as mãos sobre as dela.
— Passei uma boa temporada envolto em bandagens, moça, e você me
pôs isso. Não parece se dar conta disso.
Ela se deteve.
— Cala — murmurou.

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— O que? — MacLean elevou de novo a voz.


Perfeito. Era mais fácil enfrentar a sua irritação que a sua dor.
— Passei a noite te convencendo que seu lugar está entre meus braços, e
me diz que cale?
Enid chegara ao final do cilindro de atadura.
— O que quer que diga?
— Sim! Quero que diga sim.
— A algo a me propor? — se inclinou para ele e aplicou a bandagem na
caixa torácica. — Segura isso.
Ele pôs a mão sobre a atadura.
— Estou te propondo casamento.
Por fim dissera.
— Casamento?
— Sim, a instituição do sagrado casamento, pelo qual duas almas se unem
para sempre.
Céu santo. Suas palavras evidenciavam uma paixão exagerada, umas
palavras que poderiam ser tomadas como uma brincadeira e fazer mal... e as
dizia a sério! Queria que fosse sua esposa, e não o envergonhava
absolutamente as dizer com toda seriedade. Mas ela... ela não podia se casar
com MacLean. Ele poderia fingir agora que se esquecia das circunstâncias de
Enid, mas nenhum homem as esqueceria verdadeiramente jamais.
A atadura passou por cima dos dedos de MacLean e segurou o extremo da
atadura em seu lugar.
— Me chamou de bastarda.
— Estava zangado. Pedi perdão.
— Bom, solta agora. — Quando ele o fez, Enid, faixa na mão, passou os
braços a seu redor, rodeando com a larga fita de algodão sua caixa torácica. —
Me perguntou se me deitei com você por dinheiro. Me chamou de puta.
— Estava muito zangado... e pedi desculpas.
Os dedos de Enid tremiam.
— Então, cada vez que esteja zangado, me chamará de puta bastarda?
— Quando estiver zangado, gritarei e descarregarei minha indignação
sobre você, e você me responderá do mesmo modo, mas sei que não é uma
puta e me tem sem cuidado que seus pais não estivessem casados.
Tentou elevar seu queixo para olhá-la aos olhos.
Ela retrocedeu. Teria se posto a correr, mas estava unida a ele por uma
bandagem e por umas palavras pronunciadas com paixão. "Te amo."
— Me senti doído. Pela primeira vez em vários meses, soube quem era, e
me dava conta que a mulher que me guiara através da escuridão não era
minha esposa. Temi que tivesse me levado de propósito a umas conclusões
errôneas, e não podia suportar. — Acariciou-lhe um lado do pescoço. — Fui um

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tolo, Enid.
— Sim, foi — replicou ela, os lábios trêmulos, de novo à beira das lágrimas,
de chorar por uns insultos recebidos dias atrás. Mas quem a insultara era
MacLean, e a dor remetia somente para se reavivar.
— Nunca voltarei a te ferir assim, Enid. — MacLean se moveu, deslizou do
assento.
Alarmada, ela tratou de o empurrar para que voltasse para seu lugar:
— O que está fazendo?
— Quando te pedi desculpas, me disse que me perdoava, mas não o fez.
— Em pé sobre o chão de pranchas, a olhou. — Então vou me ajoelhar para te
pedir perdão.
— O que? Não! — Não queria que a cara de MacLean estivesse tão perto
da sua!. —- Estou enfaixando sua caixa torácica.
— Não, está chorando.
Fazendo uma careta de dor, se inclinou para lhe examinar a cara. Ela
enxugou as lágrimas com a mão livre.
— Peço perdão por te fazer umas acusações tão errôneas. Neste sagrado
lugar, na presença de Deus, prometo que não voltarei a fazer isso jamais, que
essas coisas nem sequer me passarão pela mente.
Ela evitou seu olhar.
— Para mim encarna a coragem, a compaixão e o amor.
— De acordo. De acordo! — "Deixa de falar assim, deixa de parecer
sincero, deixa de empregar palavras como prometo". — Agora sente no banco
para que possa terminar de te enfaixar as costelas.
Ele não se moveu.
— Me acredita?
— Acredito. Sempre diz a verdade.
Mas sua maneira de dizer sempre a verdade era quase um defeito.
— Me perdoa?
Perdoar? Ah, isso... isso não era fácil. Mas ele não estava disposto a
renunciar. Não retrocederia até que o tivesse perdoado, até que ele não tivesse
dúvida de seu perdão. E podia Enid fazer isso?
MacLean a ferira com sua malevolência, lhe dera uma punhalada no
coração cheio de ternura. Não obstante... quando pensava nisso, Enid
compreendia como um homem que descobria que lhe mentiram a respeito de
sua identidade podia reagir de um modo violento. Jamais voltaria a feri-la como
o fizera. Lhe fizera uma promessa, e ela confiava em que a cumpriria.
Teve que respirar fundo várias vezes antes de poder responder.
— Perdoo.
— Desta vez seriamente?
— Seriamente.

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— Se casará comigo?
— Sente-se no banco. Não posso enfaixar suas costelas até que o faça.
— Casará comigo? — ele voltou a lhe perguntar em um tom que recordava
a Enid a paixão com que se amaram.
E voltaria a perguntar uma e outra vez, até que o convencesse que não se
casariam. Precisava terminar sua tarefa e partir dali.
— Por que comigo quando pode se casar com uma garota escocesa como
Deus manda, carregada de dinheiro e se converter em um senhor de clã
escocês como é devido, e ter com ela uns apropriados filhos escoceses?
— Porque não seria feliz.
Ela aguardou. Por fim se dava conta do que era que motivava MacLean.
Chegara à conclusão de que com ela seria feliz. A aceitava tal como era, e as
dúvidas e temores que acossavam a Enid não existiam para ele.
Sim, precisava partir dali.
— Sente-se no banco, por favor. Meus joelhos doem por estarem no chão.
A obedeceu, mas o fez com cuidado, porque qualquer movimento lhe
produzia dor.
Enid puxou a bandagem para que as costelas fraturadas voltassem para
seu lugar e o enfaixou com mais energia. Ao chegar ao final, esticou a atadura
tudo o que pôde e a atou.
— Sente-se melhor assim?
— Muito melhor. — Antes que Enid pudesse se levantar, ele deslizou os
dedos sob o véu que pendia atrás da cabeça, e elevou seu queixo com a outra
mão para olhá-la aos olhos. — Põe muito empenho em se liberar de mim.
Um homem normal pensaria que ele é o típico culpado, mas você se
contradiz, por um lado me grita e me faz frente, e por outro se agarra a mim
com uma paixão extraordinária.
Com que seriedade a olhava, seus formosos olhos não só com o brilho da
posse, mas também de um sentimento mais profundo. Enid tinha a sensação
que podia desaparecer na alma daquele homem e descansar ali, a salvo e
unida a ele, para sempre. Para sempre. Prometera a ela que viveriam juntos
para sempre. Ela quase podia acreditar.
No chão, a suas costas, Jackson começou a se queixar.
Enid se separou bruscamente de MacLean.
— Não! —- Tratou de agarrá-la, mas se deteve.
O momento passou, e ele sabia.
Salva. Enid respirou aliviada. A volta a si de Jackson a salvara do passo
mais tremendo e impetuoso que jamais poderia ter imaginado.
MacLean se levantou pela metade.
— Maldito vilão! Há uma corda enrolada no ataúde. Me deem isso e o
atarei.

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— Sei fazer um nó — replicou ela, irritada.


A corda caíra do ataúde derrubado, e Enid, sem a menor vacilação, atou
os pulsos de Jackson à costas e logo aos tornozelos.
MacLean sorriu pesarosamente.
— Onde aprendeu a fazer isso?
— O senhor Gerritson me ensinou. Estávamos acostumados a castrar
bezerros.
Quando Jackson abriu os olhos, MacLean riu entre dentes.
— A julgar por sua expressão de pânico, diria que Jackson a ouviu.
— Estupendo. Quando vi essa navalha em sua mão... — Sua voz tremeu ao
recordar aquele momento de terror.
MacLean a pegou pela mão e a acariciou.
— Uma navalha de barbear é uma boa arma para um camareiro. Ninguém
que o visse com ela suspeitaria.
Jackson falou do chão.
— A única coisa que procurava era a bolsa.
— E teria me degolado se soubesse que estava vivo — disse MacLean.
Jackson se voltou para olhar MacLean.
— Então a bolsa era uma armadilha. Depois de tudo, não continha nada.
MacLean sorriu.
— Claro que continha algo.
Enid elevou bruscamente a cabeça.
— O que? Não!
— Depois que ocorresse o funeral, me pus a pensar. Stephen sabia que a
bolsa era minha posse mais apreciada e que nunca me separaria dela. Se
queria me dar uma mensagem, certamente usaria de algum modo essa bolsa.
— Um sorriso inexorável acompanhava as palavras de MacLean. — A explosão
selou o fecho, então abri a costura e pus a bolsa do reverso.
Enid o compreendeu em seguida.
— O interior é de pele de texugo curtida.
— Nessa pele Stephen escreveu os nomes de todos os espiões da
Inglaterra. — O sorriso se desvaneceu de seus lábios. — Incluídos lorde e lady
Featherstonebaugh, os nobres que recomendaram ao Jackson como camareiro.
Enid recordava ao casal de velhos que eram tão fofoqueiros... uns amigos
nos que Throckmorton tinha plena confiança.
— Está me dizendo que são espiões?
— E muito importantes.
— Enviou uma mensagem a Throckmorton?
— Fiz ontem à noite. A estas horas já deve estar informado. — MacLean se
levantou e foi para Jackson. — Tentou me matar, e, o que é mais importante,
tentou matar a minha dama.

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— Eu não disparei contra vocês no corredor — Jackson se apressou a


replicar.
— Acredita seriamente que vamos acreditar nisso? — exclamou Enid.
— Causei o incêndio, detive o trem, disparei em você quando corria ao
castelo, mas não o fiz no corredor. — Jackson sacudiu a cabeça, indignado. —
Não sei quem te disparou, mas foi um tolo.
Enid tocava o lenço negro que levava no pescoço.
— Você foi o autor desse disparo, Jackson— lhe disse. Pois, se não fosse, o
assassino seguia solto e ela e MacLean continuavam em perigo.
— Se não tivesse passado nada, teria baixado a guarda e... — Jackson
olhou para MacLean, que tinha os olhos entrecerrados. — E eu teria descoberto
a lista.
MacLean o tocou com a ponteira do sapato.
— Teria me matado. Se não foi você o autor do disparo, quem foi?
Uma voz feminina falou da porta ao lado do altar.
— Era um moço estúpido e se converteu em um homem estúpido.
MacLean e Enid giraram sobre seus calcanhares e viram lady Catriona... e
o fuzil cuja culatra apoiava no ombro.
Enid deu um inútil passo atrás.
— Meu Deus — disse MacLean com a voz rouca. — O que está fazendo, tia
Catriona?
— Estou fazendo justiça a meu menino.
Lady Bess havia dito que Catriona estava como uma cabra. Ao que parecia
era certo, e o coração de Enid pulsava disparado no peito enquanto
contemplava o sinistro olho negro no extremo do cano.
— Nenhum de vocês merecia servir de tapete a meu Stephen para que se
limpasse os sapatos. — O cano oscilava entre MacLean e Enid. — Foi um bom
menino, e nenhum de vocês apreciou a sorte que tinham ao estar a seu lado.
O pulso dela não tremia o mínimo com a arma nas mãos.
MacLean se moveu lentamente, pegou a mão de Enid e a conduziu ao
banco. Se sentaram juntos para apresentar um alvo menor.
— Sabe disparar?— sussurrou Enid.
— Cada temporada abate um cervo — respondeu MacLean em voz baixa.
Jackson se contorcia como um verme, tratando de se afastar.
— Disparará contra nós como no corredor?
Enid mal podia acreditar que aquela mulher miúda fosse capaz de matar a
alguém de uma maneira tão cruel.
— Teria acertado, mas esse Harry se meteu no meio.
O rancor de lady Catriona era insondável.
— Harry não lhe fez nenhum dano, tia Catriona — disse MacLean em um
tom suave.

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— Era seu amigo, e, além disso, tive que disparar nele ou teria me
descoberto. — Lady Catriona entrou uns passos na capela e apontou para
MacLean. — E estou desejando te matar. Estava com Stephen quando morreu,
Kiernan. Provavelmente foi você quem o matou.
MacLean estava claramente estupefato.
— Como pode pensar semelhante coisa?
Lady Catriona apontou para Enid.
— Mas você... você é a que realmente traiu Stephen. Foi sua esposa. Se
apareou com seu assassino.
O protesto era inútil, mas Enid precisava tentar.
— Kiernan não matou Stephen, lady Catriona.
— Talvez não. Talvez só fracassasse na tentativa de lhe salvar. Mas você
fornicou com Kiernan, e quando Stephen mal esfriou em sua tumba. Os odeio
muito. Não sei contra qual dos dois vou disparar... mas sei que o que fique
sofrerá. — O dedo de Catriona se esticou no gatilho.
MacLean empurrou Enid ao chão e se jogou sobre ela com um grunhido de
dor.
Soou um disparo, e antes que seu eco se extinguisse, lady Catriona gritou.
O fuzil caiu ao chão com estrépito.
— Te peguei, cadela - disse Harry.
Harry. Graças a Deus, ali estava Harry.
MacLean olhou para Enid. Ela parecia se encontrar bem, e ele também
estava, apesar da dor das costelas. Os dois se levantaram com cautela para
observar por cima do genuflexório. Harry sustentava o braço de lady Catriona
retorcido a suas costas, e a mulher emitia uns gritos entrecortados enquanto
tratava de se liberar.
— Disparou em mim a sangue frio — disse Harry. — É hora de cobrar por
isso.
— Sim— replicou MacLean. Era hora de enviá-la com sua família, uma
família acostumada a tratar com pessoas como ela, pois contava com muitos
desenquadrados. — Encerrem na torre norte. Amanhã a jogaremos daqui.
Harry se voltou para a multidão reunida a suas costas.
— Leve-a, Kinman! — ordenou, empurrando lady Catriona. — E que
Graeme e Rab levem ao Jackson da capela. — Então respondeu a uma
pergunta inaudível: — Não, não pode falar com MacLean. Não vê que está
ocupado?
Enquanto MacLean e Enid se levantavam e sacudiam o pó, os dois
escoceses e um senhor Kinman sorridente, mas silencioso levaram Jackson.
Enid teria fugido com eles, mas MacLean não estava disposto a permitir. Não
depois de uma conversação tão insatisfatória. A agarrando pelo braço, a
obrigou a se deter.

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— Ontem à noite disse que me amava.


Ela fez uma careta de dor, como se a tivesse golpeado.
— Mas não desejo te amar. — Sua voz se fez mais aguda, sinal inequívoco
de que estava nervosa. — O amor não é mais que uma emboscada, uma
armadilha, e não pode fugir o bastante longe para se liberar da dor e da pena.
— Também há alegrias no amor. Ter a alguém a seu lado, os sussurros de
noite, criar aos filhos, o carinho que se estende até a eternidade...
— Não se estende até a eternidade. Esse é o problema. Discutiríamos, me
abandonaria por ser quem sou.
— Jamais... faria... isso — replicou ele, enunciando cada palavra com
claridade.
— Ou faria... ou morreria!
Este arranque surpreendeu a MacLean. Contemplou o ataúde e logo a
olhou.
— Minha saúde é razoavelmente boa, querida, e qualquer homem que
tenha sobrevivido a uma experiência como as minhas demonstrou sua
resistência.
— Ou talvez esgotou sua sorte! — Enid apertou os punhos. — Estou tão
zangada por tudo o que ocorreu...
— Parece como se sempre estivesse zangada — replicou ele, começando a
compreender, — mas não é isso, não. Está assustada.
Ela empalideceu.
— Não.
— Tem um medo atroz. — A contemplou, vendo pela primeira vez a
verdade oculta atrás de sua atitude desafiante, o desdobramento de engenho
para se defender, seu sarcasmo. —Medo de ter um homem e de ter
expectativas, quando a vida é incerta no melhor dos casos. A formaram para
que espere o pior do amor.
— O pior é a verdade — replicou ela com brutalidade, e, dando a volta,
começou a se afastar dele.
MacLean a seguiu.
— Não é certo. No momento em que a vi, a quis desesperadamente. Nem
sequer podia levantar a cabeça do travesseiro, e fiz de tudo para te beijar.
Jamais poderá existir outra mulher assim para mim.
Ela avançou com mais rapidez, dando tropeções pelo tapete que cobria o
corredor.
— Você também me ama. — MacLean sabia. — Ontem à noite veio a meu
encontro. E disse que me amava.
— Sim, te amo. Mas não posso ficar aqui, e não ficarei.
Ele nem sequer sabia que podia dizer essas palavras, mas quando ela se
voltou e se pôs a andar pelo corredor, disse impulsivamente:

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— Te amo, Enid.
Ela não diminuiu o ritmo de seus passos, e cruzou a porta.
— Te amo!
Não devia ter ouvido. Correu atrás dela.
Lady Bess cruzou em seu caminho e o agarrou pelo braço.
— Deixa que se vá.
— Não posso.
Enid o abandonava. Ela era tudo o que ele queria. Os dois se amavam, e o
abandonava!
— Se a obrigar a ficar, só terá cinzas nas mãos. Deixa que se vá.
A MacLean resultava muito difícil fazer caso a sua mãe, mas até então
nenhuma de suas tentativas teve êxito. Puxou lady Bess até que pôde ver a
figura de Enid que fugia. Então, embora o alagasse a dor, se deteve e
contemplou como se afastava, lhe rasgando o coração. Tinha a respiração
entrecortada e a voz gutural quando se dirigiu a sua mãe.
— Me diga, é certo que se casou com o inglês para que não tivesse que
me casar com uma herdeira?
— Sim, carinho, é certo.
Ele olhou a sua bela e excêntrica mãe, que seguia o agarrando pelo braço.
— Por que não me disse isso?
— É um menino preparado. Sabia que entenderia antes ou depois.
Pegou a cabeça entre as mãos e lhe beijou o cabelo.
— Obrigado, mãe.
Sorridente, a dama tirou um charuto do decote.
— Enid também é uma garota esperta. Antes ou depois compreenderá que
o ama.
— Antes? —inquiriu ele, necessitado de consolo, por indeterminável que
fosse.
— Ou depois — confirmou ela.

Capítulo 28

O advogado londrino se inclinou da maneira mais respeitosa quando Enid


saiu da escrivaninha, mas ela mal se deu conta. Estava estupefata. Tinha nas
mãos uma carta de lady Halifax, escrita poucos dias antes de sua morte, e uma
caixa forrada de veludo que continha a escova com o reverso de prata que
utilizava para escovar o cabelo de lady Halifax.
Aturdida, dirigiu seus passos para o Hyde Park. Se sentaria em um banco e
a leria ali, e então tudo se esclareceria. Sem dúvida então saberia o que fazer.
— Meu senhor, meu senhor!
O sol da tarde brilhava nos ombros nus de MacLean enquanto afundava a

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pá na terra do herbário recém arado e aguardava que o ofegante Graeme


chegasse a seu lado.
— O que ocorre?
— Ela voltou. — Graeme apoiou as mãos nos joelhos e esperou recuperar o
fôlego. — Enid voltou para o castelo MacLean e...
MacLean soltou o cabo da pá e se pôs a correr para o castelo.
— Está tratando com sua mãe a respeito de seu casamento! — gritou
Graeme. — Pensei que estaria interessado!
MacLean estava interessado. Mais que interessado. Entrou no castelo
como uma exalação e viu a Donaldina.
— Estão na biblioteca — o informou. — E que elegante está a senhora
MacLean!
Elegante? Por que teria Enid um aspecto elegante? Melhor seria que
estivesse cansada, como ele, depois de ter esperado durante todo um mês até
saber se a mulher de seu coração se casaria com ele. Elegante, nada menos.
Melhor seria que estivesse acalorada e suja após ter plantado um herbário
concebido como um estímulo para uma mulher que partiu a Londres para
comprar roupa e estar elegante.
Subiu a passos longos a escada, entrou no estúdio de sua mãe... e viu
Enid.
Certamente, estava elegante. Usava um vestido de viagem no último
grito, de cetim violeta escuro com um chapéu combinando adornado com uma
pluma ridícula que oscilou quando ela voltou a cabeça.
MacLean sentiu desejos de a agarrar pelos ombros e sacudi-la, mas lhe
sorriu com tal afeto que o fez se deter em seco. Lhe sorria, e ele teria jurado
que seu coração quebrado tocava uma toada de gaita de fole.
— Precisamente estávamos falando de você, filho. — Lady Bess estava
sentada ante a escrivaninha, o livro de contas domésticas aberto ante ela, e
fazia girar a pluma que tinha na mão. — Enid fez uma oferta por sua mão.
Quando estas palavras penetraram por fim em sua mente através do
atordoamento que a envolvia, MacLean olhou a sua mãe com o cenho franzido
e o semblante sombrio.
— O que?
— Fez uma oferta por sua mão — repetiu lady Bess. — Acredito que estava
certa quando disse que o faria muito feliz se casar com ela...
— Sim?
Em conjunto, as mulheres eram um gênero louco de arremate.
— Enid nos oferece um dote.
— Um dote. — MacLean se voltou para Enid. — Por Deus, mulher, não
quero saber nada de um dote. Só quero a você!
Lady Bess pigarreou e franziu o cenho.

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— De todos os modos, vamos receber um dote. Ela ofereceu duas mil


libras. Não permitirei que se case por menos de vinte.
— Vinte mil libras! — gritou MacLean. Louca de arremate. — De onde vai
tirar vinte mil libras? — Apontou para Enid. — É enfermeira e dama de
companhia.
Enid deu a entender por seu tom que se sentia insultada.
— Ofereço duas mil libras por você.
Duas mil libras! O que Enid esteve fazendo?
— Você assaltou o Banco da Inglaterra? — inquiriu, preocupado.
Enid estendeu o braço sobre o respaldo do sofá, riscando um elegante
arco.
— Nada disso.
— Parece ter conseguido certa fortuna — disse lady Bess. —- Nos ofereceu
um dote, e vamos aceitar.
— Não necessitamos um dote.
Aquilo soava como comprar um marido. Comprar.
— Não me diga o que necessitamos e o que não. — Lady Bess golpeou o
livro de contas. — Vinte mil libras nos permitiria comprar essa extensão de
terras que os MacLean tiveram que vender no ano quarenta e cinco.
Enid deu de ombros, com um delicado desdém.
— É uma lástima, porque não posso me permitir mais de três mil libras.
MacLean ficou em pé e olhou com fixidez para Enid com os braços
pendurados aos lados. As primeiras palavras que a ouvia dizer em mais de um
mês, e estavam falando de dinheiro?
Lady Bess não parecia ver nada fora do comum na cena.
— Kiernan é o senhor de um poderoso clã escocês. Vale o dobro de vinte
mil libras.
Enid o olhou da cabeça aos pés, contemplou a sujeira de sua saia e o peito
nu e suarento, e sua lasciva apreciação fez que ele se ruborizasse.
— Isso é certo, e não por seu clã.
— Sim, é um homem arrumado — conveio lady Bess. — Goza de boa
saúde, tem todos os dentes, e só umas poucas cicatrizes que lhe ficaram de
uma recente e penosa experiência. De modo que pagará vinte mil libras?
— Mãe!
Enid sacudiu a cabeça.
— Quatro mil.
— Quinze.
— Sete.
MacLean sentia desejo de atravessar a parede de um murro.
— Por que fazem isto?
Lady Bess lhe dirigiu um olhar cheio de intenção.

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— Não interrompa as negociações. Enid não se casará com você de


nenhuma outra maneira.
MacLean olhou de novo à mulher que amava. Como sua mãe havia dito,
ele era o senhor de um poderoso clã. Enid era uma órfã, filha ilegítima, e
quando ele descobriu sua verdadeira identidade, cheio de furor a acusou de ser
uma embusteira. De ser uma mercenária. De ser uma bastarda e uma puta, e a
prejudicara de tal maneira que passaria o resto de sua vida tratando de fazer
as pazes com ela.
Agora, de algum jeito, Enid descobrira o modo de contribuir ao casamento
com algo mais que seu próprio ser... e ele o permitiria.
Necessitava somente a ela.
Enid necessitava seu orgulho.
— Sigam — disse MacLean bruscamente.
— Doze mil libras — pediu sua mãe.
— Dez — replicou Enid.
Lady Bess ficou em pé, sorridente.
— Acredito que chegamos a um acordo.
MacLean exalou um suspiro de alívio.
Enid não se levantou.
— Dez mil ao longo dos próximos dez anos.
O sorriso de lady Bess se desvaneceu, e voltou a se sentar.
MacLean deu rédea solta a sua frustração, elevando a voz.
— Pelo amor de Deus, quando tiverem terminado com estas negociações,
serei muito velho para consumar o casamento!
Lady Bess se esforçou por não sorrir.
— Talvez, meu filho, seria melhor que fosse a seu aposento e se banhasse
enquanto nós terminamos.
Paciência. Devia ter paciência. MacLean cruzou os braços sobre o peito e
se apoiou no arquivo.
— Terão que aguentar o aroma. Fico aqui.
Quando elas concluíram as negociações, a tensão tinha extenuado
MacLean.
Lady Bess e Enid ficaram em pé e se deram a mão.
Lady Bess saiu e fechou a porta atrás dela.
Ele se endireitou.
— É feliz agora?
Enid não parecia feliz. Dava a impressão de uma mulher um tanto
insegura da acolhida que iam lhe dispensar.
— Você é?
— Vai se casar comigo?
— Sim.

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Ele permitiu que um sorriso aflorasse a seus lábios. Se aproximou dela e,


sem a menor consideração para o elegante vestido de viagem, a atraiu para si.
— Então sou feliz.
Beijou-a, e quando terminou de beijá-la ela já não parecia insegura e o
condenado e ridículo chapéu caíra ao chão.
— Deixe que te mostre algo. — Enid se liberou de seus braços, foi ao sofá
e pegou a bolsa. — Recorda que recebi uma herança de lady Halifax?
— Certamente. — MacLean começou a compreender.
Enid tirou da bolsa uma folha de papel coberta com uma caligrafia trêmula
e de traços finos.
—Esta é a carta que a acompanhava.
Ele deixou o papel a um lado e estreitou Enid em seus braços.
— Me diga o que diz.
Ela não protestou. Não só isso, mas sim se aproximou a ele como se
gostasse dos homens seminus e sujos.
— Lady Halifax dizia que gostava de mim e que me admirava. Me deixava
cinco mil libras, e me pedia que as ocultasse de Stephen, que as economizasse
para quando pudesse satisfazer o desejo de meu coração. Mas quando recebi a
carta, eu acabava de voltar do castelo MacLean, Stephen morrera e já não
existia o desejo de meu coração. Pensara em cultivar ervas em minha própria
terra, mas nos últimos meses esse sonho se tornou áspero e nada atrativo.
Tratei de pensar aonde iria, o que faria, agora que tinha os recursos para ser
feliz. Não sabia. Pensei que talvez devesse comprar uma casa, mas onde? E ter
uma família, mas não podia comprá-la. Amigos? Tenho amigos, mas enquanto
que eu possuo uma fortuna, eles devem seguir lutando pela vida. Passei quinze
dias perambulando por Londres, procurando a verdade em cada parque, em
cada rua, em cada jardim.
— O que a fez vir para mim?
— Li a carta de novo. Lady Halifax dizia que satisfizesse o desejo de meu
coração, e compreendi que não podia ver o que havia dentro de meu coração
se olhasse o que me rodeava em Londres. Precisava... olhar dentro de mim
mesma.
— E o que viu?
Ela ergueu a vista para olhar a ele e colocou as palmas aos lados de sua
cabeça.
— Só via a você. Não quero nada exceto a você.
Lhe cobriu as mãos com as suas.
— Se não tivesse vindo logo...
— O que? Teria ido me buscar?
— Sim. O casamento ao antigo estilo escocês nos teria bastado... até que
concordasse em fazer sua promessa em nossa capela com toda minha gente

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por testemunha.
Ela soltou uma risada.
— Supunha algo assim. Sempre olhava para trás, pensando que o veria.
Pegando suas mãos, levou uma aos lábios e lhe beijou a palma. Tinha
sabor de mulher. Sua mulher.
— Há uma coisa que não entendo.
Ela tinha os olhos entrecerrados de prazer.
— O que?
— Disse que herdou cinco mil libras.
Enid abriu os olhos e lhe sorriu com uma inocência excessiva.
— Mas prometeu um dote de dez mil.
— Ao longo de dez anos.
— Então é realmente uma mentirosa.
— E uma mercenária.
— Que investiu em mim até a última libra de sua fortuna.
— Um investimento judicioso, pois poderia cumprir com sua parte do trato
e formar uma família comigo, e sua mãe consideraria a nosso filho como parte
de meu pagamento.
— Minha esposa é uma bela e desavergonhada enganadora. — Soltou uma
risada, deslizou um braço ao redor de sua cintura, se inclinou e a beijou com
toda a paixão acumulada durante o último mês. — Uma bela, desavergonhada
e mercenária mentirosa que faria tudo para me conseguir.
— Tudo — corroborou ela. — Faria o que fosse preciso.
A olhando com os brilhantes olhos azuis, ele repetiu a promessa que fez
aquele dia nas montanhas sob o sol.
— Sou o sangue de suas veias, a medula de seus ossos. Nunca irá a
nenhuma parte sem saber que estou dentro de você, te apoiando, te mantendo
viva. Faço parte de você. E você é parte de mim. Estamos unidos para sempre.
Lhe rodeou os ombros com os braços.
— Para sempre.

Fim

Resenha Bibliográfica - Christina Dodd

Escritora americana, Christina Dodd foi criada só por sua mãe Virginia
Dodd. Sempre foi uma infatigável leitora desde sua mais tenra infância, e mais
tarde descobriu a novela romântica, narrações que têm como eixo a relação
entre um homem e uma mulher, e que além disso, em muitos casos lhe
permitia desfrutar de outra de suas grandes paixões; a história. Ela trabalhou
como projetista durante anos, e enquanto desenhava uma serraria, imaginava

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o final da novela que deixou sem finalizar a leitura durante o almoço, muitas
vezes não conseguia terminar as novelas, e além disso gostava mais de seus
próprios finais.
Casou-se, e quando nasceu sua primeira filha, disse a seu marido que
desejava deixar de trabalhar para dedicar-se à escritura, embora ela não
contava com o trabalho que supunha cuidar de um bebê. Não foi até dez anos,
dois filhos e três manuscritos depois que conseguisse vender sua primeira
obra. Em 1991 foi publicada "Candle in the window" sob seu nome de solteira:
Christina Dodd, tratava-se de uma novela sobre uma heroína cega na
Inglaterra medieval, que deve ajudar a um cavalheiro cegado. Com ela
conquistou o coração do público e, também, múltiplos galardões, incluído o
Golden Heart do Romance Writers of America e o prestigioso prêmio Rita.
Christina tem escrito várias novelas medievais, atuais, regências... Logo
descobriu que se houver algo que suas leitoras desfrutam é voltando a ver os
protagonistas que adoram em novas novelas, por isso não só inclui seus livros
em numerosas séries, mas sim além disso adora que inclusive em suas novelas
apareçam personagens de novelas independentes ou inclusive de outras
séries.

Comunidade: http://www.orkut.com.br/Community?
cmm=94493443&mt=7
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Blog: http://tiamatworld.blogspot.com/

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