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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L624a Lerner, Jaime, 1937-


Acupuntura urbana [recurso eletrônico] / Jaime Lerner. - Rio de Janeiro : Record, 2011.
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Formato: ePub
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Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-01-09604-3 (recurso eletrônico)

1. Conto brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

11-4370 CDD: 711.4


CDU: 711.4

Copyright © Jaime Lerner, 2003

Todos os direitos reservados.


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ISBN 978-85-01-09604-3
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Sumário

Introdução
Os coreanos em Nova York
O Velho Cinema Novo
A recuperação de um rio
A cidade proibida
Cáli
Não fazer nada, com urgência
Around the clock ou A cidade 24 horas
Gentileza urbana
Acupuntura pela música
Continuidade é vida
Os sons, as cores e os cheiros da rua
Uma boa reciclagem
Gente na rua
Smart car, smart bus
Compromisso de solidariedade
Você conhece a cidade onde vive?
ou Desenhe sua cidade
Instruções para fazer uma acupuntura urbana
Ócio criativo x mediocridade laboriosa
Autoestima, uma boa acupuntura
Luz é boa acupuntura
Aquapuntura
O cartão de mobilidade
Eco clock,
Arborização
Memória produzida
De parques, praças e monumentos
O guia de uma página
Colesterol urbano
Prédios com dignidade
Acupuntura do silêncio
Ramblas e galerias
Picada rápida não dói
Trompe l’oeil
Carta a Fellini
Como achar uma pessoa numa cidade
A presença de um gênio
Mercados e feiras
Um balcão de bar
Amor à cidade
Introdução

Sempre tive a ilusão e a esperança de que, com uma picada de agulha, seria
possível curar doenças. O princípio de recuperar a energia de um ponto
doente ou cansado por meio de um simples toque tem a ver com a
revitalização deste ponto e da área ao seu redor.
Acredito que algumas “magias” da medicina podem, e devem, ser
aplicadas às cidades, pois muitas delas estão doentes, algumas quase em
estado terminal. Assim como a medicina necessita da interação entre médico
e paciente, em urbanismo também é preciso fazer a cidade reagir. Cutucar
uma área de tal maneira que ela possa ajudar a curar, melhorar, criar reações
positivas e em cadeia. É indispensável intervir para revitalizar, fazer o
organismo trabalhar de outra maneira.
Muitas vezes indago a mim mesmo por que determinadas cidades
conseguem fazer transformações importantes e positivas. Encontro inúmeras
e variadas respostas, mas uma delas me parece comum a todas estas cidades
inovadoras: porque nelas se propiciou um começo, um despertar. É o que faz
uma cidade reagir.
Sabemos que o planejamento é um processo. Por melhor que seja, não
consegue gerar transformações imediatas. Quase sempre é uma centelha que
inicia uma ação e a subsequente propagação desta ação. É o que chamo de
uma boa acupuntura. Uma verdadeira acupuntura urbana.
O que se poderia classificar como exemplos de uma boa acupuntura
urbana? A reciclagem da Cannery, em São Francisco. O Parque Güell, em
Barcelona. Às vezes, é uma obra que propicia uma mudança cultural, como
foi o caso do Centro Pompidou, em Paris, do Museu de Bilbao, de Frank
Gehry, ou ainda a restauração da Grand Central Station, em Nova York.
Outras vezes, a acupuntura urbana vem por meio de um toque de
genialidade, como a pirâmide do Louvre, a recuperação do Porto Madero, em
Buenos Aires, e o conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer, em Belo
Horizonte. Coisas pequenas, como o Paley Park, em Nova York. Ou grandes
obras, como as do Instituto do Mundo Árabe, de Jean Nouvel, em Paris, e o
Museu do Holocausto, de Libeskind, em Berlim.
Em alguns casos, as intervenções se dão mais por necessidade que por
desejo, para recuperar feridas que o próprio homem produziu na natureza,
como as pedreiras. Com o tempo, estas feridas criaram uma outra paisagem.
O aproveitamento destas paisagens e das correções do que o homem havia
feito de errado é acupuntura de excelentes resultados. Um exemplo claro,
ótimo, é a Ópera de Arame, em Curitiba. Ou ainda a retirada da freeway em
São Francisco.
Aliás, os sistemas de transporte geraram boas acupunturas urbanas pelo
mundo. Elas estão presentes nas belas entradas das seculares estações do
metrô de Paris, nas estações de Norman Foster, em Bilbao, e nos tubos do
Sistema Expresso, em Curitiba.
Os coreanos em Nova York

Nem sempre acupuntura urbana se traduz em obras. Em alguns casos, é a


introdução de um novo costume, um novo hábito, que cria condições
positivas para a transformação. Muitas vezes uma intervenção humana, sem
planejamento ou sem a realização de uma obra material, acaba se tornando
uma acupuntura.
Costumo dizer que Nova York deveria erguer um monumento ao coreano
desconhecido. Os integrantes deste povo prestam um serviço extraordinário à
cidade com suas grocery stores, suas deli stores, abertas 24 horas. Estas lojas
garantem não só o abastecimento, mas também levam animação a qualquer
canto da cidade. Tem gente, luz, as pessoas se encontram quando vão fazer
suas pequenas compras. Isso tudo gera mais segurança para o local.
Além disso, funcionando ininterruptamente, as lojas estabelecem uma
referência importante na cidade. Por isso, esses coreanos desconhecidos e
seus pequenos comércios ajudam a fazer uma boa acupuntura urbana em
Nova York. Melhor do que qualquer programa de animação cultural poderia
fazer.
Muitos destes pontos hoje presentes em Nova York lembram o que
representava para Paris o mercado de Les Halles de madrugada. Durante
décadas ele foi o coração da cidade, fazendo pulsar a vida de várias gerações.
Ou lembram os mercados que funcionam a noite inteira em várias cidades do
mundo. Ainda em Paris, na rue de Seine com a rue de Bucci, uma pequena
feira é uma tradição que o tempo não apaga.
Exemplos orientais também não faltam, como o mercado de peixe de
Tóquio e sua atividade febril muito antes de o sol nascer. São lances
acontecendo na venda de polvos imensos, arraias-gigantes, numa reunião de
pessoas empolgadas e entregues à tarefa de fazer acontecer o dia que se
aproxima.
Também costumo dizer que toda essa gente que trabalha de madrugada
forma uma equipe de atendentes de uma cidade que não pode parar de
respirar. Eles constituem a verdadeira Unidade de Terapia Intensiva da
cidade.
O Velho Cinema Novo

É fundamental que uma boa acupuntura urbana promova a manutenção ou o


resgate da identidade cultural de um local ou de uma comunidade. Muitas
cidades hoje necessitam de uma acupuntura porque deixaram de cuidar de sua
identidade cultural. Um triste exemplo disso é o desaparecimento dos
cinemas municipais.
No passado, os cinemas representaram para as pessoas o espaço mágico
da fantasia, da música, da utopia, da realidade, do sonho, da esperança. E
foram também um ponto de encontro fundamental para a cidade.
Os cinemas influenciaram gerações inteiras, não só no aspecto cultural.
Eram locais onde as pessoas se encontravam, discutiam, se divertiam e,
frequentemente, levavam essas discussões para outros pontos da cidade. O
cinema difundiu a moda, a literatura, a dança, a música, a história. Nada
supera o cinema na possibilidade de registrar épocas importantes de cada
nação.
Essas salas de cinema contaram e fizeram história. Mas, em grande parte
das cidades do mundo, elas estão desaparecendo. O velho cinema de cada
cidade vem sendo adaptado para outras atividades, dando lugar a
supermercados, templos etc. Em muitos locais, o cinema tradicional foi
substituído pelas salas de shopping centers, mas isto é outra história.
A memória da cidade é o nosso velho retrato de família. Assim como não
se rasga um velho retrato de família, e o velho cinema faz parte deste retrato
de família, não se pode perder um ponto de referência tão importante para
nossa identidade.
No estado do Paraná, começamos a recuperar os velhos cinemas
municipais. Procuramos dotá-los do que há de mais moderno em
equipamentos para termos condições de criar circuitos do cinema nacional e
do cinema de arte, muitas vezes relegados pelas redes de cinemas de
shoppings.
Na verdade, o Velho Cinema Novo é um programa que reforça a nossa
identidade cultural. É uma acupuntura urbana que tenta curar-nos da perda da
memória e da nossa identidade.
A recuperação de um rio

Minha chegada a Seul, embora fosse a primeira vez, parecia não oferecer
surpresas. Mais uma antiga cidade asiática, impulsionada por uma
impressionante vitalidade, crescendo vertiginosamente na sua modernidade.
Tanto que não parecia retratar seus mais de 800 anos.
Mais uma demonstração do fazer rápido, em suas imensas avenidas e
freeways, chegando a um centro caótico onde as pessoas têm que atravessar
passagens subterrâneas, subindo e descendo, para simplesmente cruzar uma
rua. Já os carros passavam por um asfalto perfeito, quase como se
deslizassem por um tapete vermelho.
Assim foram construídas e destruídas muitas cidades, dando privilégio
aos carros. Cidades belas, históricas, com prédios e palácios magníficos em
sua arquitetura, cercados pelos automóveis, nossos dragões.
A primeira surpresa em Seul foi a de sermos chamados para referendar
uma intenção pouco comum na maioria das cidades. A prefeitura pretendia
reservar boa parte do espaço para o “ônibus de Curitiba”, criando em várias
regiões da cidade a rede de transporte coletivo já batizada de BRT (Bus
Rapid Transit).
A surpresa maior: o governo de Seul quer eliminar um macarrônico
sistema de vias elevadas no centro da cidade e recuperar um riacho, o
Cheonggyecheon, que recebia as águas que degelam nos morros. O riacho,
imaginem, fora enterrado décadas atrás para que não se visse a degradação e
a poluição deste córrego e sua vizinhança. Em cima dele foram construídas as
vias elevadas.
A intenção agora é fazer o local voltar a ser o que era, com a recuperação
do rio e a revitalização da área ao longo dele. O projeto é caro (custa muito
corrigir uma grande asneira), mas o entusiasmo do prefeito e sua equipe é
grande. A intenção deles é também abrir espaços para os pedestres (city
friendly for people). No momento em que chegamos, nos mostraram os
projetos. Todos têm uma leitura muito clara. O desenho da cidade está claro,
os morros, o rio revitalizado. Quer dizer, a cidade está na cabeça deles. Não
tenho dúvida de que logo todos os projetos serão realizados.
Em Seul também tive o privilégio de conversar com uma das pessoas
mais conhecidas da cidade, Young-Oak Kim, um filósofo formado em
Harvard que depois deixou a universidade para cursar medicina. Ao voltar, o
professor Kim ensinou filosofia durante dois anos num programa
superpopular na Coreia do Sul. É um homem muito famoso, que agora
resolveu ser repórter de temas importantes. Nossa conversa é uma celebração.
Tanta coincidência nos pensamentos e na simplicidade, síntese da filosofia
oriental.
Ele me faz um desenho da cidade. E o que me impressiona mais: ele lê a
cidade, o significado de cada região, de cada localização, de cada nome, de
maneira muito simples e concisa. Ah, se as cidades tivessem menos
vendedores de complexidade e mais filósofos!
A cidade proibida

A história nos conta que Pequim é uma das cidades mais antigas do mundo.
No início do século XV, foi transformada em duas cidades, separadas por
muros. A cidade interior abrigava a antiga Cidade Imperial, cercada por um
muro de dez quilômetros. Era a “Cidade Proibida”, onde os fossos definiam
os palácios dos imperadores. O último deles, Pu-Yi, foi deposto em 1911 e
expulso da cidade em 1924.
Mas a Pequim de hoje está descaracterizada. Não se vê mais o mar de
bicicletas que fazia parte da paisagem de antes. E em cada bicicleta havia
uma pessoa ou mais. Era uma cidade das pessoas.
Hoje, Pequim é mais um acampamento de prédios moderníssimos,
cercados de estruturas viárias enormes, freeways e os conceitos antigos de
anéis, radiais etc. Na “rosca” formada pelo segundo e o terceiro anéis, um
CBD (Center Business District). É uma cidade rodoviária.
Junto à “Cidade Proibida” e às suas áreas mais próximas, aparece a
textura de trechos pequenos da velha cidade. Uma cidade que hoje só se
reconhece nos filmes ou nos livros.
Pequim precisa de uma acupuntura para voltar a ocupar o lugar de
destaque que merece no mundo. Menos rodovias, mais cidade, mais gente,
mais bicicletas. Talvez esta seja a acupuntura necessária. Trazer de volta o
ônibus e a rua. Marcar a paisagem com suas estações. Talvez seja outra
acupuntura necessária. Que audácia! Querer fazer acupuntura nos chineses!
Cáli

Uma brisa com hora marcada. De noite, a praça que você avista. A cidade é
segura, tranquila, casais namorando e crianças correndo pelos passeios. Em
alguns lugares você vê a alma da cidade. A parte antiga, as cores, as calçadas
animadas pelo som distante de uma salsa.
Pena que um pouco da identidade da cidade tenha se perdido com as
avenidas muito grandes, um exagero de superdimensionamento. Para
atravessá-las, lá vai você subindo e descendo pelas passarelas.
De repente, um shopping center antigo, não fechado, com vegetação
interna, um grande parque, o som vem de alguém tocando ao vivo, sem
equipamento eletrônico. Nada de som canalizado empurrando as pessoas.
Calor muito forte, mas, às quatro e meia, cinco horas da tarde, uma brisa
agradável toma conta da cidade. Seriam os deuses soprando. Afinal.
Mas a boa arquitetura é uma casa que visito. O arquiteto Benjamin
Barney projetou uma casa com pouco mais de seis metros de largura e com
um pátio. Aliás, a casa é um pátio com várias varandas, alçadas.
Talvez nessa cidade a boa acupuntura seja fazer mais coisas pequenas.
Acentuar o rio, que é uma beleza, e deixar a brisa soprar. Voltar-se para esse
divino sopro como para um sol de fim de tarde numa praia carioca.
Chévere!
Não fazer nada, com urgência

Em minha primeira gestão como prefeito de Curitiba, numa das primeiras


decisões que precisei tomar, recebi um abaixo-assinado de uma associação de
moradores que continha um pedido muito estranho. A solicitação era para
que a prefeitura não fizesse nada naquela vizinhança.
Determinei ao Secretário de Obras que verificasse esta situação.
Descobrimos que o pedido, apesar de insólito, tinha uma origem lógica. A
prefeitura estava realizando obras na região — correção de perfis nas ruas
não pavimentadas — e o receio dos moradores era de que as máquinas
acabassem cobrindo com terra um pequeno olho-d’água.
O meu despacho no processo foi lacônico, mas decisivo: “à Secretaria de
Obras, não fazer nada, com urgência”. Às vezes, na vida de uma cidade
ameaçada por decisões que podem prejudicá-la, é necessário não fazer nada,
com urgência.
Trinta e dois anos depois, em Lisboa, pego um carro para dar uma volta, e
a primeira pessoa que vejo na cidade é Álvaro Siza Vieira, arquiteto
respeitadíssimo e requisitado no mundo inteiro. Seria a mesma coisa que sair
pela primeira vez no Rio de Janeiro e encontrar Oscar Niemeyer. E ali estava
Siza Vieira, tranquilo, inspecionando uma obra. Gênios aparecem, muitas
vezes, sem a lâmpada mágica.
Vejo as colinas, lindas colinas, e o Tejo. Nos jornais, notícias sobre novos
projetos para Lisboa. Túneis, viadutos, a Expo 98 deixou contribuições, mas
era uma área decadente que foi renovada.
Na Lisboa da avenida da Liberdade, do Rocio, das Colinas, talvez a
melhor acupuntura seja não fazer nada, com urgência.

PS.: Que tal uma pequena ousadia: pintar o elevador Santa Justa com cor
de zarcão?
Around the clock
ou
A cidade 24 horas

No Zócalo, centro histórico da Cidade do México, num fim de tarde, começo


a sentir o medo de desaparecer na multidão. Uma inundação de gente. O
maior número é de vendedores ambulantes, que procuram garantir o seu dia a
dia, numa subsistência difícil. E a pergunta que se faz nessas megacidades é
como conciliar o setor formal com o informal. As respostas até agora são
infrutíferas e injustas.
Então, por que não promover a convivência entre o setor formal do
comércio estabelecido com o informal? A ideia que me ocorre é de se
estabelecer um acordo de horários.
Os ambulantes poderiam iniciar suas atividades depois das seis da tarde,
trazendo mais vida à cidade após o horário comercial tradicional. E trariam
também mais segurança ao seu redor. Um setor ajudaria o outro, pois ambos
manteriam o comércio local sempre a todo vapor.
Afinal, o comércio ambulante, em suas várias modalidades, é uma
instituição tão antiga quanto a cidade. Vejam a feira livre, por exemplo.
Durante determinado horário, numa determinada região, a feira livre se
estabelece bem mais cedo que o comércio normal, e mais tarde toda sua
estrutura é retirada rapidamente. Isso funciona tão bem! Uma estrutura móvel
que vem cedo e vai embora. Algumas cidades, como Xangai, Hong Kong e
Curitiba, têm feira noturna. São pontos de encontro muito agradáveis, numa
hora mais solta.
Aqui a acupuntura acontece no pulso do relógio.
Gentileza urbana

Há alguns anos, um grupo de gente muito legal de Belo Horizonte, entre elas
meu velho amigo Valério Fabris, conseguiu impor respeito entre as pessoas
com atitudes que estimulavam o amor pela sua cidade. Cada gesto neste
sentido é uma gentileza urbana.
Desde então, surgiram periodicamente ações e ideias criativas que
refletem a consciência das pessoas de que a gentileza urbana é indispensável
na vida da cidade.
Já ficou famosa a história da vaquinha da rua Leopoldina, uma escultura
no meio do passeio público que foi adotada pelos moradores de Belo
Horizonte. Há algum tempo ela foi atacada por vândalos e quase destruída.
Um cidadão atravessou a cidade com um balde de areia e cimento e a refez.
Volta e meia a vaquinha aparece de cara nova, com cores novas,
contribuições do povo que dela tanto gosta.
No bairro São Geraldo, uma dona de casa montou um presépio na sala.
Ela não fecha a porta e recebe com simpatia quem quer conhecer seu
presépio. Em outro bairro de Belo Horizonte, a equipe de lixeiros trabalha
sempre cantando. Assim a capital mineira foi ganhando a tradição da
gentileza urbana.
Existem pessoas que exercem sua atividade com prazer ou que sinalizam
para a cidade a sua alegria.
Oscar Niemeyer, ao colocar suas esculturas nas areias da praia do Leme,
fez uma grande gentileza urbana.
Em Curitiba, um dentista, ao encerrar seu expediente de trabalho, vai à
janela tocar seu pistom.
Em Porto Alegre, uma emissora de rádio tem uma vitrine na rua da Praia.
As entrevistas são acompanhadas pelo povo. O convite para você colocar
suas ideias na vitrine é uma verdadeira gentileza urbana.
Quando eu trabalhava no Rio de Janeiro, havia na equipe um bom
designer. Um dia, que jamais esquecerei, ele veio para o escritório vestido de
palhaço. Sentou-se diante da prancheta e trabalhou o dia inteiro
silenciosamente, como sempre fazia. No fim do expediente, ele nos contou
que a partir daquele dia não viria mais trabalhar porque resolvera fazer o que
sempre sonhara: ser palhaço de circo. Tinha feito um curso sem contar para
ninguém. Naquele momento, recebeu os primeiros aplausos.
Há alguns anos, fui ouvir o trio de Hélcio Milito, um craque da bossa
nova. Como vocês percebem, isso faz muito tempo. Mas não esqueci um
gesto de verdadeira gentileza urbana. Depois do show, o dono do bar, ao ver
que eu estava tendo dificuldades para conseguir um táxi àquela hora, levou-
me no seu carro até a porta do hotel.
Em Maripá, uma pequena cidade no oeste do Paraná, a prefeitura plantou
orquídeas nas ruas. A flor é tão bonita que a população devolveu a gentileza
do governo com outra gentileza urbana: ninguém mexe nas orquídeas.
Em Roma, há uma outra bela história de gentileza urbana, que me foi
contada por Domenico de Masi, grande e querido amigo. Todas as sextas-
feiras, um grupo de moradores de um edifício da cidade organiza uma
exposição de um quadro de um pintor no elevador do prédio. Você sobe e vai
admirando a obra. Mas a gentileza não para por aí: você desce pela escada e
vai tocando a campainha dos apartamentos. Cada morador e sua família falam
do quadro, contam histórias do artista, oferecem café. Toda semana muda o
quadro, com um artista diferente. Essa gentileza urbana é realmente muito
bonita.
Em Salvador, Carlinhos Brown mantém uma escola de música numa
favela. Aos sábados, ele promove verdadeiros concertos no local. Uma
empresa grava o CD do show e o lucro das vendas vai para os moradores.
Meu genro Bas conta-me a história dos “jardins flutuantes dos limpadores
de janelas de prédios” em Nova York. Nas plataformas usadas para a limpeza
dos vidros, um arquiteto teve a ideia de colocar caixas de plantas e flores, que
assim ficariam “estacionadas”, tornando-se jardins flutuantes diante dos
apartamentos. Uma gentileza inesquecível.
Nos idos de 80, a cidade de Curitiba decorava todos os ônibus na época
de Natal. A decoração com árvores de temas natalinos, com suas luzinhas, era
uma grande gentileza com as pessoas que tinham que trabalhar no dia de
Natal. Com os ônibus percorrendo a cidade, a gentileza também estendia a
alegria do Natal a toda a população.
Às vezes a gentileza urbana se reflete numa pessoa, como o já falecido
publicitário Sérgio Mercer. A morte de Sérgio Mercer foi um momento muito
triste na vida de Curitiba. Homem de excelente caráter, publicitário talentoso,
dono de um texto primoroso. Esses comentários sobre ele eram comuns em
Curitiba inteira.
Mercer era um curitibano especial. Ele era a cara e o pensamento da
cidade. Sabia tudo sobre música, literatura, era um grande crítico, mas um
amigo sempre leal. Além de tudo, tinha um outro dom extraordinário: era um
afinador de conversas. Se o papo na roda caminhava para um assunto chato,
Mercer corrigia o rumo, e afinava para um tema melhor e mais agradável.
Ele tinha mania de orquestrar, fazer arranjos em qualquer momento.
Adorava tango e tinha um bandoneon imaginário. Você poderia vê-lo
“tocando”, até com a faixa de veludo no joelho.
A cidade toda no enterro, relembrando a figura querida. Um primo dele
me encontra e entrega-me um CD, com trechos de um cantor de tango,
conseguido a duras penas: “Tinha reservado para dar ao Mercer mas, na falta
dele, queria que você, como um de seus melhores amigos, guardasse.”
Lembrei-me de que também tinha comprado uma antologia sobre tango,
que reservara para dar ao Mercer. Saio do cemitério com um peso no coração.
Antes de voltar para casa, passo num restaurante para levar alguma coisa,
pois ninguém tinha vontade de sair. Encontro a Mônica Rischbieter com uns
amigos, todos tristes, pois também tinham ido ao enterro. Ocorreu-me, então,
presentear Mônica com o livro que pretendia dar ao Mercer.
Também me veio a ideia de lançar o Dia Nacional do Mercer, em que
cada pessoa daria um presente a um amigo. O dia é 6 de março, data em que
Curitiba perdeu este grande amigo. Como não poderíamos mais presentear o
Mercer, fica a homenagem a ele como um dia de se presentear amigos.
Seria uma grande gentileza urbana, algo que Mercer sempre fez pela
cidade.
O jogador Vampeta, da seleção brasileira, fez um ato de extrema
gentileza com sua cidade, a pequena Nazaré das Farinhas, na Bahia. Certa
vez, ele estava na cidade e pediram-lhe uma ajuda de 20 reais porque o
telhado do cinema estava caindo. Vampeta foi ver o prédio, que estava em
estado lastimável. É um prédio histórico. O Cine Rio Branco era um dos mais
antigos do país, de 1927. Vampeta comprou o cinema e restaurou o prédio.
Dizem que a inauguração foi a maior festa da história de Nazaré, até com a
presença de Ronaldinho.
O cinema não dá lucro. Vampeta paga os funcionários do próprio bolso.
Além das sessões de cinema, o local oferece oficinas de teatro e arte para
mais de 80 crianças de favelas. Vampeta nem gosta de cinema, mas não
hesitou em fazer esta gentileza urbana aos moradores de sua cidade natal.
Acupuntura pela música

Em Antonina, cidade litorânea do Paraná, existe um prato típico que é cozido


numa panela de barro lacrada com pirão. É uma delícia chamada barreado.
Em sua versão mais tradicional, a abertura da panela é precedida de fogos de
artifício. Mas o que deixa o momento ainda mais bonito é o hino de
Antonina, cantado na hora de retirar o selo da panela.
Cada cidade tem o seu gesto, e a sua música. Algumas cidades têm mais
de uma música, que imediatamente nos projetam a paisagem local.
“Copacabana”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema”, “Cidade Maravilhosa”.
Roma, Chicago, Nova York, São Francisco, todas estas cidades tiveram
músicas que se tornaram universais porque as celebravam. Ao ouvi-las, você
faz imediatamente a leitura da cidade.
Quando se fala em tango ou em Carlos Gardel, imediatamente nos
lembramos de Buenos Aires. Você até pode assistir a um belo espetáculo de
tango em qualquer lugar, pois companhias de muita qualidade fazem turnês
pelo mundo, mas nada se compara ao tango em Buenos Aires, pois ali é seu
berço. Esteja onde estiver, o tango sempre carregará o sangue portenho.
O samba é uma das marcas da cultura do Rio. E temos bons sambistas por
todo o país. Mas, quando chega o Carnaval, o lugar do samba é a avenida. E
nisso o Rio de Janeiro é imbatível, pois produz na avenida a maior ópera do
mundo, com mais de 80 mil protagonistas.
Quando uma música ou um ritmo assumem a identidade de uma cidade,
ou de um país, podem criar uma boa acupuntura urbana. Ela pode ser
constatada no cotidiano, como o barulho da caixa de fósforos no boteco da
esquina carioca, a percussão nas calçadas da Bahia, ou o hip-hop nos
aparelhos gigantes carregados pelos african-americans nas ruas dos Estados
Unidos.
Há canções que são verdadeiras acupunturas. Algumas delas passaram a
ser tatuagens: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Dorival
Caymmi e Vinicius deram cor às cidades e nos impregnaram para sempre.
É difícil imaginar a Bahia sem Caymmi, João Gilberto, Gil e Caetano; é
difícil sentir Minas sem a música de Milton Nascimento.
E também é difícil captar o Brasil sem Villa-Lobos ou Ary Barroso.
Há canções que, quando falam de uma cidade, parecem desenhar a cidade
para você. A música faz surgir uma fotografia da cidade na sua mente.
Mas foi de Antonio Carlos Jobim a melodia que fez a cidade parecer
melhor. E parecendo melhor, fica melhor.
Continuidade é vida

Muitos dos grandes problemas urbanos ocorrem por falta de continuidade. O


vazio de uma região sem atividade ou sem moradia pode se somar ao vazio
dos terrenos baldios. Preenchê-los seria boa acupuntura.
É importante também incluir a função que falta a determinada região. Se
só existe a atividade econômica e falta gente, é essencial incentivar a
moradia. Se o que ocorre é a falta de atividade, o importante é incentivar os
serviços.
Se um terreno vai ficando vazio, é importante trazer alguma coisa para
aquele local. Há alguns anos, ao sentir o desaparecimento de alguns cafés,
que eram verdadeiros pontos de encontro, instalamos na área de pedestres de
Curitiba um café provisório.
Um terreno, quando vazio, tem que ser preenchido imediatamente, de
preferência com alguma atividade de animação. Defendo até a possibilidade
de se instalarem estruturas provisórias para consolidar algumas atividades até
que surjam novos projetos. É a acupuntura das novas estruturas através da
instalação de estruturas portáteis, que possam ser colocadas no local até para
garantir vida, revitalizar uma região, gerando a função urbana que esteja
faltando.
Se falta atividade, se falta lazer durante a noite, traz-se uma estrutura de
lazer. Se, por outro lado, estava faltando moradia, devem-se trazer moradias.
Mas tudo isso rapidamente, quase instantaneamente.
A mistura de funções é importante. E a continuidade do processo é
fundamental. Continuidade é vida.
Os sons, as cores e
os cheiros da rua

O vendedor ambulante muitas vezes é caçado pelos fiscais burocráticos. É


pena, pois ele não é apenas um comerciante, às vezes, reconheço, atuando de
forma ilegal. Mas ele deve ser visto com olhos mais generosos, dada a
amplitude de sua atuação.
Na verdade, o vendedor de hot dog em Nova York, de água de coco no
Nordeste, as vendedoras de acarajé na Bahia, o homem que grita “olha o
mate” nas praias do Rio, as vendedoras de frutas no Caribe, com suas bacias
na cabeça, todos têm um componente de identidade muito forte. Eles
acrescentam o som, o cheiro, a cor, e isso faz com que nossa identidade se
sustente.
Durante anos morei em frente a uma fábrica de bolachas no bairro Cabral,
em Curitiba. Cada dia da semana era produzido um tipo de bolacha. Quinta-
feira, por exemplo, era dia de bolacha de coco, e a região inteira sentia aquele
cheiro gostoso.
A fábrica já fechou, mas toda quinta-feira ainda sinto o cheiro da bolacha
de coco. Já na parte sul da cidade, todo mundo sentia o cheiro do Matte Leão
sendo fabricado. Muitos têm histórias semelhantes das suas cidades.
O afiador de facas, o vendedor de frutas, os serviços anunciados e
prestados em domicílio, o grito das manchetes dos jornaleiros, alguns desses
sons talvez tenham desaparecido das cidades.
Novos sinais surgem. O homem-sanduíche de São Paulo e outras cidades
acabou se transformando num grande site em que oportunidades são
comunicadas. Mas o som, a cor e o cheiro das feiras e dos ambulantes não
podem desaparecer.
Terrível é uma cidade que não cheira nem fede.
Uma boa reciclagem

Cada cidade tem sua história, seus pontos de referência. Não me refiro
somente àquelas construções que são classificadas como marcas importantes
do patrimônio histórico da nação. Refiro-me, principalmente, aos locais que
pertencem à memória da cidade e que são pontos fundamentais da identidade,
do sentimento de pertencer a uma cidade. Seja uma determinada fábrica, um
ponto do antigo bonde ou uma daquelas antigas vendas que tinham tudo
ingenuamente exposto.
Mas como já não é mais possível recuperar essas áreas e reviver as
antigas atividades, temos que encontrar novos usos, novas atividades que
tragam vida. Não há nada que agrade mais a uma vizinhança, e até a uma
população inteira, que o reaproveitamento de um desses espaços.
São Francisco, nos EUA, fez as primeiras reciclagens urbanas
importantes, transformando em pontos de animação uma antiga fábrica de
chocolate, a Ghirardelli, e uma fábrica de enlatados, a Del Monte, que virou a
The Cannery. As duas foram recicladas no final dos anos 60 e tornaram-se
atrações do tradicional Fisherman’s Wharf.
A partir dos anos 70, as reciclagens começaram a acontecer no mundo
inteiro com projetos brilhantes, como o teatro do Sesc em São Paulo, e outros
na Europa, principalmente as estações de trem em Londres.
Em 1971, Curitiba transformou um antigo paiol de pólvora num pequeno
teatro — o Teatro Paiol. Logo depois, uma antiga fábrica de cola virou o
Centro de Criatividade.
Também merecem ser citados o Porto Madero, em Buenos Aires, e parte
da Estação Júlio Prestes, em São Paulo, transformada numa magnífica sala de
concertos.
Bons e maus exemplos aconteceram. O mais importante foi o resultado
conseguido com a revitalização de locais antes abandonados que ganharam,
na maioria das vezes, importantes equipamentos culturais. Foram ótimas
acupunturas.
Mais recentemente, verdadeiras feridas feitas pelo homem na paisagem,
como pedreiras e explorações de cavas de areia, acabaram se transformando
em parques, teatros. Mais uma vez Curitiba inovou, com a Ópera de Arame, a
Pedreira Paulo Leminski (espaço para shows e apresentações ao ar livre com
capacidade para mais de 80 mil pessoas) e sucessivos parques que retratam a
contribuição das várias etnias à vida da cidade.
Até mesmo o vale do rio Iguaçu com suas cavas, que acabaram poupando
o estado inteiro de um desastre ambiental. Quando houve derramamento de
óleo no rio Iguaçu, foi através dessas cavas que se foi represando o óleo. Não
na primeira, nem na segunda, mas na décima cava de areia o derramamento
foi estancado e, a partir daí, foi realizado um intenso trabalho de limpeza.
Mas é o redesenho destas cavas, que foram transformadas em filtros, que está
limpando o rio. O que eram essas cavas? Uma ferida que o homem criou na
paisagem.
Mas foi uma ferida transformada em solução. Os novos desenhos dessas
cavas estão devolvendo vida ao rio Iguaçu.
Gente na rua

Às vezes, fico observando como uma gota de melado vai juntando as


formigas. Ou como, num bar ou armazém de um bairro bem pobre, a luz e a
animação atraem as pessoas. Mas são principalmente as pessoas que atraem
as pessoas. O homem é ator e espectador desse espetáculo diário que é a
cidade.
Uma boa acupuntura é ajudar a trazer gente para a rua, criar pontos de
encontro e, principalmente, fazer com que cada função urbana catalise bem o
encontro entre as pessoas. Um terminal de transporte, por exemplo, não
precisa se assemelhar a uma estação rodoviária. Ele também pode ser um
bom ponto de encontro.
Em Estrasburgo, na França, os desenhos dos terminais e do bonde
(TRAM) criaram pontos de encontro agradabilíssimos. Em Seul, vi uma
estação de metrô que tinha recreação infantil em uma de suas áreas de
circulação, inclusive com um pequeno planetário. Em Curitiba, terminais com
capacidade para 500/800 mil passageiros/dia são praças agradáveis.
Quanto mais se entender a cidade como integração de funções, de renda,
de idade, mais encontro, mais vida ela terá. O desenho do espaço público é
importante. A Place de la Bourse, em Lyon, a Plaça del Sol, em Barcelona, a
Gammeltorv, em Copenhague, a Tsukuba Centre Square, no Japão, e a
Pioneer Courthouse Square, em Portland, são magníficos exemplos de como
criar bons espaços públicos e ao mesmo tempo gerar uma transformação
positiva numa cidade.
Pôr o estudante na rua também é fundamental. Em muitos lugares, o
estudante é segregado do espaço da cidade, cercado por estruturas que se
convencionou chamar de campus universitário. Às vezes, o espaço é tão
vazio que é um verdadeiro “matus” universitário. Logo ele, o estudante, que
precisa conviver mais com a cidade para ter uma visão mais generosa da
sociedade. Senão, ele vai receber gotas de informação de uma sociedade com
a qual pouco convive. Já imaginaram uma Sorbonne fora de Paris, ou
Columbia fora de Nova York, ou Berkeley desgrudada da cidade? Ou a
Universidade de Heidelberg, a Faculdade de Direito de São Paulo, longe da
malha urbana?
Mesmo com as estruturas centralizadas de alguns campi, é possível trazer
setores para dentro da cidade, principalmente os ligados a seminários,
atividades culturais etc. Ou então levar a cidade para os campi.
Smart car, smart bus

Muitas são as discussões sobre o transporte do futuro. A discussão maior é


centrada no automóvel do futuro, e as feiras do automóvel são cada vez mais
avançadas. Vi, há uns três anos, uma exposição no MoMA que procurava
explorar o aspecto de tecnologia e do desenho do carro do futuro.
Mas o verdadeiro smart car ainda não apareceu. Quando ele é avançado
no design não é avançado no “engine”. E os carros que têm um motor
evoluído, híbrido em relação às várias possibilidades de energia, não são
avançados no design. E mais, os que são adequados à cidade, menores, com
baixa velocidade, não o são em relação à estrada. Ora, se há necessidade de
dois carros, por que não pensar os dois num carro só, carro+bike, ou ainda
um carro de estrada que tenha um carro urbano no porta-malas.
O smart bus já existe. É aquele que tem algumas condições essenciais.
Pista exclusiva (não necessariamente pintada, mas um espaço próprio) e
frequência máxima na operação. Embarque e desembarque no mesmo nível,
com pagamento da tarifa antes de entrar no ônibus e linhas diretas
intercaladas.
Não tenho dúvidas de que o transporte do futuro é o de superfície. Mais
rápido de implantar, custo até 100 vezes menor por quilômetro, e que pode
ser perfeitamente integrado às linhas de metrô existentes. O caminho é dar ao
ônibus a mesma (ou melhor) performance que um metrô, ou seja, “metronizar
a superfície”.
A smart bike também já temos. É a que não se mistura com o tráfego
normal, nem atrapalha a calçada. É a bicicleta em seu próprio caminho, ao
longo dos rios, canais, traçados ferroviários. Mas será uma smart bike se for
possível utilizá-la como um guarda-chuva: abrir e usar quando necessário.
O smart taxi é o que menos concorre com o ônibus e o metrô. E é o que
dá mais alternativa ao cidadão. Isso significa que ele não poderia competir
com os outros meios de transporte. O smart taxi é o que alimenta o transporte
público, entregando o passageiro no ponto do sistema mais próximo, evitando
a procura do mesmo espaço e do mesmo itinerário. Para ser alimentado, ele
terá que participar da tarifa integrada. Quem diria, o táxi como sócio do
transporte público.
O smart pedestrian é o que pode usar tudo, inclusive os estacionamentos
de automóveis, utilizando para isso um cartão de mobilidade. O pedestre
smart vai exigir, como consumidor, equipamentos, lojas e serviços que
também estejam à sua disposição para seu conforto. Mas terão que ser smart
shops, smart movie theatres.
E o smart reader é o que não joga este livro fora.
Compromisso de solidariedade

Pode-se fazer boa acupuntura urbana com um profundo compromisso de


solidariedade? Há décadas convivemos com as consequências de injustas
desigualdades sociais, que acabam marginalizando parte da população de
baixa renda nas cidades. A papelada produzida com diagnósticos, seminários
e simpósios sobre esse problema daria para cobrir boa parte das favelas do
mundo.
Em geral, a população marginalizada vive em morros e fundos de vales.
Foi a saída que encontraram para a falta de alternativas. Como levar
infraestrutura a essas áreas, como resolver o problema do lixo que,
acumulado, polui e às vezes acaba soterrando seus habitantes? Como resolver
os problemas de emprego, e o mais terrível, o problema da violência e da
droga?
Algumas cidades, como Curitiba, conseguiram resolver o problema do
lixo com os programas de compra do lixo ou troca por vale-transporte. Isso
funciona há mais de 13 anos.
Há uns 25 anos, propus uma solução para se levar infra-estrutura à favela.
Através do corrimão das escadarias se levaria água e luz, fazendo com que os
canos e tubos entrassem pelo telhado, pela janela. O esgoto seria canalizado
nos cantos das escadarias. Tudo muito simples, mas com uma única
condição: não mexer no terreno.
Áreas de lazer nos patamares, que também receberiam setores de serviços
e relações do morador com sua cidade. Quanto ao emprego, a proposta é a
zona franca na favela. Livrar dos impostos todas as indústrias e serviços que
gerarem empregos dentro da favela. Isso propiciaria uma aproximação com o
restante da cidade pela troca de serviços; essas atividades começariam nas
bordas dos morros e fundos de vale. Tudo isso, com certeza, ajudaria a
diminuir a violência.
Para haver segurança nas favelas é fundamental gerar atividades nas áreas
mais densas e nos patamares. A instalação de restaurantes, comércio, pontos
de serviços, iluminação e outros equipamentos urbanos é uma forma de fazer
isso e promover a integração. A subida ao morro pela integração social é boa
acupuntura urbana. Rápida, sem mais diagnósticos e grupos de estudo.
Você conhece a cidade onde vive?
ou
Desenhe sua cidade

Uma boa acupuntura urbana seria provocar o conhecimento de cada um sobre


sua cidade. Quantas pessoas, na verdade, conhecem a sua própria cidade?
Dificilmente alguém respeita o que não conhece. Mas como respeitar se você
não entende sua cidade?
Desenhe sua cidade. Fiz essa proposta durante uma palestra em Cáli para
mais de 200 jornalistas, no Dia do Jornalista. Até que ponto, mesmo aqueles
que escrevem, comentam diariamente sobre a cidade, têm uma visão global
desta?
O desafio que coloquei para os jornalistas foi no sentido de que não
interessa somente analisar se o prefeito daquela cidade é bom ou não. Qual o
valor para a cidade dos noticiários sobre aquilo que acontece de ruim, sobre
as deficiências? Queria que alguns deles me dissessem de que maneira
estariam realmente ajudando sua cidade com seu trabalho.
Mas como você pode melhorar sua cidade se nem mesmo a conhece? O
que você faz pela sua cidade, se nem é capaz de desenhá-la? Aí é que está o
ponto mais importante. Nós aprendemos a conhecer a cidade por meio de
algumas ruas e referências. Os mapas, que poucos conhecem, não têm mais
que o traçado das ruas. Eu só fui conhecer os rios da minha cidade quando
comecei a trabalhar como arquiteto no Departamento de Urbanismo.
Acontece a mesma coisa em relação aos mapas dos estados (ou
províncias) de um país. O que se conhece é um desenho político dos
municípios, um quebra-cabeça cujas peças se encaixam para formar um
estado, um país. Mas esse estado, esse país, possuem um desenho que nada
tem a ver com esse quebra-cabeça. É o desenho de seus rios, seus morros, os
degraus dos planaltos, as cadeias de montanhas onde estão os recursos
naturais etc.
Claro que quem não enxerga isso tende a receber esse conhecimento
através de outros poucos. Mas não é a mesma coisa. Desenhe a sua cidade.
Faça uma maquete de seu estado.
Desenhe seu país.
Há algum tempo, como governador, comecei uma campanha que tinha a
intenção de fazer com que todos ajudassem a preservar os rios, já que grandes
fatores de poluição são o esgoto — que estaria sendo equacionado pelo
governo — e o lixo, do qual a população deveria cuidar.
A campanha perguntava às crianças: “Afinal, você conhece o rio que
passa perto da sua casa?” Como poderiam respeitar esses rios se não os
conheciam? E o que é pior, quase todos eles estavam cobertos, canalizados.
Identificados os rios, a ideia era colocar, junto com a numeração da casa,
o nome do rio próximo a ela. Assim, as pessoas começariam a preservá-lo.
No Parque da Ciência, construído em Curitiba a partir da reciclagem de
um antigo parque de exposições agropecuárias, instalamos, entre outras
coisas, uma grande maquete do Paraná. Um passeio pela maquete transfere
mais conhecimento do que meses e meses de estudo de história e geografia.
No mesmo parque foi construído um planetário indígena, para mostrar
como os índios enxergavam o Universo e suas constelações. Esta ideia
maravilhosa teve um custo de apenas 10 mil dólares, irrisório se comparado
ao custo de um planetário tradicional.
Se os índios podiam ver o desenho dessas constelações e transferir esse
conhecimento de geração em geração, por que é que você não consegue
desenhar sua própria cidade? Desenhá-la seria uma boa acupuntura urbana.
Uma vez assimilada, seria uma linda tatuagem na memória.
Instruções para fazer uma
acupuntura urbana

Não esquecer que a cidade é o cenário do encontro. Gregária por definição, a


cidade é o centro a partir do qual se criaram os códigos de convivência.
O grande conflito ideológico do mundo de hoje é o da globalização x
solidariedade. É preciso “globalizar a solidariedade”, como diz Mário Soares.
E a cidade é também o último refúgio da solidariedade. A cidade não é
problema, a cidade é solução.
O grande problema foi a separação entre as atividades econômicas e os
assentamentos humanos. Separaram-se trabalho e vida.
A cidade é uma estrutura de vida e trabalho, juntos. A cidade é uma
integração de funções. Quanto mais você integrar as funções urbanas, quanto
mais misturar renda, idade, mais humana a cidade ficará.
Pensar numa cidade sedimentada é como procurar seu desenho escondido.
Estranha arqueologia que vai revivendo antigas edificações, ruas, pontos de
encontro, dando novas funções a valores que nos eram caros. É como
descobrir num caleidoscópio aquele desenho perdido que vai possibilitar o
encontro.
É como dar novo conteúdo a este desenho, consolidando-o com o
transporte de massa, com o uso do solo e com a ossatura viária que, quando
integrados numa só diretriz, definem a estrutura de crescimento de uma
cidade.
O automóvel é a nossa “sogra mecânica”. Temos que manter boas
relações com ela, mas não podemos deixar que ela comande as nossas vidas.
É preciso saber se relacionar com o automóvel, mas não ser escravo dele.
As ruas são cenários prontos, caros demais para servir a apenas uma
função. Por isso, podem e devem ter um uso múltiplo e escalonado no tempo.
Ócio criativo
x
mediocridade laboriosa

É possível fazer as coisas certas antes das coisas erradas? Segundo um


princípio universalmente consagrado, a mediocridade laboriosa às vezes
ganha da criatividade preguiçosa. Porque, para quem não se questiona, para
quem não exerce constantemente a autocrítica dos seus atos, sempre é mais
fácil executar ideias recebidas.
A mediocridade laboriosa, os vendedores de complexidade, os
acumuladores de dados desnecessários e as pesquisas infindáveis e não
conclusivas ganham cada vez mais espaço. Mas, às vezes, apenas um gesto
criativo é uma acupuntura tão poderosa que faz avançar.
Quando estávamos implantando em Curitiba uma das melhorias
importantes de seu sistema de transporte, era imperioso conseguir-se o
embarque no mesmo nível. A primeira batalha era conseguir fazer um ônibus
biarticulado, um ônibus com grande capacidade. Tínhamos que convencer os
fabricantes de chassis que isso era possível, e que haveria mercado para isso.
Consegui com o Karlos Rischbieter, ex-ministro da Fazenda e ex-membro
do Conselho da Volvo, uma reunião com a diretoria da Volvo, em
Gotemburgo, Suécia. Montamos um estudo que fazia uma avaliação das
cidades que teriam necessidade de soluções de superfície e um estudo de
viabilidade técnica para mostrar como isso poderia funcionar em Curitiba.
Qual não foi nossa surpresa ao vermos que uma poderosa estrutura como
aquela não tinha mais que uma pasta de recortes de jornais sobre transporte
de massa. Foi uma vergonha para eles. Tanta vergonha tiveram que, dois
meses depois, o vice-presidente veio ao Brasil comunicar-me que estavam
dispostos a começar a desenvolver o chassi em Curitiba, on-line com a equipe
de Gotemburgo.
Desenvolvido o chassi, o teste era feito de madrugada para ver se
funcionaria com aquele comprimento nas nossas ruas e canaletas exclusivas
para ônibus. O biarticulado era um baita ônibus; carregava 270 suecos (e 300
brasileiros). Foi uma grande vitória.
Mas o importante também era conseguir agilidade no pagamento da
passagem e no embarque. Para isso, era indispensável que o passageiro
pagasse antes de entrar no ônibus e que o embarque se desse no mesmo nível
da plataforma. O pagamento foi facilmente resolvido, com uma catraca na
entrada da estação-tubo. Já a operação de embarque também tinha que ser
perfeita, para manter a agilidade e evitar acidentes. Portanto, era essencial um
impecável encaixe entre ônibus e tubo.
O número de soluções complexas e caras que tentaram nos vender foi
grande. Uma delas era fazer a aproximação do ônibus ao tubo de embarque
por meio eletrônico. Todas as soluções que nos apresentavam eram
extremamente caras. Tão caras quanto o custo da própria frota.
Até que o arquiteto Carlos Ceneviva chamou o motorista que era o chefe
de operações, Roberto Nogari, e perguntou se ele seria capaz de encostar o
ônibus na estação tubo com a porta exatamente na plataforma de embarque.
O motorista não titubeou e encostou perfeitamente.
Ceneviva perguntou se ele e os demais motoristas eram capazes de repetir
sempre aquela operação com a mesma precisão. O motorista deu a solução de
imediato. Um pequeno risco feito no vidro do ônibus e outro pequeno risco
na estação-tubo. Quando os dois coincidiam, estava feita a operação, com
perfeição, agilidade e segurança para os passageiros. O sistema funciona há
11 anos e nunca houve um só acidente.
Foi uma acupuntura criativa e uma grande vitória sobre a mediocridade
laboriosa.
Autoestima, uma boa acupuntura

Até onde você gosta da sua cidade? Geralmente você gosta de sua cidade
porque nasceu nela. Mas o que você acha da sua cidade? Você a conhece,
sente-se parte dela? Ou as pessoas que projetam a tragédia já o influenciaram
a tal ponto que você tem certeza de que não há mais solução, que a sua cidade
é a que tem a pior infraestrutura, a mais violenta, a mais injusta? Ainda mais
se for uma cidade grande, onde são grandes os problemas e fica mais fácil
justificar essa frustração pela escala.
Mas a escala nada tem a ver com a inviabilidade de uma proposta. Nem a
falta de recursos. O mais importante é a visão correta, e uma competente
equação de corresponsabilidade. O que é necessário é um cenário, ou uma
ideia, um desenho desejável. E todos — ou a grande maioria — vão ajudar a
fazer. Aí, nesse exato momento de realização, a autoestima da população faz
a cidade avançar.
Joinville, em Santa Catarina, decidiu transformar-se num centro de
excelência para a dança. O prefeito encampou a luta da Jô Braska Negrão
para levar à cidade uma filial do Balé Bolshoi de Moscou, e a cidade inteira
trabalhou para isso.
Montreux, na Suíça, por uma iniciativa de Claude Nobis, passou a ser
sede de um dos festivais mais importantes de jazz do mundo, e a cidade
inteira vive esse momento.
Nova Jerusalém, em Pernambuco, ao encenar a Paixão de Cristo em
vários locais, criou uma grande autoestima na cidade, e também no povo
brasileiro.
Provocar a autoestima é uma acupuntura fundamental. Assim aconteceu
com o transporte urbano e com a solução do lixo em Curitiba. Assim
aconteceu em Bilbao, na Espanha, com o Museu Guggenheim e todas as suas
novas conquistas.
Luz é boa acupuntura

Já se tem falado que identidade é um componente importante de qualidade de


vida. Que conhecer a cidade é respeitá-la e também fazer parte dela. A partir
de 1971, Curitiba começou a reforçar seu desenho e sua hierarquia viária pela
iluminação pública. Isto é, o sistema de iluminação pública passou a reforçar,
a realçar a estrutura básica da cidade.
Pelo tipo e intensidade da luz, você podia saber onde estava. Luz de sódio
(400W) definia as vias estruturais, onde havia o transporte de massa. As
linhas alimentadoras tinham luzes com outras tonalidades, e quando você
chegava ao centro, dentro do anel central, a iluminação era também de sódio.
A “leitura” da cidade era extremamente fácil e ajudava o próprio morador
a conhecê-la melhor. Infelizmente, mesmo seguida durante anos, essa leitura
começa a se descaracterizar, mas foi uma acupuntura excelente.
Muitas cidades têm usado a iluminação pública para fazer boa
acupuntura. Em Roterdã, na Holanda, a Schouwburgplein é transformada
num grande palco urbano em que os próprios usuários podem modificar a
iluminação pública, e o caráter da praça transforma-se com efeitos que fazem
o espaço flutuar. Em Amsterdã, as luzes das pontes refletem seus arcos nos
belos canais. Aliás, toda a cidade fica refletida na água. Na Rathausplatz, em
St. Pölten, Áustria, a iluminação valoriza o espaço, a praça. Mas é na Place
des Terreaux, em Lyon, na França, que se conseguem efeitos fascinantes ao
se trabalhar com luz e água, refletindo as fachadas de toda a área.
Mas, e o néon, que, à noite, é a própria mensagem solta no ar? Em São
Paulo, nos anos 70, propusemos um tratamento com néon no Vale do
Anhangabaú. Seria uma acupuntura de néon.
Durante o projeto Rio Ano 2000, apresentamos uma proposta em que a
ideia era criar calçadas em forma de ondas na Barra da Tijuca, realçadas nas
bordas pelo néon, e iluminar a praia e as ondas do mar dramaticamente.
Havia uma época, em Paris, em que você podia marcar hora para iluminar
alguns monumentos. Bastava ligar para um departamento da cidade, dizer
local e horário, pagar uma taxa pelo serviço, e você tinha “luz própria” para
destacar uma parte da cidade, ou determinado monumento, para uma pessoa
de quem você gostasse.
Nada é mais bonito do que o Cristo Redentor iluminado no alto do
Corcovado. Tão lindo que a própria música de Tom Jobim já dizia: “da janela
vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo!”
Aquapuntura

Há décadas, ao assistir a um filme de Jeanne Moreau que se passava numa


cidade da França, encantei-me com essa cidade. Em Annecy, os canais eram
parte da vida, tão normais no cotidiano dessa cidade, e encontravam outra
paisagem encantadora: a do lago Taillories.
Essa imagem permaneceu tão forte na minha lembrança que, anos depois,
ao desembarcar em Genebra para participar de um encontro sobre qualidade
de vida em Arc-et-Senans (antigas Salinas Reais de Claude-Nicolas Ledoux),
ao tomar um táxi do aeroporto para a cidade, vi uma placa que dizia: Annecy
32 km. Minha decisão foi rápida. Minutos depois estava andando pelos canais
de Annecy, à procura do local exato que tinha gravado na memória. Fiquei
dois dias num pequeno hotel em frente.
Eu estivera em Veneza anos antes e já havia me emocionado com a
paisagem, com a história e com o encanto de uma cidade que é patrimônio da
humanidade. Mas Veneza também é um cenário que acrescenta turistas
demais à sua gente. Annecy é uma Veneza caseira.
Mas não quero falar das cidades em que a água tem presença tão forte,
como Rio de Janeiro, Hong Kong, Berna, Amsterdã, Genebra, Foz do Iguaçu.
Quero me referir às cidades que usaram a água para fazer acupuntura urbana.
Ou melhor, aquapuntura.
E também de cidades que engessaram seus canais, cobriram os rios,
criaram desastres ambientais. Cidades que deram as costas aos rios e que
continuaram a descaracterizá-los, transformando-os em locais de inundações,
esgoto e lixo. Em atitudes de não reconhecimento de rios que fizeram sua
história.
Mas existem cidades como Seul, que está restaurando o rio
Cheonggyecheon. Como Curitiba, que transforma o Iguaçu num projeto de
limpeza das suas nascentes até a foz. Não é necessário que esses rios e canais
sejam grandes. Em Paris, recuperou-se o antigo Canal de S. Martin, que
marcava a Paris dos anos boêmios. Em Freiburg, na Alemanha, os espaços do
centro são ligados pela reintegração do antigo sistema de pequenos canais —
bäckle —, com pouco mais de 30 centímetros, que são uma marca constante
nos espaços públicos. Ou ainda em Lyon, na Place des Terreaux, onde a água
e a luz fazem um pas-de-deux tão bonito num cenário singular.
Inesquecível para mim foi ter revalorizado os lagos dos rios Belém,
Barigui, Iguaçu e das Pedreiras. Entretanto, a mais bonita de todas as
aquapunturas foi aquela realizada por Coppola no filme No fundo do coração
(One from the heart), em que ele faz projetar nas ruas molhadas de uma
cidade falsa o néon de uma Las Vegas que também é artificial. O resultado
foi maravilhoso: uma acupuntura falsa numa cidade falsa.
O cartão de mobilidade

Acupuntura nem sempre é uma transformação física. Às vezes é uma boa


ideia que pode mudar para melhor a vida de uma cidade. As grandes cidades
enfrentam problemas de circulação terríveis e a consequente degradação que
a preocupação excessiva com o automóvel acarretou.
Mesmo as cidades que reagiram a esta nefasta tendência e deram
prioridade ao transporte público, que fizeram cair o uso excessivo do
automóvel, ainda enfrentam esses problemas, porque o costume, o vício de
querer chegar às áreas mais densas, ainda continua.
Cidades como Paris e Londres, que possuem redes completas de metrô e
sistemas de transporte em superfície de qualidade, ainda têm percentuais
elevados de uso do automóvel. O que fazer com esta parcela da população
que insiste no automóvel?
Londres tomou a primeira medida radical, com a cobrança de pedágio
para entrada de automóveis no centro, e acho que a ideia de reduzir o acesso
de carros ao centro poderá se repetir em muitos lugares.
Nada contra o automóvel. A ideia é usá-lo adequadamente. Não deixar
que ele inviabilize a cidade. Acho que a grande solução para isso será a
criação de um cartão de mobilidade.
O cartão, pré-pago, pode ser usado em todos os deslocamentos dentro da
cidade. Desde o estacionamento na periferia do centro, onde se deixa o
automóvel e pega-se o metrô ou o ônibus, também pagos com o mesmo
cartão, que pode servir inclusive para táxi.
A solução para uma mobilidade mais racional é a integração de todos os
meios de deslocamento. O segredo é não permitir que carro, táxi, ônibus,
sistemas de transporte de superfície, metrô compitam no mesmo itinerário. O
cartão de mobilidade, ao exigir integração rápida para que a alternativa seja
boa, transforma cada pessoa em dono de um BMW — bus, minibus, walking,
ou bus, metrô, walking.
Eco clock

Mais uma ideia que não exige transformação física, mas sim solidariedade ao
próximo e às futuras gerações. Tem-se tentado muito motivar as populações
no mundo inteiro com o desenvolvimento sustentável. Mas as explicações são
confusas, ora acadêmicas, ora panfletárias, e nelas não há conhecimento,
apenas entusiasmo.
As pessoas, muitas vezes, acham que não há nada a fazer, e entram no
clube dos que projetam a tragédia. A mídia não ajuda porque também projeta
os prognósticos catastróficos, como se as coisas continuassem sempre assim.
Mas como mudar se as pessoas não sabem o que fazer?
Veja, é tão simples. Se você quer ajudar o meio ambiente, não basta você
se sentir como se fosse um paciente terminal. Comece com duas coisas muito
simples: separe o seu lixo orgânico do reciclável e use menos o seu
automóvel. Você estará poupando energia, estará salvando árvores e
contribuindo para seu país ficar menos dependente dos outros. Poupe mais e
desperdice menos.
Por isso proponho a criação de um eco clock para cada casa. É um relógio
marcador para registrar a proporção daquilo que você gasta em relação ao que
poupa. Se a proporção é maior que 1, você está contra o seu próximo, contra
o meio ambiente, pois está gastando mais do que poupa. Se você não poupa
nada é um irresponsável, pois o marcador do eco clock vai registrar infinito, o
índice da irresponsabilidade.
E se o seu eco clock marcar o índice da irresponsabilidade, haverá
punição imediata. Você não terá o direito de falar baboseiras sobre o meio
ambiente no bar com os amigos. Nem poderá ser presidente de ONG.
Arborização

A vegetação pode ser uma boa acupuntura urbana. Cidades que às vezes não
têm grandes atrativos em determinadas regiões mudam radicalmente quando
são arborizadas. Muitas cidades conseguem ganhar unidade por meio da
vegetação intensa.
Xangai tem árvores a cada quatro metros, em todas as ruas. Além da
paisagem e da sombra que produzem, são apoios importantes para os bambus
que vestem as roupas postas para secar. São verdadeiros espantalhos de roupa
e bambu.
Alguém poderia imaginar o que seria a orla do Rio sem as árvores nas
suas ruas transversais? Árvore é acupuntura que cura a dor da ausência de
sombra, de vida, de cor, de luz.
Curitiba plantou um milhão de árvores em menos de duas décadas. O
começo foi um gesto de verdadeira gentileza urbana. Para garantir a irrigação
de todas estas pequenas árvores plantadas nas ruas, foi solicitado o apoio da
população. O governo municipal lançou uma campanha que dizia: “A
prefeitura dá a sombra e você, a água fresca.”
Em muitas cidades, os conjuntos habitacionais são áridos por causa da
uniformidade e pela ausência de arborização. Durante a execução de
programas habitacionais, que primavam pela diversificação por meio da
mistura de renda, a cidade de Curitiba, além de plantar árvores nas ruas, pedia
a cada morador que escolhesse a árvore frutífera de seu quintal.
O desenho das ruas não podia derrubar nenhuma das árvores existentes, e
as vias eram desviadas das árvores. A mania de se fazer terra arrasada em
toda urbanização nova acabou.
Memória produzida

“A História é como um estilingue. Quanto mais fundo você puxa, mais longe
você alcança”, dizia Aloísio Magalhães.
Identidade, autoestima, sentimento de pertencer, tudo tem a ver com os
pontos de referência que uma pessoa possui em relação à sua cidade.
Não canso de repetir que na minha rua tinha tudo. Andava e confirmava a
hora no relógio da Estação Ferroviária. Quando não, era o apito da fábrica ao
lado de minha casa que anunciava a hora. Ou o cheiro do Café dos
Ferroviários, após virar a noite lendo ou estudando, onde ia tomar meu café.
Ali, na praça da estação, ficava um avião de lona, que o fotógrafo usava
como cenário para as fotos das crianças.
O cheiro da tabacaria onde comprava meus gibis, a trama dos trilhos dos
bondes. Ainda hoje posso imitar o barulho deles chegando à estação. O
cheiro do verniz dos lustradores de móveis em frente. O barulho do ferro de
passar da alfaiataria ao lado. As máquinas do jornal em frente, ou os números
do circo ali perto. O hotel chique, as estações de rádio, o prédio da prefeitura,
as orquestras do Clube Curitibano.
Tudo isso pode parecer nostálgico, mas não se apaga. E quando não
existe? Fabrica-se? Não, vai-se buscar. Alguma coisa que vai resgatar um
momento e alavancar outros. Acupuntura da memória?
Nos Estados Unidos, a cidade de São Francisco fez isto, contando a
história dos locais descritos nos livros de Dashiell Hammett, ou nos filmes de
Humphrey Bogart. É a memória da ficção.
O Rio de Janeiro também, com a história da bossa nova, onde começou o
primeiro show, o Beco das Garrafas, a rua Nascimento Silva, os bares.
Os artistas de qualquer época sempre vão ajudar. Eles cantarão e
escreverão sobre o lugar. Pessoas vão reunir isso mais tarde, sedimentando
em novas histórias.
Em San Juan, Porto Rico, uma placa marca o local onde, pela primeira
vez, se preparou uma piña colada. Na Paris de Hemingway, o Ritz será
sempre tão importante quanto os monumentos da cidade.
De parques, praças e monumentos

Para uma praça você vai; num parque você se perde. Uma praça, às vezes, é
para você ver o que está em volta; um parque é para você ver o que está
dentro dele.
Não é simples assim. Praças e parques são como quadros: dependem
muito da moldura. É importante saber com qual trabalhar.
Mais difícil é o passe-partout. Algumas praças precisam de moldura
pequena, e de um grande passe-partout.
E alguns parques vazam pela cidade, sem moldura nem passe-partout.
Que palavra mais apropriada.
Uma praça tem que ter entradas. Elas são abertas a todos, mas com
entradas, elas parecem ser especiais para você.
Elas são pequenas, e podem pertencer a milhões. Às vezes são enormes, e
parecem não pertencer a ninguém.
Fechadas, abertas, cercadas, cobertas, o que as caracteriza é o sentimento
de pertencer.
A Place des Vosges, em Paris, sem dúvida pertence ao casario em volta,
magnífico.
O Gramercy Park, em Nova York, cercado de edifícios, mantém uma
estreita ligação com a entrada dos prédios.
As praças cobertas dos prédios nova-iorquinos pertencem a milhões. São
pequenas, mas abrigam espaços dignos.
Uma grande praça num grande ensemble nos arredores de Paris, ou num
conjunto habitacional no Brasil, nos dá a sensação de não pertencer a
ninguém.
Já as pequenas praças italianas nos deixam fazer parte, e se incorporam
imediatamente à nossa memória.
Uma das menores praças do mundo, a Place de Furstenberg, em Paris, dá
a sensação de só pertencer a você.
Que dizer dos parques. Imensos, superocupados, como o Golden Gate
Park, em São Francisco, cheio de equipamentos e atrações.
Os que servem de moldura à paisagem natural, como o do Aterro do
Flamengo, no Rio, ou os parques franceses que criam perspectivas para
monumentos, como o das Tuilleries.
Ou os que são emoldurados pelos prédios que o circundam, como o
Central Park, em Nova York.
Os parques para todos, como os parques ingleses, ou aqueles definidos
por catedrais de árvores, como o Jardim Botânico, no Rio, ou maciços de
candelabros, as araucárias do Parque Barigui, em Curitiba.
Ainda os que me agradam são os pátios pequenos, como os dos pequenos
hotéis franceses, entre eles o pátio do Hôtel de l’Abbaye ou o do Relais
Christine, em Paris.
Os pátios espanhóis com suas fontes que vão pingando minutos, ou o
pátio do Pelourinho, em Salvador, que tem cor e cheiro.
Não gosto de monumento de gente que não tenha afeto, ou dos que estão
muito acima do povo, com frases que pretendem defender o povo.
Sou partidário de uma boa acupuntura de afeto, como a ideia do Allan
Jacobs, famoso urban designer americano, que propôs uma rua de estátuas,
onde cada um poderia homenagear amigos e parentes, pagando pelas
mesmas. Assim, você pode, desde já, passar belos momentos em companhia
de futuros monumentos.
Importante também são os bustos, não se pode descuidar deles. Em
Curitiba, a comunidade polonesa queria retribuir à cidade pela criação do
Bosque do Papa, em homenagem à visita de João Paulo II à capital
paranaense. Resolveram encomendar a uma assistente de Pietro Bardi uma
escultura do papa.
Em uma data importante, lá estávamos, o governador e eu, como prefeito,
presentes à inauguração. A banda tocando, um imenso paneau cobria a
estátua, que até aquele momento não era conhecida.
A banda agora toca com suspense. Ao rufar dos tambores, sobe o painel e
aparece a estátua do papa. Foi um horror. O papa parecia um Exu, com seus
olhos de resina sintética. Foi um deus nos acuda.
Nem a tentativa de socorro da banda deu certo. Uma velhinha polonesa,
seguida de um séquito furioso, brandia sua sombrinha, como uma baioneta
pronta para acabar com o responsável pela obra.
Os momentos de conflito e conciliação da comunidade polonesa tiveram
seus lances de apreensão. Parecia uma assembleia das Nações Unidas. Uma
comissão veio pedir-me a retirada da estátua, o que recusei. Como poderia eu
censurar uma obra artística?
Depois de algumas semanas consegui uma solução salomônica.
Tentaríamos usar uma vegetação que encobrisse a estátua, e a comunidade
polonesa nos daria um relevo para ser fixado numa das placas. Com o
cuidado de que o relevo, desta vez, fosse parecido com o papa.
Parecia que o problema estava resolvido. A estátua seria camuflada e o
medalhão em relevo marcaria a visita do papa, se não tivesse ocorrido um
“milagre” junto à estátua. A notícia do milagre se espalhou, e o povo só quer
as graças da estátua. E o medalhão está lá, completamente esquecido.
O guia de uma página

Durante anos cultivei o hábito de, em cada cidade, em cada viagem, fazer
desta um guia de uma página. O objetivo era não perder tempo, nos poucos
dias que ficava na cidade, para saber o que existia, o que acontecia de
novidade, o que era bom. Às vezes, em dois ou três dias em Nova York ou
Paris, perdia grande parte do tempo para me informar.
Nesse guia eu desenhava o mapa da cidade em um dos lados da folha. Isto
é, a maneira como eu entendia a cidade. No verso, colocava a agenda, com
hotéis, restaurantes, horários e locais de exposições, e outras coisas que não
poderia deixar de ver, como concertos ou espetáculos.
Logo alguns amigos começaram a pedir meu guia emprestado. Na volta
de suas viagens, eles me devolviam uma cópia, acrescentando o que tinham
encontrado de novidade. E assim o guia ia sendo constantemente atualizado.
Não podemos nos esquecer das crianças, que também merecem um guia
de uma página. Ele pode ser a capa do caderno escolar, onde as crianças
teriam o mapa da cidade, e o que é mais importante: iriam conhecê-lo. No
outro lado do guia, as crianças poderiam ter a relação das coisas de que mais
gostam na cidade, e trocar essas informações com seus colegas. Ou ainda o
mapa do estado em relevo, uma pequena maquete na qual poderiam entender
o seu estado, seus principais rios e acidentes geográficos. Este guia seria mais
útil do que aprender para que serve o Máximo Divisor Comum — para o qual
até hoje não encontrei explicação.
Colesterol urbano

Qual é a boa acupuntura para excesso de colesterol urbano? Bem, primeiro


vamos explicar o que é essa doença. Colesterol urbano é o acúmulo, em
nossas veias e artérias, do uso excessivo do automóvel. Isso afeta o
organismo e até a mente das pessoas. Logo elas começam a pensar que tudo
se resolve com o automóvel. Preparam então a cidade só para o automóvel.
Viadutos, vias expressas... e as emissões de gases dos carros.
A solução: usar menos, evitar o uso do automóvel quando houver boa
alternativa de transporte coletivo nos itinerários de rotina.
É o bom colesterol.
Mas pensar a cidade em função do automóvel é outro problema. O
shopping center fora da cidade induz a falta de exercício, impede a
caminhada pela cidade.
E separar as funções urbanas — isto é, morar aqui, trabalhar ali e ter
atividades de lazer em outro lugar — provoca um desperdício de energia. A
consequência é o aumento de pressão pelo congestionamento, pelo tempo que
se perde, pela poluição, pelo estresse.
E quantas vezes, ao garantir espaço para dois automóveis, você nega a
seus filhos uma área para eles brincarem?
O bom colesterol é o uso controlado do carro. E a boa acupuntura é jogar
a chave fora por algumas horas.
Prédios com dignidade

A sensação de pertencer. Esta é a sensação que um dos bons prédios antigos


traz quando observado da rua.
Eles pertencem à rua.
Abrem-se para a rua com grandiosidade. Logo, se abrem para seus
moradores com generosidade. Grandes entradas, portas, portais, lobbies,
abrigos. Não deixam ninguém ao desabrigo, parecem querer nos acolher.
Ao contrário de um prédio moderno, que esconde suas entradas, ou as
joga para as laterais, considerando esta relação secundária.
Outra sensação que um prédio antigo nos oferece é a de contemplar a
eternidade. Como se alguém em cima estivesse olhando.
Logo, o coroamento é importante. Ele se liga à rua e à imortalidade.
Como se o coroamento do prédio fosse uma espécie de reverência aos tempos
futuros.
Os prédios modernos, não. Simplesmente terminam, acrescidos de
estranhas edículas, caixas-d’água, antenas de TV, caixas de elevadores,
exibindo suas entranhas.
Quando muito, uma cobertura egoísta bem tratada, ou um novo piso falso,
uma piscina, para favorecer um privilegiado. Não há neles o senso de
comunidade, de pertencer, que os grandes prédios tiveram. Por isso, acho que
os prédios antigos prestam uma reverência à cidade, nas suas diferentes
épocas.
Um Chrysler Building, um Crowne Building, uma estação de trem
inglesa, todos eles têm esse compromisso. Qual o compromisso do prédio
moderno? Negar-nos a entrada, esconder o lado público, e reservar-se a
poucos.
Na volta, suas entranhas, ou seu egoísmo.
No seu imediatismo, candidata-se à demolição humana, porque
transformar-se em sucata não o aflige.
Acupuntura do silêncio

As cidades têm seus sons. Em muitas delas, o som natural da cidade


dificilmente é ouvido, pois há uma invasão sonora, com ruídos que se
misturam ao som da cidade. É pena. O som natural faz parte da identidade da
cidade.
Tive uma experiência maravilhosa em Ferrara, na Itália. É uma cidade
que me dá a certeza de que existe a possibilidade de um silêncio que nos
permite ouvir os sons da cidade. Ou seja, não é um silêncio total, mas a
ausência de uma violação dos sons da cidade.
Ouvem-se as conversas, ouvem-se os sons do ambiente da cidade. Isto só
aumenta a beleza de Ferrara, uma cidade tradicional, histórica, com uma das
mais antigas universidades da Europa. Há muitos jovens em Ferrara, existem
até áreas bastante animadas, mas, mesmo assim, pode-se ouvir a cidade. São
sons reais, sem mistura, o som puro de uma cidade viva. Ferrara tem seu som
em estado puro.
O som de uma cidade não tem a ver com a sua escala, nem com a
ausência de barulho. Barcelona é uma cidade barulhenta, mas este é o seu
som em estado puro. É uma faena normal. O som das ramblas, das conversas,
faz parte da identidade da cidade. Na barulhenta Barcelona também existe um
silêncio que nos permite ouvir o som da cidade.
Os exemplos de Ferrara e Barcelona falam de dias normais. Tratam do
som que faz parte do dia a dia das cidades. Mas há cidades que, em certos
dias, dias especiais, também têm sons especiais. Acompanhar o som nestes
dias, nestas cidades, é um momento mágico.
No dia do Yom Kippur, em Jerusalém, pode-se ouvir o som deste
momento mágico. Pouco a pouco, a cidade vai silenciando, os ruídos
diminuem, não há mais sons, apenas sussurros.
Os carros param. Não há poucos carros, como num fim de semana ou
feriado. Nenhum! Nenhum carro. As ruas vazias. Adultos e crianças
caminham nas pistas dos automóveis. Os carros, todos estacionados, como se
estivessem abandonados. Nada de barulho de caminhões, ônibus,
caminhonetes, nada de motores, nada, absolutamente nada rola sobre as ruas.
Há um grande sussurro na cidade e as pessoas andam silenciosamente,
calçando tênis ou alpargatas. Nada que faça barulho. Há uma vontade imensa
de se passear pelas ruas, sem medo dos antigos ocupantes. As conversas
produzem uma espécie de murmúrio. Um santo sussurro.
No Dia do Perdão tudo para em Jerusalém. Em outras cidades há um
pequeno movimento, mas em Jerusalém tudo para mesmo. É uma lei que
todos respeitam, religiosos ou não. Velhos, jovens, crianças caminham para
as sinagogas, carregam seus livros, outros já vestem seus taleisim na rua.
Grupos de jovens conversam sentados na rua. A saída da sinagoga se
estende pelas ruas, a conversação dura horas e horas. Deixando de lado a
religião, de repente você se dá conta de que é um grande papo.
Ruas sem carros me fazem pensar na ideia de uma greve de carros. Um
acordo que todos os moradores de todas as cidades do mundo deveriam fazer
para saber como as cidades ficam melhores sem os carros. Que o silêncio é
importante como qualidade de vida, até para selecionar melhor os sons da
cidade.
O Yom Kippur vai terminando. Aguarda-se o aparecimento da primeira
estrela. As pessoas vão se encaminhando para o imenso pátio do Muro das
Lamentações, à espera do som do shofar. Trombetas que fizeram derrubar
muralhas agora tocam para um povo que ancorou sua identidade neste muro.
Algumas pedras. Por milênios estas pedras foram referência.
Em Istambul há um momento mágico diário. No fim da tarde, quando os
muçulmanos iniciam suas orações ao pôr do sol, faz-se um silêncio repentino.
O silêncio que permite apenas que seja ouvido o som da cidade nesta hora
especial.
É uma transformação instantânea e incrível. Uma metrópole
movimentada, dinâmica, com quase 10 milhões de habitantes, de repente
silencia. Uma voz ecoa por todos os minaretes da cidade. Ouve-se a sucessão
dos sons dos minaretes. Neste momento, o som da cidade é a comunicação da
fé.
Uma boa acupuntura do silêncio é permitir que o som normal das cidades
possa ser ouvido. Fazer silêncio para depurar o verdadeiro som. Afinar o som
da cidade. Meu sonho era ser um afinador do som das cidades. Antigamente,
havia aquelas pessoas que tinham a nobre missão de acender os lampiões a
gás que iluminavam as cidades. Eu queria ser o afinador de som.
Ramblas e galerias

Pode o simples desenho de uma rua influenciar o comportamento de uma


cidade? A acupuntura feita pelas ramblas em Barcelona parece responder por
isso.
Barcelona é uma das cidades mais animadas do mundo. Ou, talvez, aquela
com mais vida. E não se pode creditar somente ao espírito catalão essa
animação. Aqui houve uma soma de circunstâncias.
Barcelona é uma das cidades mais densas do mundo, o espírito do catalão,
o mediterrâneo, as razões históricas, mas o desenho da rambla é o cenário
ideal para a vida urbana.
Durante a madrugada ela já está animada. E a festa que acontece durante
o dia mostra o que é um bom ponto de encontro. Ali, as pessoas são atores e
espectadores desse espetáculo que é a cidade.
Sim, existem outras cidades que têm músicos, mímicos e mágicos nas
ruas. Existem, mas em nenhuma delas isto acontece com tanta frequência.
Parece um filme, cada pedaço de rambla já é em si um grande bazar.
Todas as cidades têm galerias. Algumas muito simples, lojas de um lado e
de outro, outras grandiosas, como a galeria Vittorio Emanuele, em Milão. É o
ponto de encontro mais bonito da cidade. Ou como a galeria das lojas GUM,
em Moscou, ou a galeria Lafayette, esta uma loja de departamentos em Paris.
Mas a cidade que tem o maior e o mais variado número de galerias é
mesmo Paris. As galerias Vivienne e Colbert, interligadas, são magníficas.
Assim como a Passage des Panoramas, perto da Bourse. O que me encanta
nessas galerias não é somente o fato de serem antigas e cobertas. É a
qualidade das lojas, o detalhe, as vitrines. Ah, sim, e vender rendas, fitas,
enfeites de bolos, caixas de música com a mesma dignidade de quem vende
as coisas mais preciosas do mundo.
Mas a maior arma, e a mais pesada, encontra-se nas galerias da praça do
Palais Royal: os guerreiros dos exércitos de soldadinhos de chumbo lá estão.
Até as condecorações você pode comprar nessas lojas, e sair mais enfeitado
que marechal em dia de desfile.
Picada rápida não dói

Na acupuntura, o importante é que a picada seja rápida.


Não se pode imaginar acupuntura com a agulha sendo introduzida com
pressões demoradas e dolorosas. Logo, a acupuntura exige rapidez na picada
precisa.
A mesma coisa acontece com a acupuntura urbana. Foi assim que em
Curitiba, em 1972, implantou-se a primeira zona de pedestres. Essa operação
foi feita em 72 horas.
Ainda me lembro de que, ao divulgar o projeto, a reação dos comerciantes
foi contrária e muito forte. Sabíamos que a ideia era de difícil execução, pois
a obra poderia ser interrompida por demandas judiciais. Era imperioso que o
trabalho fosse rápido, muito rápido. A previsão dada pelo meu secretário de
Obras era de, no mínimo, alguns meses. Insisti na rapidez e no prazo de 48
horas. Tenho certeza de que fui considerado louco. Até que o secretário
procurou-me e disse que a obra seria possível em um mês. Recusei
novamente, e assim iam aparecendo novas propostas para a execução do
projeto: preparar antes o mobiliário; turmas especiais para fazer os pisos em
cada quadra.
O tempo foi sendo reduzido até que o secretário chegou ao limite: uma
semana. Relutei e consegui um acordo para um prazo de 72 horas.
Começaríamos numa sexta-feira à noite e entregaríamos a obra à população
na segunda-feira à noite.
Caso o povo não aprovasse a mudança, sempre poderíamos restabelecer o
que havia antes. Mas era necessário que a população visse a obra completa. E
assim foi feito.
No dia seguinte à inauguração, um dos comerciantes que encabeçavam
um abaixo-assinado contra o projeto apresentou-me um novo pedido: que as
obras continuassem e abrangessem mais regiões.
A Ópera de Arame, que aproveitou o espaço de uma antiga pedreira, foi
executada em 60 dias. A intenção não era bater recordes, mas há obras que,
por razões especiais, têm que ser rápidas. No caso da Ópera de Arame, a
razão era não perder a oportunidade de realizar um Festival Internacional de
Teatro. Uma disputa política entre o governador e os patrocinadores fez com
que ele proibisse a realização do festival no Teatro Guaíra, o principal da
cidade. Surgiu então a necessidade de executar a obra da Ópera de Arame a
tempo de ser a sede do festival. Começamos no dia 15 de janeiro.
Dois meses depois, no dia 18 de março, inauguramos o teatro. Para que a
obra fosse executada em tão pouco tempo, trabalhamos só com um tipo de
material, tubos de aço. Só usamos uma concorrência para a mão de obra. Foi
uma odisseia.
Outra obra executada muito rapidamente foi o Parque do Passaúna, que
precisava ser concluído antes que um novo governo tomasse posse. O
governador da época era também politicamente contrário, mas entendia a
necessidade da proteção dos mananciais, e fizemos um parque em 28 dias,
antes mesmo do tempo de um levantamento topográfico. Tudo foi decidido e
executado na obra. A Universidade Livre do Meio Ambiente também foi um
recorde, executada em dois meses.
Mais recentemente, o NovoMuseu, ou Museu Oscar Niemeyer, foi
executado em cinco meses. Vocês podem imaginar como é complexa uma
obra como essa, mas tínhamos a possibilidade de reciclar um antigo prédio de
Oscar Niemeyer, magnífico e audacioso projeto dos anos 60 transformado em
Secretarias de Estado.
Transformar um espaço burocrático num espaço destinado a criatividade,
identidade, arte, design, arquitetura e cidades era importante. Mais uma vez
era necessária a rapidez.
E o museu está aí, revelando a genialidade de Oscar Niemeyer, numa obra
cujo custo, 12 milhões de dólares, é muitíssimo inferior a uma franquia do
Guggenheim.
A rapidez dessas acupunturas tinha um objetivo: evitar que a inércia dos
vendedores de complexidade, da mesquinhez e da política inviabilizasse
momentos e obras fundamentais.
Trompe l’oeil

Às vezes, a cidade recorre ao que é falso para salvar o verdadeiro. É o caso de


tapumes de obras que mostram como ficará um prédio depois de restaurado.
Foi o que aconteceu na restauração da Madeleine, em Paris. Os painéis
que encobriam as obras mostravam uma Madeleine até mais bonita que a
verdadeira.
Outro exemplo fantástico de trompe l’oeil é a decoração ilusionista da
nave e do domo da Igreja de Gesù, em Roma, acrescentada um século depois.
Ou na Igreja de Santo Inácio de Loyola, onde a cúpula projetada e não
construída foi coberta com um trompe l’oeil, numa falsa perspectiva.
Em Berlim durante a reforma da Porta de Brandemburgo, foram
instalados tapumes gigantes para esconder a obra. Neles eram colocadas
imagens da cidade, para se criar uma perspectiva diferente.
Um trompe l’oeil que não ajuda a cidade é o shopping center, com as
mesmas lojas, os mesmos logos, o que não permite que você identifique em
que cidade está. Este é realmente um trompe l’oeil que não ajuda.
Mas uma boa vitrine pode ser um belo trompe l’oeil. Não conheço cidade
que tenha vitrines mais lindas que Paris. É como ver um desfile de cores.
Tudo tem vitrine, do hotel mais simples às lojas mais sofisticadas. É um
passeio pelo mundo de quem se esforça para mostrar o melhor. Talvez seja
falso, mas orgulho e auto-estima necessitam de acupuntura contínua.
Muitos usam o recurso do trompe l’oeil para chocar, criar uma
perspectiva falsa ou acentuar um absurdo. Aliás, essa é uma discussão antiga,
que me lembra o diálogo entre o falso e o verdadeiro:

O falso diz ao verdadeiro: Eu cheguei primeiro.


O verdadeiro responde: Você mal existe, e eu sou derradeiro.
Sem mim, diz o falso, você não seria verdadeiro.
Você, sozinho, pode ser falso ou verdadeiro.
Nós dois juntos, como sou falso, mentirei e serei inteiro.
E você, com sua verdade, pode ser considerado falso.

No caso, a acupuntura consiste em fazer o falso trabalhar para o


verdadeiro.
Carta a Fellini

Vivíamos a época mais importante do cinema italiano. Fellini, Ettore Scola,


Pasolini, Visconti e tantos diretores mágicos. Então, houve um momento em
que a cidade de Curitiba escreveu uma carta a Fellini. A história é mais ou
menos esta:
Corria a notícia de que Federico Fellini viria ao Brasil para uma Bienal de
São Paulo. Surgiu um movimento em Curitiba para que Fellini visitasse a
cidade. A ideia era homenagear o compositor Nino Rotta, autor das trilhas
sonoras da maior parte dos filmes de Fellini, recentemente falecido, dando
seu nome a um auditório que se pretendia fazer numa pedreira que, como
prefeito, eu havia desativado.
Decidimos convidar Fellini para inaugurar o auditório Nino Rotta. Mas
como fazer este convite?
Os jornalistas Aramis Milarch e Valêncio Xavier e um grande número de
cineastas e cinéfilos curitibanos entenderam que a carta-convite deveria ser
feita por meio de um filme. O convite seria feito por personagens fellinianos
em várias partes da cidade. Ou seja, Curitiba seria descrita para Fellini em
seu vocabulário.
O movimento dos dias seguintes foi de criação intensa. O filme foi
concluído. A cena final acontecia na própria pedreira, com o pintor italiano
Franco Giglio dando uma pernaccia aos diretores de cinema.
E quem entregaria a carta? O próprio Giglio, que, diziam, era conhecido
de Fellini. Só que, a essa altura, a diversão de fazer o filme era tão grande que
já nos tínhamos esquecido de Fellini.
Mas a missão exigia o prosseguimento até o fim. E lá se foi o nosso
Franco Giglio com sua Rose para a sua Dolce Aqua, atendendo a um
chamado da família.
A timidez do amigo Franco Giglio, no entanto, nunca permitiu que o
filme-carta fosse entregue. Alguns anos depois faleceu sem completar a
tarefa.
Mas o grande auditório da pedreira foi feito e, ao lado, em outra pedreira,
construímos a Ópera de Arame.
Acredito que Fellini nunca soube que a vontade de homenageá-lo criou
uma acupuntura tão bonita.
Ah, o filme Carta a Fellini ganhou prêmios em vários festivais de cinema.
Como achar uma pessoa
numa cidade

Uma cidade deveria permitir não só o encontro entre as pessoas, mas também
que as pessoas pudessem ser encontradas.
Achar uma pessoa em Caracas, fora dos pontos mais significativos, já é
difícil.
As urbanizações não trazem muitas indicações.
Em Tóquio, muito mais difícil. São códigos que cada cidade cria, com
indicadores que só seus moradores entendem.
E como encontrar uma pessoa em Dolce Acqua, na Itália? Eu e minha
mulher, Fani, descemos em Nice. Passamos por Monte Carlo e, na estrada,
lembramos que estávamos perto de San Remo, região onde morava Franco
Giglio, nosso pintore italiano.
No posto de gasolina fico sabendo que oito quilômetros ao norte de
Ventimiglia há um lugarejo chamado Dolce Acqua, perto das ruínas de um
castelo, junto ao rio Nervia.
Tivemos a sensação de que era só gritar “Franco Giglio” e o
encontraríamos. Franco, Franco Giglio, a gritar pelas estradas.
Alguns minutos depois, estamos em frente a uma ponte medieval de
pedra. Já do outro lado, damos o primeiro grito: “Franco, Franco Giglio!” Um
garoto vem correndo: “Il pintore brasiliano? No bar do Pastio.”
Dentro do bar, uma névoa de fumo, o barulho agradável de homens
bebendo e conversando. Nosso segundo grito: “Franco, Franco Giglio!”
Um homem nos pega pela mão e nos leva a um sobrado. “Franco, Franco
Giglio.” E ele abre a janela.
Com três gritos ainda se pode achar uma pessoa numa boa cidade.
Mas dificilmente um ponto de encontro tem uma história tão bela quanto
a do Hachiko, em Tóquio. Hachiko era um cão akita que, na década de 1920,
pertencia a um professor da Universidade de Tóquio, antiga Universidade
Imperial. Todos os dias, Hachiko acompanhava o professor Eizaburo Ueno
até a estação de Shibuya, onde ele pegava o trem para o trabalho.
Diariamente, às três da tarde, Hachiko voltava à estação para aguardar o
retorno de seu dono.
No dia 21 de maio de 1925 o professor Ueno sofreu um derrame e morreu
na universidade. Desde então, durante quase nove anos Hachiko continuou
indo à estação todas as tardes para esperar o amigo que nunca mais voltaria.
Em 7 de março de 1934, Hachiko morreu no mesmo local onde sempre
esperava o professor.
A história de Hachiko já era famosa na cidade, e um mês depois foi
colocada uma escultura em sua homenagem na entrada da estação de
Shibuya. A estátua em bronze, com 91 centímetros, foi feita pelo artista Teru
Ando. Durante a Segunda Guerra Mundial, todas as estátuas foram
confiscadas e derretidas para a fabricação de armas, incluindo a de Hachiko.
Em 1948, Takeshi Ando, filho do escultor da estátua original, foi contratado
para criar uma réplica, que foi colocada no mesmo lugar da anterior. O
verdadeiro Hachiko foi empalhado e está no Museu de Ciências Naturais de
Tóquio.
A vida de Hachiko foi contada em um livro e num filme chamado A
história de Hachiko. Viajantes que passam pela estação de Shibuya podem
comprar presentes e recordações do seu cão favorito na loja Shibuya No
Shippo. Um mosaico colorido de akitas cobre a parede perto da estação.
O dia 7 de março passou a ser a data do Festival Hachiko, em
homenagem à lealdade dos cães. E, há dezenas de anos, a estátua do Hachiko
é o principal ponto de encontro de Tóquio. Ali, a qualquer hora do dia,
sempre haverá alguém de olho no relógio, à espera de um amigo.
A presença de um gênio

Claro que a presença de gênios marcou a vida de muitas cidades importantes


do mundo.
Nas cidades italianas isto é incontável, com os grandes mestres
renascentistas como Michelangelo, Da Vinci, Ticiano, Botticelli.
Mas em nenhuma delas se sente a presença do gênio como em Barcelona.
Não há muitas obras de Gaudí na cidade. O Parque Güell, a Casa Milà, a
Igreja da Sagrada Família, a Casa Batlló, a Casa Vicens.
No entanto, Barcelona respira Gaudí. Ele parece estar em tudo, mesmo
nas obras que nada têm a ver com ele. Embora o meu gênio preferido em
Barcelona seja Domenecq.
No Rio, Oscar Niemeyer não tem muitas obras. A Obra do Berço, o
prédio do Ministério da Educação, o Museu de Arte Contemporânea de
Niterói, mas o Rio é Oscar Niemeyer. É também Millôr, é Vinicius de
Moraes, é Antonio Carlos Jobim, é Cartola, é Burle Marx.
Belo Horizonte tem mais obras de Niemeyer. Tem a Pampulha, entre
outras, mas Belo Horizonte não é Oscar Niemeyer.
Curitiba é Poty. Porto Alegre é Mário Quintana. A Bahia é Caymmi, Gil e
Caetano.
Podem tentar racionalizar qualquer cidade, mas um gênio é necessário.
Cidades precisam de tudo. Mas é bom saber que um gênio é necessário.
Mercados e feiras

Por que será que um mercado atrai tanto a gente? Muitas explicações: a gente
gosta de ver gente, o mercado é tão antigo quanto a cidade, a gente gosta de
ver os outros fazendo a mesma coisa, a gente gosta de ver comida, a gente
gosta de ver o preparo, o manuseio.
Com a modernização das cidades, com a globalização, começamos a
receber e comprar coisas embaladas demais, prontas demais, em espaços
acabados demais. Não vemos mais as coisas em estado puro. Por isso a
nostalgia de ver produtos, frutas, verduras, carnes, pescados em estado
natural nos atrai.
O zoológico contemporâneo não vai ser mais aquele que tem leões,
girafas, onças, pelicanos, mas um espaço que tenha galinhas, bois, porcos,
patos, marrecos e carneiros.
Por que o mercado La Boqueria, em Barcelona, é um dos melhores do
mundo? Porque é lindo, com seus vitrais coloridos, e a maneira como os
produtos são apresentados é atraente. As carnes, as frutas e as verduras têm
até cheiro de frescor; tudo isso se transfere para os vendedores, que são muito
alegres. E é bom sentir isto logo de manhã. Um café da manhã num lugar
dentro do mercado é inesquecível.
Todos nós ficamos cansados de ver as coisas iguais demais, um shopping
normal nos exclui da cidade, com suas lojas tão iguais a ponto de você não
saber em que cidade está.
Mas as feiras e mercados sempre foram pontos de referência numa
cidade.
Paris ficou pior depois que demoliram Les Halles de Balthard. Nada
conseguiu recompor a vida que o “ventre de Paris” proporcionava.
Mas não precisamos ir tão longe. O Mercado de São Paulo é um mercado
importante. E ficará melhor ainda depois de sua restauração e da revitalização
de toda a área do Parque São Pedro, que já estão previstas.
O Mercado Municipal de Curitiba não tem tanta tradição, mas é um bom
mercado.
A nostalgia que o nordestino tem de sua região fez com que surgisse no
Rio uma feira tão atraente quanto qualquer feira ou mercado do Nordeste.
Em Amsterdã, o Albert Cuyp Markt, nas segundas pela manhã, o Noorder
Markt e o Waterlooplein no quarteirão judaico são bons como qualquer
mercado europeu. A Feskekorka, em Gotemburgo, Suécia, é uma beleza de
mercado, mas não iguala a diversidade do Grande Bazar de Istambul, ou o
Bazar de Especiarias, já com características diversas.
E o que dizer desse mundo que é o mercado de peixes de Tóquio? Nós
parecemos mergulhadores sem escafandro nesse imenso mar de peixes e
polvos na terra.
Mas nada supera a riqueza, o prazer da compra, de regatear, de um souk
árabe. Normalmente, as ruelas são muito estreitas, o que leva os comerciantes
a se sentarem do lado de fora da lojinha. Com o pouco espaço que sobra,
você é obrigado a olhar para um lado e para outro. O comerciante já
conseguiu o que queria: prender a sua atenção. Aí você está perdido, vai
acabar comprando. Agora, faça como eles, faça disso um prazer. É nas
cidades ou quarteirões árabes que a atividade comercial nos traz um molho de
identidade.
O tempo, que sempre adiciona novas camadas à civilização existente, tem
a nostalgia da coisa bruta, que lhe permitia entrar, concluir, fazer alguma
coisa.
Por isso, a moda mais sofisticada procura locais mais rústicos, menos
acabados, para se sobressair, até para ser fotografada.
E o homem procura, no mercado, encontrar seu próximo, fazendo a
mesma coisa em locais animados.
O mercado é uma acupuntura de identidade numa época que muitas
cidades se descaracterizam.
Um balcão de bar

Apoio, sensação de conforto, mente desperta são reflexos de uma boa


acupuntura.
Por isso, um bom balcão de bar é importante. Os espanhóis costumam
dizer que é bom ter uma boa barra.
Um balcão é importante em qualquer momento, em qualquer lugar do
mundo. Desde o antigo armazém, onde se compravam as coisas de casa, e se
aproveitava o balcão para uma boa conversa, uma tabelinha de aperitivo antes
de chegar em casa, aos sofisticados bares das happy hours nas grandes
cidades.
Pequeno, grande, redondo, o importante, além do produto, da bebida e da
comida, é a tolerância e a compreensão do barman. Das champanerias de
Barcelona aos irish bars de Nova York, ou ao boteco do Rio, todos precisam
ter esse sentimento de solidariedade. A paciência para ouvir histórias
repetitivas, que na sua casa já não aguentam.
Qual o melhor balcão? Um balcão de boteco do Rio tem a informalidade,
a cumplicidade e o sentimento de celebração. De quê? Não sei. Talvez
celebrar a amizade de quem ainda não conhece os defeitos do outro.
Penso no balcão do P.J. Clark’s, em Nova York, que tem, ou tinha, um
desenho que ajuda a segurar na barra e equilibrar-se na banqueta. Ou o balcão
das cafeterias de Nova York, onde as conversas das primeiras horas do dia,
no breakfast, vão acontecendo enquanto o ruído das chapas e das espátulas
acompanha a preparação dos ovos de todos os tipos, ao som de um dueto de
latinos de um lado e americanos do outro, embalados por uma salsa no
começo da manhã.
Tempos atrás, eu atravessava o Central Park para ir à cafeteria do Hotel
Excelsior só para ver a velocidade com que um senhor de quase 70 anos
atendia os fregueses e toda a vizinhança. Não sei se ainda está lá, mas era um
balcão com a velocidade da luz.
Aliás, velocidade no balcão é essencial. A barra de uma tasca de Bilbao
ou San Sebastian, na Espanha, tem fila dupla nos atendentes e fila tripla nos
frequentadores. “Tinto y jamón”, butifarras, almejas, anguilas passam com
eficiência barulhenta.
Em Berlim, no Gendarmenmarkt, um balcão com rodinhas se estica até a
calçada para que a conversa se estenda até lá fora. É um balcão conversível
como um carro esporte.
Nos sushi-yas de Tóquio, os pratinhos com sushis deslizam por uma
esteira no balcão, diante do cliente. Dentro do balcão, em formato oval ou
circular, ficam os sushimen, trabalhando veloz e incansavelmente. O freguês
só tem o trabalho de acompanhar o “desfile” na esteira e pegar o tipo de sushi
que mais lhe apetece. Depois, é só contar os pratinhos para fechar a conta.
Em Tóquio, aliás, há bares em cantinhos tão estreitos que só têm o balcão e
não mais que uma dúzia de banquetas.
A barra do balcão representa o que para o nadador é a virada na piscina.
Uma boa batida na barra é um mergulho num novo momento do dia em que,
como diz Nireu Teixeira, “a noite será como um filtro, só ficarão os bons”.
Aliás, não é que muitos bares existem em torno de uma piscina? O bar
mais bonito de Nova York fica em Williamsburg, Brooklyn, com uma falsa
piscina iluminada numa antiga garagem. Quero esse iluminador na minha
cidade.
Um pub inglês dá grande importância ao balcão. Alguns deles têm
divisórias, uma espécie de reservado, ou será um confessionário? Já
imaginaram um filme de faroeste sem balcão; ou uma cena de publicidade?
Os bares exigem um certo atrevimento na conversação, pois alguém tem
que tomar a iniciativa. Para os jovens, um bom lugar para pendurar a
insegurança; para os solitários, um local para dividir a solidão.
Da barra dos bajo-rasantes em San Sebastian ao bar em frente ao Bósforo,
em Istambul, o balcão é uma acupuntura contra a solidão, logo, a favor da
cidade.
Há alguns especiais, como o do Boxe 32, no Mercado de Florianópolis,
espaço democrático para os habitués do Mercado, e sofisticado para quem
assim o quiser. Do pastel ao champanhe.
Outro balcão de bar muito especial é o Maneko’s, em Curitiba, que entrou
para a história por causa da única solenidade de transmissão de cargo de dono
de bar de que se tem notícia.
Antes de virar Maneko’s, o bar chamava-se Mano’s, e ficava numa
galeria onde também trabalhava o meu barbeiro, Zé Trindade. Chama-se
Galeria do Comércio, mas se houvesse algum lugar parecido com uma
estação de metrô boliviano, seria esta galeria.
Havia no lugar uma série de atividades estranhas, o consertador de
bonecos e brinquedos, a loja que restaura guarda-chuvas e, no ponto central
da galeria, um fliperama.
O grande ponto de encontro do local era o Mano’s Bar, onde as pessoas
ficavam sentadas com vista para o fliperama.
Em 1º de junho de 1984, o Mano transmitiu o cargo ao novo proprietário,
Manoel Alves, na presença de fregueses, amigos, e com o compromisso da
continuidade da cozinheira Iza, do garçom Nilson Passarinho, e de manter
regularmente a oferta de seus tradicionais petiscos: o bolinho de bacalhau e o
mocotó.
Ao contrário de muitos compromissos políticos, este foi honrado e
mantido até hoje no bar que, em 1988, foi transferido para a alameda Cabral,
a menos de 100 metros, com o nome de Maneko’s, o apelido do novo dono.
A atitude de Manoel Alves foi um verdadeiro gesto de gentileza urbana e
solidariedade com a freguesia.
Só há uma coisa que o balcão de bar às vezes produz e que precisa ser
combatida com rigor: o chato.
Contaram-me que, em Poços de Caldas, havia um dono de bar que, ao
sentir a aproximação de um chato, batia um sino. Era o aviso. Mas que
responsabilidade!
Há o sofisticado bar a vin, em Paris, onde você pode provar todos os
vinhos; há os botequins do Rio, fonte inesgotável de bons petiscos, bom
chope e uma certa enturmação desarmada.
Ah, os botequins do Rio. Não há como igualar sua simplicidade, simpatia
e tolerância. Porque o balcão exige uma boa dose de tolerância, do dono aos
fregueses, o que é um traço de humanidade importante.
E os balcões de zinc nos cafés de tabac de Paris, onde a manhã começa
com uma tartine, um café, um vinho ou um marc. Não importa. É a
Marselhesa saudada nas taças de um Pernod.
Mas a solidariedade dos bares se mede pela proporção da barra do balcão
e pelo número de mesas. A solidariedade é maior quando a barra é maior.
Porque o balcão representa um estado de equilíbrio, não só em relação à
bebida, mas, sobretudo, à reflexão e à tomada de decisão, mesmo que a
decisão termine na saída do estabelecimento. Ela está latente.
Amor à cidade

Que tal se cada agulhada da acupuntura for um gesto de amor à sua cidade?
Comece desenhando a sua cidade. Desenhe a sua vizinhança e marque
aquelas pessoas que você conhece. Cumprimente-as pelo nome. É uma boa
acupuntura.
Compre nos armazéns e locais onde os donos e famílias estão atendendo.
Mais uma boa cutucada de amor à cidade. Pegue o ônibus próximo e
cumprimente o motorista, o cobrador e os vizinhos que estão ali. Ponto para
você. Ande a pé e repare no desenho do piso, nas luminárias, no itinerário.
Mais um ponto para você.
Ouviu e reconheceu um som costumeiro da cidade? Sentiu alguns cheiros
conhecidos de alguma região? Mais pontos. Pediu ao comerciante da loja
onde você costuma comprar para não lacrá-la com portas de aço à noite e
assim deixar que o povo veja a mercadoria na vitrine? Mais pontos.
Você tem uma turma de bate-papo, um café ou bar que é o seu ponto?
Ótimo. Você tem seu barbeiro, sua banca de jornais? Melhor ainda. Você é
cliente de lojas e serviços que dão frente para uma rua? Mais pontos. Seu eco
clock é menor que um, melhor.
Você tem na memória a cidade como ela era, você não faz questão de
junk food, assiste a filme em cinema de rua, comenta depois com os amigos
num restaurante? Meus parabéns! Você é um cidadão, curado pela
acupuntura urbana.
Você é capaz de captar momentos especiais na vida de uma cidade, de
enxergar que cada cidade pode ser melhor. Depende de você conhecê-la e
sentir aquilo que ela tem de melhor, que é a solidariedade. Então, você é
capaz de amar as pessoas de todas as cidades.

Vamos todos pensar a cidade.


Eu, de minha parte, penso...

penso na pracinha da rua 53 (Nova York)


tão preciosa
que precisa ser fechada
(pra ninguém roubar)

penso nas ruas e canais de Annecy


uma Veneza caseira
e verdadeira

na vegetação cobrindo a marquise do hotel de Fenice


et des Arts em Veneza
em pleno outono

nas praças cobertas em Nova York


pequenas e grandiosas
ao mesmo tempo
penso na velocidade de propagação
da cultura, batendo e rebatendo nas
paredes das brownhouses e dos arranha-céus

penso na silhueta de Nova York


de Koblenz
de Florença
de Jerusalém
uma grande cidade tem que ter uma silhueta

na cor das cidades


ah, a cor de Bolonha
do Farol da Barra em Salvador
o cinza da rua Monfettard sangrado pelas cores
da feira
a cor do mar vista da varanda do Amanda’s Bar
em San Juan,
na dignidade da Via dei Calzaiuoli em Florença
nas manhãs foscas da minha cinzenta Curitiba
e muralhas
penso na eternidade das muralhas de Jerusalém,
da China
e seus vales

penso nas portas e portais


penso na solidão da Place de Furstenberg
um banco, uma árvore e uma
luminária
e você gregário com a multidão
das pessoas de que você gosta
e sozinho com a pessoa que você ama

penso nos abrigos, que a cidade deveria ser um


grande abrigo

penso nos ombrelones do Campo de’ Fiori


na marquise art-nouveau de um prédio em Paris
na galeria Vittorio Emanuele, verdadeira
catedral dos passantes

penso nos balcões dos botecos do Rio


dos armazéns de Curitiba

penso nos bares e esquinas


nas praças e pátios de Paris
Place Dauphine
Place des Vosges

ou na praça Mayor em Madri


onde a mesa de um palmo
mede um palmo de prosa
onde a espera é mais amena
marcando hora com você mesmo
com você e outros

olhar para um rio como em Paris


para os canais, como em Veneza ou Annecy
para o mar em San Juan
para outras pessoas no Champs-Élysées
para você mesmo, como no Café Paraguas
em Barcelona

ficar no bar da ciclovia em Curitiba


no Gramercy Park
na vitrine de um bar em frente ao
Museu de História Natural em Nova York
na praça de Siena
na praça San Marco
num boteco em Rio do Fogo
a alguns quilômetros de Natal
num fim de tarde no Bosque do Papa, em Curitiba

conversar no passeio público ou no deck do Parque


Barigui
em Curitiba
num brunch no Café Bela Vista em São Francisco
na Boca Maldita
ou nas Ramblas de Barcelona
numa happy hour num lobby de hotel
em Nova York
nos cafés de Buenos Aires

ouvir a Sinfônica de Nova York


um concerto de Benny Goodman na
Church of the Heavenly Rest, em Nova York
um chorinho na praça Garibaldi
ou num bar do Rio
um concerto na Sainte-Chapelle
os Klezmatics em plena 2nd Avenue em Nova York
Villa-Lobos num barco na Floresta Amazônica
o Despertar da montanha nas ruas de Ouro Preto
um concerto para flauta no bairro gótico em Barcelona

penso nos caminhos e passeios

o pequeno passeio atrás do Arco do Teles, no Rio


o Passeig de Gràcia em Barcelona
e o Carrer Moncada com seus museus
penso nos casarios

da Steiner Street, em São Francisco


de Heidelberg
do Rio do Fogo no Rio Grande do Norte
de Olinda
penso nos vales de

Jerusalém
Heidelberg
Assis
Ouro Preto
Olinda

nas passagens e galerias


na passagem rue de Seine-Dauphine
na galeria Paris em Budapeste

e nas pontes,
a ponte Charles em Praga
a Pont-Neuf em Paris
as pontes de Annecy
sem falar nas de Veneza

penso nas igrejas


de Ouro Preto e Saint Germain
nas catedrais do Duomo em Milão
de Reims
e da Sagrada Família em Barcelona
ou da pequena igreja em Zumbi, no Rio Grande do Norte

Em São Francisco, na sinfonia de uma cidade


em Edimburgo, um parque que cobre a
linha do trem
em Londres, a virtude da pequena escala
em Nova York você sempre tem a sensação
de que está começando
Liquidificador de ideias
onde você está só na companhia
de todo mundo
Roma, a cidade onde o passado
está ao lado
Enfim, cada cidade deveria ter uma personalidade (ou
uma canção que fluísse) que fosse a pessoa
indicada para mostrá-la, para somar admiração
a cidade e pessoa

As cidades, em que época?


Paris nos anos 20 e 60
Nova York agora
Barcelona nos anos 60 ou agora
Rio nos anos 60
Curitiba nos anos 70
Natal agora
Salvador nos anos 70
Ouro Preto
porque a cidade em que eu penso agora
ficará comigo para sempre.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.

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