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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-01-09604-3 (recurso eletrônico)
Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
ISBN 978-85-01-09604-3
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Introdução
Os coreanos em Nova York
O Velho Cinema Novo
A recuperação de um rio
A cidade proibida
Cáli
Não fazer nada, com urgência
Around the clock ou A cidade 24 horas
Gentileza urbana
Acupuntura pela música
Continuidade é vida
Os sons, as cores e os cheiros da rua
Uma boa reciclagem
Gente na rua
Smart car, smart bus
Compromisso de solidariedade
Você conhece a cidade onde vive?
ou Desenhe sua cidade
Instruções para fazer uma acupuntura urbana
Ócio criativo x mediocridade laboriosa
Autoestima, uma boa acupuntura
Luz é boa acupuntura
Aquapuntura
O cartão de mobilidade
Eco clock,
Arborização
Memória produzida
De parques, praças e monumentos
O guia de uma página
Colesterol urbano
Prédios com dignidade
Acupuntura do silêncio
Ramblas e galerias
Picada rápida não dói
Trompe l’oeil
Carta a Fellini
Como achar uma pessoa numa cidade
A presença de um gênio
Mercados e feiras
Um balcão de bar
Amor à cidade
Introdução
Sempre tive a ilusão e a esperança de que, com uma picada de agulha, seria
possível curar doenças. O princípio de recuperar a energia de um ponto
doente ou cansado por meio de um simples toque tem a ver com a
revitalização deste ponto e da área ao seu redor.
Acredito que algumas “magias” da medicina podem, e devem, ser
aplicadas às cidades, pois muitas delas estão doentes, algumas quase em
estado terminal. Assim como a medicina necessita da interação entre médico
e paciente, em urbanismo também é preciso fazer a cidade reagir. Cutucar
uma área de tal maneira que ela possa ajudar a curar, melhorar, criar reações
positivas e em cadeia. É indispensável intervir para revitalizar, fazer o
organismo trabalhar de outra maneira.
Muitas vezes indago a mim mesmo por que determinadas cidades
conseguem fazer transformações importantes e positivas. Encontro inúmeras
e variadas respostas, mas uma delas me parece comum a todas estas cidades
inovadoras: porque nelas se propiciou um começo, um despertar. É o que faz
uma cidade reagir.
Sabemos que o planejamento é um processo. Por melhor que seja, não
consegue gerar transformações imediatas. Quase sempre é uma centelha que
inicia uma ação e a subsequente propagação desta ação. É o que chamo de
uma boa acupuntura. Uma verdadeira acupuntura urbana.
O que se poderia classificar como exemplos de uma boa acupuntura
urbana? A reciclagem da Cannery, em São Francisco. O Parque Güell, em
Barcelona. Às vezes, é uma obra que propicia uma mudança cultural, como
foi o caso do Centro Pompidou, em Paris, do Museu de Bilbao, de Frank
Gehry, ou ainda a restauração da Grand Central Station, em Nova York.
Outras vezes, a acupuntura urbana vem por meio de um toque de
genialidade, como a pirâmide do Louvre, a recuperação do Porto Madero, em
Buenos Aires, e o conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer, em Belo
Horizonte. Coisas pequenas, como o Paley Park, em Nova York. Ou grandes
obras, como as do Instituto do Mundo Árabe, de Jean Nouvel, em Paris, e o
Museu do Holocausto, de Libeskind, em Berlim.
Em alguns casos, as intervenções se dão mais por necessidade que por
desejo, para recuperar feridas que o próprio homem produziu na natureza,
como as pedreiras. Com o tempo, estas feridas criaram uma outra paisagem.
O aproveitamento destas paisagens e das correções do que o homem havia
feito de errado é acupuntura de excelentes resultados. Um exemplo claro,
ótimo, é a Ópera de Arame, em Curitiba. Ou ainda a retirada da freeway em
São Francisco.
Aliás, os sistemas de transporte geraram boas acupunturas urbanas pelo
mundo. Elas estão presentes nas belas entradas das seculares estações do
metrô de Paris, nas estações de Norman Foster, em Bilbao, e nos tubos do
Sistema Expresso, em Curitiba.
Os coreanos em Nova York
Minha chegada a Seul, embora fosse a primeira vez, parecia não oferecer
surpresas. Mais uma antiga cidade asiática, impulsionada por uma
impressionante vitalidade, crescendo vertiginosamente na sua modernidade.
Tanto que não parecia retratar seus mais de 800 anos.
Mais uma demonstração do fazer rápido, em suas imensas avenidas e
freeways, chegando a um centro caótico onde as pessoas têm que atravessar
passagens subterrâneas, subindo e descendo, para simplesmente cruzar uma
rua. Já os carros passavam por um asfalto perfeito, quase como se
deslizassem por um tapete vermelho.
Assim foram construídas e destruídas muitas cidades, dando privilégio
aos carros. Cidades belas, históricas, com prédios e palácios magníficos em
sua arquitetura, cercados pelos automóveis, nossos dragões.
A primeira surpresa em Seul foi a de sermos chamados para referendar
uma intenção pouco comum na maioria das cidades. A prefeitura pretendia
reservar boa parte do espaço para o “ônibus de Curitiba”, criando em várias
regiões da cidade a rede de transporte coletivo já batizada de BRT (Bus
Rapid Transit).
A surpresa maior: o governo de Seul quer eliminar um macarrônico
sistema de vias elevadas no centro da cidade e recuperar um riacho, o
Cheonggyecheon, que recebia as águas que degelam nos morros. O riacho,
imaginem, fora enterrado décadas atrás para que não se visse a degradação e
a poluição deste córrego e sua vizinhança. Em cima dele foram construídas as
vias elevadas.
A intenção agora é fazer o local voltar a ser o que era, com a recuperação
do rio e a revitalização da área ao longo dele. O projeto é caro (custa muito
corrigir uma grande asneira), mas o entusiasmo do prefeito e sua equipe é
grande. A intenção deles é também abrir espaços para os pedestres (city
friendly for people). No momento em que chegamos, nos mostraram os
projetos. Todos têm uma leitura muito clara. O desenho da cidade está claro,
os morros, o rio revitalizado. Quer dizer, a cidade está na cabeça deles. Não
tenho dúvida de que logo todos os projetos serão realizados.
Em Seul também tive o privilégio de conversar com uma das pessoas
mais conhecidas da cidade, Young-Oak Kim, um filósofo formado em
Harvard que depois deixou a universidade para cursar medicina. Ao voltar, o
professor Kim ensinou filosofia durante dois anos num programa
superpopular na Coreia do Sul. É um homem muito famoso, que agora
resolveu ser repórter de temas importantes. Nossa conversa é uma celebração.
Tanta coincidência nos pensamentos e na simplicidade, síntese da filosofia
oriental.
Ele me faz um desenho da cidade. E o que me impressiona mais: ele lê a
cidade, o significado de cada região, de cada localização, de cada nome, de
maneira muito simples e concisa. Ah, se as cidades tivessem menos
vendedores de complexidade e mais filósofos!
A cidade proibida
A história nos conta que Pequim é uma das cidades mais antigas do mundo.
No início do século XV, foi transformada em duas cidades, separadas por
muros. A cidade interior abrigava a antiga Cidade Imperial, cercada por um
muro de dez quilômetros. Era a “Cidade Proibida”, onde os fossos definiam
os palácios dos imperadores. O último deles, Pu-Yi, foi deposto em 1911 e
expulso da cidade em 1924.
Mas a Pequim de hoje está descaracterizada. Não se vê mais o mar de
bicicletas que fazia parte da paisagem de antes. E em cada bicicleta havia
uma pessoa ou mais. Era uma cidade das pessoas.
Hoje, Pequim é mais um acampamento de prédios moderníssimos,
cercados de estruturas viárias enormes, freeways e os conceitos antigos de
anéis, radiais etc. Na “rosca” formada pelo segundo e o terceiro anéis, um
CBD (Center Business District). É uma cidade rodoviária.
Junto à “Cidade Proibida” e às suas áreas mais próximas, aparece a
textura de trechos pequenos da velha cidade. Uma cidade que hoje só se
reconhece nos filmes ou nos livros.
Pequim precisa de uma acupuntura para voltar a ocupar o lugar de
destaque que merece no mundo. Menos rodovias, mais cidade, mais gente,
mais bicicletas. Talvez esta seja a acupuntura necessária. Trazer de volta o
ônibus e a rua. Marcar a paisagem com suas estações. Talvez seja outra
acupuntura necessária. Que audácia! Querer fazer acupuntura nos chineses!
Cáli
Uma brisa com hora marcada. De noite, a praça que você avista. A cidade é
segura, tranquila, casais namorando e crianças correndo pelos passeios. Em
alguns lugares você vê a alma da cidade. A parte antiga, as cores, as calçadas
animadas pelo som distante de uma salsa.
Pena que um pouco da identidade da cidade tenha se perdido com as
avenidas muito grandes, um exagero de superdimensionamento. Para
atravessá-las, lá vai você subindo e descendo pelas passarelas.
De repente, um shopping center antigo, não fechado, com vegetação
interna, um grande parque, o som vem de alguém tocando ao vivo, sem
equipamento eletrônico. Nada de som canalizado empurrando as pessoas.
Calor muito forte, mas, às quatro e meia, cinco horas da tarde, uma brisa
agradável toma conta da cidade. Seriam os deuses soprando. Afinal.
Mas a boa arquitetura é uma casa que visito. O arquiteto Benjamin
Barney projetou uma casa com pouco mais de seis metros de largura e com
um pátio. Aliás, a casa é um pátio com várias varandas, alçadas.
Talvez nessa cidade a boa acupuntura seja fazer mais coisas pequenas.
Acentuar o rio, que é uma beleza, e deixar a brisa soprar. Voltar-se para esse
divino sopro como para um sol de fim de tarde numa praia carioca.
Chévere!
Não fazer nada, com urgência
PS.: Que tal uma pequena ousadia: pintar o elevador Santa Justa com cor
de zarcão?
Around the clock
ou
A cidade 24 horas
Há alguns anos, um grupo de gente muito legal de Belo Horizonte, entre elas
meu velho amigo Valério Fabris, conseguiu impor respeito entre as pessoas
com atitudes que estimulavam o amor pela sua cidade. Cada gesto neste
sentido é uma gentileza urbana.
Desde então, surgiram periodicamente ações e ideias criativas que
refletem a consciência das pessoas de que a gentileza urbana é indispensável
na vida da cidade.
Já ficou famosa a história da vaquinha da rua Leopoldina, uma escultura
no meio do passeio público que foi adotada pelos moradores de Belo
Horizonte. Há algum tempo ela foi atacada por vândalos e quase destruída.
Um cidadão atravessou a cidade com um balde de areia e cimento e a refez.
Volta e meia a vaquinha aparece de cara nova, com cores novas,
contribuições do povo que dela tanto gosta.
No bairro São Geraldo, uma dona de casa montou um presépio na sala.
Ela não fecha a porta e recebe com simpatia quem quer conhecer seu
presépio. Em outro bairro de Belo Horizonte, a equipe de lixeiros trabalha
sempre cantando. Assim a capital mineira foi ganhando a tradição da
gentileza urbana.
Existem pessoas que exercem sua atividade com prazer ou que sinalizam
para a cidade a sua alegria.
Oscar Niemeyer, ao colocar suas esculturas nas areias da praia do Leme,
fez uma grande gentileza urbana.
Em Curitiba, um dentista, ao encerrar seu expediente de trabalho, vai à
janela tocar seu pistom.
Em Porto Alegre, uma emissora de rádio tem uma vitrine na rua da Praia.
As entrevistas são acompanhadas pelo povo. O convite para você colocar
suas ideias na vitrine é uma verdadeira gentileza urbana.
Quando eu trabalhava no Rio de Janeiro, havia na equipe um bom
designer. Um dia, que jamais esquecerei, ele veio para o escritório vestido de
palhaço. Sentou-se diante da prancheta e trabalhou o dia inteiro
silenciosamente, como sempre fazia. No fim do expediente, ele nos contou
que a partir daquele dia não viria mais trabalhar porque resolvera fazer o que
sempre sonhara: ser palhaço de circo. Tinha feito um curso sem contar para
ninguém. Naquele momento, recebeu os primeiros aplausos.
Há alguns anos, fui ouvir o trio de Hélcio Milito, um craque da bossa
nova. Como vocês percebem, isso faz muito tempo. Mas não esqueci um
gesto de verdadeira gentileza urbana. Depois do show, o dono do bar, ao ver
que eu estava tendo dificuldades para conseguir um táxi àquela hora, levou-
me no seu carro até a porta do hotel.
Em Maripá, uma pequena cidade no oeste do Paraná, a prefeitura plantou
orquídeas nas ruas. A flor é tão bonita que a população devolveu a gentileza
do governo com outra gentileza urbana: ninguém mexe nas orquídeas.
Em Roma, há uma outra bela história de gentileza urbana, que me foi
contada por Domenico de Masi, grande e querido amigo. Todas as sextas-
feiras, um grupo de moradores de um edifício da cidade organiza uma
exposição de um quadro de um pintor no elevador do prédio. Você sobe e vai
admirando a obra. Mas a gentileza não para por aí: você desce pela escada e
vai tocando a campainha dos apartamentos. Cada morador e sua família falam
do quadro, contam histórias do artista, oferecem café. Toda semana muda o
quadro, com um artista diferente. Essa gentileza urbana é realmente muito
bonita.
Em Salvador, Carlinhos Brown mantém uma escola de música numa
favela. Aos sábados, ele promove verdadeiros concertos no local. Uma
empresa grava o CD do show e o lucro das vendas vai para os moradores.
Meu genro Bas conta-me a história dos “jardins flutuantes dos limpadores
de janelas de prédios” em Nova York. Nas plataformas usadas para a limpeza
dos vidros, um arquiteto teve a ideia de colocar caixas de plantas e flores, que
assim ficariam “estacionadas”, tornando-se jardins flutuantes diante dos
apartamentos. Uma gentileza inesquecível.
Nos idos de 80, a cidade de Curitiba decorava todos os ônibus na época
de Natal. A decoração com árvores de temas natalinos, com suas luzinhas, era
uma grande gentileza com as pessoas que tinham que trabalhar no dia de
Natal. Com os ônibus percorrendo a cidade, a gentileza também estendia a
alegria do Natal a toda a população.
Às vezes a gentileza urbana se reflete numa pessoa, como o já falecido
publicitário Sérgio Mercer. A morte de Sérgio Mercer foi um momento muito
triste na vida de Curitiba. Homem de excelente caráter, publicitário talentoso,
dono de um texto primoroso. Esses comentários sobre ele eram comuns em
Curitiba inteira.
Mercer era um curitibano especial. Ele era a cara e o pensamento da
cidade. Sabia tudo sobre música, literatura, era um grande crítico, mas um
amigo sempre leal. Além de tudo, tinha um outro dom extraordinário: era um
afinador de conversas. Se o papo na roda caminhava para um assunto chato,
Mercer corrigia o rumo, e afinava para um tema melhor e mais agradável.
Ele tinha mania de orquestrar, fazer arranjos em qualquer momento.
Adorava tango e tinha um bandoneon imaginário. Você poderia vê-lo
“tocando”, até com a faixa de veludo no joelho.
A cidade toda no enterro, relembrando a figura querida. Um primo dele
me encontra e entrega-me um CD, com trechos de um cantor de tango,
conseguido a duras penas: “Tinha reservado para dar ao Mercer mas, na falta
dele, queria que você, como um de seus melhores amigos, guardasse.”
Lembrei-me de que também tinha comprado uma antologia sobre tango,
que reservara para dar ao Mercer. Saio do cemitério com um peso no coração.
Antes de voltar para casa, passo num restaurante para levar alguma coisa,
pois ninguém tinha vontade de sair. Encontro a Mônica Rischbieter com uns
amigos, todos tristes, pois também tinham ido ao enterro. Ocorreu-me, então,
presentear Mônica com o livro que pretendia dar ao Mercer.
Também me veio a ideia de lançar o Dia Nacional do Mercer, em que
cada pessoa daria um presente a um amigo. O dia é 6 de março, data em que
Curitiba perdeu este grande amigo. Como não poderíamos mais presentear o
Mercer, fica a homenagem a ele como um dia de se presentear amigos.
Seria uma grande gentileza urbana, algo que Mercer sempre fez pela
cidade.
O jogador Vampeta, da seleção brasileira, fez um ato de extrema
gentileza com sua cidade, a pequena Nazaré das Farinhas, na Bahia. Certa
vez, ele estava na cidade e pediram-lhe uma ajuda de 20 reais porque o
telhado do cinema estava caindo. Vampeta foi ver o prédio, que estava em
estado lastimável. É um prédio histórico. O Cine Rio Branco era um dos mais
antigos do país, de 1927. Vampeta comprou o cinema e restaurou o prédio.
Dizem que a inauguração foi a maior festa da história de Nazaré, até com a
presença de Ronaldinho.
O cinema não dá lucro. Vampeta paga os funcionários do próprio bolso.
Além das sessões de cinema, o local oferece oficinas de teatro e arte para
mais de 80 crianças de favelas. Vampeta nem gosta de cinema, mas não
hesitou em fazer esta gentileza urbana aos moradores de sua cidade natal.
Acupuntura pela música
Cada cidade tem sua história, seus pontos de referência. Não me refiro
somente àquelas construções que são classificadas como marcas importantes
do patrimônio histórico da nação. Refiro-me, principalmente, aos locais que
pertencem à memória da cidade e que são pontos fundamentais da identidade,
do sentimento de pertencer a uma cidade. Seja uma determinada fábrica, um
ponto do antigo bonde ou uma daquelas antigas vendas que tinham tudo
ingenuamente exposto.
Mas como já não é mais possível recuperar essas áreas e reviver as
antigas atividades, temos que encontrar novos usos, novas atividades que
tragam vida. Não há nada que agrade mais a uma vizinhança, e até a uma
população inteira, que o reaproveitamento de um desses espaços.
São Francisco, nos EUA, fez as primeiras reciclagens urbanas
importantes, transformando em pontos de animação uma antiga fábrica de
chocolate, a Ghirardelli, e uma fábrica de enlatados, a Del Monte, que virou a
The Cannery. As duas foram recicladas no final dos anos 60 e tornaram-se
atrações do tradicional Fisherman’s Wharf.
A partir dos anos 70, as reciclagens começaram a acontecer no mundo
inteiro com projetos brilhantes, como o teatro do Sesc em São Paulo, e outros
na Europa, principalmente as estações de trem em Londres.
Em 1971, Curitiba transformou um antigo paiol de pólvora num pequeno
teatro — o Teatro Paiol. Logo depois, uma antiga fábrica de cola virou o
Centro de Criatividade.
Também merecem ser citados o Porto Madero, em Buenos Aires, e parte
da Estação Júlio Prestes, em São Paulo, transformada numa magnífica sala de
concertos.
Bons e maus exemplos aconteceram. O mais importante foi o resultado
conseguido com a revitalização de locais antes abandonados que ganharam,
na maioria das vezes, importantes equipamentos culturais. Foram ótimas
acupunturas.
Mais recentemente, verdadeiras feridas feitas pelo homem na paisagem,
como pedreiras e explorações de cavas de areia, acabaram se transformando
em parques, teatros. Mais uma vez Curitiba inovou, com a Ópera de Arame, a
Pedreira Paulo Leminski (espaço para shows e apresentações ao ar livre com
capacidade para mais de 80 mil pessoas) e sucessivos parques que retratam a
contribuição das várias etnias à vida da cidade.
Até mesmo o vale do rio Iguaçu com suas cavas, que acabaram poupando
o estado inteiro de um desastre ambiental. Quando houve derramamento de
óleo no rio Iguaçu, foi através dessas cavas que se foi represando o óleo. Não
na primeira, nem na segunda, mas na décima cava de areia o derramamento
foi estancado e, a partir daí, foi realizado um intenso trabalho de limpeza.
Mas é o redesenho destas cavas, que foram transformadas em filtros, que está
limpando o rio. O que eram essas cavas? Uma ferida que o homem criou na
paisagem.
Mas foi uma ferida transformada em solução. Os novos desenhos dessas
cavas estão devolvendo vida ao rio Iguaçu.
Gente na rua
Até onde você gosta da sua cidade? Geralmente você gosta de sua cidade
porque nasceu nela. Mas o que você acha da sua cidade? Você a conhece,
sente-se parte dela? Ou as pessoas que projetam a tragédia já o influenciaram
a tal ponto que você tem certeza de que não há mais solução, que a sua cidade
é a que tem a pior infraestrutura, a mais violenta, a mais injusta? Ainda mais
se for uma cidade grande, onde são grandes os problemas e fica mais fácil
justificar essa frustração pela escala.
Mas a escala nada tem a ver com a inviabilidade de uma proposta. Nem a
falta de recursos. O mais importante é a visão correta, e uma competente
equação de corresponsabilidade. O que é necessário é um cenário, ou uma
ideia, um desenho desejável. E todos — ou a grande maioria — vão ajudar a
fazer. Aí, nesse exato momento de realização, a autoestima da população faz
a cidade avançar.
Joinville, em Santa Catarina, decidiu transformar-se num centro de
excelência para a dança. O prefeito encampou a luta da Jô Braska Negrão
para levar à cidade uma filial do Balé Bolshoi de Moscou, e a cidade inteira
trabalhou para isso.
Montreux, na Suíça, por uma iniciativa de Claude Nobis, passou a ser
sede de um dos festivais mais importantes de jazz do mundo, e a cidade
inteira vive esse momento.
Nova Jerusalém, em Pernambuco, ao encenar a Paixão de Cristo em
vários locais, criou uma grande autoestima na cidade, e também no povo
brasileiro.
Provocar a autoestima é uma acupuntura fundamental. Assim aconteceu
com o transporte urbano e com a solução do lixo em Curitiba. Assim
aconteceu em Bilbao, na Espanha, com o Museu Guggenheim e todas as suas
novas conquistas.
Luz é boa acupuntura
Mais uma ideia que não exige transformação física, mas sim solidariedade ao
próximo e às futuras gerações. Tem-se tentado muito motivar as populações
no mundo inteiro com o desenvolvimento sustentável. Mas as explicações são
confusas, ora acadêmicas, ora panfletárias, e nelas não há conhecimento,
apenas entusiasmo.
As pessoas, muitas vezes, acham que não há nada a fazer, e entram no
clube dos que projetam a tragédia. A mídia não ajuda porque também projeta
os prognósticos catastróficos, como se as coisas continuassem sempre assim.
Mas como mudar se as pessoas não sabem o que fazer?
Veja, é tão simples. Se você quer ajudar o meio ambiente, não basta você
se sentir como se fosse um paciente terminal. Comece com duas coisas muito
simples: separe o seu lixo orgânico do reciclável e use menos o seu
automóvel. Você estará poupando energia, estará salvando árvores e
contribuindo para seu país ficar menos dependente dos outros. Poupe mais e
desperdice menos.
Por isso proponho a criação de um eco clock para cada casa. É um relógio
marcador para registrar a proporção daquilo que você gasta em relação ao que
poupa. Se a proporção é maior que 1, você está contra o seu próximo, contra
o meio ambiente, pois está gastando mais do que poupa. Se você não poupa
nada é um irresponsável, pois o marcador do eco clock vai registrar infinito, o
índice da irresponsabilidade.
E se o seu eco clock marcar o índice da irresponsabilidade, haverá
punição imediata. Você não terá o direito de falar baboseiras sobre o meio
ambiente no bar com os amigos. Nem poderá ser presidente de ONG.
Arborização
A vegetação pode ser uma boa acupuntura urbana. Cidades que às vezes não
têm grandes atrativos em determinadas regiões mudam radicalmente quando
são arborizadas. Muitas cidades conseguem ganhar unidade por meio da
vegetação intensa.
Xangai tem árvores a cada quatro metros, em todas as ruas. Além da
paisagem e da sombra que produzem, são apoios importantes para os bambus
que vestem as roupas postas para secar. São verdadeiros espantalhos de roupa
e bambu.
Alguém poderia imaginar o que seria a orla do Rio sem as árvores nas
suas ruas transversais? Árvore é acupuntura que cura a dor da ausência de
sombra, de vida, de cor, de luz.
Curitiba plantou um milhão de árvores em menos de duas décadas. O
começo foi um gesto de verdadeira gentileza urbana. Para garantir a irrigação
de todas estas pequenas árvores plantadas nas ruas, foi solicitado o apoio da
população. O governo municipal lançou uma campanha que dizia: “A
prefeitura dá a sombra e você, a água fresca.”
Em muitas cidades, os conjuntos habitacionais são áridos por causa da
uniformidade e pela ausência de arborização. Durante a execução de
programas habitacionais, que primavam pela diversificação por meio da
mistura de renda, a cidade de Curitiba, além de plantar árvores nas ruas, pedia
a cada morador que escolhesse a árvore frutífera de seu quintal.
O desenho das ruas não podia derrubar nenhuma das árvores existentes, e
as vias eram desviadas das árvores. A mania de se fazer terra arrasada em
toda urbanização nova acabou.
Memória produzida
“A História é como um estilingue. Quanto mais fundo você puxa, mais longe
você alcança”, dizia Aloísio Magalhães.
Identidade, autoestima, sentimento de pertencer, tudo tem a ver com os
pontos de referência que uma pessoa possui em relação à sua cidade.
Não canso de repetir que na minha rua tinha tudo. Andava e confirmava a
hora no relógio da Estação Ferroviária. Quando não, era o apito da fábrica ao
lado de minha casa que anunciava a hora. Ou o cheiro do Café dos
Ferroviários, após virar a noite lendo ou estudando, onde ia tomar meu café.
Ali, na praça da estação, ficava um avião de lona, que o fotógrafo usava
como cenário para as fotos das crianças.
O cheiro da tabacaria onde comprava meus gibis, a trama dos trilhos dos
bondes. Ainda hoje posso imitar o barulho deles chegando à estação. O
cheiro do verniz dos lustradores de móveis em frente. O barulho do ferro de
passar da alfaiataria ao lado. As máquinas do jornal em frente, ou os números
do circo ali perto. O hotel chique, as estações de rádio, o prédio da prefeitura,
as orquestras do Clube Curitibano.
Tudo isso pode parecer nostálgico, mas não se apaga. E quando não
existe? Fabrica-se? Não, vai-se buscar. Alguma coisa que vai resgatar um
momento e alavancar outros. Acupuntura da memória?
Nos Estados Unidos, a cidade de São Francisco fez isto, contando a
história dos locais descritos nos livros de Dashiell Hammett, ou nos filmes de
Humphrey Bogart. É a memória da ficção.
O Rio de Janeiro também, com a história da bossa nova, onde começou o
primeiro show, o Beco das Garrafas, a rua Nascimento Silva, os bares.
Os artistas de qualquer época sempre vão ajudar. Eles cantarão e
escreverão sobre o lugar. Pessoas vão reunir isso mais tarde, sedimentando
em novas histórias.
Em San Juan, Porto Rico, uma placa marca o local onde, pela primeira
vez, se preparou uma piña colada. Na Paris de Hemingway, o Ritz será
sempre tão importante quanto os monumentos da cidade.
De parques, praças e monumentos
Para uma praça você vai; num parque você se perde. Uma praça, às vezes, é
para você ver o que está em volta; um parque é para você ver o que está
dentro dele.
Não é simples assim. Praças e parques são como quadros: dependem
muito da moldura. É importante saber com qual trabalhar.
Mais difícil é o passe-partout. Algumas praças precisam de moldura
pequena, e de um grande passe-partout.
E alguns parques vazam pela cidade, sem moldura nem passe-partout.
Que palavra mais apropriada.
Uma praça tem que ter entradas. Elas são abertas a todos, mas com
entradas, elas parecem ser especiais para você.
Elas são pequenas, e podem pertencer a milhões. Às vezes são enormes, e
parecem não pertencer a ninguém.
Fechadas, abertas, cercadas, cobertas, o que as caracteriza é o sentimento
de pertencer.
A Place des Vosges, em Paris, sem dúvida pertence ao casario em volta,
magnífico.
O Gramercy Park, em Nova York, cercado de edifícios, mantém uma
estreita ligação com a entrada dos prédios.
As praças cobertas dos prédios nova-iorquinos pertencem a milhões. São
pequenas, mas abrigam espaços dignos.
Uma grande praça num grande ensemble nos arredores de Paris, ou num
conjunto habitacional no Brasil, nos dá a sensação de não pertencer a
ninguém.
Já as pequenas praças italianas nos deixam fazer parte, e se incorporam
imediatamente à nossa memória.
Uma das menores praças do mundo, a Place de Furstenberg, em Paris, dá
a sensação de só pertencer a você.
Que dizer dos parques. Imensos, superocupados, como o Golden Gate
Park, em São Francisco, cheio de equipamentos e atrações.
Os que servem de moldura à paisagem natural, como o do Aterro do
Flamengo, no Rio, ou os parques franceses que criam perspectivas para
monumentos, como o das Tuilleries.
Ou os que são emoldurados pelos prédios que o circundam, como o
Central Park, em Nova York.
Os parques para todos, como os parques ingleses, ou aqueles definidos
por catedrais de árvores, como o Jardim Botânico, no Rio, ou maciços de
candelabros, as araucárias do Parque Barigui, em Curitiba.
Ainda os que me agradam são os pátios pequenos, como os dos pequenos
hotéis franceses, entre eles o pátio do Hôtel de l’Abbaye ou o do Relais
Christine, em Paris.
Os pátios espanhóis com suas fontes que vão pingando minutos, ou o
pátio do Pelourinho, em Salvador, que tem cor e cheiro.
Não gosto de monumento de gente que não tenha afeto, ou dos que estão
muito acima do povo, com frases que pretendem defender o povo.
Sou partidário de uma boa acupuntura de afeto, como a ideia do Allan
Jacobs, famoso urban designer americano, que propôs uma rua de estátuas,
onde cada um poderia homenagear amigos e parentes, pagando pelas
mesmas. Assim, você pode, desde já, passar belos momentos em companhia
de futuros monumentos.
Importante também são os bustos, não se pode descuidar deles. Em
Curitiba, a comunidade polonesa queria retribuir à cidade pela criação do
Bosque do Papa, em homenagem à visita de João Paulo II à capital
paranaense. Resolveram encomendar a uma assistente de Pietro Bardi uma
escultura do papa.
Em uma data importante, lá estávamos, o governador e eu, como prefeito,
presentes à inauguração. A banda tocando, um imenso paneau cobria a
estátua, que até aquele momento não era conhecida.
A banda agora toca com suspense. Ao rufar dos tambores, sobe o painel e
aparece a estátua do papa. Foi um horror. O papa parecia um Exu, com seus
olhos de resina sintética. Foi um deus nos acuda.
Nem a tentativa de socorro da banda deu certo. Uma velhinha polonesa,
seguida de um séquito furioso, brandia sua sombrinha, como uma baioneta
pronta para acabar com o responsável pela obra.
Os momentos de conflito e conciliação da comunidade polonesa tiveram
seus lances de apreensão. Parecia uma assembleia das Nações Unidas. Uma
comissão veio pedir-me a retirada da estátua, o que recusei. Como poderia eu
censurar uma obra artística?
Depois de algumas semanas consegui uma solução salomônica.
Tentaríamos usar uma vegetação que encobrisse a estátua, e a comunidade
polonesa nos daria um relevo para ser fixado numa das placas. Com o
cuidado de que o relevo, desta vez, fosse parecido com o papa.
Parecia que o problema estava resolvido. A estátua seria camuflada e o
medalhão em relevo marcaria a visita do papa, se não tivesse ocorrido um
“milagre” junto à estátua. A notícia do milagre se espalhou, e o povo só quer
as graças da estátua. E o medalhão está lá, completamente esquecido.
O guia de uma página
Durante anos cultivei o hábito de, em cada cidade, em cada viagem, fazer
desta um guia de uma página. O objetivo era não perder tempo, nos poucos
dias que ficava na cidade, para saber o que existia, o que acontecia de
novidade, o que era bom. Às vezes, em dois ou três dias em Nova York ou
Paris, perdia grande parte do tempo para me informar.
Nesse guia eu desenhava o mapa da cidade em um dos lados da folha. Isto
é, a maneira como eu entendia a cidade. No verso, colocava a agenda, com
hotéis, restaurantes, horários e locais de exposições, e outras coisas que não
poderia deixar de ver, como concertos ou espetáculos.
Logo alguns amigos começaram a pedir meu guia emprestado. Na volta
de suas viagens, eles me devolviam uma cópia, acrescentando o que tinham
encontrado de novidade. E assim o guia ia sendo constantemente atualizado.
Não podemos nos esquecer das crianças, que também merecem um guia
de uma página. Ele pode ser a capa do caderno escolar, onde as crianças
teriam o mapa da cidade, e o que é mais importante: iriam conhecê-lo. No
outro lado do guia, as crianças poderiam ter a relação das coisas de que mais
gostam na cidade, e trocar essas informações com seus colegas. Ou ainda o
mapa do estado em relevo, uma pequena maquete na qual poderiam entender
o seu estado, seus principais rios e acidentes geográficos. Este guia seria mais
útil do que aprender para que serve o Máximo Divisor Comum — para o qual
até hoje não encontrei explicação.
Colesterol urbano
Uma cidade deveria permitir não só o encontro entre as pessoas, mas também
que as pessoas pudessem ser encontradas.
Achar uma pessoa em Caracas, fora dos pontos mais significativos, já é
difícil.
As urbanizações não trazem muitas indicações.
Em Tóquio, muito mais difícil. São códigos que cada cidade cria, com
indicadores que só seus moradores entendem.
E como encontrar uma pessoa em Dolce Acqua, na Itália? Eu e minha
mulher, Fani, descemos em Nice. Passamos por Monte Carlo e, na estrada,
lembramos que estávamos perto de San Remo, região onde morava Franco
Giglio, nosso pintore italiano.
No posto de gasolina fico sabendo que oito quilômetros ao norte de
Ventimiglia há um lugarejo chamado Dolce Acqua, perto das ruínas de um
castelo, junto ao rio Nervia.
Tivemos a sensação de que era só gritar “Franco Giglio” e o
encontraríamos. Franco, Franco Giglio, a gritar pelas estradas.
Alguns minutos depois, estamos em frente a uma ponte medieval de
pedra. Já do outro lado, damos o primeiro grito: “Franco, Franco Giglio!” Um
garoto vem correndo: “Il pintore brasiliano? No bar do Pastio.”
Dentro do bar, uma névoa de fumo, o barulho agradável de homens
bebendo e conversando. Nosso segundo grito: “Franco, Franco Giglio!”
Um homem nos pega pela mão e nos leva a um sobrado. “Franco, Franco
Giglio.” E ele abre a janela.
Com três gritos ainda se pode achar uma pessoa numa boa cidade.
Mas dificilmente um ponto de encontro tem uma história tão bela quanto
a do Hachiko, em Tóquio. Hachiko era um cão akita que, na década de 1920,
pertencia a um professor da Universidade de Tóquio, antiga Universidade
Imperial. Todos os dias, Hachiko acompanhava o professor Eizaburo Ueno
até a estação de Shibuya, onde ele pegava o trem para o trabalho.
Diariamente, às três da tarde, Hachiko voltava à estação para aguardar o
retorno de seu dono.
No dia 21 de maio de 1925 o professor Ueno sofreu um derrame e morreu
na universidade. Desde então, durante quase nove anos Hachiko continuou
indo à estação todas as tardes para esperar o amigo que nunca mais voltaria.
Em 7 de março de 1934, Hachiko morreu no mesmo local onde sempre
esperava o professor.
A história de Hachiko já era famosa na cidade, e um mês depois foi
colocada uma escultura em sua homenagem na entrada da estação de
Shibuya. A estátua em bronze, com 91 centímetros, foi feita pelo artista Teru
Ando. Durante a Segunda Guerra Mundial, todas as estátuas foram
confiscadas e derretidas para a fabricação de armas, incluindo a de Hachiko.
Em 1948, Takeshi Ando, filho do escultor da estátua original, foi contratado
para criar uma réplica, que foi colocada no mesmo lugar da anterior. O
verdadeiro Hachiko foi empalhado e está no Museu de Ciências Naturais de
Tóquio.
A vida de Hachiko foi contada em um livro e num filme chamado A
história de Hachiko. Viajantes que passam pela estação de Shibuya podem
comprar presentes e recordações do seu cão favorito na loja Shibuya No
Shippo. Um mosaico colorido de akitas cobre a parede perto da estação.
O dia 7 de março passou a ser a data do Festival Hachiko, em
homenagem à lealdade dos cães. E, há dezenas de anos, a estátua do Hachiko
é o principal ponto de encontro de Tóquio. Ali, a qualquer hora do dia,
sempre haverá alguém de olho no relógio, à espera de um amigo.
A presença de um gênio
Por que será que um mercado atrai tanto a gente? Muitas explicações: a gente
gosta de ver gente, o mercado é tão antigo quanto a cidade, a gente gosta de
ver os outros fazendo a mesma coisa, a gente gosta de ver comida, a gente
gosta de ver o preparo, o manuseio.
Com a modernização das cidades, com a globalização, começamos a
receber e comprar coisas embaladas demais, prontas demais, em espaços
acabados demais. Não vemos mais as coisas em estado puro. Por isso a
nostalgia de ver produtos, frutas, verduras, carnes, pescados em estado
natural nos atrai.
O zoológico contemporâneo não vai ser mais aquele que tem leões,
girafas, onças, pelicanos, mas um espaço que tenha galinhas, bois, porcos,
patos, marrecos e carneiros.
Por que o mercado La Boqueria, em Barcelona, é um dos melhores do
mundo? Porque é lindo, com seus vitrais coloridos, e a maneira como os
produtos são apresentados é atraente. As carnes, as frutas e as verduras têm
até cheiro de frescor; tudo isso se transfere para os vendedores, que são muito
alegres. E é bom sentir isto logo de manhã. Um café da manhã num lugar
dentro do mercado é inesquecível.
Todos nós ficamos cansados de ver as coisas iguais demais, um shopping
normal nos exclui da cidade, com suas lojas tão iguais a ponto de você não
saber em que cidade está.
Mas as feiras e mercados sempre foram pontos de referência numa
cidade.
Paris ficou pior depois que demoliram Les Halles de Balthard. Nada
conseguiu recompor a vida que o “ventre de Paris” proporcionava.
Mas não precisamos ir tão longe. O Mercado de São Paulo é um mercado
importante. E ficará melhor ainda depois de sua restauração e da revitalização
de toda a área do Parque São Pedro, que já estão previstas.
O Mercado Municipal de Curitiba não tem tanta tradição, mas é um bom
mercado.
A nostalgia que o nordestino tem de sua região fez com que surgisse no
Rio uma feira tão atraente quanto qualquer feira ou mercado do Nordeste.
Em Amsterdã, o Albert Cuyp Markt, nas segundas pela manhã, o Noorder
Markt e o Waterlooplein no quarteirão judaico são bons como qualquer
mercado europeu. A Feskekorka, em Gotemburgo, Suécia, é uma beleza de
mercado, mas não iguala a diversidade do Grande Bazar de Istambul, ou o
Bazar de Especiarias, já com características diversas.
E o que dizer desse mundo que é o mercado de peixes de Tóquio? Nós
parecemos mergulhadores sem escafandro nesse imenso mar de peixes e
polvos na terra.
Mas nada supera a riqueza, o prazer da compra, de regatear, de um souk
árabe. Normalmente, as ruelas são muito estreitas, o que leva os comerciantes
a se sentarem do lado de fora da lojinha. Com o pouco espaço que sobra,
você é obrigado a olhar para um lado e para outro. O comerciante já
conseguiu o que queria: prender a sua atenção. Aí você está perdido, vai
acabar comprando. Agora, faça como eles, faça disso um prazer. É nas
cidades ou quarteirões árabes que a atividade comercial nos traz um molho de
identidade.
O tempo, que sempre adiciona novas camadas à civilização existente, tem
a nostalgia da coisa bruta, que lhe permitia entrar, concluir, fazer alguma
coisa.
Por isso, a moda mais sofisticada procura locais mais rústicos, menos
acabados, para se sobressair, até para ser fotografada.
E o homem procura, no mercado, encontrar seu próximo, fazendo a
mesma coisa em locais animados.
O mercado é uma acupuntura de identidade numa época que muitas
cidades se descaracterizam.
Um balcão de bar
Que tal se cada agulhada da acupuntura for um gesto de amor à sua cidade?
Comece desenhando a sua cidade. Desenhe a sua vizinhança e marque
aquelas pessoas que você conhece. Cumprimente-as pelo nome. É uma boa
acupuntura.
Compre nos armazéns e locais onde os donos e famílias estão atendendo.
Mais uma boa cutucada de amor à cidade. Pegue o ônibus próximo e
cumprimente o motorista, o cobrador e os vizinhos que estão ali. Ponto para
você. Ande a pé e repare no desenho do piso, nas luminárias, no itinerário.
Mais um ponto para você.
Ouviu e reconheceu um som costumeiro da cidade? Sentiu alguns cheiros
conhecidos de alguma região? Mais pontos. Pediu ao comerciante da loja
onde você costuma comprar para não lacrá-la com portas de aço à noite e
assim deixar que o povo veja a mercadoria na vitrine? Mais pontos.
Você tem uma turma de bate-papo, um café ou bar que é o seu ponto?
Ótimo. Você tem seu barbeiro, sua banca de jornais? Melhor ainda. Você é
cliente de lojas e serviços que dão frente para uma rua? Mais pontos. Seu eco
clock é menor que um, melhor.
Você tem na memória a cidade como ela era, você não faz questão de
junk food, assiste a filme em cinema de rua, comenta depois com os amigos
num restaurante? Meus parabéns! Você é um cidadão, curado pela
acupuntura urbana.
Você é capaz de captar momentos especiais na vida de uma cidade, de
enxergar que cada cidade pode ser melhor. Depende de você conhecê-la e
sentir aquilo que ela tem de melhor, que é a solidariedade. Então, você é
capaz de amar as pessoas de todas as cidades.
Jerusalém
Heidelberg
Assis
Ouro Preto
Olinda
e nas pontes,
a ponte Charles em Praga
a Pont-Neuf em Paris
as pontes de Annecy
sem falar nas de Veneza