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Componente Curricular Ciência, Tecnologia e Sociedade – ECT – UFRN

Ciência, Tecnologia e Sociedade: primeiras leituras


Por Carla Giovana Cabral1

[...] Hora de delicadeza,


Gasalho, sombra, silencio.
Haverá disso no mundo? [...]

Carlos Drummond de Andrade, poema


Anoitecer, em “A rosa do povo” (1945)

Um campo interdisciplinar, uma disciplina nova

Nós vamos iniciar nossos estudos conhecendo a origem da expressão Ciência,

Tecnologia e Sociedade (CTS). É o nosso primeiro passo para entender o lugar


dessa expressão no mundo em que vivemos, na sociedade, na cultura. Não

estamos fora desses espaços: fazemos parte de uma sociedade, de uma cultura,
e também estamos implicados nas relações produzidas pela ciência e pela

tecnologia. E, se somos especialistas em alguma área de conhecimento e nos


tornamos produtores de conhecimento (professores/as, cientistas e

engenheiros/as, por exemplo) cresce nossa responsabilidade com o que fazemos,


as pessoas e o ambiente.

Por meio deste texto, veremos que a expressão Ciência, Tecnologia e

Sociedade tem uma história e que essa história começa em meados da década
de 1960 e início dos anos 1970, quando diversos grupos passam a contestar com

mais veemência o uso da ciência e da tecnologia em guerras, seu impacto


ambiental, o controle da aplicação dos conhecimentos pelo Estado. De lá para cá,

1
“Ciência, Tecnologia e Sociedade: primeiras leituras” foi originalmente escrito como capítulo de minha
autoria no livro “Ciência, Tecnologia e Sociedade I”, Módulo Introdução aos Estudos CTS (Cabral e Pereira,
2011). Com intenção didática, em 2017, realizei a primeira revisão deste texto; em 2019, a segunda; em
2020, a terceira. Carla Giovana Cabral é professora da Área Ciência, Tecnologia e Sociedade na Escola de
Ciências e Tecnologia da UFRN.

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vários países se apropriaram da expressão CTS. No Brasil, por exemplo, há

diversos grupos que realizam pesquisas com base no campo interdisciplinar CTS,
especialmente em universidades públicas. Há também discussões sobre as inter-

relações relação ciência, tecnologia e sociedade, que não se utilizam do


pensamento crítico desse campo interdisciplinar, tomando rumos

diametralmente opostos, por vezes.

No Brasil, CTS integra uma discussão relativamente nova e que aos poucos

influencia currículos de graduação e pós-graduação e a formação de


professores/as da Educação Básica. Sua origem em nosso País está ligada a área

de estudos denominada Educação em Ciências. Essa área foi o ponto de partida


para a incorporação dos Estudos CTS ou abordagem CTS na Educação

Tecnológica, no Ensino de Engenharia e no Ensino de CTS em bacharelados como


o Interdisciplinar em Ciências e Tecnologia.

Na Escola de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal do Rio Grande

do Norte (ECT/UFRN) temos um exemplo concreto de Ensino de CTS. Seguindo


documentos oficiais, tais como os Referenciais Orientadores para os

Bacharelados Interdisciplinares e as Diretrizes Curriculares para o Ensino de


Engenharia, o Projeto Pedagógico do Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e
Tecnologia (BICT) e o seu currículo buscam incorporar uma formação
humanística, na direção da construção de uma postura ética e de cidadania ativa

com os/as estudantes. Entretanto, apesar dessa orientação da política


educacional, a formação humanística presente no Bacharelado em Ciências e

Tecnologia da ECT é ainda incipiente, ou seja, não foi ainda assumida de forma

mais ampla no currículo e sua implementação.

Na ECT, integrando conteúdos e práticas humanísticas calcadas no campo


e estudos CTS, temos apenas uma disciplina obrigatória, “Ciência, Tecnologia e

Sociedade”; como optativas, encontram-se as componentes “Relações de Gênero


em Ciência e Tecnologia”, “Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia”,

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“Ética em Ciência e Tecnologia”, “Dimensões filosóficas da Tecnologia Moderna”,

“Política de Ciência e Tecnologia” e “Tecnologias Sociais”. Essas componentes


oferecem a oportunidade de você conhecer diferentes facetas da ciência e da

tecnologia e, a partir das aprendizagens construídas, edificar a capacidade de ver


a ciência e a tecnologia com mais amplitude, refletir sobre os interesses e valores

que influenciam sua produção, suas implicações sociais e ambientais e a própria


responsabilidade de cientistas e outros atores sociais nas decisões que são

tomadas. Dessa forma, você terá a oportunidade de se qualificar

diferenciadamente em relação a outros/as estudantes que não têm a


possibilidade de discutir sobre questões contemporâneas e suas inter-relações

CTS na universidade. É um passo para compreender o lugar que você ocupa como
profissional e cidadão/cidadã e atuar de forma responsável social, ambiental,

econômica e politicamente.

Ciência e tecnologia são atividades humanas e construídas social e


historicamente. Entretanto, ao iniciar os estudos em CTS, muitos/as alunos/as não

pensam assim. Isso se transforma à medida que passam a conhecer e discutir as


diferentes dimensões implicadas na construção do conhecimento e das

tecnologias e suas consequências socioambientais. Logo, iniciam uma reflexão


mais crítica sobre as realidades e seu papel no mundo contemporâneo e podem

se preparar para um papel mais ativo socialmente.

Para alcançar essa educação científica e tecnológica crítica, nosso trabalho


no ensino de CTS estabelecemos alguns objetivos. São eles: 1) abordar

teoricamente a constituição do campo CTS, concepções de ciência e tecnologia

e a sociedade contemporânea; 2) utilizar questões contemporâneas como tema e


eixo condutor do ensino; 3) adotar a educação para a sustentabilidade

transversalmente aos conteúdos programáticos; 4) proporcionar aos/às


estudantes uma compreensão crítica do mundo em que vivem e seu papel como

cidadãos/ãs em um regime democrático.

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A abordagem CTS está presente na Educação Básica brasileira e de outros

países ibero-americanos, seja na constituição de disciplinas ou integrando


conteúdos programáticos de Química, Física, Matemática e Biologia. Essa

abordagem na Educação em Ciências está mais presente na contextualização


social e histórica de conteúdos e práticas voltadas à cidadania ativa. Países como

Espanha, mas também Portugal, Inglaterra e EUA influenciaram as teorias e


metodologias do trabalho em ensino que é realizado no Brasil. Em quase 50 anos

de diálogos teóricos, temos hoje nossa própria tradição teórico-metodológica.

Queremos ressaltar que essas influencias evidenciaram-se no ensino de

engenharia brasileiro no final do Século XX, quando se buscava uma formação


humanística para futuros engenheiros/as, pensando em sua participação social

mais efetiva. Walter Antonio Bazzo, Luiz Teixeira do Vale Pereira e Irlan von
Linsingen, professores de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC) foram pioneiros nesse trabalho. Eles entendiam que

A inclusão de estudos no campo CTS toma importância ímpar em países


que começam a aprofundar suas análises na imbricada relação entre
desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento humano. E parece
consenso que, apesar da importância dos avanços dos conhecimentos
que permitem dominar mais e mais a natureza, por mais paradoxal que
possa parecer, a maior parte da civilização experimenta ainda
necessidades básicas ainda não atendidas que se configuram como
absurdas, dadas as muitas possibilidades técnicas que dominamos para
resolver os problemas que as geram. Também é consenso que, para
resolver tais problemas, bastaria, em princípio, animar a vontade
política de nossas sociedades e dos que elegemos como representantes
(2008, p. 160).

Isso nos leva a algumas questões.

o Conseguimos perceber a relação entre os elementos tecnológicos do

nosso entorno com a constituição de uma cultura tecnológica? Quais


relações percebemos e não percebemos?

o Quais elementos compõem a cultura tecnológica do século XXI?

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o Sabemos quem financia a ciência e a tecnologia em nosso País? Quais


instituições a compõem?

o Os resultados/produtos da ciência e da tecnologia beneficiam e incluem


todas as pessoas?

O ser humano domina a tecnologia ou a tecnologia domina o ser humano?

A origem do campo interdisciplinar CTS

A expressão CTS representa as relações entre conhecimentos,

especialmente o científico e técnico e a sociedade e podem, segundo o pensador


espanhol José A. López Cerezo (2003), particularizar-se em objeto de estudo e
campo interdisciplinar. O que isso quer dizer? Vamos nos apropriar do texto de
Cerezo para explicar.

Quando nos referimos ao objeto de estudo, estamos levando em conta os


fatores sociais que influenciam a mudança científico-tecnológica e também as

consequências sociais e ambientais dessa mudança. Há muitos exemplos. Pense


sobre o impacto de uma guerra que se utiliza de armas biotecnológicas e

nucleares. Qual o objetivo das tecnologias produzidas pelos nazistas na Primeira


Guerra? E os resultados do Projeto Manhattan, você conhece? Também podemos

citar os sérios impactos ambientais relacionados à ciência e tecnologia, desde


derramamentos de petróleo, acidentes com usinas nucleares, poluição industrial,

intoxicação de fauna, flora e seres humanos por pesticidas e outras substâncias


tóxicas, rompimento de barragens de resíduos industriais, mudanças climáticas

etc. Encontramos exemplos também na maneira diferente e desigual como se dá


à proliferação de doenças em contextos de países ricos e pobres. Provavelmente,

você já pensou em seu País e pode incluir aqui algum exemplo do seu contexto.

Veja o Quadro 1! Ele faz uma cronologia internacional que nos ajuda a
compreender como alguns eventos e teorias conjuminaram em críticas à ciência

e às tecnologias modernas.

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Quadro 1 – fatos históricos na origem do campo CTS.

1957 - A União Soviética lança o Sputnik, o primeiro satélite artificial ao redor da terra.
Causou uma espécie de convulsão social, política e educacional nos Estados Unidos
da América do Norte (EUA) e outros países ocidentais.
- O reator nuclear de Windscale, Inglaterra, sofre um grave acidente, criando uma
nuvem radioativa que se espalha pela Europa Ocidental.
- Explode nos Urais o depósito nuclear Kyshtym, contaminando uma grande extensão
circundante à União Soviética.
1958 Criada a NASA, como uma das consequências do Sputnik.
1959 - Conferência de C.P. Snow, em que se denuncia o abismo entre as culturas
humanística e científico-tecnológica.
Anos - Desenvolvimento do movimento de contracultura, em que a luta política contra o
1960 sistema vincula o seu protesto em relação à tecnologia.
1961 - A talidomida é proibida nos (EUA), após causar mais de 2.500 defeitos de
nascimento.
1962 Publicação de Silent Spring, de Rachel Carson. Essa autora denuncia, entre outras
coisas, o impacto ambiental de pesticidas sintéticos como o DDT. É o que deflagra o
movimento ecológico.
1963 - Tratado de limitação de provas nucleares.
Afunda o submarino nuclear USS Thresher, seguido pelo USS Scorpion (1968).
1966 - Um avião B 52 com quatro bombas de hidrogênio explode perto de Palomares,
Almeria, contaminando com radioatividade uma grande área.
Com base em motivos éticos e políticos, profissionais de informática constituem um
movimento de oposição à proposta de criar um banco de dados nacionais nos EUA.
1967 - O petroleiro Torry Canyon sofre um acidente e verte uma grande quantidade de
petróleo nas praias do sul da Inglaterra. A contaminação por petróleo começa a ser
algo comum em todo o mundo desde então.
1968 - O papa Pablo VI torna público um rechaço à contracepção artificial.
- Graves revoltas nos EUA contra a Guerra do Vietnã (a participação norte-americana
incluiu sofisticados métodos bélicos como o napalm).
- Maio de 68 na Europa e EUA: protestos generalizados contra o sistema.
Fonte: BAZZO, PEREIRA E VON LINSIGEN (Eds) Introdução aos Estudos CTS. OEI: 2003.

Repare na cronologia e você verá que os eventos registrados em nosso

quadro se situam nas décadas de 1960 e 1970 do século XX, principalmente. É


um período de intensa movimentação social, de reivindicações e contestações

contra regimes ditatoriais, preconceitos contra mulheres, negros, homossexuais


– um tempo que mudou a história.

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Esse é o contexto em que se origina o campo de estudos CTS. Ele reuniu

as reflexões de vários campos da ciência – em especial o foco das Ciências


Humanas de forma interdisciplinar nas Ciências Exatas – com o objetivo de

edificar novas perspectivas para examinar a ciência e a tecnologia modernas.


Destacamos alguns pontos: a crise que se estabeleceu em relação à credibilidade

da ciência e seu apoio público; o combate ao uso irracional dos recursos naturais;
o questionamento da neutralidade científica e sua autonomia em relação à

sociedade.

Notemos que cientistas, engenheiros, gestores de ciência e tecnologia,

políticos, empresários, entre outros profissionais, também são pessoas, com


valores, crenças, interesses, e tudo isso se enreda nas pesquisas desenvolvidas,

nos projetos, nos investimentos feitos e nas decisões que são tomadas. Temos aí
várias questões. Vamos a elas.

Uma das importantes questões é que o entendimento chamado tradicional

do que é ciência “neutraliza” as relações sociais a que os sujeitos estão atrelados


e até mesmo sua história. Isso continua sendo ensinado aos/às cientistas, aos/às

engenheiros/as que, por sua vez, continuam pensando que as suas pesquisas e
projetos são neutros, ou seja, não têm impacto social, ambiental e político
negativos porque a ciência é “neutra”. Sendo neutra está inexoravelmente voltada
ao bem-estar social. Nesse ponto, convém perguntar: qual ciência? Para quê? E

para quem?

No contexto em que o campo CTS surgiu também circulavam perguntas

assim e um certo ceticismo em relação à ciência e à tecnologia, divinizadas após


a Segunda Guerra e a disseminação de produtos inovadores baseados em ciência,

artefatos e sistemas tecnológicos.

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Figura 2 – tecnologia para quem?

Fonte: os “Cientistas em quadrinhos”. Disponível em < https://oscientistashq.blogspot.com/>.


Acesso em: 02/08/2019.

A aceitação passiva e sem crítica da tecnologia leva à TECNOFILIA e ao

SONAMBULISMO TECNOLÓGICO.

Um conceito que se tornou muito conhecido nessa época foi o de

Síndrome de Frankenstein. Esse conceito alude ao livro publicado em 1818 por


Mary Shelley – “Frankenstein, ou o moderno prometeu”. Ele representa a relação

homem e natureza, simboliza um temor de que as mesmas forças que são


utilizadas para controlar a natureza podem se voltar contra nós, destruindo-nos.

O trecho do livro em que o “monstro” diz a Victor Frankenstein “tu és o meu


criador, mas eu sou o teu senhor” foi utilizado para expressar essa possibilidade

(Cerezo, 2003, p. 117). No título do livro, Mary Shelley faz uma citação ao mito de
Prometeu. Você conhece esse mito?

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Figura 3 – “Síndrome de Frankenstein”.

Fonte: os “Cientistas em quadrinhos”. Disponível em < https://oscientistashq.blogspot.com/>.


Acesso em: 02/08/2019.

O medo da tecnologia pode ser traduzido por TECNOFOBIA.

Vamos refletir. Temos ou já tivemos atitudes tecnofóbicas e/ou

tecnofílicas? Quando? E que atitudes foram essas? Compartilhe essas


experiências com seus colegas, com sua família, nos ambientes em que circula.

Discuta o tema!

Vamos refletir um pouco mais? Podemos viver sem redes sociais, celular e
internet? Pense nessa indagação, seriamente.

Ser crítico em relação à ciência e à tecnologia é procurar enxergá-las sob

vários prismas e não permanecer passivo diante delas. Um comportamento


apassivado, sem consciência, diante da tecnologia moderna e da cultura

tecnológica constitui o que foi chamado por Langdon Winner de “sonambulismo


tecnológico”. Esse conceito foi cunhado pela primeira vez em seu livro

“Autonomous Technology: Technics-out-of-control as a Theme in Political

Thought” (1977). O sonambulismo tecnológico está ligado a uma certa dormência


ou cegueira da sociedade em relação às consequências, na sua vida e no mundo,

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do processo de mudança drástica pela qual a humanidade passa e que está sendo

provocada pela tecnologia moderna e a ciência.

Por que há essa “dormência” e “cegueira” social em relação às tecnologias

modernas e à ciência? Haveria uma relação entre sonambulismo tecnológico e


tomada de decisões políticas em ciência e tecnologia? Por que, muitas vezes, os

especialistas não são capazes de criticar ou mudar os rumos de certas decisões


que afetarão a vida de dezenas, centenas ou milhares de pessoas e o meio

ambiente?

A resposta, ou melhor, as reflexões que essas questões nos colocam nos


obrigam a conhecer de maneira contextualizada o que são e como agem a ciência

a tecnologia contemporâneas. Há uma história, relações sociais e culturais,


econômicas, políticas, ambientais passíveis de serem conhecidas e interpretadas.

Não é possível constituir uma postura crítica sobre as inter-relações ciência,


tecnologia e sociedade sem um conhecimento humanístico sobre elas. É

necessário que se contemple aspectos diversos, e não só a “esfera técnica” (Pacey,


1990).

Retomando questões sobre ciência

Nos discursos do público em geral e também entre estudantes e certas


estirpes de pesquisadores, há uma concepção tradicional que ainda impera, de

que ciência é um empreendimento objetivo, neutro, baseado em um código de


racionalidade não influenciado por fatores externos e autônomo em relação à

sociedade (Palácios et al, 2001, p. 12). Esse é um dos entendimentos possíveis.


Pode ser o mais corriqueiro, tradicional, e ainda bastante ensinado nas aulas de

ciências e nas escolas de engenharia, mas não é o único e tão pouco o mais amplo
e desejável – porque ele é restrito. E sendo assim ele oferece um olhar do mundo

bastante limitado.

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A ideia de ciência neutra traduz-se em várias expressões, ou seja, aparece

com diferentes nomes. Ciência herdada, ciência moderna e concepção


essencialista e triunfalista da ciência são alguns exemplos. Essa ideia fundamenta

um modelo clássico de política científica baseado no que denominamos “modelo


linear de inovação”, ou seja:

Uma das questões que está na origem dessa visão e das suas repercussões

na política de ciência e de tecnologia é a própria metodologia da ciência2. Com


o advento da ciência moderna, estabeleceu-se que uma forma infalível de se

obter a verdade seria por meio do método científico. Cerezo (2003, p. 119)
descreve o método científico como uma combinação de racionalidade lógica e

observação cuidadosa. A avaliação por pares, ainda segundo o mesmo autor, “se
encarregará de velar sobre a integridade intelectual e profissional da instituição”

(idem, 2003, p. 119-120). Em outras palavras, quer dizer que a correta aplicação
do método é que vai garantir o bom funcionamento desse código de conduta.

[...] nessa visão clássica, a ciência somente pode contribuir com um


maior bem-estar se esquece da sociedade para buscar exclusivamente
a verdade. Quer dizer, a ciência só pode avançar perseguindo o fim que
lhe é próprio, o descobrimento de verdades sobre a natureza, se
mantém livre da interferência dos valores sociais por mais beneméritos
que sejam. Analogamente, só é possível que a tecnologia possa atuar
como cadeia transmissora no desenvolvimento social se se respeita sua
autonomia, se esquece da sociedade para atender unicamente a um
único critério de eficácia técnica (Idem, 2003, p. 120).

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Para Reale e Antiseri (2009), a ideia de método, mais especificamente de método hipotético dedutivo,
ou seja, são necessárias hipóteses como primeiro passo para a solução de problemas. Dessas hipóteses
deduzem-se consequências experimentais publicamente controláveis.

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Dessa forma, ciência e tecnologia são apresentadas à sociedade como

formas que sobrevivem autonomamente em relação à cultura, como atividades


com valor neutro, uma espécie de “aliança heroica de conquista da natureza”. No

início do século XX, essa ideia foi bastante fortalecida por um movimento que
ficou conhecido como Empirismo Lógico, que surge na Áustria, nos anos 1920 e

1930 (Cerezo, 2003, p. 120; Palacios, 2001, p. 14).

Esse tipo de pensamento foi contestado e uma de suas críticas mais

conhecidas é a que Tomas Kuhn escreveu, em 1962, no livro “A estrutura das


revoluções científicas”. Kuhn buscou discutir a clássica questão “o que é ciência”

pesquisando episódios da história da ciência, como o desenvolvimento da teoria


dos corpos celestes da era moderna (heliocentrismo) e discutindo condicionantes

sociais para a constituição da verdade científica.

Na teoria de Kuhn, a ciência tem períodos estáveis, denominados ciência


normal. São períodos sem alterações bruscas na dinâmica da ciência, sem

alterações que levem a uma mudança mais pronunciada. Para esse pensador, esse
é um período em que os cientistas se dedicam a resolver “quebra-cabeças” por

meio de um paradigma que é compartilhado em determinada comunidade


científica. A acumulação de problemas não resolvidos nesse período pode
acarretar o surgimento de anomalias, que podem fraturar o paradigma vigente.
Isso pode dar lugar a um outro período, extraordinário, que Kuhn denominou

revolução científica. Veja que, dessa forma, o critério para definir o que é ciência
deixa de ser empírico e passa a ser social. Em outras palavras, não é a aplicação

por si só do método científico que garante o conteúdo de verdade das teorias,

mas, sobretudo, a avaliação da comunidade científica.

Kuhn não foi o único a defender que há um critério social para o


desenvolvimento das teorias científicas. Cerca de 30 anos antes, um pensador

polonês chamado Ludwik Fleck já dizia que a ciência não era uma produção
individual. Para esse pensador, na interpretação de Schäfer e Schnelle (2010), a

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ciência consiste em algo organizado por pessoas de modo cooperativo; assim,

deve ser considerada, em primeiro lugar, a estrutura sociológica e as convicções


que unem os cientistas, para além das convicções empíricas e especulativas dos

indivíduos.

Retomando questões sobre tecnologia

E a tecnologia? Veja que a maneira como entendemos a ciência influencia

diretamente a forma como concebemos a tecnologia, ainda mais se a


considerarmos uma aplicação da ciência tão somente. Se a tratamos assim, muito

provavelmente passamos a vê-la de forma 1) determinista, 2) intelectualista e 3)


utilitarista. O que é isso significa? Respectivamente, é pensar que 1) a visão

determinista inculca que a tecnologia determinará a mudança social; 2) o


conhecimento tecnológico deriva tão somente do conhecimento científico, a ele

está reduzido como sua aplicação – esta é a visão intelectualista; 3) a visão


utilitarista designa que toda tecnologia traz um bem-estar social.

Uma mirada com nuance antropológica na história da ciência e da


tecnologia vai nos mostrar que a habilidade técnica diferenciou o homem de

outros animais que habitam no planeta Terra. As alavancas, polimento de pedras


e o fogo são técnicas milenares (Bazzo e Pereira, 2009, p. 66). O alfabeto e a

escrita são sistemas de símbolos organizados que o homem desenvolveu há pelo


menos 2mil anos. Lembremos, por exemplo, que o fogo é um legado da pré-

história e que esse é um momento em que o homem ainda não tinha investido
em um sistema de conhecimento racional. Esse sistema racional se originará na

Grécia e, após diversas transformações sociais, políticas e econômicas,


desembocará na Revolução Científica e na ciência que se produz

contemporaneamente (Reale e Antiseri, 2009). É importante observar que a


ciência contemporânea – essa que é produzida nas universidades e institutos de

pesquisa está longe da forma como os gregos estudavam a natureza ou mesmo


pensadores célebres como Copérnico e Galileu, ou criadores fantásticos como

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Leonardo da Vinci realizavam seus trabalhos. Se a ciência e a tecnologia têm uma

história, esta não se deu aleatoriamente. O ambiente social (cada época teve o
seu) e a forma como as pessoas (mulheres e homens, ricos e pobres, negros,

brancos, indígenas etc) com ela se relacionavam são elementos a ser


considerados.

Assim, falar em prática tecnológica (Pacey, 1990), levando-se em conta que


sistemas e artefatos tecnológicos não são apenas produtos técnicos, mas estão

ligados a aspectos organizacionais e imersos numa cultura, portanto, é mais


propício à discussão de valores e sua incorporação (Figura 3).

Figura 3 – prática tecnológica.

Fonte: Pacey (1990).

Olhe novamente a Figura 3. Um entendimento limitado de tecnologia


reduzirá as dimensões sociais e humanas e seus problemas ao aspecto técnico da

tecnologia, que é o terreno do seu significado mais específico. Esse entendimento


solapa o conteúdo humano, social e cultural no fazer tecnológico, ignora a

existência de valores nessa atividade (Cabral, 2006, p. 46).

À discussão do conceito de tecnologia também se agregam aspectos


econômicos, como os advindos do sistema capitalista. Importa lembrar que é no

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século XX que se institucionaliza a inovação tecnológica em vários países do

mundo.

De acordo com Miranda (2013), pensadores da corrente humanista da

filosofia da técnica, como Heidegger, além de materialistas históricos, como Marx,


e filósofos da teoria crítica, como Habermas, fizeram importante crítica à

tecnologia moderna. Sem adentrar as especificidades de cada pensamento


filosófico explicitado pela autora, notamos que eles chamaram a atenção para o

caráter instrumental e essencializador da técnica moderna (Heidegger); da técnica


moderna como modo de produção, meio de produção e capital (Marx); da técnica

como uma forma de escravidão do homem moderno, de controle de sua vida por
meio da tecnocracia (Habermas).

Vamos refletir?

▪ Cientistas e engenheiros sofrem influência de interesses e valores advindos


do contexto de produção de conhecimento científico e tecnologias? Que
atenção deveriam dar às consequências socioambientais de seu trabalho?

▪ Você conhece instrumentos que permitam ao cidadão intervir nos


processos de controle da pesquisa ou nas decisões que envolvem a ciência
e a tecnologia e atingem suas vidas e o ambiente em que vivem?

Este texto buscou apresentar elementos para uma aproximação ao campo CTS
e a discussão que ele enseja sobre as relações entre ciência, tecnologia e

sociedade. Há muito mais a ser debatido e acreditamos que você se dará conta
disso no decorrer dos seus estudos. Aproprie-se deste texto como uma espécie

de primeira leitura.

Referências

BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do Vale. Introdução à Engenharia.


Florianópolis: EDUFSC, 2009. BAZZO, Walter Antonio; PEREIRA, Luiz Teixeira do

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Vale; VON LINSINGEN, Irlan. Educação Tecnológica: enfoques para o ensino de


engenharia. Florianópolis: EDUFSC, 2008.

CABRAL, Carla Giovana. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA.


Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica. O
conhecimento dialogicamente situado: histórias de vida, valores humanistas e
consciência crítica de professoras do Centro Tecnnológico da UFSC. Florianópolis,
2006. 205 f. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-
Graduação em Educação Científica e Tecnológica.

CEREZO, José López “Ciencia, tecnologia y sociedad”. In IBARRA, Andoni.; OLIVÉ,


León. Cuestiones éticas em ciencia, tecnologia y sociedad em el siglo XXI. Madrid:
OEI, 2003. FLECK, Ludwik. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Belo
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VON LISINGEN, Irlan. O Enfoque CTS e a Educação Tecnológica: Origens, Razões


e Convergências Curriculares. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação
Tecnológica. Florianópolis, 2004. Disponível em:
<http://www.nepet.ufsc.br/Artigos/Texto/CTS%20e%20EducTec.pdf>. Acesso
em: julho/2017.

MIRANDA, Angela Luzia. “Da identidade da tecnologia moderna”. Escola de


Ciências e Tecnologia. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013. (Texto
didático).

PACEY. Arnold La cultura de la tecnología. México: Fondo de Cultura Económica,


1990.

PALACIOS, Eduardo Marino García et al. Ciência, tecnologia y sociedad: uma


aproximación conceptual. Madrid: OEI, 2001.

REALE, Giovanni, ANTOSERI, Dario. História da Filosofia. v. 7. São Paulo: Paulus,


2009.

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