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Unidade Curricular: Estudos Literários

I. Análise do conto “O Homem” de Sophia de Mello Breyner Andresen – (1919-


2004) Primeira etapa

O conto “O Homem” insere-se na colectânea de narrativas breves Contos Exemplares


(1962) de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). Num jogo intertextual, o
título da obra de Andresen remete explicitamente para Las Novelas Exemplares (1613)
do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). Estabelecendo um diálogo com
Cervantes no sentido de propor exemplos, cada narrativa de Andresen encena um padrão
de comportamento, um modelo de vida que se apresenta ao leitor como uma comparação
que merece reflexão, transmitindo uma mensagem didáctica e ética.

O conto “O Homem” explora a lembrança de um evento singular, narrado segundo o


ponto de visto de uma mulher que partilha com o leitor a sua experiência numa cidade
anónima que representa alegoricamente todas as cidades modernas do mundo. Trata-se
de reflectir sobre uma lição moral a partir da viagem numa rua na qual participam a
narradora, um homem, um menino que este leva ao colo e a multidão apressada.

O início do conto “O Homem” inscreve-se intertextualmente no modelo das histórias


tradicionais do maravilhoso, pautado pela fórmula: “Era uma vez”. A expressão “Era uma
tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono” (Andresen, 2006: 137) convida o
leitor a mergulhar no passado, sugerindo um tempo marcado pela negatividade do
Inverno. A narradora partilha com o leitor a evocação de um acontecimento distante. O
espaço da cidade é apresentado com signos de aprisionamento e de desolação: “A cidade
erguia as suas paredes de pedras escuras” (Andresen, 2006: 137). O homem encontra-se
afastado do céu que estava “alto, desolado, cor de frio” (Andresen, 2006: 137). No plano
conotativo, o céu é um espaço inalcançável: a sinestesia (união de planos sensoriais
diferentes) “cor de frio” intensifica o significado de uma ruptura do ser humano com o
transcendente.
A cidade é o espaço de um tempo acelerado que não permite a contemplação nem a
reflexão, é o espaço de uma vivência hostil, marcada pela vertigem desenfreada: “Os
caminhantes caminhavam empurrando-se uns aos outros. Os carros passavam depressa”
(Andresen, 2006: 137). A alusão ao tempo subjectivo pautado pela ausência e pela
negação instaura uma visão disfórica da cidade: “Deviam ser quatro horas de um dia sem
sol nem chuva” (Andresen, 2006: 137). A narradora-testemunha está inserida num ritmo
mecânico: “Eu caminhava no passeio, depressa” (Andresen, 2006: 137).

Neste espaço invadido pela hostilidade e pela aceleração, a narradora cruza o seu olhar
com um homem miserável que carrega uma criança ao colo:

A certa altura encontrei-me atrás de um homem muito pobremente vestido


que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase
não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza de
uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma inocência
humana.

Em oposição à rapidez da maré humana, o texto sublinha uma pausa que se concentra na
movimentação da personagem masculina que é individualizada: “mas o homem
caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente.

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Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança” (Andresen, 2006:
137). Há um contraste entre a presença empobrecida do homem e a beleza da criança que
é comparada com elementos que conotam a luz e o esplendor da natureza. A criança surge
como um anjo impregnado de graça e de pureza.

Quando a narradora se centra na descrição do pobre, a narrativa ganha um ritmo lento,


criando uma dilatação temporal que incide num instante de revelação em que a narradora
contempla fascinada o homem pobre:

Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem


extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam
inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor
tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo
era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por
cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza,
a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram
os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura (Andresen, 2006:
137).

A beleza superlativizada do homem contrasta com a sua vestimenta pobre, ele é um


desvalido da sociedade, condenado ao abandono social. O texto descreve um retrato de
um homem mártir, vítima da indiferença da sociedade acelerada. Em contraste com a
frieza da sociedade, o retrato do homem realça a sua doçura do olhar. Neste primeiro
retrato, o leitor pode formular como hipótese de leitura que se trata de um retrato de Jesus
Cristo, se considerarmos a multiplicidade de imagens artísticas que representam Jesus
com o cabelo e os olhos claros, um homem com um olhar empático.

Neste primeiro encontro, o olhar da testemunha e do miserável não coincidem: “No


próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu” (Andresen, 2006:
138) O homem pede o auxílio a Deus, situado no transcendente. Porém, o homem não
recebe resposta do céu, marcado pelo distanciamento e pela reiteração da frieza: “Era um
céu alto, sem resposta, cor de frio” (Andresen, 2006: 138). O texto sublinha que o ser
humano está inserido num espaço marcado pela falta de solidariedade, a injustiça e a
ausência de harmonia.
A narradora tenta de recuperar a expressividade do gesto do homem derrotado que busca
um sentido para o seu caminhar, trata-se de traduzir a imagem de um homem invadido
pelo sofrimento e pela necessidade de alcançar uma saída:

O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um


limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta: A
sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente
resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do
lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se
todo o corpo estivesse erguido na pergunta (Andresen, 2006: 138).

Este ser marginalizado enfrenta o impasse de não encontrar resposta no sagrado: “Com a
cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio”
(Andresen, 2006: 138). O texto sugere um antagonismo entre a horizontalidade e a
verticalidade, já que o homem tenta ascender ao divino mas só vê um céu transformado
em campo raso.

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Esta constatação do dilacerar do homem provoca um sentido de desassossego e de
esvaziamento emocional na alma da narradora: “Foi como se tivesse ficado vazia olhando
o homem” (Andresen, 2006: 138).
Através do olhar da narradora, o texto desmascara a cegueira da multidão e a sua falta de
solidariedade que confina o homem miserável à solidão: “A multidão não parava de
passar […] Rios de gente passavam sem o ver” (Andresen, 2006: 138). A hipérbole “rios
de gente” enfatiza que se trata de um número vasto de seres indiferentes à dor do mártir.
Andresen transmite a ideia de um desencontro entre a narradora e o miserável. Há um
sentimento de impotência por parte da narradora-testemunha que não consegue
ultrapassar a solidão intensa e profunda que invade o miserável. O texto sublinha que ela
esta inserida num tempo de emergência em que as palavras não encontram morada para
evitar o irremediável. A imagem das mãos atadas insiste no facto de a narradora estar
impedida numa situação de bloqueio:

O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era
como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se
ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer
palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas.
Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos. (Andresen, 2006:
138-139).

O movimento frenético da cidade surge como um obstáculo que provoca o distanciamento


entre a narradora e o homem que se encontram sozinhos: “Sentia a cidade empurrar-me e
separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a
cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria” (Andresen,
2006: 139).

A narradora surge como um ser que exprime um certo remorso por não ter agido, ela
reflecte sobre a necessidade de ter tomado um gesto solidário no presente da enunciação.
A sua incapacidade de dar resposta ao sofrimento do homem pobre traduz que ela se
deixou invadir pela cegueira do espaço citadino. A cidade surge como um lugar de
devastação que a impele à aceleração, tornando-a incapaz de agir com lucidez:

Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas
eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar
e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade
empurrava-me e um relógio bateu horas (Andresen, 2006: 139).

A comparação do nadador empurrado pela corrente é uma imagem intensa que traduz
como a narradora se deixou envolver pelo movimento indiferente da multidão, um
movimento insensato que a impele a afastar-se do homem: “Então, como o nadador que
é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de
me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do
homem” (Andresen, 2006: 139).

Contudo, a narradora guardou dentro de si a imagem imploradora do homem e faz uma


viagem interior porque ela busca na sua memória reconhecer algum vestígio de revelação
que lhe fale sobre aquele homem desprotegido que sonda os céus com uma expressão de
interrogação:

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Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do
homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação
confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vívido. Desenrolei para
trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e
rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de
quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava
sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita
solidão, de abandono e de pergunta (Andresen, 2006: 139-140).

I. Reflexão (comentário escrito de uma página):

Após ter lido todo o conto várias vezes, cada estudante deverá elaborar um comentário
escrito que explore a função alegórica do homem no conto de Andresen e a lição de moral
que o texto transmite.
- Cada estudante deverá descobrir a relação intertextual da frase “Pai, Pai, por que me
abandonaste?” (Andresen, 2006: 140) com a reescrita de um episódio da Bíblia. Após ter
pesquisado sobre esta ligação, é importante referir a crítica de Andresen à sociedade
modernizada.

A. CORPUS

Andresen, Sophia de Mello Breyner, 2006, Contos Exemplares, Porto, Figueirinhas.

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