Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Neste espaço invadido pela hostilidade e pela aceleração, a narradora cruza o seu olhar
com um homem miserável que carrega uma criança ao colo:
Em oposição à rapidez da maré humana, o texto sublinha uma pausa que se concentra na
movimentação da personagem masculina que é individualizada: “mas o homem
caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente.
1
Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança” (Andresen, 2006:
137). Há um contraste entre a presença empobrecida do homem e a beleza da criança que
é comparada com elementos que conotam a luz e o esplendor da natureza. A criança surge
como um anjo impregnado de graça e de pureza.
Este ser marginalizado enfrenta o impasse de não encontrar resposta no sagrado: “Com a
cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio”
(Andresen, 2006: 138). O texto sugere um antagonismo entre a horizontalidade e a
verticalidade, já que o homem tenta ascender ao divino mas só vê um céu transformado
em campo raso.
2
Esta constatação do dilacerar do homem provoca um sentido de desassossego e de
esvaziamento emocional na alma da narradora: “Foi como se tivesse ficado vazia olhando
o homem” (Andresen, 2006: 138).
Através do olhar da narradora, o texto desmascara a cegueira da multidão e a sua falta de
solidariedade que confina o homem miserável à solidão: “A multidão não parava de
passar […] Rios de gente passavam sem o ver” (Andresen, 2006: 138). A hipérbole “rios
de gente” enfatiza que se trata de um número vasto de seres indiferentes à dor do mártir.
Andresen transmite a ideia de um desencontro entre a narradora e o miserável. Há um
sentimento de impotência por parte da narradora-testemunha que não consegue
ultrapassar a solidão intensa e profunda que invade o miserável. O texto sublinha que ela
esta inserida num tempo de emergência em que as palavras não encontram morada para
evitar o irremediável. A imagem das mãos atadas insiste no facto de a narradora estar
impedida numa situação de bloqueio:
O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era
como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se
ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer
palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas.
Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos. (Andresen, 2006:
138-139).
A narradora surge como um ser que exprime um certo remorso por não ter agido, ela
reflecte sobre a necessidade de ter tomado um gesto solidário no presente da enunciação.
A sua incapacidade de dar resposta ao sofrimento do homem pobre traduz que ela se
deixou invadir pela cegueira do espaço citadino. A cidade surge como um lugar de
devastação que a impele à aceleração, tornando-a incapaz de agir com lucidez:
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas
eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar
e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade
empurrava-me e um relógio bateu horas (Andresen, 2006: 139).
A comparação do nadador empurrado pela corrente é uma imagem intensa que traduz
como a narradora se deixou envolver pelo movimento indiferente da multidão, um
movimento insensato que a impele a afastar-se do homem: “Então, como o nadador que
é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de
me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do
homem” (Andresen, 2006: 139).
3
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do
homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação
confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.
Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vívido. Desenrolei para
trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e
rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de
quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava
sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita
solidão, de abandono e de pergunta (Andresen, 2006: 139-140).
Após ter lido todo o conto várias vezes, cada estudante deverá elaborar um comentário
escrito que explore a função alegórica do homem no conto de Andresen e a lição de moral
que o texto transmite.
- Cada estudante deverá descobrir a relação intertextual da frase “Pai, Pai, por que me
abandonaste?” (Andresen, 2006: 140) com a reescrita de um episódio da Bíblia. Após ter
pesquisado sobre esta ligação, é importante referir a crítica de Andresen à sociedade
modernizada.
A. CORPUS