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Memória e imaginação

Ao final do capítulo XIII de The Concepto f Mind, dedicado ao conceito de


imaginação, Ryle realiza um breve excurso sobre a memória. Ali, ele nota que o verbo
“lembrar” normalmente é usado em dois sentidos distintos: 1. lembrar como aprender e
não esquecer, e 2. lembrar como recordar um episódio ou uma experiência passada. No
primeiro sentido, o verbo ‘lembrar’ é frequentemente empregado como uma paráfrase
do verbo ‘conhecer’: é nesse sentido que se diz que alguém lembra como andar de
bicicleta ou que lembra as letras do alfabeto grego (nas ciências cognitivas de hoje, esse
sentido do verbo não raro recebe o nome de memória semântica). Já no segundo sentido,
o verbo ‘lembrar’ é usado para se referir à capacidade de reter ou recordar algo que
ocorreu em determinado momento; nesse segundo sentido, o verbo ‘lembrar’ denota
uma capacidade vinculada à experiência de primeira-pessoa e que possui algum
parentesco com a imaginação (fala-se aqui de memória episódica). Daqui para frente, o
presente texto se concentrará sobretudo no segundo sentido, isto é, na memória
entendida como habilidade de trazer à mente experiências pessoais passadas.

Pois bem, seja na filosofia, na psicologia ou mesmo na neurociência, não raro a


memória é concebida como uma espécie de lugar onde representações passadas ficam
armazenadas. Os pormenores naturalmente variam, mas muitas das teorias da memória
atualmente em voga parecem compartilhar ao menos parte dessa concepção. Exemplo:
existem várias teorias que, apoiadas em evidências da psicologia, adotam a ideia de que
a memória é uma forma de “viagem mental no tempo” em que, por meio da imaginação,
o sujeito re-experencia eventos passados (cf. TULVING, 2002); acontece que é
realmente difícil compreender teorias do gênero sem considerar que elas estão de
alguma forma comprometidas ou com a ideia de que os eventos passados são objetos
internos armazenados na mente e/ou com a ideia de que esses objetos são algum tipo de
representação mental.

No que se segue, considerarei em separado cada uma das premissas que


compõem a concepção da memória como lugar onde representações ficam armazenadas.
Ao fazer isso, perseguirei neste texto um propósito bastante simples e predominante
negativo: a partir de algumas ideias de Wittgenstein (livremente desenvolvidas),
apresentarei razões para considerar que 1. nem a memória diz respeito unicamente ao
passado, 2. nem a memória é um lugar de armazenamento, 3. nem aquilo que
pretensamente é armazenado são representações (com enfoque no caso específico de
representações como imagens mentais).

1. Memória não diz respeito unicamente ao passado


Que a memória não tenha que ver unicamente com o passado é uma tese pouco
controversa caso não se perca de vista a distinção anteriormente mencionada entre os
dois sentidos do verbo lembrar. Mesmo os teóricos que compartilham de alguma
premissa da concepção de memória como lugar de armazenamento de representações
passadas não hesitam em reconhecer que, no primeiro sentido do verbo (a memória
semântica), pode haver casos em que a memória não se refere ao passado. Exemplo:
alguém que domina o grego decerto lembra as letras do alfabeto grego; essa memória,
entretanto, não é a memória de algo passado, mas sim de algo presente (ter aprendido as
letras gregas algures no passado é somente uma condição lógica para lembrar delas no
presente). Do mesmo modo, pode-se lembrar de coisas que se referem ao futuro: posso
lembrar que, para alívio geral, o mandato do presidente do Brasil acaba ano que vem.
Portanto, ao menos no que diz respeito à memória em geral, ela claramente não se
restringe ao passado. Somente a memória considerada no segundo sentido (a memória
episódica) é que se caracteriza por dizer respeito principalmente ao passado.

2. Memória não pressupõe armazenamento


O enigma propriamente filosófico em torno da memória (considerada agora no
segundo sentido) origina-se de uma indagação aparentemente simples que, no entanto,
logo se multiplica e acaba por tocar no cerne do antigo problema sobre a natureza da
mente: se, como de fato parece, a memória se caracteriza por reter as experiências
passadas, como afinal as lembranças são retidas? Como alguém pode estar ciente de
algo que já passou, que não é presente? E onde exatamente são retidas as lembranças?
Seria no cérebro? Mas como alguém poderia ter consciência de algo que se passa no
cérebro? Ou seria, então, na mente? A julgar por uma visão comum, as lembranças
ficam gravadas, sob a forma de representações, nos sistemas cognitivos responsáveis
pelas funções da memória; esses sistemas, segundo a vasta maioria das teorias atuais, no
fim das contas coincidem com determinadas regiões do cérebro. Nesse sentido, lembrar
de algo que aconteceu significa evocar (causalmente ou por meio de simulação, a
depender da teoria) representações — que podem ser informações, percepções, traços
— armazenadas no sistema nervoso.

Pensar na memória como um lugar no qual as lembranças são armazenadas é, de


fato, uma concepção intuitiva. Na linguagem comum, para dizer que recordo do dia do
aniversário de alguém, não seria nem um pouco incomum dizer que “guardei a data na
memória”. Assim, a suposição de que as lembranças de algum modo ficam armazenadas
na mente ou no cérebro parece ser mesmo uma condição para se falar de memória: não
faria sentido alguém dizer que lembra de y se não tivesse gravado na memória
absolutamente nada a respeito de y. Por outro lado, ninguém duvida que as expressões
“guardar, gravar ou armazenar algo na memória” são empregadas na linguagem
ordinária em um sentido figurado. Isto é, eu posso dizer que guardei na memória o
semblante de um ator, um aroma ou o significado de uma palavra grega; porém eu não
posso guardar, no sentido literal, todas essas coisas no meu cérebro; no sentido literal,
eu poderia no máximo arrancar a cabeça do ator e guardá-la numa caixa; ou mais
simplesmente gravar o seu rosto numa fotografia.

Embora pareçam simples obviedades, essas observações se tornam mais


penetrantes quando se começa a perceber que o mesmo vale para representações
(informações, percepções ou traços) de um objeto lembrado: assim como não faz
nenhum sentido dizer que o rosto de alguém que vi está literalmente armazenado no
meu cérebro, também não faz nenhum sentido dizer que uma representação desse rosto
está literalmente armazenada no meu cérebro. Pois o que se passa no cérebro no instante
em que alguém lembra de alguma coisa pode até ser uma condição necessária para a
representar ou lembrar, mas evidentemente não é uma representação ou lembrança.
Pensar o contrário seria confundir as funções orgânicas que possibilitam a representação
com a própria representação, isto é, seria confundir condições psicofisiológicas com
condições lógicas e atribuir ao cérebro uma faculdade que só faz sentido atribuir a um
indivíduo (ou, numa imagem mais eloquente, seria como atribuir um soco dado na cara
de outrem aos músculos do próprio braço — ou seja, no fim das contas, seria cometer
uma falácia mereológica).

Portanto, a suposição de que o armazenamento de representações é um


pressuposto do conceito de memória não é senão uma ideia que se origina da
interpretação demasiado literal de expressões originariamente empregadas de forma
figurada. Para que alguém lembre de algo não é de modo algum necessário que esse
algo deixe um rastro a ser posteriormente ativado nos nervos do cérebro; ao invés, é
precisamente uma confusão na linguagem que impele a procurar um lugar, uma causa
ou um rastro que fundamente a faculdade da memória. Afora o sistema nervoso como
condição psicofisiológica, para que alguém lembre de algo, é logicamente necessário
apenas não o ter esquecido. De resto, nada nos obriga a inferir que a capacidade de reter
lembranças de alguma forma implique a ideia de que essas lembranças precisem ser
armazenadas em algum lugar — muito menos que precisem ser armazenadas nos nervos
do cérebro (cf. WITTGENSTEIN, RPP 903-905; BENNETT&HACKER, 2003, Cap. 5,
especialmente a seção 5.2).

3. O que é pretensamente armazenado na memória não são representações;


lembrar não é uma maneira de imaginar (ver mentalmente uma imagem)
Tão intuitiva quanto a ideia de que a memória é um lugar de armazenamento é a
ideia de que aquilo que é armazenado na memória são representações, ou, mais
especificamente, algum tipo de imagem mental. A experiência de primeira-pessoa
parece reforçar essa ideia: ao lembrar, digamos, de uma visita ao planetário da UFSM,
de pronto me vem à mente a imagem de certas projeções celestes na sua abóbada —
assim, nada mais natural do que pensar na lembrança como sendo precisamente essa
imagem. A pergunta a ser feita é: eu não poderia lembrar de algo, inclusive de uma cena
que presenciei no passado, sem evocar uma imagem, sem que a cena que lembro seja,
por assim dizer, reproduzida/simulada na minha mente?

Suponha-se que lembrar com efeito seja reproduzir uma imagem na mente.
Nesse cenário, um amigo que também esteve no planetário me pergunta se eu lembro de
uma certa projeção, digamos, uma projeção que destacava a constelação de Órion; na
mesma hora me vem à mente a imagem da projeção e eu respondo que sim. Mas então
pergunto a mim mesmo: como eu >sei< que a imagem que me veio à cabeça de fato
corresponde à projeção referida? Está claro que não posso responder que sei que a
imagem que me vem à mente corresponde à projeção simplesmente porque eu conheço
a constelação de Órion e a vi com meus próprios olhos na abóbada do planetário, afinal
isso somente suscitaria outra vez a mesma pergunta (como sei que essa imagem que me
vem à mente corresponde àquilo mesmo que vi, supondo que realmente vi a constelação
de Órion?). O que esse pequeno exemplo quer mostrar é que não há como estabelecer
que as imagens que me aparecem na mente são de fato lembranças genuínas ou apenas
imagens por mim imaginadas, a não ser que já se pressuponha a memória.

Em uma palavra: eu somente sou capaz de imaginar uma determinada cena


justamente porque eu sou capaz de lembrá-la. Não fosse assim, não haveria como saber
se a cena que imagino de fato é a cena específica que pretendo lembrar (cf.
WITTGENSTEIN, PI 239). A resposta mais natural à pergunta colocada acima,
portanto, seria: “sei que essa imagem que me vem à mente é a correta (é a imagem da
constelação de Órion) porque me <lembro> do que eu vi”. Ou seja, ainda que imagens
mentais com frequência acompanhem lembranças, daí não se segue que a memória seja
composta por imagens mentais. Antes o contrário, é a memória, enquanto uma
habilidade primitiva, que é condição para o aparecimento das correspondentes imagens
mentais que acompanham minhas lembranças.

Referências
TULVING, E. Episodic Memory: From Mind to Brain. Annual Review of
Psychology,53. 2002.
BENNETT, M; HACKER, P. Philosophical Foundations of Neuroscience. Blackwell,
2003.
RYLE, G. The concept of Mind. Routledge (60th Anniversary Edition), 2009.
WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Trad. P. Hacker and J. Schulte.
Oxford: Blackwell, 2009.
WITTGENSTEIN, L. Remarks on the Philosophy of Psychology. Trad. G.E.M.
Anscombe. Oxford: Blackwell, 1980.

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