Você está na página 1de 5

5 QUALIDADE DA

SANGRIA E
IMPACTOS NA CARNE

34
Qualidade da sangria e impactos na carne

5.1 Sangria

A sangria é uma etapa de grande im-


vem ser insensibilizados (ou mortos) an-
portância tanto para garantir a qualidade
tes que seus arcos branquiais sejam cor-
da carne do pescado no final do proces-
tados. Isso pode ser feito manualmente
so, quanto para evitar o sofrimento dos
ou por cortadores automáticos de guel-
animais. É necessário que se remova a
ras, ou seja, uma lâmina rotativa como
maior quantidade possível de sangue da
parte da máquina de insensibilização,
carcaça, pois o sangue além de causar
realizando o corte logo após a insensi-
aparência desagradável, é meio de mul-
bilização. Na maioria dos casos, o san-
tiplicação de microrganismos deterioran-
gramento é feito cortando todos os arcos
tes e/ou patogênicos. Como já vimos, a
branquiais de um lado do peixe.
sangria deve ser realizada imediatamen-
Outro método de sangria é a deca-
te após a insensibilização.
pitação após a insensibilização elétrica
Matar um peixe por sangramento
eficaz. A cabeça do peixe é removida
pode ser realizado por qualquer um dos
rapidamente, com uma lâmina manual
dois processos principais: cortar as brân-
ou uma lâmina rotativa automatizada.
quias ou decapitar. Os peixes devem ser
Os peixes devem ser efetivamente in-
insensibilizados, por eletronarcose ou
sensibilizados antes de serem decapi-
percussão, antes da sangria. Os peixes
tados e, independentemente do método
morrem de anoxia e a insensibilização
de sangria utilizado (corte de brânquias
adequada deve evitar qualquer sofrimen-
ou decapitação), o importante é que o
to ou luta dos peixes.
tempo de inconsciência provocada pela
O corte das brânquias para sangria,
insensibilização seja suficiente para que
é um método comum para provocar a
o peixe morra, conforme podemos ver na
morte e faz parte da preparação para o
Figura 5.1.
processamento do peixe. Os peixes de-

35
Qualidade da sangria e impactos na carne

FIGURA 5.1 – Relação do tempo de inconsciência, sangria e morte

1 Corte das brânquias ou decapitação.


Fonte: Adaptado de Nielsen et al. 2020 (EFSA) por Leonardo José Gil Barcellos, UPF.

5.2 Impactos do manejo mento do pH da carne, importante para


retardar o crescimento bacteriano na car-
pré-abate e do abate na ne e prolongar a vida de prateleira do filé.
qualidade de carne Como a carne dos peixes tem menos gli-
cogênio que a dos mamíferos e aves, a
Com a sangria o peixe morre, pois queda post-mortem no pH é menos pro-
cessa o fluxo de oxigênio para os tecidos nunciada, não chegando a pHs inferiores
e órgãos. Assim, a produção aeróbica de a 6,0-6,2 na maioria das espécies.
ATP (trifosfato de adenosina) é bloquea- Logo após, a geração anaeróbia de
da e, a glicólise anaeróbica passa a ser a ATP também cessa, pois acaba o subs-
principal via para a geração de ATP. Nes- trato glicogênio e as enzimas glicolíticas
se processo, a quebra do glicogênio mus- param de atuar, principalmente devido ao
cular provoca a formação de ácido lático declínio do pH.
que, na impossibilidade de ser removido O ATP fornece a energia necessária
do músculo (por ausência de sangue e para a contração muscular, que começa
circulação), se acumula e leva ao abaixa-

36
Qualidade da sangria e impactos na carne

com a liberação de íons Ca2+ no sarco- aumento. Assim, acontece o início rápido
plasma. Como resultado da diminuição do rigor mortis, seguido de sua resolução
post-mortem de ATP, a energia neces- precoce, impossibilitando de processar
sária para o funcionamento normal das o pescado durante o período pré-rigor, o
bombas de íons é esgotada, a concen- que seria o ideal, levando à redução do
tração de cálcio liberado no sarcoplasma rendimento (filetagem durante o rigor), o
não pode ser reduzida, e o músculo per- aumento na incidência de “gaping” (rup-
manece contraído, instalando-se o cha- tura do tecido conjuntivo), e a diminuição
mado rigor mortis. da capacidade de retenção de água.
A resolução do rigor mortis, ou seja, a De fato, um rigor mortis encurtado
transição para um estágio de relaxamen- acarreta mudanças indesejáveis como
to muscular, está principalmente relacio- flacidez muscular precoce e facilita-
nada ao início de processos proteolíticos ção de proliferação de microrganismos,
e amaciamento da carne, ou a chamada o que reduz o tempo de prateleira do
maturação da carne. É importante ressal- produto. Geralmente, o rigor mortis nos
tar que esses processos ocorrem muito peixes dura de 2 a 18 horas, com pico
mais rápido na carne de peixe, devido em 6 horas após o abate e, é também
ao menor nível de glicogênio muscular. influenciado pela espécie e pela tempe-
Assim, o rigor mortis consiste na mudan- ratura de estocagem. Durante o rigor, a
ça da textura da carne do pescado, que atividade bacteriana é limitada, devido ao
passa de macia e flexível para rígida e pH mais ácido que freia sua proliferação,
inflexível (rigor completo), e novamente bem como a ação enzimática endógena.
macia, porém não tão flexível (pós-rigor). O processo de deterioração da carne co-
O estresse pré-abate afeta direta- meça de forma mais intensa após a o fi-
mente esse metabolismo muscular post- nal do período de rigor mortis.
-mortem devido à depleção pré-morte de Além do estresse crônico no período
uma grande quantidade de reservas de pré-abate, o procedimento de abate pode
energia, resultando em metabolismo pos- induzir ao estresse agudo em peixes.
t-mortem acelerado. Isso acarreta menor Esse estresse de abate provoca aumen-
pH muscular inicial, seguido de rápido to da atividade muscular, e influencia nas
mudanças post mortem, como o início e

37
Qualidade da sangria e impactos na carne

resolução do rigor mortis, queda do pH Assim, pode-se concluir que, tanto a


muscular imediatamente após a morte, e ocorrência de estresse crônico nos mo-
a diminuição das reservas de ATP. O es- mentos pré-abate (por exemplo, tempo
tresse provocado pelo método de abate de jejum prolongado e estresse de des-
afeta a qualidade e frescor da carne de pesca), quanto o usual método de aba-
peixe, bem como sua “vida de prateleira”. te em gelo, são causadores de impactos
Entretanto, em várias espécies como a
negativos na qualidade da carne, o que
tilápia, a carpa comum e o cóbia, diferen-
provoca o aceleramento da deterioração
tes métodos de insensibilização e abate
do produto final. O efeito é mais pronun-
não provocaram alterações da qualida-
ciado quando ambas as situações ocor-
de da carne dos peixes, exceto métodos
que demorem para induzir a inconsciên- rem conjuntamente.
cia, como a hipotermia por gelo.

38

Você também pode gostar