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O corpo do Homem da Carroça ali,

como se deitado à sala de estar, no centro da


UNIÃO CIVIL
cidade, pode?
- Tire esse cachorro aí de cima, mulher!
Ou:
- Acorda, Zé, acorda. Vem para a cama,
homem. Levanta deste sofá.
Quanta folga! Daqui a pouco dá a hora
de o Homem da Carroça ir trabalhar.
Dois homens empurram um carrinho de
bebê.
Iuntos, em silêncio.
Essa imagem eu vi, juro, na cidade mi-
neira de São Ioão del-Rei. Os dois estavam
solenes - não sei se felizes -, frios, ao sol.
Minha imaginação passeou com eles. Mente
de escritor que veio para umas palestras, fa-
lar sobre narrativas curtas, meu novo livro, -a
quem possa interessar.
Blablablá.
Comentei para a plateia - hoje eu vi um
casal. Na esperança de que alguém viesse di-
zer. São irmãos, filhos de Seu Ianuário. Ou:
você não sabe? É o primeiro caso no país de
adoção homossexual. E ainda até, oxalá, um
estudante me trouxesse pronto o começo do

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próximo conto, instigante. Tipo: por que você
le entusiasmo, maior do que o sol. Ave! Dois
não me ajuda a empurrar o carrinho?
garotosapaixonados. Ele dizia que queria ser
Um bom início.
músico.
Anotei no caderninho, enquanto meu Eu dizia que queria ser ator. Dramatur-
companheiro de mesa dava as boas-vindas go. Como? Dramaturgo.
em nome da universidade, do festival de in- A encenação aconteceu atrás da capela,
verno, da população, dos poetas, etc. Porra; no parque. Nossos corações saíram do nos-
que merda! A imagem dos “dois pais”, diga- so corpo, eu vi, você não viu, dois corações,
mos, entrou em mim. Feito alma, feito san- voando?
gue. Na veia, à vera.
A verdade é esta. Essa imagem me per- - Álvaro Magdaleno do Nascimento
tence faz tempo. Escrever é organizar os sen- aceita...
timentos perdidos. Iá creio que posso contar. Risos. Ele achava engraçado o meu so-
brenome “Magdaleno”.
- Vamos casar? - aceita Ioão Rosa.Passos como seu es-
- O quê? . poso?
- Eu e você, feito homem e mulher. - Faltou o legítimo.
- Na Igreja? - Hã?
- É. - “como seu legítimo esposo”...
- É pecado. - Sério?
- Deus não precisa saber. - Sério, se não o casamento não vai valer
de nada.
Eu devia ter uns dez anos, nove. Ele tam- - Tá.
bém tinha nove, dez. Morávamos no mesmo
Poço, em Pernambuco. E já havíamos notado As alianças a gente conseguiu numa pro-
aquele entusiasmo, maior do que o sol, aque- moção de chiclete. Era. Vinham grátis anéis

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e brincos. Bolas de hortelã. A gente ficou fa- - Meu nome é Paulo e eu gostaria de sa-
zendo, deitados na grama, depois do matri- ber quando foi que o senhor descobriu que
monio, bolas enormes. De hortelã. queria ser escritor.
O açúcar acabou. O hortelã virou só uma
- E agora? borracha. O tanto de hora que a gente pas-
- E agora o que?
A F

sou olhando os dedos, tocando as alianças. E


- O que a gente faz? trocando os chicletes. Ioão tirava a goma da
- Faz? minha boca e colocava a goma dele na minha
- Sim... Depois que a gente virou marido boca. E as bolas foram ficando mais gordas.
e marido, a gente vai morar na mesma casa, E foram ficando mais alegres, coloridas. Re-
é? Até a morte, até o fim? dondas, redondonas. Até que Ioão quis tirar
com a própria língua a borracha da minha
A primeira pergunta foi a de um jovem, língua. Em um beijo sem jeito. Doce, doce,
de óculos. Por um segundo, ele ganhou a cara doce.
de Ioão. Eu já havia me esquecido da cara de
Nossa lua de mel.
Ioão. Como era mesmo a cara de João? Ca-
ralho! O tempo segue colando. O tempo tem
um ritmo industrial. E uma grande fábrica,
que não para. Cara, vê se se concentra no ba- II
te-papo. Você está em São Ioão del-Rei para
trabalhar. Acorda. E escrever um conto não
é um trabalho? Estou escrevendo. Reescre- Não seria difícil encontrar mais uma vez
vendo. Para não perder. A minha história, no o carrinho, a criança e os dois rapazes. A ci-
esquecimento. dade não é grande. E bebê é feito cachorro.
Adora movimentar-se. Os mimos, as praças,
os paços centenários.

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Fiquei quieto, tomando um ar, à esprei-
João era heterossexual. Hã? Bissexual. Bi
ta. No mesmo lugar em que, digamos, avistei
o quê? Eu não. Nunca teria outra relação. Ca-
a mim e a João - e o fruto futuro do nosso
samento é coisa sagrada. E a gente deu a nossa
amor.
palavra. Eterna. Marido e marido. Aquela tar-
Reanotei frases para o conto, relembrei.
de, a nossa primeira crise. Saindo da escola,
O calor.
ora. Apressei os passos, ganhei distância dele.
Minha mãe foi quem primeiro quis sa-
Curvei o Largo, decidido. Qualquer coisa, a
ber: casou? Eu gelei. Que anel é este no dedo,
gente se separa. Para que existe o divórcio?
menino? É da bola. Do chiclete, não viu? Dei
Di o quê? Nem precisa assinar as pape-
bobeira.
ladas.
A gente prometeu esconder a aliança.
O narrador do conto poderia ser o bebê.
Coisa de veado, a molecada logo iria dizer.
A história sob a ótica do recém-nascido.
Quem iria entender? Mas aí dormi, agarra-
E aí também fiquei pensando: aquela ma-
do ao anel. Olhando para o teto, imaginando
planos. No dia em que cresceríamos, tería-
nhã em que os avistei, poderia ser a primeira
mos carro, piscina. E filhos.
vez em que eu e -João nos reencontrávamos,
depois de muitos anos. Segui confabulando.
- Filhos?
Rabiscando possibilidades, falas, persona-
- Você pensa em ter filhos?
gens. Misturando realidade e ficção. Loucura
- Penso. e literatura. Memória e invenção. Meu Deus!
- Bobo, a gente não pode ter filhos. Como eu poderia prever que dois ra-
- E quem disse que eu quero ter filhos pazes iriam carregar, naquele carrinho, eu e
com você? você, João? E por que bem aqui, em São João
- E com quem você vai ter, seu merdi- del-Rei?
nha? Não sei. Coisa assim não escolhe lugar
- Com a Maitê. para renascer. Pode ser no mar, em Bagdá, na
Disneylândia, no Japão.

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O vulcão adormecido. Cheguei a sair com Elisabeth. Atrás da mes-
Levantei. A praça estéril e deserta. Teria ma capela, tentei, sem sucesso, repetir a cena.
de ir, sim. Já estava atrasado para mais uma Não valeu a pena. Conheci o Xavier.
palestra, apresentação. Estão estudando a João casou, de verdade, com a Maitê.
minha obra na Escola dos Inconfidentes. E
a turma é grande. Vão, inclusive, fazer uma
leitura teatral baseada em minha ficção. Tudo
muito teatral. III
Eu me recordo, enquanto subo, débil, a
ladeira: eu fui sendo deixado de lado. Marido
abandonado, uma criança. O senhor conseguiu?
O quê?
E a aliança? - Escrever o conto sobre os dois rapazes,
- Não vê que não dá mais no meu dedo? o carrinho e o bebê?
Você está me traindo, João.
Agora mais essa... Estavam vazios. Só o filho, entre eles, en-
J Fiel, na saúde e na doença. chia, remexia, preenchia. Calados, feito trilho
de trem, enferrujado. O carrinho, mesmo ele,
Chorei, peguei febre, quis me atirar em- estacionado. Esperando alguém falar algo.
baixo de caminhão. Tamanha inocência. De Fazia uma vida que não se viam. João foi
fato, era a máquina do tempo. A indústria, quem chamou Álvaro. Mandou uma mensa-
a todo vapor. Moendo, roendo. Os chicletes gem no Face. Vem. E Álvaro pensou tanto.
apodrecendo. Adolescendo. Hora ou outra Balançou-se. O que ele quer comigo, o mer-
eu via. João e Maitê. Quanto ciúme! João um dinha?
homem. Forte, na lambreta. Ao violão. Eu es- Mas resolveu ir e lá estava. Porque a vida
crevendo minhas primeiras peças. Infantis. de Álvaro, há de se convir. Não rolou, não

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aconteceu. O que fez foi trepar por aí. Com E os romances?
dezenas de machos. Sem amor. Melhor que Ele quis saber. Falou que me lia no jor-
fosse sem amor. Para não alimentar ilusões. nal, comprava os meus livros.
Ou até, talvez, para não ferir o juramento. Eu só escrevo contos.
No altar, no parque, na capela. Virou uma Deixei claro.
desgraça, uma praga aquela união. Religiosa. João pálido. E esquisito. Repito: o tempo.
Para a vida eterna. E São muitos parafusos, engrenagens. Do tem-
Vem e Álvaro chegou. Não conhecia São po. É preciso óleo para rodar mais rápido.
João del-Rei. Nenhuma cidade de Minas. Não tínhamos o dia inteiro. Eu, todo doido.
Igrejas. Muitas igrejas. Não sou doido de perguntar pela mulher de
E você, o que fez além do bebê? Sem con- João. Ela que se dane. Ele que se dane. Afinal,
tar que me chamou aqui, hein, para quê? Só veio e me tirou de São Paulo para essa distân-
para mostrar o filho? Lambido? Álvaro nem cia? E esse silêncio?
quis olhar para aquele pacotinho de fraldas. Tem um aninho o bebê. Sei. E ficamos
De vez em quando mulheres se aproxima- enganando. Um ao outro.
vam, chacoalhavam a cara para o menininho Eu não tenho mais paciênciapara esse
jogo. Essa fantasia. Já estamos bem adultos.
sorrir bonito. Não e'criação minha. Eu não
tenho nada a ver com isto. Os personagens me ensinaram a viver. A vida
real. Depois de vários livros publicados, eu
Uma manhã demorada, afiada. Sem
tinha mesmo que aprender.
assunto, ele me perguntou se eu gostava de
- Eu nunca me esqueci de você - falou
feijoada. Porque havia uma bem perto, a me-
João. Eu parei. E a cidade parou também. E
lhor da região.
os sinos da matriz. O bebê dormitando aos
A gente amadurece e os assuntos ganham
nossos pés. E a mãe desse bostinha? João me
banha. Torresmo, peso. Razão.
contou, sem que eu mostrasse interesse em
E o Xavier? O que é que tem o Xavier?
saber. Ela sumiu. Como assim? Não sei se en-
Não deu certo.

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tendi. Não ouvi bem. A mãe havia morrido que, entende? Vou ter de ver que conto é este
no parto? Deu depressão? O que aconteceu que a imagem do bebê e a dos dois rapazes
com a Maitê? Algum milagre? está me pedindo. Vou ter de vasculhar, Paulo.
Apenas nós dois, o carrinho e o bebê. A Bem fundo. Se eu conseguir escrever, prome-
única imagem possível dentro da paisagem. to que volto aqui em São João del-Rei e leio a
Como uma fotografia. De turismo. De férias história para vocês. As vezes demora, demora
em família. Quem diria? João puxou do bolso muito. Às vezes se perde. Isso já me aconte-
da camisa aquele nosso anel, nossa aliança. ceu mais de uma vez.
Felizes para sempre. Como no dia do nosso
primeiro casamento. Lembra, Magdaleno?
Disse-me o pai da criança.

O tempo.

IV

-- Um conto não nasce na hora em que


a gente escreve, na hora em que a gente está
escrevendo. Não nasce quando a gente aca-
ba o conto, põe o ponto final. A impressão
que eu tenho é que um conto nasce em algum
ponto da vida da gente. Ele fica lá, congelado,
esperando que algo o acorde, algo o provo-

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