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OPINIÃO: A derrocada da Americanas e o

capitalismo tóxico do resultado a qualquer custo


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toxico-do-resultado-a-qualquer-custo/

A cultura corporativa da ganância, dos atalhos e objetivos puramente financistas precisa


ser substituída pelo olhar ético com respeito a todos stakeholders, escreve Fabio
Alperowitch

Por Fabio Alperowitch*


16 de janeiro de 2023

A grotesca debacle das Lojas Americanas, uma das mais populares varejistas brasileiras,
pode ser vista de duas formas.

A primeira é a visão tradicional, segundo a qual executivos da companhia durante anos


supostamente fraudaram as demonstrações financeiras da empresa ocultando um rombo
colossal, trazendo vultosos prejuízos a centenas de milhares de acionistas, debenturistas,
credores, fornecedores, cotistas dos fundos imobiliários que detêm suas lojas, os
executivos que possuíam parcela relevante de suas reservas em planos de incentivo, além
de colocar em risco o emprego de mais de 40 mil pessoas.

As instituições competentes devem apurar a participação direta ou indireta dos


administradores, controladores, conselheiros e auditores, punindo exemplarmente os
envolvidos.
Nesta visão tradicional – e ela está correta – a Americanas é protagonista de um dos
maiores escândalos da história do mercado de capitais, com dimensão relevante na escala
global.

Mas há uma maneira complementar de olhar para esta questão, considerando a


Americanas, além de autora, também como engrenagem de um sistema muito maior e
muito mais complexo, um sistema nocivo que transcende as fronteiras da empresa e que
precisa ser debatido – sob o risco de continuarmos nos deparando com histórias
semelhantes.

Consta no site da Americanas que um dos valores da companhia é “ser obcecado por
resultados”. Segundo definição do dicionário Michaelis da língua portuguesa, obcecado
significa “cego; que está com a razão sem discernimento; que insiste no erro; apegado a
uma ideia fixa de maneira irracional”.

Não é difícil concluir que, se o valor da empresa é a obsessão por resultados, assim será
sua cultura e, portanto, sua prática.

A busca pelo resultado a qualquer custo inclui passar por cima dos interesses
dos stakeholders para atender interesses próprios, muitas vezes negligenciando
integridade e ética.

Neste sentido, não podemos ver a Americanas como um caso isolado, mas sim como
produto de uma cultura da fase mais hostil do capitalismo, que teve seu auge nos anos
1990 e 2000 – coincidentemente o período em que a Americanas destacava-se e figurava
entre as empresas mais admiradas do país.

A transição dessa versão mais hostil do capitalismo (shareholder capitalism) para um


sistema em que empresas contemplam seus stakeholders nos processos decisórios
(stakeholder capitalism) está em curso. Provavelmente o debate ESG só encontrou espaço
para reverberar por conta dessa transição.

Em 2019, a FAMA Investimento comunicou que estava zerando sua exposição em


Americanas, entre outras coisas, por questões ESG, ligadas a relações nada sadias com
seus fornecedores e opacidade das demonstrações financeiras, além de dificuldade de
acesso à companhia.

A postura da companhia, escancarada na última semana, não passava despercebida a um


olhar ESG mais atento, que busca, além dos números, entender como uma companhia se
relaciona com seus stakeholders, sua cultura e governança.

De acordo com uma pesquisa realizada em 2021 pelo especialista em governança


corporativa Renato Chaves, em parceria com a FGV, dentre todas as empresas
pertencentes ao Índice Bovespa, a Americanas é a que tinha a segunda maior discrepância
salarial entre o CEO e a média salarial dos colaboradores: o principal executivo da
companhia tinha uma remuneração 431 vezes maior do que a média da empresa.
Vale ressaltar que em pesquisa semelhante, realizada em 2019, a Americanas ocupava o
topo do ranking das maiores disparidades salariais, com o CEO recebendo 663 vezes mais
do que a média salarial da companhia. Ou seja, a empresa figurava constantemente nesse
ranking, indicando um potencial problema nos sistemas de incentivo.

Apenas como parâmetro de comparação, nas Lojas Renner, varejista com melhor
reputação em governança, este índice de disparidade é de 137 vezes, ainda distante da
média de 44 vezes do índice FTSE-350 (Reino Unido). Na média do Sistema B Brasil –
referência de empresas que equilibram propósito e lucro – o índice é de 20 vezes, uma
fração do praticado na Americanas.

Remuneração e incentivos são críticos na agenda de governança corporativa e podem


levar a um conflito de agência, que se trata do desalinhamento de interesses entre os
gestores da companhia e seus acionistas, podendo levar o alto comando das empresas a
tomar decisões em benefício próprio.

O caso da Americanas não pode ser visto como isolado.

Relação leonina com fornecedores, falta de transparência no balanço, dificuldade de


acesso, alto turnover de executivos e incentivos financeiros desequilibrados são sinais
inequívocos de empresa com más práticas de governança. Tais características não são
exclusivas da Americanas, mas sim presentes em empresas com cultura nociva, que
buscam lucro a qualquer custo, independentemente dos princípios.

Inferimos daí a importância de integrar ESG às análises, tratando-se de uma poderosíssima


ferramenta de mitigação de risco e maximização de retorno.

Os críticos à abordagem ESG precisam entender de uma vez por todas que ESG não se
trata de abraçar árvores ou observar pássaros. Já os adeptos precisam entender de uma
vez por todas que ESG não trata somente de medir emissão de carbono ou equidade de
gênero.

Sem cultura corporativa adequada e sem governança, não há qualquer chance de a


responsabilidade socioambiental ser mantida.

A Americanas pertence ao Novo Mercado, por muitos considerado um selo de virtude nas
questões de governança corporativa. Ledo engano.

Vale lembrar que grande parte dos escândalos em matéria de más práticas de governança,
fraude ou operações lesivas a acionistas minoritários ocorreram em empresas
pertencentes ao Novo Mercado, tais como IRB, CVC, Linx, Smiles, JBS, Hypera, todas as
empresas “X” de Eike Batista, entre outras.

O Novo Mercado nada mais é do que um conjunto de normas às quais algumas empresas
atendem. Boa governança não é uma questão normativa, mas sim de bons processos e
princípios éticos.
A Americanas é também integrante do ISE – Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3.
Obviamente, uma empresa que possui cultura tóxica e comete fraudes no balanço não é
sustentável. Atender a determinados requisitos – bastante amenos, por sinal – não faz da
empresa responsável ou sustentável. Há uma série de empresas que não figurariam na
composição do ISE se os critérios fossem minimamente mais rigorosos.

Infelizmente, o mercado sempre procura atalhos. É muito mais fácil recorrer a uma lista do
que realizar uma análise adequada e exaustiva.

Pertencer ao Novo Mercado não significa ter boa governança, pertencer ao ISE não
significa ser avançado em ESG e possuir o selo “IS” da ANBIMA não significa que o fundo
seja sustentável (nenhum fundo de ações do Brasil merece este sufixo).

O bizarro escândalo das Americanas não pode resultar “apenas” no prejuízo de dezenas
de bilhões de reais.

Empresas precisam fazer um diagnóstico de cultura, entender sua toxicidade, avaliar se


estão contemplando seus stakeholders nos processos decisórios, fortalecer as boas
práticas de governança, alinhar incentivos e cuidar da transparência.

Investidores devem valorizar ESG como ferramenta extremamente valiosa de mitigação


de risco e incremento de retorno, compreendendo a complexidade do assunto e
incorporando robustez em seus processos analíticos, além de demandar das companhias
investidas a melhoria das práticas e transparência.

Praticantes ESG devem entender a importância da governança corporativa, atualmente


ofuscada em meio às temáticas ambientais. Nenhuma boa prática é sustentável a longo
prazo sem boa governança.

Os reguladores precisam entender o tamanho de suas responsabilidades, tanto na


regulação quanto na fiscalização. Da mesma forma, precisam entender que o
aculturamento do mercado é fundamental e terem o devido cuidado na formulação de
listas, ratings e concessão de selos.

A cultura corporativa da ganância, dos atalhos, e objetivos puramente financistas precisa


ser substituída pelo olhar ético com respeito absoluto a todos os stakeholders.

* Fabio Alperowitch é sócio fundador da Fama Investimentos.

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