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CONEXÕES POSSÍVEIS
RESUMO
A Neuroestética, termo cunhado por Semir Zeki (1999) em seu artigo “Art and
the Brain”, busca compreender os fenômenos neurobiológicos envolvidos na
experiência estética, notadamente nos processos de percepção da informação visual.
Cabe-nos ressaltar que aqui estética é entendida como aquilo que nos sensibiliza, por
sua beleza ou repugnância, na perspectiva das ciências normativas (SANTAELLA,
NOTH, 1997; KANT 2012).
Como campo de estudos, a Neuroestética admite abordagens baseadas em teorias
evolucionistas, filosóficas, psicológicas ou culturais, mas propõe que as definições
sobre a percepção humana não se completam sem uma compreensão de seus
fundamentos neurais. Apesar de tal relevância do aspecto neurofisiológico, também
considera a arte como um produto cultural, sem buscar defini-la ou qualificá-la
(RAMACHANDRAN, 2005).
Nessas pesquisas, foram estabelecidos paralelos entre elementos da linguagem
visual e os princípios organizacionais do cérebro, sugerindo que os objetivos do sistema
nervoso humano e dos artistas plásticos sejam semelhantes - ambos buscam entender
atributos essenciais do ambiente, compondo e/ou decompondo informações visuais em
elementos como cor, luminosidade, forma e movimento.
A História em Quadrinhos (HQ), que pode ser definida como uma expressão
gráfica, cuja estrutura básica de linguagem constitui-se em uma seqüência narrativa de
representações visuais interdependentes, pode ser analisada à luz destes achados.
Pesquisadores consideram que a arte seqüencial, data dos tempos pré-históricos,
estando presente nos desenhos rupestres, nos papiros e murais egípcios e nas porcelanas
greco-romanas (BRAGA, 2005; MOYA, 1977). Deste ponto de vista, podemos dizer que
os elementos predominantes nessa forma de expressão gráfica, como a síntese formal e
a seqüência de informações, são atributos atávicos do cérebro visual humano.
Ramachandran (2008) e seus colaboradores propuseram “leis universais“ da
Neuroestética que, apesar de ainda não terem sido plenamente comprovadas
cientificamente, buscam os fundamentos do processamento da informação visual no
cérebro humano.
O objetivo deste artigo é relacionar quatro destas leis à percepção da linguagem
visual da HQ, buscando ampliar o entendimento do processo neurofisiológico desta
informação visual.
MÉTODOS
DESENVOLVIMENTO
NEUROESTÉTICA
Um dos principais achados da Neuroestética estabelece paralelos entre os
princípios organizacionais e perceptivos do cérebro humano e a expressão gráfica de
artistas originais. Nos dois casos temos a constante manipulação, adaptação,
composição e decomposição de atributos e informações visuais como cor,
luminosidade, forma e movimento.
É justamente a capacidade de expressar criativamente a percepção dessas
informações visuais que se revela como um diferencial qualitativo dos artistas.
Cavanagh (2005) demonstra que imagens em pinturas muitas vezes subvertem a
percepção ordinária que detemos da realidade material. Ou seja, ao invés de representar
o mundo visível, os artistas plásticos e gráficos muitas vezes registram sínteses, atalhos
perceptivos utilizados por nossas mentes. Em uma perspectiva convergente, Conway e
Livingstone (2007) revelam como artistas fazem uso de interações complexas entre os
diferentes componentes da visão no processo de criação de efeitos visuais.
Do ponto de vista funcional, o sistema nervoso processa informações em uma
seqüência hierárquica e em paralelo (FARAH, 2000; ZEKI, 1993; VAN ESSEN et al.,
1990).
Os componentes seqüenciais de processamento visual podem ser classificados
em: visão inicial, intermediária e final (MARR, 1982). A visão inicial capta elementos
básicos de informação visual (forma, cor, luminosidade, movimento e localização) e os
processa em diferentes partes do cérebro (LIVINGSTONE, HUBEL, 1987). A
visualização intermediária segrega alguns elementos e agrupa outros para formar
campos conexos, caso contrário, teríamos uma matriz sensorial caótica (RICCI, CLEO,
CHATTERJEE, 1999; GROSSBERG, MINGOLLA, ROS, 1997; VECERA,
BEHRMANN, 1997; BIEDERMAN, COOPER, 1991).
E por último, a visão final seleciona qual destes campos evoca memórias,
reconhece objetos e significados associados a eles (FARAH, 2000), sendo também
responsável pela elaboração do conteúdo, em contraponto à forma, processada pelas
visões iniciais e intermediárias (ISHAI, FAIRHALL, PEPPERELL, 2007).
O cérebro humano responde diferentemente de acordo com a natureza diversa
dos estímulos e da percepção de uma informação visual como atrativa, neutra ou
repulsiva. Kawabata e Zeki (2004) realizaram um experimento estimulando os
participantes com arte abstrata, natureza morta, paisagem e retratos. Os resultados
mostraram que o padrão de atividade no córtex visual ventral variou dependendo dos
temas que estavam sendo observados. Ainda na mesma pesquisa, foi solicitado que as
imagens fossem qualificadas, segundo critérios do observador. O estudo demonstrou
que as imagens avaliadas como belas tenderam a estimular o cérebro de forma mais
intensa.
Aprofundando os estudos do campo da Neuroestética, Ramachandran (2008) e
seus colaboradores propuseram Leis de Neuroestética que preconizam a existência de
parâmetros gerais de percepção que seriam predominantes no processamento da
informação visual, sobrepondo-se as peculiaridades de cada contexto sócio-político
econômico cultural.
No presente artigo, constituem-se em exemplos das referidas leis universais da
percepção: a Lei da Constância-repetição, ritmo e ordem; Lei da Abstração ou do
Agrupamento, Princípio do Deslocamento de Pico e Lei do Isolamento, definidas mais
adiante. Uma vez reconhecidos e sistematizados, vislumbramos a aplicação destes
parâmetros no desenvolvimento de uma ampla gama de interfaces visuais, dentre as
quais, a HQ.
Vejamos, a seguir, as definições de quatro destas leis perceptivas e como cada
uma delas pode ser aplicada à visualidade dos quadrinhos.
Este fenômeno já havia sido descrito por psicólogos da Gestalt (ARNHEIM, 1986,
1988). Confrontado com imagens ambíguas ou confusas, o cérebro faz um esforço
organizacional para que a informação visual faça sentido, sempre tendo como referência
o mundo real, tridimensional (RAMACHANDRAN, 2008; 2010).
Figura 6 - Charge de Graça Foster e Cerveró. Ainda que o texto esteja relacionado ao nosso
contexto político, na imagem as personagens são facilmente identificadas por suas
características físicas, superdimensionadas.
Fonte: www.claudiolessa.com.br
LEI DO ISOLAMENTO
Como o próprio nome enuncia, este princípio considera que um dos recursos
perceptivos do nosso cérebro visual é o isolamento de determinados atributos (cor,
forma, luminosidade). Este isolamento levaria a supressão ou redução dos demais
elementos visuais. Seria mais um recurso com o propósito de simplificar a informação,
tornando-a mais objetiva, favorecendo a atenção e o foco em um único aspecto visual
selecionado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estabelecer relações entre distintos campos de conhecimento é um desafio que
demanda um entendimento de dados e pesquisas oriundos de propósitos e
procedimentos diversos, contudo podemos considerar que esta primeira tentativa de
olhar os quadrinhos sobre a ótica da Neuroestética nos permitiu estabelecer alguns
paralelos interessantes sobre os quais devemos futuramente nos debruçar.
Temos particular interesse pela aplicação da HQ no processo de ensino-
aprendizagem e iniciativas de êxito voltadas ao desenvolvimento de materiais
paradidáticos, concentram-se nas necessidades e características do público-alvo, pois a
interface é apenas a forma pela qual o indivíduo será sensibilizado nesse processo
(CAMARGO, 2012).
Compreender em profundidade a percepção da informação visual, ampliando o
que os teóricos da Gestalt e outros estudiosos já evidenciaram (ARNHEIM, 1988;
PINKER, 2002; SANTAELLA, NORTH 1997; SIMÕES, TIEDEMANN, 1985), tende
a contribuir para o desenvolvimento desta área do conhecimento, já que as bases
neurofisiológicas da percepção visual podem ter forte impacto na eficiência do processo
de aquisição e assimilação da informação.
Por hora, a análise e reflexão sobre a HQ, a partir dos princípios da
Neuroestética, nos possibilitaram identificar aspectos neurobiológicos que se
correlacionam às características de sua visualidade. Observamos que os elementos
presentes na linguagem visual dos quadrinhos são familiares aos nossos mecanismos
perceptivos, sugerindo que esta informação visual é reconhecida e processada em nosso
cérebro com naturalidade e em condições de relativo conforto.
Futuros trabalhos experimentais nesta área, utilizando especificamente a HQ
como estímulo, podem resultar na formulação de diretrizes neurobiológicas para o
desenvolvimento destas interfaces, notadamente no campo de aplicação paradidática.
Desenvolver e sistematizar esses parâmetros, hipoteticamente, maximizaria a
efetividade de materiais concebidos com este fim.
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