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Algumas palavras
sobre ontem e agora
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
professores leigos, muitos deles pouco mais do que aprendizes, a menos que fossem escra-
“alfabetizados”, como costuma acontecer até hoje vos. Determinavam o número máximo de
aprendizes por mestre, a duração da apren-
no interior do país. Mais tarde, raros centros “reais” dizagem, os mecanismos de avaliação, os
de ensino profissionalizante, ao lado de conventos, registros dos contratos de aprendizagem, a
mosteiros e seminários, foram durante muito tem- remuneração dos aprendizes e outras ques-
tões (Cunha, 1978, p. 33).
po os únicos lugares de uma educação escolarizada
acima da “elementar”.
Fora do domínio da educação escolar, havia É uma longa luta de educadores, políticos, in-
a trama das muitas situações e práticas corpora- telectuais e grupos organizados de nosso primeiro
tivas ou comunitárias, em que outros saberes se operariado, que vai forçar o Estado a tomar a seu
difundiam. Pequenas oficinas de trabalho urbano cargo uma educação laica, pública e, pelo menos
formavam, durante a prática do trabalho-ensino, em tese, “universal”, estendida a todos. É preci-
futuros artesãos e oficiais, futuros mestres que ensi- so lembrar que não foi apenas o trabalho políti-
nariam outros aprendizes a serem ourives, seleiros, co pela escola pública, nem uma súbita tomada de
ferreiros, marceneiros, serralheiros, pedreiros, pin- consciência do poder de Estado, o que, nas pri-
tores ou músicos. meiras décadas do século 20, provocou o adven-
to do ensino escolar oficial. Interesses e pressões
A aprendizagem dos ofícios manufatureiros de setores urbanizados da população brasileira,
era realizada, na colônia, segundo padrões ao lado das vantagens que o empresariado via em
dominantemente assistemáticos, consistin- uma melhoria do nível escolar e da capacitação da
do no desempenho, por ajudantes/aprendi-
zes, das tarefas integrantes do processo téc- força de trabalho de migrantes rurais ou estran-
nico de trabalho. Os ajudantes não eram geiros reunidos em suas indústrias foram também
necessariamente aprendizes, mesmo quan- fatores muito importantes.
do menores de idade. O fato de um outro
aprender o ofício não era intencional nem Foi somente na medida em que a retórica
necessário. As corporações de ofício, ao liberal passou a corresponder ao interesse
contrário, programavam a aprendizagem das novas camadas sociais que emergiram
sistemática de todos os ofícios embandei- com o início da industrialização, a maciça
rados, estipulando que todos os menores imigração européia e o surgimento de novas
ajudantes devessem ser, necessariamente, oportunidades de trabalho na cidade que
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de uma sociedade democrática. O segundo: modifi- educação. Eles corrigem uma visão costumeira,
cações fundamentais nas formas e na qualidade da segundo a qual os pobres do campo e da cidade,
participação de inúmeros brasileiros, tanto na cultu- produtores anônimos de culturas, sem possuírem a
ra quanto na vida econômica e política do país, eram cultura, nunca estiveram interessados pela educa-
uma condição fundamental para a melhoria dos ção dos seus filhos. Ao contrário, tanto a consulta
indicadores de nossa situação de atraso e pobreza. atenta a documentos do passado quanto à obser-
A educação estendida a todos através de uma mesma vação do que acontece hoje em dia entre pais de
escola – pública, laica e gratuita – é um instrumento crianças em idade escolar apontam o mesmo in-
indispensável em tudo isto. teresse pela escola e, não raro, o mesmo empenho
A partir da “luta pela escola pública” e das pri- em cobrar do governo o ensino necessário.
meiras iniciativas de “combate ao analfabetismo”, Velhas histórias de interesses familiares e co-
muitas conquistas foram obtidas. Mas o ideal de munitários pela educação, desde pelo menos o
uma educação popular liberal foi um projeto nunca século passado. Episódios da face oculta da par-
plenamente realizado no Brasil. Mesmo em graus ticipação de camponeses e assalariados do campo
elementares, a escola pública é deficiente e deixa e da periferia das cidades pela educação de seus
ainda à margem de uma educação escolar ade- filhos. O que se poderia chamar aqui de momentos
quada um número muito grande e persistente de de mobilização popular em favor da escola pública
crianças, adolescentes e jovens pobres. Finalmen- é alguma coisa que, silenciosa, mas presente, no
te, todo o processo de modernização do sistema passado, retorna por toda parte, entre movimentos
escolar não resultou, até agora, em uma oferta de populares e associações de bairros, de moradores,
educação compatível com as necessidades de ins- de mulheres. Isso porque a oferta de bens de edu-
trução, formação, instrumentalização e capacita- cação às populações marginalizadas é regida por
ção das pessoas do povo. Mas a crítica das relações uma lógica – e uma ética – igualmente marginal.
entre a educação formal e a sociedade não vale ape-
nas para o Brasil. Sequer para a América Latina. Examinando com mais detalhe como se pro-
cessou a expansão do ensino primário na
Pesquisas realizadas, sobretudo em São Pau- cidade de São Paulo, a partir de 30, é pos-
lo, redescobriram a presença de grupos, classes e sível, se não reconstituir, pelo menos per-
comunidades populares nas lutas e conquistas da ceber, nessa história, os sinais da presença
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mento de comunidades (às vezes estendido a dimen- de trabalho, no pleno exercício da cidadania e no
sões mais amplas, como o desenvolvimento regional, desenvolvimento da sociedade.
ou mais atuais, como o desenvolvimento rural integra- Durante um período entre 1960 e 70, do mes-
do). Coube à Organização das Nações Unidas para mo modo como aconteceu em outros domínios de
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) efetu- trabalhos sociais com os setores populares, a educa-
ar as sucessivas propostas de educação para sujeitos, ção de adultos passou de uma ênfase na integração
comunidades e nações, junto a quem programas de de indivíduos na sociedade para outra, cujo objetivo
educação seriam parte de estratégias de desenvolvi- era atuar sobre grupos e comunidades que, educados,
mento “a partir da base”. organizados e motivados, assumissem, em seu nível,
Do ponto de vista individual, as formas suces- “o seu papel no processo de desenvolvimento”.
sivas de uma educação de adultos tinham por ob- Mais tarde, a partir nos anos 1980 e 90, uma
jetivo a participação de sujeitos marginalizados em proposta de “desenvolvimento local”, através de
um processo de “desmarginalização”. As teorias da um somatório de melhorias nos locais de indi-
marginalidade social estavam então em plena voga. cadores de qualidade de vida (educação, saúde,
Sujeitos pedagogicamente defasados (sem escola, alimentação, trabalho, habitação e lazer), tendeu
ou com insuficiência de ensino escolar) e social- a incorporar a proposta de formas moderadas de
mente marginalizados (pobres, subempregados, participação popular em processos de transforma-
desnutridos e, consequentemente, postos “à mar- ção social para o desenvolvimento. De modo mui-
gem” dos processos sociais de “desenvolvimento” to simplificado, seria possível dizer que a ênfase
e “modernização”) seriam reintegrados a uma vida passou do indivíduo educado “para a vida social”
social ao mesmo tempo digna e produtiva. Se, de à educação do sujeito para o desenvolvimento da
um lado, a educação de adultos e o desenvolvi- comunidade e, daí, à educação da comunidade
mento de comunidades marginalizadas eram um através dos seus indivíduos.
direito e um benefício social, de outro lado, eram Subordinar a realização das transformações ao
também um investimento, porquanto pretendiam desenvolvimento socioeconômico como formas
ser processos sistemáticos e meios participativos operativas de poder, de controle e organização em
de integração de contingentes de pessoas e gru- si mesmos é o pretendiam os programas de “desen-
pos postos “à margem”, no interior do mercado volvimento e educação”. Em muitos casos, trata-
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va-se de intervir sobre a totalidade da ordem e da controle e se constitua fora do alcance de sua lógi-
vida do que chamam “comunidades populares” e ca. Duas modalidades de expressão da vida popu-
ocupar ali todos os espaços tradicionais e variantes lar são sutilmente marginalizadas:
de articulação de pessoas, grupos e equipes locais.
“Organizar” é a palavra-chave de programas cuja 1) a dos incontáveis atores e produtores de ser-
meta aparente é “desenvolver”, “integrar” e “mo- viços tradicionais de religião, cura ou arte que, jus-
dernizar”. São palavras a que, como nos ritos de tamente por sua resistência à inovação, são substi-
feiticeiros, em alguns momentos se atribui um po- tuídos por equivalentes, mais jovens, “dinâmicos” e,
der quase mágico. Pronunciá-las, escrevê-las orde- portanto, modernizáveis: o auxiliar de saúde, o líder
nadamente em planos de ação, já quase realiza “no de comunidade e tantos outros;
campo” o que se imaginou “no projeto”.
E o que significa exatamente “organizar” no 2) a dos espaços emergentes de trabalho social e
contexto desses programas? Significa sobrepor, político da comunidade e da classe na comunidade,
através do poder institucional de uma agência de como as organizações populares de moradores, as
mediação, a domínios tradicionais da vida social comissões autônomas de representação de setores da
popular (a família, a parentela, a vizinhança, as comunidade, os movimentos populares.
equipes de trabalho produtivo ou ritual), formas
externas, “modernizadoras” das articulações que Que outras razões levam sucessivos governos a incen-
regem, justamente, a teia das incontáveis formas tivar a “promoção social”, através de programas de educa-
de relações entre pessoas, grupos e símbolos da ção e desenvolvimento, em “áreas de ‘tensão social'”?
vida social. O programa de desenvolvimento in-
troduz extensões de si mesmo, de sua própria ra- A origem deste amplo movimento tem o seu lu-
gar no processo experimentado por grupos com-
cionalidade, e cria: a “comissão de moradores”, prometidos com a transformação das estruturas
o “clube de jovens”, o “grupo de mães”. Quando sociais que mantêm as maiorias oprimidas. A
realizado em ampla escala, um programa de edu- crescente consciência da vida real das massas e a
cação e desenvolvimento não esconde a ambição compreensão de sua possibilidade de superar o vi-
cioso círculo da miséria e da opressão (oposto ao
de reordenar todos os domínios da “comunidade”. virtuoso círculo da riqueza) através de ações iso-
Fazê-lo de tal sorte que coisa alguma escape ao seu ladas e fragmentadas no sistema social forçaram a
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4) afasta-se de ser tão somente uma atividade independentemente do nome que levem, se
“de sala de aula”, de “escolarização popular”, está vinculando a aquisição de um saber (que
e busca alternativas de realizar-se em todas as pode ser muito particular ou específico) com
situações de práticas críticas e criativas entre um projeto social transformador.
agentes educadores “comprometidos” e sujei- A educação é popular quando, enfrentando a
tos populares “organizados”, ou em processo distribuição desigual de saberes, incorpora um
de organização de classe; saber como ferramenta de libertação nas mãos
do povo. Pelo que foi exposto antes, o fato é
5) procura perder, aos poucos (o que nem sem- que se a educação popular pode ser entendi-
pre consegue), uma característica original de ser da como uma atividade específica (não é toda
um movimento de educadores e militantes eru- ação assistencial, de trabalho social ou de polí-
ditos destinado a “trabalhar com o povo”, para tica educativa) ela, por outro lado, não requer
ser um trabalho político sem projeto próprio e ser realizada no interior do sistema educativo
diretor de ações pedagógicas sobre o povo, mas formal, separada do conjunto de práticas so-
a serviço dos seus projetos de classe. ciais dos indivíduos. Muito ao contrário, a
educação popular vem sendo desenvolvida no
interior de práticas sociais e políticas e é aí pre-
É neste sentido que há, hoje em dia, um consen- cisamente onde podem residir a sua força e a
so de que a intenção do educador popular deve ser a sua incidência. (La Educación Popular Hoy en
de participar do trabalho de produção e reprodução Chile: Elementos para Definirla, ECO, Edu-
de um saber popular, aportando a ele, ao longo do cación y Comunicación, Santiago de Chile,
1988 – sem indicação de autor, p. 9).
trabalho social e/ou político de classe, a sua contri-
buição específica de educador: o seu saber erudito (o Uma questão muito importante desde os mo-
da ciência em que se profissionalizou, por exemplo) mentos de origem daquilo que viria a ser a educação
em função das necessidades e em adequação com as popular é que não existe uma solução explícita logo
possibilidades de incorporação dele às práticas e à de saída. Primeiro, um novo paradigma de educa-
construção de um saber popular. ção se volta contra a educação tradicional. Depois,
ele se volta contra as condições sociais da sociedade
O que justifica a educação popular é o fato
de que o povo, no processo de luta pela trans- desigual. Mais adiante, ele se afirma como a possibi-
formação popular, social, precisa elaborar o lidade de a educação ser um instrumento que opera
seu próprio saber... Estamos em presença no domínio do conhecimento a serviço do processo
de atividades de educação popular quando, de passagem do povo de sujeito econômico a sujei-
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to político, capaz de transformar relações sociais de Em suas formas mais consequentes, que hoje
que as da educação são apenas um símbolo, uma se recobrem de inúmeras iniciativas em todo o
artimanha e uma dimensão. continente latino-americano, a educação popular
Não é apenas em uma sociedade transformada apenas gera um primeiro momento de passagem
que se cria uma nova cultura e um novo homem. É de uma educação para o povo a uma educação que o
ao longo do processo coletivo de transformá-la, por povo cria. Que ele produz ao transitar – não por-
meio do qual as classes populares se educam com a que se educa entre educadores, mas porque inclui
sua própria prática e consolidam o seu saber com o a educação popular no trabalho político que educa
aporte da educação popular. Pela primeira vez surge a ambos – de sujeito econômico a sujeito político,
a proposta de uma educação que é popular não por- e ao se reapropriar – tanto tempo depois, tantas
que o seu trabalho se dirige a operários e campone- histórias depois – de uma educação para fazê-la
ses prematuramente excluídos da escola seriada, mas ser, pouco a pouco, a sua educação: a educação
porque o que ela “ensina” vincula-se organicamente através da qual ele não se veja apenas como um
à possibilidade de criação de um saber popular, por anônimo sujeito da cultura brasileira, mas como
meio da conquista de uma educação de classe, ins- um sujeito coletivo da transformação da história e
trumento de uma nova hegemonia. da cultura do país.
Ora, a possibilidade concreta de produção de Os pontos atuais de partida da educação popular:
uma nova hegemonia popular no interior da socie-
dade classista é o horizonte da educação popular. 1) a criação de uma nova hegemonia, o que
A possibilidade (a utopia? o projeto histórico rea- significa um saber popular, no sentido de saber das
lizável?) de que, por efeito também da acumulação classes populares, que se constitua como base de um
de um poder de classe, por meio da organicidade trabalho de acumulação de poder popular;
progressiva das práticas dos movimentos popula-
res e do fortalecimento consequente do seu saber 2) a cultura popular como ponto de partida, com
popular, venha a realizar-se uma transformação da um trabalho de revisão de seus componentes tradi-
ordem social, em um mundo solidário de igualda- cionalmente “dominados” e em direção à produção
de e justiça, é o horizonte que se avista do horizon- de uma cultura orgânica de classe;
te da educação popular.
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3) a progressiva participação do trabalho do edu- Negando realizar-se apenas como trabalho es-
cador no trânsito dos sujeitos populares de agentes colar (aquilo que começa na alfabetização e ter-
econômicos a agentes políticos; mina em um supletivo, ou em um curso eficaz
de “qualificação” de mão-de-obra), a educação
4) a descoberta e o aprimoramento de tipos de popular é mais um modo de presença assessora e
relações de prática pedagógica entre educadores e participante do educador comprometido do que
educandos, entre profissionais comprometidos com um projeto próprio de educadores a ser realiza-
a “causa popular” e agentes educandos individuais do sobre pessoas e comunidades populares. Ela se
(sujeitos populares) ou coletivos (movimentos popu- realiza em todas as situações em que, a partir da
lares) (Huidobro; Martinic, 1983, p. 24). reflexão sobre a prática de movimentos sociais e
movimentos populares (as “escolas” em que tem
Depois de alguns anos de tropeços, recuos e atrope- sentido uma educação popular), as pessoas trocam
los, alguns princípios ficaram claros. A educação popular experiências, recebem informações, criticam ações
é a negação da negação. Não é um “método conscientiza- e situações, aprendem e se instrumentalizam. A
dor”, mas é um trabalho sobre a cultura que faz da cons- educação popular não é uma atividade pedagógica
ciência de classe um indicador de direções. É a negação de para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou
uma educação dirigida “aos setores menos favorecidos da seja, é o momento em que a vivência do saber com-
sociedade” ser uma forma compensatória de tornar legíti- partido cria a experiência do poder compartilhado.
ma e reciclada a necessidade política de preservar pessoas,
famílias, grupos, comunidades e movimentos populares Em outras palavras, as práticas da educação
popular representam desde já a vontade de
fora do alcance de uma verdadeira educação. Ela procura criar espaços autônomos, espaços nos quais
ser, portanto, não a afirmação da possibilidade de emer- o manejo do poder se realize de forma
gência de uma nova educação “para o povo” – o que compartilhada, dentro de uma crescente
importaria a reprodução legitimada de “duas educações” relação entre iguais. Nesta perspectiva as
opções metodológicas adquirem relevância
paralelas, condição da desigualdade consagrada –, mas especial... A busca de formas educativas de
a afirmação da necessidade da utopia de transformação caráter participativo, de reflexão coletiva
de todo o projeto educativo a partir do ponto de vista e da prática dos próprios atores, do desen-
do trabalho de classe das classes populares. volvimento de relações de solidariedade
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entre os membros, a superação dos dog- de seu conhecimento “a serviço” de um trabalho
matismos e preconceitos etc., constituem político que atua especificamente no domínio do
opções-chave neste sentido.
(La Educación Popular Hoy en Chile: Elementos conhecimento popular.
para Definirla, ECO, Educación y Comunicaci- A educação popular é, hoje, a possibilidade da
ón - sem indicação de autor, p. 13). prática regida pela diferença, desde que a sua razão
tenha uma mesma direção: o fortalecimento do
Ao existir dentro e além de situações formais de poder popular, através da construção de um saber
ensinar-e-aprender, a educação popular é uma en- de classe. Portanto, mais importante do que pre-
tre outras práticas sociais cuja especificidade é lidar tender defini-la, fixar a verdade de seu ser, é des-
com o saber, com o conhecimento. Com relações de cobrir onde ele se realiza e apontar as tendências
intercâmbio de saberes entre educadores eruditos por meio das quais ela transforma a educação na
e sujeitos populares, que se dão não por meio do vivência da educação popular.
“saber em si”, mas da prática de classe que o torna,
finalmente, mais do que um saber necessário, aquilo
a que pode ser dado o nome de um saber orgânico.
Este trabalho existe no interior de uma associação
de moradores de um bairro de periferia, em um
movimento de trabalhadores rurais do interior de
diversos estados do Brasil, em uma comunidade
eclesial de base, em um grupo de mulheres em luta
pela conquista de escola para o seu bairro. Por isso
mesmo, é uma prática de pensar a prática e é uma
das situações variadamente estruturadas de produ-
ção de um conhecimento coletivo popular.
Esta é a razão pela qual se pode pensar a edu-
cação popular como um trabalho coletivo e orga-
nizado do próprio povo, a que o educador é cha-
mado a participar para contribuir, com o aporte
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pressupostos HistÓriCos da
eduCação popular:
de ontem para agora
1ª – A história da educação dirigida às classes além daquilo que acontece de politicamente rele-
populares na América Latina foi constituída por vante, fora de seu domínio específico de trabalho,
formas, modelos e agências de produção e execução mas com repercussões diretas sobre ele.
de ideias, propostas metodológicas e práticas que
não se sucedem ordenada e sistematicamente (uma 3ª – Portanto, o trabalho pedagógico agenciado
delas para depois de cada “Conferência Internacio- junto às camadas populares existe em um campo de
nal”). Ao contrário, a possibilidade de variações em relações que não o diferencia de outras práticas equi-
um campo político de relações educativas está sem- valentes (saúde, religião, bem-estar social etc.). Deter-
pre aberta, mesmo sob regimes autoritários. A um minado por fatores políticos, econômicos, sociais e
mesmo momento, em uma mesma formação social, culturais, este campo de trabalho de diferentes tipos
modelos supostamente ultrapassados de educação de agências e educadores diferencia formas e princípios
coexistem com os hegemônicos e com os emergen- sociais de articulação dos seus elementos. Diferentes
tes. Antigas “campanhas de alfabetização do começo agências concorrentes ou aliadas trazem para a edu-
do século” podem a todo o momento reaparecer sob cação do povo diferenças de intenções, ideias e proje-
novos nomes e com a racionalidade da moda. Po- tos, que implicam formas de controle, promoção ou
dem coexistir com formas mais lentas e complexas mobilização de grupos populares para fins diferentes,
de educação de adultos e com várias pequenas “ex- não raro, visivelmente, antagônicos. Ao mesmo tem-
periências de educação popular”. po, em uma mesma periferia operária, agências do
governo federal, da Secretaria Estadual de Educação,
2ª – Assim, ao contrário do que parece aconte- do município, de um setor da Igreja Católica, de um
cer, a dinâmica das relações entre diferentes modelos núcleo local do partido, de uma fração de estudantes
não se dá pela superação pura e simples de alguns universitários, de uma associação de moradores ou de
em favor de outros, ou em função da produção de um grupo de oposição sindical podem estar realizando
uma nova hegemonia educativa. A regra é a coe- trabalhos que têm a ver com relações de saber, ou com
xistência de modelos tradicionais, hegemônicos e relações de poder por intermédio do saber. Ocupando
emergentes. Esta coexistência e as regras de seus re- espaços sociais, estas agências: estabelecem articulações
lacionamentos sociais e simbólicos são o que produz com outras de práticas equivalentes, em outros domí-
a dinâmica do campo de ação do educador popular, nios; aliam-se entre si e contra outras; concorrem pela
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hegemonia local da sua prática ou, pelo menos, pela programas sociais à classe popular é a participação co-
reserva de um espaço legítimo junto ao de outras. munitária. Esta participação – palavra-chave – quase
sempre implica a aparência de um poder decisório de
4ª – Neste sentido, uma evidente carência de representantes populares em momentos secundários
resultados efetivos nas atividades como as de exten- de um trabalho de mediação, cujas pautas e metas
são agrícola, de desenvolvimento rural integrado e de são antecedentemente traçadas e, não raro, estão fora
educação de adultos permite supor que, pelo menos do controle até mesmo dos técnicos intermediários
em alguns casos, elas apenas cumprem uma função de do programa. Em contrapartida, ainda que isso nem
ocupar espaços junto a setores das classes populares sempre se realize plenamente, a principal tendência
em que, mesmo que não produzam resultados educa- da prática da educação popular, hoje, está na pas-
tivos relevantes, concorrem com experiências alterna- sagem de um modelo emergente de educação com
tivas de educação popular. Não é difícil verificar isto ponto de referência em si mesmo, para uma prática
em áreas de “tensão social”, onde agências patronais cujo ponto de referência são os grupos populares, os
ou oficiais multiplicam esforços para “organizar a co- movimentos sociais da comunidade, os movimentos
munidade” contra iniciativas de mobilização política populares de classe na comunidade.
de setores das classes populares na comunidade. O Usando com frequência as mesmas palavras e
poder de cooptar pessoas e grupos e reorganizá-los sugerindo em aparências as mesmas metas, os pro-
segundo os padrões da agência de educação é um dos gramas sociais populares têm o seu princípio opera-
principais indicadores da diferença entre uma ação cional na pessoa do sujeito subalterno e têm o seu
pedagógica hegemônica e um trabalho de educação fim operacional nos grupos e organizações que ela
popular. Enquanto a intenção de uma é criar as suas gera na comunidade. De outra parte, programas de
próprias unidades locais de “organização”, segundo os educação popular possuem o seu princípio opera-
moldes do seu “programa de educação”, o que serve cional nas unidades populares de representação da
basicamente a assegurar a sua legitimidade “nas bases vida comunitária e do trabalho político de classe na
populares”, o objetivo da educação popular deve ser comunidade e têm o seu fim operacional na amplia-
o de fortalecer as próprias organizações locais e popu- ção do poder de tais unidades de trabalho popular.
lares de poder de classe na comunidade. Este é um dos pontos fundamentais da disjunção
Ora, uma das tendências mais acentuadas dos entre um modelo e o outro. Enquanto para as va-
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riantes do programa social o sentido do trabalho tos populares a que se destina. Da parte dos agentes
pedagógico é reverter o trabalho político do movi- populares, ela aspira a ser uma antecipação de sua
mento popular em trabalho social de unidade local, possibilidade de criar, agora, uma forma orgânica de
para as variantes da educação popular o sentido do educação do povo.
trabalho pedagógico é converter o trabalho social da
comunidade em movimento orgânico de dimensão 6ª – Modelos institucionais e hegemônicos de
política. O movimento popular tende a ser a razão e educação para o povo são sempre e irrevogavelmente
a dinâmica da educação popular, enquanto tende a uma pedagogia do outro. Esta alteridade consagra a
ser a tensão e o dilema da educação de adultos. dimensão dominante de um trabalho mediador, cujo
fraseado disfarça a dominância, e também cria aí o
5ª – No limite, o que dá sentido humano à seu próprio sentido. Instrumento sutil de reprodução
educação popular é a possibilidade de ela não só ser compensatória da desigualdade, ela funda o seu ser
um meio real de compromisso de educadores (quase na distância da diferença entre o lado do educador e
sempre “de classe média”, é bom não esquecer) com o lado do educando; entre a fonte de poder a que ser-
um projeto histórico de humanização libertadora por ve e o sujeito popular que controla, parecendo servir.
meio do trabalho político do povo, mas também de Ela é o lugar do técnico, não o do militante (palavra
reproduzir-se, por isso mesmo, como um movimento que a burocracia teme e, por isso, procura tornar va-
pedagógico. Como um modo de a educação realizar-se zia), e sonha fazer do sujeito popular um outro edu-
sem se estabelecer como instituição dominante, no cado, produto da imagem antecipada que dele fazem
domínio em que a educação é, em si mesma, uma a retórica e o interesse da agência: um sujeito instruí-
forma de poder. Por isso mesmo, mais do que um do e participante, desde que ordeiro e subalterno.
programa com metas prefixadas, métodos de com- O projeto limite da educação popular preten-
provada eficiência, sistemas importados de avaliação de reduzir a alteridade constitutiva da classe po-
e relatórios notáveis de fim-de-período, a educação pular. Com frequência, esta tarefa difícil tem sido
popular aspira a ser, da parte dos educadores com- o lugar onde práticas se perdem. Uma alteridade
prometidos, uma presença militante, em que não raro que se dissolve, não porque o educador venha a ser
a forma mais consequente de trabalhar é não ter um “como o povo”, mas porque o seu trabalho tende
programa de trabalho, mas servir aos dos movimen- a se tornar das classes populares e, portanto, não
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criar junto com os participantes dos projetos, uma a “ler o seu próprio mundo através de sua própria cul-
arte que refletisse, a partir da associação dos valores tura”. E, assim, a comunicar-se com o outro como um
do povo com o aporte do trabalho dos educadores, sujeito consciente. Uma pessoa participante das deci-
um modo novo de compreender o mundo e de saber sões de seu destino, e comprometida com o processo
vivê-lo2 (Brito, 1983, p. 150). histórico de construção de uma sociedade igualitária.
Talvez, na alfabetização de adultos, os MCPs ten- Neste sentido, o próprio princípio de uma edu-
taram realizar a prática das suas ideias de uma maneira cação dialógica, cuja pedagogia pretende dissolver
mais contínua e duradoura, durante a efêmera exis- “a estrutura vertical do ensino” e devolver aos edu-
tência da maior parte delas, a partir das conhecidas candos “o poder da palavra” durante a sua própria
experiências de Paulo Freire e sua equipe no Nordeste, aprendizagem, tem um valor que desloca o educa-
em que todo um trabalho de alfabetização começava cional para o cultural e realiza ambos como um que-
por uma pesquisa conjunta do universo cultural po- fazer francamente político e revolucionário.
pular. E que, depois, as próprias aulas eram realizadas Em projetos concretos, que enfrentavam uma
através de círculos de cultura, em que o trabalho de enorme dificuldade em passar de suas teorias e pala-
ensinar-e-aprender pretendia ganhar uma inesperada vras de ação cultural para uma experiência duradoura
e inovadora dimensão dialógica. Experiências de diá- e consistente, os objetivos gerais eram a crítica “com o
logo entre pessoas e entre culturas, em que o próprio povo” dos seus valores culturais, ao lado da experiência
ensino da leitura de palavras da língua portuguesa de recriação de culturas que pouco a pouco passassem
começava e continuava por meio de uma reflexão co- de uma espécie de tradição residual para uma tradição
letiva a partir da questão teórica da cultura e dos ele- inovadora. Tradições que, sem perderem até mesmo as
mentos da cultura local de cada grupo de educandos. suas características “folclóricas”, servissem a traduzir
Pois, não se tratava de aprender apenas a ler e escrever para pessoas, grupos, comunidades e movimentos po-
em uma língua, como nos programas tradicionais de pulares a sua própria tomada de consciência como su-
alfabetização de adultos. Tratava-se, antes de aprender jeitos da história em luta pelos seus direitos humanos.
Alguns trechos de documentos da época são
trazidos para este texto para que a própria lingua-
2. BRITO, Jomard Muñiz de. “Educação de adultos e unifi-
cação da cultura”. In: FAVERO, 1983, p. 150. O autor não
gem revele – a cultura popular como expressão de
menciona a fonte de citação do documento da Unesco. uma arte-educação com intencionalidade político-
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
pedagógica, cujas teorias e práticas merecem ser O homem estando no mundo estabelece
lembradas e reconhecidas3. relação com a natureza, a compreende e de-
senvolve um trabalho de transformação desse
Os movimentos de cultura popular pensaram seu mundo. Nesse sentido é que ele cria outro
papel e sua atuação tendo como base uma Filosofia mundo, o mundo da cultura, do qual por
da História. Outras organizações voltadas à educa- sua posição de criador ele é sujeito e é como
sujeito que ele deve participar do mundo da
ção e à mudança social pensaram a partir de uma
cultura da natureza. (CPC-BH, s.d., p. 83)
Sociologia do Desenvolvimento. Talvez esta seja
uma diferença importante. Cultura é tudo o que o homem agrega à na-
A Filosofia da História compreende o ser humano tureza; tudo o que não está inscrito no deter-
minismo da natureza e que nela é incluído
a partir da produção da cultura: ao transformar mate- pela ação humana. Distinguem-se na cultura
rialmente o mundo em que vive, o recria e se reproduz seus produtos: instrumentos, linguagem, ci-
como ser humano. É o mesmo que dizer que, crian- ência, a vida em sociedade e os modos de agir
do cultura, nós, os humanos, passamos de indivíduos e pensar comuns a uma determinada socie-
dade, que tornam possível a essa sociedade a
biológicos (como os animais) para sujeitos culturais. A criação da cultura. (MEB, 1983, p. 78)
cultura abarca tudo o que o ser humano e o seu traba-
lho realizam no mundo, ao transformarem a natureza A distinção entre dois mundos: o da natureza
e o da cultura. O papel ativo do homem em
e atribuírem significados ao que fazem e ao próprio ato
sua sociedade e com sua realidade. O sentido
criador de fazer, de criar, de transformar. O processo de mediação que tem a natureza para com
social de criação de cultura é o que atribui ao ser hu- as relações e comunicações dos homens. A
mano a possibilidade de afirmar-se como um ser com cultura como agregação que o homem faz a
um mundo que não foi construído por ele. A
consciência a respeito do seu saber. Enfim, como um cultura como resultado de seu esforço criador
sujeito que habita de modo singular a sociedade e cons- e recriador. (Freire, 1983, p. 116)
trói uma história.
O trabalho que transforma e atribui significado
3. Recomendamos ao leitor a leitura de: “La negociación: una ao mundo é o mesmo que transforma e significa o
relación pedagogica posible”, de Aida Bezerra e Rute Rios, ser humano, portanto é parte da cultura. A própria
publicada em Anke Van Dam, Sergio Martime e Gerhard
Peter (eds.), Cultura y política en educación popular, La Haia, consciência humana, é um pensar social na e sobre a
Ceso Paperbach n. 22, 1995, p. 21-68. história: percurso e produto do trabalho e da cultura.
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
Criando e recriando, integrando-se às condições do seu Em verdade, sendo o sujeito da história por
contexto, respondendo a seus desafios, transcendendo, ser o criador da cultura, as formas históricas
das criações culturais devem situar-se
lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo, na linha das exigências de realização do
o da História e o da Cultura. (Ibid., p. 116) homem. Existem valores essenciais que a
Reconhecer o ser humano como sujeito da cultura deve encarnar em situações históricas
infinitamente variáveis, justamente por serem
história e criador de cultura significa reconhecer o seu
valores constitutivos do ser-homem (sem
próprio processo dialético de humanização. No espaço estes a cultura é desumanizante e alienante).
de tensão entre a necessidade (as suas limitações Uma determinada cultura histórica é
como ser da natureza) e a liberdade (o seu poder autêntica quando permite que tais valores
se tornem carne e, por eles, a construção de-
de transcender ao mundo por atos conscientes de um-mundo-para-o-homem. Nesse caso, a
reflexão) o ser humano realiza um trabalho único: ao cultura se torna expressão autêntica da real
criar o mundo de cultura faz a história humana. Cria consciência histórica do homem (do grupo,
a própria trajetória de humanização. da nação, da época)4.
Este trabalho coletivo existe no tempo. Existe
ao longo de sucessões de tempos concretos. Assim, Entre os seres conscientes, a relação fundamen-
a cultura que existe, em princípio, como o anúncio tal da cultura é estabelecida na e pela comunicação.
da liberdade do homem sobre o mundo, na prática Sendo produto do trabalho humano, a cultura é o
histórica de sua produção, pode gerar, contingencial- campo das mediações entre os seres humanos e destes
mente, a perda da liberdade de alguns seres humanos, com a natureza. A comunicação das consciências é
no interior de mundos sociais determinados, sob o condição de existência da cultura como dado objeti-
domínio de outros seres humanos. vo – algo que existe mais além da pura subjetividade
individual, no interior da vida coletiva – por ser o
A cultura é histórica. A iniciativa humana que permite a existência de símbolos, valores e bens
que cria a história é precisamente a cultura.
A história não é mais que o desenvolvimento
do processo pelo qual se opera a mudança 4. AP. “Cultura Popular”. In: Op. Cit., p. 17, grifos dos au-
dialética da Natureza em Cultura, vale dizer, tores. Ação Popular (AP). Grupo de esquerda que surgiu
de mundo natural a mundo humano. Logo, da Juventude Universitária Católica. Trata-de de um texto
uma cultura a-histórica é um contrassenso. mimeografado da época, sem indicação de data e de autor.
Eram tempos da ditadura.
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
culturais, transmitidos e coparticipados. Esta relação Assim como a cultura nos modelou como
de comunicação entre consciências na história é sub- uma espécie única – e sem dúvida ainda nos
está modelando – assim também ela nos mo-
jacente a todas as outras relações e fundamenta a pos- dela como indivíduos separados. É isso o que
sibilidade de reprodução e recriação social do saber, temos realmente em comum – nem um ser
logo, da própria educação. subcultural imutável, nem um consenso de
cruzamento cultural estabelecido. (Geertz,
As relações fundamentais de cultura e através da
1989, p. 37-8)
cultura são de reconhecimento de sujeitos livres e
igualmente produtores e beneficiários da totalidade da Ideologia: um mascaramento da realidade
cultura, que emerge na construção da história. No pro- social que permite a legitimação da explo-
ração e da dominação. Por intermédio dela,
cesso real da história humana, o reconhecimento entre tomamos o falso por verdadeiro, o injusto
as consciências é sistematicamente negado e a dialética por justo. Como ocorre essa ilusão, essa fa-
das relações entre o ser humano e a natureza, através bricação de uma história imaginária? Qual
da cultura, estabelece a dominação de categorias de al- sua origem? Quais seus mecanismos, seus
fins e efeitos sociais, econômicos e políticos?
guns sujeitos e grupos sociais sobre outros. A cultura
(Chauí, 1993, p. 125)
que deriva da desigualdade de condições humanas de
produção de bens, poderes e símbolos de compreensão
A oposição estrutural entre modos sociais de
da vida social é socialmente dividida e reflete relações
construção da cultura é o que explica a cultura popular.
antagônicas entre grupos no interior da sociedade. A
A dimensão da cultura expressa a forma como os
oposição de culturas não é resultante de processos de-
sujeitos, classes e grupos étnicos e sociais participam
rivados da própria natureza do ser humano, tampouco
da vida coletiva em todas as suas dimensões. No
é uma condição do modo como se relaciona com seu
contexto das sociedades, existem valores e símbolos
mundo. É um fato histórico que nega a possibilidade
que são dominantes e outros que são negados.
de que a História se realize como afirmação da igualda-
Assim, em uma sociedade desigual, regida pela
de e liberdade entre todos os seres humanos5.
desigualdade em todos os setores da vida social,
das relações de produção de bens materiais às re-
lações simbólicas de criação e comunicação de sig-
nificados e valores, as culturas das pessoas, grupos
5 . Ibidem, p.17-9.
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
e classes subalternas são elas próprias regidas por de instrumentos ativos de controle, quando as classes
uma autonomia relativa. Historicamente houve dominantes lançam estratégias para envolver e
uma cultura imposta às classes populares e também conquistar o imaginário da cultura das massas.
a cultura que elas criaram. O domínio da cultura Consequentemente, todos os diferentes setores
erudita sobre a popular é ativo: mobiliza recursos, das classes populares reproduzem, como sendo sua,
canais, meios, pessoas especializadas, grupos de uma cultura “culturalmente” mesclada (fora do eixo
controle, de propaganda, de educação, recupera da identidade das classes populares), politicamente
técnicas, inova, amplia e testa a sua estratégia; ab- dominada (fora do eixo do poder) e simbolicamente
sorve, esvazia, retraduz, invade domínios e formas alienada (fora do eixo da consciência). Nesta situação,
de expressão cultural do povo. não sendo conscientizado por sua própria cultura, o
Ao lado do controle diretamente político (não povo não poderá sê-lo por qualquer outro meio usual
raro policial e militar) com que as diversas institui- na conjuntura de dominação. E, no entanto, somente
ções exercem o domínio concreto da vida, existe o a partir da ação conscientizada e organizada das classes
controle exercido pela cultura dominante sobre a cul- populares é legítimo imaginar a possibilidade de um
tura dominada. De muitos modos e através de mui- projeto de libertação de todas as esferas de domínio
tos artifícios de comunicação e de inculcamento de na sociedade de classes.
ideias, realiza-se um trabalho contínuo de bloqueio e Em uma sociedade igualitária e regida por
cooptação de todas as “manifestações populares” que princípios de justiça e fraternidade, a diferença entre
possam vir a expressar a sua condição de classe e um culturas é desejável. A sua pluralidade correspondente
horizonte histórico popular. à presença de diversos grupos étnicos, à diversidade de
No interior dessa estrutura de relações desiguais, suas regiões e à associação entre tudo isto e a variedade
o povo mistura elementos de sua própria cultura de vocações e estilos de vida e de representação da
(aquilo que reflete para ele a continuidade de seu experiência particular de um grupo ou povo no curso
modo de vida, revelando-ocultando a sua condição da realização de sua vida. Este é mesmo um dos
de classe) com fragmentos da cultura dominante, indicadores de um estado cultural de liberdade de
que a todo o momento invadem os espaços populares criação, a partir de diferenças culturais negadoras de
da sociedade. Isto acontece tanto através de um diversidades sociais. É em nome disto que se defende,
domínio difuso sobre a sociedade, quanto por meio na América Latina, o direito a que todos os povos
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
indígenas mantenham a plenitude de suas próprias a sua condição subordinada. É seu, mas não traduz a
experiências culturais em todos os seus planos, sua liberdade. É “próprio”, mas não reflete a integridade
da língua à religião, o que desautoriza qualquer de sua experiência, pois ela é privada de autonomia.
tipo de prática cultural homogeneizadora, mesmo
quando em nome de sua “integração à comunidade
nacional”, mesmo quando em nome da produção de 3.2. Uma proposta fundada em uma
uma “genuína cultura nacional”. concepção contra-hegemônica:
Outra coisa é a desigualdade cultural decorrente a cultura popular e o trabalho político
de estruturas e processos de imposição de valores, por meio da educação e da arte
de negação do direito à expressão cultural de povos, Exatamente nos mesmos anos em que surgiam
de grupos e de etnias minoritários ou dominados várias propostas de trabalho oficiais – do governo para
social e culturalmente. Na sociedade desigual uma o povo, sendo realizadas por meio de programas em
posição estrutural entre formas sociais de participação nome do “desenvolvimento” (“nacional”, “regional”,
na criação, na partilha e no consumo da cultura é o “socioeconômico”, “integrado”), “promoção social”,
que explica a própria cultura popular. Uma cultura “organização”, “educação fundamental” –, aparecem
popular “alienada” é negadora de direitos humanos no Brasil outros tipos de propostas criadas por grupos
em um duplo sentido. Primeiro, ela resulta de uma e movimentos que se opõem às ideias e projetos já
imposição de conhecimentos, valores e códigos de existentes e que pretendem reinventar possibilidades
relacionamentos interpessoais de classes e grupos de um “trabalho popular por meio da ação direta
hegemônicos sobre outros, traduzindo a própria relação junto às camadas populares”.
social de desigualdade, e também o poder de uma classe Eles fizeram a crítica da intenção de controle
em impor a outras e a outros grupos, de seu meio, uma político – através de ideias, de valores, de sentidos,
visão de mundo e expressões de identidade que não são de significados, de saberes, logo, de dimensões
criações suas e não expressam a sua própria experiência simbólicas da cultura – que se ocultava sob as vestes
no mundo; segundo, mesmo uma boa parte daquilo das propostas “oficiais” de trabalho social com o
que se pode considerar como criação cultural popular, povo, e que anunciavam uma alternativa de efeito
aquilo que os sujeitos subalternos conseguem criar político através de alguma forma de ação social.
através de suas próprias experiências no mundo, reflete As experiências de cultura popular subordinaram
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
6. Ibidem. p. 23.
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
mesmo, como uma luta constante de inte- jeto histórico de libertação do povo, com a participação
gração do homem brasileiro a nosso processo popular. No interior deste projeto de ação pedagógi-
histórico, em busca da libertação econômica,
social, política e cultural do povo. É, portan- ca, os mediadores apontam os meios, criam e colocam
to, um movimento, por sua vez, de elabora- instrumentos nas mãos dos grupos populares, retradu-
ção e de libertação. (CPC-BH, s.d., p. 85) zem e difundem conteúdos de compreensão da rea-
lidade social. Enfim, tornam politicamente populares
Cultura popular é todo processo de demo-
cratização da cultura que visa a neutralizar o ideias, práticas e recursos culturalmente eruditos. Vimos
distanciamento, o desnível “anormal” e anti- já que tornar crítica e progressivamente autônoma a
natural entre as duas culturas através da aber- cultura tradicional do povo significa instrumentalizá-la
tura a todos os homens – independentemente
de raças, credo, cor, classe, profissão, origem, politicamente. Politizá-la como universo simbólico das
etc. – de todos os canais de comunicação... classes populares significa participar do processo que
Fazer Cultura Popular é, assim, democratizar transforma uma cultura que reflete o mundo, a condi-
a cultura. É antes de tudo um ato de amor... ção de classe, o modo de vida e o horizonte político do
Podemos então definir educação em termos
de nossas análises anteriores: a instrumenta- dominado através do pensar imposto do dominante
lização do homem pela democratização da em uma cultura que seja reflexiva das mesmas coisas,
cultura. (Maciel, s.d., p. 143-4) através de um novo pensar crítico do dominado.
Se é verdade que por toda a parte existe uma es-
Escritas com palavras e ênfases políticas que fluíam pécie de invasão cultural de tipo erudito/dominan-
então entre diferentes leituras do ideário marxista, mas te sobre a cultura popular em uma sociedade regida
também dos primeiros movimentos de vanguarda cristã pela desigualdade e pela oposição entre classes so-
no Brasil, as propostas de cultura popular convergiam ciais, então um projeto de superação da desigualdade
num afã de gerar e difundir instrumentos culturais e social, da injustiça, da marginalização e até mesmo
culturalmente políticos a serviço da causa popular. da exclusão de pessoas e de comunidades populares
Um dos objetivos da cultura popular era a con- deveria possuir uma dimensão também cultural. E
solidação de um lugar de trabalho comum entre in- esses são os termos em que as propostas de cultura
telectuais eruditos e populares (artistas, educadores, popular dos anos de 1960 propõem uma verdadeira
cientistas, promotores e comunicadores de “uma nova inversão no que se pensava ser um trabalho com o
cultura”) aderentes e participantes de um mesmo pro- povo. Essa foi a contribuição inovadora na questão
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
da participação de intelectuais militantes “compro- popular que, realizando-se através da própria cultura,
metidos com o povo” no próprio projeto popular de participa da criação da liberdade. A “cultura aliena-
sua libertação. Algo cuja teoria e cuja estratégia cada da” é o solo onde floresce no oprimido a “consciência
movimento buscava estabelecer de acordo com a sua alienada”. Esta consciência é o nevoeiro que impe-
ideologia e com os seus projetos de ação social e, no de ver, perceber e compreender a dominação social,
limite, de construção da história. tal como ela existe. É o olhar-opaco que impede o
Evidenciar a cultura na história e depois fazer a ser humano de compreender sob que condições ele
crítica histórica da cultura não representa uma des- existe e vive e, portanto, o olhar-que-não-desvela os
coberta e nem mesmo uma grande novidade dos caminhos de uma participação na vida social através
movimentos de cultura popular. Entretanto, tomar de uma organizada ação política contra tudo o que
tal crítica como um ponto de partida e propor um reproduz, dia a dia, a sua “condição de subalterno”.
trabalho coletivo como história através da cultura, Na linguagem bem peculiar dos documentos dos
talvez tenha sido uma idéia nova para um tipo de primeiros anos da década de 1960, isso implicava in-
prática até então não realizada no Brasil. centivar e instrumentalizar, de modo conscientizador,
Com a proposta de retomar as culturas do povo o povo. E, assim, agir cultural e pedagogicamente
com o objetivo de motivá-las através do trabalho de para que ele aprendesse a se reorganizar a partir e em
participação política na vida social, realizou-se uma torno dos elementos de sua própria cultura. Importa-
ação “a partir das bases populares”, destinada a re- va, também, torná-lo crítico de que tal cultura, criada
criar com/através/para o povo, a sua própria cultura, agora por seres humanos conscientes e participativos,
para conscientizá-lo através dela. A realização deste tornava-se, para eles próprios, a sua cultura de classe.
momento e deste novo movimento da história exigiu Portanto, realizar um trabalho de cultura popu-
que deixasse de ser o lugar do “puro” pensamento e lar junto ao povo significa assessorá-lo na tarefa de
da mera contemplação da cultura, para vir a ser recu- tornar-se, por si mesmo, passo a passo, capaz de ser
perado como um lugar político-cultural de luta e de o construtor de uma nova cultura popular a partir
transformação. Eis a razão de ser da cultura popular. de novas práticas coletivas. Uma cultura despojada
Trocando em miúdos, isso quer dizer que há um de valores impostos, estrangeiros e dominantes, que
espaço concreto de ação política que se realiza na di- refletem a lógica do polo hegemônico da socieda-
mensão da cultura. Uma ação/atuação/participação de e sua visão da vida em sociedade. Uma cultura
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
Expressões como “formação para a cidadania” e reflexo dos símbolos, valores, interesses e poderes das
“prática educativa progressista” parecem querer atuali- elites eruditas. De um modo ou de outro, existem
zar palavras antigas extremamente sonoras e sugestivas, espaços populares de criação original, de autonomia
como “conscientização” e “pedagogia do oprimido”. de expressão de si mesmos e de representação de seu
Algumas críticas devem ser feitas à maneira como mundo segundo a sua própria experiência. Sempre
nos anos de 1960 os movimentos de cultura popular existiram estratégias de originalidade e de uma genu-
pensaram a própria cultura popular e estabeleceram ína afirmação de identidades peculiares, mais reflexi-
as suas propostas de ação cultural. Como também vas do que apenas reflexas.
devem ser relembradas e ressaltadas as inúmeras con- Nos últimos anos, o próprio sentido da ideia de
tribuições que hoje nos possibilitam pensar a inten- poder e de uso político do poder tem tomado dire-
cionalidade e a metodologia da educação popular. ções diferentes de como foi pensado anos atrás. Não
A primeira crítica poderia ser a de uma apressada devemos nos esquecer de que o progressivo desapa-
submissão da cultura à política, do símbolo ao po- recimento dos regimes militares na América Latina,
der. Houve sempre um evidente radicalismo em es- ao lado do crescimento de programas culturais públi-
tabelecer esta relação. É como se as classes dirigentes cos e principalmente dos meios de comunicação de
detivessem uma espécie de poder absoluto e tivessem massas, tem colocado em cena uma grande variedade
um interesse absoluto em utilizar os meios de comu- de agentes e interlocutores no campo da cultura e
nicação e todos os artifícios simbólicos para “invadir” mesmo no âmbito das propostas e projetos de/sobre
culturas populares e impor a elas os seus valores, se- as culturas populares. De maneira quase que natu-
gundo os seus objetivos de controle do imaginário ral esta apreciável polissemia torna hoje grosseiro um
popular e de domesticação dos subalternos. Sabemos jogo de opostos como: Estado x sociedade civil, elite
que existem relações entre um plano e o outro, mas dominante x povo subalterno, cultura dominante x
não são tão diretamente unidirecionais e o próprio cultura dominada, alienado x conscientizado etc.
poder deve ser pensado como uma dimensão entre A segunda crítica é dirigida a uma uniformização
outras da cultura e das múltiplas relações entre cul- das diferenças culturais populares. Desde o tempo do
turas, em uma mesma sociedade, ou em sociedades surgimento dos movimentos de cultura popular até
diferentes. Sabemos também que em suas tão diver- anos recentes, as classificações de tipos e categorias
sas expressões, as culturas populares não são um mero de culturas eram estabelecidas sobre certos pares de
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
opostos muito rudimentares: erudito x popular; do- sujeitos de culturas originais. Descobrem por si mes-
minante x dominado; alienado x libertado; urbano x mos a maneira como alguma forma de participação
rural. Nos meios mais militantes, uma proclamada em movimentos sociais atualiza de dentro para fora
unicidade de destinos – a libertação autoconstruída esta “cultura em processo” que, entre iguais culturais,
do povo e a construção popular de um outro modelo quando olhados desde um ponto de vista mais am-
de estrutura social – impunha uma opacidade teórica plo, abre as portas à possibilidade ampliada da afir-
e empírica em relação aos diferentes modelos de cul- mação de diferenças culturais de identidade, de ethos,
tura que surgem, comunicam-se, se interinfluenciam de estilo de vida e mesmo de projeto social.
e se transformam. O resultado mais visível disto era Ao contrário do que aconteceu nos tempos da
uma redução motivada da complexidade das cultu- criação pioneira de um conceito crítico de cultura
ras, da diversidade das culturas a amplos domínios popular, como uma forma de ação política através
onde ela própria era obrigada a dissolver-se. da cultura, a especialização dos movimentos sociais
Fora a oposição popular x erudito, o que dizer e uma vasta convergência de propósitos e horizontes
dos povos e de culturas cuja diferença está nas di- tem obrigado a uma urgente revisão do “lugar da cul-
versidades históricas, étnicas e simbólicas, por meio tura” em toda a experiência dos movimentos popula-
das quais se reconhecem em sua imensa riqueza, cul- res e das organizações não-governamentais associadas
turas e tradições próprias, peculiares, mesmo dentro de alguma maneira a eles.
de uma mesma unidade ampla. Tipos específicos de É difícil hoje lidar com algo como a “classe po-
“pessoas e comunidades camponesas” cujas experiên- pular”, desde onde seja possível partir de uma cultura
cias culturais não os opõem em bloco apenas às diver- popular para se chegar a uma cultura de classe. Lida-
sas manifestações populares de culturas urbanas, mas mos com movimentos de indígenas e movimentos de
que de região para região dentro de um mesmo país grupos indígenas específicos. Como frente de lutas de
tomam feições próprias e observam ritmos desiguais negros, de minorias étnicas, de sujeitos socialmente
em suas próprias experiências de convivência com marginalizados, de categorias profissionais, de agen-
a modernidade. Novos sujeitos socioculturais que, tes específicos de arte ou cultura, de seres humanos
sobretudo após se constituírem como movimentos empenhados na busca política da paz entre todas as
particulares de defesa de direitos humanos, desco- pessoas e todos os povos, de neomilitantes dos direi-
brem em si mesmos a evidência de serem também tos humanos, da questão ambiental e de participantes
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Carlos Rodrigues Brandão e Raiane Assumpção Cultura Rebelde
de movimentos de preservação da natureza como um por exemplo. Mas ela tem hoje um valor muito grande
dever humano. Mesmo que o horizonte da história a mesmo ou principalmente nos movimentos populares.
todos unifique, não são apenas questões muito parti- Se o que está em jogo não são apenas as faces “mate-
culares ou que na prática especializem os movimentos riais” dos direitos humanos, mas todas as dimensões
e os grupos, mas também as diferenças de identidade e dos direitos à identidade, à realização da vida indi-
de culturas dentro das quais todos eles se movem. vidual e coletiva segundo padrões próprios e ritmos
Nesse sentido, retomamos o fundamento teó- peculiares de existência, então a maneira como tudo
rico-metodológico da educação popular: a Filosofia isto se combina e transforma é uma questão interna
da História. Enfatizamos a necessidade dos movi- a cada grupo cultural, em cada tipo de experiência
mentos de cultura popular pensarem seu papel e sua comunitária ou de movimentos sociais.
atuação tendo como base a compreensão do ser hu- Um conjunto mais atual de experiências de mo-
mano a partir da produção da cultura. O processo vimentos sociais, tão motivadamente diferenciados
social de criação de cultura é o que atribui ao ser em suas origens, objetivos e destinos de realização, aos
humano a possibilidade de afirmar-se como um ser poucos deslocou em boa parte um foco político so-
com consciência a respeito do seu saber e potencia- bre a ideologia para um foco mais cultural, centrado em
lizar formas de compartilhá-lo. questões de identidade sociocultural e ética de relações.
Sabemos que, assim como não houve origens De alguma maneira, passamos a propósitos e
comuns para o acontecimento das culturas, também propostas ideológicas, tão uniformes quanto possí-
não há ritmos ou direções iguais e convergentes para vel, à ideia de que, afinal, as próprias ideologias são,
o desenvolvimento de culturas populares (indica- também elas, construções culturais. Elas são manei-
dores são incapazes de traduzir os seus verdadeiros ras próprias através das quais grupos de atores sociais
significados como uma experiência simbólica de criam símbolos e significados que, em suas origens,
vida de um grupo humano). A própria relação entre traduzem olhares particulares a respeito de si mesmos,
tradição e modernidade é algo cuja tensão somente de sua visão de mundo e de suas estratégias de condu-
pode ser vivenciada e tornada significativa de dentro ção do poder e de transformação da sociedade.
para fora de cada cultura. Em suma, ideologias políticas são construções
Esta é uma ideia que valia antes para uma compre- particulares, ainda que humanamente convergen-
ensão teórica da cultura, como entre os antropólogos, tes. Muito mais do que ao tempo do surgimento dos
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movimentos de cultura popular, na mesma medida Quaisquer que tenham sido as observações
em que os movimentos sociais são sensíveis às dife- que nos anos seguintes tenham sido dirigidas ao
renciações de seus sujeitos e dos seus objetivos, eles pensaram e projetaram realizar os antigos MCPs,
próprios tendem a se diferenciar de uma maneira ex- pelo menos duas entre outras contribuições deles
traordinária de acordo com o foco de sua atuação. devem ser lembradas aqui.
Ao lado dos antigos e ainda tão indispensáveis Apesar do caráter francamente “determinista” do
movimentos populares de luta pelo direito à terra e modelo usual de análise de conjuntura da realidade
pela reforma agrária, envolvendo os homens e mu- social e, também, apesar de um ingênuo simplismo na
lheres do campo em praticamente todos os países do maneira como se acreditava poder atuar politicamen-
continente, surgem por toda parte novos movimen- te através da cultura do povo, redimensionadas como
tos ambientalistas, associados a grupos sociais orga- uma cultura nacional autônoma, consciente e revolu-
nizados em torno a lutas pelos direitos humanos e a cionária, havia um propósito de inserir o processo da
conduta democrática plena à cidadania. Eles emer- cultura no interior de uma integração de dimensões
gem revisitando ideais de compreensão universal, de da própria vida social que parece haver se diluído nas
paz entre todos os homens e de pacificação nas rela- experiências de ação cultural mais recentes.
ções entre a sociedade e a natureza. Esta é uma segunda contribuição dos movimen-
A cada dia surgem novas palavras, novos olha- tos de cultura popular do começo da educação popu-
res de crítica e novas (algumas, tão velhas!) aspira- lar na América Latina que merece ser lembrada aqui.
ções que em boa medida não se contrapõem, mas Nunca antes os sujeitos das classes populares, os cam-
se somam aos antigos e atuais movimentos sociais poneses, os povos indígenas foram com tanta ênfase
voltados à cultura popular. convocados a assumirem a sua própria passagem de
Se em algum momento do passado foi suposto agentes econômicos a atores sociais responsáveis pela
que haveria diferenças cruciais entre alguns destes realização de sua própria história.
antigos e novos movimentos, agora estamos um As propostas atuais de projetos de educação po-
pouco mais sensíveis a buscar, em nome dos ideais pular, de educação e direitos humanos, de educação
irredutíveis de justiça, igualdade, paz e solidarieda- para a paz, um apelo à democratização da cultura
de, o que possa haver de fecundamente convergen- associado a um desejo de realização social dos direi-
te entre todos eles. tos de cidadania estendidos a todas as categorias de
80 81
5
pessoas, por igual, não parecem possuir como pro-
posta hegemônica a mesma aposta no poder de orga-
nização e de transformação do povo, a partir de seu
próprio trabalho político. Um trabalho de reinvenção
do poder, capaz de construir na história uma socie-
dade plenamente solidária, em que à cultura cabe
um duplo papel. O de ser, durante o processo de sua
construção, uma instância crítica de democratização
efetiva de símbolos, de valores e de significados da
vida social. O de ser, em sua completa realização, a
própria evidência simbólica da comunicação livre e
igualitária entre todas as pessoas. ConsideraçÕes aCerCa
da Cultura rebelde em
tempos de FluideZ
dela própria no cotidiano, como fundamento da razão de contribuir para a construção de uma socie-
de ser da experiência humana no mundo. dade mais justa e democrática. Educação de
base, educação de adultos, educação popular,
Além dessa dimensão subjetiva, a educação po- os nomes eram vários de acordo com a con-
pular possui um sentido político, do compromisso juntura social e política do momento. A partir
e “cuidado” do cidadão com a polis, da participação da segunda metade dos anos 1970, a expressão
“educação popular” passou a ser a mais usada.
assumida para a construção de seu mundo de vida
A educação popular é muitas vezes confundida
cotidiana e, por extensão, da história de seu tempo. com educação informal ou educação não-for-
Diante dessa complexidade que envolve a edu- mal – o que significa não referida ao sistema
cação popular, decorrente de elementos objetivos e escolar formal. Creio porém que essa redução
acaba por não considerar as iniciativas de di-
subjetivos, retomamos questões importantes e recor- versas escolas que, em diferentes lugares deste
rentes que incidem diretamente na sua concretiza- país, procuram levar adiante uma educação
ção. A primeira questão refere-se a sua essência. crítica, voltada para a expansão da autonomia
Temos defendido com frequência a ideia de que e da responsabilidade social de seus alunos...
Pode-se considerar que a expressão “educação
a educação popular recobre, êmica e eticamente1, popular” designa uma proposta de educação,
toda uma trajetória na e da educação ao longo de uma intenção, uma diretriz, um rumo – que
sua história do Brasil. se realiza em diversas atividades, formais ou
informais. (Costa, 2000, p. 11-2)
A partir do final da década de 1950 surgiram
vários trabalhos de educação voltados para as De alguma maneira, em semelhança com a ideia
camadas populares, tendo em comum o desejo de Beatriz Costa (2000), acreditamos que a educação
popular é uma concepção de educação. É uma in-
1. “Êmico” e “ético”, aqui, no sentido usado corriqueiramente vestidura, em intencionalidade, do sentido social das
na antropologia, e derivados de “fonêmico” e de “fonético”. Ao ideias e das práticas pedagógicas.
primeiro termo correspondem os nomes e os sentidos dados
a algo de uma cultura pelos participantes ativos da própria Ao longo da trajetória da educação popular no Bra-
cultura (como os termos que designam os objetos, os sím- sil surgiram inúmeras interpretações e atribuições dadas
bolos e os gestos com que se vivem os sentidos peculiares de a ela. Nos setores mais vinculados aos movimentos so-
um ritual). Ao segundo correspondem os termos conceituais
e as interpretações de sentido dados por alguém alheio a esta
ciais e trabalhos de base nas comunidades ela foi com-
cultura, como aqueles que uma antropóloga, pesquisadora de preendida como um instrumento político-pedagógico
um ritual indígena, utiliza para descrevê-lo e interpretá-lo. “a serviço das classes populares”. No entanto, a ideia
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mais difundida entre nós a respeito do que é a educação b) esta mudança contínua é um direito e um
popular insiste em associá-la a um trabalho pedagógico dever de todas as pessoas que se reconheçam convo-
multivariado, realizado de preferência por setores mobi- cadas a participarem dela;
lizados da sociedade civil. Em seu nome, dentro e fora
do âmbito da escola – tomada aqui no seu sentido mais c) a educação possui aqui um lugar não absoluto,
institucional e mais didaticamente profissional – o seu mas importante, pois a ela cabe criar possibilidades para
sujeito preferencial são membros das classes subalternas. que as pessoas sejam destinadas a se verem como cocons-
Entre esses dois extremos estavam e estão, de um lado, trutoras do mundo em que vivem, o que significa algo
aqueles que defendem ser a educação popular uma entre mais do que serem preparados para viverem no limite
as formas de preparação das classes populares para al- dos produtores de bens e de serviços em mundos sociais
gum tipo de transformação social decorrente de uma to- que conspiram contra as suas próprias humanidades;
mada do poder e para a instauração de uma alternativa
socialista à sociedade “capitalista e opressora”. E estão do d) aos excluídos dos bens da vida e dos bens do
outro lado aqueles para quem a educação popular é um saber, o direito à educação, que, além de ser uma edu-
instrumento cultural, destinado a elevar de maneira jus- cação de qualidade, seja também um lugar em que a
ta e não-supletiva a qualidade de vida das pessoas e das cultura e o poder sejam pensados a partir deles: de sua
famílias excluídas, a começar pela oferta de um tipo de condição, de seus saberes e de seus projetos sociais2.
educação que instaure nele a plenitude da pessoa cidadã.
Em uma ou na outra direção – mas, com maior
2. Sobre o passado e atualidade destas questões, além de trabalhos
ênfase, na primeira direção e em suas variantes antigos e atuais bastante conhecidos, entre Paulo Freire, Beatriz
vizinhas –, tanto ontem como hoje, o que caracteri- Costa, Osmar Fávero, Luis Eduardo Wanderlei, Celso Beigisel,
za a educação popular é o seu esforço em recuperar Moacir Gadotti, Rosa Maria Torres, Pedro Benjamim Garcia,
como novidade a tradição pedagógica de um traba- Oscar Jara, Marcela Gajardo, Sergio Rodriguez, Luis Eduardo
Garcia-Huidobro e tantos outros, queremos indicar alguns livros
lho fundado em, pelo menos, quatro pontos: recentes. Um deles é Educação popular em busca de alternativas
– uma leitura desde o campo democrático e popular, de Conceição
a) o mundo em que vivemos pode e deve ser Paludo, publicado pela Tomo Editorial em parceria com o Camp,
de Porto Alegre, em 2001. O outro é a excelente coletânea de
transformado continuamente em algo melhor, mais artigos reunida em Educação popular hoje – variações sobre o tema,
justo e mais humano; coordenado por Marisa Vorraber Costa e publicado pela Edições
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Pois bem, como está a educação popular hoje? plo, em campanhas provisórias ou em movimentos
Como e quais práticas político-pedagógicas são rea- e programas de educação de jovens e adultos (EJA).
lizadas com crianças, adolescentes, jovens, adultos e Elas podem participar de uma educação oferecida
idosos reconhecidos como de algum modo perten- por instituições conveniadas quando uma escola,
centes a “classes”, “segmentos” ou “culturas” popu- por exemplo, é mantida com recursos públicos e
lares hoje no Brasil? com recursos e trabalhos civis, particulares, empre-
O “popular” não é tomado aqui somente sariais ou organização não-governamental (ONG).
como um adjetivo de teor ideológico, mas con- Elas podem participar de diferentes tipos de agên-
sideramos as condições materiais concretas das cias de treinamento, de qualificação profissional ou
pessoas. Seguidos censos nacionais do IBGE de formação da pessoa, criadas e mantidas por ins-
têm demonstrado que entre mendigos, desem- tituições patronais. Os casos e exemplos são mais
pregados crônicos, famílias abaixo do nível social numerosos do que imaginamos.
da pobreza segundo critérios da ONU, trabalha- Finalmente, elas podem participar de experiên-
dores submetidos a salários mínimos, as pessoas cias pedagógicas oferecidas por instituições civis e, de
populares somam cerca de das e dos brasileiros. algum tempo para cá, de cenários pedagógicos sob a
Pois bem, de que “educação” pode ou deve par- responsabilidade de governos municipais ou mesmo
ticipar esta imensa maioria de pessoas na atual estaduais, cuja proposta de trabalho cultural através
conjuntura brasileira? da educação inclui, de algum modo, as palavras e as
Elas podem participar da educação oferecida ideias contidas no ideário da educação popular.
pelas escolas públicas: os estabelecimentos de ensi- Como um exercício para pensar e buscar sen-
no municipais, estaduais ou mesmo federais. Além tidos, nos concentremos nas duas últimas possibi-
do que existe como oferta regular, podem se inserir, lidades. Sabemos que existe um interesse crescente
quando jovens ou adultos analfabetos, por exem- das empresas capitalistas (nacionais e o internacio-
nais) pela educação:
Loyola, de São Paulo, em 1998. Um terceiro é a não menos
proveitosa coletânea de textos organizada por Pedro Benjamim a) preocupam-se em qualificar os seus “qua-
Garcia em O pêndulo das ideologias – a educação popular e o de-
safio das ideologias, publicado pela Relume-Dumará, do Rio de
dros”, qualquer que seja o seu nível, sabendo que, a
Janeiro, em 1994. cada dia mais, possuir “pessoal” competente, educa-
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do e treinado é essencial para a eficácia da produção ator de um consumo que, dizem, move e moverá o
e o andamento dos negócios (a “qualidade total” está que se dá o nome de “nosso mundo”. Um mundo
fundada na qualificação competente de “quadros”); que, vemos e sabemos, globaliza economias e esquece
de planetarizar pessoas livres e felizes. E não tanto pelo
b) procuram intervir em políticas e em propostas que compram, mas através do como conseguem ser e
de educação, sabedores de que delas poderão resultar viver as suas vidas. Uma vida em que o trabalho e o
benefícios para o andamento e o desenvolvimento da mercado deveriam ser uma estação por onde se passa
estrutura e da lógica do mundo dos negócios, em um e nunca a viagem que se faz.
cenário cada vez mais “competitivo”; Portanto, no contexto atual, permanece presen-
te nas ações destinadas à classe ou setores populares
c) investem diretamente em educação, como uma diversidade de teorias e práticas que estão fun-
um crescente “bom negócio” entre outros negócios dadas em uma diferença muito essencial: intenciona-
dignos de aplicação financeira3. lidade das interações – de que decorrem seus proces-
sos e seus produtos. No caso da educação profissio-
Na sociedade capitalista, a pessoa educada é o su- nalizante, por exemplo, destinada majoritariamente
jeito produtivo e o lugar onde se afere o valor-de-uso às pessoas que não conseguem acessar a universidade
ou o valor-de-troca do saber não é a sociedade em que e dirigidas a alguma forma de trabalho operacional,
se vive, mas o mercado em que se produzem tipos de não existe, por certo, uma motivação forte em alterar
bens e serviços, modos de poder e estilos culturais, o na pessoa do sujeito-aprendente mais do que as suas
“ser alguém na vida”. Isto é, uma pessoa educada para qualidades enquanto um aprendiz que se capacita e
ser o sujeito competente, competitivo e produtivo em habilita a um tipo adequado e competente de exer-
um mercado em que tudo se vende e compra, e onde cício produtivo. Há uma instrumentalização funcio-
importa ver o sujeito produtivo transformado em um nal da educação que passa a ser dirigida pelas ações
de mercado, crescente no imaginário de educadores
3. A respeito deste tema, seria oportuno ler com atenção O e nas experiências didáticas das escolas.
banco mundial e as políticas educacionais, organizado por Lívia Em direção oposta, acreditamos que, ontem e
de Tommasi, Miriam Jorge Warde e Sérgio Haddad e publi-
cado pela Cortez Editora em convênio com a PUC-SP e a
hoje, a educação popular toma os seus sujeitos-edu-
Ação Educativa, em 2000. candos como atores ativos de um tipo de trabalho
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ao redor do ensinar-e-aprender. Um exercício cul- é apenas uma primeira ou segunda estação de uma
tural através da educação, em que a participação viagem que passa também pela e que deságua na for-
pessoal e interativa nos próprios processos de deci- mação do sujeito político, do cotidiano do bairro à
são a respeito de tudo o que envolve a comunida- história de seu tempo.
de aprendente de que tais atores são parte, faz parte Assim, hoje, no início do século 21, a educa-
da essência do próprio trabalho pedagógico. Eis o ção popular dever ser realizada de forma a reafirmar
momento em que iniciativas tais como conselhos de a sua essência, o compromisso com a causa do povo
escola, constituinte escolar, relação escola-comuni- e uma prática pedagógica que pergunte às pessoas
dade, orçamento participativo, economia solidária, quem elas são, que se abre a ouvi-las dizer como elas
organização de base e formação política deixam de desejam e não desejam ser; em que mundo querem
ser (ou deveriam deixar de ser) figuras de retórica viver; a que mundo de vida social estão dispostas a
partidária ou de determinados movimentos sociais ser preparadas para preservar, criar ou transformar.
para se transformarem no próprio fundamento do Claro, ontem como hoje, este tipo de intenção pode
processo de criação e de consolidação de práticas parecer algo muito ilusório; pode parecer mesmo
emancipatórias. E isto está ligado a um outro ponto uma utopia. Mas se a educação empresarial dirigi-
de origem da educação popular. O reconhecimento da a não-empresários trata de criar pessoas para um
dos sujeitos como pessoas humanas e como atores tipo de mundo social, porque não acreditar – se nós
sociais cujos direitos à participação dos processos de cremos que ele não é “o melhor dos mundos” – que é
decisão sobre as suas vidas, sobre os seus destinos e, possível pensar e pôr em prática, inclusive por meio
mais ainda, sobre os da sociedade em que vivem e do aparato público (“público” quer dizer: “de todos
da cultura de que são parte e partilham vão muito nós”), um tipo de educação que sonhe participar,
além do âmbito da aprendizagem institucional. Ela dentro e fora da sala de aula, da criação de pessoas
assume como tarefa sua a formação integral, crítica capazes de aprender a conhecer e a compreender por
e criativa do todo da pessoa de seus educandos. Ela conta própria, mas umas através das outras, o tipo
revisita sem cessar uma imagem cara a Paulo Freire: de sociedade em que vivem. Isso quando cremos que
ensinar a pessoa a ler palavras é apenas o primeiro “um outro mundo é possível”.
passo de um ensino-sem-fim do “ler o seu mundo”. Em um plano mais amplo, a educação popular
Habilitar atores produtivos em termos de trabalho deve criar condições para que o sujeito seja um ator cul-
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tural do dever solidário de criar, passo a passo, o mun- que vivemos é tanta que resulta difícil identificar as
do social da crescente plenitude dos direitos humanos, práticas condizentes com um “projeto neoliberal”.
estendidos a todos em todas as suas dimensões. Antes Nesse sentido, seria uma desistência ingênua não
de tornar-se um profissional competente em sua área de nos darmos conta de que este é, também, um mo-
interesse ou de vocação, ele estuda, cria saberes, apren- mento de escolhas. Um tempo de opções entre for-
de e ensina, sendo e para ser a pessoa participante que mas sociais de criar e viver a experiência polissêmica
se envolve em tornar-se corresponsável pela construção da educação, onde mais do que nunca projetos de
deste mundo. Apenas no contexto deste quadro univer- reprodução ou de recriação de mundos sociais são
sal em que somos criadores críticos de nossos mundos divergentes, mais do que apenas diferentes.
de vida cotidiana e dos rumos de nossos destinos e da A educação popular se volta contra o funda-
história que fundamos é que faz sentido sermos, tam- mento do modelo de sociedade, de práticas sociais
bém, uma força de trabalho. Esta é também a diferença associadas ao trabalho e ao capital, e de pessoas
entre o “fazer a vida vencer” e o “vencer na vida”. Que submetidas a uma tal vida e adequadas a uma tal
não se veja aqui um jogo de palavras!!! lógica de trocas de bens, de serviços e de sentidos
Vemos à nossa volta um crescimento ameaçador mercadológicos. Eis porque, em suas formas atuais,
de estilos de educação voltados a criar atores sociais experiências de educação popular não têm proble-
profundamente competitivos, individualistas e vol- mas em criar comunidades e pessoas aprendentes
tados a um projeto de realização de vida por meio da culturalmente desajustadas no tipo de mundo em
concorrência em busca do “sucesso”. De um sucesso que vivem. Pessoas que, desde o lugar de chão dos
desenhado em uma escala sem fim, não raro sugerido excluídos a que foram socialmente condenadas, acre-
como a razão do viver e a chave de toda a felicidade. ditam com os seus educadores que a educação não
Ora, a educação popular pretende conspirar contra muda o mundo. Mas que ela muda pessoas. E que
isto. Pretende ser “uma outra educação viável”. Sim, pessoas transformam os seus mundos.
uma outra concepção, uma alternativa. Um projeto Portanto, a educação deveria estar também diri-
múltiplo, mas convergente em ser o de uma educa- gida a lidar com pessoas para quem aprender venha
ção francamente oposta a toda a criação de pessoas, a ser algo próximo ao transformar-se em um alguém
de vocações e de identidades regidas pelo mercado. consciente e motivado a participar com outros de
No entanto, a complexidade do momento em um trabalho cultural e político destinado a criar um
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outro tipo de vida social, mais justa, mais humana, b) exige uma coerência entre a concepção teóri-
mais igualitária, mais livre, mais solidária. co-metodológica e o posicionamento político-peda-
O lugar que avalia o efeito da educação não gógico: a intencionalidade de construir a autonomia
é nem ela própria e nem o mercado do capital. É e emancipação dos sujeitos;
a qualidade da própria vida cotidiana, medida (se
isto se mede) pelo envolvimento de mais e mais c) os sujeitos populares são reconhecidos como
pessoas dispostas a serem, como dizíamos há mui- protagonistas do seu aprendizado e de sua emancipa-
tos anos – e por que não repetir agora? – “sujeitos ção – a aprendizagem é compreendida como proces-
protagônicos de seu próprio destino”. “Protagô- so e não como produto ou resultado;
nico” parece uma palavra pedante para os partici-
pantes dos grupos de base da educação popular. A d) o diálogo e o conflito são constitutivos do
menos que se diga a ele que a história dos grandes processo de aprendizagem, que deve se pautar e cons-
heróis montados a cavalo, com espadas e esporas, truir valores éticos, democráticos e emancipatórios.
foi construída por mulheres e homens como eles.
A menos que se diga a eles que “protagônico” pode Frente a essa compreensão de que a educação po-
ser alguém que se junta com outros para constru- pular é uma concepção de educação, evidencia-se que
írem juntos, ativos, conscientes e participantes, o esta possui uma “causa” e uma intencionalidade – a
seu próprio mundo, a sua própria vida. construção da autonomia dos sujeitos oprimidos. A
Para reafirmarmos e ressaltarmos o significado materialidade dessa concepção ocorre por meio de prá-
da educação popular na atualidade é conveniente ticas pedagógicas em diversos espaços: escolas popula-
apontarmos alguns elementos que definem a edu- res, movimentos e projetos sociais populares, pastorais
cação popular: sociais, ONGs, associações, sindicatos etc. Embora a
tarefa da educação popular seja histórica – a transfor-
a) é uma concepção fundamentada em um refe- mação da realidade opressora na perspectiva da liber-
rencial teórico-metodológico que parte da vivência e tação dos sujeitos –, a forma como o enfrentamento
da prática concreta dos sujeitos para desvelar a conjun- ocorrerá dependerá dos aspectos da conjuntura.
tura, os aspectos culturais e estruturais, na perspectiva Nesse início de século 21, a educação popular
de recriar o conhecimento e a ação transformadora; vem sendo concretizada em diferentes espaços edu-
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cativos, tanto formais como informais. Espaços es- mentação para construir uma força com uma pro-
tes que, por meio da vivência da educação popular, posta alternativa; isto implica fortalecer as redes e
revelam as contradições, experimentam o conflito, as articulações de iniciativas populares por meio de
o medo e a ousadia, buscam o diálogo e a cumpli- processos pedagógicos críticos e propositivos.
cidade rumo à intencionalidade provocada por essa
A educação como prática de liberdade, ao
concepção de educação: contrário daquela que é prática de dominação,
implica a negação do homem abstrato, isola-
a) no espaço escolar, a educação popular tem do, solto, desligado no mundo, assim também
buscado aprofundar a relação escola-comunidade, a negação do mundo como uma realidade au-
sente nos homens. (Freire, 2002, p.70)
como também democratizar a gestão e construir o
protagonismo infanto-juvenil; Embora a conjuntura apresente permanentes e
novos desafios, a prática pedagógica fundamentada
b) nos governos populares e nos projetos de na concepção de educação popular só será garanti-
ONGs progressistas, a educação popular tem sido a da se assumirmos a sua dimensão política, estética
referência para fomentar a participação popular no e ética. Isso implica a aceitação do novo, a rejeição
controle social das políticas públicas e nos espaços de da discriminação e a reflexão crítica sobre a prática,
democracia participativa – conselhos e fóruns; sem abrir mão do rigor metodológico, da pesquisa,
da competência, da criticidade, do respeito aos dife-
c) nos projetos e movimentos culturais e étnico- rentes saberes e do comprometimento.
raciais, a educação popular revela a prática da resistên- Por essa concepção, o diálogo pode criar, no
cia, da amorosidade, da tradição, da criatividade, da processo de construção do conhecimento, possibili-
estética e da solidariedade; dades para os sujeitos se compreenderem como em
constante aprendizado e se assumirem responsáveis
d) nos movimentos sociais e sindicatos popu- por ações que garantam atitudes e vozes. Portanto,
lares, a formação política e as estratégias de luta per- que rompam com as diversas formas de opressão
manecem sendo construídas pela educação popular, vigente em nossa sociedade e também revelem a di-
que na atual conjuntura enfrenta o desafio de con- versidade cultural, étnica e de gênero.
struir a unidade na diversidade, superando a frag-
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A conscientização não pode parar na etapa do
desvelamento da realidade. A sua autentici-
dade se dá quando a prática de desvelamento
da realidade constitui uma unidade dinâmica
e dialética com a prática da transformação.
(Freire, 1981, p. 117)
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