NARCISISMO E IDENTIFICAÇÃO: APLICAÇÕES E IMPLICAÇÕES
PSICOPEDAGÓGICAS
Júlia Eugênia Gonçalves
Meu desafio neste artigo é escrever a respeito das
aplicações e implicações de conceitos psicanalíticos relacionados ao campo teórico e prático da Psicopedagogia. Esta tarefa não é fácil, na medida em que o conhecimento psicopedagógico se encontra em fase de construção e a Psicanálise atualmente revê alguns de seus pressupostos diante das mudanças aceleradas por que passa a sociedade pós-moderna. O que pretendo nesta escrita, é estabelecer algumas relações entre os conceitos de narcisismo e identificação e os referenciais teóricos que embasam o trabalho psicopedagógico. Segundo Alícia Fernandez, as proposições de Freud que deram origem à Psicanálise, foram dirigidas às pessoas com inteligência liberta, mas abriram espaço para a Psicopedagogia se dirigir àquela cuja inteligência se encontra aprisionada. Neste âmbito se situa a Psicopedagogia: um conhecimento e uma prática voltados para o sujeito enquanto ser cognoscente e para seu processo de aprendizagem. Aprender é condição inerente e fundamental para que o sujeito possa emergir do estado puramente orgânico que se encontra ao nascer, construir um corpo e interagir com o outro em condição de humanidade. Para tanto, o psicopedagogo trabalha sempre numa região “entre” a subjetividade e a objetividade na medida em que o acesso ao conhecimento contempla ambas as vertentes estruturantes da personalidade. As pessoas que fazem um sintoma na aprendizagem geralmente imaginam que não pensam, que não são inteligentes, ou coisas do gênero. Isso é algo impossível, pois não existe sujeito humano que não pense. Pensar é condição de humanidade e a inteligência humana é diferente da dos demais animais, justamente porque possui a capacidade de auto-reflexão. O que existe, de fato, são pessoas que não se reconhecem pensantes, ou seja, que não se identificaram com esta possibilidade. Os processos de identificação, portanto, estão intimamente relacionados com a formação da “modalidade de aprendizagem” de cada pessoa, que se configura como um conceito de natureza estritamente psicopedagógica. A “modalidade de aprendizagem” é uma construção que forma parte da estrutura do sujeito. Não é funcional, mas estrutural. É permanente, mas não é fixa, pois pode ser reconstruída. É um modo de vincular-se um ensinante e um aprendente em relação ao conhecimento. Esse vínculo é construído desde muito cedo, fazendo parte das primeiras experiências do bebê com os pais e vai sendo transferido durante toda a vida entre o sujeito e os outros com quem convive, seja na condição de ensinante ou na de aprendente, o que vai ao encontro da perspectiva psicanalítica segundo a qual o infantil pode retornar, independentemente do estágio de desenvolvimento físico ou mental do sujeito. Desde as primeiras relações objetais, a modalidade de aprendizagem começa a tomar forma. Por meio da leitura que a mãe faz das necessidades da criança esta se estrutura ora como ensinante, ora como aprendente. Exercendo sobre o bebê um processo de violência simbólica primária, necessária para a estruturação subjetiva deste, a mãe se situa como aprendente na medida em que desconhece de fato as necessidades do filho, da mesma forma que ele também as desconhece porque elas brotam de um organismo. Situa-se diante de um conhecimento sobre um sujeito a partir de um total desconhecimento e, por isso, aprende com ele. Por outro lado, como participante da cultura e do universo simbólico, a mãe torna-se ensinante do bebê na medida em que atribui significações culturalmente estabelecidas para seus atos e necessidades, inscrevendo-o na rede de significantes. A reação do bebê a estes lugares ocupados pela mãe é a de situar-se no lugar oposto, ou seja, aprendente diante da mãe ensinante e ensinante diante da mãe aprendente. Entretanto, tais lugares só são significativos diante da relação de ambos com o conhecimento e, neste sentido pude perceber que a Psicanálise oferece amplas possibilidades de compreensão das patologias associadas a quadros de dificuldades de aprendizagem, oligotimia ou inibição intelectual, quando se refere ao transitivismo existente na relação mãe X filho. A mãe pode interpretar a criança sem estabelecer hipóteses baseadas em quaisquer dados da realidade, e esta, por sua vez, pode situar-se neste lugar em que a mãe a coloca e fixar-se numa posição patológica, posto que aquela lida com uma hipótese de saber que o bebê desconhece. Neste caso, a criança fica alocada em pontos fixos e, como os lugares de ensinante e aprendente são eminentemente móveis, as possibilidades de vinculação com o conhecimento ficam prejudicadas e a identificação é feita diretamente com a figura materna, sem a transitividade característica do esquema conceitual da “ modalidade de aprendizagem “. A figura abaixo ilustra a transitividade entre os três elementos que estruturam a modalidade de aprendizagem sadia, por pressupor deslocamentos entre os papéis e circulação de conhecimentos:
CONHECIMENTO
ENSINANTE APRENDENTE
Quando se dá este tipo de situação e a mãe realiza o
trabalho interpretativo que vai situar o organismo recém-nascido no corpo de um sujeito humano, abre-se uma primeira entrada no simbólico , completada, posteriormente , pela figura paterna, ou quem exerça tal função no Complexo de Édipo . Nos casos em que se estabelece dificuldades nesta relação interpretativa e a mãe não consegue estabelecer hipóteses para as necessidades infantis baseadas em inferências lógicas, pautadas em dados da realidade, a criança fica presa a uma teia imaginária na qual há uma identificação de seu desejo com o desejo do outro. Identifica-se com o que falta ao outro para conseguir atingí-lo, recuperando sua própria identidade. Eu penso que, neste aspecto, a Psicanálise traz uma grande contribuição à Psicopedagogia no tocante à compreensão dos fenômenos de aprendizagem, sobretudo a partir da contribuição de Lacan sobre os processos identificatórios. Quando a mãe não consegue se relacionar com o conhecimento, ela não se situa como aprendente. A criança pode, então, estabelecer uma identificação imaginária, de estrutura histérica e fazer um sintoma na aprendizagem, identificando-se diretamente com os traços maternos relacionados com a dificuldade em conhecer e estruturar um saber pautado em dados da realidade e expressos simbolicamente. Neste caso, a meu ver, a modalidade de aprendizagem do sujeito torna-se patológica porque o vínculo com o conhecimento não pode ser estabelecido de fato, mas existe como expressão do desejo do outro, ou seja, da mãe. O sujeito não surge como ser cognoscente e pode fazer quadros mais brandos ou severos dependendo das circunstâncias, porque não consegue se identificar com a falta, não é dono de seu desejo, assumindo este lugar fixo de desejo do outro, não pode construir um corpo capaz de aprender. Sara Pain diz que, no início, tanto o conhecimento quanto o desejo são do outro e que o futuro do bebê vai depender muito da organização que está fora dele e de como ele vai poder integrá-la. Acrescenta que para incorporar o desejo e o conhecimento do outro e então se tornar senhor de seu próprio desejo e conhecimento, o ser humano lida com quatro níveis de estruturação: organismo, corpo, estrutura cognitiva e estrutura dramática ou simbólica. A diferença entre organismo e corpo fica muito clara e decerto foi construída a partir de referenciais psicanalíticos. O importante é que esta autora salienta que o corpo é que aprende, não o organismo, cuja resposta é apenas instintiva. O corpo é o fruto da integração entre as outras estruturas e é a sede das ressonâncias afetivas. O corpo é a casa do sujeito, o local onde a humanidade pode se expressar, por meio de suas demandas, de seus desejos. A atuação psicopedagógica dirigida a um sujeito que não aprende, deve, portanto, incluir referenciais teóricos da Psicanálise como suporte para suas intervenções. É dirigida para a compreensão da modalidade de aprendizagem e para a construção de um sujeito pensante, a partir do trabalho sobre as manifestações sintomáticas relacionadas com o conhecimento. Assim como a Psicanálise tem no mito de Édipo uma fonte de explicação para a construção do sujeito, a Psicopedagogia tem no mito da árvore da sabedoria a explicação do lugar que o conhecimento ocupa no inconsciente das pessoas. Parafraseando Lacan, Alícia Fernandez diz que o inconsciente é estruturado como o “ paraíso “. Quando o sujeito conhece, sai do paraíso, sai do inconsciente. Conhecer é ser expulso do paraíso, do imaginário, da completude e lidar com a falta. Por isso, concluo este trabalho refletindo sobre o processo de identificação imaginária, pensando que muitas das pessoas que apresentam um problema de aprendizagem sintomático ou uma inibição cognitiva, são vítimas desta situação na qual o sujeito fica impedido de conhecer porque não é dono de seu próprio desejo e permanece preso a um lugar em que, como no paraíso, tudo é possível. Como ao “tudo” se contrapõe necessariamente o “nada", a aprendizagem não acontece. O sujeito não pode construir um conhecimento por medo de conhecer. O inconsciente ao se tornar “sabido” traz em si um grande perigo representado pelo medo de se destruir, de destruir aquilo com que se identifica.