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APRESENTAÇAO

Esse documento tem como objetivo sistematizar e socializar a produção no interior


do serviço social sobre o TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA ÁREA DA SAUDE. Para tal feito,
realizamos o levantamento de produções sobre o tema nas revistas Katalysis, Serviço Social e
Sociedade e Temporalis de 2010 a 2020.

A escolhas dessas revistas não ocorreu de forma aleatória, posto que, as duas
primeiras situam-se na qualificação máxima atribuída pela Capes (Qualis A1) e a última revista
mencionada é produzida pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social –
ABEPSS que, por sua vinculação, já demonstra a qualidade e compromisso crítico dos artigos
produzidos.

Os artigos presentes nessa sistematização trazem inúmeras contribuições para


pensar a atuação do assistente social nas mais diversas áreas de atuação no Âmbito da Política
de Saúde (atenção básica, saúde hospitalar, terceiro setor, etc...), desde considerações sobre a
relação dos assistentes sociais com usuários, até apontamentos sobre as rotinas de trabalho,
passando por analises quanto ao impacto da reforma do Estado nas condições de trabalho do
assistente social na saúde.

Esperamos que esse documento possa contribuir com assistentes sociais que já
atuam na área ao trazer reflexões de outros profissionais e outras instituições, bem como, com
estudantes de serviço social que gostariam de conhecer um pouco mais sobre a atuação do
assistente social na política de saúde.

Agosto de 2020.
Todo o conteúdo compilado das revistas, estão disponíveis em meio eletrônico
licenciados sob uma Licença de Atribuição Creative Commons metodologia
comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da
literatura científica em formato eletrônico.

É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou


quaisquer usos comerciais do presente conteúdo. Ignorar essa advertência
significa violar a lei nº 9610, de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta os
direitos autorais no Brasil.

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S UMÁRIO

EDUCAÇÃO EM SAÚDE E SERVIÇO SOCIAL: INSTRUMENTO POLÍTICO ESTRATÉGICO NA PRÁTICA PROFISSIONAL..........01

Marta Alves Santos, Mônica de Castro Maia Senna

Publicado em Revista Katalysis, 2017, v. 20, n. 3

AS PROFISSÕES EM SAÚDE E O SERVIÇO SOCIAL: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO PROFISSIONAL.............................10

Líria Maria Bettiol Lanza, Fabrício da Silva Campanucci, Letícia Orlandi Baldow

Publicado em Revista Katalysis, 2012, v. 15, n. 2

EXPRESSÕES CONSERVADORAS NO TRABALHO EM SAÚDE: A ABORDAGEM FAMILIAR E COMUNITÁRIA EM QUESTÃO...19

Guimarães, Eliane Martins de Souza

Publicado em Revista Serviço Social e Sociedade, 2017, n. 130.

O SERVIÇO SOCIAL ENTRE A PREVENÇÃO E A PROMOÇÃO DA SAÚDE: TRADUÇÃO, VÍNCULO E ACOLHIMENTO...........38

Sodré, Francis

Publicado em Revista Serviço Social e Sociedade, 2014, n. 117.

O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL EM CONTEXTOS HOSPITALARES: DESAFIOS COTIDIANOS................................53

Martinelli, Maria Lúcia

Publicado em Revista Serviço Social e Sociedade, 2011, n. 107.

O SERVIÇO SOCIAL NAS ONGS NO CAMPO DA SAÚDE: PROJETOS SOCIETÁRIOS EM DISPUTA...............................65

Machado, Graziela Scheffer

Publicado em Revista Serviço Social e Sociedade, 2010, n. 102.

SERVIÇO SOCIAL E O CAMPO DA SAÚDE: PARA ALÉM DE PLANTÕES E ENCAMINHAMENTOS.................................85

Sodré, Francis

Publicado em Revista Serviço Social e Sociedade, 2010, n. 103.


PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE: O SIGNIFICADO NO EXERCÍCIO

PROFISSIONAL..............................................................................................................................108

Débora Cristina da Silva, Tânia Regina Krüger

Publicado em Revista Temporalis, 2018, v. 18, n. 35

COMO A GENTE LIDA? A ATUAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA EM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA CONJUGAL..132

Iara de Souza Januário, Priscilla Brandão de Medeiros

Publicado em Revista Temporalis, 2018, v. 18, n. 35

TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE............................................................148

Edvânia Ângela de Souza Lourenço

Publicado em Revista Temporalis, 2017, v. 17, n. 34

TRABALHO PROFISSIONAL DOS ASSISTENTES SOCIAIS NA SAÚDE NA CONTRARREFORMA ESTATAL........................175

Gleiciane Viana Gomes, Liana Brito de Castro Araújo

Publicado em Revista Temporalis, 2015, v. 15, n. 30


DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592017v20n3p439 439

ARTIGO TEMA LIVRE

Educação em Saúde e Serviço Social: instrumento


político estratégico na prática profissional

Marta Alves Santos Mônica de Castro Maia Senna


Centro Universitário da Associação Brasileira de Ensino Universidade Federal Fluminense (UFF)
Universitário (UNIABEU)

Educação em Saúde e Serviço Social: instrumento político estratégico na prática profissional


Resumo: A Educação em Saúde é um dos principais instrumentos do trabalho profissional do assistente social no campo da saúde.
Assim sendo, reveste-se das dimensões ético-políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas que norteiam a competência profissional
do assistente social que precisam ser mais bem compreendidas para a apreensão crítica da realidade profissional e para subsidiar a
intervenção do Serviço Social. Este artigo traz alguns elementos para o debate em torno da Educação em Saúde como um dos instrumentos
de trabalho do assistente social na área da saúde. Para tanto, aborda a trajetória histórica da educação em saúde no interior da política de
saúde brasileira, destaca os principais paradigmas que têm orientado as ações de Educação em Saúde no país e elenca algumas questões
para reflexão sobre a dimensão ético-política da Educação em Saúde como campo de intervenção do assistente social.
Palavras-chave: Educação em Saúde. Serviço Social. Ações socioeducativas.

Education in Health and Social Work: A strategic political instrument in professional practice
Abstract: Education about healthcare is one of the main instruments of the professional work of social assistants in the field of
healthcare. It therefore uses ethical-political, theoretical-methodological and technical-operatives, which are dimensions that guide the
professional action of social workers and that are essential to a critical understanding of the professional reality and to supporting the
intervention of social work. This article raises some elements for the debate about education in health as one of the working instruments
of social workers in the field of healthcare. To do so, it addresses the historic trajectory of education in health within Brazilian healthcare
policy, highlights the main paradigms that have guided the actions of healthcare in the country and raises some questions for reflection
about the ethical-political dimension of education in health as a field of intervention of social workers.
Keywords: Education in health. Social work. Socio-educational actions.

Recebido em 15.03.2017. Aprovado em 26.05.2017.

R. Katál., Florianópolis, v. 20, n. 3, p. 439-447, set./dez. 2017 ISSN 1982-0259

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440 Marta Alves Santos e Mônica de Castro Maia Senna

Introdução

A área da saúde tem se constituído, ao longo do tempo, em um dos principais campos de atuação
profissional do assistente social no Brasil. Dentre as ações desenvolvidas pelo profissional de Serviço Social
nessa área, merecem destaque aquelas vinculadas à Educação em Saúde que, embora não exclusivas do
assistente social, tem sido uma das mais constantes e frequentemente requisitadas a esse profissional, sobretu-
do no âmbito da chamada Atenção Primária em Saúde.
Mais do que um procedimento exclusivamente técnico, a Educação em Saúde reveste-se de uma dimen-
são social e ético-política e, como tal, produz “[...] efeitos reais na vida dos sujeitos” (IAMAMOTO, 1999, p.
67), na medida em que veiculam determinados interesses e compromissos de classe. Isto posto, entende-se que
é preciso considerar as concepções, finalidades e objetivos que orientam tais ações.
É possível identificar diferentes concepções de Educação em Saúde que se colocam em disputa ao
longo da trajetória da política de saúde no país. Em linhas gerais, pode-se afirmar que a concepção hegemônica
baseia-se em uma noção restrita do processo saúde-doença a seus aspectos biológicos, reforçando a respon-
sabilidade individual na promoção e garantia da saúde. Desse modo, a Educação em Saúde tende a se consti-
tuir em um instrumento de dominação e de afirmação do saber dominante, visando apenas à integração do
usuário às condições sociais, políticas e econômicas em que vive. Ao mesmo tempo, desconsidera a perspec-
tiva ampliada de saúde como produto das relações sociais vigentes, tal como defendida pelo movimento da
Reforma Sanitária brasileira a partir dos anos 1970.
Outras formas de conceber e de trabalhar a Educação em Saúde têm desafiado a concepção hegemônica,
contribuindo para o reconhecimento da saúde como um processo de construção coletiva e dos sujeitos envol-
vidos como autores de sua própria história. Tais concepções advogam que a Educação em Saúde não se
operacionaliza pela mera transferência de informação, o que reforça a subalternização dos usuários, mas, ao
contrário, pode contribuir para enfatizar a participação social dos usuários e produzir conhecimento crítico da
realidade. Segundo Nogueira e Mioto (2006), a Educação em Saúde e sua promoção estão vinculadas à
eficácia da sociedade em efetivar, de fato, a implantação de políticas públicas voltadas para a qualidade de vida
e ao desenvolvimento da capacidade de contextualizar criticamente a conjuntura em que está inserida, a fim de
contribuir para a transformação real dos fatores determinantes da condição de saúde. Uma proposta de Edu-
cação em Saúde objetiva socializar o conceito de consciência sanitária.
Torna-se fundamental, desse modo, que o profissional de Serviço Social priorize ações coletivas que
democratizem informações e conhecimentos necessários para a promoção, prevenção e recuperação da saú-
de, a partir de uma prática educativa crítica, que fortaleça a autonomia dos sujeitos e que seja construída por
dois sujeitos sociais: profissionais e usuários.
Esse artigo busca contribuir nessa direção, trazendo elementos para o debate em torno da Educação em
Saúde como um dos instrumentos de trabalho do assistente social na área da saúde. Inicialmente, aborda a trajetória
histórica da educação em saúde no interior da política de saúde brasileira. Em seguida, destaca os principais paradigmas
que têm orientado as ações de Educação em Saúde no país. Por fim, elenca algumas questões para reflexão sobre
a dimensão ético-política da Educação em Saúde como campo de intervenção do assistente social.

Educação em Saúde na trajetória histórica da política de saúde brasileira

Entende-se que as concepções de Educação em Saúde estão profundamente imbricadas com os mode-
los de atenção à saúde constituídos no Brasil, os quais, por sua vez, são parte integrante dos processos sociais,
políticos e econômicos mais amplos em diferentes contextos históricos. Nesse sentido, cabe reconhecer que a
emergência da Educação em Saúde como campo de prática se dá de forma articulada ao que vem a se
constituir a Saúde Pública no Brasil (MARQUES, 2006).
No início do século XX, o Estado brasileiro amplia suas ações dirigidas à coletividade, visando a comba-
ter as epidemias que atingiam os interesses econômicos das elites dominantes, em especial os setores da
produção e exportação de café e da incipiente indústria nacional. Institucionalizava-se a Saúde Pública como
área de intervenção estatal, dando ênfase a medidas higienistas de saneamento e controle de doenças, elegen-
do os cortiços – local de moradia da classe trabalhadora de mais baixa renda – como foco central das interven-
ções sanitárias. Predominavam percepções que imputavam à classe trabalhadora a responsabilidade pela falta
de higiene, pela ausência de saneamento e pela precariedade das condições de vida.
Dentro desse contexto, a Educação em Saúde ganha força como importante mecanismo de normaliza-
ção de comportamentos das classes populares, assumindo um caráter disciplinador e repressivo. Como salien-
tam Smeke e Oliveira (2001, p. 118), no Brasil, a Educação em Saúde “tem origem marcada por um discurso

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e prática normatizadores. Esses discursos operavam no sentido de uma conduta racional e laica perante a
doença, contrapondo-se à ideologia místico-religiosa, então predominante”.
Essa tendência é realçada nas análises de Costa (1984, p. 7), ao afirmar que

A estratégia de educação em saúde foi regulamentar, enquadrar, controlar todos os gestos, atitudes, com-
portamentos, hábitos e discursos das classes subalternas e destruir ou apropriar-se dos modos e usos do
saber estranhos a sua visão do corpo, da saúde, da doença, enfim, do ‘bom’ modo de andar a vida.

O caráter extremamente autoritário das práticas educativas no período foi destacado por Silva et al.
(2010), que identificam a influência do modelo alemão da Polícia Médica. De acordo com os autores, nesse
contexto foi criada a política sanitária no Brasil com atuação assentada no discurso da higiene com imposição
de normas e regras.
Inflexões ganham vulto a partir dos anos 1930, quando o Brasil dá impulso ao processo de industrializa-
ção e o Estado passa a intervir na questão social. Com a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão
(IAP), tem início a atenção sanitária voltada aos trabalhadores, demarcando o padrão dual de organização da
política de saúde que vigoraria até a Constituição Federal de 1988, caracterizado, em linhas gerais, pela conju-
gação de ações de saúde pública, de caráter preventivo e voltado às coletividades a ações de assistência
médica com enfoque individual e predominantemente curativa (BRAVO, 2004).
No campo específico da Educação em Saúde, assiste-se, no período, ao avanço da influência norte-
americana, por meio do desenvolvimento da educação sanitária. Essa perspectiva criticava o modelo autoritá-
rio anterior, apontando sua baixa eficácia diante de demandas relacionadas à saúde da criança e do trabalhador
que se apresentavam naquele momento. Assim, propunha ações persuasivas e de conscientização em que
os métodos educativos eram propostos com base na crença de que boas condições de saúde passavam pela
consciência sanitária dos indivíduos (SILVA et al., 2010).
Com forte influência eugenista, a educação sanitária foi introduzida nas escolas públicas brasileiras,
tendo por base a concepção de que aspectos de moral e bom comportamento possibilitariam o ajuste dos
indivíduos a uma vida considerada normal perante a sociedade. De acordo com Silva et al. (2010), entendia-se
que o acesso a informações sobre hábitos saudáveis levaria aos setores populares a consciência sobre compor-
tamentos insalubres e isso seria suficiente para mudanças nesses comportamentos.
Essa tendência é reforçada nos anos seguintes, no bojo do fortalecimento do denominado sanitarismo-
desenvolvimentista. Trata-se, em linhas gerais, de uma ideologia baseada na crença de que o nível de saúde de
uma dada sociedade está atrelado ao grau de desenvolvimento do país. Nesse sentido, as ações de educação
em saúde são enfatizadas como estratégicas para melhorar as condições socioeconômicas da população,
ancoradas no plano disciplinador, individual e cultural.
A ditatura militar interrompeu os intentos participacionistas que caracterizaram a ação estatal do período
populista. Há reformulações importantes no sistema de saúde brasileiro, com unificação dos IAP no Instituto
Nacional da Previdência Social (INPS) e posterior incorporação ao Sistema Nacional da Previdência Social
(SINPAS). Como sinaliza Bravo (2007), tratava-se de um processo de modernização estatal, em que o Estado
aumentava seu poder regulatório sobre a sociedade e, ao mesmo tempo, desmobilizava as forças políticas que
estavam em cena no período anterior.
Durante o período ditatorial, a política de saúde privilegiou o setor privado, por meio de um dado
padrão de intervenção estatal que incentivava a extensão da cobertura previdenciária via oferta privada e
financiamento público. Consolidava-se a hegemonia do modelo médico curativo, hospitalocêntrico, individual
e especializado, por meio da articulação do Estado aos interesses das indústrias farmacêuticas, de equipa-
mentos médicos e seguros saúde.
Em contraposição ao regime autoritário, ganhava terreno uma abordagem histórico-estrutural dos pro-
blemas de saúde, impulsionada pelos Departamentos de Medicina Preventiva das Faculdades de Medicina e
pela crescente efervescência dos chamados novos movimentos sociais. Afirmava-se a noção de saúde-doen-
ça como um processo socialmente determinado, chamando atenção para aspectos-chave como sua articulação
com o mundo do trabalho, a prática social da medicina e a tendência de medicalização da sociedade. Ao
mesmo tempo, cresciam as críticas ao Estado autoritário e ao modelo médico hegemônico, com defesa da
mobilização e participação da sociedade civil.
Nesse contexto, há uma reformulação no campo da Educação em Saúde. De acordo com Marques
(2006), mudanças na nomenclatura do campo indicavam diferentes concepções e orientações para o desenvol-
vimento das ações educativas na área da saúde. Há uma tendência à adoção de uma perspectiva mais demo-
crática, em grande parte impulsionada pelo emergente movimento sanitário. Todavia, foram grandes as resis-
tências por parte dos segmentos hegemônicos, principalmente das indústrias farmacêuticas e da Federação

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Brasileira de Hospitais, que se articulavam aos governos militares e assumiam a hegemonia no processo
decisório em torno da política de saúde.
Nesse contexto, cabe destacar a influência recebida do método de Educação Popular, elaborado por
Paulo Freire (1987, 2014), para o desenvolvimento da Educação em Saúde. Este método se ancora na aliança
entre técnicos e classes populares, valorizando o saber popular e considerando essa aliança uma troca de
experiências de saberes diferenciados. Mais ainda, a Educação em Saúde passou a ser vista como um proces-
so capaz de possibilitar a conscientização dos grupos sociais desfavorecidos sobre suas condições de vida e
saúde e, desse modo, uma estratégia fundamental para a superação de tais condições (MARQUES, 2006).
Sob essa ótica, e referenciadas pela Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde
ocorrida em Alma Ata no ano de 1979, várias experiências locais em torno da saúde foram desenvolvidas pelo
país, sendo a Educação em Saúde importante eixo aglutinador para onde convergiam iniciativas de resistência
e oposição ao regime militar.
No contexto de transição democrática da década de 1980, a luta pela saúde pública se ampliou no Brasil,
e as propostas advindas de várias manifestações sociais ganharam visibilidade. Nesse período, eventos impor-
tantes na área da saúde revelaram um campo de tensão constante entre os interesses de cunho capitalista e
aqueles postos pelas mobilizações que buscavam implementar uma política sanitária mais igualitária.
Um marco nesse processo foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), ocorrida em 1986 e que
contou com a participação não apenas de setores do governo – como era até então – mas, de forma então
inédita, com profissionais de saúde e representantes dos movimentos sociais. Denunciando as precárias condi-
ções de organização da atenção à saúde e reivindicando maior responsabilização pública e níveis de equidade
e justiça social, o relatório final da 8ª CNS encampou os princípios da participação, da equidade, da integralidade
e da universalização, que serviram de base para a elaboração do capítulo da saúde na Constituição de 1988.
O campo da Educação em Saúde também sofreu influências do clima democrático que se destacava no
país. Propostas com ideais inovadores se confrontavam com o modelo tradicional de educar no âmbito da
saúde. Segundo Silva et al. (2010), novas abordagens em educação em saúde buscavam promover o cresci-
mento da capacidade crítica da realidade, como também, aperfeiçoar formas de lutas, resistência e enfrentamento.
A partir de um olhar crítico e pedagógico, a educação em saúde adquiriu um perfil democrático que possibilitou
fomentar a participação e as ações coletivas em direção à perspectiva de transformação social.
Mas a tensão entre concepções distintas sobre Educação em Saúde se faz presente no processo de
construção e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), esse também atravessado por disputas entre
projetos distintos. Verificam-se continuidades e também mudanças em relação aos princípios defendidos pela
Reforma Sanitária brasileira, com avanços importantes em termos de cobertura das ações sanitárias, do pro-
cesso de descentralização e pactuação entre os três níveis de governo e da ampliação da arena decisória,
dentre outros. No entanto, o subfinanciamento setorial, o potente viés mercadológico da saúde e a expansão do
subsistema privado, em grande parte subvencionada por recursos públicos, configuram limites estruturais às
mudanças no modelo de atenção e de gestão pública.
A implantação da Estratégia Saúde da Família e a institucionalização das Políticas Nacionais de Atenção
Básica - PNAB (BRASIL, 2006a), de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006b) e de Educação Popular em
Saúde - PNEPS (BRASIL, 2012) – iniciativas que ganham potência na segunda metade dos anos 2000 –
abrem espaço para o fortalecimento da Educação em Saúde, sendo marcadas pela tensão entre concepções
mais restritas que associam as práticas educativas à mera transmissão de conhecimento ou mudança de
comportamentos e abordagens que enfocam a participação, o diálogo, a troca de saberes e a busca da eman-
cipação e da autonomia dos sujeitos. Esse rumo significa enfocar a participação na saúde como ferramenta
para efetivar uma política de saúde mais democrática e equitativa.

Educação em Saúde no Brasil: principais paradigmas

Como demonstra sua trajetória histórica, a Educação em Saúde assume concepções diversas em
diferentes contextos sociais. Concepções essas que incidem na forma de agir e implementar ações
socioeducativas, na medida em que expressam modelos distintos e mesmo divergentes. A literatura que trata
da Educação em Saúde tem sido unânime em identificar a existência de duas grandes matrizes de aborda-
gem ou modelos de Educação em Saúde que têm influenciado as práticas sanitárias no Brasil: o chamado
modelo tradicional e o modelo dialógico. Essas matrizes tendem a assumir posições polares no debate em
torno da temática da Educação em Saúde.
Nesses termos, caracteriza-se o modelo tradicional de educar em saúde como um modelo de educação
bancária, em que a função do educador é depositar conteúdos aos educandos. A educação torna-se verticalizada

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Educação em Saúde e Serviço Social: instrumento político estratégico na prática profissional 443

e o educador disciplina, prescreve sua opção, dita e escolhe o conteúdo programático. Enfim, o educador é
sujeito do processo e os educandos, meros objetos que se submetem a ele.
A educação, no âmbito da saúde, construiu sua história sob esse molde tradicional. Os educandos são
considerados carentes de informação em saúde e a eles são prescritos hábitos e comportamentos ditos como
saudáveis. São ditadas normas e regras de como agir para manter a saúde. Tal fato procede com a memorização
do conteúdo narrado pelo educador.
Normas e regras ditadas perpassam pela relação de poder. Tomando por referência o trabalho de Foucault
(1979), entende-se que o poder está em toda parte, pois ele não existe sozinho em si. O poder funciona e
materializa-se através das práticas e relações sociais. Há certa funcionalidade do poder que não está alocado
em determinado lugar, mas perpassa por todos os lugares, pelas relações que se estabelecem na sociedade.
O modelo tradicional de educar em saúde não apresenta o poder como repressor, pois Foucault (1979)
afirma que existe outro lado do poder. A concepção de que o poder produz saber, pois nesse processo poder/
saber há o sujeito que conhece e outro que recebe as informações e necessita adquirir conhecimento. Há,
portanto, um processo de disciplinamento.
O modelo tradicional que dita normas aos usuários da saúde segue essa linha de pensamento alicerçado na
disciplina. Torna-se visível o controle do corpo, dos seus gestos e comportamentos, pelas técnicas de poder que
são concebidas como disciplina, configurando-se uma relação de adestramento. Essa forma de educar cria usu-
ários submissos e dóceis em termos de aceitação do que é dito e de obediência. O indivíduo não é sujeito de ação,
é um depósito bancário de informações, nos termos de Freire (1987) ou um produto de disciplina, conforme
Foucault (1979). Além disso, desconsidera a realidade dos usuários, tornando a prática educativa lassa e acrítica.
No entanto, há outros modelos de Educação em Saú-
de que surgem no Brasil como forma de resistência ao mo-
delo tradicional. Trata-se do modelo dialógico, que apresen- A Educação em Saúde que
ta o diálogo como fundamento teórico e metodológico e tor-
na o usuário protagonista da prática educativa. Em outros aponta o diálogo como eixo
termos, o educando torna-se sujeito de sua própria história,
responsável também pela construção de novos
central do processo educativo
posicionamentos no processo saúde-doença-cuidado. Por- inscreve a educação popular
tanto, tende a estabelecer interlocução e uma visão crítica
da realidade, das demandas e serviços de saúde, fortalecen- em saúde como instrumento de
do as condições de possíveis estratégias de transformação.
Segundo Vasconcelos, E. M. (2011), o diálogo deli- gestão participativa da ação
neia soluções e orienta as práticas educativas, contribuindo
para a superação do biologicismo, da autoridade do profissi- social. Surge como processo
onal de saúde e do enfoque restrito na doença. O modelo
dialógico busca a construção ampliada de saúde no campo inovador de práticas
sanitário. O autor afirma que a educação popular em saúde
é percebida como estratégia de construção de uma saúde
educativas que tende a romper
mais adequada à vida da população e utiliza o diálogo como com o modelo tradicional.
um dos seus atributos. Tendo como base esse paradigma, o
processo educativo na saúde não viabiliza apenas a produ-
ção de uma nova consciência sanitária, mas também for-
talece e favorece a democratização das políticas públicas. Autores como Figueiredo, Rodrigues Neto e Leite
(2010) e Alves (2005) descrevem o profissional de saúde como um educador que estimula a autonomia dos
usuários, reconhecendo-o como sujeito de sua história e do processo educativo em saúde.
A Educação em Saúde que aponta o diálogo como eixo central do processo educativo inscreve a educa-
ção popular em saúde como instrumento de gestão participativa da ação social. Surge como processo inovador
de práticas educativas que tende a romper com o modelo tradicional.
Tais experiências inovadoras nas práticas educativas eram construídas a partir do diálogo entre o saber
popular e o acadêmico, e já nos anos 1970 muitos profissionais da saúde faziam interlocução com os movimen-
tos sociais das periferias urbanas e territórios rurais. Vasconcelos, A. C. C. P. (2013) relata que nesse período
iniciavam-se experiências inovadoras de serviços comunitários que, desassociados do Estado, ampliavam rela-
ções com grupos populares, considerando a dinâmica local da região.
Nesse prisma, vários segmentos de profissionais de saúde buscam, a partir dos anos 1970, uma ruptu-
ra com o modelo tradicional e autoritário de Educação em Saúde que dita normas e disciplinas aos usuários.
Surge no âmbito sanitário uma nova cultura de relação com as classes populares, que insere um ambiente de
troca de saberes e diálogo entre os sujeitos do processo educativo. Muitas dessas experiências educativas

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444 Marta Alves Santos e Mônica de Castro Maia Senna

contribuíram para fortalecer e disseminar as proposições em torno da Reforma Sanitária brasileira. Não é
exagerado afirmar que muitos dos profissionais que atuavam no campo da Educação Popular em Saúde
integravam o chamado movimento sanitário.
Com a implantação do SUS ao final da década de 1980 – e seus princípios da universalidade, equidade
e integralidade –, as experiências de educação popular em saúde continuaram a persistir em favor de política
de saúde mais igualitária e participativa. Muitos profissionais engajados com a luta pela efetivação do SUS
adotaram a metodologia de educação popular em saúde como estratégia para o fortalecimento da participação
popular na gestão e na orientação de novas formas de conduzir a política pública de saúde.
Segundo Vasconcelos, E. M. (2013), a educação popular não busca criar sujeitos subalternos polidos,
limpos e bebendo água fervida. Seu propósito é estimular a participação para a organização do trabalho político
que abre os caminhos para as conquistas dos direitos. O objetivo desse processo educativo consiste em apurar,
organizar, aprofundar o pensar e o agir dos diversos sujeitos subalternos à lógica da sociedade. O pensar e o
agir a partir de uma visão crítica tornam-se eixos fundantes na construção de uma sociedade solidária e justa.
Segundo Vasconcelos, E. M. (2013), a educação popular pode ser sintetizada como a formação de pessoas
mais críticas e dispostas a almejar uma melhor contribuição a sua condição econômica, cultural, política e
sanitária.
No entanto, para formar pessoas críticas que redesenham as relações sociais existentes, a educação popular
inscreve um novo modelo de operacionalizar ações educativas. Não é coerente impor conteúdo, objetivos, regras de
comportamentos e atitudes vistas como as corretas, mas também não é a veneração da cultura popular. Há, portanto,
a troca, o intercâmbio das experiências e da participação, e nessa dinâmica o diálogo torna-se peça fundamental.
Sob essa luz, a educação popular em saúde abrange a integralidade de forma mais precisa e ampliada,
pois as abordagens em diversas dimensões recaem além dos problemas pessoais. Abarcam dimensões políti-
cas, culturais, econômicas, locais e societárias. Vasconcelos, E. M. (2013) afirma que a educação popular em
saúde é instrumento de promoção voltado para a formação da cidadania ativa.
Para tanto, o cotidiano em saúde necessita ser trabalhado e desvelado em suas variadas dimensões no
caminho da construção da democracia, da justiça, da solidariedade e da superação das múltiplas expressões da
desigualdade social. No entanto, seguir nesses rumos significa encarar desafios constantes do dia a dia profis-
sional, principalmente no âmbito do SUS.

Educação em Saúde como potencializador político no Serviço Social

Ao se considerar a Educação em Saúde como um dos instrumentos centrais do trabalho profissional do


assistente social no âmbito da saúde, torna-se necessário reconhecer que a mesma é constituída pelas dimen-
sões ético-políticas, teórico-metodológicas e técnico-operativas que modelam o trabalho profissional. Nessa
direção, mais do que uma questão de ordem exclusivamente técnica, a Educação em Saúde está diretamente
relacionada aos projetos societários presentes e em disputa em determinado momento histórico.
Ao realizar um estudo sobre a produção bibliográfica do Serviço Social referente às ações socioeducativas,
Lima e Mioto (2011) assinalam que a partir do Movimento de Reconceituação do Serviço Social no Brasil, tais
ações são enfatizadas com base no reconhecimento de seu potencial para o fortalecimento de processos
emancipatórios.

Com ela [a ênfase nas ações socioeducativas] espera-se contribuir para a formação de uma consciência
crítica entre sujeitos, através da apreensão e vivência da realidade, para a construção de processos demo-
cráticos, enquanto espaços de garantia de Direitos, mediante a experiência de relações horizontais entre
profissionais e usuários. Nesse processo educativo, projeta-se a emancipação e a transformação social.
(LIMA; MIOTO, 2011, p. 217-218).

No entanto, como chamam atenção as autoras, é preciso atentar para a armadilha, bastante comum na
profissão, de considerar que a simples invocação dos princípios de autonomia, emancipação e participação é
condição suficiente para que projeto ético-político da profissão se materialize nas ações socioeducativas.
Como mencionado, a educação popular em saúde no SUS busca não apenas reverter o quadro de saúde
da população envolvida, como também fortalecer e intensificar a participação, o que viabiliza a democratização
das políticas públicas e da promoção da saúde. Nesse sentido, essa perspectiva se articula aos princípios que
orientaram a criação do SUS, quando se tem como referência a participação, a promoção e as ações integra-
das como componentes fundantes do sistema público de saúde.

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Educação em Saúde e Serviço Social: instrumento político estratégico na prática profissional 445

Nesse contexto é importante o trabalho profissional do assistente social no que tange à Educação em
Saúde, entendendo-o enquanto um profissional da saúde que atua nas relações sociais entre os sujeitos e no seu
cotidiano, através de uma ação socioeducativa que objetiva desenvolver educação permanente em saúde, a fim
de socializar e democratizar informações. Vasconcelos, A. M. (2006) registra que uma proposta socioeducativa
do profissional de Serviço Social na saúde politiza as demandas, enfatiza a participação social dos usuários,
produz o conhecimento crítico da realidade e aposta na constante busca da autonomia dos sujeitos sociais. Por
isso, reforça-se a ideia que a Educação em Saúde deve ser pensada como instrumento teórico-metodológico e
ético-político do exercício profissional, que pode fomentar sua transformação qualitativa em direção aos inte-
resses dos usuários e à satisfação das necessidades dos segmentos menos favorecidos.
O ato da Educação em Saúde pode contribuir para o profissional de Serviço Social articular as diversas
mediações e contradições que surgem no cotidiano dos espaços sócio-ocupacionais, potencializando outras
formas de condução das dimensões metodológicas e políticas que transforme a realidade. Nesse sentido, o
assistente social deve conhecer a realidade do usuário e priorizar ações educativas coletivas que apostem na
emancipação humana. Evidencia-se, portanto, o caráter essencialmente político do exercício profissional do
Serviço Social. Assinala-se a relevância do desenvolvimento de ações mediadoras pedagógicas, ético-políticas
que contribuam para formação da sensibilidade crítica dos usuários.
A prática profissional do assistente social possui dimensão socioeducativa e fomenta a operacionalização
do projeto ético-político da profissão, o que pode viabilizar meios de construir a transformação social no cotidi-
ano dos usuários.

Considerações Finais

A partir do exposto, observa-se que a Educação em Saúde é atravessada por concepções e propostas
distintas e mesmo antagônicas, que se colocam em disputa ao longo de sua trajetória histórica. Longe de se
constituir em uma perspectiva ultrapassada, abordagens disciplinadoras, normalizadoras e estigmatizantes de
educação em saúde se fazem presentes na atuação profissional na cena contemporânea, sendo desafiadas por
outros enfoques, em que as ações de educação em saúde configuram-se em eixo articulador entre a análise
crítica da realidade social e a busca de possibilidades de transformá-la.
À dimensão técnico-operativa e teórico-metodológica que reveste esse campo de atuação profissional, asso-
cia-se a dimensão ético-política, as quais estão profundamente imbricadas entre si. Tal imbricação permite romper
com noções que restringem a educação em saúde a um ato voluntarista por parte de seus agentes, recuperando
interseções entre as condições objetivas do fazer profissional ao compromisso ético-político profissional.
Enfatiza-se, nesse sentido, que a educação em saúde apresenta potencial para o fortalecimento de processos
emancipatórios dos sujeitos envolvidos, em direção à formação de uma consciência crítica da realidade, à garantia de
direitos e à transformação social. De fato, o assistente social pode operacionalizar uma prática educativa e interventiva
a partir da leitura crítica da realidade em que atua, reconfigurando, portanto, ideias e ações que perpassam a dinâmi-
ca social marcada por contradições e correlações de forças. Igualmente, pode integrar e fomentar formas de
participação da população no contexto de sua vida cotidiana, mediante a construção de processos democráticos
baseados no estabelecimento de relações horizontais entre profissionais e usuários.
Encaminhar uma sistematização da prática profissional no âmbito da saúde que reforce o projeto ético-
político da profissão pode contribuir para a viabilização de práticas educativas potencializadoras nos rumos da
participação, autonomia e visão crítica da realidade e na construção de novas relações sociais no âmbito sanitário.
No entanto, trilhar esses rumos significa superar desafios postos pelo atual contexto de acumulação capi-
talista e sua expressão na sociedade brasileira, que atingem as políticas públicas como um todo, não deixando a
saúde isenta desse processo. Diante de tempos sombrios, cada vez mais se faz necessário apostar no coletivo nas
formas de intervenção, nas estratégias de fortalecimento da mobilização e na participação dos usuários onde os
grupos educativos podem ser estratégicos desse processo. Em suma, há de se apostar no acompanhamento das
dinâmicas societárias, como também na capacitação permanente dos profissionais de Serviço Social.

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Marta Alves Santos


santosmarta960@gmail.com
Doutorado em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Assistente Social da Prefeitura Municipal de Niterói
Professora do Centro Universitário da Associação Brasileira de Ensino Universitário (UNIABEU)

UNIABEU
Rua Desembargador Athayde Parreiras, 266 – Bairro de Fátima
Niterói – Rio de Janeiro – Brasil
CEP: 24.070-090

Mônica de Castro Maia Senna


monica.senna20@gmail.com
Doutorado em Ciências – Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP/ FIOCRUZ)

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Educação em Saúde e Serviço Social: instrumento político estratégico na prática profissional 447

Professora Associada da Escola de Serviço Social e do Programa de Estudos Pós-graduados em Política


Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)

UFF
Rua Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n. – Bloco E – 3º andar
Campus Universitário do Gragoatá – Bairro São Domingos
Niterói – Rio de Janeiro – Brasil
CEP: 24.210-201

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212

PESQUISA

As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios


para a formação profissional

Líria Maria Bettiol Lanza Letícia Orlandi Baldow


Universidade Estadual de Londrina (UEL) Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Fabrício da Silva Campanucci


Universidade Estadual de Londrina (UEL)

As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios para a formação profissional


Resumo: O objetivo deste estudo bibliográfico é compreender como o Serviço Social tem enfrentado o processo de revisão da formação
profissional ofertada para o trabalho em saúde. Inicia pela compreensão do que vem a ser uma profissão em saúde, localizando o Serviço
Social e sua vinculação com a área destacando o aspecto formativo. Dessa forma, verifica que é legítima a configuração do Serviço Social
como profissão em saúde, tanto do ponto de vista conceitual como do ponto de vista prático, evidenciado pela vinculação histórica da
profissão e por sua utilidade social nos serviços de saúde. Ainda, aponta para os desafios da atuação profissional no contexto conflituoso
da política de saúde brasileira e suas implicações na formação profissional.
Palavras-chave: Profissões em saúde. Serviço Social. Formação profissional.

Healthcare Professions and Social Work: Challenges for Professional Education


Abstract: The objective of this bibliographic study is to understand how Social Work has faced the process of revising the professional
education offered for work in healthcare. It begins with the understanding of what is a healthcare profession, locating Social Work and
its ties with the field and highlighting educational aspects. In this way, it verifies that it is legitimate to configure Social Work as a
healthcare profession, both from a conceptual and practical perspective, revealed by the historic ties of the profession and its social
utility in healthcare services. It also points to the challenges to professional activity in the conflictive context of Brazilian healthcare
policy and its implications for professional education.
Keywords: Healthcare professions. Social Work. Professional education.

Recebido em 15.03.2012. Aprovado em 10.07.2012.

R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 212-220, jul./dez. 2012

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As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios para a formação profissional 213

Introdução da persiste a herança do status social para as profis-


sões tidas como “mais tradicionais”. Um bom exem-
A contemporaneidade possui traços de uma soci- plo é a Medicina, considerada a profissão em saúde
edade profissionalizada e alicerçada no trabalho es- por excelência e uma das mais cotadas quando o
pecializado, fruto do processo de industrialização em quesito é reconhecimento, seja pela questão econô-
que os antigos ofícios foram se configurando com mica ou pelo destaque e relevância social.
contornos mais profissionalizantes (SCHWEITZER, Segundo Franzoi (2008, p. 329), foi a partir da
2008). Somam-se a isso, a crescente divisão técnica década de 1960 que a
do trabalho, a lógica de mercado e as demandas pro-
fissionais que se atualizam e se reveem no desenvol- [...] literatura sobre as profissões começou a escla-
vimento de determinadas economias. Nesse sentido, recer o caráter histórico e social do processo de
as profissões encontram-se intimamente ligadas à hierarquização intra e entre grupos profissionais.
lógica capitalista e ao seu movimento histórico, ha- [...] As novas abordagens passam a entender a for-
vendo oscilações que demandam análises mação dos grupos profissionais como uma disputa
aprofundadas sobre o que de fato revelam. pelo monopólio de mercado, inserida na divisão
É clássica a assertiva de que as profissões forne- social do trabalho, mostrando também que o cará-
cem um trabalhador especializado – detentor de um ter mais ou menos científico do conhecimento mo-
“saber complexo” – e que deve ter uma utilidade soci- nopolizado por cada grupo profissional não é dado,
al. Isto significa que o resultado de sua ação – ou seu mas socialmente construído.
trabalho profissional – deve ser capaz de atender a
uma necessidade humana. Assim, na mesma medida Sob o olhar de Machado (1996, p. 44), o termo
em que as necessidades são cada vez mais ampliadas, profissão indica uma atividade praticada pelos indiví-
os trabalhadores e seu trabalho também o são. duos em tempo integral, com uma “estrutura
Cabe aqui destacar que para se compreender as organizativa marcadamente corporativa” que possui
características das profissões em saúde1 é necessá- um acentuado “componente vocacional”, ancorada
ria uma análise sobre vários ângulos, que busque iden- em um código de ética e que “desenvolve saber es-
tificar qual a relevância do “existir” de uma profis- pecífico, apresenta forte orientação para serviço e
são na sociedade. mantém alto grau de autonomia no trabalho”.
A fim de refletir sobre o Serviço Social enquanto Para a autora, as profissões que atuam na área da
uma profissão em saúde, bem como sobre as deman- saúde estão embebidas das características acima as-
das para a formação profissional, esta revisão biblio- sinaladas. Além disso, pela própria natureza do setor,
gráfica está estruturada em três eixos. Inicialmente, a saúde exige que as atividades laborais sejam execu-
nos estudos das particularidades das profissões em tadas por profissionais “com domínio de técnicas e
saúde, seguido da caracterização do Serviço Social habilidades específicas” (MACHADO, 1996, p. 44).
no trabalho nessa área e, por fim, elucida alguns de- No entanto, é preciso esclarecer que o fato dos
safios presentes na relação trabalho e formação pro- profissionais de saúde serem obrigatoriamente
fissional em saúde. especializados não isenta o setor da subalternização
de determinadas profissões e do cerceamento da
autonomia desses profissionais em relação ao pró-
1 As características das profissões em saúde prio trabalho. Ao contrário, as relações de poder en-
tre as diferentes profissões estão presentes nos mais
Na sociedade capitalista, a demanda por traba- diversos ramos de atividade e legitimam-se hierar-
lhadores abrange todos os níveis de formação, sejam quicamente de acordo com nível de especialização:
eles básicos, técnicos ou superiores. No entanto, exis- técnico ou superior.
te uma cultura nacional na qual o diploma de estudos Segundo o Ministério da Educação (BRASIL,
em nível superior é hipervalorizado socialmente, em 2007), o ensino de nível superior privilegia conteúdos
termos financeiros e na manutenção do status quo, como Ciência, Letras e Arte, agregando um número
e sua falta inferioriza as ocupações com menor grau maior de disciplinas e privilegiando o enfoque teóri-
de instrução. co, já que há mais tempo para que se desenvolva um
Esta questão possui motivações históricas. Em estudo com vistas ao incentivo à pesquisa e à produ-
séculos anteriores, cursar uma graduação era privi- ção do conhecimento.
légio apenas de uma elite e o surgimento tardio da No caso dos cursos técnicos, a formação é mais
universidade no Brasil favoreceu essa perspectiva ágil e voltada exclusivamente para o exercício do
que perdura até hoje (CUNHA, 1986). trabalho. Deste modo, abrange apenas as discipli-
Por mais que a sociedade tenha mudado e o ensi- nas necessárias à função, oferecendo um retorno
no superior tenha sido ampliado, sobretudo no setor mais rápido na procura de uma vaga no mercado
privado, e que novas profissões tenham surgido, ain- de trabalho.

R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 212-220, jul./dez. 2012

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214 Líria Maria Bettiol Lanza, Fabrício da Silva Campanucci e Letícia Orlandi Baldow

Alguns autores, como Pereira e Ramos (2006), palmente em tempos de ataque às políticas sociais.
têm destacado a crescente valorização do ensino téc- Os baixos recursos financeiros investidos, associa-
nico no Brasil em detrimento do ensino superior e dos à frágil gestão do trabalho e da educação, têm
denunciado a política governamental neoliberal. Ori- configurado a saúde como uma área em débito com
entada pelo Banco Mundial, tal estratégia fomenta a a sociedade brasileira.
formação aligeirada e focada na mão de obra para Todavia, como necessidade humana e afirmação
atender as exigências de aumento da produtividade da vida, a saúde ainda demonstra vitalidade e conti-
pelo mercado. nua a mobilizar profissionais, militantes, pesquisado-
Tal entendimento encontrou eco nos Ministérios res e usuários na superação de problemas e na bus-
do Trabalho e da Educação, atraindo investimento ca do atendimento integral, público e de qualidade.
público para viabilizar a abertura de cursos, convêni- Assim, as profissões da área da saúde ganham
os e parcerias de incentivo à capacitação. Entretan- proeminência na sociedade pela complexidade de
to, orientado pela ideologia da empregabilidade, esse todo o conhecimento adquirido durante a sua for-
modo de investir em qualificação profissional trans- mação e à habilidade que se deve possuir para exe-
fere para o trabalhador a responsabilidade de con- cutar suas múltiplas ações e enfoques, sobretudo
quistar seu espaço no competitivo mundo do traba- ao trazer para a cena o usuário e seu modo de vi-
lho, deixando claro o cariz neoliberal dos incentivos ver, conviver e produzir.
estatais para formação profissional no Brasil. Nesse sentido, concorda-se com Carvalho e Ceccim
No que diz respeito às profissões em saúde, o Sis- (2009, p. 157) quando enfatizam que há profissões em
tema Único de Saúde (SUS) assume a responsabili- saúde com núcleos de competências ligados à assistên-
dade de acompanhar o desenvolvimento de políticas cia e outras às práticas de promoção à saúde.
de formação dos profissionais de saúde, como pre-
visto no artigo 15, inciso IX, da Lei Orgânica da Saú- Para ser um profissional de saúde há necessidade
de (BRASIL, 1990). do conhecimento científico e tecnológico, mas tam-
Uma abordagem mais ampla considera parte des- bém de conhecimento de natureza humanística e
se coletivo qualquer indivíduo que trabalhe na área. social relativo ao processo de cuidar, de desenvol-
Outras preferem ainda – mesmo considerando a am- ver projetos terapêuticos singulares, de formular e
pliação dos diferentes profissionais – trabalhar com a avaliar políticas e de coordenar e conduzir siste-
denominação “pessoal de saúde” (BETTIOL, 2010). mas e serviços de saúde.
Dentro de uma linha sociológica, o perfil profissi-
onal caminha na divisão sociotécnica do trabalho. Para os autores, “o conjunto de profissões de saú-
Embora se agrupem em uma definição mais genéri- de, aprende, trabalha e reconstrói no cotidiano a Gran-
ca de “trabalhadores em saúde” ou “pessoal de saú- de Área [Ciências da Saúde], ao mesmo tempo em
de”, as profissões possuem diferentes formações e que aprofunda, aperfeiçoa e especializa cada área,
recortes verticais em que têm graus diferenciados subárea ou especialidade” (CARVALHO; CECCIM,
de autonomia e poder. Dessa forma, os profissionais 2009, p. 156).
alcançam diferentes tipos de trabalho assalariado, que Essa reflexão encontra escopo no conceito am-
variam de acordo com suas especialidades. pliado de saúde e no princípio da integralidade,
Ancorados em uma base sindicalista, há os que deflagrados pela Constituição Federal de 1988, que
consideram o conjunto dos profissionais da saúde “tra- sinalizaram o alargamento do que se considera, in-
balhadores da saúde”, designação que abarca pro- clusive nos marcos jurídicos legais, profissões em
fissionais diversificados que não têm, necessariamen- saúde. No contexto do Serviço Social, merece des-
te, uma ligação específica com a saúde, como o pes- taque a Resolução n. 218, de 06 de março de 1997,
soal administrativo e o da limpeza. do Conselho Nacional de Saúde, que determinou o
Diferenciações à parte, é consenso que o setor conjunto das profissões em saúde e nele incluso o
de saúde é um dos maiores existentes (mesmo se Serviço Social.
precarizado), além de altamente diversificado. Para
alguns autores, como Machado (2005), a crescente
incorporação de novas tecnologias gera a necessi- 2 O Serviço Social como uma profissão em
dade de novas ocupações, sobretudo aquelas de saúde
fundo técnico.
Frequentemente, dificuldades nas ações de assis- Na reflexão sobre o trabalho dos assistentes so-
tência e na produção do cuidado são atribuídas ao ciais é relevante destacar que esses profissionais atu-
trabalhador da saúde e à sua base formativa. No am nas manifestações da questão social e no modo
entanto, a assistência oferecida, condições e contex- como elas interagem com a política social, “media-
tos de trabalho ou questões técnicas podem estar, na ção incontornável na constituição do trabalho profis-
maior parte, ligadas a questões institucionais, princi- sional” (IAMAMOTO, 2007, p. 185).

R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 212-220, jul./dez. 2012

12
As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios para a formação profissional 215

O enfrentamento da questão social pelo Estado necessidade de convocar outros profissionais para atuar
evidencia o papel das políticas sociais e indica como nesta área, incluindo os assistentes sociais.
as mesmas traduzem a correlação de forças entre o Uma das consequências da adoção deste concei-
Estado e as demandas da classe trabalhadora. É nesta to de saúde foi a ênfase no trabalho multidisciplinar,
disputa que se move o trabalho profissional do assis- utilizado, dentre outros motivos, para preencher a falta
tente social. de profissionais e racionalizar o setor saúde. Com
No que se refere à saúde, Bravo (1996, p. 13) equipes compostas por diversos “auxiliares”, busca-
salienta que este é “um dos setores mais significati- va-se disseminar informações com conteúdo
vos na atuação do Serviço Social, tendo concentrado preventivista, ampliar a abordagem em saúde “e cri-
historicamente um grande quantitativo de profissio- ar programas prioritários com segmentos da popula-
nais, situação que permanece até os dias correntes”. ção, dada a inviabilidade de universalizar a atenção
Para apresentar de que forma os assistentes so- médica e social” (BRAVO, 2009, p. 199).
ciais estão inseridos neste âmbito de atuação e mar- As contradições geradas pelo formato contributivo
car seu posicionamento acerca da concepção de que caracterizavam os serviços de saúde no Brasil
Serviço Social, faz-se necessário indicar que essa também influenciaram o exercício profissional do
profissão emerge no evolver da conjuntura de 1930 e assistente social nesta área. Como o acesso a saúde
se consolida no Brasil a partir de 1945 em consonân- não era universal – nem nos termos da lei –, seu
cia com a expansão do capitalismo no país (BRA- caráter seletivo e excludente colocou estes profissi-
VO, 2009). onais entre a instituição hospitalar e a população,
As discussões travadas entre os assistentes soci- desenvolvendo atividades que tinham a finalidade de
ais que teorizam “a natureza e o processo da gênese viabilizar a utilização dos serviços e benefícios, mas
do Serviço Social” revelam duas concepções que, que, devido ao caráter seletivo dos mesmos, cristali-
para Montaño (2009, p. 17), constituem verdadeiras zavam práticas que mais excluíam do que incluíam.
“teses, claramente opostas, sobre a gênese do Servi- Seguindo a lógica desenvolvimentista do Brasil, o
ço Social”. Serviço Social recebeu as influências da moderniza-
Uma delas, com “perspectiva endogenista”, sus- ção conservadora na década de 1960, “sedimentando
tenta a origem da profissão “na evolução, organiza- sua ação na prática curativa, principalmente na assis-
ção e profissionalização” das formas de ajuda – se- tência médica previdenciária” (BRAVO, 2009, p. 202),
jam elas de princípio religioso ou filantrópico – que adentrando a década de 1970 sem grandes alterações.
agora se vinculam à intervenção na “questão social” Enquanto as conquistas constitucionais da déca-
(MONTAÑO, 2009, p. 20). da de 1980 eram comemoradas pelos brasileiros, o
Já a segunda tese2, na mesma linha desta pesqui- Serviço Social iniciava uma fase de amadurecimento
sa, assume uma perspectiva “histórico-crítica” que da “tendência atualmente hegemônica na academia
trilha um caminho de análise oposto. Tal abordagem e nas entidades representativas da categoria – a in-
tenção de ruptura – e, com isso, a interlocução real
[...] entende o surgimento da profissão do assis- com a tradição marxista” (BRAVO, 2009, p. 204).
tente social como um produto da síntese dos proje- O problema é que boa parte dos assistentes soci-
tos político-econômicos que operam no desenvol- ais que compartilhava desta vertente, inseriram-se
vimento histórico, onde se reproduz material e ide- nas universidades. Deste modo, a perspectiva crítica
ologicamente a fração de classe hegemônica, quan- adotada por esses profissionais teve pouca interven-
do, no contexto do capitalismo na sua idade ção nos serviços, isto é, na prática profissional.
monopolista, o Estado toma para si as respostas à Bravo (2009, p. 205) destaca que ainda são insu-
‘questão social’ [...] entende-se o assistente social ficientes os avanços conquistados pelo exercício pro-
como um profissional que desempenha um papel fissional de assistentes sociais na saúde devido ao
claramente político, tendo uma função que não se fato de a profissão ter chegado à década de 1990
explica por si mesma, mas pela posição que o pro- “com uma incipiente alteração do trabalho
fissional ocupa na divisão sociotécnica do traba- institucional”, por permanecer “desarticulada do
lho (MONTAÑO, 2009, p. 30). Movimento de Reforma Sanitária” e pela pequena
contribuição no que se refere às questões colocadas
De acordo com Bravo (2009), no Brasil, os assis- à categoria na prática em saúde.
tentes sociais começaram a ser requisitados no setor “Considerando que os anos noventa foi o período
saúde a partir de 1945, no contexto do processo de de implantação e êxito ideológico do projeto neoliberal
expansão do capitalismo e das mudanças internacio- no país, identifica-se que, nesse contexto, os dois pro-
nais geradas pelo fim da Segunda Guerra Mundial. jetos políticos em disputa na área da saúde” – o
Soma-se a essas características conjunturais o con- privatista e o sanitarista –, “passam a apresentar di-
ceito de saúde voltado a “aspectos biopsicossociais” ferentes requisições para o Serviço Social” (BRA-
adotado pelos organismos internacionais, que gerou a VO, 1998, apud CFESS, 2010, p. 26).

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216 Líria Maria Bettiol Lanza, Fabrício da Silva Campanucci e Letícia Orlandi Baldow

Com base em Escorel (1989), Bravo (1996) sali- [...] funções técnicas propriamente ditas. Do ponto
enta que a saúde pode ser considerada um compo- de vista da demanda, o Assistente Social é chama-
nente fundamental da democracia e da cidadania e do a constituir-se no agente intelectual de ‘linha de
um campo privilegiado da luta de classes. Nessa pers- frente’ nas relações entre instituição e população,
pectiva, a prática do Serviço Social encontra-se inti- entre os serviços prestados e a solicitação desses
mamente ligada à estrutura de classes e sofre deter- mesmos serviços pelos interessados.
minações estruturais e conjunturais da sociedade.
Por um lado, destacam-se entre as demandas Regulamentado pela Lei n. 8.662 de 1993 e por
postas para a categoria profissional pelo projeto um Código de Ética Profissional (1993), o Serviço
privatista: a seleção socioeconômica dos usuários, a Social apresenta-se na cena contemporânea como
atuação psicossocial, a fiscalização dos usuários dos uma profissão analítica e interventiva, com uma sé-
planos de saúde e o “assistencialismo por meio da rie de atribuições e competências fundadas na ga-
ideologia do favor e predomínio de práticas individu- rantia de direitos sociais e na construção de uma so-
ais” (CFESS, 2010, p. 26). ciedade verdadeiramente democrática, sem precon-
Por outro, o projeto de reforma sanitária solicita a ceitos e iniquidades sociais.
contribuição do Serviço Social em questões ligadas Na perspectiva de atenção integral em saúde, as
ao acesso aos serviços de saúde, à busca de estraté- demandas sociais emergem de várias formas no co-
gias para aproximar as ações em saúde da realidade, tidiano do trabalho do Assistente Social. Comumente
ao trabalho interdisciplinar, à ênfase nas abordagens exigem a intervenção profissional na viabilização do
grupais com vistas a atender o maior número de pes- acesso a consultas, exames, internações e tratamen-
soas possível, ao acesso democrático às informações tos. Sendo assim,
e ao estímulo à participação popular.
Nota-se, portanto, que há uma relação entre o As ações a serem desenvolvidas pelos assistentes
projeto ético-político3 e o de reforma sanitária, prin- sociais devem transpor o caráter emergencial e bu-
cipalmente, nos seus grandes eixos: “principais aportes rocrático, bem como ter uma direção socioeducativa
e referências teóricas, formação profissional e prin- por meio da reflexão com relação às condições só-
cípios” (CFESS, 2010, p. 26). Além disso, observa- cio-históricas a que são submetidos os usuários e
se que a grande bandeira continua sendo a mobilização para a participação nas lutas em defesa
implementação do projeto de Reforma Sanitária. E da garantia do direito à Saúde (CFESS, 2010, p. 43).
nesta luta, cabe aos assistentes sociais buscar estra-
tégias que possibilitem a efetivação do direito à saú- Afinal, esta intervenção abrange as mudanças que
de, prestando serviços diretos à população, sejam eles ocorrem no cotidiano do indivíduo e também de seus
no âmbito da gestão, planejamento, mobilização ou familiares, provocadas, dentre outros fatores, pela
participação social. hospitalização, pelo desconhecimento do cidadão em
Isto significa que a atual conjuntura conclama pro- relação ao diagnóstico/tratamento, pelo agravamen-
fissionais articulados aos movimentos sociais, de tra- to da situação financeira, pela ansiedade e medo da
balhadores e usuários, que não se cansam de lutar doença, pelo preconceito e discriminação, pela difi-
por um SUS de qualidade; pelo acesso universal em culdade de acesso aos serviços e aos profissionais,
todos os níveis de complexidade, com ações e servi- pela necessidade de insumos, violência e até mesmo
ços complementares, capazes de integrar as equipes pela agilização de alta hospitalar.
de saúde e estimular a intersetorialidade, viabilizando Diante do exposto, pode-se afirmar que as de-
a participação dos usuários e dos trabalhadores nas mandas que se apresentam ao Serviço Social envol-
decisões a serem tomadas. vem uma série de condicionantes e exigem uma in-
É pertinente destacar que, para Bravo (1996), os tervenção profissional que não se limite à prática
assistentes sociais atuam nas instituições de saúde curativa, mas que inclua aspectos preventivos, infor-
para administrar a tensão que existe entre as deman- mativos e de promoção da saúde. Para tanto,
das postas pela população e os limitados recursos
para a prestação de serviços. Deste modo, o exercí- O profissional precisa ter clareza de suas atribui-
cio profissional mantém as características observa- ções e competências para estabelecer prioridades
das, como a triagem e a seleção socioeconômica. de ações e estratégias, a partir de demandas apre-
Ao descrever algumas características da prática sentadas pelos usuários, de dados epidemiológicos
profissional dos assistentes sociais, Iamamoto (1992, e da disponibilidade da equipe de saúde para ações
p. 100-101) esclarece que os profissionais desempe- conjuntas (CFESS, 2010, p. 43).
nham funções tanto de “suporte à racionalização do
funcionamento” das entidades das quais são vincula- Cabe aqui complementar que a inserção dos as-
dos – organismos estatais, paraestatais ou privados sistentes sociais no contexto do SUS também ocorre
– como pela efetivação do princípio da integralidade da aten-

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As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios para a formação profissional 217

ção à saúde, que pressupõe uma ação interdisciplinar defasagem na formação profissional dos assistentes
e intersetorial (NOGUEIRA; MIOTO, 2009). A sociais para a atuação em saúde e que deve ser en-
integração da prevenção, promoção e recuperação frentada pelas instituições de ensino superior (IES).
da saúde, contempladas no acesso aos três níveis de
complexidade do SUS, é um dos principais sentidos
dessa proposta. 3 Os desafios da formação profissional para o
Segundo Cecílio (2001, p. 116), a integralidade trabalho em saúde
da assistência à saúde apresenta diferentes dimen-
sões. Uma delas é a “integralidade focalizada” que As mudanças na saúde exigiram que as profis-
é desenvolvida nos serviços de saúde por equipes sões se adaptassem ao contexto do SUS, desenca-
multiprofissionais e pode ser definida “como o es- deando um processo de revisão das instituições for-
forço da equipe de saúde de traduzir, atender, da madoras dos trabalhadores em saúde (BETTIOL,
melhor forma possível, tais necessidades [de saú- 2010). No caso do Serviço Social, esta revisão se
de], sempre complexas, mas, principalmente, tendo inclui num quadro mais amplo de discussões profissi-
que ser captadas em sua expressão individual”. onais que vinham ocorrendo desde meados da déca-
Outra dimensão apresen- da de 1960 com o Movimento
tada pelo autor é denomina-
da “integralidade ampliada”, ... a atual conjuntura conclama de Reconceituação na Amé-
rica Latina. Neste ínterim,
devendo ser concebida como profissionais articulados aos houve uma aproximação do
“relação articulada, comple- Serviço Social às Ciências
mentar e dialética, entre a movimentos sociais, de Sociais que deu base para as
máxima integralidade no cui- discussões sobre os processos
dado de cada profissional, de trabalhadores e usuários, que técnico-profissionais, teórico-
cada equipe e da rede de ser- metodológicos e ético-políti-
viços de saúde e outros” não se cansam de lutar por um cos, e abriu espaço para uma
(CECÍLIO, 2001, p. 120). reavaliação da própria face
Trata-se, portanto, de SUS de qualidade; pelo acesso social e ideológica da profis-
viabilizar à população o aces-
so não só a todos os níveis de universal em todos os níveis de são. No Brasil, a luta profissi-
onal juntou-se à luta da socie-
complexidades do SUS, mas complexidade, com ações e dade por democracia e inci-
a todas as políticas e servi- tou a discussão do novo pro-
ços sociais que todo cidadão serviços complementares, jeto profissional, que culminou
brasileiro tem direito. Prática com o projeto ético-político.
que exige profissionais com capazes de integrar as equipes Em 1988, a Constituição
um cabedal de conhecimen- Federal contemplou boa par-
to tanto sobre as políticas e de saúde e estimular a te das reivindicações sociais,
legislações quanto sobre a principalmente na área da
rede de serviços sociais para intersetorialidade, viabilizando saúde. A partir de então, esta
promoverem tal integração. passa a ser reconhecida
Exigências que também se a participação dos usuários e como um direito universal e
aplicam ao exercício profis- dos trabalhadores nas decisões resultado das condições de
sional do assistente social. alimentação, transporte,
Nogueira e Mioto (2009, a serem tomadas. lazer, acesso e posse de ter-
p. 225) ressaltam que, como ra, educação, meio ambien-
o princípio da integralidade te, trabalho, habitação, ren-
sustenta-se nos pilares da interdisciplinaridade e da da e acesso a serviços de saúde.
intersetorialidade, ele não só possibilita como justifi- Apesar da década de 1990 ter sido fundamental
ca uma “inserção diferenciada do assistente social para a perspectiva dos direitos sociais, no caso espe-
na área da saúde, superando o estatuto de profissão cífico da saúde houve um ataque dos agentes finan-
paramédica, típico do modelo biomédico”. ceiros internacionais que pregavam as
Dessa forma, é necessário que o assistente social contrarreformas no contexto da crise do capital
que atua nessa área aprofunde seus conhecimentos monopolista, refutavam o caráter universal e público
para ser capaz de entender suas origens e desdobra- e visavam a mercantilização e a privatização da saú-
mentos e dominar certos conhecimentos epide- de. Para a superação da crise, os organismos inter-
miológicos e administrativos que conformam o agir nacionais como o Fundo Monetário Internacional
em saúde. No entanto, em recente avaliação da (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial
Abepss (UCHÔA, 2009), é possível verificar certa do Comércio (OMC), impõem às Nações em desen-

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218 Líria Maria Bettiol Lanza, Fabrício da Silva Campanucci e Letícia Orlandi Baldow

volvimento a adoção de medidas de liberalização, No caso da área em estudo, a construção de no-


desregulamentação e privatização, sobretudo das vos modelos de fazer saúde com base na integralidade,
políticas sociais. intersetorialidade e atuação em equipe, só será efeti-
A desresponsabilização do Estado das suas fun- va quando houver uma mudança na prática e na for-
ções, como protagonista dos serviços prestados à mação do profissional em saúde. Isso vem em con-
população, não surge nesse momento, mas se agra- sonância com Bravo e Matos (2009, p. 213) que afir-
va. Apesar da obrigação descrita na Constituição mam que “as novas diretrizes das diversas profis-
Federal, o poder público repassa à sociedade civil sões têm ressaltado a importância de formar traba-
parte da responsabilidade de lidar com a questão so- lhadores de saúde para o Sistema Único de Saúde
cial, o que faz com que o Estado tenda a focalizar as com visão generalista e não fragmentada”.
políticas em detrimento do caráter universal das mes- O assistente social, em especial, devido a sua for-
mas. Essa interferência, no caso da saúde, principal- mação generalista, necessita ter esse conhecimento
mente do Banco Mundial, dá-se pela rentabilidade histórico da política de saúde, da epidemiologia, dos
do setor, que envolve os grupos privados de saúde, a mecanismos de gestão entre tantas outras ferramen-
indústria farmacêutica e de equipamentos (COR- tas. Assim, poderá identificar os determinantes do
REIA, 2007). processo saúde-doença e propor intervenções espe-
Deste modo, ocorre uma atualização dos projetos cíficas e intersetoriais na busca pela saúde integral,
de saúde em disputa no Brasil, o que a vincula como articulando organicamente os saberes teóricos apro-
direito social universal, atraindo o privatista que en- priados pela categoria, e expressos nas próprias di-
contra na mercantilização sua materialidade. É no retrizes curriculares para os cursos de Serviço Soci-
contexto da contrarreforma que os assistentes soci- al, com a realidade cotidiana dos serviços e das polí-
ais têm vislumbrado novas requisições que oscilam ticas sociais nos quais os profissionais atuam. Para
dos processos de gestão, sobretudo aqueles vincula- isso, o projeto profissional já assinala a ênfase numa
dos à produtividade, eficiência e eficácia dos servi- formação acadêmica qualificada e permanente, para
ços voltados às ações emergenciais que reproduzem que haja uma nova relação com os usuários, tornan-
“a lógica individualista, curativa e predominantemen- do-os sujeitos das ações profissionais.
te assistencial” (SOARES, 2012, p. 105). Contudo, não se deve esquecer que o trabalho
Nesse sentido, é fundamental para qualquer pro- em saúde para o profissional do Serviço Social con-
fissional em saúde entender os determinantes sociais juga saberes ligados às Ciências Sociais se afastan-
que a constituem, não somente no que diz respeito à do do campo das Ciências da Saúde. Portanto, o pro-
organização política, mas no aspecto da gestão e na fissional precisa aprofundar-se na ligação entre o bi-
sua relação com os usuários. Ou seja, nesses aspec- ológico e as condições sociais. É um esforço que a
tos diversos é a cultura da população que mantém e profissão exige, sobretudo, em relação aos conteú-
legitima o modelo de saúde atual. dos oferecidos durante o curso de graduação.
Todavia, como afirma Mourão et al. (2006), devi- Nesse sentido, vale a pena retomar a reflexão de
do ao incentivo à fragmentação e especialização infi- Mourão et al. (2006, p. 374),
nita, o processo de formação de quadros profissionais
dificilmente atua baseado no trabalho interdisciplinar É na perspectiva da atenção integral que o profissi-
visando a saúde coletiva. Nesse caso, o esforço não é onal de Serviço Social estrutura seu processo de
apenas de uma ou outra profissão, mas de toda a equi- trabalho no interior das equipes de saúde. Com uma
pe envolvida, no sentido de definir um projeto de saúde abordagem individual e coletiva constrói sua práti-
capaz de fazer frente ao projeto neoliberal, ca na perspectiva do direito e da ampliação da cida-
mercantilista, que domina as políticas sociais no mun- dania contribuindo, com um aporte teórico
do capitalista. metodológico sobre o processo saúde-doença,
Sem essa contextualização e base teórico- para o avanço das reflexões e possibilidades de
metodológica, tem-se uma visão a-histórica e atuação interdisciplinar no cuidado à saúde.
focalista. Volta-se ao positivismo e reduz-se a atua-
ção profissional ao empirismo e ao pragmatismo, Não se pode ignorar o processo mais amplo em que
como explicita Iamamoto (2006), que também traz se insere o ensino superior no país. A educação, princi-
as perspectivas do trabalho do assistente social fren- palmente no que diz respeito ao nível superior, tem sido
te à cena contemporânea. Torna-se necessário que sistematicamente sucateada no âmbito público por cor-
o profissional apreenda as expressões e os proces- te de verbas, tendência a privatizações, ingerências de
sos de produção e reprodução ampliada e fomente a entidades e órgãos “pseudopúblicos” que visam o lucro
criação de formas de resistência e defesa da demo- e ferem o princípio da autonomia universitária.
cratização das relações sociais. Isso só é possível a No âmbito privado, a formação para o mercado,
partir de um perfil crítico que deriva do projeto de aligeirada por vezes nos moldes do ensino a distân-
formação profissional. cia, avança a passos largos. Este contexto impacta a

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As profissões em saúde e o Serviço Social: desafios para a formação profissional 219

formação profissional, inclusive dos profissionais em BRASIL. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre
saúde, quando nos currículos os conteúdos, estágios as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde,
supervisionados e outros espaços formativos, privile- a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
giam a visão curativa, lucrativa, especializada e dá outras providências. Brasília, 1990.
descontextualizada da saúde em detrimento da saú-
de integral, universal, pública e compromissada com ______. Ministério da Educação. Educação profissional técnica
os interesses da coletividade. de nível médio integrada ao Ensino Médio: documento base.
Brasília, 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/
arquivos/pdf/documento_base.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2012.
Considerações finais
BRAVO, M. I. S. Serviço Social e reforma sanitária: lutas sociais
O exame sobre o exercício profissional dos assis- e práticas profissionais. Rio de Janeiro: Cortez, 1996.
tentes sociais na saúde indica a existência de práti-
cas democráticas e limites da atuação profissional. ______. Política de saúde no Brasil. In: MOTA, A. E. et al.
Observa-se ainda que a atuação dos assistentes so- (Org.). Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional.
ciais reclama uma leitura crítica da realidade aliada à São Paulo: Cortez, 2009, p. 88-110.
defesa intransigente dos direitos dos cidadãos. Parti-
cularmente, a saúde exige um profissional vinculado BRAVO, M. I. S.; MATOS, M. C. Projeto ético-político do
à luta pelo acesso equânime às ações e aos serviços, Serviço Social e sua relação com a reforma sanitária: elementos
ao trabalho interdisciplinar e ao estímulo à participa- para o debate. In: MOTA, A. E. et al. (Org.). Serviço Social e
ção social, buscando efetivar a universalidade do saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2009,
acesso à saúde – em sua concepção ampliada – de- p. 197-217.
terminada constitucionalmente e reafirmada na le-
gislação complementar. CARVALHO, Y. M.; CECCIM, R. B. Formação e educação em
Tais requisições incidem no projeto de formação saúde: aprendizados com a saúde coletiva. In: CAMPOS, G. W.
profissional da categoria. O estudo sobre o processo S. et al. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de
ensino/aprendizagem com foco no ensino de gradua- Janeiro: Fiocruz, 2009.
ção evidenciou a urgência em introduzir e aprofundar
as discussões acerca da saúde nos projetos pedagó- CECÍLIO, L. C. de O. As necessidades de saúde como conceito
gicos de cada IES. Ademais, deve-se privilegiar o estruturante. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Os
enfoque no exercício profissional. Nesse sentido, sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio
pode-se tomar a saúde como um espaço importante de Janeiro: UERJ, IMS: Abrasco, 2001, p. 113-126.
para essa empreitada, já que congrega elementos
como a atuação essencialmente interdisciplinar e CORREIA, M. V. C. A saúde no contexto da crise contemporânea
relacional, que contribuem no desenvolvimento de do capital: o Banco Mundial e as tendências da contrarreforma na
habilidades fundamentais para a profissão, como a política de saúde brasileira. Temporalis, Brasília, v. 13, p. 11-38,
comunicação, escuta ativa, construção de projetos 2007.
terapêuticos singulares e um domínio fundamental do
campo disciplinar para a atuação em equipe. CUNHA, L. A. A universidade temporã. Rio de Janeiro: Livraria
Ressalta-se, ainda, a necessidade de formação Francisco Alves Editora, 1986.
constante por meio da educação continuada que en-
globa um esforço do ser profissional para o compro- ESCOREL, S. Saúde: uma questão nacional. In: TEIXEIRA, S. F.
misso com a qualidade dos serviços prestados. En- (Org.). Reforma Sanitária em busca de uma teoria. São Paulo:
volve desde a busca por cursos de especializações Cortez/Abrasco, 1989, p. 181-192.
lato sensu até o incentivo às residências profissio-
nais, multidisciplinares, além da importância dos es- FRANZOI, N. L. Profissão (Verbete). In: PEREIRA, I. B.; LIMA,
tudos produzidos no âmbito da pós-graduação stricto J. C. F. (Org.). Dicionário da educação profissional em saúde.
sensu que nutre a profissão dos debates e experiên- Rio de Janeiro: EPSJV, 2008, p. 328-333.
cias que abarcam a saúde e as políticas sociais.
IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na divisão do trabalho.
In: ______. Renovação e conservadorismo no Serviço Social:
Referências ensaios críticos. São Paulo: Cortez, 1992, p. 87-112.

BETTIOL, L. M. Atualizando o debate: formação profissional, ______. As dimensões ético-política e teórico-metodológica no


trabalho em saúde e Serviço Social. 2010. Tese (Doutorado em Serviço Social contemporâneo. In: MOTA, A. E. et al. (Org.).
Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Serviço Social e saúde: formação e trabalho profissional. São
São Paulo, 2010. Paulo: Cortez, 2006, p. 161-196.

R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 212-220, jul./dez. 2012

17
220 Líria Maria Bettiol Lanza, Fabrício da Silva Campanucci e Letícia Orlandi Baldow

______. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital 2 Esta concepção da emersão e legitimação da profissão “Serviço
financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007. Social” é defendida principalmente por “Marilda Vilela Iamamoto,
Raul de Carvalho, Manuel Manrique Castro, Vicente de Paula
MACHADO, M. H. As profissões e o SUS: arenas conflitivas. Faleiros, Maria Lúcia Martinelli, José Paulo Netto, entre outros”
Divulgação em Saúde para Debate, n. 14, p. 44-47, 1996. (MONTAÑO, 2009, p. 30).

______. Trabalhadores da saúde e sua trajetória na Reforma 3 Este projeto é resultado de um longo e coletivo processo construído
Sanitária. In: LIMA, N. T. (Org.). Saúde e democracia: história e nas últimas três décadas e tem seus valores e pilares pautados no
perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005, p. 257-281. Código de Ética Profissional, na Lei n. 8.662/93, que regulamenta a
profissão e nas Diretrizes Curriculares aprovada pela Associação
MIOTO, R. C. T.; NOGUEIRA, V. M. R. Sistematização, Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss). “Afirma
planejamento e avaliação das ações dos Assistentes Sociais no a defesa intransigente dos direitos humanos e o repúdio do arbítrio
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com a saúde. In: ABEPSS. Política de Saúde e Serviço Social:
impasses e desafios. Temporalis, São Luís, ano VII, n. 13, p.
151-183, jan./jun. 2007.

Notas

1 Esta pesquisa conta com a colaboração das estudantes de graduação


em Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Jéssica Furuhata Inácio e Vanessa de Souza Novaes, que foi
fundamental para a realização deste trabalho.

R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 212-220, jul./dez. 2012

18
Expressões conservadoras no trabalho em saúde:
a abordagem familiar e comunitária em questão
Conservative expressions in health work:
the family and community approach in question

Eliane Martins de Souza Guimarães


Assistente social, especialista em saúde da família, doutora em Serviço Social pelo PPGSS/Uerj,
docente da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense — Niterói/RJ, Brasil.
eliane.msguimaraes@gmail.com

Resumo: O presente artigo apresenta o debate Abstract: This article presents the debate
sobre as expressões conservadoras no trabalho em about the conservative expressions in health
saúde a partir da análise da abordagem familiar work based on the analysis of the family and
e comunitária na Saúde da Família. Toma como community approach in the Family Health. It takes
referência de análise o movimento de disputa as reference of analysis the hegemonic dispute
hegemônica existente na política de saúde e a movement existing in the health policy and the
direção social que trabalho em saúde assume nesse social direction that work in health assumes in
contexto. Situa os impactos da contrarreforma that context. It places the counterreform impacts
na política de saúde no processo de trabalho, na on health policy in the work process, on the
análise e intervenção das relações familiares e analysis and intervention of family and community
comunitárias e na educação em saúde. relations and on the health education.
Palavras-chave: Política de saúde. Saúde da Keywords: Health policy. Family Health. Counter-
Família. Contrarreforma. Conservadorismo. -reformation. Conservatism. Family and community
Abordagem familiar e comunitária. approach.

Considerações introdutórias

O
recurso ao espaço familiar e comunitário como lócus de reprodução
social não é uma novidade deste momento da política social. Recen‑
temente é possível identificar uma série de programas voltados para
o atendimento à família em diversas áreas. Como aponta Mioto (2009), este
fenômeno não acontece desarticulado do contexto político e representa uma das
repercussões diretas do neoliberalismo nos sistemas de proteção social.

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http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.124
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A política de saúde, como forma de enfrentamento da questão social,
encontrou no cotidiano da vida e da família dos trabalhadores o espaço para a
reprodução de sua lógica. A análise histórica aponta que o enfoque familiar e
comunitário tem se reproduzido na perspectiva de controle das lutas sociais,
seja pelo controle direto da vida dos trabalhadores na medicina social, seja pelo
modelo médico e o caráter previdenciário dos sistemas de bem-estar, pela via
integrativa da comunidade ao processo de desenvolvimento, bem como pela
transferência de responsabilidades da perspectiva neoliberal.
Apresentada como proposta contra-hegemônica ao modelo médico, a
atenção primária em saúde,1 atravessada por contradições, assume uma fun‑
cionalidade, tanto nos países desenvolvidos, pela contenção de gastos com a
saúde, como nos periféricos, com a tendência de reprodução dos discursos das
agências internacionais, que colocam as estratégias de enfoque familiar e co‑
munitário como espaços de integração para o desenvolvimento, considerando
que as demandas sociais devem ser controladas.
Assim, a aparente retomada da dimensão social do processo saúde/doença,
em um cenário de disputa e contradições, tanto favoreceu a ampliação das for‑
mas de controle do social, como também propiciou a formulação de propostas
críticas vinculadas ao fortalecimento dos movimentos sociais.
A ampliação da Saúde da Família com implantação prioritária em áreas
periféricas e com caráter focalizado colocou os profissionais de saúde em contato
direto com as mais diversas expressões da questão social.2 Seu processo de tra‑
balho traz como exigência a aproximação com a realidade local e o vínculo com
os sujeitos.3 Seja no consultório, na visita domiciliar, nas reuniões de grupo, nas

1. A construção do Sistema Único de Saúde (SUS), em um cenário de contradições, elegeu a Atenção


Básica como foco para organização dos serviços de saúde, estabelecendo a Saúde da Família como orientação
governamental em implantação em todo o país. Para o Ministério da Saúde (Brasil, 2006), a Saúde da Família
representa uma estratégia de reorganização do modelo assistencial da saúde, voltado para a atenção integral
através da promoção e prevenção, estabelecendo a porta de entrada para o SUS.
2. Consideramos a questão social como resultado do processo de acumulação capitalista que representa
o conjunto de desigualdades e lutas sociais entre burguesia e proletariado que revelam a sociedade de classes
(Iamamoto, 2007, p. 27a).
3. O atendimento nas Unidades de Saúde da Família é realizado tendo como referência a área de abran‑
gência, com cobertura de cerca de mil famílias para cada equipe. As áreas são divididas em microáreas e
atendidas pela equipe mínima, composta por profissional de medicina, enfermagem, auxiliar de enfermagem

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ações comunitárias, os profissionais de saúde entram em contato com a história,
a casa, a família, a comunidade, de forma muito próxima e convivem diariamente
com todos os limites do acesso aos direitos naquele território. As demandas
de saúde revelam as precárias condições de vida e trabalho dos sujeitos, o que
nos faz questionar: que direção social a abordagem familiar e comunitária tem
assumido diante das contradições da contrarreforma e da disputa hegemônica
na política de saúde?
Para a problematização da temática, tomamos como referencial o método
crítico-dialético e situamos o movimento de disputa hegemônica existente na po‑
lítica de saúde e a direção social que o trabalho em saúde assume nesse contexto.

A direção social do trabalho em saúde no movimento de disputa hegemônica


A análise da abordagem familiar e comunitária exige sua apreensão para
além de uma ferramenta de trabalho, mas como expressão de um conjunto de
determinações. Assim, tomamos como princípio a relação entre teoria e prática
no processo de trabalho, considerando que suas dimensões estão intrinsecamente
articuladas, em uma relação de unidade na diversidade, expressando uma vi‑
são de homem e mundo que aponta uma direção social e ética para as práticas
profissionais (Santos, 2011).
O reconhecimento da direção social, não somente da política de saúde,
mas também do trabalho nos serviços de saúde, aponta que o fazer profissional
na área da saúde não é um fim em si mesmo. Trata-se de uma ação que possui
finalidade, que passa por escolhas de alternativas e se concretiza sob a direção de
diferentes formas de apreensão do movimento societário (Marx, 2011, p. 212).
O modo de produção capitalista, com sua fundamentação na exploração
da força de trabalho, trouxe repercussões não apenas para a esfera da produção,
mas também no âmbito das relações sociais. A intervenção do Estado, polarizada

e agentes comunitários de saúde, dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico em higiene dental. São
adotados instrumentos, como visita domiciliar, grupos educativos e consultas como estratégias de assistência
à saúde. As atividades são realizadas com a priorização de grupos, como hipertensos, diabéticos, idosos,
recém-nascidos, combate à tuberculose e hanseníase, saúde da mulher, entre outros.

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pelos interesses de classe, reproduz a lógica hegemônica como forma de domi‑
nação, contraposta pelo movimento de resistência e luta.
O caráter contraditório das políticas sociais também se expressa no conjunto
das profissões requisitadas pelo Estado para atuar nos serviços que “reproduz
também, pela mesma atividade, interesses contrapostos que convivem em tensão.
Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer um
ou outro polo pela mediação de seu oposto” (Iamamoto e Carvalho, 2011, p. 81).
Mesmo não produzindo diretamente um produto, gerando valor de forma
direta, esses agentes têm uma funcionalidade que irá atingir diretamente o pro‑
cesso de produção: a garantia de condições para reprodução da força de trabalho.
A condição de trabalhador assalariado nos permite também reconhecer a atuação
nessa esfera como trabalho, pois ao mesmo tempo em que se atua em relação
a uma classe, também se pertence a ela. Desta forma, é preciso reconhecer que
as profissões de saúde estão inseridas na divisão social e técnica do trabalho,
como parte do trabalho coletivo, fruto da combinação de trabalhos especializa‑
dos na produção, que exercem uma funcionalidade, um papel no conjunto das
profissões na sociedade capitalista.
De fato, a política social expressa interesses diversos de classes e grupos
de classes e, para que ganhe forma, desde o seu planejamento até a sua gestão
e execução, comporta uma racionalidade que a fundamenta e organiza. Por sua
vez, os projetos societários que disputam a hegemonia no Estado e na sociedade
possuem determinado modo de conceber a realidade e, sendo assim, comportam
uma ideologia. Há, então, um embate de projetos que se consubstancia também
sob a forma de disputa ideológica no âmbito da política social e se expressam
nas diversas concepções de direito, de Estado, de classes sociais, entre outros.
Sendo assim, a política social comporta também as ideologias que fundamentam
os interesses de classe em confronto no âmbito do Estado e da sociedade civil.
Para Paim (2008, p. 42), “o Estado se apoia em certas classes dominadas
da sociedade, apresentando-se como seu representante, mediante um complexo
processo ideológico”. Assim é nesse processo de dominação hegemônica de
classe que o Estado “atua em proveito político das classes dominantes, recor‑
rendo a dispositivos e aparelhos ideológicos de diversas ordens”.
Para Simionato (2011, p. 78), “a ideologia pode ser definida como uma
visão de mundo com normas de conduta correspondentes, ela se encontra em

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todos os níveis sociais: econômico, político, científico, artístico etc., em todas
as manifestações da vida individuais e coletivas”. A ideologia apresenta-se,
pois, no pensamento gramsciano, com uma relação orgânica entre o pensado e
o vivido, entre o conhecimento e a ação.
Dessa forma, afirmamos que o trabalho em saúde possui uma dimensão
pedagógica que pode colaborar com a construção das possibilidades do ser social
ou, da mesma forma e pela mesma ação, promover a reprodução e manutenção
das relações de dominação. Como afirma Gramsci (2014, p. 399), “toda relação
de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”.
É afirmada, então, a relação que se estabelece no processo de trabalho em
saúde entre as dimensões éticas, políticas, teóricas e práticas. Assim, ao analisar a
atuação do profissional de saúde no contexto das políticas sociais, considerando
seu caráter contraditório, é preciso reconhecer que a atuação profissional não é
neutra. Ela reproduz uma perspectiva que imprime uma direção social às suas
ações, reafirmando o caráter pedagógico do trabalho em saúde.
O significado que a abordagem familiar e comunitária assume no conjunto
de contradições das políticas sociais aponta a necessidade de vinculação dessa
intervenção ao cenário de disputa hegemônica que se configura na política de
saúde. Paim (2012, p. 468) aponta que o conceito de hegemonia pode ser em‑
pregado para qualificar os modelos de atenção à saúde no que diz respeito “à
direção política e cultural exercida por um dado projeto de uma classe ou de
um segmento social e acionada para obtenção de consenso ativo da população”.
Assim, o “modelo médico e o modelo sanitarista podem ser identificados como
aqueles predominantes no sistema de saúde brasileiros”.
A disputa entre projetos societários antagônicos (o da democracia restrita,
com diminuição dos direitos sociais e políticos, e outro de democracia de massas,
com ampla participação social), segundo Bravo e Matos (2006) se expressam na
saúde através do Projeto de Reforma Sanitária (com defesa da democratização
do acesso, universalização das ações, descentralização, equidade, integralidade,
tendo como premissa a defesa da saúde como direitos de todos e dever do Estado)
e do Projeto Privatista (articulado ao mercado, tendência de racionalização de
oferta, focalização e privatização), bem como o Projeto do SUS Flexível (com
o discurso de implantação de um SUS possível).

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Nesse contexto, Soares (2010, p. 57) destaca que a racionalidade instru‑
mental burguesa reatualiza-se no processo de contrarreforma do Estado a partir
dos princípios do ideário neoliberal, particularizando-se na política de saúde.
Para a autora, a contrarreforma do Estado constituiu uma nova racionalidade
hegemônica no sistema no qual “os princípios e fundamentos legais do SUS
são refuncionalizados” e adquirem “conteúdos distintos da racionalidade hege‑
mônica no projeto de reforma sanitária”. Em um movimento de transformismo
das lideranças sanitárias, “as mudanças no sistema são apresentadas como
continuidade da reforma sanitária, e a contrarreforma realiza-se de maneira
implícita, por dentro do próprio sistema”.
Como repercussão desse processo, Castro (2015, p. 191), ao analisar a
humanização na saúde, aponta que a redução e desresponsabilização do Estado
frente às políticas e serviços sociais faz com que “família e sociedade civil sejam
redescobertos como instância de proteção e como possibilidade de recomposição
de uma sociedade ‘solidária’”. Os sujeitos são chamados para a responsabili‑
zação da provisão das condições objetivas e subjetivas de sua vida, e “ao dar
centralidade aos sujeitos e aos aspectos subjetivos, conduz a uma transfiguração
dos problemas sociais em problemas pessoais (privados), repercutindo em uma
tendência de psicologizar a vida social”.
O processo atual de contrarreforma e racionalização dos serviços de saúde
em uma dimensão gerencial e o processo de privatização das políticas de saúde
no âmbito público têm submetido os profissionais à fragilização dos vínculos e
contratos de trabalho, o que restringe ainda mais a autonomia profissional, além da
lógica de cumprimento de metas quantitativas e de produção, que desconsidera o
enfoque qualitativo do trabalho em saúde. Tais condições, somada às fragilidades
do processo de formação em saúde, dentre muitas outras, influenciam diretamente
as condições objetivas de efetivação dos objetivos propostos nas atividades, o que
exige apreender as mediações presentes na unidade teoria-prática.

A Saúde da Família “entre reformas”


Ao analisar a construção histórica das políticas de saúde no mundo, desta‑
ca-se a constituição do modelo médico hegemônico, que passa a ser questionado

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pela defesa da saúde ampliada e da reorganização dos serviços por meio da defesa
da Atenção Primária e da Promoção da Saúde.4 As experiências de organização
da APS vão acontecer em pleno processo de queda dos sistemas de proteção
social, momento no qual a família assume centralidade na transferência de res‑
ponsabilidades, apontando sua funcionalidade junto ao processo de ajustamento
das políticas sociais ao modelo neoliberal.5
A construção de propostas de ruptura com esse modelo se deu por meio do
movimento de Reforma Sanitária,6 que trouxe importantes avanços na política de
saúde no país, com a conquista do direito na Constituição em 1988. No entanto,
o movimento vai apresentar impasses em seu interior que vão se refletir direta‑
mente na construção dos modelos de atenção, em especial na Saúde da Família.
As repercussões da contrarreforma na constituição da Saúde da Família
podem ser reconhecidas pelo caráter focalista que a proposta assume, o proces‑
so de mercantilização dos serviços de saúde, a precarização das condições de
trabalho e a fragilização da concepção social do processo saúde-doença. Paim
(2008) destaca que nos bastidores desse processo se alterou a correlação de
forças no interior do próprio movimento sanitário.

4. Destaca-se, assim, o papel da conferência de Alma-Ata (1978) como referência para reorganização
dos sistemas de saúde, reconhecida como estratégia para o alcance da meta “Saúde para todos no ano 2000”.
Como expressão de diversas experiências, a declaração é uma referência na orientação da reorganização dos
serviços de saúde e estabeleceu a Atenção Primária à Saúde (APS) como porta de entrada para os sistemas
de saúde, que toma como referência as análises (Starfield, 2002). Como resultado de uma movimentação em
torno da temática, a Carta de Otawa, resultado da Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em
1986, trouxe o debate sobre a promoção da saúde, que se ampliou nos anos que se seguiram, incorporando
novas demandas com a realização de novas conferências ao longo dos anos (Brasil, 2010).
5. Nesse cenário, destaca-se o desmonte do padrão de proteção do Welfare State e a difusão do ideário
neoliberal (Behring e Boschetti, 2007), a liberdade de mercado e o processo de mundialização e financeirização
do capital como um novo estilo de acumulação, acompanhado por grandes mudanças no padrão de organização
da produção com a acumulação flexível, a partir do modelo toyotista (Iamamoto, 2007b). A acumulação é
dada pelas novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (Chesnais, 1996), assim como
os impactos nos espaços geográficos (Harvey, 2005, p. 97).
6. No Brasil, o processo de questionamento ao modelo médico-hegemônico vai acontecer através da
construção de uma abordagem histórico-estrutural dos problemas de saúde, por meio dos departamentos de
medicina preventiva, inicialmente influenciados pela difusão do modelo preventivista americano, que passa
a ser questionado a partir da constituição uma teoria social da saúde que considerava o caráter público da
área da saúde e a determinação social do processo saúde-doença, com crítica à teoria de sistemas e sua visão
positivista da sociedade e a neutralidade do planejamento (Escorel, 2012), com a elaboração de propostas
que resultaram na Reforma Sanitária.

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O caráter progressista da Saúde da Família, defendido muitas vezes por
grupos participantes da Reforma Sanitária brasileira, deve ser considerado nesse
contexto de contrarreforma e transformismo com estratégias de refuncionaliza‑
ção dos princípios SUS. Podemos considerar, portanto, que a implementação da
Saúde da Família no âmbito da contrarreforma na saúde, ao ser incorporada de
início como programa e, posteriormente, como estratégia para atenção básica em
saúde, é composta por grupos com diferentes posicionamentos que representam
o jogo de forças sociais no âmbito da reforma sanitária e do projeto privatista.
Soares (2010) destaca ainda que a incorporação de intelectuais do movi‑
mento de reforma sanitária ao projeto de contrarreforma na saúde apresenta-se
como o transformismo apontado por Gramsci. Reconhece que no transformismo
“há ‘a incorporação — engajamento molecular’ de intelectuais e lideranças do
movimento de reforma sanitária ao projeto de contrarreforma na política de saú‑
de”, que possibilita “uma defesa ‘dosificada’ da reforma sanitária e, ao mesmo
tempo, um empobrecimento de sua radicalidade, de maneira que a contrarreforma
realiza-se molecularmente”, gestando-se um novo SUS dentro do SUS histórico.
Com isso a autora afirma que é defendida a ação voltada para o “SUS possível”,
em uma aceitação dos limites da contrarreforma (Soares, 2010, p. 58).
Para Bravo (2007, p. 17), com a mudança no discurso dos protagonistas
do Projeto de Reforma Sanitária, “há uma flexibilização de suas proposições
pautadas nas possibilidades de ação no atual contexto brasileiro”. Desse
modo, “diversos sujeitos sociais do Movimento Sanitário não têm enfrentado
a questão central do governo, que é a subordinação da política social à política
macroeconômica”. Assim, a perspectiva de reforma, relacionada à mudança de
projeto societário tendo como horizonte a transição para o socialismo, aparece
de maneira muito tênue, e não se percebe a busca de articulação com outros
movimentos sociais.
Ao analisar o espaço do Fórum da Reforma Sanitária Brasileira, Silva
(2014, p. 84) afirma que quanto aos intelectuais, na contemporaneidade, no que
diz respeito ao projeto de Reforma Sanitária, identifica-se a disseminação junto
aos sujeitos políticos coletivos de duas perspectivas antagônicas que orientam
as suas práticas: as ideologias da pós-modernidade e a do neodesenvolvimen‑
tismo; a radicalização da democracia e a construção da vontade coletiva. As

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concepções da pós-modernidade, em articulação com a ideologia social-liberal,
“vêm se constituindo como base para o projeto de hegemonia do capital e têm
contribuído para apassivar as lutas sociais, através da construção de consensos”.
Para a autora, “tais ideologias têm uma influência significativa no modo como
esses consensos têm realizado e disseminado a leitura da realidade e orientado
as práticas dos sujeitos políticos coletivos”.
Em sua reflexão sobre as concepções de práticas de saúde e de organi‑
zação de serviços, Paim (2008) aponta algumas perspectivas e racionalidades
na organização dos serviços de saúde,7 que passam a ter grande incidência nas
formulações da Saúde da Família.
O processo de contrarreforma no campo da saúde afirma o forte investi‑
mento na desconstrução dos princípios democráticos conquistados e expressa
a disputa entre os projetos societários. As repercussões desse movimento vão
incidir sobre a estrutura das políticas sociais e também sobre sua concepção,
sua fundamentação teórica e sua prática de assistência.
Dessa forma, o processo de contrarreforma, que inicialmente se apresentava
de forma velada, com um discurso revestido por um reformismo e até mesmo sob
defesa de grupos progressistas, após ter preparado o terreno, dá seu golpe fatal
e passa a questionar diretamente a existência de um sistema de saúde público,
universal, gratuito. Diante desse cenário, cabe discutir também a funcionalidade
da Saúde da Família nesse processo, bem como seu potencial de resistência via
trabalhadores e usuários.8

7. O autor ainda destaca noções como: regionalização, hierarquização, participação comunitária,


multiprofissionalidade, a reflexão teórica sobre tecnologias (materiais e não materiais) e sobre o modelo de
organização tecnológica do trabalho em saúde, a proposta de vigilância da saúde, a reatualização do debate
sobre a promoção da saúde e a qualidade de vida, o estímulo à construção de modelos voltados para a qua‑
lidade de vida e a humanização do cuidado, o debate sobre a promoção da saúde (Paim, 2008, p. 168-169).
8. Em um processo chamado de “golpe parlamentar jurídico midiático”, a presidente Dilma Rousseff
foi destituída da presidência da República, sendo esta assumida pelo vice-presidente Michel Temer. O PMDB
rompe com o governo e, sob liderança do vice-presidente, apresenta o documento “Ponte para o Futuro”, em
que apresenta claramente a perspectiva liberal, com ajuste fiscal, privatizações e reforma trabalhista. Ainda
no governo interino, o ministro da Saúde, Ricardo Bastos, após afirmar que “O SUS não cabe no orçamento”
e que “o país precisa rever o direito universal à saúde”, anunciou no dia 5/8/2016 a criação de um grupo de
trabalho para elaborar um projeto de Plano de Saúde Popular, chamado de Plano de Saúde Acessível. O golpe
representa a estratégia da elite brasileira, que não conseguiu alcançar o poder via voto, para o retorno de um

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A abordagem familiar e comunitária na Saúde da Família9
A análise do processo de formação em Saúde da Família, em um contexto
de contrarreforma, evidenciou o distanciamento das contradições de classe
presentes na política de saúde e a difusão de lógicas pautadas na perspectiva
terapêutica, em detrimento da determinação social do processo saúde-doença
defendida pela Reforma Sanitária.
A defesa da saúde como expressão da organização socioeconômica do
país, “tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a
renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais” (redação dada pela Lei n. 12.864, de 2013, § único) passa
a ser negligenciada não por incorporar novas demandas da vida social, como a
esfera subjetiva, e sim por não promover, entre seus profissionais, as condições
necessárias para a apreensão desse processo em um sentido crítico.
Tal constatação pode ser feita no exame do debate sobre a Reforma Sanitá‑
ria, que, quando é mencionada, é abordada apenas como um evento que levou à
construção do SUS, demonstrando dificuldade de sustentar uma análise crítica
do processo de trabalho e da abordagem familiar e comunitária.
O processo saúde-doença é apresentado a partir da complexidade e da
integralidade biopsicossocial; dos determinantes psicossociais e sociais; da
promoção da saúde, plano subindividual, individual, coletivo, a noção de bem
comum que revela que a dimensão social da saúde é abordada a partir do enfoque
subjetivo e individual. Não há como negar que uma das grandes repercussões

projeto de governo em que prevaleçam os interesses de grupos de poder e do mercado em detrimento dos
direitos sociais. Seus desdobramentos ainda estão em curso, com a destituição de diversos direitos sociais,
trabalhistas e previdenciários.
9. Esta reflexão é baseada na pesquisa realizada a partir de pesquisa bibliográfica buscando compreender
como se organizou a política de saúde diante das demandas do capitalismo e como se configurou o atendi‑
mento à família e à comunidade em diferentes momentos históricos. Foi analisado o material didático de
cursos de especialização em Saúde da Família, disponibilizado pelos espaços de formação da UNA-SUS,
por meio eletrônico, publicados entre 2009 e 2016, ofertados pelas seguintes universidades: Uerj, Unifesp,
UFMG, UFMA, UFMS, UFSC. A análise do material foi realizada a partir do reconhecimento do conteúdo,
sistematização dos dados e análise dos resultados através dos eixos: concepção saúde e doença, política de
saúde, processo de trabalho, educação em saúde, família, comunidade e instrumentos de abordagem.

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do modo de vida capitalista hoje incide sobre a subjetividade dos sujeitos. Con‑
tudo, no movimento de evidenciar as questões de ordem psíquica, há uma clara
desvinculação das determinações sociais. Mesmo quando a condição de saúde
voltada para o indivíduo tenta ser colocada no plano coletivo, sob a perspectiva
do empoderamento, acaba por reforçar a visão individualista desse processo.
Nesse sentido, o processo de trabalho na Saúde da Família passa a re‑
quisitar do profissional uma postura psicoterapêutica. Ora, se o processo de
formação em saúde apresenta sérias limitações, o que leva a considerar que há
possibilidade de uma formação de qualidade voltada para o enfoque terapêutico?
Levando em conta a referência à perspectiva sistêmica da abordagem biopsi‑
cossocial e a perspectiva fenomenológica da abordagem centrada na pessoa, há
que se considerar que a análise da dimensão psíquica requer preparo, estudo
e uma formação sólida. Na possibilidade de uma formação a partir de noções,
construção de habilidades, como sensibilização profissional, abre-se caminho
para a subjetivação permeada por perspectivas assistencialistas, clientelistas,
moralizantes, culpabilizadoras e responsabilizadoras.
A direção do processo de trabalho na Saúde da Família é orientada pela
concepção de produção social da saúde, através da noção de cuidado, referen‑
ciada no debate sobre micropolítica do processo de trabalho, o que evidencia
a influência do discurso pós-moderno. A concepção de saúde, o processo de
assistência e as propostas de intervenção carecem de articulações para além da
esfera relacional e individual, e a proposta de cuidado e a construção de uma
nova forma de vinculação com o usuário em si não garantem uma visão crítica
da dimensão social da saúde. Nesse sentido, são articuladas as perspectivas de
humanização, de acolhimento, de atendimento integral, de interdisciplinaridade,
de clínica ampliada, que, em síntese, reivindicam do profissional de saúde uma
“postura de acolhimento”.
Como campo estratégico para as mudanças defendidas na assistência à
saúde, o processo de trabalho assume na Saúde da Família posturas que transi‑
tam pelo viés psicoterapêutico, de acolhimento e de planejamento. Tal direção
também percorre as consultas, a visita domiciliar, o trabalho em equipe e a
proposta do Projeto Terapêutico Singular. A busca pela construção de estra‑
tégias de aproximação dos profissionais à realidade dos usuários tem se dado
pela via individualista, com valorização das questões subjetivas e a retomada

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de metodologias conservadoras, tanto no enfoque terapêutico, quanto no pla‑
nejamento, sinalizando também para uma responsabilização dos profissionais
de saúde, que, voltados para a “produção do cuidado”, têm a objetivação de sua
prática centrada na dimensão cotidiana/individual não mediada pela dimensão
histórica/coletiva.
O papel estratégico da abordagem familiar e comunitária vai se revelar na
medida em que é na especificidade do uso de seus instrumentos que se mate‑
rializam perspectivas que privilegiam o enfoque individual, com esvaziamento
político das demandas coletivas, que se estabelece como proposta “mediadora”,
centrada na subjetivação, no autocuidado e na responsabilização individual.
A falta de mediação entre as propostas de abordagem e a análise crítica
da conjuntura sociopolítica é evidenciada na análise da abordagem familiar. A
centralidade da família nas políticas sociais é uma requisição do processo de
transferência de responsabilidade clássica do neoliberalismo.
Apesar do reconhecimento das transformações sócio-históricas da família,
há uma reafirmação da centralidade da família nas políticas sociais e da função
protetiva da mesma por meio do cuidado. Nesse sentido, há pleno reconheci‑
mento da concepção ampliada de família e suas configurações, como meio de
reafirmação do cuidado e de sua responsabilização.
Nessa direção, a análise das concepções sobre família aponta a proposta
de atuação voltada para as relações familiares. E, nesse sentido, a intervenção
profissional é direcionada para a compreensão sistêmica e funcional das relações
familiares, apreendendo a família de forma isolada, expressando claramente a
necessidade de ajustamento a um padrão. Os recursos apontam de forma nítida
para a análise de uma estrutura familiar, por meio de classificações das famílias
saudáveis e funcionais, retomando a noção de “famílias desestruturadas”.
Tal análise é conduzida pela perspectiva sistêmica, que concebe a família
como sistema, com referência aos clássicos da terapia familiar. Nesse sentido,
os conflitos que fogem da noção de funcionalidade são enfrentados através da
resiliência, que reforça, mais uma vez, a iniciativa e a responsabilidade indivi‑
dual para o enfrentamento das diferentes expressões da questão social na vida
cotidiana. A compreensão das demandas sociais das famílias através da análise
das condições de risco e vulnerabilidade também se dão em uma perspectiva
sistêmica, reforçando assim o caráter de ajustamento social.

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Tal direção é aprofundada na apresentação dos instrumentos de abordagem,
como o ciclo de vida, genograma, Ecomapa, Firo, Pratice, Apgar, Escala de
Coelho, com enfoque nas relações familiares. Como grande requisição para o
processo de formação, são recuperados instrumentos clássicos, bem como são
elaborados novos instrumentos buscando se adaptar a essa demanda. Transitando
entre mapas e siglas, os instrumentos propõem uma análise com enfoque nas
relações (intra) familiares.
Chama a atenção a presença marcante nos cursos do uso do genograma,
que, como instrumento com potencial para diversas análises, ao ser vinculado
à área social, a partir das noções de risco, vulnerabilidade social, norteados
pela perspectiva sistêmica, é um instrumento que favorece a psicologização
e a culpabilização pela vivência geracional de expressões da questão social.
Outro recurso que vai ao encontro das demandas da Saúde da Família
pensada na perspectiva sistêmica e funcional é a análise do ciclo de vida. Ao
estipular classificações das etapas da vida, são apresentadas expectativas para
cada uma delas, estabelecendo um padrão evolutivo. Para não recair numa
padronização social, é apresentado um quadro comparativo entre diferentes
classes sociais, reduzindo as etapas do ciclo de vida de famílias pobres apre‑
sentando uma extensa lista de estereótipos, que só tende a reproduzir de forma
preconceituosa os estigmas conferidos à classe trabalhadora. Recupera-se aí as
bases mais conservadoras do atendimento às famílias nas políticas sociais, pois
sem fazer as mediações necessárias com as condições de vida e de trabalho a
que estão submetidos diferentes segmentos da classe trabalhadora, se reforça,
mais uma vez, a culpabilização e a responsabilização de indivíduos e famílias
pela sua condição socioeconômica e cultural, bem como pelo enfrentamento
de tais condições.
A análise familiar por meio do ciclo de vida é um recurso que, também
concebido com enfoque de planejamento estratégico, propõe o atendimento das
demandas de saúde por etapas de vida e apresenta as demandas de saúde por
grupo de crianças, mulheres, adolescentes, jovens, adultos, idosos. Há autores
que justificam a abordagem familiar justamente por esse aspecto, que exige
uma formação generalista da área médica. No entanto, não há mediações que
estabeleçam um diferencial que coloque a abordagem clínica em uma dimensão
ampliada, já que o enfoque continua sendo individual.

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Já os instrumentos claramente importados, como Firo, Pratice e Apgar,
voltam-se para a análise das relações interpessoais. Os instrumentos reiteram a
referência à teoria sistêmica em suas diferentes vertentes voltadas para a família,
que, mesmo diante da fragilidade do processo de formação, passa a orientar a
prática assistencial.
Nesse sentido, o uso dos instrumentais não é acessório, e sim materia‑
lizador de uma análise positiva e positivista das relações sociais, das classes,
da política, da saúde, que se concretiza na subjetivação e psicologização das
demandas sociais dos trabalhadores, da individualização da vida social, da
responsabilização pelas condições de vida e de saúde, na perspectiva da resi‑
liência, do ajustamento social, da responsabilização do cuidado e de políticas
focalizadas, em um contexto de naturalização da questão social e de demandas
sociais desvinculadas das contradições societárias.
O enfoque individual e moral da família abre caminho para que os serviços
oferecidos pelas políticas sociais promovam a manutenção dessas relações sob
a perspectiva terapêutica, refletindo assim a perspectiva da doença também
no campo das relações sociais. Renova-se a perspectiva de patologização da
vida social.
As possibilidades de reconhecimento da realidade dos sujeitos e sua in‑
fluência nas condições de saúde, com articulação coletiva para o enfrentamento
das necessidades sociais e com a construção de propostas de intervenção que
busquem a autonomia dos sujeitos, são colocadas então na abordagem comuni‑
tária. No entanto, a perspectiva sistêmica coloca ainda, no campo das relações, a
comunidade, que também passa a ser um objeto terapêutico. Em um cenário de
contenção de acesso aos recursos terapêuticos, a terapia comunitária responde
diretamente aos limites de uma política focalista e contencionista, trazendo para
o campo psíquico o enfrentamento das expressões da questão social.
A noção de cuidado é retomada através da produção da saúde, que se re‑
porta à perspectiva de vulnerabilidade e risco social, da cogestão de redes e da
corresponsabilização, articuladas através do Projeto de Saúde do Território, rea‑
firmando a aposta na capacidade das pessoas para a superação das contradições
que permeiam as demandas sociais na área da saúde. A redução da perspectiva
comunitária ao território é o ponto comum na Saúde da Família. Seja pela lógica

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do planejamento, da participação, das redes, a noção de território é esvaziada de
seu caráter social e se afirma na perspectiva do consenso e do empoderamento.
Evidencia-se que a tendência conservadora apontada na análise do processo
de trabalho e da abordagem familiar também atinge a abordagem comunitária,
que, apartada da dimensão política, favorece o ajustamento e a harmonização
da “comunidade”. A construção de perspectivas que privilegiam o enfoque
individual, com esvaziamento político das demandas coletivas, se estabelece
como proposta “mediadora”, centrada na subjetivação, no autocuidado e na
responsabilização individual.
A participação social, como esfera tão cara ao processo de democratização
da saúde, é capturada pela lógica do consenso e das demandas institucionais.
Contudo, em um sinal de resistência, também se registra o potencial da parti‑
cipação popular frente às contradições da política de saúde brasileira e chama
à tomada de decisão em relação à defesa ou não do SUS e a importância de
transformar motivos individuais em ações coletivas.
Contrariando a expectativa de uma esfera marcada por práticas de contro‑
le social, a educação em saúde destaca-se pela possibilidade mobilizadora da
educação popular em saúde. Aliás, foi nessa perspectiva que foi construído um
caminho crítico de abordagem comunitária na luta pelo direito à saúde. Em que
pese a forte referência a Paulo Freire e a necessidade da construção de novos
padrões de educação em saúde, fica evidenciada a influência das perspectivas
da integralidade e da promoção da saúde, permeada pelo subjetivismo, pelo
individualismo e pela responsabilização.
A lógica que permeia a promoção da saúde através do empoderamento
encontra na educação em saúde um lugar estratégico de difusão, que, assim
como nas abordagens familiar e comunitária, retoma a dimensão subjetivista
e reforça a responsabilização sobre a condição de saúde. Essa perspectiva é
reproduzida, em estratégias de educação em saúde apresentadas por alguns
cursos, como a metodologia problematizadora, em rodas de conversa e entre
os grupos operativos.
Na esfera da educação em saúde, a educação permanente também recorre
à metodologia de problematização do cotidiano como proposta de formação. No
entanto, há que se questionar: como é possível problematizar o cotidiano de um

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serviço de saúde sem reconhecer as contradições societárias que determinam o
processo saúde-doença, a expectativa do direito, a configuração da política, o
processo de trabalho, a família, a comunidade?

Considerações finais
A análise da abordagem familiar e comunitária por meio do processo de
formação de especialistas em Saúde da Família evidencia que há um posiciona‑
mento claro na disputa entre projetos de saúde e sociedade. O que inicialmente
parecia obscurecido por uma proposta mediadora entre o político e o assisten‑
cial, é desvelado pelo exame da abordagem familiar e comunitária, seu foco
de atenção. A multiplicidade de influências e referenciais, longe de só revelar
ecletismo, reafirma uma direção social hegemônica na reprodução de uma
lógica conservadora.
Ainda que haja a declaração de posicionamento de defesa do SUS, de seus
princípios, e uma motivação para a construção de novas práticas assistenciais, à
medida que essas ações passam a ser permeadas pelo processo de contrarreforma
e de toda lógica neoliberal, sem mediações com as contradições societárias, há,
consequentemente, o favorecimento da lógica privatista e flexibilizada. Não há
neutralidade que se sustente em uma sociedade de classes!
O que queremos sustentar é que, ao alcançar a esfera cotidiana dos indivíduos
e nela reproduzir a lógica da individualização, da subjetivação da vida social, da
responsabilização, do (auto)cuidado, do empoderamento, legitima-se o projeto de
minimização do Estado para o social e de maximização do Estado para o capital,
que vem resultando no desmonte dos direitos sociais, na transferência de res‑
ponsabilidades, no apassivamento dos conflitos sociais e no não questionamento
e obscurecimento do processo de exploração capitalista da força de trabalho.
Por outro lado, a lógica do acolhimento, da humanização, da integralidade,
da escuta, apartada das mediações societárias, em um serviço que se apresenta
como porta de entrada, mas se efetiva como porta de contenção, tende a respon‑
sabilizar os trabalhadores de saúde pela condução de processos que extrapolam
suas possibilidades. As consequências da atuação voltada para as relações do

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espaço cotidiano, sem mediações com o conjunto dos trabalhadores, são o
adoecimento e a desmobilização.
Como consequência desse processo, há que se questionar o potencial
mobilizador da Saúde da Família em torno da defesa da saúde como direito
universal e a defesa do SUS, frente ao cenário de clara eminência de sua extin‑
ção ou esvaziamento. A saúde possui um extenso potencial mobilizador, pois
como demanda de reprodução da vida e da força de trabalho é capaz de construir
mediações que atinjam diversas esferas da sociedade.
A hegemonia de perspectivas conservadoras na Saúde da Família apresenta
grandes desafios e exigências para o Serviço Social. Como profissão que atua
diretamente no atendimento às famílias e comunidades e tem no seu arcabouço
profundas formulações e análises das consequências dessas abordagens nas
políticas sociais, o Serviço Social pode trazer contribuições expressivas para o
redirecionamento da direção social do trabalho nesse campo.

Recebido em 24/4/2017 ■ Aprovado em 13/6/2017

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O Serviço Social entre a
prevenção e a promoção da saúde:
tradução, vínculo e acolhimento
Social Work between prevention and health promotion:
translation, attachment and reception

Francis Sodré*

Resumo: Este artigo aborda o trabalho dos assistentes sociais na


atenção primária em Vitória-ES. Interessa-nos refletir sobre as ações de
“promoção à saúde” realizada pelos assistentes sociais. Diferenciamos
duas abordagens na saúde pública: a prevenção de doenças e a promo‑
ção da saúde. Quando centrado nas atividades de promoção, o trabalho
é voltado para a produção de vínculos e acolhimento. “Promover” à
saúde também se apresenta como um modelo de educação formal,
centrado em salas de aula nas escolas, e o profissional apresenta-se
como aquele que “ensina” boas práticas, hábitos ou comportamentos.
Palavras-chave: Serviço Social. Promoção à saúde. Saúde coletiva.

Abstract: This article is about the social workers´s work in primary attention in Vitória/ES. We are
interested in thinking about the actions towards “promoting health” social workers undertake. We make
a distinction between two approaches in public health: prevention of diseases and promotion of health.
When related to promotion of health, the work is directed to the production of attachment and reception.
“To promote” health is also a model of formal education, centered in classrooms in schools, and the
professional is the one who “teaches” good practices, habits or behaviors.
Keywords: Social Work. Promotion of health. Public health.

* Assistente social, doutora em Saúde Coletiva, professora do departamento de Serviço Social e do


Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Vitória-ES,
Brasil. E-mail: francisodre@uol.com.br.

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A
estratégia de saúde da família como parte da proposta de atuação na
atenção primária da saúde pública trouxe desafios aos assistentes sociais
envolvidos nas práticas de saúde em equipes multidisciplinares. Inte‑
ressa-nos aqui desenvolver um estudo sobre a proposta de inversão do
modelo hospitalar trazida pelo SUS, por meio de ações de prevenção e promoção
da saúde nas unidades básicas de saúde. O assistente social como parte da equipe
considerada “de apoio” — profissionais que dão suporte à equipe mínima de saúde
nas unidades — passa a ser exigido por cumprir atividades em nome da promoção
da saúde. Junto a isso existe também uma exigência do Ministério da Saúde brasi‑
leiro, que diferencia atividades preventivas de doenças de outras que são promoto‑
ras de saúde. Discutiremos aqui a relação entre a prevenção e a promoção da saúde
nas práticas dos assistentes sociais de unidades de saúde a partir de três momentos
distintos: a) o olhar sobre o território da saúde pública, b) a família como foco de
intervenção e c) o trabalho do assistente social nas ações de prevenção e promoção
da atenção primária à saúde.
Nessa pesquisa exploramos as experiências de trabalho de doze assistentes
sociais (duas de cada uma das seis microáreas regionais de saúde da cidade de
Vitória (ES).1 Elegemos os profissionais com mais tempo de atuação nas unidades
de saúde para realizarmos uma entrevista semiaberta sobre o trabalho dos assisten‑
tes sociais com atividades de promoção da saúde. As entrevistas foram gravadas,
transcritas e analisadas por conteúdo temático com a concordância dos profissionais
entrevistados.

1. O território e a saúde pública


A implantação do Sistema Único de Saúde colocou desafios importantes à
prática dos profissionais da saúde pública no Brasil. A reordenação dos serviços
exigiu a inserção de atividades de vigilância epidemiológica e sanitária com ampla
produção de informações e mapeamentos da população sobre o seu perfil de mor‑
bimortalidade. Na atenção primária à saúde isso representou investir em ações de
prevenção de doenças e promoção da saúde que investigassem microscopicamente
a vida, os hábitos e os costumes de vida das populações através da inserção dos

1. Vitória possui aproximadamente 330 mil habitantes e é dividida em seis microáreas de saúde: região
Central, Continental, Forte São João, São Pedro, Maruípe e Santo Antônio.

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programas voltados à atenção à saúde das famílias, que, posteriormente veio a ser
considerada uma “estratégia” de intervenção do sistema no âmbito local dos terri‑
tórios de saúde.
A primeira preocupação foi esquadrinhar os territórios. Para explorar o âmbi‑
to local da vida exigiu-se o exame apurado dos hábitos e do cotidiano dos morado‑
res. Nos moldes da medicina urbana francesa do século XVII,2 a estratégia de saúde
da família previu que o âmbito local, suas dinâmicas e o fluxo de deslocamento dos
seus moradores continham a matéria-prima para a intervenção dos profissionais de
saúde. Era preciso pensar o cotidiano do local, o território, e investir em medidas de
impacto que interferissem na circulação e no deslocamento dos habitantes.
Desde a implantação do SUS, a vida na cidade foi envolvida de cuidados. A
dinâmica urbana se tornou passível de ser examinada. O fluxo e a circulação dos
seus moradores tornaram-se foco de averiguação para estudos minuciosos de roti‑
nas que pudessem interferir nos quadros sanitários em todo o país. A população
tornou-se muito numerosa nas grandes cidades, e pouco a pouco as diferentes
realidades sociais do Brasil se tornaram cada vez mais complexas para uma inter‑
venção julgada eficaz no quadro político-sanitário.
Essa preocupação não pode ser considerada de tipo novo, pois que desde o
início da idade moderna existiam as medidas de contenção das populações em sua
territoriedade. A contagem das casas, das pessoas, das ruas, dos riscos de adoeci‑
mento ou insalubridade, desde o século XVII na Europa, foi mapeada com o intui‑
to de transformar a cidade em um grande banco de estatísticas sobre o cotidiano.
Daí a necessidade do esquadrinhamento das cidades e bairros. A cidade deveria ser
inspecionada, rua por rua, percorrida com um olhar permanente e controlada pelo
registro de todos os seus fenômenos de saúde por meio de uma incessante vigilân‑
cia. Primeiro, por razões econômicas: o crescimento da cidade, suas relações co‑
merciais e o surgimento da indústria nos grandes centros e suas consequências nas
mudanças urbanas. Segundo, por razões políticas: o aparecimento de múltiplos tipos
de trabalhadores, o controle dos movimentos sociais urbanos e a divisão do terri‑
tório por classes sociais — uma espécie de segregação social e espacial que pode‑
ria vir a gerar conflitos.

2. A medicina urbana francesa preocupou-se no século XVII em conter os movimentos locais de


questionamento às ações de governo com as populações que passavam por condições sociais degradantes de
vida. Controlou-se o movimento das pessoas, seu deslocamento, o fluxo da água e esgoto, bem como o
perfil de vida e morte das pessoas com ações autoritárias, sem diálogos com as populações. Sobre isso ver
Foucault, 2000.

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O interessante é observar que o primeiro objetivo desse olhar sobre a cidade
é que a aglomeração de pessoas e a confusão das rotinas tornam-se um perigo para
o tecido urbano. Em tempos atuais, a atenção primária à saúde apresenta a neces‑
sidade de verificar as coisas, os objetos, os elementos que circulam pela cidade
juntamente com as pessoas. Essa medida de exame sobre o “território salubre”
torna-se o primeiro pilar da saúde da família como estratégia desse nível de atenção
à saúde pública.
A mobilidade urbana, o movimento das pessoas nos bairros, a construção de
edificações, o movimento dos veículos e o fluxo por eles gerado passam a ser foco
de estudo para a saúde pública, dividida e mapeada geograficamente. A primeira
ação, portanto, é voltada para a observação da saúde como pertencente a um dis‑
trito sanitário (a cidade pode ser insalubre e por isso deve ser mapeada por uma
geografia humana e pelos seus “riscos”). Esse território contém o hábito e o coti‑
diano das pessoas. Dessa forma, torna-se um objeto de estudo e intervenção para a
saúde pública.

2. A intervenção com as famílias


O segundo foco de ação é a família. A estratégia de saúde da família contém
a preocupação com os costumes. A família, como conceito elitista, foi revisitada
em sua raiz pelo SUS. O modelo nuclear não atendia mais a parâmetros que ditavam
ações pautadas pelo atendimento à ginecologia para a mãe, a medicina do trabalho
para o pai e a puericultura para as crianças. Ainda que esse modelo tradicional (e
conservador) seja a orientação central dos padrões de moralidade para o Estado, a
estratégia de saúde da família teve que ser reorientada em sua fonte mais primária:
o costume familiar da grande cidade industrializada foi invadido pela violência,
pobreza e hábitos de higiene e alimentação que transformaram a ordem elitista em
uma “desordem” social.
A família nuclear foi substituída pelo modelo “solto”, flexível, sem ordem,
sem laços entre consanguíneos, questionando a centralidade do patriarca, com
longevidade estendida e, muitas vezes, pautada por valores de consumo e acostu‑
mada à intervenção do Estado em seus hábitos mais domésticos. Para a estratégia
de saúde da família (ESF), a “organização” das famílias visando a formação da
prole, a educação dos mesmos e a conservação das crianças foi um embate a ser
travado em cada território. As famílias empobrecidas, mapeadas na implantação da

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ESF, são marcadas pela miséria, focalizadas nas políticas de assistência social,
habituadas a sobreviver pelos laços de solidariedade e ser objeto de ação do Estado
somente por meio de políticas de moralização.
Costa (2004) relata que a criação da medicina de família no século XVIII no
Brasil foi a criação de uma atuação profissional tirânica. O modelo da medicina
familiar, que hoje se expandiu a muitas profissões de saúde, deu origem a profis‑
sionais que fazem da saúde das populações objeto de ação despótica.
Todo esse caldo de história não se perde reinventando modelos. A Estratégia
de Saúde da Família traz consigo a obrigatoriedade de reorientação de modelos de
serviços pautados unicamente na centralidade hospitalar; mas também se reorienta
por meio de uma sociedade altamente medicalizada e com costumes que evocam a
busca por um corpo perfeito — tanto em sua estética, quanto na necessidade de
tornar este corpo apto ao trabalho, pronto a produzir, livre de adoecimentos. Desta
maneira, a ação do Estado ainda que autoritária, encontra novos valores relaciona‑
dos à produção de saúde.
Eis então a fórmula para a intervenção da atenção primária: território e famí‑
lia. Essa fórmula é a mesma do Brasil colonial quando foi implantado o primeiro
olhar social sobre a saúde pública no Brasil (Costa, 2004). O que agora pretendemos
compreender é como e de que forma, cria-se um discurso reformado desse método
com nome de “promoção à saúde” e de que forma esta prática é vivida por assis‑
tentes sociais que atuam na atenção básica do SUS.

3. Do método de “prevenir” ao modo de “promover”


A prevenção de doenças está correlata ao campo da epidemiologia e, desta
forma, se detém a evitar o adoecimento a partir de um conhecimento de práticas
cuja meta central é diminuir e evitar doenças, principalmente imunizando indivíduos
(Czeresnia, 2003). De acordo com Buss (2003), evitar que as pessoas adoeçam é o
ponto principal das técnicas preventivas.
Quando dizemos que algo pode ser evitável, conhecemos o agente causador.
Desta forma, afirmamos conhecer “o risco”, o que significa conter aquilo que a ­priori
determina o surgimento de uma doença. Então podemos afirmar que iremos prevenir,
se antecipar, agir antes que a doença se instale. Os trabalhos de prevenção são de
antecipação à doença, combatendo seus possíveis agentes causadores.

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Essa atividade, portanto, está diretamente relacionada à figura do médico —
profissional central às práticas de prevenção. A centralidade em um profissional de
saúde direcionará o cuidado, principalmente aos “grupos-alvo”, “grupos de risco”
ou “grupos vulneráveis”, tais como diabéticos, obesos, hipertensos. Para estes de‑
verá ser criada uma estratégia que usará de argumentos de persuasão para evitar
agravos e sequelas das enfermidades de que são portadores. O foco aqui é fazer
com que as pessoas mudem seu modo de vida, não como escolha, mas como im‑
posição de uma norma sanitária.
Por outro lado, quando objetivamos a promoção da saúde, essa prática é
avaliada socialmente de forma positiva pelos profissionais da saúde. Os trabalhos
de promoção à saúde não se tornam objetos apenas de profissionais da área médica,
mas ao contrário, deverão favorecer o envolvimento e a participação de todas as
pessoas, as organizações da sociedade civil, as associações de bairros etc. Nessa
perspectiva, dar-se-á ênfase não apenas à saúde, mas toda uma rede de temas di‑
versos deverá ser abordada a fim de criar possibilidades de mudanças nos modos
de vida, comportamentos e no ambiente em que vivem e convivem as pessoas. Esse
enfoque deve abranger as instâncias municipal, regional e federal, além de incen‑
tivar a intersetorialidade das ações.
Para atuar com promoção da saúde é preciso associar os saberes técnicos aos
saberes populares, para, agindo em ações intersetoriais, gerar o protagonismo dos
sujeitos levando, consequentemente, a um nível ótimo de vida (Buss, 2003). Por‑
tanto, a promoção da saúde é um conceito em construção por meio de ações que se
completam entre a prevenção e a promoção, de tal forma que uma não venha a
anular a outra e o saber técnico dialogue com o saber popular, proporcionando a
criação de um “novo saber” que não tem parâmetros ou pressupostos sobre ele.
De acordo com Czeresnia (2003), pela promoção é possível fortalecer as ca‑
pacidades individuais e também coletivas, proporcionando maior capacidade de
escolhas e atitudes sobre a própria vida. Segundo a autora, promoção não é apenas
questão de existência, é questão de qualidade de existência. Grande parte dos pro‑
gramas de promoção da saúde passa pela mudança de comportamentos e hábitos
de vida. Essa confusão entre os termos ocorre por ser a promoção um campo novo,
ao contrário da prevenção, que já está consolidado entre as práticas de saúde. A raiz
da questão pauta-se no entendimento sobre a saúde não apenas como ausência de
doenças, mas é analisada a partir de vários outros aspectos da vida de uma pessoa
ou de um grupo antes de considerá-los ou não saudáveis.
Por isso podemos afirmar que não há e não haverá um modo correto de pro‑
duzir ações de promoção à saúde. Ela não está contida em protocolos ou manuais

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43
do sistema público de saúde com a maneira certa ou errada. A promoção da saúde
resguarda aspectos da educação em saúde, baseada na tecnologia do diálogo que
produz conhecimento em ato, no momento do encontro. Sendo assim, trata-se de
uma ação baseada no acesso ao serviço de saúde como aquele que irá “produzir
junto” conhecimentos, ações, vinculações e interpretações sobre o modo de produ‑
zir saúde.
Não temos dúvidas que na política pública o que motiva a discussão em torno
do tema é um interesse ou uma necessidade de diminuir os custos elevados que vêm
sendo contabilizados na atenção à saúde. Esse enfoque pode atender a ideais capi‑
talistas, pois que buscam efetivar a autonomia das pessoas para, dessa forma,
possibilitar uma menor necessidade de ação do Estado.
Por outro lado, autores como Buss (2003) ressaltam ainda que o movimento
em torno do tema coincide com os interesses do desenvolvimento sustentável da
Agenda 21, que considera não só os aspectos internos da vida, mas o ambiente onde
ele vive e se relaciona.
Para dar conta desse amplo leque de aspectos da vida toma-se o tema “pro‑
moção da saúde” com conceitos discutidos nas duas últimas décadas, principalmen‑
te no Canadá, Estados Unidos e alguns países da Europa. Aconteceram nesse lapso
de tempo várias conferências quando o tema foi pensado e discutido em encontros
que ocorreram em Ottawa (1986), Adelaide (1988), Sundsval (1991), Jacarta (1997),
México (2000) e também na Conferência Internacional de Promoção da Saúde
realizada no Brasil em 1992 (Buss, 2003).

O Serviço Social entre a prevenção e a promoção da saúde


Os assistentes sociais relatam diferentes formas de prevenir ou promover nas
ações que desenvolvem em saúde. Quando são solicitados para explorar as ativi‑
dades de prevenção, respondem com clareza e precisão, pois compreendem a
atuação de combate ao um “risco” específico, referem-se a doenças que requerem
uma atuação que se antecipe e que não deixe avançar um quadro preexistente ou
em vias de aumento de número de casos.
O mesmo não se aplica quando questionados a definir o que seja uma ativi‑
dade de promoção. Na mistura das respostas, que muitas vezes acontece, dizem
que promover é algo amplo, maior e que busca uma mudança de hábitos ou
comportamentos.

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44
A promoção da saúde quase sempre é referida como uma atividade de educa‑
ção em saúde pelos assistentes sociais. Referem-se às atividades dialógicas, como
as reuniões com a comunidade, mas também mencionam as palestras — como
forma de transmissão de conhecimentos considerados “científicos” aos usuários
dos SUS.
Evidencia-se que os assistentes sociais permitem entender a educação em
saúde por duas vertentes de atuação: 1) algo que se dá em ato, no momento do
encontro como troca de saberes e a capacidade de dialogar sobre comportamentos,
estilos de vida, dúvidas em relação a determinada atitude. Proporciona acolhimen‑
to e muitas vezes “traduz” para a linguagem dos usuários uma ação desejada pelas
diretrizes ministeriais como uma “atitude saudável”. Neste sentido, a “tradução”
realizada pelo assistente social coloca-se como um papel a ser desempenhado na
qualidade de um interlocutor entre as ações educativas propostas pela saúde públi‑
ca e o conhecimento que se quer transformar em ação pelos usuários. Outra com‑
preensão deriva de um entendimento sobre educação em saúde como: 2) uma
concepção que se resume à transmissão de conhecimento científicos. O usuário do
SUS é visto com um receptor de informações. Os assistentes sociais elegem um
tema específico a ser tratado em reuniões, atividades grupais ou outra ação que seja
coletiva, denominada “atividades de educação em saúde”, pois envolve o trabalho
com a linguagem e uso de recursos professorais: projeção de slides, cadeiras em
fila, sala de aula formal ou auditório, quadro, cartazes ou imagens para repassar um
conhecimento sobre determinado tema. Muitas vezes esse suposto tema não é de
interesse dos usuários presentes nas reuniões, que estão ali para cumprir um pré‑
-requisito de determinada atividade — como os critérios de inclusão do programa
Bolsa Família do governo federal — requisito considerado obrigatório (uma con‑
dicionalidade).
A reunião do programa Bolsa Família se torna o espaço de muitos assistentes
sociais atuam na atenção primária e se colocam como interlocutores da ação mi‑
nisterial em sua relação com a comunidade. Muitos profissionais entendem que um
programa que gere renda contém em si a ação de promoção da saúde, visto que essa
ação desencadeará inúmeras outras possibilidades de gerar autonomia e liberdade
para o consumo de mercadorias que proporcionarão maior qualidade de vida, aces‑
so a determinados alimentos, medicamentos, vestuários etc. No entanto, o formato
como são realizados os encontros coletivos para cumprir as condicionalidades do
programa muitas vezes é desvirtuado pelos próprios assistentes sociais.
Encontramos profissionais que usam os encontros do programa Bolsa Família
como um espaço para realizar reuniões sobre doenças, como diabetes, tuberculose,

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hipertensão ou tabagismo. Muitas vezes o público presente a essas reuniões não era
portador de nenhuma dessas doenças e colocavam-se sentados, em lugar de sub‑
missão ao profissional de saúde, para cumprir a condicionalidade do programa e
continuar recebedores dos direitos que o Bolsa Família proporciona. Quando per‑
guntados ao final das reuniões, os usuários não entendiam os motivos pelos quais
tiveram que ouvir uma “palestra” sobre um tema que não se relacionava com suas
vidas, não encontravam sentido na ação, mas diziam compreender que aquilo era
realizado para cumprir um protocolo. Por outro lado, os assistentes sociais faziam
mecanicamente uma palestra sobre um tema escolhido, muitas vezes com um con‑
vidado especialista no assunto abordado (por exemplo, um enfermeiro com espe‑
cialização em controle de diabetes) e assim finalizavam a ação como quem atendeu
um quesito do programa estabelecido pelo governo federal. O papel do especialis‑
ta e também do assistente social reproduzem, nesse sentido, uma hierarquização do
saber biomédico, em que cada profissional se responsabiliza por sua “clínica”,
abordando temas específicos recortados por agravo ou por risco à saúde. Tratam de
temas que se correlacionam com o surgimento de doenças, repetindo receitas e
hábitos que julgam difundir como “corretos”. Isso também se aplica a temas como
planejamento familiar ou uso de drogas, pregando práticas de controle em geral
autoritárias sobre a mulher que frequenta a unidade de saúde e a abstinência como
única alternativa ao uso de drogas consideradas ilícitas.
Os espaços de encontro com os usuários da saúde são poucos quando realiza‑
dos coletivamente. Sabemos que existe uma “métrica” que calcula a ação dos assis‑
tentes sociais por produção em determinados serviços de saúde, mas a utilização
desses espaços que se denominam “educação em saúde” como um repasse de infor‑
mação sem uma perspectiva de diálogo com a comunidade é uma ação frequente.
Nesse caso, os assistentes sociais denominam esse encontro como uma ação
de “promoção da saúde”, associado ao espaço de “educar” para hábitos e compor‑
tamentos saudáveis. Promover, assim, passa a ser entendido como uma ação ampla,
tanto pelo seu lastro coletivo de abordagem quanto por requerer uma ação que o
profissional se expõe no uso da linguagem perante muitos usuários do SUS e outros
profissionais com quem dividem as atribuições do “fazer saúde” nas unidades de
saúde municipais.
Frequentemente, essa ação tem um foco direcionado para a ação individual
(e individualizante), no esforço do indivíduo em mudar seu pensamento ou atitude
— mesmo que aconteça por meio de uma abordagem grupal. Ou seja, ainda que
reunidos para uma ação coletiva, o foco do assistente social está na atitude direcio‑
nada ao indivíduo, podendo ser uma reunião com abordagens grupais, mas espe‑

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rando uma ação que seja uma resposta de indivíduo por indivíduo. Além disso, a
palestra é uma forma de abordagem que coloca lugares estabelecidos: um indivíduo
sabe e detém o poder da transmissão do conhecimento; outros não sabem e colocam‑
-se no lugar da recepção de informações. Isto aborta qualquer perspectiva dialógi‑
ca em um trabalho de abordagem coletiva.
Essa relação está atravessada pela concepção da prevenção embutida na pro‑
moção da saúde. Existe um entendimento que “promover” significa não deixar
desenvolver uma doença ou não deixar potencializar um risco, e isto se define como
prevenir, mas aparece denominado pelos assistentes sociais como “promoção da
saúde”. A preocupação pela adoção de “comportamentos saudáveis” baseia‑se na
premissa de que boa parte dos problemas de saúde está relacionada com estilos de
vida. Dessa forma, ações ligadas às mudanças das condições de existência, como
acesso à educação, à moradia e ao saneamento, não são encaradas como relevantes
nesse processo. Podemos dizer que essa concepção de saúde relaciona-se à ideia
de ausência de doenças e reflete a primazia da ação individual. O foco da ação
passa a ser, então, o indivíduo e seus hábitos, como se fosse possível isolá‑lo de seu
contexto social, econômico e político (Santos et al., 2010).
A relação que reforça e faz repetir essa concepção de abordagem em saúde
pelo assistente social se faz presente no modelo biomédico de atenção à saúde. Os
assistentes sociais trazem de forma frequente em seu discurso a necessidade de
conversar com a equipe sobre o entendimento do que seja saúde ou doença. Veem‑
-se no lugar ainda repetido daqueles profissionais que recebem toda e qualquer
demanda que não tem resposta imediata pelos profissionais de formação biomé‑
dica. E aquilo que não apresenta uma resposta imediata ou um diagnóstico fecha‑
do pelos profissionais que usam o jaleco branco é dirigido aos assistentes sociais
como “uma questão que é social” e, portanto, precisa de um encaminhamento ou
ação do profissional que não consegue resolver a demanda de forma a fechar um
diagnóstico, anamnese, exame ou evidência numérica que se torne uma estatística
epidemiológica.
Está contido nesse diálogo (não dito e não verbalizado diretamente) uma
concepção de saúde pública que se associa à formação de pequenos prontos‑
-atendimentos ou mini-hospitais dentro das unidades de saúde. Entende-se por
social tudo aquilo que não tem resposta imediata por parte da equipe considerada
“básica” (médico, enfermeiro, dentista e agente de saúde). Há repetição de um
entendimento de que aquilo que é social é exógeno à saúde pública, como se a
questão social, suas expressões e suas macrodeterminações não fossem parte da
saúde. Assim, o que requer uma intervenção social não se mostra como algo en‑

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dógeno ao campo da saúde. É tratado como uma externalidade. É como se exis‑
tisse uma porta imaginária dentro das unidades de saúde que dividissem o bioló‑
gico e o social, devendo o usuário atravessar essa porta ou não passar por ela. O
que é social então aparece como algo “diferente” e isolado da saúde e seu campo
duro de saber.
Daí então que as ações de promoção à saúde são consideradas indicadores
importantes para os gestores das Secretarias Municipais de Saúde para mostrar uma
prática social de trabalho com a saúde coletiva. Todavia, quando acontece a divisão
do trabalho em equipe, aquele trabalho que condensa a prática do diálogo com a
comunidade, este mesmo trabalho é considerado algo menor, com indicadores não
muito claros, metas não muito rígidas a serem alcançadas pelos profissionais da
estratégia de saúde da família. Isto porque esse trabalho de promoção da saúde não
pertence à saúde no seu campo duro (químico e biológico) de saber.
Por outro lado, o assistente social cumpre um papel fundamental de responder
a demandas que se relacionam à dimensão local do território: atender vítimas de
violência velada ou visíveis e encaminhá-las a serviços específicos, abandono de
idosos, maus-tratos a crianças ou mulheres em situação de vulnerabilidade social
ou a pobreza que se expressa na “falta de” — uma dimensão capturada nas visitas
domiciliares.
Encontramo-nos, portanto, em outra dimensão do trabalho do assistente
social nas unidades de saúde: a sua aproximação ao trabalho do agente comuni‑
tário de saúde. Logo no início da implantação da estratégia de saúde da família
pelo Ministério da Saúde, o Serviço Social, por meio do seu órgão de represen‑
tação de classe, questionou a inserção do assistente social como “equipe de apoio”
à “equipe básica” nas unidades de saúde. Essa distinção fez permanecer uma
separação preexistente ao modelo de intervenção com famílias. Questionava-se
o isolamento do Serviço Social dentro da divisão do trabalho em equipe, ques‑
tionava-se o instrumental subutilizado do assistente social na abordagem com
famílias (visto que era uma estratégia de saúde da família) e, ainda, o trabalho de
visita domiciliar — tão característico da prática do Serviço Social — atribuído
então para um segundo profissional, de nível médio de escolaridade, o agente
comunitário de saúde.
Atualmente, essa divisão do trabalho dentro das unidades faz com que o as‑
sistente social e o agente comunitário de saúde realizem a visita domiciliar. O
primeiro, o assistente social, com a intenção de esclarecer informações que não
estejam tão evidentes para subsidiar o seu processo de intervenção, parecer social
ou trazer novos dados e informações para a equipe de saúde como um todo, buscar

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48
novos subsídios sobre o acompanhamento de um caso ou algo que não tenha sido
dito claramente após a reunião de um grupo. O segundo, o agente comunitário,
utiliza a visita domiciliar como uma captura de dados, coleta de informações deli‑
mitadas previamente e organizadas em dezenas de questionários que devem ser
aplicados e preenchidos de forma correta. Será o agente comunitário que trará a
informação primeira, o dado bruto a ser trabalhado pela equipe, suas impressões,
sua observação sobre a realidade. Ou seja, espera-se desse agente comunitário um
olhar sensível sobre a realidade de saúde que subsidiará a intervenção da equipe
que acontecerá a posteriori.
O fato é que a visita domiciliar tornou-se uma ferramenta comum para ambos,
e no jogo das relações de trabalho os agentes comunitários de saúde observam as
visitas feitas pelos assistentes sociais como um trabalho a menos a ser realizado
por eles. Uma vez que o assistente social tenha visitado determinada família,
considera-se uma a menos para o agente comunitário abordar, e isso se torna um
motivo de conflito a ser resolvido pelas gerências dos serviços.
A proposta das visitas domiciliares é diferente em sua essência. Contudo,
quem acaba perdendo com esse processo de trabalho assim organizado é o usuário
do serviço de saúde que tem sua casa “aberta” para os profissionais de saúde várias
vezes, passivo a uma intervenção que ele ainda não sabe no que resultará. Assim,
a visita domiciliar se torna um procedimento invasivo do assistente social e do
agente comunitário de saúde, objetivando uma intervenção rotineira ao âmbito mais
privado da vida: a residência e os hábitos domésticos de comportamentos. Nas
casas das famílias mais pobres isso se torna um procedimento corriqueiro, e os
profissionais de saúde veem essas famílias como pessoas que “devem” abrir as
portas das suas casas para a intervenção dos profissionais em nome do SUS e em
nome do Estado.
Em um comparativo, os profissionais relatam que nas casas de famílias de
classe média ou com renda mais alta em bairros considerados ricos, existe grande
dificuldade de entrar nas casas das pessoas, visto que nem sempre permitem ou
julgam não ser necessário. Por outro lado, os assistentes sociais avaliam que as
famílias mais pobres permitem sua entrada de forma cortês. Os profissionais então
rotulam que essas famílias são mais “educadas”, pois abrem suas portas e entendem
o procedimento de entrada da equipe em suas casas.
A visita domiciliar é uma ferramenta apontada pelos assistentes sociais como
subsidiária ao trabalho de promoção da saúde, pois ela proporciona a coleta de uma
informação em estágio avançado a ser trabalhado pelo Serviço Social, quando a
informação não está clara e o parecer social está ainda obscuro. Desta forma, re‑

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sulta da visita um “esclarecimento” de algo que o assistente social pressupunha ou
não tinha informação alguma.
Alguns profissionais chegam a declarar que não consideram a visita domiciliar
uma ferramenta da promoção da saúde, pois ela se confunde com um “trabalho de
polícia”. A visita algumas vezes funciona como a busca por uma prova ou evidên‑
cia sobre um hábito, um comportamento ou uma atitude que será combatida pelo
assistente social. Associam-se a isso o abandono de crianças, o envolvimento com
tráfico de drogas, violência contra mulheres, maus-tratos em caso de transtornos
mentais, higiene (individual ou no âmbito dos cuidados da casa), alimentação ina‑
dequada a doentes ou idosos que demandam cuidados. Nesses casos, o assistente
social tem sua prática de visita domiciliar legitimada como “autoridade sanitária”
na investigação dos casos que se manifestam como uma expressão da questão social.
Contudo, essas “descobertas” feitas por meio de um trabalho denominado de “in‑
vestigação” pelos assistentes sociais não são consideradas atividades de promoção
da saúde, realizadas, muitas vezes, com incerteza pelos profissionais. Pois produz
um questionamento sobre o limite tênue da visita domiciliar associado ao trabalho
de policiar, inquirir, investigar a vida dos usuários da saúde pública. Alguns profis‑
sionais, em situações mais graves, preferem não realizar o trabalho de visita domi‑
ciliar, tamanho o envolvimento de determinada família com o tráfico de drogas
— o que implica a segurança de suas próprias vidas.
A diferença desse trabalho realizado pelo assistente social e o agente comu‑
nitário está, também, na contagem dessa produção. O assistente social habitualmen‑
te não tem um número a ser perseguido em suas visitas domiciliares. O agente
comunitário, sim. Daí que a visita realizada pelo assistente social tem uma flexibi‑
lidade que o agente comunitário não possui. Portanto, ela passa a ser mais dialoga‑
da, não preocupada com o tempo ou com um número de questionários a ser
preenchidos. Desta forma, a dimensão dessa produção, ganha em qualidade e se
difere do trabalho medido pela quantidade.
O produto final da visita resulta em um relatório que pode vir a subsidiar um
parecer social para o Juizado da Infância e Juventude, servir de encaminhamento
para um centro de referência de assistência social ou resposta a um questionamen‑
to do ministério público — uma demanda que a equipe considerada “básica” de
saúde não quer para si. E esse trabalho não consta nos boletins de produtividade
das unidades de saúde para as Secretarias Municipais, nas metas estabelecidas pelo
Ministério da Saúde e não é “contabilizado” pelos assistentes sociais. Muitos pro‑
fissionais possuem um controle interno dessa produção e guardam consigo, até em
armários próprios, os pareceres e relatórios gerados pelo Serviço Social.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 117, p. 69-83, jan./mar. 2014 81

50
Considerações finais ou a saúde como produção de vínculos
O olhar biomédico que demarca a questão social como exógena à saúde deli‑
mita uma segmentação do trabalho social demarcado, contraditoriamente, pela
produção de vínculos com o usuário. Será esse o diferencial do trabalho produzido
pelo assistente social. A escuta que acolhe ou o uso de uma linguagem que produ‑
za afetação no usuário do serviço de saúde é o que resulta em uma prática que
envolve e tece relações diretamente com os usuários.
Os assistentes sociais usam da linguagem como sua principal ferramenta no
encontro com os usuários do SUS através da atenção primária à saúde. Percebem
que é a dinâmica de produzir subjetivação nas relações sociais que envolve e poli‑
tiza o encontro entre o assistente social e o usuário. Usam de recursos que se baseiam
majoritariamente na escuta que acolhe, nas orientações que reorganizam o raciocí‑
nio, na tradução de informações técnicas e burocráticas para uma ação que direcio‑
na para a produção do acesso às políticas sociais. Essa forma de receber o usuário
produz vínculo, acolhimento e tradução.
Observamos que a palavra “vínculo” no seu sentido etimológico pode signi‑
ficar conexão, junção, ligamento, amarração. E é exatamente nesse sentido que
queremos fazer uso da palavra. Observamos que os usuários da estratégia de saúde
da família muitas vezes se relacionam com o assistente social em uma relação de
espelhamento. Veem nele a possibilidade de ser acolhidos e depositam nesse pro‑
fissional uma vinculação que produz um elo de corresponsabilidade sobre questões
mais intimistas de suas vidas.
Quando visitados ou entrevistados por um profissional de Serviço Social
vocalizam demandas que não são conotativas de uma doença ou acompanhamento
de algum tratamento apenas. O atendimento individual do assistente social habi‑
tualmente é realizado de portas fechadas, em uma relação que resguarda o sigilo.
Não pela preocupação em mostrar o corpo sem roupa ou o uso de um medicamen‑
to injetável, mas pela linguagem verbalizada que é dialogada de forma direta entre
assistente social e usuário, abrindo códigos e informações somente direcionadas a
um profissional que a população julga “recebedora” dessa relação de confiança. De
forma rotineira, os usuários são correspondidos nessa relação.
O trabalho de escuta e produção de vínculo promove a saúde dos usuários, e
os assistentes sociais têm clareza disto. Este trabalho do diálogo, da atenção, orien‑
tação e escuta é um trabalho que não atende a indicadores ou metas a serem alcan‑
çadas por gestores dos serviços de saúde, pois não são contabilizados como algo
calculável. Por um lado, isso não proporciona visibilidade ao trabalho do assisten‑

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51
te social nas “métricas” administrativas de gerenciamento dos serviços de saúde.
Por outro lado, evidencia a potência da ação desse profissional. No encontro com
os usuários (individual ou coletivamente), esse trabalho não é controlado (ou cap‑
turado) por dentro de sua dinâmica. O produto em decorrência do atendimento
realizado pelo assistente social é potente pelos seus resultados, pois é fruto de um
trabalho que se dá em ato, por meio de uma relação direta com os usuários, argu‑
mentado e fundamentado em ferramentas que são dialógicas. Neste sentido, gera
um produto livre de amarras produtivistas — ainda que as gerências tentem colocar
esse trabalho subordinado a indicadores estatísticos ou epidemiológicos.
Daí que o assistente social percebe que sua principal ferramenta (a linguagem)
gera um produto vital: a ação orientada, com perspectivas de continuidade da vida,
para além do discurso da doença, uma promoção da saúde no seu sentido lato. Esta,
então, se torna a dimensão política do seu trabalho — uma política que produz mais
relações sociais, no sentido de arregimentar, agregar relações humanas para pers‑
pectivar a continuidade da vida. Neste sentido, afirmamos que este trabalho, que é
relacional, é potente em sua ação.

Recebido em 23/9/2013 ■ Aprovado em 2/12/2013

Referências bibliográficas

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FREITAS, C. M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, e tendências. Rio de
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10000100015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 set. 2013.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 117, p. 69-83, jan./mar. 2014 83

52
O trabalho do assistente social
em contextos hospitalares:
desafios cotidianos*
The Social Worker’s job in hospitals: daily challenges

Maria Lúcia Martinelli**

Resumo: Considerando os desafios que se colocam cotidianamen‑


te para o assistente social que atua na área da saúde, especialmente em
contextos hospitalares, no atendimento direto aos usuários, trato neste
artigo das dimensões éticas que estão presentes em seu trabalho e que
são constitutivas da identidade da profissão, expressando‑se em dife‑
rentes níveis desde a ética dos cuidados até a ética militante e de
proteção social. Finalizo indicando a importância da pesquisa para
qualificar o conhecimento e a própria intervenção profissional.
Palavras‑chave: Serviço Social. Saúde. Trabalho profissional. Ética.

Abstract: Taking into consideration the challenges that the social worker acting in the field of ­health
faces everyday, at several aspects, this article treats of the ethical dimensions present in his work and
which constitute the identity of the profession, expressing themselves at different levels from the ethic
of cares up to the active ethic and the social protection. I finish it by pointing out the importance of the
research to qualify the knowledge and the professional intervention itself.
Keywords: Social Work. Health. Professional. Ethical exercise.

* Elaborado com base em artigo publicado na revista Serviço Social e Saúde, ano VI, n. 6, 2007, p. 21‑33.
** Assistente social, doutora em Serviço Social, docente, pesquisadora e coordenadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisa sobre Identidade do Programa de Estudos Pós‑Graduados em Serviço Social da Pontifí‑
cia Universidade Católica de São Paulo/SP, Brasil. E-mail: mlmartinelli@terra.com.br.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011 497

53
O
Serviço Social é uma profissão cuja identidade é marcadamente histó‑
rica. Seu fundamento é a própria realidade social e sua matéria‑prima
de trabalho são as múltiplas expressões da questão social, o que lhe
confere uma forma peculiar de inserção na divisão social e técnica de
trabalho. Como profissão de natureza eminentemente interventiva, que atua nas
dinâmicas que constituem a vida social, participa do processo global de trabalho
e tem, portanto, uma dimensão sócio‑histórica e política que lhe é constitutiva e
constituinte.
Como área de conhecimento e de intervenção profissional, consolida o seu
significado social em suas relações com as demais profissões e com as práticas
societárias mais amplas, especialmente com as que se direcionam para o enfrenta‑
mento das situações de violações de direitos que afetam as condições de vida da
população em geral e, sobretudo, dos setores mais empobrecidos da sociedade.
O exercício profissional, expressão material e concreta do processo de traba‑
lho do assistente social, explicita a dimensão política da profissão e o reconheci‑
mento da condição de sujeitos de direitos daqueles com os quais atua, tendo por
fim último a sua emancipação social.1
Para tanto, em cada ato profissional são mobilizados conhecimentos, saberes
e práticas que, mediante uma ampla cadeia de mediações e do uso adequado de
instrumentais de trabalho, visam alcançar os resultados estabelecidos.
Cada um desses momentos é saturado de determinações políticas, econômicas,
históricas, culturais que estão presentes no atendimento demandado e nas respostas
oferecidas, pautadas sempre em valores éticos que fundamentam a prática do Ser‑
viço Social, com base no Projeto Ético‑Político profissional, como expressão que
é do Código de Ética, aprovado pela Resolução do CFESS n. 273/93, com alterações
posteriores, bem como da Lei n. 8662, de junho de 1993, que regulamenta o exer‑
cício profissional.
A dimensão ética é constitutiva da identidade da profissão, juntamente com
as dimensões técnico‑operativas e teórico‑metodológicas, articulando‑se em termos
de poderes, fazeres e saberes como mediações da prática profissional e expressões
de nossa práxis humana. Há um fim último que buscamos com nossas ações pro‑
fissionais e que configuram a particularidade histórica da profissão. Cada um de

1. É indispensável o aprofundamento do estudo desta categoria por seu uso recorrente no âmbito do
Serviço Social, inclusive no próprio Código de Ética. Recomenda‑se, para tanto, a consulta à obra de Marx,
especialmente, A questão judaica.

498 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

54
nossos atos profissionais, até mesmo o menor deles, é dimensionado eticamente,
direciona‑se à emancipação humana e, portanto, sua vocação é sempre a humani‑
zação da prática profissional.
Consolidamos a nossa identidade profissional, fortalecemo‑nos enquanto
seres humanos quando somos capazes de humanizar a nossa prática, pois

a substância do existir é a prática [...]. Só se é algo mediante um contínuo processo


de agir; só se é algo mediante a ação. [...] É na prática e pela prática que as coisas
humanas efetivamente acontecem, que a história se faz. [...] Por isso, a esfera básica
da existência humana é a aquela do trabalho propriamente dito, ou seja, é a prática
que alicerça a existência material dos homens. (Severino, 1995, p. 47‑48)

Isto se dá, evidentemente, não apenas como trabalho individual, mas como
expressão necessária de um sujeito coletivo, pois a “espécie humana só é humana
na medida em que se efetiva em sociedade” (idem, p. 48). Na área da saúde, este
é um verdadeiro imperativo, não somente por força da política de humanização,
mas sobretudo porque esta é uma área em que pulsam valores humanos candentes
e onde trabalhamos com a vida em suas múltiplas manifestações, desde o nasci‑
mento, passando pela infância, juventude, vida adulta, processo de envelhecimen‑
to, até a finitude.
No atendimento direto aos usuários, trabalhamos com pessoas fragilizadas
que nos pedem um gesto humano: um olhar, uma palavra, uma escuta atenta, um
acolhimento, para que possam se fortalecer na sua própria humanidade.
A Política Nacional de Assistência Social — PNAS, aprovada pela Resolução
do Conselho Nacional de Assistência Social n. 145, de 15 de outubro de 2004 nos
pede um novo olhar para o social: o da proteção social como direito, como elemen‑
to fundante da cidadania. Da mesma forma, os princípios da Política Nacional de
Saúde Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990, nos direcionam na luta pela vida,
no compromisso pela construção de práticas democráticas, sintonizadas com as
necessidades sociais e de saúde da população.
Assim também a “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde” — Ministério
da Saúde, 2006 — partindo do princípio consagrado na Constituição Federal de
1988, em seu artigo 196, de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado,
preconiza
• que todo cidadão tem o direito ao acesso ordenado e organizado aos sis‑
temas de saúde, visando um atendimento mais justo e eficaz;

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011 499

55
• que ao cidadão é assegurado o tratamento adequado e efetivo para seu
problema, visando a melhoria da qualidade dos serviços prestados;
• que ao cidadão é assegurado atendimento acolhedor e livre de discrimina‑
ção, visando a igualdade de tratamento e uma relação mais pessoal e
saudável;
• que ao cidadão é assegurado um atendimento que respeite os valores e
direitos do paciente, visando preservar sua cidadania durante o tratamento.

O assistente social é reconhecidamente um profissional da saúde. As Resoluções


do Conselho Nacional de Saúde n. 218, de 6 de março de 1997, e do Conselho Fe‑
deral de Serviço Social n. 383, de 29 de março de 1999, além da Resolução n. 196,
de 1996, que trata da ética em pesquisa, envolvendo seres humanos. (Rosa et al.,
2006, p. 63‑64) são expressões concretas desta afirmativa.
No âmbito desses marcos legais e normativos, torna‑se indispensável ressaltar
a importância dos Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de
Saúde, elaborados a partir de ampla participação da categoria profissional e pro‑
mulgados pelo CFESS, com o objetivo de “referenciar a intervenção dos profissio‑
nais na área da saúde” (CFESS, 2010, p. 11).
Tais parâmetros reforçam a importância de reconhecer os usuários da saúde
como sujeitos de direitos, em um contexto de cidadania e de democracia.
Este é o compromisso que nos cabe assumir e que somente pode ser alcança‑
do por meio de práticas interdisciplinares, pautadas em um horizonte ético de hu‑
manização e de respeito à vida. Isto exige um contínuo processo de construção de
conhecimentos, pela via da pesquisa e da intervenção profissional competente,
vigorosa e crítica, alicerçada na Política Nacional de Saúde e no Projeto Ético‑Po‑
lítico do Serviço Social.
Como área de conhecimento e de intervenção na realidade humano social, o
Serviço Social deve mobilizar‑se, cada vez mais intensamente, na perspectiva da
assistência integral à saúde da população atendida.
O trabalho profissional qualificado é o compromisso de cada dia, pois como
bem destaca Critelli (2006, p. 2),

é fonte de sentido para a vida humana, organiza nossa vida diária. Define o tempo e
a história humana [...] O trabalho nos revela para os outros e para nós mesmos. Por
meio dele construímos nossa identidade. A partir dele descobrimos habilidades, po‑

500 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

56
deres, limites, competências, alegrias, tristezas. Criamos vínculos com as pessoas,
com os ambientes, com a cidade e a nação. O trabalho é o lugar privilegiado onde
descobrimos, inclusive, para que viemos e o que nos compete cuidar nesta vida.

É desse trabalho crítico e competente sob o ponto de vista ético‑político que


estamos falando, pois trata‑se de um trabalho que é ético porque se movimenta no
campo dos valores, porque parte do reconhecimento da condição humana dos su‑
jeitos, e que é político porque aspira sempre à sua emancipação, abrangendo a re‑
lação saúde, doença, cuidados, a população atendida, seus familiares e a própria
comunidade.
Torna‑se evidente, portanto, que necessitamos da ética como do pão para a
boca, pois é ela que nos permite atentar para os fundamentos valorativos de nossos
atos profissionais.
Na área da saúde, as várias dimensões da ética (Chaui, 2000) são imprescin‑
díveis, especialmente no que se refere:
• à ética dos cuidados;
• à ética da proteção social;
• à ética militante.

Porém, precisamos também da vontade política para consolidar a ética, pois


a ausência de determinações políticas rompe com sua completude.
Na verdade, essas dimensões estão em permanente interação e é um dever
ético‑político consolidá‑las mediante um exercício profissional crítico e competen‑
te, capaz de materializar os princípios de nosso Código de Ética, do Projeto Éti‑
co‑Político da profissão e dos Parâmetros para Atuação do Assistente Social na
Política e Saúde.
Na área da saúde, onde há múltiplas identidades em interação, este é um
desafio cotidiano, que se transforma em um verdadeiro imperativo ético, pois o
que está em jogo é a construção de uma prática competente, na qual o valor hu‑
mano, a qualidade de vida e a dignidade da morte, no caso dos pacientes fora de
possibilidades terapêuticas, sejam alicerces fundantes e objetivos comuns para
toda a equipe.
Aliás, para efeito de precisão, é importante esclarecer que para os assistentes
sociais que trabalham em cuidados paliativos, a expressão correta a ser utilizada é
que “o paciente está fora de possibilidade de cura e não fora de possibilidade tera‑

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011 501

57
pêutica — uma alusão à definição macro de cuidados paliativos descritos pelo
Ministério da Saúde: a cura científica para este paciente não existe, mas terapêuti‑
cas de cuidado e tratamento sempre são possíveis para proporcionar‑lhe uma mor‑
te digna” (Sodré, 2005, p. 143).
A atuação do Serviço Social neste momento, no âmbito da terapêutica dos
cuidados, é de fundamental importância, preservando o respeito ético pela vida
humana.
Ao trabalhar nessa perspectiva do cuidado ético, da humanização da prática,
estamos fazendo um uso consciente de conhecimentos, sentimentos, valores, na
busca da qualidade do atendimento de nossos atos profissionais. Daí a importância
da ética dos cuidados, pois se o trabalho é um uso de si,2 pressupõe na mesma
medida um cuidado de si.
Nesta primeira dimensão do trabalho como uso de si, é de se destacar a
importância:
• do sentimento partilhado, de sentir com o outro, não como o outro;
• do espaço da escuta, tanto no diálogo como no silêncio;
• do espaço do acolhimento, de ter a sensibilidade de oferecer o acolhimen‑
to no momento do desconforto, da dor, “abrir a porta quem não bateu”,
como nos lembra o poeta Fernando Pessoa (1965);
• da dignidade no trato, da sensibilidade de perceber a condição do outro
naquele momento tão peculiar de sua vida;
• do reconhecimento do sofrimento psíquico, da tristeza, do desconforto
emocional, que acompanham o adoecimento e o agravamento do quadro
de saúde;
• da ética no trato da informação;
• da verdade como base do diálogo, na justa medida, tanto com o paciente
quanto com seus familiares;
• da responsabilidade social partilhada, criando relações de parceria com o
cuidador e familiares, e estimulando‑os a criar também vínculos de per‑
tencimento.

2. Competente abordagem da concepção de trabalho e uso de si é realizada por Yves Schwartz (2000).
Vale ressaltar, também, a contribuição de Edna Goulart Joazeiro (2002), ao trabalhar com essa temática na
análise do estágio supervisionado em Serviço Social como formação e trabalho.

502 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

58
Quanto ao trabalho como cuidado de si, é sempre recomendável:
• manter um estado de espírito positivo;
• alimentar a paz de espírito e a tranquilidade;
• dedicar‑se a práticas que permitam o recriar das energias e que estimulem
a criatividade;
• manter acesa a chama da busca do conhecimento, da prática, da pesquisa;
• buscar permanentemente o aprimoramento profissional, tanto na perspecti‑
va multidisciplinar quanto na profissão de origem;
• lembrar‑se, a cada momento, do permanente compromisso que devemos
ter no sentido da consolidação do projeto ético‑político da profissão.

Se assim agirmos, firmemente apoiados nos princípios que regem a profissão,


bem como nas diretrizes políticas que norteiam o Serviço Social na área da saúde,
estaremos praticando uma ética militante no campo dos direitos, com vistas à con‑
solidação dos direitos de cidadania dos usuários do hospital, de seus familiares e
dos próprios trabalhadores da saúde.
É isso que nos pede a ética da proteção social como direito, como elemen‑
to fundante da cidadania, lembrando‑nos da importância de captar as diferenças
sociais, as necessidades dos usuários, mas também as suas capacidades que
podem ser desenvolvidas tanto no contexto hospitalar quanto em sua própria
comunidade por meio das redes de apoio, o que é fundamental para sua proteção
e autonomia.
O alcance do olhar do profissional eticamente comprometido transcende os
muros do hospital, buscando os núcleos de apoio na família, na comunidade, luga‑
res sociais de pertencimento onde se dá o cotidiano de vida das pessoas. É na coti‑
dianidade da vida que a história se faz, é aí que se forjam vulnerabilidades e riscos,
mas se forjam também formas de superação (Martinelli, 1995).
Por outro lado, é também esse compromisso ético‑político que deve nos fazer
avançar na sistematização das ações e na construção de conhecimentos. Se quere‑
mos qualificar a intervenção, temos de fortalecer a produção teórica do conheci‑
mento em Serviço Social, pela mediação da pesquisa, condição indispensável para
subsidiar a construção de saberes comprometidos com a qualidade do exercício
profissional.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011 503

59
É preciso, portanto, qualificar o conhecimento para qualificar a intervenção,
o que exige:
• realizar a pesquisa a partir da prática;
• construí‑la a partir do lugar da experiência;
• trabalhar a partir de uma proximidade crítica com os sujeitos;
• ter sempre no horizonte o valor social do conhecimento produzido, seu
retorno ao campo da intervenção e aos sujeitos que dele partilham;
• intercambiar experiências, dialogar pela via interdisciplinar, para ser cria‑
tivo na construção do conhecimento;
• ancorar esse modo de produzir conhecimento nas próprias vivências, na
experiência social cotidiana, dando‑lhe visibilidade e transformando o
“conhecimento silencioso” em “conhecimento partilhado” (Polanyi, 1983),
por meio de sua socialização;
• enfim, ter sempre presente que pela construção do conhecimento, de
novos saberes e práticas, buscamos melhorar a intervenção para que,
como expressão de nosso projeto ético‑político possamos nos fortalecer,
produzindo práticas que expressem nossa vontade política e que sejam
capazes de refundar a política como campo de direitos e refundar o
social como espaço de construção de utopias, de invenção de futuros
(Martinelli, 2006).

Ainda que saibamos que, para muitos dos sujeitos com quem trabalhamos no
contexto hospitalar, o crepúsculo da vida se avizinhe, não podemos perder o com‑
promisso com a construção de utopias, com a reinvenção da própria vida.
É isso que nos pede a ética, que humanizemos as nossas ações no trato com
a vida, em todas as suas expressões, incluindo certamente o momento da finitude.
Barchifontaine e Pessini, estudiosos da Bioética, divulgam em seu livro Bioética
e saúde (1989, p. 198‑99) a “Carta dos direitos do paciente terminal”, que resul‑
tou de um seminário realizado em Lansing, Michigan, nos Estados Unidos, sobre
esta temática — Paciente terminal, como ajudá‑lo? —, e cujo princípio é exata‑
mente o seguinte: “Tenho o direito de ser tratado como pessoa humana até que
eu morra”.
Mesmo considerando que hoje a própria expressão paciente terminal sofre
questionamentos por parte dos estudiosos da bioética, da tanatologia e dos profis‑

504 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

60
sionais que atuam na área dos cuidados paliativos, que falam em termos de pacien‑
tes criticamente enfermos, parece‑nos oportuno situar em anexo a referida Carta,
por sua profunda dimensão ética. O importante é que tenhamos a coragem de fazer
de nossa prática uma expressão plenamente ética e desejante, que pulse com a
própria vida.
Para que tenhamos sempre presente em nosso horizonte o compromisso de
humanizar a nossa prática, aprendamos a evocar, como bem nos ensina Fernando
Pessoa (1965, p. 343):

Torna‑me humano, ó noite,


Torna‑me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim se pode viver.
Torna‑me humano, ó noite.

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61
ANEXO

Carta dos Direitos do Paciente Terminal


“Tenho o direito de ser tratado como pessoa até que eu morra.”

“Tenho o direito de ser cuidado por pessoas sensíveis, humanas e competentes


que procurarão compreender e responder às minhas necessidades e me ajudarão
a enfrentar a morte e garantir a minha privacidade.”

“Tenho o direito de ser aliviado na dor e no desconforto.”

“Tenho o direito, ao aceitar minha morte, de receber ajuda de meus familiares e


de que estes também sejam ajudados.”

“Tenho o direito de não morrer sozinho.”

“Tenho o direito de receber cuidados médicos e de enfermagem mesmo que os


objetivos de cura mudem para objetivos de conforto.”

“Tenho o direito de discutir e aprofundar minha religião e/ou experiências reli‑


giosas, seja qual for o seu significado para os demais.”

“Tenho o direito de morrer em paz e com dignidade.”

“Tenho o direito de expressar à minha maneira, sentimentos e emoções frente à


minha morte.”

“Tenho o direito de participar das decisões referentes aos meus cuidados e trata‑
mentos.”

“Tenho o direito de ter esperança, não importa quais mudanças possam acontecer.”

“Tenho o direito de ser cuidado por pessoas que mantêm o sentido da esperança,
mesmo que ocorram mudanças.”

(Barchifontaine; Pessini, 1989, p. 198‑199)

Recebido em 13/6/2011 n Aprovado em 4/7/2011

506 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

62
Referências bibliográficas
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n. 145, 15 out. 2004.
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Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011 507

63
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jul. 2000.

508 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 497-508, jul./set. 2011

64
O Serviço Social nas ONGs no campo da saúde:
projetos societários em disputa*
ONGs’ Social Services in the field of health: collective projects in debate

Graziela Scheffer Machado**

Resumo: O artigo faz uma análise do trabalho do Serviço Social


nas organizações não governamentais (ONGs), no campo da saúde. O
estudo visa identificar os dilemas e desafios no cotidiano das interven-
ções dos assistentes sociais nas sequelas da questão social. Também
apresenta a pesquisa enquanto estratégia na construção de propostas
coletivas na direção da cidadania, em contraponto à lógica do favor.
Palavras-chave: Organizações não Governamentais. Serviço Social.
Saúde.

Abstract: The article analyses the Social Services’ practices in the non-governmental organiza-
tions (ONGs) in the field of health. The study aims at identifying the dilemmas and challenges in
the social workers´ daily interventions in the sequels of the social issue. It also presents the research
as a strategy in the construction of collective proposals towards citizenship, as a counterpoint to the
logic of favour.
Keywords: Non-governmental organizations. Social Services. Health.

* Dedico este artigo às “minhas” estagiárias Paula Alexandra Trovisco (PUC-RJ) e a Nathália Marinho
(UVA) por seu empenho na pesquisa e por sua contribuição no horizonte ético-político no trabalho cotidiano
da ONG. Também à amiga Juliana Fiúza, pelas trocas teóricas, e a Sílvia Ladeira por suas críticas e revisão
do artigo.
** Mestre em Serviço Social pela ESS-UFRJ, especialista em Saúde Mental Coletiva pela Escola de
Saúde Pública do Rio Grande do Sul, professora da Pós-Graduação de Responsabilidade Social Organizacio-
nal da Universidade Veiga Almeida — Rio de Janeiro/RJ, Brasil, e assistente social do Programa Nacional de
Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Ro de Janeiro (Iser). E-mail: grazi.email@ibest.com.br.

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 102, p. 269-288, abr./jun. 2010 269

65
Pressupostos iniciais

O
estudo partiu da experiência de trabalho do Serviço Social numa
Organização não Governamental no campo da saúde. Temos como
pressuposto que as ONGs não são monolíticas, ou seja, existe uma
pluralidade de ações e discursos, e que muitas vezes aparecem entre-
laçados na lógica do favor e da cidadania: diretos sociais, mobilização social,
atendimento às necessidades sociais, o favor, moralização e humanização. Outro
ponto é que o espaço institucional das ONGs é lugar de contradições e disputas
por projetos societários, ou seja, se de um lado existem as pressões das lógicas
mercantilista e privatista no trato da questão, de outro existem pressões relaciona-
das a discursos e ações ligadas à cidadania e aos direitos sociais, projetos profis-
sionais e sujeitos atendidos, que trazem consigo suas reivindicações de acesso a
um nível de civilidade mínimo (trabalho, moradia, alimentação, educação), da qual
grande parte encontra-se à margem.
O Serviço Social no campo do “terceiro setor” vive um paradoxo, no sen-
tido de reconhecermos o espaço das ONGS e a filantropia empresarial como
estratégias de esvaziamento de direitos sociais, ao mesmo tempo que o assisten-
te social enquanto um trabalhador assalariado não tem condições de recusar sua
inserção nesse campo sócio-ocupacional, pois depende da venda de sua força de
trabalho. O trabalho do Serviço Social possui na raiz profissional os dilemas da
alienação e das determinações sociais que afetam a coletividade dos trabalhado-
res. O exercício profissional supõe a mediação do mercado de trabalho, por
tratar-se de uma atividade assalariada (Iamamoto, 2008). Não há como negar o
que a realidade nos impõe enquanto trabalhador assalariado; de modo que é
necessário estarmos atentos aos inúmeros assistentes sociais e estagiários inse-
ridos nas ONGs, que precisam de maior proximidade com o debate acadêmico,
com a análise da realidade do cotidiano institucional, pois “a questão social se
enfrenta com teoria e não com trabalho voluntário” (Vasconcelos, 2008). É es-
sencial lembrar que as ONGs atualmente representam 5% do PIB no brasileiro
(Silva, 2009).
Então, ficam o desafio e o dilema atual de descobrirmos mecanismos e estra-
tégias de assegurar os direitos sociais e de repolitizar a questão social nesses espa-
ços sócio-ocupacionais, para além de contornos neoliberais.

270 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 102, p. 269-288, abr./jun. 2010

66
O artigo está organizado em três partes: a primeira tem como fio condutor o
entendimento das metamorfoses históricas das ONGs no Brasil e suas implicações
alicerçadas no capitalismo e no Estado. A segunda enfatiza as particularidades das
ONGs no campo da saúde e o trabalho dos assistentes sociais. Na terceira, aborda-
mos a pesquisa, enquanto dispositivo estratégico na construção de propostas demo-
cráticas que fortaleçam a cidadania.

1. A trajetória histórica das ONGS no Brasil: de coadjuvante a ator principal


“[...] Até bem pouco tempo atrás
Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?”

(Renato Russo)

Para Alvarez et al. (2000), a sociedade civil constituiu-se amiúde em uma esfe-
ra disponível ou a mais importante para organizar a contestação política e cultural.
Entretanto, a sociedade civil não é uma família ou uma aldeia global homogênea, mas
um território de luta, minado muitas vezes por relações de poder não democráticas e
pelos problemas constantes de racismo, heterossexismo, destruição ambiental e outras
formas de exclusão. Atualmente estamos vivendo uma crescente predominância das
ONGs nos movimentos latino-americanos. As ONGs por vezes agem como organi-
zações “neo” ou “para”, em vez de não governamentais, caminhando no sentido de
ajudar a sustentar um setor público esvaziado pelo Estado e, ao mesmo tempo, tornar
possível que este se exima do que era considerada sua responsabilidade.
O debate da articulação entre o Estado e a sociedade civil está intimamente
relacionado ao processo constitutivo do voluntariado e à solidariedade, pois existe
uma estreita vinculação entre a ação voluntária e a solidariedade e a sociedade civil,
representada pelo “terceiro setor”. Há uma tendência de constituir uma analogia
entre terceiro setor e sociedade civil, passando esta última a ser denominada de
conjunto de organizações, transpondo para o segundo plano o aspecto político, num
processo de despolitização das desigualdades sociais (Fagundes, 2006).
As políticas sociais públicas são uma das respostas privilegiadas à questão social,
ao lado de outras formas, acionadas para enfrentamento por distintos segmentos da

Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 102, p. 269-288, abr./jun. 2010 271

67
sociedade civil, que possuem programas de atenção à pobreza, como corporações
empresárias, organizações não governamentais, além de outras, de organização das
classes subalternas, para fazer frente aos níveis crescentes de exclusão social a que
se encontram submetidas (Iamamoto, 2004, p. 58). Conforme Fagundes (2006),

contextualizar as políticas sociais e o desenvolvimento do voluntariado e da solida-


riedade na atual sociedade constitui uma importante reflexão sobre compromisso
efetivo das políticas sociais. O cenário é contraditório e paradoxal, ao mesmo tempo
que se precisa de uma perspectiva que valorize a sociedade civil, tornando-a protago-
nista. Ela também precisa ser politizada, transpondo os interesses particulares e redu-
cionistas, aproximando-a dos interesses mais gerais. A dimensão política da socieda-
de civil precisa ser construída; é desta maneira que ela vai se vincular ao espaço
público democrático, constituindo-se como espaço de disputa, como uma posição
efetiva de emancipação e de construção de estratégias para se opor à dominação re-
presentada pelo grande capital.

Montaño (2002) aponta que as ONGs nos anos 1970 e 1980 tinham um claro
papel de articuladoras ao lado dos movimentos sociais e captadoras de recursos
para estes. Ou seja, as ONGs surgiram com a missão de contribuir para a melhoria
da organização interna, a articulação e a transferência de recursos captados de or-
ganismos internacionais para os movimentos sociais. Contudo, paulatinamente as
ONGs começaram a ocupar o lugar dos movimentos sociais nos anos 1990. O autor
ressalta que atualmente as ONGs tornaram-se o ator principal na negociação com
o Estado, o que acarretou enfraquecimento dos movimentos sociais, deslocando a
lógica das lutas e das reivindicações para o caminho da parceria e da negociação.
Em que pese tal afirmação, é necessário considerar que existe uma trama de
aspectos complexos que ocasionaram a transformação ou o “enfraquecimento” dos
movimentos sociais, que não são lineares.
Gonh (2000), na análise dos movimentos sociais no período de transição dos
anos 1980 para os 1990, aponta diferentes aspectos que impulsionaram as seguintes
mudanças:
1. A diminuição dos empregos na economia formal com o advento da reestru-
turação produtiva, o que acarretou instabilidades e incertezas, exigindo longas jor-
nadas de trabalho, fato que interfere no tempo disponível das pessoas para partici-
parem de mobilizações. As políticas econômicas dão suporte às atividades informais,
que contribuem para a diminuição de trabalhadores filiados aos sindicatos.

272 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 102, p. 269-288, abr./jun. 2010

68
2. Ao longo dos anos 1980, com a transição democrática, o Estado tinha in-
teresse em dialogar com os movimentos sociais, pois estava redemocratizando-se,
sendo necessário mudar a imagem ligada à repressão e ao autoritarismo. Entretan-
to, nos anos 1990 o Estado prescinde do apoio dos movimentos para se legitimar
diante da sociedade como agente não repressor.
3. Os movimentos populares progressistas perderam nos anos 1990 o apoio
irrestrito que tiveram da Igreja Católica no período 1970-80, em sua ala da Teologia
da Libertação.
4. As utopias sociais transformadoras, motores de mobilização e motivação das
ações sociais coletivas, estiveram ausentes nesse fim de século, devido à influência
da queda do muros de Berlim e dos regimes que sustentaram algumas delas.
5. Nos anos 1980, a participação social era pauta na agenda política das elites
devido à crise de governabilidade das estruturas de poder do Estado autoritário, à le-
gitimidade das demandas expressas pelos movimentos sociais e à conquista de espaços
institucionais como interlocutores válidos. Nos anos 1990, a agenda política das elites
dirigentes modifica-se em função de problemas internos e de novas políticas sociais
impostas ao mundo capitalista, sendo que as arenas de negociação passaram a ser
formadas pelo poder público. Orientadas em mecanismos jurisdicionais de controle,
as elites políticas fomentaram o surgimento de movimentos sociais a seu favor.
6. Nos anos 1990 surgem novos movimentos sociais que têm foco nas questões
éticas e na revalorização da vida humana, enfatizando questões de direitos no pla-
no da identidade ou igualdade. Esses novos movimentos enfatizam a consciência
individual em vez da coletiva, ancorada em valores de solidariedade humana; suas
ações são organizadas em forma de “campanhas”. Surgiram nos anos 1990 organi-
zações de cunho misto de movimento social e ONG.
Em nosso ponto de vista, existem quatro fatores fundamentais para que as
ONGs assumam o “papel” de principal agente de interlocução junto às políticas
sociais, quais sejam: as transformações no mundo do trabalho com redução do
trabalho vivo, impactando diretamente na fragilização da sindicalização e organi-
zação dos trabalhadores;1 o Estado sob hegemonia do capital financeiro estimulou

1. Segundo Faleiros (1986), os neoliberais em momentos de crise propõem a extinção das medidas
sociais e a volta ao mercado de trabalho sem proteção estatal, e isto ocorre justamente num momento em que
os trabalhadores estão mais vulneráveis pela desmobilização decorrente do desemprego e da procura de
emprego.

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69
a criação de dispositivos legais de financiamento do atendimento de demandas
sociais fora da esfera pública; o processo de democratização do país levou a maior
complexidade e pulverização dos interesses dos sujeitos sociais; e, finalmente, a
redução do financiamento internacional das ONGs no Brasil.
Desta forma, podemos apontar que o financiamento das ONGs pelo Estado
foi uma via de mão dupla. Por um lado houve reconhecimento histórico da capaci-
dade técnica e assistencial das ONGs vinculadas à questão social e à cidadania; por
outro, possibilitou ao Estado a redução do custo das políticas sociais sem perder a
legitimidade, já que ressaltou vetores consensuais dos direitos civis e políticos na
manutenção da cidadania.
O Estado, por intermédio das ONGs, pôde construir uma nova concepção de
cidadania social, fora da órbita da política pública estatal. Conforme Becker (2003,
p. 117),

O Estado começa a reconhecer que as ONGs acumularam um capital de recursos,


experiências e conhecimentos sobre as formas inovadoras de enfrentamento das ques-
tões sociais, que as qualificam como interlocutores e parceiros governamentais. Com
isso, novas formas de articulação entre o Estado e a sociedade vêm sendo criadas,
permitindo uma maior participação das ONGs na definição das políticas públicas.

Para Iamamoto (2001), o enfrentamento da questão social tem sido tensiona-


do por distintos projetos societários na definição da estruturação e implantação das
políticas públicas, que convivem em lutas no seu interior. A autora enfatiza três
projetos em disputa:
a) O projeto de caráter universal e democrático, orientado pela Constituição
de 1988, fundado nos princípios da participação social e controle social.
b) O projeto de inspiração neoliberal, que visa subordinar os direitos sociais
à lógica do orçamento, alegando “crise fiscal”, subvertendo o preceito constitucio-
nal à disponibilidade dos recursos.
c) “O projeto vinculado ao “terceiro setor”,2 um desdobramento da proposta
neoliberal, que expressa uma dupla via: transferência de responsabilidade gover-

2. O marco legal do terceiro setor engloba sob um mesmo título as instituições filantrópicas, o volun-
tariado e as organizações não governamentais, que contemplam desde aquelas mais combativas, oriundas de
movimentos sociais, até filantropia empresarial (Iamamoto, 2008). Diante desse o cenário “nebuloso” do
terceiro setor, pudemos constatar que a literatura profissional aponta como denominador comum na análise

274 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 102, p. 269-288, abr./jun. 2010

70
namental para ONGs e mercantilização do atendimento às necessidades sociais,
evidente no campo da saúde, da educação, entre muitos outros.
Para Yazbek (2001), atualmente vivemos um movimento de refilantropização,
que visa à substituição da lógica da cidadania, tendo como base o não reconheci-
mento dos direitos sociais historicamente conquistados, pois está alicerçada num
discurso humanitário da solidariedade e da filantropia, alavancado por uma morali-
dade de ajuda aos necessitados. É preciso frisar ainda que esta perspectiva fortalece
a lógica do favor em detrimento do direito. No Brasil, o favor perpassou o conjunto
da existência nacional nas relações entre homens livres, sendo que o favor foi nossa
principal mediação nas relações sociais (Schwarz, 1991, apud Iamamoto, 2008).
Contudo, é preciso salientar que a chamada refilantropização é acompanhada
por um aprofundamento da racionalização e mercantilização do próprio trato da
questão social. As empresas que financiam as ONGs exigem resultados de seus
investimentos (relatórios, pesquisas de impactos etc.), que posteriormente possam
ser utilizados para marketing social, vinculando imagens e discursos na órbita da
questão social para venda de suas mercadorias. Acreditamos que o elemento novo
da “filantropização” no momento atual é o aprofundamento da transformação da
racionalidade do caráter humanitário em mercadorias.
Vivemos uma tensão entre a defesa de direitos sociais e a mercantilização dos
atendimentos sociais (Iamamoto, 2001). Em relação à tendência da refilantropiza-
ção mercantilizada, não podemos perder de vista a legislação social. Segundo Silva
(2009), a Lei Orgânica da Assistência Social de 1993 e toda a legislação criada
posterior a ela, que regula a relação das ONGs, implantam a concepção de assis-
tência social como direito. Assim, usuários são vistos enquanto cidadãos, que re-
querem do estabelecimento outro tipo de relação além do favor, da caridade e do
assistencialismo. As ONGs precisam adequar-se ao novo marco regulatório. “A
legislação social é em boa parte responsável por essa mudança cultural da assistên-
cia social” (Silva, 2009, p. 54).
A partir desse contexto, observa-se que as ONGs não são a sociedade civil.
Na verdade, são expressões condensadas de relações sociais, econômicas, políticas
e culturais circunscritas historicamente e que hoje aparecerem hegemonicamente

uma crítica de sua imprecisão conceitual e despolitizada, pois tenta reduzir a sociedade civil a entidades sem
fins lucrativos, tratadas como locus esvaziados de conflitos e tensões de classes, pautados em discursos de
solidariedade, coesão social com um forte apelo moral ao bem comum.

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enquanto canais (sedimentados da lógica neoliberal) por onde a sociedade civil,
principalmente a massa pauperizada, está sendo atendida. Em suma, as ONGs, como
parte da sociedade civil que nos leva a considerar que também são arenas de lutas
e disputas de projetos societários.

1.1 Um museu de grandes novidades: as ONGs no campo da saúde

[...] Eu vejo o futuro repetir o passado


Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para [...]

(Cazuza)

É fundamental inicialmente observar que as ONGs no campo da saúde ex-


pressam uma nova construção social, que tem implicações nas políticas sociais e
no fazer profissional. O novo se cria por meio do passado, transformando e recrian-
do em novas formas nos processos sociais do presente (Iamamoto, 2008). Neste
sentido, buscamos identificar quais são os traços do passado que se reatualizam no
presente do trabalho do assistente social, nesse espaço sócio-ocupacional.
As ONGs no campo da saúde estiveram integradas aos movimentos de
lutas sociais (como dos hansenianos, dos portadores de HIV-Aids e dos porta-
dores de transtorno mental), sendo que as ONGs na saúde se constituíram his-
toricamente enquanto um dispositivo de novas práticas e de experimentação para
propostas alternativas aos modos predominantes de tratamento. A atuação das
ONGs no campo da saúde concentrava-se predominantemente em uma vertente
assistencialista, estendendo cuidados em saúde a grupos excluídos do atendi-
mento do Estado ou de órgãos públicos. Com a criação do Sistema Único de
Saúde (SUS), esta atuação perde parte de sua força, pois se estende o direito à
saúde a todo cidadão. Ainda assim, persistem diversos espaços de intervenção
(Becker, 2003).
Acreditamos que atualmente existem três diferentes perfis de ONGs no cam-
po da saúde:
a) Perfil centrado na situação de saúde: neste segmento estão aglutinadas
demandas de sujeitos com doenças “raras”, na maioria das vezes crônicas, com alto

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custo para aquisição de medicamentos, sendo uma das principais características a
luta social pelo acesso a medicamentos. Além disso, outra questão trazida por esses
sujeitos é o enfrentamento do estigma, a vivência da discriminação perpetrada pela
sociedade. O trabalho voluntário será composto e mobilizado a partir da experiên-
cia ou da proximidade com o processo de saúde-doença, focando o direito à vida e
ao exercício da cidadania. Exemplos desse perfil são organizações de familiares e
portadores de diferentes doenças, como: HIV-Aids, transtorno mental, fibrose cís-
tica, ostomizados etc. Acreditamos que estes segmentos são os mais atuantes nas
arenas das lutas políticas junto ao Estado.
b) Perfil centrado na dinâmica hospitalar: neste, o foco das demandas será o
suporte social na intercessão das necessidades sociais e de saúde dos usuários vin-
culados às instituições hospitalares. Caracteriza-se pela existência de uma parceira
entre a ONG e o hospital na complementaridade das “lacunas” da política de saúde
e da articulação com outras políticas sociais. A atenção é voltada para a pobreza na
interface com a saúde, cuja ênfase é a materialidade no acesso a equipamentos,
alimentação e medicamentos, para a manutenção do tratamento da saúde (que de-
veriam estar sendo fornecidos enquanto direito social). Os voluntários serão com-
postos e mobilizados pela identificação com o hospital e alicerçados nas propostas
das ONGs. Exemplos desse tipo perfil são as organizações de apoio aos hospitais
públicos e de ex-funcionários.
c) Perfil centrado na prestação de serviços: neste grupo, a centralidade será
a prestação de serviços na área da saúde (médica e odontológica) para pessoas
oriundas de comunidade de baixa renda. A principal característica é que o trabalho
é composto por profissionais voluntários, calcados em propostas de prevenção e
promoção da saúde para população de baixa renda. O trabalho voluntário terá um
caráter profissional, mobilizado por princípios de educação em saúde e pautados
em discursos humanitários de responsabilidade profissional com a sociedade. Os
exemplos desse perfil são as associações de profissionais e grupos profissionais com
propostas de práticas inovadoras.
É plausível afirmar que esses diferentes perfis das ONGs expressam “vestígios”
de duas heranças antagônicas e contraditórias: uma de origem dos movimentos
sociais, na década de 1980, ligada às conquistas democráticas e de cidadania, e
outra oriunda do projeto neoliberal, na década de 1990, de desmonte da política
social do Estado, pautada na cultura do favor.

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73
Em nossa experiência3 podemos identificar que as ONGs no campo da saúde
mesclam discursos conservadores (reestruturação da família, higiene, moralidade
de condutas) e progressistas (cidadania, situação social na produção e no aprofun-
damento da doença). As intervenções aparecem atravessadas por antigas práticas
de voluntariado, pautadas na cultura do favor, centralizadas na família em interface
com a saúde, orientadas por uma gestão na lógica empresarial (eficiência e eficácia)
no trato da questão social no processo de saúde-doença, mensurados por indicado-
res de saúde, sob um verniz do discurso da cidadania.
As ONGs no campo da saúde são uma unidade dinâmica e contraditória na
intercessão do público e do privado, pois se localiza numa relação da saúde públi-
ca com um tipo de “assistência social” privada, imersa por demandas relacionadas
à saúde. Em nosso ponto de vista, as ONGs no campo da saúde além de serem
expressão do Estado mínimo, oriundo do sistema neoliberal, que transfere para a
esfera privada os direitos sociais e sua execução, tem como consequências diretas
a fragilização do estatuto de cidadão. O movimento de refilantropização está bali-
zado na reatualização de condutas e valores do século XIX.
Conforme observamos nas reuniões da rede de profissionais das ONGs, com-
posta em sua maioria por assistentes sociais, os conflitos mais pertinentes e persis-
tentes são os que ocorrem cotidianamente com os voluntários4 na condução do
trabalho, pois estes tentam impor a lógica do favor às intervenções sociais. Ou seja,
voluntários vinculados às práticas de solidariedade muitas vezes diluem o caráter
igualitário e universal dos direitos sociais, garantidos constitucionalmente.
Uma assistente social declara que estamos vivendo a “Maldição da Mary
Richmond”. O confronto do Serviço Social com os voluntários está na origem de
nossa profissão. Vejamos o retorno dos fantasmas de Richmond, na sua fala em
1922 no livro O que é Serviço Social de caso,

Os assistentes sociais que se desgastam com a incumbência de proteger sua profissão


das indignidades praticadas por pessoas inexperientes e egoístas talvez encontrem
consolação no fato de que outros profissionais passaram pela mesma situação. Nos

3. A análise está ancorada nas observações sistemáticas das reuniões de assistentes sociais de dezesse-
te ONGs no campo da saúde e na nossa experiência cotidiana. Deve-se ressaltar que a maioria dos atendi-
mentos é realizada com as mães das crianças e adolescentes, que são oriundas de regiões pauperizadas e com
experiência de abandono do companheiro, após vivência de adoecimento do filho.
4. O poder do voluntariado emana da base econômica, pois contribui para as ONGs na diminuição de
pagamentos de mão de obra, sendo também fonte de captação de recursos financeiros e humanos.

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Estados Unidos, não há muito anos, podia-se comprar diploma. Em pleno século XIX
muitos estados confiavam em juízes sem treino legal, enquanto o chefe dos magistra-
dos de Rhode Island era um fuzileiro. (Rios, 1999, p. 12)

Essa situação expressa uma verdadeira combinação de determinações econô-


micas, políticas, culturais e sociais, misturando o passado e o presente (Behring,
2003). É verdade que a história não volta atrás, mas, ela pode incubar as piores
novidades (Bensaid, apud Behring, 2003).
Esses fatos nos levam de volta ao encontro com o passado do diagnóstico
social. O conceito de diagnóstico no Serviço Social esteve intimamente ligado com
a trajetória histórica da profissão. A influência higienista5 na obra de Mary Rich-
mond6 aparece no “Caso social”, que define a atuação profissional nos “aspectos
diretamente relacionados com a personalidade, a saber: reestruturação da autossu-
ficiência, problemas de saúde e higiene pessoal, bem como a complexidade da hi-
giene mental” (1922, p. 16).
Mary Richmond buscou agregar os conceitos médicos nas abordagens sociais,
consagrando o Serviço Social como uma profissão do “social”, cujo trabalho apa-
rece articulado com a dimensão “subjetiva na ênfase biológica da ‘patologia social’
com o ‘meio social-natural’. Neste sentido, o tratamento dos sujeitos afetados pelas
refrações da “questão social” era visto como individualidade sociopática, que levou
à conversão dos problemas sociais em patologias sociais7 (Netto, 2005).
No estudo do Serviço Social francês, Verdès-Leroux (1986) aponta a ligação
da medicina com a profissão,

[...] a autoridade da tutela médica define as referências intelectuais, o quadro da for-


mação e os modos de operação: as pesquisas são realizadas nos moldes da pesquisas
sobre higiene; as intervenções, analisadas em termos diagnósticos, seguidos de trata-

5. A concepção de ajustamento derivou do conceito biológico de adaptação de Darwin, que considera-


va que aquelas espécies de animais, estruturas biológicas e processos que melhor respondessem às exigências
do meio ambiente e sobrevivessem a riscos e perigos eram organismos, estruturas ou processos bem adapta-
dos ou bons. Analogamente, o comportamento humano que satisfaz de maneira adequada às exigências de
seu meio é uma atividade adaptativa, e o indivíduo que enfrentou com êxito às exigências e expectativas do
seu mundo físico e social é bem ajustado (Sawrey e Telford, 1971).
6. Mary Richmond admirava enormemente Adolf Meyer (higienista mental), com quem frequentemen-
te trocava ideias (Silva, 1993). No desenvolvimento do trabalho veremos mais detalhadamente esta repercus-
são no Serviço Social.
7. A sociologia funcionalista está impregnada não só por “conceitos”, mas também pela racionalidade
médica (Luz, 2005).

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mento. Essa tutela é perceptível nas formulações, já que o emprego de um vocabulário
científico permite, por meio de um deslocamento de registro, a introdução da noção
de higiene social e de patologia social. [...] insiste-se nas noções de taras e de doenças
mentais. Através das metáforas, impõe-se uma visão do mundo social tal como da
saúde-estado precário; o corpo social está constantemente ameaçado por infecções,
contaminações e epidemias. (p. 31)

Vasconcelos (2000) coloca que o Serviço Social brasileiro recebe a influência


médica higienista,8 por meio da matriz franco-belga e norte-americana, sendo que
a influência higienista permanece até meados da década de 1970, conforme identi-
ficado nas grades curriculares. O higienismo surge no Brasil na época da colônia,
a partir da articulação entre o Estado, a religião e a medicina, a fim de exercer o
controle das famílias. A corte portuguesa começou a se interessar pelas cidades
brasileiras a partir da descoberta do ouro. Simultaneamente, surgia uma elite, rela-
tivamente diferenciada do reino, que se opôs à extorsão econômica de Portugal. As
tentativas de controle eram realizadas de forma truculenta (enforcamento, exílio,
açoite etc.), contudo, não conseguiram modificar as relações estabelecidas entre o
Estado, o clero e as famílias. “A reconversão das famílias ao Estado pela higiene
tornou-se uma tarefa urgente dos médicos” (Costa, 1983, p. 31).
Uma das estratégias dos médicos higienistas para intervir na família foi a
manipulação da religião, por meio da apreensão do discurso da Igreja acerca da
alma. A alma foi vista como sede das paixões, alvo sensível e vulnerável aos efeitos
mórbidos dessas mesmas paixões. Definida como núcleo emissor desses pseudó-
podos morais que eram as paixões, terminava por estabelecer sinapses com as ra-
mificações biológicas do instinto da propagação. Essa relação orgânica-moral com
o corpo fez com que se criasse um afastamento progressivo do vínculo com o es-
pírito. “O cuidado higiênico com o corpo fez do preconceito racial um elemento
constitutivo da consciência de classe burguesa. [...] A consciência de classe tem, na
consciência da superioridade biológico-social do corpo, um momento indispensável
à sua formação” (Costa, 1983, p. 13).

8. Em nosso ponto de vista, a intervenção dos assistentes sociais foi um dos sustentáculos para medi-
calização da vida social. Medicalização é um processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado
pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes
prescritos — sexuais, alimentares, de habitação — bem como de comportamentos sociais (Luz, 2004). Em
nosso ponto de vista, a psiquiatria e a medicina social na Europa e nos Estados Unidos fortaleceram as bases
“científicas” de legitimidade do Serviço Social na intervenção nas sequelas da questão social, expressa na
concepção do diagnóstico social e do caso social sob espectro da patologia social.

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Lima (1978) aponta que o trabalho do Serviço Social estava ancorado em dois
eixos: médico e jurídico, que apresentava uma concepção mesclada de filantropia,
caridade ou assistência, de certo modo tecnificada. Os problemas individuais eram
manipulados de forma paternalista, atendendo a certos aspectos de caráter social,
como: aglomerações, promiscuidade, desnutrição, tudo aquilo que causasse ou
propagasse enfermidades sociais. O assistente social se assemelhava a um auxiliar
médico, buscava a melhor maneira de tratar as enfermidades, sempre atento ao
problema dominante da defesa ou da recuperação da saúde.
À luz da formação brasileira podemos identificar que o trabalho cotidiano do
assistente social é revestido por uma reatualização de velhos discursos e práticas:
o voluntariado, o controle higienista das famílias e o favor, orientado por filantropia
mercantilizada.
Para Iamamoto (2008), o novo é mediado pelo arcaico, que recria elementos
de nossa herança colonial e patrimonialista, que atualiza marcas persistentes e, ao
mesmo tempo, se transforma, no contexto de mundialização do capital sob hege-
monia financeira.
As ONGs, no campo da saúde, têm como fio condutor a refilantropização e a
mercantilização, tensionadas pelas conquistas democráticas ligadas à cidadania. No
âmbito da intervenção do assistente social, essas tendências se expressam na “rea-
tualização” do “arcaico”, no sentido de que o campo é permeado por uma lógica
pendular, da medicalização “higienista” e do favor no trato da questão social, que
se encontram em disputa com o projeto ético-politico profissional e da cidadania
no horizonte do cotidiano. Não podemos esquecer que o cotidiano das ONGs é
mobilizado pela contradição, sendo necessário que o assistente social consiga fazer
a leitura dos projetos societários em confronto, que possa construir estratégias, que
viabilize a organização da população usuária na garantia de direitos.

2. A pesquisa enquanto estratégia: relatando a experiência


“Não está morto quem peleia”
(Anônimo)

O processo de trabalho na ONG se estrutura em torno de três projetos: aten-


dimento familiar (repasse de medicamentos, alimentos e orientações sociais do

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77
serviço social); moradia (melhoria habitacional, relacionada à situação de saúde)
e trabalho (geração de renda e profissionalização). Os projetos estão calcados
num conceito ampliado de saúde, uma vez que o processo saúde-doença abrange
situações de moradia, saneamento, renda, alimentação, educação, acesso a lazer
e bens.
O trabalho é centralizado na intervenção junto às famílias na órbita do direito
social, pois possibilita a materialidade no acesso a equipamentos, alimentação e
medicamentos garantidos constitucionalmente e que deveriam estar sendo forneci-
dos enquanto direito social.9 Conforme Vasconcelos (1997, p. 134),

A existência de um direito social não determina que se tenha acesso a ele como tal. O
direito existe formalmente, mas, dependendo da forma como se usufrui dele, trans-
forma-se num objeto de favor, doação, constrangimento, troca... O acesso a um recur-
so por um cidadão-sujeito social-crítico, consciente, é que transforma o direito formal
em direito real.

O Serviço Social tem como base de intervenção as refrações da questão


social na interface do processo-doença de crianças e adolescentes. Geralmente,
cabe ao assistente social fazer a acolhida, que é uma avaliação da demanda, com
objetivo de mapear as necessidades sociais e de saúde, a fim de estabelecer um
plano de intervenção (o que será fornecido pela instituição, que tipo de orientações
de direitos sociais serão necessários, encaminhamentos para programas internos
e externos etc.). A acolhida visa identificar, por meio de entrevistas, aspectos não
só da demanda explícita, ligados às questões econômicas (de acesso a medica-
mentos, alimentos, leites especiais), mas, principalmente, determinantes das re-
lações sociais imbricados na dinâmica sociofamiliar, que possam potencializar o
exercício da cidadania. A intervenção caminha no sentido da direção ideopolítica
do fortalecimento dos dispositivos de direitos sociais garantidos na seguridade
social, bem como a constituição de espaços democráticos nas ONGs que fomen-
tem as lutas cotidianas contra-hegemônicas dos sujeitos atendidos, que subvertam
a lógica do favor.
A luta por direitos inclui a apropriação de oportunidades abertas pelas conjun-
turas políticas, sendo necessária a mudança em identidades sociais – rompendo com
a passividade de categorias administrativas (usuário, clientela, público-alvo) —,

9. O perfil dessa ONG está centrado na demanda do hospital.

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que pressupõem a compreensão das distintas faces do poder, envolvidas na rela-
ção social questionada pela ação, seja esta o protesto, a indignação ou a revolta
(Ribeiro, 2004).
Por meio de nosso trabalho observamos a insastifação dos integrantes do
projeto de geração de renda,10 cujas principais queixas eram: insatisfação do retor-
no financeiro (aliado a “sentimentos de exploração”) e a dificuldade de participar
do projeto, por não ter com quem deixar os filhos.11
No entanto, nossa condição de assalariado nos impunha certos condiciona-
mentos para um diálogo direto e aberto junto à coordenação do projeto e à direção
da instituição. Além disso, não poderíamos expor os usuários, que dependiam
desse recurso financeiro. Em que pese tal afirmação, é preciso frisar que o profis-
sional nesse processo não se resume a expectador ou ouvinte, mas a participante
com responsabilidade de desburocratizar a prestação de serviço, de possibilitar a
reflexão e de apresentar propostas viáveis para os sujeitos envolvidos (Vasconcelos,
1997).
O exercício profissional agrega um complexo de novas determinações e me-
diações essenciais, sendo que é uma unidade contraditória de trabalho concreto e
trabalho abstrato. O exercício profissional especializado realiza-se por meio do
trabalho assalariado alienado. Esta condição sintetiza tensões entre o direcionamen-
to que o assistente social pretende imprimir ao seu trabalho concreto e os constran-
gimentos inerentes ao trabalho alienado, que se repõem na forma assalariada do
fazer profissional (Iamamoto, 2008).
Para Baptista (1993), o assistente social trabalha entre dois polos: em um no
qual o empregador que solicita com uma demanda específica, originada nas políti-
cas e estratégias institucionais; em outro as pessoas que vêm buscar o recurso

10. O programa de geração de renda funciona uma vez na semana, sendo custeados o transporte, a
alimentação e o material. O pagamento do trabalho é feito com base na produção individual.
11. A pesquisa apontou que família é um importante suporte no cuidado dos filhos das integrantes para
que elas possam estar na programa (47%). Outro dado que chama atenção é a situação de que os filhos das
integrantes geralmente ficam sozinhos (23%), ou com os irmãos mais velhos (18%), somando um percentual
de 41%. Vale ressaltar que a maioria das entrevistadas cujos filhos ficam sós relatam que estes ficam sob os
cuidados dos parentes que moram próximo. Os dados nos revelam também a falta de creches públicas e es-
colas em tempo integral de forma que as integrantes possam deixar seus filhos para trabalharem. Outro fato
é a dificuldade de esses locais aceitarem crianças com doenças crônicas, que implicam dietas especiais, uso
de medicamentos, sondas etc.

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disponibilizado e, na maior parte das vezes, não têm acesso a ele. Esta situação cria
um “falso dilema”, em que o profissional geralmente procurar definir “de que lado
está”, desqualificando a natureza contraditória em que ele opera. O dilema não está
em optar por qual dos lados atender, mas superar essa contradição no sentido de
reelaborar essa demanda.
A partir deste contexto, procuramos construir uma estratégia de democratiza-
ção das relações sociais na direção do projeto ético-político na ONG por meio da
pesquisa de avaliação participativa junto aos integrantes dos programas institucio-
nais, que contemplasse o impacto, as demandas implícitas dos sujeitos, seus conhe-
cimentos acerca dos direitos sociais e serviços públicos, e o que deveria melhorar
na atuação do Serviço Social nos projetos. Segundo Vasconcelos, a prática é ato e
movimento. O voltar-se permanente sobre a prática contribui para ação pensada,
avaliada quanto aos seus objetivos, metas, resultados, dando visibilidade ao seu
desenvolvimento. Acreditamos que “a avaliação permite aflorar as diversas ‘verda-
des’ sobre os propósitos e resultados do programa ou ação institucional” (Carvalho,
2007, p. 91).
A pesquisa foi organizada junto ao estágio das acadêmicas de Serviço Social
sob nossa responsabilidade e coordenação. A escolha da pesquisa de avaliação
participativa enquanto estratégia foi motivada por três aspectos:
• a possibilidade de sair das questões individuais do atendimento para
transformá-las em uma demanda coletiva e que possibilitasse a construção
de propostas interventivas em sintonia com as necessidades dos sujeitos;
• fomentar um olhar crítico e propositivo das estagiárias, partindo da análi-
se concreta da realidade institucional e social;
• ampliar a legitimidade da intervenção do Serviço Social.

Pudemos observar que a realização da pesquisa possibilitou um canal coletivo


de escuta às necessidades da população atendida, além de avaliação acerca dos
programas e da própria atuação do Serviço Social. A população pôde participar na
redefinição do planejamento dos projetos do Serviço Social.
As estagiárias tiveram oportunidade de realizar a pesquisa, em que puderam
não apenas executar, mas elaborar, participando de todas as etapas, fortalecendo
sua bagagem teórico-metodológica e instrumental técnica-operativa, alicerçadas na
direção ético-política profissional. Atualmente, exige-se um profissional crítico e

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capaz de formular, recriar e avaliar propostas que apontem para a progressiva de-
mocratização das relações sociais, orientado por um compromisso ético-político
pautado em competências teórico-metodológicas, na teoria crítica, na explicitação
da vida social, aliado a uma capacidade técnica-operativa que possibilite a pesqui-
sa da realidade, a fim de decifrar as situações particulares das refrações com a
questão social, com a qual o assistente social defronta-se (Iamamoto, 2008).
Esta investigação proporcionou às acadêmicas fazer análise institucional não
só pelo viés da instituição e da academia, mas principalmente pela ótica da popu-
lação. A avaliação da situação concreta dos usuários, dos programas e do próprio
Serviço Social contribuiu para o planejamento de ações de cunho participativo e
democrático, que realmente pudessem alcançar os anseios da população atendida.
Concluindo, citamos Vasconcelos (1997, p. 162), para quem “teorizar sobre
a democracia e sobre solidariedade não é mesmo que viver democraticamente e ser
solidário”.

Considerações finais
Este artigo buscou trazer apenas contribuições iniciais nesse tenso debate do
trabalho do Serviço Social nas ONGs no campo da saúde. Este estudo não teve em
nenhum momento a intenção de esgotar a temática, mas sim de tentar sistematizá-la
e ampliá-la para proporcionar um melhor entendimento do exercício profissional
nesse campo sócio-ocupacional. Conforme relatamos, acreditamos que o trabalho
do assistente social nas ONGs no campo da saúde traz dilemas e desafios no ho-
rizonte da cidadania. Acreditamos que é imprescindível que o profissional avance
na realidade concreta, entendendo que o real é formado por contradição e por
projetos societários em disputa. Cabe a nós, profissionais, direcionarmos os pro-
jetos em disputa rumo à cidadania de direitos, em contraponto à cultura do favor.
Finalizamos o artigo com um poema que expressa a síntese do fazer do Serviço
Social nas ONGs na atualidade:

É urgente inventar novos atalhos


acender novos archotes
e descobrir novos horizontes.
É urgente quebrar o silêncio,
abrir fendas ao tempo

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81
e, passo a passo, habitar outras noites
coalhadas de pirilampos.
É urgente içar novos versos,
escalar novas metáforas
recalcadas pela angústia.
É urgente partir sem medo
e sem demora
para onde nascem sonhos,
buscar novas artes de
esculpir a vida.
(Armando Artur)

Artigo recebido em jul./2009 ■ Aprovado em mar./2010

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84
Serviço Social e o campo da saúde:
para além de plantões e encaminhamentos
Social Services and health policy: beyond shifts and forwarding

Francis Sodré*

Resumo: Trata-se de um artigo que visa analisar a política de saú-


de e o trabalho do assistente social a partir de dois momentos distintos
das formas de gestão do trabalho: o modelo fordista e o modelo de
acumulação flexível. Esses dois eixos de análise serão discutidos
aplicados ao campo da saúde e à inserção do trabalho do assistente
social na saúde. Os dois eixos foram escolhidos para apontar um exa-
me sobre tendências dos determinantes sociais à saúde pública e ao
processo de trabalho do assistente social neste campo.
Palavras-chave: Serviço Social. Processo de Trabalho. Saúde Pública.
Saúde Coletiva.

Abstract: This article aims at analyzing health policy and social work from two distinct forms of
working management: Ford’s model and the model of flexible accumulation. These two axes of analy-
sis are discussed as applied to the field of health and to the integration of social work in health. The
two axes were chosen to examine the trends of social determinants to health and the social worker´s
working process in this field.
Keywords: Social Services. Working process. Public health. Collective health.

* Assistente social e doutora em Saúde Coletiva, professora do Departamento de Serviço Social da


Universidade Federal do Espírito Santo — Vitória/ES — Brasil. E-mail: francisodre@uol.com.br.

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85
A
necessidade de escrever sobre o trabalho do assistente social no
campo da saúde traz desafios recorrentes desde a inserção do pro-
fissional de Serviço Social nesta área de atuação. Temos há muito
tempo acúmulo nas discussões produzidas para a saúde pública
através das ferramentas que o Serviço Social, juntamente com outros profissio-
nais, desenvolveu e aprimorou ao longo da reforma sanitária e da implantação
do Sistema Único de Saúde (SUS), tornando-as coletivas.
Do conhecimento acumulado nas lutas sociais, o assistente social contribuiu
para a politização do campo da saúde. Inseriu o debate sobre os determinantes
sociais de forma definitiva e ainda hoje se insere nas frentes de trabalho para
demarcar um posicionamento macropolítico que luta por um SUS menos bio-
médico nas suas mais diversas redes de serviços e especialidades.
Nas duas décadas de vida deste Sistema Único de Saúde comemoramos
também trinta anos do Congresso da Virada, algo que não foi simples coinci-
dência histórica. O nascimento do SUS é verdadeiramente um produto das
lutas sociais, nas quais os assistentes sociais tiveram importante contribuição
e trouxeram para si a afirmação de um referencial teórico até então hegemô-
nico pautado nas reflexões de uma teoria social crítica e comprometida com
um projeto de sociedade que determinou toda a história subsequente desta
profissão.
Na área da saúde, verifica-se as interfaces da história e das políticas pú-
blicas que vivenciamos através das conexões estabelecidas com as políticas
sobre a vida. O que é uma política de saúde se não uma política sobre a vida?
Ou em chave marxista: as políticas de reprodução social. Neste campo das re-
lações sociais, duas observações serão aqui pontuadas em diferentes momentos
históricos dos processos de gestão do trabalho em saúde: o fordismo e a acu-
mulação flexível em suas determinações na saúde — uma demarcação que fi-
zemos para elucidar momentos diferenciados da política de saúde e que influen-
ciam nas práticas dos profissionais, entre eles o assistente social inserido na
saúde coletiva. Essa demarcação histórica norteará toda nossa análise no decor-
rer do debate que ora propomos. Esse exame sobre tendências está pautado na
produção de Harvey (1989), que contrapõe dois momentos distintos nas formas
de gestão do trabalho denominados por ele como fordismo e acumulação flexí-
vel. Desse arcabouço produzido pelo autor, aplicaremos tal análise ao campo
da saúde, refletindo sobre a inserção dos assistentes sociais.

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86
A Modernidade e o Fordismo na Saúde Pública
A afirmação da industrialização por meio da formação de um amplo par-
que industrial abrigado em um discurso nacionalista trouxe a modernidade ao
país. A industrialização endógena e financiada por um capital exógeno fez com
que o Brasil vivenciasse um amplo processo de crescimento dos seus centros
urbanos. Essa mesma industrialização trouxe consigo as mazelas de um traba-
lho de fábrica, conflitos urbanos e a criação de políticas de controle da força
de trabalho.
Para o Serviço Social isso representou a necessidade de criação de práticas
“modernas”, a exigência de uma racionalidade burocrática-administrativa e a
inserção do seu trabalho em estruturas institucionais complexas do ponto de
vista organizacional.1 O embate de tendências estruturalistas retomadas no
Serviço Social e confrontadas com referenciais da psicologia e da sociologia
caracterizam a chegada da modernidade à profissão.
No campo da saúde pública, foi o momento das grandes instituições cen-
tralizadas e verticalizadas em uma estrutura única de poder. A construção de
um Estado forte e presente por meio do fomento às políticas sociais fez deter-
minar a criação do campo da saúde pública. A própria terminologia “saúde
pública” refere-se à formação de uma política estatal, portanto “pública” no seu
sentido de ser atrelada ao Estado.
As instituições de porte estavam também correlacionadas à chegada dos
grandes projetos industriais, principalmente aqueles que trouxeram a promessa
do desenvolvimento2 econômico, invertendo o perfil populacional do Brasil
rural para o Brasil urbano. Modelos americanizados de políticas públicas fun-
cionalistas entravam em discussão, colocando o cerne do debate profissional do
assistente social na clássica divisão caso/grupo/comunidade. Ou seja, o indiví-
duo, o grupo e a vida em sociedade eram tratados de forma estanque, como se
fossem diferenciados ou como se não estivessem correlacionados.

1. Este raciocínio foi desenvolvido de forma muito qualificada no livro Ditadura e Serviço Social, de
José Paulo Netto, com o requinte do detalhamento histórico que isso representou para o amadurecimento
profissional do Serviço Social.
2. É interessante notar como a palavra “desenvolvimento” traz a noção de retirada do envolvimento
(des-envolvimento), o que faz sentido à nossa história, que se pautou por uma modernização ditada por padrões
internacionais.

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87
Esse misto entre funcionalismo e estruturalismo no campo do Serviço
Social pautou práticas sociais importantes e momentos históricos para a profis-
são. Destaca-se entre eles a inserção maciça dos assistentes sociais nos grandes
hospitais, o trabalho muitas vezes higienista de retirada das populações de rua
com o discurso do sanitarismo organizado por meio de normas de higiene e
cuidado com o corpo.
No Brasil, o Serviço Social demarcou sua entrada no campo da saúde
pública pelo viés dos trabalhos com comunidade, por meio de práticas educa-
tivas sobre procedimentos de higiene aplicados à vida privada, incentivando o
controle de natalidade, o controle de doenças infantis, de higiene bucal, de sa-
neamento para a criação das primeiras políticas urbanas de saúde, muitas vezes
realizado por meio de um trabalho educativo baseado em proporcionar acesso
à informação sobre o próprio corpo e a higiene do mesmo. Esse era um trabalho
que se mostrava necessário a um país sem escolaridade, com grande parte da
população em condição de miséria e revelando desconhecimento sobre o próprio
corpo.
Também nesse período, por meio das políticas urbanas, as abordagens
individuais sobre a saúde foram desenvolvidas de forma ampla. O Serviço So-
cial de caso para a saúde pública era a representação da necessidade de inter-
venção do assistente social nas políticas de reprodução social. Trazia ainda o
reconhecimento de que a saúde possuía seus determinantes sociais, mas também
a afirmação que muitos desses determinantes eram tratados isoladamente. Isso
caracterizou uma ação maciça de atendimentos de “casos sociais” — quase um
contrassenso.
Assim, o atendimento de caso nas grandes instituições se ampliou, apoia-
do em um excesso de demandas com o qual o assistente social teve de se depa-
rar. A prática da sistematização se perdeu em muitas instituições devido ao
grande contingente de pessoas atendidas.
Desse mesmo período, nasce nos hospitais públicos, como ferramenta do
Serviço Social, o “livro preto”. Um livro de ata, com capa preta, em que o as-
sistente social relata o atendimento que chega até ele como registro de sua de-
manda. Atualmente, o “livro preto” está para o Serviço Social no campo da
saúde como o Ford modelo T está para o fordismo — algo superado. Trata-se
de um registro superficial, sem dados que venham a servir de fonte para uma
sistematização qualificada. Registros pontuais realizados de acordo com a von-

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tade, o tempo e a decisão do assistente social no momento da chegada do usuá-
rio. Uma forma padronizada de dizer “resolva no próximo plantão”. Assim, as
demandas que chegam ao Serviço Social são tratadas como uma situação iso-
lada fazendo com que o próprio assistente social desqualifique seu trabalho, não
colocando a dimensão macrossocial que está contida em cada atendimento que
realiza, ou melhor, não destacando a complexidade das manifestações da ques-
tão social naquela demanda trazida ao campo da saúde pública.
O grande hospital traz consigo a gestão do trabalho em um formato seme-
lhante ao concebido dentro da grande fábrica. Atendimentos em massa, cirurgias
em massa, internações contabilizadas pelo seu gasto financeiro, leitos em série
e atendimentos sequenciais sem tempo de parada. Desta forma, aos poucos
molda-se uma rotina também para aquele trabalho que não deveria ser consi-
derado rotineiro. O Serviço Social criou e reproduziu normas institucionais de
forma mecanizada para todos aqueles que o procuravam. Mas como não ter um
texto pronto se a proposta institucional é seriada, dividida por especialidades?
Em cada clínica, enfermaria ou ambulatório “apertam-se parafusos” em partes
diferentes do corpo humano.
A especialidade técnica na saúde pública criou equipes que não interagem.
São profissionais compartimentalizados, como se a vida fosse a junção de co-
nhecimentos sobre pedaços do corpo humano. O “fordismo modernizador”
proporcionou ao campo da saúde uma formação maciça de profissionais que
tratam a vida como partes contidas em um todo. A estrutura administrativa
centralizada do grande hospital, proporcionou a criação de um modelo de
saúde-fábrica. Uma produção sem originalidade, centrada em um discurso de
defesa do Estado protetor que nunca conhecemos através do fordismo na saúde
pública.
A criação da saúde-fábrica deu origem também a formação dos primeiros
cartéis de terceirização nos serviços de saúde. A criação dos planos de saúde
ou mesmo a chegada decisiva de serviços especializados de grande custo que
funcionam dentro dos hospitais públicos de todo o Brasil marcaram esse mo-
delo. Em hospitais universitários, filantrópicos ou mesmo hospitais de médio
porte, tornou-se comum o surgimento de serviços de hemodiálise, quimiotera-
pia ou radioterapia, fornecidos por equipes que detêm o controle sobre as má-
quinas. Exatamente o mesmo formato capitalista do início da sociedade bur-
guesa: um grupo de médicos detém as máquinas de radioterapia e por eles serem

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os donos das máquinas, fornecem (dentro de um serviço público) seus trabalhos
altamente especializados, cobrando o quanto querem pelo serviço e sendo pagos
pelo Estado. Este modelo de Estado-empresa3 reflete não só o campo da saúde,
mas o único formato de Estado de bem-estar social que o país conheceu, refor-
çando teses dos estudos marxistas em que o Estado sempre foi a representação
de uma classe.
Para o Serviço Social, isso não foi muito diferente. A hegemonia do dis-
curso biomédico dentro da instituição hospitalar reforçou uma atitude aguerri-
da dos assistentes sociais para afirmarem seu espaço na saúde pública. O mo-
delo estatal era pautado pela atuação no grande hospital-fábrica ou nos centros
de saúde que funcionavam por meio de um modelo militar campanhista. A as-
sociação entre ambos formava uma lógica dual de atuação exclusiva para o
campo da saúde. A inserção dos assistentes sociais nesses dois âmbitos propor-
cionava questionamentos de politização da saúde que não só se resumiam a esse
modelo dual, mas a outras formas de inserção e outras formações de um dis-
curso não hegemônico à saúde pública. Este questionamento já demarcava os
idos dos anos 1980 com a inserção decisiva da teoria social crítica no debate
profissional. Também a crítica ao Estado classista que convivia, contraditoria-
mente, com referenciais fenomenológicos e outras correntes de pensamento que
à época formavam os debates da sociologia e da filosofia.
Não se pode afirmar que todo esse contexto histórico tenha gerado uma
atuação específica dos assistentes sociais no campo da saúde, mas surgem nes-
se momento histórico, em reposta à saúde-fábrica, o modelo de resistência
também pautado na ideologia de uma produção em massa e em série: associações
de assistentes sociais da oncologia, da infância, da clínica... como se a profissão
estivesse de fato inserida na serialização da saúde pública que o Estado fordis-
ta criou.
Em outro ponto de vista, o livro de Maria Inês de Souza Bravo, que narra
a trajetória do Serviço Social na reforma sanitária,4 mostra também outras for-
mas de resistência, lutas coletivas, em que os assistentes sociais foram aliados
dos movimentos de moradia, de luta pela saúde e pela políticas urbanas de sa-
neamento básico — um reflexo que apontava para transições ou deslocamentos
do modelo vigente trazendo os ideais do sanitarismo.

3. A terminologia Estado-empresa foi retirada do livro Trabalho e cidadania de Giuseppe Cocco.


4. Estamos nos referindo ao livro Serviço Social e Reforma Sanitária, publicado pela Cortez Editora.

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Por isso à saúde-fábrica atribui-se a lógica intervencionista estatal como
se as políticas de saúde criadas pelo Estado não fossem passíveis de ser ques-
tionadas, pois trazem consigo uma falsa noção que exercem unicamente o “bem
comum”. As políticas fordistas ao campo da saúde proporcionaram uma con-
traditoriedade: por um lado, um avanço no campo das conquistas pelas lutas
sociais em criar, executar e garantir as políticas sociais de saúde; por outro, no
campo do Serviço Social, criou “legitimidade” de um discurso “estatalista” que
reforçava as políticas fordistas intervencionistas como algo legítimo, provedor
de bem-estar para a sociedade. O discurso do Estado provedor esteve presente
em muitos meios acadêmicos, como se o Estado não fosse porta-voz dos inte-
resses de classe. Com certa opacidade, isso legitimou a entrada violenta do
capital privado nos serviços públicos e a lógica privatista e privatizante de mui-
tas dessas políticas.
Por essas ações do jogo macropolítico, o Estado fordista pode ser consi-
derado o Estado-empresa, pois colocou dentro das instituições públicas o modo
de produção gerido “em parceria” entre o público e o privado, como se isso
fosse o caminho “natural” das coisas. Esse cenário, introduzido de forma am-
pliada pelo discurso modernizador industrial no campo da saúde, abriu os
precedentes necessários para a chegada do neoliberalismo na década seguinte.
A saúde pública sofreu refrações desse discurso. A construção das grandes
instituições de saúde verticalizadas e associadas à Previdência Social no con-
trole da força de trabalho foi aliada ao fordismo estatal. A política “moderniza-
dora” de industrialização só foi possível no cenário brasileiro quando associada
à Previdência (que funcionava como uma seguradora privada) e à Saúde (que
cuidava de vidas como se cuidasse somente de corpos aptos ao trabalho).
No campo das práticas, foi sob a égide desse modelo que foi criado o
prontuário do usuário separado por atuação profissional. O assistente social
tinha o seu prontuário, e os demais profissionais tinham outros. Por onde o
usuário da saúde passava deixava um registro em uma “gaveta” diferente. O
argumento para isso foi a ética do sigilo profissional.5 Algo que não diz nada

5. “Os assistentes sociais dispõem de um manancial de denúncias sobre a violação de direitos humanos
e sociais e, desde que não firam as prescrições éticas do sigilo profissional podem ser difundidas e repassadas
aos órgãos de representação e meios de comunicação atribuindo-lhes visibilidade pública na defesa dos di-
reitos […] Por meio da socialização de informações procura-se tornar transparente, aos sujeitos que busca
os serviços, as reais implicações de suas demandas — para além das aparências e dos dados imediatos —
assim como os meios e condições de ter acesso aos direitos. Nesse sentido, essa abordagem extrapola uma

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91
ao usuário que segue de porta em porta de uma mesma instituição e não recebe
um retorno dos profissionais que não dialogam entre si. Sabemos que as infor-
mações sigilosas podem ser sistematizadas em um documento à parte que fique
sob a guarda do assistente social, por isso não explicam a compartimentalização
das informações. Não temos claro até que ponto tal atitude seja, em vez da
“ética do sigilo”, a “ética do corporativismo”. O prontuário não pode servir de
instrumento de diálogo se cada um só quer dialogar apenas com seus pares.
Neste jogo, somente o usuário perde, pois não encontra equipes provocativas
que coloquem no centro das discussões um debate sobre a demanda atendida.
Desta forma, reproduz-se serviços hierarquizados, padronizados, centralizados,
compartimentalizados e corporativistas, como o fordismo nos ensinou.
Os assistentes sociais precisam atentar para não repetir o modelo de pro-
dução em massa, que no caso da saúde-fábrica pode ser compreendido por
plantões e encaminhamentos. Aquele arquétipo resumido em uma sala, um livro
preto, um assistente social e uma agenda antiga com contatos telefônicos desa-
tualizados. O que poderia ser equiparado ao médico que só entrega receitas.
Este modelo não condiz com o discurso que foi criado pelo Serviço Social, que
apregoa a emancipação humana como princípio. O que a instância hospitalar
proporcionou à formação profissional foi uma lógica inserida na dimensão
histórica maior da instituição — uma máquina de fabricar produtos sem sentidos
para o seu produtor e para o seu demandante. Produtos que se esgotam em si
mesmos e perdem a dimensão processual do trabalho do assistente social.
O modelo saúde-fábrica cria as bases para a atuação pautada em um dis-
curso moralizador, que trata a pobreza como algo irreversível ou as instituições
como um âmbito da política pública em que não há caminhos para mudanças.
De forma ampliada, introjeta no campo da saúde pública a naturalização da
pobreza, despolitiza a miséria, realizando serviços pobres e práticas esvaziadas
aos mais pobres. Gera um vazio de sentidos às instituições, aos profissionais e
aos usuários, em um conformismo que reforça a banalização da pobreza em
todos os âmbitos da vida.

abordagem com um foco exclusivamente individual, ainda que, por vezes, realizada a um único indivíduo
— a medida que considera a realidade dos sujeitos como parte de uma coletividade. Impulsiona, assim,
também a integração de recursos sociais que forneça retaguarda aos encaminhamentos sociais e a articulação
do trabalho com as forças organizadas da sociedade civil, abrindo canais para a articulação do indivíduo com
grupos e/ou entidades representativas, capazes de negociar interesses comuns na esfera pública” (Iamamoto,
p. 428, 2007).

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A Saúde, o Serviço Social e o Modelo de Acumulação Flexível
Os anos 1990 inseriram de forma ampliada a transição do fordismo-taylo-
rismo para as modos flexíveis de acumulação (o toytismo foi o maior exemplo).
Proporcionou o envio das fábricas para regiões sem tradição industrial, com
maiores perspectivas de exploração da classe trabalhadora — o que veio a incre-
mentar novas formas de extração de superlucros. Todo esse contexto favorece a
“naturalização” da mercantilização da vida no capitalismo avançado, transfor-
mando os cidadão sujeito de direito em um “cidadão consumidor”,6 o desempre-
gado em um “empreededor” ou em mero cliente das políticas de assistência
social focalizadas. Este mesmo cenário, aprofundado em períodos neoliberais,
demarcou o crescimento de inciativas da sociedade civil, por meio da expansão
das ONGs, do voluntariado, da filantropia e do denominado “terceiro setor”.
Nesse quadro de profundas perdas para os trabalhadores, foi se desfazen-
do o seu potencial político-organizativo. Entre outros fatores, as novas práticas
flexíveis de gestão da força de trabalho, o trabalho por domicílio, o trabalho nas
infovias de comunicação, as terceirizações, o trabalho parcial, temporário e
fragmentado estabeleceram mecanismos e novos meios de controle e dominação
sobre a classe trabalhadora com o argumento falso e perverso da “empregabi-
lidade”.
É interessante notar como essas mudanças nos modelos de gestão da for-
ça de trabalho desencadeiam influências importantes sobre o campo da saúde.
Na evolução do discurso dos campos de conhecimento, percebe-se um deslo-
camento entre as terminologias saúde pública e saúde coletiva. Pode-se, de
forma breve, introduzir que o campo da saúde coletiva traz questionamentos às
políticas públicas de saúde em seu formato gerido unicamente pelo Estado
“parceiro” das empresas de saúde. Cabe aqui destacar exemplos como a indús-
tria de equipamentos hospitalares, os cartéis dos planos de saúde, a indústria de
medicamentos e as organizações não governamentais,7 tão presentes na atual
política de saúde.

6. Ana Elisabete Mota desenvolveu tais conceitos em dois momentos diferenciados de suas obras,
destacamos aqui o livro Cultura da crise e Seguridade Social e, atualmente, O mito da assistência social,
ambos publicados pela Cortez Editora.
7. Atualmente tornou-se impossível pensar a política de saúde sem a participação das ONGs. Exemplo
disso são as casas de recuperação de dependentes químicos (muitas delas com vertentes religiosas), as co-

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A nomenclatura “saúde coletiva” não representa apenas uma mudança
entre termos, mas a incorporação de questionamentos trazidos principalmente
pelas lutas sociais. A saúde coletiva desperta para o fato de que o motor do
desenvolvimento das políticas públicas são os movimentos de resistência, e não
a modernização proposta por mais industrialização. Para a saúde, um campo
empírico por excelência, o acúmulo já produzido pela reforma sanitária forne-
ceu elementos suficientes para este entendimento. Despertou-nos para o fato de
que não será mais industrialização que trará desenvolvimento, mas sim a aber-
tura definitiva de um diálogo do Estado com as lutas sociais — admitindo a
demanda dos movimentos como agenda das políticas públicas.
Tomando esse raciocínio como central a esse segundo momento de análi-
se, podemos inferir que do ponto de vista dos movimentos de resistência, a
década de 1990 foi a expressão máxima de que esse jogo estava temporaria-
mente perdido. A chegada avassaladora do neoliberalismo às políticas de saúde
deixou muito claro, por um lado, os atores sociais que disputavam projetos
privatistas de saúde e, por outro lado, a continuidade dos ideais da reforma
sanitária.8 Esse embate que marcou a década passada deixou-nos heranças
muito representativas, a maior delas o silenciamento dos movimentos.
As lutas sociais do trabalho na década de 1990 expressaram a fragmenta-
ção da classe trabalhadora em diversas formas de vínculos e contratos empre-
gatícios que manifestaram a precarização das relações de trabalho no período
de crise do fordismo. Por muitos, esse período foi denominado como sendo de
acumulação flexível, guiando várias formas de gerir não somente o campo das
políticas do trabalho, mas também, nesse caso, as formas de gestão das políticas
de saúde.
Diante desse quadro, o assistente social demarcou de forma vertical sua
atuação na reprodução das relações sociais. Na saúde coletiva, foi o reflexo dos
questionamentos que tentavam distanciar o fordismo das políticas de saúde, um
questionamento definitivo ao modelo saúde-fábrica. Criou-se como principal
estratégia para operacionalizar seu posicionamento no campo um modelo de-
nominado estratégia de saúde da família (ESF). Diferentemente da lógica de

munidades terapêuticas, as casas de acolhida de pessoas portadoras do vírus HIV/Aids, voluntários de orga-
nizações que recebem vítimas de violência, entre muitas outras.
8. Maria Inês Bravo formula uma importante discussão sobre o tema no livro Política social e democra-
cia, publicado pela Cortez Editora e pela UERJ em 2001.

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produção fordista, a produção passava a ser por demanda, e não em série. O
trabalho dos profissionais da saúde retomava uma antiga discussão no campo
das ciências: o retorno do generalista e a crítica ao especialista.
A ESF retomou o debate que propunha menos operários que apertassem
somente parafusos, mas inseria uma leitura de que as políticas de saúde são de
fato políticas sobre a vida, por isso não são objeto de forma exclusiva a um
único saber profissional ou peça a ser trocada por um especialista. O discurso
científico pedia a ampliação do campo, alargava as bases de análise e a tornava
multiprofissional de forma definitiva. Com isso, passa a existir um chamamen-
to ao discurso da participação e da multiplicidade.
Outro momento importante foi a criação das equipes de agentes comuni-
tários. Os agentes precisavam ser locais, “nativos” em seus territórios de traba-
lho. Os agentes de saúde saem todos os dias das unidades de saúde com o
objetivo de capturar os “nichos”, exatamente como no modelo de acumulação
flexível. Em cada casa que se entra busca-se o hábito, o comum, o cotidiano, o
corriqueiro, a rotina para se compreender a “saúde como estilo”, como forma
de vida.
Criou-se novos indicadores para compreender as políticas de saúde. Isso
não foi uma peculiaridade brasileira, mas internacional. O fato é que “qualida-
de de vida” (um critério extremamente subjetivo) tornou-se mensurável. “Qua-
lidade” e “estilo” compõem atualmente um mesmo critério de análise, um cri-
tério que passou a ser medido e capturado como estilo de vida saudável.
Isso proporciona aos assistentes sociais, profissionais da saúde, dois pon-
tos de reflexão: 1) Frente aos determinantes sociais que conhecemos sobre a
saúde, o que seria um estilo de vida saudável? Iremos pontuar a miséria e a
pobreza como critério de avaliação ou encontraremos estilos saudáveis mesmo
dentro das condições de pobreza da população?; 2) O que essa inversão propos-
ta pelo campo da saúde coletiva nos coloca como demanda? Que modos de
reprodução da vida estão sendo pautados?
No início dos anos 2000 assistiu-se à contratação em grande escala de
agentes comunitários. Durante um longo período tomou-se conhecimento de que
o trabalho do agente comunitário era basicamente centrado no ato de entrar de
casa em casa, obter delas informações importantes para direcionar o trabalho das
equipes de saúde da família nas unidades. Este trabalho, se feito de forma mais
politizada, traria uma processualidade interessante à saúde — uma provável

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perspectiva de continuidade com diálogos mais profícuos com a população. Os
assistentes sociais perceberam com isso a perda de um espaço no mercado.
A técnica de vista domiciliar é parte da história da profissão do assistente
social. Entramos no âmbito privado da vida das pessoas, no espaço residencial,
doméstico. Certamente, para usar a linguagem biomédica, um procedimento
invasivo. A visita domiciliar proporciona essa leitura sobre o privado, uma
busca por informações que personalizam a ação do profissional com seu usuá-
rio; portanto, uma ferramenta perfeita ao modelo flexível de saúde.
Para a saúde coletiva, o território tornou-se o foco da ação; milimetrica-
mente esquadrinhado, os hábitos e as manifestações da cultura local são colo-
cados como determinantes sociais da saúde. Aliás, nunca os determinantes
sociais foram tão evidentes à saúde, operando de forma clara, marcando a es-
fera da reprodução social. As dinâmicas dos territórios são dinâmicas locais
com influências das políticas mundializantes, a cultura se manifesta nesse di-
verso, e os hábitos tornam-se a fonte primária para trabalhar a saúde como
produto final da ação profissional.
O que aqui queremos afirmar é que esse trabalho requer uma ação política
por excelência. Dinamizar redes, ativar e conhecer as dinâmicas produtivas dos
territórios, conhecer hábitos e a cotidianeidade da coletividade posta em análi-
se nas lentes das unidades de saúde focadas no território. Um trabalho caracte-
rístico da ação de um profissional de Serviço Social.9
Nos hospitais, a saúde coletiva também proporcionou um olhar flexível
sobre a relação saúde-doença. Aqui queremos chamar a atenção para um dis-
curso que circula com fluidez entre os profissionais da saúde e entre os assis-
tentes sociais que atuam no campo da gestão: o discurso da humanização.
Pontuamos a humanização como discurso porque ela é parte de uma série de

9. A categoria profissional ainda não conseguiu garantir que o número de assistentes sociais seja am-
pliado nas unidades de saúde para fazer a proposta de qualificar a intervenção dos trabalhos com as famílias
e as redes sociais dos territórios do SUS. Ainda vigora, na maior parte das unidades de saúde do Brasil, que
somente um assistente social dê conta de todo o trabalho com a população local, mensurado nos mapas dos
gestores que tentam ser cartesianos na saúde pública, salvo raras exceções. Não é preciso rever as formas de
intervenção do nosso trabalho social com os moradores das mais diversas regiões, mas sim rever os critérios
do SUS, que se baseiam em quantitativos de habitantes que só se tonariam possíveis de ser trabalhados de
forma fordista, em massa. Não é esta a intenção de um trabalho qualificado nos territórios para alcançar a
política de saúde que almejamos. O SUS que queremos está longe das condições de trabalho postas aos
profissionais de saúde.

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ações que dizem tornar humano aquilo que não possui formas ou atitudes hu-
manas. Retirar a centralidade do trabalho morto, aquilo que está incorporado
às máquinas, e recolocar a centralidade do trabalho vivo na saúde — objetivar-se
na ação humana.
Tem-se por pré-sabido que o discurso da humanização propõe as mesmas
ações planejadas pelas formas formas flexíveis de acumulação: atenção, aco-
lhimento, cuidado, criar vínculos — afetividade posta em um processo de tra-
balho que se dá em ato. Esse processo de trabalho humanizador, ao mesmo
tempo que proporciona relações mais abertas com o usuário, também abre
precedentes para trabalhos mais alienantes do ponto de vista da sua execução.
Certa vez ouvi de um profissional da saúde: “É fácil ser ‘humanizador’ com
alguém que está vulnerável”. E tomamos então isto como ponto principal de
nossa análise, nos direcionando aos assistentes sociais gestores das políticas
públicas.
Há uma ambiguidade no discurso da humanização. Se por um lado pro-
move menos máquinas, menos produção em série, menos fordismo na saúde,
por outro traz uma prática extremamente alienante, tanto do ponto de vista do
profissional da saúde, quanto para seu usuário. No campo hospitalar, hoje, os
usuários caracterizam-se por pessoas doentes. Não existem pessoas saudáveis
em busca de atendimento hospitalar. Neste sentido, qualquer um desses deman-
dantes estão ali à espera de qualquer profissional que lhe dê o mínimo de aten-
ção, de escuta ou mesmo uma ínfima informação. Assim compreende-se melhor
a frase acima citada, ouvida de um profissional de saúde. Em situação extrema-
mente vulnerável, qualquer discurso profissional que contenha mínimas infor-
mações pode ser entendido como “humano” ao usuário.
Por outro lado, do ponto de vista do trabalhador, o modelo flexível da
saúde propõe um profissional de saúde participativo, que introjete certa docili-
dade, seja compreensivo na ação, sensível em seus procedimentos ou palavras.
O gestor humanizante é aquele que transmite informações, tenta não tratar de
forma piramidal seus modos de gerir e que ainda atenda o usuário para se tornar
próximo a ele. Um modelo de trabalhador pressuposto pela acumulação flexível10

10. Não se pode perder de vista que o modelo de acumulação flexível ditou uma “flexibilidade” nas re-
lações de trabalho, mas também nos processos, nas formas de produção, nas relações de consumo, e uma
desregulamentação dos direitos do trabalho.

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como participativo; aquele que além do trabalho feito com as mãos, tão caro ao
âmbito hospitalar, é também requerido em seu espírito — sempre compreensi-
vo e atento ao outro, independentemente de suas condições de trabalho. Ou seja,
uma evidência que os níveis de exploração sobre o trabalhador da saúde atual
chegaram ao extremo em suas formas de exploração.
O assistente social tem sido cada vez mais convocado a atuar na gestão
dessa força de trabalho no campo da saúde, algo que nos desafia a pensar sobre
essas relações de forma mais aprofundada. Ao profissional que se resume a dar
plantões e encaminhamentos, as políticas de saúde lhe reservam lugares exte-
nuantes de trabalho, equipes despreparadas, ambientes insalubres, condições
inferiores de administrar seu processo de trabalho no atendimento aos usuários.
O modelo flexível da saúde requer um assistente social para além do arquétipo
“plantão-encaminhamento”. Um caminho de mão dupla que abre janelas para
longos debates.
Não existe aqui intencionalidade de dizer que o plantão do Serviço Social
é uma atividade desnecessária ou superada, pois sabemos bem que ele se cons-
titui, muitas vezes, como a única porta de entrada realmente existente aos
usuários das instituições tradicionais; um momento em que o usuário é recebi-
do para ser ouvido em sua queixa sobre a própria instituição, buscar orientações
breves, complementar um atendimento realizado por outro profissional (e que
o usuário sai de lá sem as informações que realmente necessitava), abrir um
diálogo com os canais da rede de serviços ou mesmo intrainstitucionais. No
entanto, atentamos para o fato de que o trabalho desse assistente social não pode
se esgotar nisso, como se encontrasse um fim em si mesmo.
O assistente social despreparado continua a repetir que “apaga incêndios”
ou que somente resolve problemas nos hospitais. Mas quem não resolve pro-
blemas em hospitais? A instituição hospitalar colocou-se na modernidade como
uma máquina de resolver problemas de saúde. Todos no campo hospitalar atuam
com a finalidade de desenvolver estratégias para fazer viver, ampliar a sobrevi-
da, retirar a população que lhe demanda de uma condição de sofrimento, que
na maior parte das vezes trata-se de um sofrimento físico ou psicológico.
A maneira como se deu (e ainda acontece) a implantação da política de
saúde traz aspectos importantes para analisar a forma fabril de fazer a ação
de Estado. O assistente social é solicitado, durante todo o seu tempo de trabalho,
a atender demandas complexas, de forma desmedida pode ser considerada a sua

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intensidade. Por vezes, o atendimento a uma só pessoa pode ocupar dias de
trabalho devido a sua complexidade. E mesmo com demandas grandes e inten-
sas de atendimento direto à população, é também convocado a ocupar cargos
que dialogam com a gestão.
O projeto de lei11 que defende trinta horas semanais de trabalho para o
assistente social tem no seu excesso, intensidade e sobrecarga de trabalho a base
de toda a discussão apresentada em 2008. A questão trabalhista maior centra-se
na forma em como fazer reconhecer nesse perfil de trabalhador sua peculiari-
dade de ação profissional sem destituí-la em seu salário. Um claro dilema fabril
do trabalho mensurado através da hora trabalhada ou do produto concreto que
produz, e não pela sua processualidade, como se dá entre todas as demais pro-
fissões que atuam na reprodução da vida.

Informação é capital
Diante desse cenário, temos assistido de forma ainda muito tímida o cres-
cimento da demanda por pesquisa ou assessoria para as políticas públicas de
saúde. As pesquisas solicitadas aos assistentes sociais pedem que os mesmos
realizem uma interface entre os dados empíricos obtidos com a política executa-
da, geralmente por órgãos públicos. É interessante notar como a produção do
assistente social nesta leitura macropolítica sobre a realidade da saúde agrega
capital ao Estado na sua forma de direcionar os serviços e os programas de
governo.
A produção de informação sistematizada e qualificada pelo assistente
social proporciona leituras que subsidiam o trabalho do gestor. No modelo de
acumulação flexível, a informação tornou-se um capital valiosíssimo. Daí o
crescimento da demanda por pesquisas e estudos que precedem as ações dos
gestores das políticas sociais. A dimensão investigativa do trabalho do assisten-
te social tem sido também demandada por outros fatores, não dependendo ex-
clusivamente de uma “atitude” desse profissional.

11. Em 2008 foi extenso o debate sobre o projeto de lei que pleiteava trinta horas semanais de trabalho
para o assistente social. A jornada reduzida visa primordialmente preservar a saúde e a segurança do profis-
sional.

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A produção de pesquisa tem sido demandada de forma mais constante ao
assistente social, que hoje tem se preocupado com a sua inserção nas pós-gra-
duações tanto lato sensu quanto stricto sensu. Essa preocupação aparece de
forma recorrente entre aqueles assistentes sociais interessados em atualizar
conhecimentos e produzir uma prática crítica. Mesmo nas cidades que fogem
ao circuito das grandes metrópoles, essa necessidade em qualificar-se e inserir
estudos à sua prática começa a tomar maiores proporções. Sabemos que a in-
serção nos cursos de especialização ou mestrados não garantem a continuidade
da prática da pesquisa em seus ambientes de trabalho, todavia desperta o inte-
resse e o experimento nesse campo, atentando para a necessidade e a realidade
que esse trabalho não seja necessariamente exclusivo dos meios acadêmicos.
O atual momento do Serviço Social deixa claro sua intencionalidade de
buscar incessantemente o novo. Uma busca pelas tendências às demandas dos
usuários que traz a sua inserção definitiva na prática da pesquisa dentro das
instituições públicas e privadas. O Sistema Único de Assistência Social, mode-
lo criado a partir da experiência do SUS, já mostra a preocupação com a criação
do cargo de pesquisador como parte do âmbito da gestão.12 Informação siste-
matizada e geração de conhecimento associado à produção tornam-se um capi-
tal importante às novas formas de gestão. “O conhecimento não é só um verniz
que se sobrepõe superficialmente à prática profissional, podendo ser dispensa-
do, mas é um meio pelo qual é possível decifrar a realidade e clarear a condução
do trabalho a ser realizado”, diz Iamamoto (2001, p. 63).
No modelo “flexível” de produção da saúde a pesquisa não tem sido uma
alternativa ou mera liberalidade do profissional em escolher com ela trabalhar
ou não. Por mais que ainda apresente um caráter de sazonalidade nas formas
como são produzidas, geralmente atendendo a interesses imediatos dos profis-
sionais, verifica-se um novo momento em que o assistente social é convocado
a produzir sistematizações mais elaboradas, traduzindo-se em processos de
análise que requerem maior disponibilidade de tempo para a percepção de novas
demandas ou a identificação de tendências e possibilidades na ação das políticas
públicas e sociais.
Essa forma de planejar seu trabalho, uma forma que contém e pressupõe
a pesquisa, não se esgota somente na coleta de depoimentos de usuários ou

12. Ainda é necessário superar essa herança binária na gestão das políticas sociais em que o “pesquisa-
dor” realiza o trabalho do pensar e os demais situam-se na “execução”.

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gestores. Resulta em saber ler as produções estatísticas excessivamente produ-
zidas por bancos de dados infinitos na atualidade, fazer o cruzamento das in-
formações, produzir certa análise de conjuntura à luz desses dados e dar res-
postas criativas e embasadas em pressupostos teóricos sobre seu trabalho.
Esgota-se o entendimento de que a pesquisa nas instituições começa e termina
em uma simples fase coleta de dados em campo. Sua dimensão investigativa de
maneira contínua é o que insere o diferencial da ação, recombinando vários
instrumentos, fases, referenciais, sistematizações e reflexões críticas sobre os
dados levantados.
É exatamente nessa dimensão investigativa do trabalho que imprimimos
uma noção constituinte do direito à saúde e aos serviços sociais. Quando os
assistentes sociais pensam a realidade, capturando o seu movimento, projetam
e imprimem ações que proporcionam enxergar a necessidade de ampliação e de
universalização. Assim, em vez de compreender o direito como um campo que
se esgota na lei, no constituído, passam a visualizá-lo como um campo aberto,
em que novas demandas se reconfiguram, fazendo imprimir a necessidade de
pensar as leis, o acesso, a política e a universalização de forma cada vez mais
ampla.
Por outro lado, também as próprias instituições públicas começam a criar
suas estratégias para garantir seus pactos corporativos diante de tal crescimen-
to da publicação de estudos e pesquisas sobre órgãos públicos. Se antes os
comitês de ética e pesquisa eram uma prerrogativa do trabalho acadêmico hoje,
as instituições públicas tentam se resguardar criando seus próprios comitês de
ética, os quais burocratizam por meses a entrada de determinados estudos em
campo para coleta de dados. Uma forma clara de dizer não à cientificidade
quando atinge as bases críticas das políticas públicas.
Os comitês de ética criam verdadeiras barreiras burocráticas a estudos que
não venham de suas próprias demandas. As Secretarias Estaduais de Saúde,
municipais, hospitais públicos e unidades de saúde colocam profissionais de-
sautorizados a falar em nome dos serviços que atuam, se antes não passar pelo
aval dos seus comitês internos. Os assistentes sociais, que sempre estiveram na
porta de entrada das instituições públicas de saúde, são hoje muitos dos que
estão entre aqueles que não permitem a entrada de pesquisadores nas instituições
de saúde pública sem ter antes uma carta de apresentação dos seus próprios
comitês internos.

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Mas não são instituições públicas? Por que assistentes sociais não fornecem
depoimentos a pesquisas acadêmicas sem ordem dos seus gestores? Será uma
nova ditadura provocada pela burocracia estatal contra a transparência da infor-
mação? Não está, pois, em nosso código de ética, o nosso papel na construção
do conhecimento científico? As instituições públicas têm criado, no campo da
saúde, ao invés de comitês de ética, a ética dos comitês, autorizando a entrada
de pesquisadores que não representam ameças aos seus gestores e, também,
assistentes sociais que não fazem uso de sua liberdade ou autonomia para falar
sobre seu próprio trabalho ou o de suas equipes.
O trabalho com a pesquisa sempre foi uma realidade das instituições de
saúde, principalmente os hospitais. No entanto, na atualidade isto vem se es-
tendendo para as unidades de saúde e ampliando-se para secretarias, fazendo
crescer a figura do gestor com a função específica de produzir estudos e pes-
quisas no campo da saúde. Muitas vezes, esse gestor no campo das políticas
públicas voltadas para a saúde tem sido um assistente social. Temos por certo
a preocupação com o campo da pesquisa associada à gestão; entretanto, o que
se mostra novo é que muitos assistentes sociais organizam comitês de pesquisa
nas instituições e dificultam a entrada de pesquisadores que sejam externos à
gestão das políticas públicas e sociais.

O processo de trabalho do assistente social e as novas demandas


para a saúde
Não é recente o conflito em que o assistente social se insere e que demar-
ca os interesses polarizados entre as instituições sociais e as necessidades dos
usuários na busca pelo acesso aos serviços sociais. Esse espaço tensionado
torna-se inevitável às profissões que atuam nas políticas sociais durante os sé-
culos XIX e XX, por meio do reconhecimento dos direitos sociais. O caráter
social do Estado, sob a forma de direitos de cidadania, reconhece formalmente
a exploração, a impossibilidade de satisfação das necessidades básicas da vida
tendo como única fonte o salário direto.
O que se traz como elemento de análise é o processo de trabalho do assis-
tente social que tem seu objeto manifesto nas expressões das contradições da
questão social. Por isso, o Serviço Social não está vinculado às profissões que
geram produtos materiais, concretos. Ele atua nas condições de vida, reprodu-

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zindo aquelas condições que são indispensáveis ao funcionamento de uma ordem
— o que, no campo da saúde, ganha evidências expressivas.
Temos como pressuposto que toda riqueza existente é fruto do trabalho
humano. Essa riqueza é redistribuída na forma de rendimentos distintos, bem
como parte dela é transferida ao Estado, especialmente sob a forma de impostos
e taxas pagas pela população. Por outro lado, parte dessa riqueza apropriada é
transferida para a classe trabalhadora sob a forma de serviços sociais. Desta
maneira, muitas vezes tais serviços ganham a forma de “doação” ou “benefício”.
Em nosso caso, as políticas de saúde se travestem claramente com esse perfil
“provedor” de Estado, aparecendo como políticas sobre a vida, com forte nu-
ance “humanizadora”.
Merece destaque o processo de trabalho do assistente social em sua dimen-
são educativa dentro dessa política aparentemente provedora de um “bem comum”.
O assistente social realiza atividades que incidem sobre comportamentos e atitu-
des da população e tem na linguagem seu principal instrumento privilegiado de
ação. Isso lhe permite trabalhar nas expressões concretas das relações sociais, no
cotidiano da vida dos sujeitos e faz com que disponha de relativa autonomia na
condução do exercício de suas funções institucionais (Iamamoto, 2007).
Nas ações de execução das políticas de saúde, esse perfil “humanizador”
da política social ganha maior visibilidade, visto que o o trabalho dos profissio-
nais da saúde, neste caso do assistente social, cria os nexos de ligação entre os
interesses de Estado e os dos usuários por meio da linguagem, uma ação emi-
nentemente humana. Por intermédio dessa dimensão do trabalho vivo, pode-se
afirmar que nunca seu processo de trabalho será idêntico, ainda que as tentativas
dos interesses de seu empregador sejam transformar esse trabalho em uma ação
serializada, maciça, sem reflexão contida na ação.

O assistente social é proprietário de sua força de trabalho especializada. Ela é


produto da formação universitária que o capacita a realizar um “trabalho comple-
xo”, nos termos de Marx. Essa mercadoria, força de trabalho, é uma potência, que
só se transforma em atividade — em trabalho, quando aliada aos meios necessá-
rios à sua realização, grande parte dos quais se encontra monopolizado pelos
empregadores: recursos financeiros, materiais e humanos necessários à realização
deste trabalho concreto, que supõe programas, projetos e atendimentos diretos
previstos pelas políticas institucionais (Iamamoto, 2007, p. 421).

Nesse processo histórico, Iamamoto (2007) acrescenta que o trabalho do


Serviço Social possui a chancela da “sanção social e institucional”, produzindo

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efeitos diversos como porta-voz das políticas públicas, atestando uma possível
“polivalência” ou intervenção profissionalizada dentro dos aparelhos de Estado
(p. 275). Será esse o efeito mimético do processo de trabalho do assistente
social dentro da execução das políticas sociais. Um efeito que provoca e se
autorrefere à sua execução como uma intervenção compensatória, imediata e
aparentemente benevolente.
Toda política social é apenas um fragmento das políticas públicas. Não se
tem o esgotamento das questão social por meio da ação dos profissionais que
atuam e executam as políticas sociais, mesmo porque não é interesse da ordem
econômica e social vigente que isso de fato se concretize. As instituições em-
pregadoras dos assistentes sociais dependem de uma prévia fragmentação das
políticas definidas pelos organismos empregadores que estabelecem as priori-
dades das políticas públicas como um todo. Atuar na questão social por meio
das políticas sociais representa apenas uma parte da ação de um todo que o
compromisso profissional do Serviço Social quer extinguir: as múltiplas expres-
sões da questão social.
Na saúde isso não é diferente. Assim como em todas as outras políticas
sociais, a saúde tem vivenciado algumas tendências no seu diálogo com o Es-
tado para a formação de novas agendas para a política pública. Os movimentos
sociais atuais, congregados, por exemplo, no Fórum Social Mundial da Saúde,
demostram que as novas lutas trazem muito mais que reivindicações por leitos
em hospitais ou “humanização” da atenção. As agendas formadas dentro desses
movimentos apontam para um debate que começa a pautar um novo modelo de
seguridade social ampliado, mundial. Ou, em outros aspectos, trazem como
debate a quebra de patentes de medicamentos monopolizados nas mãos de la-
boratórios internacionais — verdadeiras manifestações de um capital mundia-
lizado. Pautam ainda o direito de exercer a profissão de qualquer profissional
da saúde, independentemente de sua nacionalidade, em qualquer país. O fórum
de trabalhadores da saúde do Mercosul trouxe-nos essa demanda.13

13. O Mercosul Salud é formado por profissionais de saúde, entidades e representações dos movimentos
sociais da América do Sul em prol do livre exercício de suas profissões em qualquer país do Cone Sul. Os
profissionais de saúde que o compõem pleiteiam o direito de ser enfermeiros, médicos, nutricionistas, psicó-
logos, fisioterapeutas etc., em qualquer país do bloco, sem barreiras nacionais por motivos da localidade de
sua formação. Os assistentes sociais são representados por uma comissão de profissionais ligados ao CFESS
nesta rede. Os debates acontecem a cada seis meses com todos os ministros da Saúde do Mercosul e as refe-
ridas representações, além da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Organização Mundial de

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Em épocas de “capital fetiche”, o que temos por pressuposto ao estudar o
processo de trabalho do assistente social no campo da saúde é que não existe
um processo de trabalho do Serviço Social, visto que o trabalho é atividade de
um sujeito vivo, enquanto realização de faculdades, possibilidades e capacida-
des do sujeito trabalhador (Iamamoto, 2007). Isto é, falamos de uma potência
em ato. Existe, sim, um trabalho do assistente social e processos de trabalho
nos quais se envolve na condição de trabalhador especializado. O trabalho,
força de trabalho em ação, é algo temporal, que só pode existir no sujeito vivo.
É um movimento criador do sujeito (Idem, p. 429).
Ao assistente social que atua no campo da saúde torna-se importante trazer
à tona que talvez a saúde seja uma das políticas sociais que manifestam uma
diversidade enorme de demandas e necessidades da vida humana. Não é possí-
vel realizar ações estanques e padronizadas em políticas públicas que atuam
diretamente sobre a vida. Tomar a análise de Iamamoto (2007) representa re-
pensar as ferramentas de trabalho, seu objeto, mas principalmente repensar o
próprio trabalho do assistente social como potência, constituinte — um trabalho
que trará à tona manifestações da questão social que se conectam na sua dimen-
são micro e macropolítica na rotina de atuação desse profissional.
O que os novos movimentos sociais, e aqui me refiro unicamente ao cam-
po da saúde, trazem como elemento de análise é que uma das atuais manifes-
tações da questão social se insere na apropriação monopolista do produto do
trabalho coletivo. A posse de patentes de medicamentos e do direito do exercí-
cio da profissão nos remetem a uma apropriação generalizada do trabalho social
(general intelect). Isto não significa mera transferência das novas lutas sociais
para a dimensão mundializada de apropriação global do capital ou simplesmen-
te mais uma forma de acumulação de capital fetichizado, mas sim uma ampla
expropriação do trabalho criado e acumulado coletivamente pela classe traba-
lhadora. A pauta gestada pelos movimentos sociais tem nos sinalizado que o
direito à vida representa também ter direito aos direitos: direito a medicamen-
tos, a atendimentos que contemplem a dimensão humana, a adoecer sem ser
desrespeitado nas suas relações de trabalho, a exercer seu trabalho (nas mais

Saúde (OMS). As reuniões ocorrem sempre em países diferentes. A presidência pro tempore neste momento
é da Argentina. O Mercosul Salud está hoje também relacionado ao Ministério das Relações Exteriores no
Brasil. Muitas de suas lutas estão sendo ampliadas no Fórum Social Mundial da Saúde. O movimento, em
âmbito de Estado, se reúne em um Subgrupo Trabalho do acordo Mercosul (SGT 11). O site para ter acesso a
todas as atas, relatórios e demais documentos produzidos pelo movimento é <www.mercosulsalud.org>.

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diversas formas), ter acesso à água potável, saneamento, alimentação e a um
meio ambiente sem poluição, por exemplo.

Decifrar as novas mediações por meio por meio das quais se expressa a questão
social, hoje, é de fundamental importância para o serviço social em uma dupla
perspectiva para que se possa tanto apreender as várias expressões que assumem,
na atualidade, as desigualdades sociais — sua produção e reprodução ampliada
— quanto projetar e forjar formas de resistência e de defesa da vida. (Iamamoto,
2001, p. 28)

Mesmo o trabalho do assistente social, sob a égide de um capital financei-


rizado, traz as repercussões disso. A atuação deste profissional não é deslocada
das bases sociais que a sustentam. Nesta fase de acumulação fetichizada do
capital, o Serviço Social está sendo convidado a pensar os Estados nacionais e
suas estratégias de reprodução que atingem profundamente as políticas públicas,
entre elas as políticas sociais de saúde, com complexas incidências na vida
humana e refrações que nos permitem repensar as políticas públicas. O que
dizer da criação de um sistema de seguridade social mundial, como será discuti-
do em 2010 na primeira conferência que será realizada no Brasil? Como pensar
uma política de saúde como vem sendo apregoada pelo Mercosul? Uma políti-
ca de Estados, e não de um Estado.
O SUS, modelo brasileiro que nasceu das lutas sociais, tem servido de
parâmetro para esse debate em toda a América Latina. As respostas e as formas
de resistência ao capital mundializado também têm sido manifestadas de forma
mundializada. Os movimentos sociais atuais têm apontado para isso. Se o neo-
liberalismo pautou a focalização, a agenda dos movimentos é formada de novas
formas de luta que transcendam as fronteiras dos Estados nacionais. E não se
trata de mais um discurso de “solidariedade” ou a busca por um prêmio Nobel;
refere-se a estar atento às estratégias do capital em se disseminar como ordem
única, parasitária, apropriando-se unicamente do trabalho humano em todo o
planeta.
Deve se atentar para esse momento histórico como um novo momento e
uma outra forma de pautar a agenda pública, visto que esses novos movimentos
sociais preencheram as plataformas de governo da atual esquerda que chegou
em bloco ao Cone Sul. A primeira década dos anos 2000 foi marcada pelas
causas ligadas à terra, à questão indígena, aos negros, aos pobres, trabalhadores
desempregados e ao ambiente. Mas também por dimensões novas das lutas so-

474 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 103, p. 453-475, jul./set. 2010

106
ciais: a luta por produção de conhecimento e por direito à informação, por mais
democracia e transparência.
Nessa tendência, identificamos claramente os processos de trabalho dos
assistentes sociais como essenciais. A contribuição do Serviço Social a este
momento histórico é distante de padrões fordistas de produção na gestão do seu
trabalho, mas claramente pautada pela sua primazia: produção de informação
qualificada na era da produção do acesso. Proporcionar o ter direito aos direitos
e, assim, concretizar a democracia.

Artigo recebido em mar./2010 ■ Aprovado em jun./2010

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Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 103, p. 453-475, jul./set. 2010 475

107
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE:
O SIGNIFICADO NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL

Parameters for the practice of social assistants in health policy: the meaning in the work
exercise

Débora Cristina da Silva


Tânia Regina Krüger 

RESUMO
Este artigo tem como objetivo identificar o significado que os Parâmetros para a
Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde representam para o exercício
profissional no âmbito hospitalar. Este documento de subsídio para atuação do serviço
social na saúde completará uma década, em que se observa a necessidade de refletir
sobre o seu significado e em que medida representa adensamento teórico-

DOI 10.22422/temporalis.2018v18n35p265-288
metodológico, político e operativo para o exercício profissional. Metodologicamente, a
pesquisa se caracterizou como exploratória e qualitativa, através da realização de
grupos focais com assistentes sociais que atuam em dois hospitais da grande
Florianópolis. Os resultados apontam que há um superficial conhecimento do referido
documento, com ênfase no eixo de atendimento direto aos usuários e o
reconhecimento de práticas vinculadas essencialmente às demandas socioassistenciais
e emergenciais. Em grande medida, ficou ausente nos grupos focais a referência
política do documento em relação aos fundamentos do projeto ético político do
serviço social e do Sistema Único de Saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Saúde. Serviço social. Exercício profissional.


Assistente Social. Especialista com titulação em Residência Integrada Multiprofissional em
Saúde/Ênfase em Alta Complexidade HU/UFSC. Mestranda em Serviço Social do programa de pós-
graduação UFSC. Assistente Social da Unidade de Pronto Atendimento Forquilhinha. (UPA, São José
(SC), Brasil). Rua Vereador Arthur Manoel Mariano, n. 1439, Forquilhinha, São José (SC), CEP.: 88106-501.
E-mail: <dehboracs89@gmail.com>. ORC ID: <https://orcid.org/0000-0001-8468-3432>.

Assistente Social. Pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra. (UC,
Coimbra, Portugal). Professora Pesquisadora (PQ2) do CNPq. Docente do Departamento de Serviço
Social da Universidade Federal de Santa Catarina. (UFSC, Florianópolis, Brasil). Campus Reitor João David
Ferreira Lima, s/n, Trindade, Florianópolis (SC), CEP.: 88040-900. E-mail: <tania.kruger@ufsc.br>. ORC
ID: <https://orcid.org/0000-0002-7122-6088> .

265
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

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SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

ABSTRACT
The aims of this article is identify the meaning that the Parameters for the Acting of
Social Workers in the Health Policy represent for the professional exercise in the
hospital scope. This document of subsidy for Social Work in the health, will complete a
decade and it is observed the necessity or reflect about its meaning and to what
extent it represents a theoretical-methodological, political and operational density for
the professional exercise. Methodologically, there search was characterized as
exploratory and qualitative, through the realization of focus groups with social
workers who work in two hospitals in the greater Florianópolis. The results indicate
that there is a superficial knowledge of the mentioned document, with emphasis on
the axis of direct service to users and the recognition of practices essentially linked to
socio assistential and emergency demands. The political reference of the document to
the foundations of the ethical political project of the social service and the Unified
Health System was largely absent from the focus groups.

KEYWORDS
Health. Social work. Professional exercise.

Submetido em: 18/4/2018. Aceito em: 6/6/2018.

INTRODUÇÃO

Sem perder de vista as expressões da questão social na sociedade capitalista e o


espaço privilegiado do exercício profissional do assistente social nas políticas sociais,
esta pesquisa objetiva tratar da particularidade do exercício profissional na política de
saúde. O Serviço Social brasileiro integra o rol das profissões em saúde, tanto no plano
legal como através da legitimação social, a partir do conceito ampliado de saúde. Os
assistentes sociais como profissionais de saúde são reconhecidos na Resolução nº 218,
de 6 de março de 1997, do Conselho Nacional de Saúde e na Resolução do Conselho
Federal de Serviço Social (CFESS) nº 383/1999.

Em termos de princípios, o projeto ético-político1 do serviço social posiciona-se a favor


da ampliação da cidadania, aprofundamento da democracia, equidade e justiça social,
indo ao encontro dos fundamentos do Sistema Único de Saúde (SUS). Igualmente, o
assistente social, trabalhador da saúde, reconhece um conceito ampliado de saúde 2
que ultrapassa a concepção saúde/doença, atuando nos níveis de promoção e

1
Como principais fundamentos da estruturação do Projeto Ético-Político da década de 1990, destacam-
se: o Código de Ética de 1993, pelo CFESS e a Lei de Regulamentação da Profissão nº 8.662 de 1993. Além
destes, em 1996, foram lançadas Diretrizes Curriculares, pela ABEPSS, em paralelo à ampliação das
pesquisas nos Programas de Pós-Graduação e de publicações que vêm sustentando teórica,
metodológica, técnica e politicamente o Projeto Ético-Político.
2
Saúde não é simplesmente não estar doente, posto que o conceito vai além: é um bem-estar social, é o
direito ao trabalho, a um salário condigno; é o direito a ter água, à vestimenta, à educação e até a
informação sobre como se pode dominar o mundo e transformá-lo. É ter direito a um meio ambiente
que não seja agressivo, mas que, pelo contrário, permita a existência de uma vida digna e decente; a um
sistema político que respeite a livre opinião, a livre possibilidade de organização e de autodeterminação
de um povo. É não estar todo tempo submetido ao medo da violência, tanto daquela violência
resultante da miséria, que é o roubo, o ataque, como a violência de um governo contra o seu próprio
povo para que sejam mantidos os interesses que não sejam os do povo (AROUCA, 1987, p. 36).

266
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

109
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

prevenção da saúde. De acordo com Bravo (2013), “[...] a saúde passa a ser
considerada um meio e um fim para o desenvolvimento e o bem-estar” (BRAVO, 2013,
p. 67). Com estes referenciais, o profissional passa a ter maior reconhecimento social e
demanda na área da saúde, em meio às equipes multiprofissionais. Além disso,
entende a questão social como objeto da intervenção profissional, que se manifesta
por um conjunto muito variado de expressões, tornando fundamental o exercício
profissional se pautar nas diretrizes do SUS: a integralidade, a universalidade do
acesso, a intersetorialidade, a participação deliberativa, a interdisciplinaridade, dentre
outras (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010).

Desta forma, este artigo3 é resultado do Trabalho de Conclusão da Residência


Integrada Multiprofissional em Saúde pela Universidade Federal de Santa Catarina e
tem como objetivo identificar o significado4 que os Parâmetros para a Atuação de
Assistentes Sociais na Política de Saúde 5 (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL,
2010) representam para o exercício profissional.

Para atingir o propósito deste artigo, cabe evidenciar as questões particulares do


processo metodológico. Para a execução da pesquisa, foi necessário realizar revisão da
literatura sobre a política de saúde brasileira, do serviço social na saúde e sobre os
fundamentos do documento Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na
Saúde, suas bases teóricas, legais e operacionais.

Neste artigo, utilizou-se a análise crítica com vistas a possibilitar a aproximação da


realidade social, posto que ela contempla elementos de historicidade, contradição e
totalidade. O significado que os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na
Política de Saúde têm para o exercício profissional coloca o desafio de realizar
reflexões considerando estes três elementos da perspectiva crítico-dialética. A
pesquisa empírica caracteriza-se como qualitativa e de caráter exploratório e tem a
necessidade de refletir sobre os significados e respostas para a complexidade da
prática.

Definiu-se, como procedimento operacional, a utilização de grupos focais para coletar


informações pertinentes à pesquisa. De acordo com Trad (2009), os grupos focais têm
3
Este artigo é um recorte do projeto da pesquisa “Saúde e Serviço Social: planejamento, gestão,
participação e exercício profissional”; a ser realizado no período 2015-2019, registrado no sistema Notes
UFSC com o seguinte protocolo: 2015.0056, vinculado ao Núcleo de Estudos em Serviço Social e
Organização Popular (NESSOP) do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). O projeto é conduzido pela Professora Dra. Tânia Regina Krüger, docente da graduação
e da pós-graduação do Serviço Social da UFSC e orientadora do presente artigo.
4
De acordo com o Dicionário de Filosofia, a palavra significado, frequentemente citada neste artigo, é
entendida como “Possibilidade de um signo referir-se a seu objeto. Para os estoicos, o Significado se
divide em três elementos que se inter-relacionam: o Significado, aquilo que significa e aquilo que é. Para
a Filosofia Clínica, Significado diz respeito à maneira e à interpretação que a pessoa empresta aos
conceitos e aos termos que habitam sua malha intelectiva. Nesse sentido, uma interpretação é um
parecer, não necessariamente uma sentença” (SÓ FILOSOFIA, c2008-2018, não paginado).
5
O referido documento foi elaborado de forma coletiva pelo Conse lho Federal de Serviço Social
(CFESS), entre os anos de 2008 e 2009 e publicado em 2010, tendo por objetivo subsidiar a intervenção
dos profissionais do Serviço Social na área da saúde.

267
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

110
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

como “[...] principal objetivo reunir informações detalhadas sobre um tópico


específico (sugerido por um pesquisador, coordenador ou moderador do grupo) a
partir de um grupo de participantes selecionados” (TRAD, 2009, p. 780). Desta forma,
este instrumento diferencia-se da entrevista individual, pois se fundamenta na
interação do grupo para obter respostas à pesquisa. Sendo assim, Gondim (2003, p.
151) complementa dizendo que “[...] a unidade de análise do grupo focal, no entanto, é
o próprio grupo. Se uma opinião é esboçada, mesmo não sendo compartilhada por
todos, para efeito de análise e interpretação dos resultados, ela é referida como
grupo” (GONDIM, 2003, p. 151).

O universo da pesquisa empírica foi composto por dezenove assistentes sociais


(residentes e trabalhadores) do Hospital Universitário vinculado à Universidade
Federal de Santa Catarina e assistentes sociais de outro hospital geral público da
grande Florianópolis. Foi utilizado um roteiro semiestruturado para conduzir o
processo de coleta de dados junto aos grupos focais.

Em relação aos sujeitos participantes da pesquisa, e em respeito ao Código de Ética


Profissional do Serviço Social e ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos,
foi mantida em sigilo a identificação dos profissionais que participaram da pesquisa 6.

O presente artigo se organiza em três momentos: 1º) resgate histórico e teórico do


Serviço Social na saúde; 2º) contextualização do documento Parâmetros para a
Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde, considerando sua construção e
bases teóricas, legais e operacionais; 3º) análise dos dados da pesquisa com ênfase na
problematização dos referenciais utilizados no exercício profissional do Assistente
Social no âmbito hospitalar e sua relação com os Parâmetros para a Atuação de
Assistentes Sociais na Política de Saúde.

O SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE: TRAJETÓRIA E TENDÊNCIAS DOS ANOS 2000

Para tratar do objeto desse artigo, primeiramente é necessário destacar algumas


considerações sobre a trajetória e tendências do Serviço Social na Saúde no decorrer
dos anos 2000. Dessa forma, para melhor entendimento, será delineada uma breve
síntese sobre o projeto ético-político profissional e a relação com o projeto da Reforma
Sanitária. De acordo com Machado (2008):

Nasce um novo projeto do Serviço Social, por meio da contestação ao


conservadorismo profissional, advindo das décadas de 1970 e de 1980,
período este que marca um momento importante no desenvolvimento da
profissão no Brasil, acentuado principalmente pelo enfrentamento e pela
denúncia deste conservadorismo (MACHADO, 2008, p. 23).

Uma década após este período, o processo de recusa e crítica do conservadorismo dá


origem a um novo projeto profissional. Este projeto trata de uma construção coletiva,

6
Os profissionais da pesquisa serão identificados pelos números (1, 2, 3 e sucessivamente até 19).
Ressalta-se que a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC, sob aprovação com
parecer número 2.079.144, na data de 24 de maio de 2017 e cumpriu os requisitos preconizados na
Resolução 466/2012, no que se refere às normas e diretrizes de pesquisas que envolvem seres humanos.

268
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

111
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

que teve seu início a partir do Movimento de Reconceitualização, na intenção de


romper com a herança conservadora. Por ser um projeto de natureza histórica, está
sujeito a transformações, atualizações, avanços e regressividade em seus
fundamentos.

A literatura das políticas sociais em geral reconhece que a saúde foi uma das áreas em
que os avanços constitucionais foram mais significativos. Em 1988, a saúde, após lutas
do Movimento de Reforma Sanitária, passa a ser considerada direito social e dever do
Estado. A Constituição reconheceu como dever do Estado garantir a saúde da
população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 1990, o SUS foi
regulamentado pelas Leis Orgânicas da Saúde (LOS) 8.080/1990 e 8.142/1990. A
Reforma Sanitária é um movimento social que tem como projeto a defesa da saúde
pública universal. Nessa concepção que o SUS foi incorporado na Constituição Federal.
Com o SUS, em tese, há uma ruptura do entendimento de política de saúde médico-
curativa e há ênfase na concepção da universalidade do acesso e na integralidade da
assistência. Além de trazer um novo conceito do que é saúde, reconheceu-se a
determinação social da saúde e da doença por meio da alimentação, moradia, lazer,
emprego, trabalho, educação, segurança, meio ambiente, acesso à terra, etc.

De acordo com Krüger (2016), “[...] o conceito ampliado de saúde e o reconhecimento


da determinação social da saúde representam um ganho civilizacional para sociedade
na medida em que considera que a saúde da sua população reflete a organização social
e econômica do País” (KRÜGER, 2016, p. 1). Reconhecimento de extrema importância
para um país com nível elevado de desigualdade social, identificando, através do
projeto da Reforma Sanitária, as condições de vida como determinação da saúde e da
doença. E é a partir da mesma época, a partir dos anos 2000, que o SUS tem suas bases
legais, materiais e financeiras mais disputadas no país.

Em meio aos embates para a implementação do SUS, no âmbito da saúde e, mais


fortemente, a partir dos anos 2000, evidencia-se uma gradativa produção do serviço
social, bem como a participação nas discussões de saúde coletiva e a introdução de
profissionais nos órgãos representativos, técnico-políticos e em espaços de controle
social. Conforme CFESS (2010):

A nova configuração da política de saúde vai impactar o trabalho do


assistente social em diversas dimensões: nas condições de trabalho, na
formação profissional, nas influências teóricas, na ampliação da demanda e
na relação com os demais profissionais e movimentos sociais (CONSELHO
FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010, p. 23).

A atuação e as áreas de intervenções profissionais do Serviço Social no campo da


saúde mudaram ao longo da história e, particularmente, a partir da definição do
conceito de saúde. Dessa forma, a partir da regulamentação do SUS, com o conceito
ampliado de saúde, com seus princípios e competências, o Serviço Social aumentou
significativamente seu espaço de trabalho e alargou suas reflexões nessa área.

269
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

112
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

Os 30 anos de implementação do SUS não foram nada lineares. As disputas foram


acirradas pelo modelo de atenção e de gestão e, sobretudo, por seu financiamento.
Assim, identificam-se, no âmbito governamental, nas universidades, nas entidades
científicas da área da saúde, nos movimentos sociais, nos fóruns de trabalhadores da
área, nos Conselhos de Saúde das três esferas de governo, nas associações de
prestadores privados e filantrópicos, nos instrumentos de gestão e nos Relatórios de
Conferências três perspectivas em disputa: a da Reforma Sanitária, a privatista e a
flexibilizadora-transformista. Tais propostas não são retilíneas e nem possuem
fronteira delimitada (BRAVO; PELAEZ; PINHEIRO, 2018).

O projeto da Reforma Sanitária que construiu o SUS pauta-se na radicalidade


democrática, sendo que, por meio de seus princípios doutrinários e organizacionais,
defende o direito universal de acesso, gratuidade, integralidade do atendimento,
gestão pública estatal, participação popular deliberativa, plano de cargos, carreira e
salários único para trabalhadores do SUS e recursos que devem ser investidos em
serviço público. Nos governos dos anos de 1990 até meados da primeira década do
ano 2000, fortaleceu-se o projeto privatista por meio da focalização e do
desfinanciamento. O projeto privatista ganhou um novo fôlego a partir de 2016 com as
políticas do governo Michel Temer, com iniciativas que alteram o escopo e
abrangência do SUS, tais como aprovação da Emenda Constitucional 241/2016 7, o
chamado Novo Regime Fiscal; a proposta, em tramitação, de criação dos Planos de
Saúde Acessíveis (planos privados populares); liberação do capital estrangeiro na
saúde, por meio da Medida Provisória 656/2014 e posterior Lei 13.097/2015, aprovada
no Congresso Nacional; revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e
alteração das diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). A proposta
flexibilizadora do SUS emerge como um novo projeto do SUS possível. “O projeto do
SUS possível é defendido pelas lideranças que diante dos limites da política econômica
defendem a flexibilização da reforma sanitária, mas nomeiam esse processo como
reatualização, modernização ou mesmo como continuidade desta” (SOARES, 2010, p.
53). A conjuntura regressiva a partir de 2016 fez os sujeitos dessa proposta em parte s e
aliarem aos sujeitos do projeto original e democrático-popular da Reforma Sanitária.

Particularmente no âmbito dos três projetos em disputa no SUS, Krüger (2016), avalia
que “[...] as tendências reformistas, que defendiam um mix público/privado na gestão
do SUS, voltam-se agora à defesa do SUS meio sem seus fundamentos, tendo em vista a
total predominância da lógica do mercado” (KRÜGER, 2016, p. 2). Mas o cenário nos
aponta para a contínua hegemonia do projeto privatista da saúde, aniquilamento do
projeto da Reforma Sanitária e talvez certa sobrevida do projeto transformista, ficando
um sistema público de saúde pobre para atender os pobres. Ou seja, um sistema
público para a vigilância à saúde, para os procedimentos caros e de alta complexidade,
para o interior do país em áreas que o setor privado não pode obter lucro e com as
emergências.

7
As possíveis implicações do Novo Regime Fiscal para o financiamento do SUS e para a garantia do
direito à saúde, contidas na proposta inicial que deu origem à Proposta de Emenda Constitucional Nº
241/2016 (PEC 241), foram analisadas em artigo de Vieira e Benevides (2016a) e em nota técnica do IPEA,
publicada em 21/09/2016. (VIEIRA; BENEVIDES, 2016a; VIEIRA; BENEVIDES, 2016b).

270
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113
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

As disputas desses projetos tendo a hegemonia das forças neoliberais levaram a um


conjunto de contrarreformas 8 que vêm impondo sucateamento, descontinuidades,
focalização, transformismos, desfinanciamento, privatização dos serviços do SUS em
detrimento da integralidade e da universalidade, tendo entre suas consequências o
aumento do trabalho precarizado dos profissionais, inúmeras restrições ao acesso dos
usuários, a desresponsabilização do Estado e responsabilização da sociedade civil. A
contrarreforma na política de saúde e do conjunto direitos sociais no Brasil ganhou um
adensamento no país desde 2016. Em nome de resolver uma crise econômica, está
forçando uma agenda ainda mais conservadora, aliada uma retórica de respeito à lei, à
ordem e à segurança com práticas e políticas de adesão ao liberalismo econômico.

Para o Serviço Social, observa-se uma grande tendência a pautar o trabalho e a


formação em disciplinas, em trabalhar com ênfase no cotidiano, em que se processa a
vida nas demandas imediatas. Neste contexto, adquirem expressividade temas como a
humanização, o cuidado / cuidador / autocuidado, a representação, a escuta
qualificada, o vínculo, o acolhimento, a organização do Procedimento Operacional
Padrão (POP) e dados epidemiológicos, apresentados sem muita interlocução com a
política de saúde e com as determinações sociais da saúde. Considera-se que estes
temas localizados respondem a demandas sociais e de saúde, dotadas de legitimidade.
Mas ressaltamos que o processo técnico do exercício profissional e da formação não
pode desconhecer a relação dessa qualificação com as questões fundamentais do SUS,
a conjuntura de contrarreformas regressivas e do projeto ético-político do serviço
social, e nem se submeter à flexibilização dos seus referenciais teórico-metodológicos
com questionamentos difusos.

É nessa conjuntura de disputas do SUS que o Serviço Social evidencia maiores


preocupações com sua prática. Como uma estratégia para afirmar as referências
teórico-políticas do seu Projeto Profissional, o conjunto CFESS-CRESS deu início, em
2007, em eventos coletivos da categoria, ao debate de forma descentralizada sobre os
Parâmetros para a Atuação do Assistente Social nas Políticas Sociais, com o objetivo de
abordar a intervenção do assistente social em diversos espaços sócio-ocupacionais.

No próximo item, abordaremos os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na


Saúde (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010), indicando algumas referências
da sua construção, suas bases teóricas, metodológicas, legais e operacionais ,
enquanto um documento político e uma estratégia do Conjunto CFESS/CRESS de
colocar em debate o exercício profissional.

8
Aqui adotamos o sentido de contrarreforma definido por Behring (2008), como o conjunto de
reformas neoliberais no Estado brasileiro, que implicaram num profundo retrocesso social. A
contrarreforma vivenciada no Brasil é um processo que historicamente aflige a classe trabalhadora. Com
efeito, trata-se de “[...] uma contrarreforma conservadora e regressiva, diferente do que postulam os
que a projetaram entre as paredes dos gabinetes tecnocráticos e inspirados nas orientações das
agências multilaterais” (BEHRING, 2008, p. 171). A autora se “[...] recusa de caracterizar como reforma
processos regressivos” (BEHRING, 2008, p. 171), por isso os qualifica como contrarreforma.

271
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

114
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA SAÚDE: CONSTRUÇÃO


E BASES TEÓRICAS, LEGAIS E OPERACIONAIS

O Conselho Federal de Serviço Social como autarquia pública tem a função de orientar,
disciplinar, normatizar, fiscalizar e defender o exercício profissional do/a assistente
social no Brasil, em conjunto com os Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS).
Para além de suas atribuições, contidas na Lei 8.662/1993 (CONSELHO FEDERAL DE
SERVIÇO SOCIAL, 1993), a entidade vem promovendo ações políticas para a construção
de um projeto de sociedade democrático, anticapitalista e em defesa dos interesses da
classe trabalhadora. Para este órgão, a defesa do exercício profissional do/a assistente
social tem colocado inúmeros desafios. Por isso, desde meados da primeira década dos
anos 2000, vem promovendo uma série de eventos e realizando publicações que se
tornaram referências teóricas, políticas e técnicas na intervenção profissional em
direção ao projeto profissional que a categoria vem construindo nos últimos 30 anos.

O projeto profissional do serviço social se desenvolveu e vem se sustentando na busca


por uma fundamentação e consolidação teórica, metodológica, política e ética. Fruto
de rigorosas pesquisas vinculadas, sobretudo nos Programas de Pós-Graduação da
área, tem seu respaldo como área de conhecimento nas agências de fomento, nas
densas publicações de livros e periódicos, no debate político que envolve os temas dos
onze princípios do seu Código de Ética e na defesa intransigente dos direitos sociais.
Mas estes significativos avanços não nos cegam às respostas prático-utilitaristas,
intervenções idealizadas, espontaneístas, restritas às relações interpessoais, com
predominância de atuação nos espaços assistencial e emergencial que caracterizam
majoritariamente o exercício profissional.

Ciente desses desafios e em face da constatação da distância entre o acúmulo teórico-


político referente aos serviços de ponta na relação com os usuários e
empregadores/instituições, o CFESS promoveu uma série de eventos e publicações, no
sentido de aproximar dois âmbitos da profissão: formação e trabalho profissional.
Foram lançados quatro documentos pelo CFESS, representando subsídios de
intervenção profissional na área da assistência social, da saúde, da educação e do
espaço sociojurídico. Os dois primeiros documentos foram denominados pelo CFESS
como parâmetros. Porém, depois de diversos questionamentos da base da categoria,
o nome parâmetros foi substituído por subsídios. Os documentos da política de
educação e do espaço sociojurídico, que foram os dois últimos lançados, são chamados
de subsídios para atuação do assistente social (MACHADO, 2015).

Em nosso entendimento, estes documentos respondem a algumas análises


amplamente divulgadas por Bravo e Matos (2007) e Vasconcelos (2006) sobre a
distância entre o acúmulo teórico-político e metodológico e a materialização do
exercício profissional. Vejamos: “Para se avançar hoje na profissão, se faz necessário
recuperar as lacunas da década de 1980. A intervenção é uma prioridade, pois poucas
alterações trouxeram os ventos da intenção e ruptura para o cotidiano dos serviços ”
(BRAVO; MATOS, 2007, p. 204).

Uma atividade mecânica, inconsciente, faz do assistente social um


protagonista passivo no seu próprio espaço profissional [...]. Os assistentes

272
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

115
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

sociais são levados a um trabalho conservador que, direta ou indiretamente,


consciente ou inconscientemente, reproduz e/ou reforça o status quo, sem
conseguirem romper, na prática, com valores conservadores. Assim, mesmo
apoiando o debate hegemônico do Serviço Social, a maioria desses
profissionais realiza atividades profissionais na direção contrária aos
objetivos que se propõe e, consequentemente, também na direção contrária
aos interesses históricos da classe trabalhadora (VASCONCELOS, 2006, p. 31-
32).

Uma das explicações para esse distanciamento entre os referenciais teórico-


metodológicos e políticos com o espaço de exercício profissional é dada por Bravo e
Matos (2007). Para eles, há uma lacuna teórica e política entre o Projeto da Reforma
Sanitária, o projeto privatista e o surgimento dos Parâmetros para a Atuação de
Assistentes Sociais na Política de Saúde. Pois o início dos anos 1990 foi uma época em
que significou e deu-se início a uma tendência hegemônica na academia e nas
entidades representativas da categoria profissional, com a intenção de ruptura do
conservadorismo, abrindo espaço para a interlocução com a tradição marxista.
Todavia, os profissionais que seguiam tal vertente se inseriram em sua maioria na
academia, onde, dentro do processo de renovação do Serviço Social, pouco se
efetivou na intervenção. Para que se consiga enxergar estas lacunas e superá-las, é
necessário extrapolar os desafios que estão presentes no debate interno do Serviço
Social e que continuamente vêm se tornando mais complexos por demandas
conjunturais, a exemplo da avalanche de contrarreformas que o país vive desde 2016.

Nesse contexto, nos parece importante, em virtude do objetivo inicialmente exposto,


identificar e problematizar o significado e os fundamentos dos Parâmetros para a
Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde, que foi elaborado entre os anos
2008 e 2009 e publicado em sua versão final no ano de 2010. Tal documento “[...] tem
como finalidade referenciar a intervenção dos profissionais de Serviço Social na área
da saúde” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010, p. 11). A construção dos
Parâmetros foi coordenada pelo Grupo de Trabalho Serviço Social na Saúde do CFESS,
o qual manuseou diversos documentos do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais
de Serviço Social, atividade de elaboração aliada a inúmeros debates descentralizados
pelo país, à revisão da literatura e legislação. O resultado foi um documento que “[...]
visa responder, portanto, a um histórico pleito da categoria em torno de orientações
gerais sobre as respostas profissionais” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL,
2010, p. 11). Nesse sentido, ele traz uma análise sintética dos principais desafios que
estão postos à profissão e ao Projeto de Reforma Sanitária, inclusive tratando de
embates teóricos e das escolhas profissionais que vêm sendo realizadas pelos
assistentes sociais.

Desde o seu lançamento, o documento dos Parâmetros para atuação de Assistentes


Sociais na Política de Saúde vem sendo reconhecido no âmbito do serviço social, mas
ainda genericamente, conforme apontam as seguintes autoras: “O documento vem
explicitar as conexões entre o projeto ético-político da categoria com as bases da
Reforma Sanitária e sugerir eixos para a prática do assistente social na saúde [...]”
(KRÜGER, 2010, p. 129-130); “Torna-se indispensável ressaltar a importância dos

273
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

116
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde elaborados a


partir de ampla participação da categoria profissional e promulgados pelo CFESS”
(MARTINELLI, 2011, p. 500). E para Pereira (2013):

Este documento faz uma importante crítica e análise acerca da atuação dos
assistentes sociais na saúde, revelando os vários desafios e possibilidades
destes profissionais neste campo, que vem absorvendo uma parte
significativa de assistentes sociais (PEREIRA, 2013, p. 160).

Os Parâmetros para atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde foram


estruturados em três itens, sendo que os primeiros sustentam os quatro eixos
norteadores de atuação em termos teóricos, políticos e metodológicos. O primeiro
item – Saúde, Reforma Sanitária, Sistema Único de Saúde e desafios atuais – apresenta o
tripé da Seguridade Social, com a perspectiva da garantia dos direitos sociais, atenção
às reivindicações da classe trabalhadora, tendo o SUS como elemento fundamental e
apontando os impasses vividos desde os anos 1990.

Já o segundo item, intitulado Serviço Social e Saúde, traz a discussão teórica e política
presente no Serviço Social na Saúde. Neste item, é resgatada a trajetória do Serviço
Social nessa política. Para os anos recentes, há a identificação de alguns desafios que
os profissionais enfrentam nessa área, como a constatação de que ainda existem
profissionais que, após realizarem uma formação em saúde pública, passam a não se
reconhecerem mais como assistentes sociais e a tendência de denominar alguns
trabalhos como serviço social clínico. Por fim, ressalta a importância de formar
trabalhadores de saúde para o SUS, com visão generalista e não fragmentada, fazendo
com que o assistente social seja um profissional que se articule com outros segmentos
que defendam o SUS, efetivando o direito social à saúde.

No terceiro item, que fala sobre a Atuação do Assistente Social na Saúde, as atribuições
e competências gerais do profissional são caracterizadas, enfatizando as ações deste
na área da saúde, na perspectiva de permitir ao profissional realizar a análise crítica da
realidade, utilizando como base o Código de Ética e a Lei de Regulamentação da
profissão. Na continuidade, o subitem intitulado Parâmetros para a Atuação de
Assistentes Sociais na Saúde explicita as principais ações desenvolvidas pelos
profissionais que atuam na saúde, em quatro grandes eixos articulados entre si: a)
atendimento direto aos usuários; b) mobilização, participação e controle social; c)
investigação, planejamento e gestão; d) assessoria, qualificação e formação
profissional. O texto afirma que as diversas ações estão interligadas e são
complementares, apontando a uma equivalência no grau de importância entre as
ações assistenciais, as de mobilização popular e as de pesquisa e planejamento do
trabalho profissional. As possibilidades de trabalho a partir desses quatro eixos são
indicadas por Krüger (2016):

Trabalhar a partir desses quatro eixos pressupõe retomar os fundamentos do


SUS em sua perspectiva de projeto nacional para saúde de radicalidade
democrática; considerar a articulação com os gestores, Conselhos de
Políticas Púbicas, com assistentes sociais de outras instituições, com outros
profissionais e movimentos sociais; não responder de forma psicologizante,

274
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

117
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

clínica e voluntarista; e potencializar as possibilidades de trabalho coletivo,


com grupos e interdisciplinar (KRÜGER, 2016, p. 2).

Após apresentar os quatros eixos de atuação, vale atentar para as considerações do


documento. O conjunto do texto (CFESS, 2010) “[...] procurou fazer uma análise
sucinta da política de saúde, com ênfase nos principais desafios a serem enfrentados
na atualidade (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010, p. 67)”, além de
levantar questões consideradas polêmicas no espaço sociotécnico do trabalho, como,
por exemplo, as atividades burocráticas que são demandadas diversas vezes aos
assistentes sociais. Dessa forma, com os Parâmetros, há a intenção de trazer a reflexão
relacionada aos diversos eixos da atuação profissional, na busca da garantia dos
direitos sociais, do fortalecimento da participação social e da viabilização do SUS como
uma tentativa de suprir uma lacuna que existe entre a atuação com o
conservadorismo, o Projeto da Reforma Sanitária, o projeto privatista, o processo de
renovação (Movimento de Reconceitualização) e os desafios sempre renovados pela
conjuntura.

Grupos focais: assistentes sociais da saúde

Neste item, apresentamos os principais resultados sistematizados dos dados coletados


junto aos sujeitos participantes dos grupos focais, procurando contribuir para o
desocultamento da realidade do exercício profissional, processo fundamental para a
coerente intervenção do assistente social em seu cotidiano de trabalho. Através de sua
fala, cada sujeito contribuiu para esta produção teórica com suas experiências na
política de saúde, mais especificamente nesse artigo, no âmbito hospitalar.

O roteiro semiestruturado foi utilizado para o debate nos grupos focais com questões
referentes à identificação dos integrantes do grupo, aos desafios do exercício
profissional no hospital e questões sobre os Parâmetros para a Atuação de Assistentes
Sociais na Saúde (como utilizam o documento, caracterização das demandas atendidas
de acordo com os quatro eixos de atuação do profissional na saúde e os aspectos
destacados com relação ao Serviço Social na instituição em que atuam). No
desenvolvimento desse texto, privilegiaremos algumas das questões sobre o
reconhecimento do documento e os eixos norteadores do exercício profissional.

Para a coleta dos dados, foram realizados quatro grupos focais que aconteceram
durante o mês de junho de 2017, agendados previamente, em salas privadas nas
unidades hospitalares. As manifestações dos profissionais foram gravadas e
posteriormente transcritas. Os grupos dividiram-se: dois de residentes e dois de
trabalhadores das instituições. O primeiro grupo focal foi composto por cinco
assistentes sociais residentes do HU/UFSC; o segundo composto por seis assistentes
sociais residentes do HU/UFSC 9; o terceiro realizado com cinco assistentes sociais de

9
Dos onze residentes, quatro desses estavam no segundo ano de residência (R2) e sete no primeiro ano
de residência (R1). Desses residentes oito possuem sua formação em serviço social pela Universidade
Federal de Santa Catarina, nos anos de 2006, 2013, 2016 e 2017. Um residente formou-se na Universidade

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Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

118
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

um hospital geral da grande Florianópolis; o quarto e último grupo, realizado com três
assistentes sociais do HU10. Dos 19 participantes dos grupos focais, 18 eram do sexo
feminino e um do sexo masculino. Na apresentação dos dados, não diferenciaremos as
falas dos profissionais e dos residentes, tratando igualmente todos como profissionais.

Parâmetros para a atuação de assistentes sociais na política de saúde e o exercício


profissional

Inicialmente neste item, apresentaremos as falas dos profissionais que dizem respeito
a como os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Saúde são utilizados e
o significado dele no exercício profissional cotidiano.

Os Parâmetros, eles têm norteado bastante a prática. Inclusive a gente faz


assim, já fizemos reuniões estudando e vendo o que teria que estar
melhorando e uma das coisas que se absorveu como atribuição do serviço
social, que era o transporte. E aí foi os Parâmetros que justificou essa prática
que já foi ultrapassada e que já não era mais função do serviço social. O
documento indica como uma atividade técnico-administrativ[a]. E aí hoje
quem está fazendo são os técnicos administrativos, mas com exceção da
emergência que está ainda numa confusão, porque não tem técnicos
suficientes para fazer (Sujeito 16).

A fala do sujeito 16 demonstra que o documento é reconhecido muitas vezes como um


subsídio para que o profissional ou a equipe tenha embasamento para argumentar
sobre o motivo de não realizar certas atividades, restringido o documento de subsídio
a apenas essas situações. O sujeito 7 reafirma em sua fala essa questão de olhar para o
documento e entender o que é atribuição do assistente social e o que não é:

Já li algumas vezes, mas, enfim, não sei de cor. Daí eu estava lendo aqui e
identifiquei várias situações que colocam aqui que não deveria, que não é
atribuição do assistente social e que o serviço de saúde vem requisitando, do
assistente social e várias assim acontecem aqui no HU, de forma bem comum
(Sujeito 7).

Durante os grupos, foi possível perceber que cinco dos participantes mencionaram ter
conhecido o documento na graduação e tiveram acesso apenas durante a graduação,
conforme a fala do sujeito 4: “A minha aproximação com os Parâmetros vem da
graduação, na disciplina referente à saúde” (Sujeito 4). Também pode ocorrer em
situações pontuais, como estágios e até mesmo após estar formado, como destaca o
sujeito 11: “Eu tomei contato com esse documento através de uma experiência que tive
numa policlínica do interior [...] e até nem conhecia na época o documento” (Sujeito
11).

Federal de Mato Grosso, em 2015, um residente pela Universidade Federal de Santa Maria, no ano de
2015, e outro formado pela Universidade Estadual de Londrina, em 2016.
10
Dos grupos focais, participaram oito trabalhadores, cinco profissionais de um hospital da grande
Florianópolis. Sete tiveram sua formação em serviço social pela Universidade Federal de Santa Catarina
e um pela Unisul, nos anos de 1988, 1989, 1992, 2002, 2003, 2007 e 2009. O período que atuam na
instituição varia entre dois anos e meio e vinte e dois anos.

276
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

119
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

Das falas analisadas, alguns profissionais mencionaram conhecer pouco o documento,


no sentido de reafirmarem a importância apenas para a parte dos Parâmetros que
expõe os eixos. Contrapondo a fala da maioria dos residentes que mencionaram
conhecer pouco o documento, o sujeito 8 afirma ter maior familiaridade: “Também
conheci o documento através da aula. Depois também tive a oportunidade de ler
quando eu era bolsista de iniciação científica PIBIC, onde se analisava o que é a ação
profissional” (Sujeito 8).

O sujeito 4 afirma que teve a possibilidade, em alguns momentos teóricos da


residência, de discutir sobre o documento, sem dar exemplos diferentes aos
relacionados com as demandas e os respectivos eixos, “Nos nossos momentos de
encontro específico, se faz discussão acerca desse documento, com as nossas tutoras,
com as professoras, a gente discute” (Sujeito, 4).

Entretanto, mesmo os participantes mostrando pouco conhecimento do conteúdo do


documento, algumas falas valorizam quando se trata da sua a importância, como
vimos a seguir nos dizeres do sujeito 15: “Eu acho que ele veio para clarear mesmo a
prática” (Sujeito 15). O sujeito 12 complementa afirmando que “[...] os Parâmetros
realmente dão uma base, uma sustentação para o que a gente faz no dia a dia”
(Sujeito 12). Por fim, o sujeito 5 traz também que “[...] ele serve sim como base, até
porque o profissional tem que buscar o conhecimento além de ter ele pronto” (Sujeito
5). Do total de participantes da pesquisa, em torno de cinco profissionais afirmaram
utilizar o documento em algumas situações do cotidiano profissional.

Por outro lado, alguns profissionais evidenciaram o significado do documento, como


se explicita na fala seguinte:

Então, eu acho que por mais que o documento em si não sirva de base aqui
para o serviço social do Hospital, a gente pode trazer ele durante nossa
intervenção profissional. Esses eixos que têm dentro do documento, a gente
acaba vendo na nossa intervenção profissional (Sujeito 5).

Outros profissionais destacaram que não é um documento utilizado no exercício


profissional cotidiano, como afirma o sujeito 2: “Não é algo que a gente chega e é nos
colocado quanto uma referência para atuação, algo que precise se aprofundar, ler e
tudo mais. Não é algo que se tenha como referência principal” (Sujeito 2). O sujeito 1
concorda: “É, mas não é algo que a gente utiliza, tipo, olha estou com uma dúvida e eu
vou me referenciar por esse documento, não, eu não acho que é isso” (Sujeito 1).
Acrescentando às falas anteriores, o sujeito 19 afirma que há uma grande dificuldade
de ele realmente se constituir em uma referência e avalia que não é competência do
CFESS se manifestar quanto a esse conteúdo:

Eu nunca concordei que o CFESS tivesse que se manifestar em relação a


construir um referencial, um bloco de referencial específico para a atuação,
até porque ele não dá conta de uma dimensão muito heterogênea, porque
vai diferenciar em cada espaço, em cada serviço, para cada profissional, para
cada equipe. [...] mas não que tudo que eu faça ou se eu for sistematizar hoje
algo da minha prática, ele não vai ser o documento que eu vou utilizar, não é,

277
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

120
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

talvez seja uma outra referência, de um outro autor com quem eu me


identifique mais, mas ele não seria hoje um documento que eu escolheria
para isso (Sujeito 19).

Em outro momento do grupo focal, este profissional parece repensar:

Como eu nunca estudei a fundo a demanda pela construção de Parâmetros


que não ficou só na saúde, foi para outras áreas também, me parece que
tenta dar um fôlego para a categoria em relação ao que se faz, dar nome aos
processos, aos procedimentos. Eu acho que é um exercício, é válido, mas
nem sempre espelha ou esclarece suficientemente sobre aquilo que se faz
(Sujeito 19).

Para finalizar, trazemos mais uma fala que reafirma o que grande parte dos
participantes trouxe: a não utilização dos Parâmetros no exercício profissional,
conforme é explicitado pelo sujeito 17:

Eu vou confessar, há muitos anos eu não leio os Parâmetros, de verdade. Ele,


os Parâmetros, quando ele foi lançado, a gente fez uma discussão e inclusive
fui a algumas reuniões. [...] é um documento que tem uma perspectiva de
mobilização da categoria para pensar Parâmetros para assistência na saúde.
E eu acho que isso é super válido, só que, no corpo do documento, me
parece muito do que tu não pode fazer. Então, é uma realidade que o
brasilzão afora, muito distinta... Não me identifiquei com algumas ações e
indicadores ali que eles colocaram (Sujeito 17).

As falas acima evidenciaram que o documento é conhecido pelo nome, mas


desconhecido em seu sentido técnico, teórico, político e metodológico pelos
profissionais contemplados nesse estudo. A nosso ver, os participantes que disseram
usar o documento como uma referência e os que não o reconhecem não conseguiram
sustentar sua importância ou a falta dela. Não identificamos, nas falas dos
profissionais, argumentos que ressaltem a importância de seu conteúdo ou mesmo
questionando as bases do serviço social e do SUS que estruturam os Parâmetros.

Em outro momento do grupo focal, foi solicitado aos profissionais que caracterizassem
as demandas no exercício profissional, conforme os eixos de atuação indicados nos
Parâmetros: Eixo 1: Atendimento direto aos usuários (ações socioassistenciais; ações
de articulação com a equipe de saúde e ações socioeducativas); Eixo 2: Ações de
mobilização, participação e controle social; Eixo 3: Investigação, planejamento e
gestão; Eixo 4: Assessoria, qualificação e formação profissional.

Na sua maioria, os profissionais apontaram que o exercício profissional nos hospitais


se caracteriza essencialmente por centrar-se no Eixo 1 de Atendimento direto aos
usuários, que se subdivide em ações socioassistenciais; ações de articulação com a
equipe de saúde e ações socioeducativas. O relato a seguir do sujeito 11 é bastante
ilustrativo:

Eu identifico que a gente mais atua, seria a de natureza assistencial e


emergencial, é o que mais chega. Não que não se tenha outras dimensões,
mas é o que somos mais chamados a responder no hospital. Mas acredito
ainda e olhando para o documento e para os quatro eixos, ficamos muito

278
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

121
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

presos no atendimento direto aos usuários e numa dimensão de ações


socioassistenciais, de articulação, às vezes, com a equipe; às vezes, com uma
atividade socioeducativa (Sujeito 11).

Os profissionais participantes da pesquisa pertencem a dois grandes hospitais gerais


que são referências no atendimento de demandas diversas de média e alta
complexidade. Essas demandas em sua maioria surgem de forma espontânea (interna
e externa), pois os usuários buscam por atendimento direto ou são encaminhados
pelos mais diversos setores da unidade ao serviço social. Dada as inúmeras demandas
espontâneas e encaminhadas ao serviço social, os profissionais mantêm em seu setor
uma sala de plantão. Além de o plantão requerer muito tempo dos grupos de
profissionais de cada unidade hospitalar, os vários serviços ambulatoriais e de
internação colocam demandas para o serviço social que não se distanciam das
demandas características do Eixo 1 – atendimento direto aos usuários.

A fala do sujeito 5 complementa a afirmação acima dizendo que é o “[...] assistencial e


emergencial, que a gente acaba realizando aqui no hospital. Que por mais que sejam
muitos profissionais, a rotina do hospital é assistencial e emergencial, então é aquele
entendimento de saúde-doença” (Sujeito 5).

Validando tal afirmação, seguem as falas de outros participantes que possuem o


mesmo olhar voltado para as demandas mais recorrentes no âmbito hospitalar.
Vejamos, nesse sentido, o depoimento do sujeito 19: “Eu acho que, por exemplo, aqui,
que a gente vai tomar esse primeiro tópico, demandas de natureza assistencial
emergencial. Sim, esse é o nosso foco hoje” (Sujeito 19).

Eu acredito também que é assistencial-emergencial as demandas na maioria,


mas conseguimos fazer a articulação com a equipe de saúde, a gente faz
ações socioeducativas. O ambulatório de cirurgia bariátrica é um exemplo
assim, é de ação socioeducativa (Sujeito 8).

O nosso trabalho fica nas demandas assistencial emergencial, só que a gente


consegue trabalhar a articulação com a equipe de saúde e as ações
socioeducativas, a gente trabalha nos grupos de pré-operatório, pós-
operatório (Sujeito 16).

De acordo com os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde


(CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010), as ações a serem desenvolvidas
pelos profissionais devem ultrapassar o caráter emergencial e burocrático, bem como
ter uma direção socioeducativa. Outra preocupação evidenciada no documento é que
o atendimento do profissional não se torne psicoterapêutico aos pacientes e seus
familiares, mas potencialize a ampliação do acesso dos indivíduos e da coletividade aos
seus direitos. Com relação às falas anteriores, os participantes até chegam a mencionar
as outras atividades desse mesmo eixo, mas dão ênfase ao atendimento direto aos
usuários. Nas duas instituições, os profissionais afirmaram que conseguem articular
com a equipe multiprofissional e também realizam ações socioeducativas, como é o
caso dos ambulatórios, em que acontecem atendimentos junto à equipe
multiprofissional e orientações realizadas a grupos e individualmente.

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SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

Dadas as necessidades sociais e de saúde que no geral são imediatas, por se


relacionarem com necessidades urgentes de alimentação, transporte, medicação,
funeral, definição de diagnóstico, realização de exames, situações de violência,
repouso, hospedagem, a resposta profissional não consegue escapar do assistencial e
do emergencial. Seja pelo nome de plantão ou não, cabe aqui relacionar com uma
reflexão de Vasconcelos (2009, p. 248):

O plantão é a única atividade comum à maioria dos assistentes sociais, ainda


que, em algumas unidades de saúde, esta atividade não seja reconhecida por
este nome. O plantão não se constitui assim, num serviço ou uma atividade
pensada, planejada, organizada, reduzindo-se a ações isoladas desenvolvidas
pelo assistente social para ‘resolver o(s) problema(s) do usuário’
(VASCONCELOS, 2009, p. 248).

Sobre o Eixo 2, que compreende demandas relacionadas à mobilização, participação e


controle social, poucas foram as manifestações nos grupos focais e destas ainda o que
se evidenciou foi a não participação do serviço social nesses espaços. Desse modo,
elencamos algumas falas a seguir. O sujeito 17 diz que a “[...] mobilização, participação
e controle realmente a gente não consegue chegar lá, não faz” (Sujeito 17). Já o sujeito
7 afirma: “Essa questão mesmo da participação e o controle social e eu realmente não
vejo isso acontecendo aqui na instituição, não sei se por ser um hospital, a ênfase [em]
que nós estamos” (Sujeito 7).

Na questão da mobilização, participação e controle social, quando a colega


falou dos grupos, eu lembrei um pouco do espaço do ambulatório de cirurgia
bariátrica. Porque assim, nos aproximamos um pouco nos grupos junto com
os pacientes e a gente sempre fala desses espaços. Não que façamos uma
articulação direta, mas sempre se traz nos grupos sobre o controle social,
incentivamos a participação nesses espaços, a gente incentiva que eles
procurem no território aquilo que pode ser suporte no processo tratamento.
E, na medida do possível, tentamos fazer articulação com esses espaços, mas
acho que a gente faz pouco, mas está presente (Sujeito 4).

Eu acho que nessa parte também da mobilização, da participação e controle


social, até que ponto também nós estamos participando, nós enquanto
residente, enquanto profissional, estamos participando dessas conferências
de saúde locais e não só da saúde porque ultrapassa. Perpassa não só a
saúde, mas a assistência, a previdência, quanta gente está inserida nesses
locais, no território mesmo, que nós vivemos e convivemos (Sujeito 5).

Nenhum dos profissionais e residentes tem envolvimento com os espaços de


participação e, quando relacionam no exercício profissional, mencionam as
orientações realizadas aos usuários para participarem de algum dos espaços de
controle social. Isso nos faz refletir sobre o quanto, em nossos discursos da profissão e
na literatura em geral, falamos de participação e o que na prática acaba acontecendo é
bem o contrário: a nossa ausência enquanto categoria profissional, parecendo que
delegamos isso como importante para os usuários.

No Eixo 3, sobre as ações de investigação, planejamento e gestão, há quase uma


completa ausência de demandas levantadas durante as falas. Apenas conseguimos
extrair das transcrições poucas manifestações sobre o eixo, que nos parecem bastante

280
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

123
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

simplistas e restritas. No entanto, há que concordar com o profissional 17 quando ele


diz que as demandas do cotidiano alimentam o processo de gestão de planejamento.
No entanto, para esse profissional, o “Planejamento e gestão é a questão de tu discutir
o que se faz o tempo todo e muito, pensar em fluxos, forma de atendimento, como é
que tu vai receber isso e as milhões de reuniões que temos com a equipe e tudo mais”
(Profissional 17). Dando continuidade, os sujeitos 2 e 15 relatam respectivamente que
“[...] a gente estava pensando sobre o planejamento, gestão, mas acho que vai mais
no sentido de projetos, de elaboração de projetos” (Sujeito 2 e Sujeito 5). O segundo
deles assevera: “Ali, em relação ao planejamento, eu penso que é o planejamento que
a gente faz quando inicia o ano, que a gente define algumas metas para trabalhar no
decorrer do ano” (Sujeito 5).

O planejamento e gestão envolvem a contínua avaliação da política e dos serviços


oferecidos, as bases de financiamento e sua direção ideopolítica numa correlação com
as demandas do cotidiano dos serviços e indicadores socioeconômicos. Também
podemos afirmar que estas falas dos sujeitos da pesquisa revelam um silêncio ou
ausência da participação do serviço social em espaços de planejamento e gestão das
políticas sociais e particularmente da saúde. E por conta do processo de
descentralização das políticas sociais, o assistente social vem sendo cada vez mais
requisitado para atuar nos níveis de planejamento, gestão e coordenação de equipes,
programas e projetos. O assistente social atuante na gestão e planejamento busca a
intersetorialidade dos serviços, objetivando contemplar a saúde no âmbito da
seguridade social (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2010). E, para destacar a
importância das ações desse eixo, recorremos ao texto de Bonin e Krüger (2015): “O
instrumento chamado planejamento representa uma dimensão político-decisória na
materialidade dos objetivos profissionais e das políticas sociais com as quais se
trabalha” (BONIN; KRÜGER, 2015, p. 65). Além disso, planejar é uma das atribuições
presentes na Lei de Regulamentação da Profissão11. Sendo assim, no exercício
profissional do assistente social, a execução, o planejamento, a gestão e a formulação
de políticas sociais são dimensões intrínsecas e complementares.

A quase completa ausência de atividades do serviço social que se relacionam aos eixos
2 e 3 sustenta e legitima as falas de que o foco do exercício profissional é o eixo das
atividades diretas com o usuário. O local de trabalho dos profissionais são unidades de
saúde que desenvolvem atividades de ensino e delas o serviço social faz parte, mas a
dimensão da investigação que ao menos poderia se relacionar ao ensino não se
explicitou. Entendemos que a explicação que Guerra (2009) dá ao ato de investigar e
sua relação com os demais eixos da intervenção profissional merecem ser citadas:
11
Elaborar, coordenar, executar e avaliar planos, programas e projetos que sejam do âmbito do Serviço
Social com participação da sociedade civil. Planejar, organizar e administrar benefícios e Serviço Sociais.
Planejar, executar e avaliar pesquisas que possam contribuir para a análise da realidade social e para
subsidiar ações profissionais. Planejamento, organização e administração de Serviços Sociais e de
Unidades de Serviço Social. Coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas,
planos, programas e projetos na área de Serviço Social; e Planejar, organizar e administrar programas e
projetos em Unidades de Serviço Social (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2012): essas são
competências e atribuições específicas dos assistentes sociais, necessárias ao e nfrentamento das
situações e demandas sociais que se apresentam no cotidiano profissional.

281
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

124
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

A investigação é inerente à natureza de grande parte das competências


profissionais: compreender o significado social da profissão e de seu
desenvolvimento sócio-histórico, identificar as demandas presentes na
sociedade, realizar pesquisas que subsidiem a formulação de políticas e ações
profissionais, realizar visitas, perícias técnicas, laudos, informações e
pareceres sobre matéria de Serviço Social, identificar recursos (GUERRA,
2009, p. 13).

Em relação ao Eixo 4, da assessoria, qualificação e formação profissional, foram


destacadas algumas falas:

Pensando na residência, que não dá para deixar de falar enquanto um


processo de qualificação e de formação profissional, de formação de uma
maneira simultânea, conseguir atrelar teoria e prática, ao mesmo tempo,
seus desafios e contradições (Sujeito 2).

E a assessoria, qualificação e formação profissional, é os estagiários que


chegam, trazem um sangue novo, nós acabamos direcionando às vezes
quando é possível, uma pesquisa, acaba ajudando o aluno a fazer um
diagnóstico daquela determinada situação dentro do hospital, mas
infelizmente, ficamos aqui no dia a dia, orientamos o estagiário, ele vem com
uma bagagem teórica metodológica da universidade, conhecemos, sabemos
do que se trata, mas a gente não para pra pensar, para refletir, para estudar,
por conta do dia a dia, da demanda (Sujeito 12).

A qualificação e a formação profissional eu acho que até por conta da


residência e do nosso campo, de ser um campo de estágio há muitos anos
isso faz com que a gente a todo momento se organize, reflita e pensa nessa
perspectiva. [...] essa questão da formação também e de como é rico essa
troca, tanto com os residentes quanto com os estagiários, os estagiários
também têm essa possibilidade. Não que os outros hospitais que não são
universitários também não vão ter essa troca com os estagiários. Mas eu
acho que o HU, nós integramos um corpo de profissionais que está sempre
envolvido com a academia (Sujeito 17).

Neste eixo, através das falas de alguns participantes, é possível destacar que, com
relação às atividades de formação profissional, a supervisão de estágio é uma das
atribuições do profissional desenvolvida nas duas instituições. O vínculo com as
atividades da residência e estagiários é elencado como uma espécie de formação
permanente dos profissionais e a qualificação, subsídio primordial para que os
profissionais se mantenham atualizados.

A assessoria como uma das dimensões do eixo 4 pode ser realizada a profissionais,
instituições, à gestão, grupos temáticos e a movimentos sociais. Quanto à assessoria,
durante os grupos, houve silêncio e falta de qualquer comentário em relação, até
porque pode não parecer para os profissionais que seja uma atividade que se realiza
no âmbito da instituição hospitalar.

Ao final do grupo focal, indagamos os profissionais sobre quais as principais


referências teóricas, políticas, operacionais e legais que buscam no exercício
profissional na política de saúde. As referências mais citadas utilizadas como subsídio
ao exercício profissional foram legislações: LOAS, LOS, Leis nº 8080/1990 e 814/19902,

282
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

125
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

Código de Ética, documentos políticos, alguns autores como Marilda Villela Iamamoto,
Maria Inês Souza Bravo e Ana Maria de Vasconcelos. Quanto à referência operacional,
por diversas vezes nos grupos, os participantes do Hospital Universitário citaram o
Procedimento Operacional Padrão (POP), mas a grande maioria dos residentes não
sabia informar de que forma ocorreu seu processo de construção, quais referen ciais
foram utilizados, qual é a última versão.

A seguir, duas falas representativas dos principais referenciais:

As nossas referências são Código de Ética, Estatuto do Idoso, Estatuto da


Criança e do Adolescente, LOAS, tudo que se refere ao andamento da nossa
prática. O que mais? Os Parâmetros para Atuação do Assistente Social na
Saúde, um documento novo e que a gente percebe que é um documento que
está muito dentro da nossa prática. A própria Lei do SUS (Sujeito 15).

A fala do sujeito 15 é uma fala bastante representativa, pois o Código de Ética, L ei de


Regulamentação da Profissão, ECA, Estatuto do Idoso, LOS e LOAS foram as
referências mais citadas nos grupos. Alguns participantes citaram autores amplamente
conhecidos na literatura profissional. As legislações e políticas setoriais (população e
situação de rua, método canguru...) são, a nosso ver, elementos de base técnica e
política para que se consiga responder institucionalmente às demandas dos diferentes
segmentos sociais, gênero, etnia, geracional, portadores de patologia, pessoas com
deficiência, direitos previdenciários, trabalhistas, entre outros.

Os Parâmetros perpassam o projeto ético-político, a Lei de Regulamentação


da Profissão. Ele contém uma série de referenciais teóricos. Então, por
exemplo, as legislações que a gente tem que se embasar para faze r o
exercício profissional, por exemplo, da rede de urgência e emergência, eu
vou ter que lá olhar as portarias, as legislações. Não tem como atuar sem
conhecer todas as legislações, as orientações, normas técnicas, por exemplo,
a política de humanização. Enfim, a lei que determina como é que deve ser o
critério de classificação de risco na urgência e emergência, o acolhimento
(Sujeito 11).

Nesta fala, o que o profissional chama de referência teórica é o conjunto de legislações


e políticas setoriais, o que coincide com a fala anterior. Em nosso entendimento, a
legislação e as políticas setoriais são as referências de base técnico-operacional,
institucional e de horizonte político. Os Parâmetros com certeza representam um
marco político e técnico para o exercício profissional do serviço social na saúde, mas
ele não reduz a isso, vai além, pois seus fundamentos estão colados ao projeto ético e
político da profissão e do SUS. Portanto, é um documento que representa uma direção
social progressista para a profissão.

No conjunto dos dados da pesquisa aqui apresentada, evidenciamos o caráter


contraditório do exercício profissional no processo de reprodução das relações sociais
e na dinâmica do cotidiano nas instituições. Mas o exercício profissional na área da
saúde e a utilização ou não dos Parâmetros como referência devem ser colocados em
um contexto de análise da profissão, com sua história, demandas, tarefas e

283
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

126
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

atribuições. Procuramos fazer este exercício ao longo das partes iniciais desse texto.
Como afirma Yazbek (2016), não há momentos históricos que sejam homogêneos, não
há espaços sem contradição, assim como não há para o serviço social neutralidade ou
possibilidade de deixar de participar desse processo, cuja direção está sempre em
disputa.

Assim, apreender o exercício profissional na saúde, por meio do significado que o


documento dos Parâmetros representa, consiste considerar o contexto de disputas do
SUS nos últimos 30 anos, nos quais os acenos progressistas foram muito tímidos.
Portanto, o serviço social, dada a sua histórica predominância de práticas com o
assistencial e o emergencial, a conjuntura de disputas regressiva em que as demandas
para o profissional chegam mais empobrecidas, doentes e ou vitimadas pelas
diferentes violências, com serviços públicos desestruturados, restritivos e
desfinanciados, acaba tomando muito de seu tempo de trabalho mesmo para prestar a
mínima assistência ou realizar um simples encaminhamento.

E dentre os desafios que a profissão enfrenta para dar materialidade aos princípios de
seu projeto ético-político, recorremos a Vasconcelos (2006):

Um dos grandes desafios enfrentados pelos assistentes sociais é trabalhar


demandas, pleitos, exigências imediatas – a dor, o sofrimento, falta de tudo,
a eminência da morte, da perda do outro, a falta de condições de trabalho, as
condições de vida – sem perder a perspectiva de médio e longo prazo
(VASCONCELOS, 2006, p. 21).

Compreendemos que os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Política


de Saúde se situam nessas disputas acima sinalizadas no âmbito do SUS e que os
profissionais também envolvidos nas disputas da reprodução das relações sociais se
deparam com as demandas imediatas de sobrevivência da classe trabalhadora. Desse
modo, talvez possamos explicar a ênfase assinalada pelos integrantes dos grupos
focais que o cotidiano do serviço social nos hospitais é majoritariamente pautado no
atendimento direto (assistencial e emergencial). Mas essa justificativa não nos faz
perder de vista que o exercício profissional, por mais pressionado que seja pelas
necessidades do cotidiano, não pode perder a perspectiva de médio e longo prazo.
Isso faz compreender que os outros 3 eixos da dimensão do exercício profissional
situam-se numa perspectiva de trabalhar com horizonte de médio e longo prazo. As
demandas individuais situam-se num campo de necessidades sociais e de saúde que
são públicas e coletivas. Mas compreender a demanda como de interesse público e
coletivo não está no âmbito da aparência, do emergencial, do individual e do imediato,
posto que exige do serviço social um esforço de mediações histórico-sociais, teóricas,
metodológicas, técnicas e políticas. E aí o esforço não é apenas individual do
profissional, mas exigência do conjunto da categoria por meio das unidades de ensino
e dos órgãos representativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados desta pesquisa apontam para uma realidade de que os Parâmetros para
a Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde são bastante desconhecidos

284
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

127
PARÂMETROS PARA A ATUAÇÃO DE ASSISTENTES SOCIAIS NA POLÍTICA DE SAÚDE

pelos profissionais e referenciam pouco o exercício profissional na saúde. Os grupos


focais representaram um processo pedagógico no qual as falas entre os profissionais
participantes levaram a reflexões sobre o exercício profissional no âmbito hospitalar,
permitindo afirmar que o documento dos Parâmetros não é utilizado no cotidiano
profissional. Muitos dos sujeitos afirmaram que tiveram o primeiro contato com o
referido documento durante a graduação – pois parte dos integrantes vem de uma
geração que se formou após a sua publicação – ou em algumas situações específicas,
não perpassando o cotidiano desses profissionais.

Referente à estruturação dos Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na


Política de Saúde com a primeira parte pertinente aos fundamentos, não foi algo que
apareceu durante os debates. Apenas sobre os quatro grandes eixos de atuação foram
levantadas algumas situações, relacionando os eixos com as demandas mais
recorrentes ao serviço social, sendo as demandas de natureza assistencial/emergencial
as mais citadas.

O exercício profissional dos assistentes sociais participantes da pesquisa, diante dos


Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde, na sua maioria,
aponta para uma atividade muito vinculada ao que é ou não é atribuição do assistente
social. Houve dificuldades em conseguir fazer mediações do exercício profissional
cotidiano aos fundamentos do SUS, do Projeto da Reforma Sanitária, o projeto ético-
político e a conjuntura regressiva de ampla restrição dos direitos sociais e
empobrecimento severo da classe trabalhadora, evidenciando quase uma relação
administrativa com o documento. Entretanto, é importante compreender que o
profissional não deve restringir sua atuação apenas às demandas emergentes,
tornando seu trabalho focalizado: é necessário que o serviço social, com mediações
estruturais e conjunturais, ultrapasse o que lhe é posto institucionalmente e o que lhe
é posto pelas relações sociais.

O documento, como já reportado, faz uma importante crítica e análise em relação à


atuação dos assistentes sociais na saúde e revela vários desafios e possibilidades
destes profissionais neste campo, uma área de atuação que vem abarcando uma parte
significativa de assistentes sociais. É um documento que tem referências e
fundamentos de ordem teórica, política e técnica, fazendo parte da constituição
política da profissão num contexto de contrarreforma do Estado e dos direitos sociais,
com as particularidades do SUS.

Entende-se que os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Política de


Saúde, por já possuírem quase uma década de vida, foram construídos em um cenário
que passou por mudanças. Sendo assim, ele é um instrumento de base democrático-
popular, que entendemos não ser o único para subsidiar o exercício profissional, pois
não há um protocolo ou algo do tipo que vá (e nem defendemos algo do gênero)
mostrar como o profissional deve atuar em cada demanda que se apresenta. No
entanto, avaliamos como relevante que a categoria realize avaliações e pesquisas
quanto ao referido documento, apontando seus limites, possibilidades e este que seja
tornado público.

285
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.

128
SILVA, DÉBORA CRISTINA DA; KRÜGER, TÂNIA REGINA

Por fim, os Parâmetros para a Atuação de Assistentes Sociais na Política de Saúde


possuem o mérito de se estruturar com base nos fundamentos do SUS e dos princípios
do projeto ético-político do serviço social e por ter emergido de órgãos
representativos da categoria (conjunto CFESS/CRESS). Mas não desconhecemos – e as
respostas dos participantes da pesquisa comprovam – que sua primeira década de
vida, sua forma de organização, seu referencial político e sugestões de eixo de atuação
estão em meio a disputas no âmbito da categoria.

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COMO A GENTE LIDA?: A ATUAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIAEM
SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA CONJUGAL

How do people deal?: The action of the family health strategy in situations of conjugal
violence

Iara de Souza Januário


Priscilla Brandão de Medeiros

RESUMO
O artigo ora apresentado ésubsidio para conclusão de residência multiprofissional e traz a
sistematização do estudo sobre a atuação da equipe de Estratégia de Saúde da Família
(ESF) na problemática da violência doméstica contra mulher em sua interface na relação
conjugal, a partir da pesquisa realizada junto aos profissionais da Unidade Sílvio Bezerra
de Melo na cidade de Currais Novos (RN). Objetiva apresentar análises das percepções

DOI 10.22422/temporalis.2018v18n35p339-354
desses profissionais abordando desde os aspectos conceituais desta violência até a
avaliação de sua própria intervenção, bem como, uma breve avaliação dos serviços que
compõe a rede de enfrentamento a violência contra a mulher. Partindo da discussão de
gênero inter-relacionando com a teoria crítica dialética, são feitas reflexões sobre
preconceitos presentes nas falas e até mesmo tenta-se inferir o quanto esses
profissionais – enquanto sujeitos sociais imbuídos de uma totalidade – estão imbricados
da influência cultural e histórica do patriarcado. Os passos metodológicos se deram em
uma pesquisa de caráter qualitativo, sob o viés do método crítico-dialético, usando da
estratégia da entrevista guiada por questionário semi-estruturado. Sugere-se, portanto,
que este serviço é de significativa importância na assistência a mulheresem situação de
violência, por estar territorializado, sendo capaz de criar vínculo com a comunidade e
assim, conseguir trabalhar prevenção, prestar atendimento digno e ser ordenador do
cuidado para os demais serviços da rede.

PALAVRAS-CHAVE
Estratégia de Saúde da Família. Violência doméstica. Política de saúde.


Assistente Social residente do Programa Multiprofissional em Atenção Básica da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte/Escola Multicampi de Ciências Médicas (EMCM/UFRN, Caicó (RN), Brasil). Av. Cel.
Martiniano, nº 541, Caicó (RN), CEP.: 59300-000. E-mail: <iara_januario@hotmail.com>. ORC
ID: <https://orcid.org/0000-0002-4487-3060>.

Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB, Campina
Grande/PB, Brasil). Faculdade Católica Santa Teresinha. (FCST, Caicó (RN), Brasil). Visitador Fernandes, nº
78, centro, Caicó (RN), CEP.: 59300-000. E-mail: <pbm0_4@hotmail.com>. ORC ID: <https://orcid.org/0000-
0003-2183-6141>.

339
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
132
JANUÁRIO, IARA DE SOUZA; MEDEIROS, PRISCILLA BRANDÃO DE

ABSTRACT
The article presented here is a subsidy for the conclusion of multiprofessional residency
and traces the systematization of the study on the performance of the Family Health
Strategy (FHS) team in the problem of domestic violence against women in their interface
in the conjugal relationship, based on the research carried out with the professionals
from the Sílvio Bezerra de Melo Unit in the city of Currais Novos (RN). It aims to present
analyzes of the perceptions of these professionals, ranging from the conceptual aspects
of this violence to the evaluation of their own intervention, as well as a brief evaluation of
the services that compose the network for coping with violence against women. Starting
from the discussion of gender interrelating with the dialectical critical theory, reflections
are made on the prejudices present in the speeches, and it is even attempted to infer how
these professionals - as social subjects imbued with a totality - are interwoven with the
cultural and historical influence of the patriarchy. The methodological steps were taken in
a qualitative research, under the bias of the critical-dialectic method, using the strategy of
the interview guided by a semi-structured questionnaire. It is suggested, therefore, that
this service is of significant importance in assisting women victims of violence, because
they are territorial, being able to create a bond with the community and thus, to be able
to work prevention, provide decent care and be an other network services.

KEYWORDS
Family Health Strategy. Domestic violence. Health policy.

Submetido em: 2/3/2018. Aceito em: 7/6/2018.

INTRODUÇÃO

Este artigo vem abordar acercada violência doméstica nas relações conjugais e a rede de
assistência a mulher em situação de violência, tomando como ponto de partida a
percepção dos profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF).Todavia, percebe-se
que o serviço de atenção primária da política de saúde, por ser de maior abrangência na
cobertura dos territórios e de maior uso pela população do que os outros serviços - como
os sócio assistenciais, por exemplo - pode ser um instrumento importante no
enfrentamento a violência contra a mulher.

Assim, o estudo em questãofoi motivado a partir da escuta dos relatos de usuárias dos
serviços da Estratégia de Saúde da Família (ESF) do Bairro Sílvio Bezerra de Melo em
Currais Novos (RN), no período inicial da inserção enquanto Residente1. A problemática
advém dos relatos de mulheres que vivenciam a violência em seu contexto doméstico e
expuseram informalmente que não trazem essas queixas aos profissionais de saúde. Com
base nisso, percebeu-se a necessidade de analisar as concepções desses profissionais
sobre a assistência prestada e assim compreender os possíveis entraves para melhoria
dos serviços da rede, com novas estratégias de atuação e atenção às mulheres da
Comunidade, abrindo caminho também, para uma provável atualização de práticas e
reflexão sobre preconceitos.

1
Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).

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133
COMO A GENTE LIDA?

O que veio a inquietar foi o número considerável de mulheres que sofrem violência na
Comunidade, dado concluído após escutas em atendimentos não específicos e nas
conversas informais. Sabe-se que é preciso responsabilização e sensibilização dos
profissionais da ESF para trabalhar esse tema-problema – que é considerado grave à
saúde pública, segundo a Organização Mundial de Saúde (2002) – e são estes
profissionais os mais próximos da população e capazes de criar o vínculo e confiança
necessários para que as vítimas consigam expor suas problemáticas, principalmente por
se tratar de questões envolvendo relações afetivas no âmbito doméstico e sócio familiar.
A escuta dos relatos incitoua realização de pesquisas bibliográficas a respeito da violência
doméstica sofrida pelas mulhereseforam propostas entrevistassemi-estruturadas com os
profissionais de saúde da referida ESF, nas quaisforam abordadas perguntas sobre o
conceito de violência, o conhecimento sobre a rede de serviços, as publicações do
Ministério da Saúde relacionadas a problemática da violência contra a mulher e o acesso
às informações e atividades de educação permanente das quais deveriam dispor.

A pesquisa objetivou investigar o modo como se operacionaliza o atendimento às


mulheres violentadas, o que os profissionais pensam a respeito da violência doméstica e
os motivos que impedem ou dificultam esse atendimento da ESF à problemática da
violência doméstica/conjugal que acomete essa população.

Quanto aos recortes metodológicos, é uma pesquisa qualitativa, cujo intuito foi fazer uma
análise subjetiva das respostas obtidas, de modo a compreender o objeto estudado em
sua essência, partindo da aparência o qual o mesmo se apresenta no cotidiano da
realidade social, correlacionando isso com as categorias estruturais de gênero, violência
doméstica e saúde.

Ainda foi proposto estudar/analisar as significações e os valores arraigados nas


percepções dos profissionais entrevistados no que diz respeito à violência contra a
mulher em sua conjugalidade. Em sua fase exploratória, a escolha do objeto de pesquisa
foi feita por perceber que as mulheres violentadas, em sua maioria, não traziam esses
relatos durante os atendimentos na Unidade de Saúde, o que agrava sua condição de
saúde seja no aspecto biológico, social ou psíquico, podendo ainda trazer complicações a
longo prazo. Sendo assim, se questionou sobre o motivo dessas mulheres omitirem suas
queixas, se por razões próprias, envolvendo o medo e retaliações por parte do agressor,
ou alguma falha do serviço em não lhe permitir abertura e espaço de fala nos
atendimentos.

Para embasamento teórico-crítico, tomamos acorrente de pensamento marxistacomo fio


condutor da pesquisa que com seu método dialético pressupõe uma visão totalizante do
real, no conjunto das relações que fazem da totalidade, em seu sentido macro ou
presente em cada indivíduo, uma realidade mutável e contraditória. Conforme cita Zago
(2013, p. 115):

A dialética marxiana busca o significado do real na atuação histórica, concreta e


material das pessoas. É na história que os seres humanos engendram e
significam o mundo ao seu redor. História aqui entendida não como a sucessão
dos fatos, mas como luta cotidiana dos homens e mulheres para produzir suas
condições materiais de existência na relação com a natureza mediada pelo

341
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
134
JANUÁRIO, IARA DE SOUZA; MEDEIROS, PRISCILLA BRANDÃO DE

trabalho, bem como, o modo como os seres humanos interpretam essas


relações (ZAGO, 2013, p. 115).

Esse método permite compreender os determinantes do sistema vigente – o capitalista -


para perpetuação do ciclo da violência que a pesquisa aborda, incluindo a desigualdade
de gênero2como reflexo desse sistema dominante e explorador. O método dialético,
interpretado sob a égide do materialismo histórico de Marx, é essencialmente qualitativo
e propõe ideias de crítica, de negação, de oposição, de mudança, de processo, de
contradição, de movimento e de transformação da natureza e da realidade social
(MINAYO, 2001).

A forma de coleta dos dados se deu através de entrevistas semi-estruturadas, com


perguntas abertas previamente definidas enfocando a temática da assistência aos
casosde violência doméstica contra a mulher. As entrevistas foram realizadas com os 12
(doze) profissionais da Estratégia de Saúde da Família Sílvio Bezerra de Melo,
identificados neste estudo como A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L e M, sendo o critério para
escolha o fato de compor equipe, visando conhecer a percepção sobre o atendimento
prestado, bem como, sobre a assistência dada às mulheres na rede de proteção. Dessa
forma, as categorias profissionais dos entrevistados, corresponderam às de Agentes
Comunitários de Saúde, Enfermeiro, Técnicos de enfermagem, Médico generalista,
Cirurgião-dentista e Técnico de Saúde Bucal, a maioria trabalhando há mais de dois anos
na ESF, sendo destes dois do sexo masculino.

O artigo se delineia inicialmente com alguns apontamentos sobre a Comunidade em que


se deu a pesquisa, bem como a conceituação na visão dos entrevistados sobre a violência
contra a mulher e por conseguinte, traz alguns apontamentos sobre o modo como essa
mulher é vista – na figura de vítima ou culpada, arraigada de estereótipos e
preconceitos.Essas reflexões incitaram a teorização da categoria violência doméstica
conjugal, que tem por base a questão de gênero, e suas especificidades na Comunidade
em estudo.Em seguida é feita uma análise sobre a rede de atenção e enfrentamento à
violência contra a mulher na qual os serviços de saúde são primordiais e partindo disto,
adentra nas reflexões das respostas dos profissionais da ESFacerca da responsabilização
do serviço no tocante ao enfrentamento dessas violências.

(DES) CORTINANDO OS CENÁRIOS: A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NA


COMUNIDADE SÍLVIO BEZERRA DE MELO

A Comunidade Sílvio Bezerra de Melo no Município de Currais Novos (RN) se formou numa
região periférica – quando vista geograficamente -, tendo em média 364 famílias,
conforme o cadastramento realizado pela ESF no ano de 2017.

Essas famílias apresentam-se nos diversos arranjos – nuclear, monoparental, extensa,


homoafetivas – mas em sua maioria seguindo modelo nuclear e tradicional, em que a

2
A expressão desigualdade de gênero é utilizada para resumir todas as formas de submissão hierárquica da
mulher pelo homem nos âmbitos doméstico e público, no trabalho, nas relações afetivas e conjugais, enfim,
no contexto sóciohistórico, em que culturalmente essas desigualdades foram reproduzidas até o momento
atual (SAFIOTTI, 2004).

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COMO A GENTE LIDA?

mulher, muitas vezes, é um dos componentes coadjuvantes e ainda vítima da violência


neste contexto familiar, fato este constatado segundo os relatos empíricos e informais
das usuárias e profissionais, evidenciando assim as implicações das construções sociais de
gênero no cotidiano de vida dessas mulheres.

Porém, as denúncias registradas através de Boletim de Ocorrência pela Polícia Civil3 para
este território no ano de 2016 trazem um quantitativo controverso: um registro de caso
de ameaça contra mulher e um caso de violência doméstica, sem especificar a idade e
nem identidade de gênero da vítima.

Percebeu-se também a subnotificação pelo serviço de saúde, dado confirmado pelo Setor
de Vigilância Epidemiológica do Município, pois conforme relato dos profissionais, não
havia registro através do preenchimento da ficha de notificação compulsória, cuja Lei
Federal nº 10.778, de 24 de novembro de 2003 estabeleceu como sendo obrigatória para
os estabelecimentos de saúde públicos e privados.

Assim, no propósito de contextualizar o universo que a pesquisa em questão se deu,


trazemos, inicialmente, a reflexão sobre a violência, uma vez que se torna relevante
pontuar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou em 2002 um documento
intitulado Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, em que a violência é conceituada
como o uso da força física ou do poder, através de ameaça, por exemplo, contra terceiros
ou a si próprio, um grupo ou uma comunidade, resultando em lesão, morte,
comprometimento psicológico e/ou no desenvolvimento físico ou ainda, em privação.

Os teóricos do tema conceituam algumas tipificações da violência, sendo uma delas a


violência doméstica contra a mulher que vem acometendo tantas vítimas no seio de seu
lar e com agravantes, pois esta geralmente sofre em silêncio, desprotegida e com medo
de denunciar. Estes agravantes sãoreflexos da sociedade patriarcal, culturalmente
machista e que impõe à mulher uma posição de submissão ao homem, pois
historicamente se acredita tero homem poder sobre ela e propriedade sobre seu corpo, o
que consubstancia em situações de violência “[...] motivados por razões diversas
(im)postas, sobretudo, pelo(s) agressor(es), que envolvem ódio, raiva, desprezo,
humilhação, insubordinação feminina ao desejo masculino, o descontrole das emoções e
a perda de prestígio viril” (BANDEIRA, 2016, p. 22).

A visão atual sobre o papel/lugar da mulher na sociedade é constituída de carga histórica,


cultural, política e ideológica, já com muitas conquistas e avanços, mas ainda com
diversas barreiras a serem quebradas para que a mulher tenha direito a ter seus direitos
respeitados e em nível de igualdade com os homens. A posição de submissão à figura
masculina é geralmente imposta primeiramente pela figura do pai, e após o casamento,
passa a ser o marido o seu dominador, a quem deve obediência e respeito. Esse poder
que ao homem culturalmente foi permitido exercer é o que gera esse ciclo de violência
contra a mulher, que vive sob o medo, a dominação, a incerteza e as agressões. Para
Dantas-Berger e Giffin (2005), uma ordem social de tradição patriarcal por muito tempo
consentiu um certo padrão de violência contra as mulheres, designando ao homem o

3
Dados disponibilizados pela Delegacia de Polícia Civil do Município de Currais Novos (RN) em julho de 2017.

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JANUÁRIO, IARA DE SOUZA; MEDEIROS, PRISCILLA BRANDÃO DE

papel ativo na relação social e sexual entre os sexos, ao mesmo tempo em que restringiu
a mulher à passividade e reprodução, demonstrando construções sociais que ancoraram
as representações das mulheres.

Por isso, gênero e violênciase relacionam, tendo em vista que gênero é “a construção
social do masculino e do feminino” e não necessariamente “[...] desigualdades entre
homens e mulheres [...]” (SAFFIOTI, 2004, p. 45), pois é preciso compreender como se
constrói na sociedade atual o papel do homem e da mulher, para podermos ao menos
entender de onde surgem as desigualdades e, como um reflexo disto, as violências.

Esses papéis demarcados ao homem e a mulher principalmente na constituição da família


são resultantes do patriarcado, que delineou cultural e socialmente, a opressão e
dominação da mulher. Ao nos reportarmos para um passado próximo é possível perceber
a transição a qual deu posição de superioridade ao homem:

[...] com a descoberta da agricultura, da caça e do fogo, as comunidades


passaram a se fixar em um território. Aos homens (predominantemente) cabia a
caça, e às mulheres (também de forma geral, embora não exclusiva), cabia o
cultivo da terra e o cuidado das crianças. Uma vez conhecida a participação do
homem na reprodução e, mais tarde, estabelecida a propriedade privada, as
relações passaram a ser predominantemente monogâmicas, a fim de garantir
herança aos filhos legítimos. O corpo e a sexualidade das mulheres passou a ser
controlado, instituindo-se então a família monogâmica, a divisão sexual e social
do trabalho entre homens e mulheres. Instaura-se, assim, o patriarcado, uma
nova ordem social centrada na descendência patrilinear e no controle dos
homens sobre as mulheres (NARVAZ, 2006, p. 50).

O patriarcado construiu socialmente a ideia da mulher como responsável por manter a


relação conjugal a ponto de se subjugar a muitas coisas, como a violência, em nome do
casamento e do amor romântico para manutenção da família. Assim, Cunha (2007) apud
Porto (2014, p. 271) “[...] identifica a mulher como alteridade, aquela que permanece na
relação porque ter um homem em casa, mesmo sendo agredida, é estar protegida da
violência de estranhos e é uma forma de ter status [...]” (CUNHA, 2007 apud PORTO,
2014, p. 271), como se a agressão fosse menos dolorosa do que o desamparo de não ter o
homem, o marido, o pai dos filhos, o provedor, o patriarca.

Ancorado nesses conceitos teóricos é possível compreendero contexto macrossocialdas


situações às quais as mulheres da Comunidade Sílvio Bezerra vivenciam no ambiente
doméstico: de opressão, humilhações, agressões. E estes conceitos também podem
explicar o silencio naturalizado dos profissionais de saúde quando têm suspeita ou
consciência do fato.

O QUE DIZEM E PENSAM OS PROFISSIONAIS?

Com base nas entrevistas realizadas com os doze profissionais da ESF Sílvio Bezerra de
Melo, dentre estes apenas dois homens, o que possibilita um viés não somente feminino
nas respostas, trazemos a evidência dos principais resultados da pesquisa, no propósito
de contribuir com o levantamento teórico acerca do objeto em questão.

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COMO A GENTE LIDA?

A violência conjugal como sendo uma das especificações da violência contra mulher, de
gênero4 e intrafamiliar5, é resultado da sociedade patriarcal, do machismo, da posição de
submissão a qual a mulher historicamente foi colocada e isto se reproduz naqueles que
são responsáveis pelo cuidado destas mulheres, os profissionais de saúde, que por vezes,
ainda utilizam o velho ditado Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher para
justificar a omissão da notificação e da investigação dos reais determinantes das doenças
dessas mulheres ao chegarem nos atendimentos com marcas da violência.

No senso comum, há uma generalização do conceito de violência apenas enquanto física,


mas sabemos que esta pode se perpetrar em diversas formas segundo a Política Nacional
de Enfrentamento à violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011b), sendo psicológica,
moral, sexual, patrimonial, física e institucional, porém nem todos os profissionais
compreendem e reconhecem essas violências. Sumariamente, a violência psicológica é a
conduta que causadano emocional ou a autoestima da mulher; a moral é qualquer ato de
calunia, difamação ou injúria; sexual é a ação forçada de manter contato sexual, físico ou
verbal, ou participar de outras relações sexuais; a violência patrimonial é a conduta de
destruição, retenção ou subtração de bens e/ou objetos pertencentes a mulher; a física
refere-se a ofensa a integridade ou saúde corporal; e por último, a violência institucional é
aquela praticada por ação ou omissão dos agentes e serviços públicos, quando são
julgadas, revitimizadas e discriminadas (Política Nacional de Enfrentamento à violência
contra as Mulheres (BRASIL, 2011b).

Entre os entrevistados G, A, F e J, foi factível a conceituação da violência para além da


agressão física: “Qualquer agressão, atitude, ou qualquer coisa que não seja da vontade
dela, feito contra ela, que humilha, que diminua” mais ainda: “Violência é todo ato que
traga constrangimento a mulher” desvelam a violência como ato abusivo que atinge não
apenas a integridade física e “Toda coisa que viole os direitos da mulher, que constrange”
trazendo uma perspectiva de violação de direitos, mais precisamente os direitos humanos
de igualdade e liberdade da mulher pelo homem, numa relação onde “ta impregnado o
machismo. Os homens acham que são donos delas” [mulheres]. Interessante revelar que o
termo “machismo6” foi citado por um dos homens entrevistados como a causa da
violência contra a mulher, apreendendo a relação desigual a qual a mulher socialmente é
submetida ainda nos tempos atuais, como a figura que na relação conjugal deve
obediência e respeito, mas não pode exigir minimamente do homem.

Assim, tem-se que o machismo dissemina a ideia de que o homem comanda e à mulher
cabe apenas aceitar para não ser julgada negativamente, como se a responsabilidade de
manter o respeito na relação conjugal fosse dela, já que nesta sociedade patriarcal ao

4
Para uma compreensão sobre a Violência de Gênero, recorremos a Saffioti (2004), compreendendo ser
uma forma de violência em que homens e mulheres sofrem múltiplas formas de impactos em suas vidas, a
partir das relações socialmente construídas mediante as determinações de gênero. Ou seja, é a categoria
mais ampla, portanto, necessária de entendimento quando falamos em violência doméstica e, no caso que
a pesquisa foca, a violência conjugal.
5
Violência intrafamiliar é aquela cometida por um ente da estrutura familiar contra outro, causando danos
físicos, psicológicos, materiais, morais.
6
O machismo aqui é entendido como um sistema de valores e concepções, socialmente construídos, que
legitima e reforça a dominação/exploração do homem sobre a mulher.

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homem se deu o poder e o direito de ser o provedor do sustento familiar e com isso,
todas as regalias para este manter a submissão da mulher.Como nesse caso relatado por
M: “marido que obriga mulher trabalhar muito, fazendo tudo em casa sozinha sem ajuda
dele. Temos muito aqui. Causa muito adoecimento”, num claro exemplo da divisão sexual
do trabalho7em que a obrigação pelo trabalho doméstico é da mulher, como também o
cuidado dos filhos, enquanto o marido trabalha fora. Também foram trazidos relatos por
G sobre violência patrimonial: “Já chegou gestante que dependia financeiramente do
marido e foi preciso prescrever [por escrito como se fosse prescrição medicamentosa]
alimentos, frutas e legumes adequados, porque ele não queria comprar.”, nesse caso, o
marido se negou a satisfazer uma necessidade da esposa gestante mesmo tendo sido
indicada por profissional para prevenir problemas de saúde.

Corroborando com o conceito, M e B também trouxeram as consequências dessa


violência para mulher: “Afeta mentalmente, fisicamente, atinge o organismo, causa
depressão, ansiedade, estresse” estas como exemplo do adoecimento e “pode causar [...]
até a falta de interesse pela família” trazendo também questões do relacionamento
sóciofamiliar como possível agravo, pois provavelmente a mulher não sai ilesa de um
relacionamento conjugal violento e isso tende a se refletir no modo como ela
afetivamente enxerga a família.

Sobre as causas dessa violência, o entrevistado E trouxe que “é a violência em casa, do


marido, às vezes viciado em drogas” o que é ratificado por Saffioti (2004) ao afirmar que a
violência intraconjugal pode ter como potencializador o álcool, atrelado também às
situações de desemprego, que como bem frisa a autora, não é fator condicionante, mas
que se associado à desigualdade e a pauperização, podem afetar a figura do homem de
chefe da família, pois:

O papel de provedor das necessidades materiais da família é, sem dúvida, o mais


definidor da masculinidade. Perdido este status, o homem se sente atingido em
sua própria virilidade, assistindo à subversão da hierarquia doméstica. Talvez
seja esta sua mais importante experiência de impotência (SAFFIOTI, 2004, p. 84).

Com base nisso e na afirmação do entrevistado, podemos compreender as inter-relações


que podem levar às violências numa comunidade com altos índices de drogadição – álcool
e outras drogas – e de pobreza como o Sílvio Bezerra de Melo.

Outra concepção sobre a violência doméstica, trazida por D, recai sobre as punições:
“Acho o cúmulo. Porque hoje em dia é muito bem esclarecido, mas as pessoas ainda
cometem os mesmos erros, não tem muita penalidade” deixando uma inquietação a
respeito desse esclarecimento que existe atualmente, como se o fato de se saber muito
sobre a violência fosse um motivo para o agressor não praticá-la ou ainda, que apenas as
punições previstas na lei fossem suficientes para sanar a violência.

7
O conceito de divisão sexual do trabalho segundo Hirata e Kergoat, 2007), refere-se à forma modulada
histórica e socialmente de divisão do trabalho decorrente das relações sociais entre os sexos, em que
determinou quais atividades são de cada sexo - reservando à mulher geralmente uma dupla jornada, pois o
trabalho doméstico lhe é imposto - e também que o trabalho do homem vale mais.

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COMO A GENTE LIDA?

A partir da década de 1970, com o advento do movimento feminista e do movimento em


torno da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes na década de 1980, a
sociedade civil passa a se mobilizar para garantir direitos até então negligenciados, e daí a
questão da violência no âmbito doméstico torna-se publicizada (MIOTO, 2003).

Quanto aos estereótipos e preconceitos acerca da imagem da mulher, em situação de


violência conjugal, esta se torna ainda mais invisibilizada pela valorização da instituição
família requerer da mulher a maior responsabilidade em mantê-la e assim, aquela se
propõe a aceitar situações de violência. A sociedade, onde estão inclusos os profissionais
de saúde, tem seus valores morais e modos de pensar que podem ou não condizer com
os valores éticos requisitados para atuar profissionalmente.

Ao serem indagados para relatarem sobre um caso de violência contra mulher ao qual
têm conhecimento, os entrevistados – principalmente as mulheres - demonstraram
empatia e aversão ao fato, sendo alguns inclusive no seu âmbito familiar como F e C:
“Minha mãe, senti na própria pele, todo dia meu pai batia nela, e [outros casos] com
vizinhas, irmã.”; “Um caso próximo de um familiar que morava vizinho, tinha que abrir a
porta para ela fugir, sendo ameaçada com faca. Eu não tinha medo do agressor, que era meu
tio e ajudava ela a fugir. Eles se separaram, mas ele pede pra voltar. Era terrível”. Em
contrapartida, ainda existem discursos culpabilizadores como L “As mulheres são fortes,
ela só vive na situação se quiser, tem que tomar atitudes. Não justificar porque ele [o
agressor] sustenta, pois sempre tem saída”.

Com os profissionais homens isso não foi muito perceptível, pois um deles apenas disse
que tinha conhecimento de uma situação, mas não quis relatar e o outro respondeu
“soube de um caso que se separa bastante e volta, existe agressão física, mas eles se mudam
da área. É um relacionamento hostil, eles são jovens” sem expressar nenhum envolvimento
com o caso.

Os participantes da pesquisa G, F, E e J também opinaram sobre a percepção da


Comunidade a respeito da mulher agredida, e contraditoriamente enxergaram que tanto
a mulher é considerada vítima, como também culpada, por permanecer no
relacionamento: “é menosprezada, vista como errada, é excluída, a população critica”; “vê
como uma coitada ou que gosta de apanhar”; “uma vítima, mas nem todos vêem como
vítima. É vista também como culpada, que está na situação porque quer, que já devia ter
tomado decisão pra vida.”; “fica excluída de certa forma. Em alguns casos é vitimizada, mas
na grande maioria o povo nem leva a sério”.

Ainda há as situações em que a Comunidade se sente responsável por ajudar aquela


mulher, visualiza que sozinha ela não consegue sair do ciclo da violência, como bem
destaca L “se a comunidade souber ela se sente envergonhada, no geral as pessoas ajudam e
aconselham para revidar se a mulher aceitar, quando não, a comunidade nem se mete”.
Importante notar que a profissional atentou a perceber que a mulher mesmo na situação
de vítima, pode se culpar, se envergonhar, de estar naquela situação, concluindo assim,
que são múltiplos os sofrimentos: a violência provocada pelo companheiro, a vergonha
dos outros saberem e assim se isolam, a auto culpa de não conseguir denunciar, os
julgamentos e críticas daqueles que não compreendem a permanência na relação. Um

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estudo de Porto (2014), sobre a percepção das psicólogas que atendem mulheres vítimas
de violência doméstica sobre os motivos da permanência na relação, identificou discursos
como a dependência financeira e emocional, o desejo de mudar o marido e não de sair da
relação, a responsabilidade de cuidar dos filhos, o status que o casamento concede a
mulher, e por fim justifica que “Tendo o patriarcado definido uma psicanálise que
representa o feminino pelo negativo e pela falta, pode-se pensar que continuar nessa
situação seria uma forma de tentar conseguir realizar o desejo de ser amada e
reconhecida” (PORTO, 2014, p. 273).

“O povo se afasta, não quer se meter, como se ela sozinha tivesse que resolver o problema”
e com isso, o profissional C ratifica a importância da equipe da ESF para identificar as
situações e se disponibilizar a ajudar a vítima da forma mais adequada possível.

O PAPEL DOS SERVIÇOS DE SAÚDE NA REDE DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO A MULHER:


A REDE DE ENFRETAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM CURRAIS NOVOS/RN

A problemática da violência contra a mulher é complexa e por isso, a assistência e


proteção a vítima exige um conjunto de ações e serviços para que os direitos das
mulheres sejam minimamente assegurados. Esses serviços quando articulados formam o
que chamamos de rede.

Antes de avaliar a rede de assistência é preciso saber seu conceito atual, conforme
publicizado pela Secretaria de Políticas para Mulheres (BRASIL, 2011a) através do
dispositivo intitulado Rede de Enfrentamento a Violência contra as Mulheres:

[...] diz respeito à atuação articulada entre as instituições/ serviços


governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando ao
desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que
garantam o empoderamento e construção da autonomia das mulheres, os seus
direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada
às mulheres em situação de violência. Portanto, a rede de enfrentamento tem
por objetivos efetivar os quatro eixos previstos na Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres - combate, prevenção, assistência
e garantia de direitos - e dar conta da complexidade do fenômeno da violência
contra as mulheres (BRASIL, 2011a, p. 13).

Dessa forma, percebe-se que a assistência é vista num conceito mais amplo para
enfrentar as situações de violência, numa união de forças onde são muitos os
responsáveis e estando a saúde fazendo parte dos serviços de atendimento, cujo objetivo
é garantir a integralidade. Na fala dos entrevistados apareceramna maioria deles os
serviços sócioassistenciais, da justiça e segurança como componentes dessa rede: “CRAS
e CREAS que realizaram uma oficina na Unidade”(A); “Só [conheço] o CREAS” (D); “o CRAS e
o CREAS” (F); “o CREAS, CRAS pra prevenir e Polícia” (G); “Não conheço. Por alto, não sei
quais serviços diretamente, mas acredito que sejam CRAS, CREAS” (I);Conheço CRAS, CREAS,
em alguns casos o MP e Fórum” (J), ”O CREAS e o CRAS podem atuar” (L).

Apenas B disse não conhecer os serviços da rede, C afirmou não existir rede e Ee H
destacaram sem muita veemência os serviços de saúde NASF e CAPS como responsáveis
por atender essa demanda e M acrescentou o serviço Policlínica, onde atendem os

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COMO A GENTE LIDA?

profissionais de psicologia e psiquiatria. Sendo assim, pode-se inferir que os profissionais


não conhecem a rede e reconhecem minimamente os serviços de saúde, bem como a
ESF, como componentesdela, o que dificulta ainda mais o atendimento da mulher
violentada, e o posterior encaminhamento aos demais serviços fica comprometido ou até
inexiste.

No que se relaciona ao enfrentamento da violência e suas múltiplas faces, podemos


inserir a importância da saúde enquanto política pública que, conforme as observações
empíricas que despertou essa pesquisa, ainda se mostra como um segmento distante do
ideal para atenção as situações de violências domésticas em sua integralidade.

Assim, segundo a OMS (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2002), a violência é um


problema social e de saúde pública, podendo aparecer multifacetada e deixando
consequências a curto e longo prazo, que atinge a agredida, sua família, a comunidade.
Ambos sofrem e adoecem, seja no aspecto físico ou psíquico, e por vezes, esse
adoecimento se mascara em doenças que não são diretamente ligadas a agressão, mas
um olhar atento e sensibilizado, muito pode descobrir e intervir para amenizar os
sofrimentos.

A gestão dos serviços de saúde em suas esferas federal, estadual e municipal ainda não se
deu conta que “[...] a carência de estudos populacionais sobre a violência baseada em
gênero no país, bem como de pesquisas operacionais nos serviços, acaba por
impossibilitar um melhor conhecimento sobre este fenômeno e suas consequências em
saúde [...]” (BERGER, 2005, p. 419) e consequentemente pouco se intervém, se investiga
e se notifica os casos, ocasionando uma invisibilidade da violência doméstica, e mais ainda
a violência conjugal. Como bem corrobora Freire (2015, p. 73):

A violência doméstica em âmbito nacional é reconhecido como expressão da


questão social no âmbito da saúde pública, demandando atenção e intervenção
do Estado para seu enfrentamento. A comprovação do fenômeno da violência
ficou ‘invisível’ durante décadas, pois nenhum registro e/ou obtenção de dados
contabilizavam os índices existentes nos estados brasileiros, assim a ausência de
indicadores sociais retardou a visibilidade da temática no país (FREIRE, 2015, P.
73).

Sabe-se que o enfrentamento a violência deve se pautar em ações intersetoriais, visando


trabalhar desde a prevenção até ao atendimento das vítimas e a assistência aos
agressores, formando uma rede que envolve as políticas de saúde, assistência social,
educação, segurança pública, judiciário e ações da própria sociedade civil. A partir do ano
de 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres atua nesta problemática e
vêm sendo criados dispositivos como a Lei nº 11340/2006, denominada Maria da Penha e
publicações dando diretrizes para ampliação da assistência como a Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher em 2004 (BRASIL, 2004) e a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra Mulher publicada em 2011 (BRASIL, 2011b).

Nesse contexto, um dos serviços potentes para identificação, notificação e assistência às


situações de violência é a Estratégia de Saúde da Família, que pode servir como
instrumento de potencialização da assistência à mulher e componente importante da

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JANUÁRIO, IARA DE SOUZA; MEDEIROS, PRISCILLA BRANDÃO DE

rede de atendimento às vítimas de violência doméstica. Mas para isto, os profissionais


precisam estar sensibilizados e capacitados para atenderem essa demanda, deixando de
lado ou vencendo seus preconceitos e sendo capacitados para intervir nessas situações.

A começar pela notificação dos casos de violência, que foi inserida no Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde em 2009, devendo
ser realizada de forma universal e compulsoriamente em casos suspeitos, e que serve de
subsídio para implementação de novas estratégias de assistência e implantação dos
serviços especializados nos locais com maiores índices. Freire (2015, p. 73) destaca para
além desta relevância que “A ficha de notificação é ampla e contém elementos
importantes para fundos de pesquisa, pois permite identificar o perfil da mulher, situação
socioeconômica, tipo de violência, tempo de convivência na relação e autor, agravo
adquirido após o trauma e dados de profilaxia” (FREIRE, 2015, p. 73).

A Equipe de Saúde da Família pode ser um aparelho potente de orientação,


acompanhamento e apoio a mulher violentada, bem como pode trabalhar a prevenção
destas situações. Este serviço está próximo às famílias, geralmente com o tempo passa a
conhecer não apenas as queixas clínicas, mas também muito sobre os conflitos
intrafamiliares, o que pode levar a reconhecer situações de violência, quando não ocorre
de as próprias mulheres confidenciarem seus problemas domésticos e agressões
conjugais por sentirem confiança no profissional.

A ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: ANÁLISE ACERCA DA RESPONSABILIZAÇÃO DO


SERVIÇO DE SAÚDE NO TOCANTE AO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM
CURRAIS NOVOS (RN)

A Estratégia de Saúde Família (ESF) surgiu como estratégia de superação do modelo


biomédico centrado no cuidado individualizado da doença e propõe a reorganizar os
serviços da Atenção Básica, que é a ordenadora do cuidado continuado em saúde nos
territórios, composta por equipe multiprofissional devendo se responsabilizar por até
três mil e quinhentas pessoas, a depender do grau de vulnerabilidade da população.

Na área da Comunidade Sílvio Bezerra de Melo existem algumas problemáticas que a


colocam como território vulnerável: drogadição e alto índice de violência. Como o estudo
aponta, a violência doméstica contra a mulher é uma realidade para a ESF Sílvio Bezerra,
que cotidianamente toma conhecimento de casos de mulheres violentadas por seus
companheiros, como os seguintes proferidos por A, J, E, L e M:
“uma mulher alcoólatra, tem um companheiro que agride fisicamente, toma o dinheiro do
BPC para beber, xinga, tem violência física, patrimonial e psicológica, nos momentos de
sobriedade ela reconhece, mas depois volta pra ele”;
“tem um caso que separa bastante e volta, existe agressão física, porém eles se mudam da
área, é um relacionamento hostil, eles são jovens”;
“tem uma mulher que é agredida pelo esposo e negava por medo dele, sofria todos os tipos,
física, verbal...”;
“o marido bate na esposa na frente da criança, ele era muito jovem, quando se juntaram ele
tinha 17 anos e ela 35, ela sofre agressão física, ela não reage e apanha calada, ela diz que os
vizinhos escutam mas não querem se meter, o filho pede pra ele não fazer”;

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COMO A GENTE LIDA?

“uma mulher que é abusada, chegou de óculos escuros, estava com hematomas no rosto,
contou que há tempo é agredida, mas aceita porque depende dele, ela deve sofrer ameaça.
Ela faz tratamento pra ansiedade, um dia ta bem, outro não.”

As situações são as mais diversas e a atuação dos profissionais de saúde é algo


importante para prevenção e enfrentamento da violência, pois como relata o profissional
D: “já identifiquei uma mulher com marcas, mas ela negou dizendo que havia batido em
algum lugar”, e após a negativa, não foi realizada nenhuma oferta de serviçoe isto condiz
ao relato de quase todos os profissionais ao serem questionados sobre o contato com
mulheres em situação de violência, pois mesmo tendo conhecimento do caso, se a vítima
não expressar a agressão, o profissional não se sente no direito, as vezes nem enxerga
como atribuição sua, de tentar investigar um pouco mais se há outros indícios, como no
relato de E: “Nunca apareceu nenhum caso, mas posso perceber e perguntar o que houve.
Se a pessoa negar, omitir eu vou aceitar, porque não tenho preparação.” Há ainda aqueles
que dizem não adentrar no assunto por receio de conflitos entre o agressor e a equipe,
bem como deste se voltar contra a mulher e agredi-la ainda mais.

A desresponsabilização por parte do profissional em não entender o atendimento aos


casos de violência como atribuição, pode ser decorrente da inexistência ou insuficiência
na formação desses profissionais, o que pode resultar involuntariamente numa violência
institucional nos casos de omissão, ao não garantir o acolhimento, a atenção humanizada
e preventiva, através também de atitudes preconceituosas e discriminatórias que venham
a revitimizaras mulheres que sofrem violência. A compreensão deve ser:

Que a violência doméstica é um fenômeno multicondicionado, em cuja dinâ-mica


estão articulados aspectos sociais, econômicos, políticos, psicológicos, culturais
que não podem ser tratados de forma isolada e nem complementar. Por isso o
processo de intervenção profissional, nesse campo, pressupõe reconhecer a
complexidade do objeto de trabalho numa perspectiva de totalidade e o terreno
contraditório sobre o qual as ações profissionais se desenvolvem (MIOTO, 2003,
p. 101).

Sendo assim, a educação permanente dos profissionais da ESF pode contribuir para
atualização dos conhecimentos, assegurando uma atuação preventiva, o atendimento
qualificado e humanizado cujos são requisitos para assistência digna aos casos de
violência doméstica.

A respeito dos avanços visualizados pelos profissionais durante o período de atuação na


saúde, foram trazidas as seguintes falas: “houve principalmente depois da implantação da
Residência, pois eu nunca tinha visto nenhuma assistência” (B); “hoje é mais falado, tem
mais oficinas que preparam. No SUS acredito que tem” (H); “a Residência ajudou muito,
outros serviços [...] hoje temos muito mais jeito de cuidar das pessoas” (M); “a vinda dos
residentes para ajudar no aconselhamento, encaminhamentos. Antes disso, poderíamos
recorrer a polícia, antes eu não achava que podia me meter nessas situações, o diálogo com
profissionais mais antigas também ajuda” (D); “houve avanço, as novas leis, as novas
equipes, só se não detectar é que essa equipe não intervém” (F); “em termos de escuta
qualificada, o aconselhamento, sim, melhorou. Mas nenhuma política garante a assistência e

351
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
144
JANUÁRIO, IARA DE SOUZA; MEDEIROS, PRISCILLA BRANDÃO DE

o bem-estar da mulher depois da violência. Poderia existir uma casa de apoio para poder
ficar enquanto estabiliza”(J).

Vale destacar que oentrevistado G demonstrou conhecimento crítico sobre a definição de


violência doméstica e alguns manejosnessas situações, fala com segurança sobre os
encaminhamentos e serviços da rede e a importância da notificação mesmo sem realizar
e se mostra sensível a problemática ao dizer “as vezes numa frase dita, você pega nas
entrelinhas o que a mulher está passando”. Isso demonstra a percepção do profissional
sobre a escuta atenta e sensibilizada da usuária que chega para atendimento e muitas
vezes, não relata diretamente a violência, mas é algo que pode ser identificado quando
demonstra-se interesse, atenção e cuidado no momento do atendimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo vem reafirmar que os profissionais de saúde compreendem o impacto da


violência contra a mulher no âmbito individual e coletivo, mas foi possível perceber que
alguns discursos dos entrevistados ainda têm enraizados moralismo e preceitos até
mesmo embasados em pré-conceitos, resultantes das construções sociais,simbólicas,
políticas e culturais, o que pode ser explicado por estarem imbricados nessa ótica da
sociedade patriarcal e reproduzirem o discurso de “em briga de marido e mulher, ninguém
mete a colher” já tão fadado e contrário às novas discussões e legislações.

A fragmentação da rede de enfrentamento e a fragilidade em compreender a


responsabilidade com o bem-estar biopsicossocial comprometem a assistência à vítima,
que é revitimizada pelos profissionais e pelo Estado ao não garantir atendimento eficaz,
nem dispor de medidas preventivas. A exemplo, o Centro de Referência Especializado da
Assistência Social (CREAS) profere que “os casos não chegam”, enquanto os profissionais
de saúde relatam vários casos em apenas uma área do Município, não havendo assim,
registro e notificação dos casos e ainda, ausência de gestão de informação, ambos de
extrema importância para que sejam criados novos serviços e dispositivos legais como o
atual assegurado através da Lei nº 13.427/17 (BRASIL, 2017), inserido na Lei nº 8.080/90
(Lei Orgânica da Saúde) em seu Art. 7º, inciso XIV a organização de atendimento público
específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral, que
garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas
reparadoras.

A ESF então, se caracteriza como um serviço não especializado, mas de relevância para a
assistência por estar territorializado e sendo porta de entrada da mulher aos demais
serviços desde que atue de forma articulada e integrada. A equipe multiprofissional da
ESF com suas diferentes categorias desempenhando papéis de mesma importância, pois
desde o Agente Comunitário de Saúde que faz as visitas ao domicílio, até o cirurgião-
dentista que atende uma mulher com ferimentos bucais supostamente resultantes de
agressão, ambos devem estar aptos a identificar as situações de violência, saber abordar,
ouvir e não julgar as mulheres que precisam, muitas vezes, de intervenção externa para
romper o silencio e buscar ajuda. Dessa forma, a diretriz de acolhimento traçada na
Política Nacional de Humanização (BRASIL, 2003) e a educação permanente dos

352
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
145
COMO A GENTE LIDA?

profissionais podem trazer melhorias no acesso das mulheres violentadas aos serviços de
saúde.

Portanto, a pesquisa resulta a importância de fortalecer a prática a partir dos


embasamentos teóricos, haja vista defendermos a indissociabilidade entre o binômio
Teoria e Prática. Assim como, entender que a realidade social é permeada por múltiplos
marcadores sociais, os quais devem ser vistos/compreendidos em sua totalidade, para
que não caiámos na violação (in) direta dos direitos dos/as usuários/as quando não
entendemos os cotidianos.

Por fim, sendo a violência doméstica uma das principais expressões da questão social
visível na contemporaneidade, apontamos a urgência na formação dos/as profissionais de
saúde no tocante as normativas, legislações e Rede de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres, o que trazemos como sendo dever desses/as para guiar uma prática fincada
nos pilares éticos e responsáveis para com os direitos sociais.

A pesquisa tem, assim, relevância social, não somente para aqueles/as da Comunidade
Sílvio Bezerra e a rede de serviços – especialmente de saúde – da cidade de Currais Novos
(RN), mas com todo o universo acadêmico/profissional. Como também, para a categoria
dos/as Assistentes Sociais, uma vez que, sendo uma profissão majoritariamente feminina,
a ampliação desse debate cruza com nosso Projeto Ético Político, assim como os
princípios éticos que regem o Serviço Social.

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da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que "dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências", para inserir, entre os princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS), o princípio da organização de atendimento público
específico e especializado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral.
Brasília (DF), 2017. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13427-
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Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a

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Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
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Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 35, jan./jun. 2018.
147
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA


ÁREA DA SAÚDE

Work and health of social health assistants

Edvânia Ângela de Souza Lourenço*

RESUMO
Este estudo discute a relação trabalho e saúde dos e das assistentes sociais
que atuam nos serviços de saúde. Destaca informações quanto ao perfil,
evidenciando quem são esses profissionais, onde atuam, quais as principais
formas de contratação, salário e alguns elementos da realização no trabalho. A
metodologia adotada é a dialética histórico-crítica, subsidiada em informações
coletadas por meio de questionário autoaplicáveis e da técnica de entrevista
semiestruturada, de forma individual e em grupos (grupo focal), com assistentes
sociais que atuam nos vários níveis de atenção do Sistema Único de Saúde(SUS).
Verifica-se forte presença dos modelos privados na gestão dos serviços da rede
SUS, contratação por meio de processo seletivo, por indicação, baixos salários.
Verificou-se também a pressão da gestão para o Serviço Social a aceitar o
DOI: 10.22422/2238-1856.2017v17n34p355-381
desrespeito à jornada de 30 horas, conquistada pela categoria, em 2010. Admite-
se questões que interatuam para o processo de sofrimento da\os(s) assistentes
sociais no e pelo trabalho.
PALAVRAS-CHAVE
Neoliberalismo, Seguridade Social, Sistema Único de Saúde, Serviço Social,
Saúde do Trabalhador.
ABSTRACT
This study discusses the relationship between work and health of the assistant
companies that work in health services. Emphasizes information about the profile,
* Assistente Social. Pós-doutoranda em Saúde Coletiva, PPGSC da Unifesp. Membro do grupo de
estudos: “Teoria Social de Marx e Serviço Social”, Unesp-Franca, SP. Coordenadora de graduação
da Abepss-Sul II, 2017-2018.Profa. Dra. do Departamento de Serviço Social da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais (UNESP, Franca, São Paulo). Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900,
Prolongamento Jardim Dr. Antonio Petraglia, Franca - SP, 14409-160. E-mail: <edvaniaangela@
hotmail.com>.

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 355


148
Lourenço, Edvânia.

showing who these professionals are, where they work, what are the main ways of
hiring, salary and some elements of achievement without work. The methodology
adopted is a historical-critical dialectic, subsided in information collected through
a self-administered questionnaire and semi-structured interview technique,
individually and in groups of attendants, current social updates of attention levels
the Unified Health System (hereby SUS). There is a strong presence of private
models in the management of SUS health services, contracting through a selective
process, by indication, low salaries. It is admitted question that interact for the
suffering process of the social workers in and by work.
KEYWORDS
Neoliberalism, Social Security, Unified Health System, Social Work, Worker
Health.
Submetido em: 30/9/2017 Aceito em: 11/12/2017
INTRODUÇÃO
A partir da Constituição Federal de 1988 (CF\1988), no Brasil, o
universo dos direitos sociais ganhou forma institucional que penetra
a organização das várias administrações municipais, estaduais
e da União, se configurando na atualidade em uma importante
rede de proteção social. Além dos vários serviços de Seguridade
Social, que englobam as políticas de assistência social, previdência
e saúde, há também ampla estruturação da rede de educação e
de proteção do trabalho. Contudo, desde o início da aprovação da
CF\1988, a construção do campo das políticas sociais e de proteção
do trabalho vem sendo constantemente atacados e restringidos
em decorrência da adoção da política neoliberal, que desenha um
restrito financiamento para as políticas sociais e impõe a gestão
seletiva e privatizante no interior dos serviços públicos.
A situação política e econômica vivenciada no país é fruto da maior
ofensiva do capital mundial, que desde a crise financeira de 20081,
busca alavancar as taxas de acumulação. Segundo Alves (2016), a
riqueza fictícia criada nos últimos anos é diferente da especulação
tradicional. Na aparência, a crise comparece como crise do capital
especulativo imobiliário, mas na essência é a falta de efetividade de

1 Alves (2016) explicita que as crises são próprias do sistema do capital, mas com expressões
diferentes, de acordo com cada período histórico, por exemplo, a crise de 1970 foi uma crise de
superprodução de mercadorias, já a crise de 2008, é uma crise de hegemonia do capital financeiro
(ALVES, 2016). “A crise estrutural do capital constitui-se como um movimento complexo de
tendências econtratendênciasintrinsicamente contraditórias, que dilaceram as possibilidades
concretas de desenvolvimento do capitalismo como processo civilizatório” (ALVES, 2016, p. 38).

356 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


149
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

valorização do valor. A centralidade na financeirização da riqueza a


partir de estupenda expansão dos movimentos especulativos exige
um determinado modelo de Estado para garantir a acumulação
eminentemente financeirizada, trata-se do neoliberalismo:
Não podemos esquecer jamais que a expansão das
finanças de mercado, assim como o financiamento
da dívida pública nos mercados de títulos, são fruto
de políticas deliberadas. Como se vê até mesmo na
atual crise na Europa, os Estados adotam políticas
altamente “intervencionistas”, que visam a alterar
profundamente as relações sociais, mudar o papel
das instituições de proteção social e educação,
orientar as condutas criando uma concorrência
generalizada entre os sujeitos, e isso porque eles
próprios estão inseridos num campo de concorrência
regional e mundial que os leva a agir dessa forma
(DARDOT; LAVAL, 2016).
Alves (2016) explica que o mercado financeiro se constitui em
uma estratosfera do capital global, um circuito que integra a rede
mundial da financeirização espúria de formação do valor fictício, cuja
dominância é mundial e opera acima das unidades intranacionais e
dos Estados nações,está articulado a eles. Sua estratégia é abrir
mercados e construir novos espaços de operação do capital global.
Para tanto, estabelece-se uma relação promíscua entre os Estados
neoliberais e o capital financeiro, que se baseia, entre outros, na
desregulamentação financeira, abertura de economias nacionais
e privatização de empresas estatais e intensa flexibilização do
trabalho (ALVES, 2016).
Trata-se de dar poder irrestrito de mando e comando ao
capital financeiro, que se sobrepõe às suas demais frações -
bancário, produtivo e comercial-, igualmente submetidos ao
capital especulativo e parasitário. Para Giovanni Alves os traços
compositivos do capital globalizado são: financeirização da riqueza
capitalista; Estado neoliberal; acumulação flexível com efeitos
candentes para o mundo do trabalho, marcados pela precarização
salarial e contratual, o que se estende para o modo de vida. Ou seja,
trata-se de uma sociabilidade precária, cuja explosão de inovações
tecnológicas não resulta em melhores condições de vida de grande
parte da população, ao contrário, estipulam novas exigências que

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 357


150
Lourenço, Edvânia.

decretam a precarização existencial da pessoa que trabalha e


resulta no socio metabolismo da barbárie (ALVES, 2016).
Para Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo compõe o Estado,
mas também os valores norteadores da vida em sociedade e
de formação individual. Os valores ficam submetidos à nova
racionalidade, o neoliberalismo. Trata-se de retirar aqueles
impedimentos que poderiam interferir na livre concorrência,
criando verdadeiros retrocessos às práticas de proteção social,
à estatização, à regulação do trabalho, da economia e do meio
ambiente, tudo passa a ser chamado de retrógado e passível de
ser reformado. Mas, ressaltam os autores, o neoliberalismo não
se resume às análises de retirada do Estado da intervenção na
economia, mas se trata de uma racionalidade que não influencia
apenas questões econômicas e políticas, mas a vida dos governos
e governados, ou seja:
[...] o neoliberalismo define certas normas de vida
nas sociedades ocidentais e, para além dela, em
todas as sociedades que a seguem no caminho
da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um
de nós que vivamos num universo de competição
generalizada, intima os assalariados e as populações
a entrar em luta econômica uns com os outros,
ordena as relações sociais segundo o modelo de
mercado, obrigada a justificar desigualdades cada
vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é
instado a conceber a si mesmo e a comportar-se
como uma empresa. Há quase um teço do século,
essa norma de vida rege as políticas públicas,
comandas as relações econômicas mundiais,
transforma a sociedade, remodela a subjetividade
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16).
Trata-se de uma racionalidade que estrutura a vida em sociedade
no capitalismo contemporâneo. Envolve a disseminação de um
jeito de ser e de um determinado tipo de relação social, que se
estrutura a partir do individualismo e da concorrência. Aliás, o
drama social vivido pelo desemprego, subemprego e pela falta
de proteção social e trabalhista, é visto como se resultasse da
ausência de empreendedorismo e resiliência do\a(s) trabalhador\
a(s) (ANTUNES, 2009).

358 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


151
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

O papel do Estado passa a ser o da preservação do comando do capital


especulativo e parasitário sobre as suas demais frações (produtivo,
bancário e comercial), como tão bem explicitado por Alves (2016).
Assim, é propiciada a captura do fundo público, restringindo e
eliminando garantias sociais e permitindo o capital se apoderar
desse recurso, e, ainda, promover a exploração comercial do acesso
aos serviços de saúde, educação, previdência social, entre outros.
Além da mercadorização dos direitos sociais e da captura do Fundo
Público, o governo tem também promovido amplas desonerações,
sobretudo, das grandes empresas, que deixam de contribuir com
a Seguridade Social impactando diretamente os serviços de saúde,
de assistência e de previdência social (GRANEMANN, et al., 2012).
E paralelamente, permite legalmente a precarização estrutural do
trabalho (NAVARRO; LOURENÇO, 2017; LOURENÇO, 2016a).
Tal panorama alude aspectos importantes do cotidiano da classe
trabalhadora e realidade brasileira, que na particularidade do
atual momento político e econômico, emergem antigas formas
genuinamente encabeçadas pela elite nacional vinculada ou
subordinada ao grande capital financeiro internacional, que sem
abandonar os resquícios do histórico colonial, tomou o aparelho
do Estado, em meados de 2016, sob a nucleação neoliberal
ultraconservadora. Constituem-se um grupo de elite que se
amesquinha nos interesses próprios e da sua classe impondo
rápidas e profundas mudanças, essencialmente, regressivas para o
trabalho e políticas sociais.
Vivencia-se um grande ataque aos direitos sociais e do trabalho
que impactam (e impactarão) ainda mais negativamente a classe
trabalhadora, tais como: a aprovação da terceirização irrestrita
(BRASIL, 2017a), a destruição da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) (BRASIL, 2017b), a contrarreforma da Previdência Social2.
Além dessas medidas que pioram as condições estruturais do

2 Para a qual o “governo” de Michel Temer tem feito amplas negociatas para conseguir a aprovação
da contrarreforma da Previdência, além de promover jantares regados a excessos na residência
presidencial para o lobby com os congressistas, acompanhado da oferta de ministérios e da
liberação milionária em Emendas aos Deputados; promove também excessivas benesses ao grande
capital, sobretudo, bancário, que vem sendo desonerado de pagar impostos ou recebendo o perdão
da dívida, essa também pode ser renegociada para um período muito distante(LOURENÇO, LACAZ,
GOULART, 2017). Para os pobres o governo pesa a mão e retira toda e qualquer possibilidade de
segurança social.

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 359


152
Lourenço, Edvânia.

trabalho e de vida, há também profundo desrespeito à Constituição


Federal de 1988 (CF\1988) com o congelamento dos gastos públicos
primários por 20 anos (BRASIL, 2016) e, entre outras inúmeras
medias que impõe o obscurantismo sobre a vida do povo brasileiro,
que pode ser expressado na proibição do ensino crítico, vide a
escola da mordaça, a liberação do ensino religioso nas escolas,
cura gay, entre outros inúmeros projetos que promovem amplo
desrespeitos ao direitos humanos mais fundamentais.
Uma das mais dolorosas consequências é que o ajuste fiscal, a
destruição da legislação do trabalho, a restrição ao acesso à justiça
do trabalho, o desmantelamento dos sindicatos, os impedimentos
para se acessar à previdência social, a permissividade legal para o
capital capturar o fundo público e a precarização e mercantilização
dos serviços de saúde e educação acabam por promover maior
subordinação objetiva e subjetiva, de forma ampliada, do trabalho
ao capital, que caminha pari passu com a degradação da humanidade
e dos recursos naturais.
Neste contexto, propõe-se discutir alguns elementos das relações
de trabalho de assistentes socais que atuam na área da saúde. Trata-
se de um estudo em andamento3, que está subsidiado na coleta
de dados empíricos por meio da auto aplicação de questionários,
disponíveis em sitio eletrônico de uma universidade pública,
contemplando amostragem nacional quanto ao perfil profissional,
das condições de trabalho e saúde de assistentes sociais que
atuam nos serviços de Seguridade Social. Além da coleta de dados

3 Projeto de pesquisa Processo de trabalho e saúde do\a(s) assistentes sociais que atuam nos serviços
de seguridade social no Brasil, devidamente aprovado pelo Comitê de Ética da UNESP –Franca, SP
e aprovado pelo CNPQ, sob o número: 445443/2015-4. O projeto também vem sendo desenvolvido
como parte das atividades de pós doutorado no Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva
da UNIFESP, sob a supervisão do Prof. Dr. Francisco Antonio de Castro Lacaz. A pesquisa abrange
os\as assistentes sociais que atuam nos serviços de Seguridade Social no Brasil, embora esses
serviços apresentem características bem diferentes, o projeto não visa realizar comparações, mas
compreender o perfil profissional, relações contratuais e de gestão do trabalho, as especificidades
de cada área de atuação, principais tecnologias empregadas, regras, regulamentos, procedimentos
adotados e as possíveis implicações desse trabalho para a saúde destes profissionais de cada área
(Saúde, Assistência Social e Previdência Social). O projeto deveria ter se encerrado em dezembro
de 2016, contudo, sofreu reelaboração e terá continuidade até dezembro de 2019. Para essa fase,
o projeto passou a contar com a participação de pesquisador\e(s) de dois grupos de pesquisas das
regiões Norte e Sul do país, os quais são coordenados respectivamente pelas Profas. Dras. Vera Lúcia
Batista Gomes (Universidade Federal do Pará (UFPA) e Jussara Maria Mendes (Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, UFRGS); com vistas a ampliar a cobertura do projeto e maior interlocução com
as diferenças regionais.

360 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


153
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

por meio da auto aplicação de questionários também vem sendo


realizadas entrevistas semiestruturadas com assistentes sociais
das três áreas que compõem a Seguridade Social: Assistência
Social, Saúde e Previdência Social.
De 2014 a 2016, construiu-se um banco de dados com
758questionários respondidos, sendo 37,47% [284] da área da
assistência social, 24,14% [183] da previdência social e 38,39%, ou
291 da área da saúde. A análise ora apresentada se restringiu aos
291 formulários respondidos e que se referem ao local de trabalho
na área da saúde, bem como os depoimentos colhidos por meio de
entrevistas com assistentes sociais dessa área de atuação.
Dos 291 respondentes, 155, ou 53,26%, são do estado de São Paulo,
mas, apesar de, até o momento, verificar maior participação
do referido estado, é importante observar que a região Sudeste
perfaz o total de 202 respondentes ou 69,41% do total, os demais
participantes se dividem entre 15 outros estados, com destaque
para Goiás com 26 respondentes ou 8,93% do total, os demais
estados têm participação inferior a 3%.
Em relação a participação da região Sudeste neste estudo, verifica-
se que dos 202 questionários do total dessa região, 155 são do
estado de São Paulo, como já afirmado, 27 respondentes ou 13,37%
é do estado do Rio de Janeiro; 19, ou 9,41% é do estado de Minas
Gerais e apenas um do Espírito Santo.
Além dos questionários foram realizados quatro grupos focais,
em específico: dois com assistentes sociais de vários serviços de
uma Secretaria Municipal de Saúde; um com as profissionais de um
hospital filantrópico e, ainda, um grupo com as de um Ambulatório
Médico de Especialidades (AME); buscou-se ainda entrevistar duas
assistentes sociais de Unidades Básicas de Saúde (UBS), de forma
individual, e uma de um Hospital Universitário (HU). Além dessas,
também foram entrevistadas,individualmente, duas professoras
assistentes sociais, pesquisadoras e militantes da Frente Nacional
Contra a Privatização da Saúde.
As entrevistas objetivaram o aprofundamento dos dados
coletados por meio dos questionários, assim, a\o(s) profissionais
foram indagada\o(s) quanto a sua percepção do SUS, o trabalho

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 361


154
Lourenço, Edvânia.

desenvolvido, trabalho em equipe e, entre outros, contratação,


jornada, plano de carreira, salário e questões relativas à saúde.
Os nomes da\o(s) entrevistada\o(s), instituições e cidades
foram omitidos para o resguardo do sigilo e anonimato da\o(s)
participantes desse estudo, com exceção das duas professoras:
Maria Valéria Correia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
e de Maria Dalva Horácio da Costa da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. As entrevistas ocorreram a partir do Termo
Consentimento Livre e Esclarecido.
Para os objetivos desse artigo, limitou-se às observações e reflexões
acerca do perfil profissional da\(os) assistentes sociais na saúde,
concentrando-se na forma de contratação, jornada de trabalho e
salário, com ênfase para a privatização da saúde.
SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE: PERFIL PROFISSIONAL
A sistematização dos dados permite indicar o perfil destes
profissionais e alguns elementos das suas relações e condições de
trabalho, bem como os rebatimentos para as suas condições de
saúde.
Tabela I- Local de atuação das entrevistadas
Outro
Atenção Pronto serviço de
Especializada Hospital NASF Socorro PSF/ESF UBS saúde NI Total
52 126 10 8 8 16 70 1 291
17,87 43,30 3,44 2,75 2,75 5,50 24,05 0,34 100

Fonte: elaboração própria a partir dos dados coletados (LOURENÇO, 2017).


A Tabela I indica que dos 291 respondentes da área da saúde, 126,
ou 43,30% do total, trabalham na atenção terciária, ou seja, em
hospitais. 24,05%, ou 70 respondentes, indicaram “outros” serviços,
que se tratam de comunidades terapêuticas, secretarias de saúde,
ouvidorias, centros de reabilitação, serviços de saúde em unidades
penitenciárias, INCA, hospital dia, consultório na rua, Gestor
estadual (DRS), Vigilância em Saúde e ouvidorias. A indicação de
“outros” serviços se deve ao fato que esses nem sempre estão na
hierarquização da política de saúde, mas são serviços contratados,
conveniados, órgãos gestores, entre outros. Já 17,87%, ou 52

362 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


155
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

respondentes, indicaram trabalhar na atenção especializada4.


5,50% ou 16 respondentes informaram atuar em Unidades Básicas
de Saúde (UBS); 2,75 (ou oito respondentes) atuam em Programas\
Estratégias de Saúde da Família e esse mesmo percentual em
Pronto Socorros e apenas uma pessoa não informou o local de
trabalho.
Portanto, ao agrupar respondentes que atuam nas UBS e ESF\
PSF obteve-se 11% do total de sujeitos vinculados à atenção
básica, enquanto 43% estão na área hospitalar e aproximados
42% na atenção especializada. É importante se atentar para este
dado, o que leva a alguns questionamentos: o Serviço Social, na
área da saúde,atua em maior número nos hospitais e nos serviços
de especialidades? Seriam esse\a(s) profissionais mais afeitos à
participação em pesquisas? Como grande parte dos questionários
foi respondida5 durante eventos da categoria de Serviço Social,
cabe indagar também, se o trabalho nos hospitais públicos e nos
serviços de especialidades conta com maior apoio à participação
em eventos científicos? De todo modo, parece salutar sublinhar
que a grande preponderância do trabalho profissional do Serviço
Social na área da saúde ainda é na área hospitalar e ambulatorial.
Então, avançou do ponto de vista da oferta de
procedimentos... A política de saúde não avançou
na perspectiva da Reforma, ela cresceu..., temos
uma cobertura muito maior, nunca vista antes,
apesar do déficit de acesso se você for comparar,
historicamente, o número de internação, consultas,

4 Por atenção especializada compareceram nos formulários respondidos os vários ambulatórios e


clínicas de atenção especializada da rede SUS, tais como: Ambulatório de Endocrinologia, de DST\
AIDS; Serv. Especializado em Prevenção e Assistência para DST/AIDS/Hepatites Virais; Assistência
Domiciliar, Clínica de Diálise e Hemodiálise,Tratamento Fora do Domicílio (TDF), Ambulatório Médico
Especializado (AME), Ambulatório de Crianças de Alto Risco, Saúde do Trabalhador, Serviço de
Acolhimento Institucional; CAPS II - Saúde Mental; CAPS Infantil; NASF etc.
5 Apesar de o questionário para a coleta de dados estar disponível no site da UNESP-Franca (http://
www.franca.unesp.br/#!/departamentos/servico-social/docentes/), utilizou-se da estratégia de
divulgar a pesquisa e os questionários em eventos que congregam grande número de assistentes
sociais, tais como: Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), ocorrido em Olinda (PE),
em 2016; Encontro Nacional de Pesquisadores de Serviço Social (ENPESS), nas edições de 2014 e
2016, ocorridos em Natal, RN e Ribeirão Preto, SP, respectivamente; Congresso Nacional de Serviço
Social em Saúde (CONASSS), ocorrido em São José dos Campos, em 2014, IX Seminário de Saúde
do Trabalhador, ocorrido em Franca (SP), em 2015 e Semanas de Serviço Social, entre outros. Em
média, apenas 30% dos questionários distribuídos durante os eventos retornaram, sendo que as
informações constantes nesses documentos foram digitalizadas no site que hospeda o questionário
on line, como já indicado, constituindo assim um banco de dados deste estudo.

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 363


156
Lourenço, Edvânia.

exames..., o SUS oferta milhões e milhões, nenhum


outro país da América Latina oferece, e inclusive
eu acho que até mesmo a Europa... Então, houve
ampliação brutal do aumento da cobertura, na minha
avaliação, aumentou sim a cobertura, mas ainda não
saímos da linha ou da rota do modelo curativista
individual, centrado, no procedimento, no médico
(Profa. Maria Dalva).
A fala da Profa. Maria Dalva reflete o contexto de contradições
que permeia o SUS e que se materializa, entre outras formas, nas
concepções de saúde e nos processos de produção em saúde, que
ainda estão sedimentados no modelo curativista e individual, que
tem como centro o médico vinculado a um hospital ou ambulatório.
Em relação ao perfil profissional verifica-se que se trata na grande
maioria de mulheres; dos 291questionários, 91,40% são do sexo
feminino e apenas 25, ou 8,59%, do masculino. Dessa maneira, a
partir deste momento, buscar-se-á se referir às assistentes sociais
no gênero feminino, tendo vem vista ser a maioria.
Não se pode perder de vista a importância de se considerar a divisão
sexual do trabalho nos estudos de Saúde do\a Trabalhador\a (ST),
enquanto campo teórico-prático, de produção do conhecimento e
de intervenção. Brito e Oliveira (1997) destacam que ao considerar
as relações sociais de sexo, é preciso considerar a partir das relações
de classe e da divisão sexual do trabalho que determina significados
diferentes para trabalhador e trabalhadora. Nogueira (2006) também
reforça que gênero não pode ser pensado dissociado de classe. Ao se
atentar para a realidade sexuada do trabalho no Serviço Social, Cisne
(2015) destaca que o fenômeno do predomínio feminino no Serviço
Social – a marca predominantemente do Serviço Social - tanto na
composição da categoria profissional quanto do público atendido
é um elemento que colabora para que a profissão desenvolva a
perspectiva de gênero no seu debate e ações.
Na saúde, é possível inferir que as trabalhadoras “assistentes
sociais” carregam de forma objetiva e subjetiva as conformações
dadas pelas hierarquias sociais estabelecidas (de gênero e de
classe). A ampla participação de mulheres, neste estudo, num
total de 91,40% se relaciona ao sentido dado ao ato de cuidar, tão
presente na área da saúde e historicamente designado às mulheres.

364 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


157
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

Enquanto eu estou no trabalho, eu sou assistente


social. Eu saí do meu trabalho, geralmente, eu saio
em cima da hora para buscar minha filha na escola,
eu sou mãe... Chego em casa, além de mãe eu tenho
que ser dona casa, esposa, fora aquela bicharada,
que eu gosto muito... (Grupo focal – Assistentes
Sociais – Secretaria Municipal de Saúde).
A gente tem criança pequena..., então, acho que o
estresse do nosso... não é só de trabalho, é da mulher
mesmo, de tanto acumulo de coisas... (Grupo focal –
Assistentes Sociais – Secretaria Municipal de Saúde).
Para além do lugar ocupado na divisão sexual e social do trabalho,
é preciso ter clareza do significado do trabalho para mulher que
acaba assumindo a dupla ou tripla jornada de trabalho, o que não é
diferente quando se trata de assistentes sociais.
56,34% (164 respondentes) se auto declararam brancas; 23,71% (69
pessoas) pardas; 13,75% (40 pessoas) negras; 18 respondentes,
6,19% deixaram essa questão em branco.
Quanto a idade das profissionais, em resumo, o grupo etário,
considerado economicamente produtivo, de 20 a 41 anos de
idade, compõe a grande maioria das participantes, totalizando 168
respondentes ou 61,16%. Os grupos etários de 42 a 52 anos e 53 a
62 anos de idade totalizaram 96 respondentes ou 32,98% do total.
Sete assistentes sociais, ou 2,40%,declararam ter deficiência.
Quanto à religião, verifica-se que 75,60% das assistentes sociais
declararam tê-la, o que equivale a 220 respondentes e 20,62%,
ou 60 assistentes sociais afirmaram não ter religião e 3,78% (11
questionários) deixaram essa questão em branco.
A formação em Serviço Social ocorreu para a grande maioria,
83,16% (242 respondentes), a partir de 1996. Predomina a formação
na modalidade presencial do ensino; 3,78% (11 pessoas) o fizeram
à distância e esse mesmo percentual, 3,78%, compareceu também
para a modalidade semipresencial. Sete pessoas, 2,41%, deixaram a
questão em branco.
Trata-se de profissionais que têm buscado manter a formação
continuada, 67% têm realizado cursos de pós graduação, com maior
evidencia para as especializações, que comparece com 52,58% (153

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 365


158
Lourenço, Edvânia.

respondentes); 12,37% (36 respondentes) têm mestrado; 2,06% (seis


pessoas) têm doutorado e 32,99% (96 respondentes) deixaram
essa pergunta sem resposta.
Sobre a área dos cursos de pós graduação realizados pelas
entrevistadas 37% afirmaram ter feito algum curso de especialização
na área da saúde; 10% na área específica do Serviço Social, se
enquadrando comumente as que disseram ter feito Mestrado e ou
Doutorado; 7% indicaram a área de políticas públicas; 8,22% a área
de administração e gestão; 6% o curso de Direitos e Competências
realizado pelo CFESS; 4,11% na área da violência e uma pessoa
afirmou ter feito o curso de Psicologia comunitária da libertação.
QUANTO AO LOCAL E CONDIÇÕES CONTRATUAIS, GESTÃO DOS
SERVIÇOS, JORNADA DE TRABALHO E SALÁRIO DAS ASSISTENTES
SOCIAIS
Sobre a característica da gestão dos serviços, 36,77%, ou 107
questionários, indicaram que as assistentes sociais atuam
em serviços sob a gestão municipal. 54 respondentes, o que
equivale a 18,56%, afirmaram atuar em serviços federais. 8,59%,
ou 25 assistentes sociais, indicaram a gestão estadual. 5,15%, ou
15 questionários, apontaram a gestão filantrópico ou conveniado.
Oito pessoas ou 2,75% atuam em OS; uma pessoa em EBSERH; três
em Fundação.
É importante considerar que nem sempre as assistentes sociais
têm clareza a respeito do tipo de gestão, uma vez que 23,71%, ou
69 respondentes, deixaram essa questão em branco. Durante
entrevistas, também se constatou dificuldades de compreensão
por parte das assistentes sociais quanto ao processo e significado
da gestão privada nos serviços públicos, sendo comum ouvir “sobre
isso não posso falar” ou “não compreendo adequadamente”.
[...] o contrato de gestão, então, é muito comum
ouvir das profissionais que a gestão não está na
minha alçada, então, o debate está muito incipiente
ainda, acho que a Frente tem trazido o debate, mas
acho que as pesquisas ainda são poucas. É importante
a gente ampliar as pesquisas nesse âmbito, para
trazer considerações a partir do real do que a gente
tá afirmando teoricamente, o que a gente diz não é
privatização, é apropriação privada do Fundo Público,

366 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


159
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

porque acaba com os direitos, mas a gente tem que


demonstrar, as pesquisas - fazer o caminho de ida e o
caminha de volta -, dizer como está na prática, você
desvela, entendeu? Acho que a gente tem pouca
apropriação do debate no Serviço Social sobre isso
e como isso é ameaçador, entendeu? Assim como
as demais categorias profissionais [...] (Profa. Maria
Valéria Correia).
A maioria, constituída de 40,55% das assistentes sociais, atua
no mesmo local de trabalho a um período de um a cinco anos,
o que totalizou 118 respondentes; de seis a dez anos, foram 59
questionários, ou 20,27%. Com período de até um ano de trabalho
obteve-se 42 respondentes ou 14,43%. Já no período mais longo, de
11 a 15 anos de atuação no mesmo local, obteve-se 19 questionários,
ou 6,53%; esse mesmo percentual para o período de 16 a 20 anos.
Nove pessoas, 3,09% estão de 21 até 25 anos no mesmo local de
trabalho. 11 pessoas, ou 3,78% atuam de 26 a mais de 30 anos
no mesmo local de trabalho. 14 pessoas ou 4,83% deixaram essa
questão em branco. Ao agrupar o tempo de trabalho de até um ano
com o período de um até cinco anos, obtém-se 160 respondentes,
o que totaliza 54,98% das entrevistadas, que estão no início da
carreira, pois trabalham no mesmo local no período de até cinco
anos, o que revela que são profissionais que estão construindo as
suas carreiras e mais sujeitas à rotatividade no trabalho.
Quanto ao número de vínculos empregatícios 190 respondentes ou
65% declararam ter apenas um vínculo; 20% ou 59 pessoas têm dois
vínculos de trabalho; Sete pessoas ou 2,4% têm três vínculos. Uma
pessoa tem quatro vínculos; uma tem cinco vínculos. Ao somar o
total de mais de um vínculo de trabalho, obtém-se 68 respondentes
ou 23,36% do total das entrevistadas que trabalham em mais de um
local. 11% ou 33 respondentes não responderam essa questão.
Do total de23,36% (68 respondentes) que afirmaram trabalhar em
mais de um local de trabalho, 60,29% ou 41 respondentes atuam em
Instituições, 27,94% (11 pessoas) trabalham no CREAS, 11,76% (oito
pessoas) trabalham no CRAS, oito pessoas não responderam essa
questão.
66,32% - ou 193 questionários - referem a contratação por meio
de concursos públicos; 17,53%, ou 51 pessoas, fizeram processo

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 367


160
Lourenço, Edvânia.

seletivo, 8,93% ou 26 respondentes afirmaram a contratação por


indicação e 7,22%, ou 21 respondentes, deixaram o campo em
branco, ou seja, não responderam.
Os serviços públicos têm, cada vez mais, transferido a sua gestão
para as entidades privadas, portanto, ainda que públicos a sua
organização e gestão são efetuados a partir dos mecanismos da
gestão privada, sendo a forma de contratação e de assalariamento
determinada por esses mecanismos. Então, está sendo dito que
o corpo de funcionários que atua nos serviços públicos, mas que
estão sob a gestão de organizações privadas, ainda que na lei
essas entidades são descritas sem fins lucrativos, não garante aos
funcionários a proteção que deveria preservar o funcionalismo
público. A respeito dessas entidades é importante ter em mente
que, na realidade, ninguém vai assumir a responsabilidade de gerir
um serviço público sem ganhos, como já afirmado pela Profa. Maria
Valeria Correia (LOURENÇO, 2016b). Além do mais, promove-se
amplo desrespeito aos mecanismos de proteção à administração
pública, dessa forma, ao somar o total que informou ser contratado
por meio de processo seletivo e por indicação obtém-se o total
de 77 respondentes ou 26.46%das contratações das assistentes
sociais, que ocorreram sem concurso público, ferindo a forma de
inserção no trabalho público.
Destaca-se que a privatização da saúde vem ocorrendo,
sistematicamente, por meio de três vias fundamentais, uma dela
é o clássico acesso via consulta particular ou convênios médicos
privados, que se trata da convivência de serviços públicos e
privados; a outra, é a compra que o Estado faz de serviços e
procedimentos no mercado, fortalecendo o mercado. Esse mix
público-privado foi contemplado na Constituição Federal de 1988,
por meio da complementariedade do setor público pelo privado.
Mais recentemente, passou a ocorrer a privatização dos serviços
de saúde por meio do repasse da estrutura física, de funcionários e
financeira para as “[...] entidades parceiras” (BRAVO, 2013).
A partir dos anos de 1990, temos as parcerias, inclusive
a gente diz que é legal, é constitucional, porque a
complementaridade está na Lei Orgânica, só que a
forma que é feita, é ilegal e é inconstitucional, porque,
hoje, a complementaridade está invertida, [...] os

368 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


161
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

procedimentos ambulatoriais, que estão na Média


Complexidade e na Atenção Básica, dependendo da
concepção que você tem de Atenção Básica... estão...
sendo repassados para empresas privadas, ou seja, o
mercado faz no lugar do Estado e o Estado compra.
Uma aluna minha está fazendo uma pesquisa sobre
a nefrologia e ficamos espantadas, ao verificar que o
serviço público na área da nefrologia tem diminuído,
e esse é um dos mais caros, a alta complexidade,
agora, a gente tem visto que também serviços de
diagnose, que eram públicos estão sendo fechados
e o público, cada vez mais, compra os exames do
privado, entendeu? É recurso público, isso é uma
forma de privatização, então, essa é a forma legal,
mas que como montante a complementaridade está
invertida... (Profa. Maria Valéria Correia).
Na CF\1988, o direito universal à saúde foi aprovado, mas também
a sua complementariedade pelo setor privado, pois acreditava-se
que ocorreria a estatização progressiva, a qual acabou empanada
pelo fato de o Estado privilegiar a compra de atendimentos e de
exames no mercado. “Essa opção teve o efeito de tornar o setor
público dependente dos serviços privados” (MENICUCCI, 2006,
p.62). Para a Profa. Maria Valéria Correia, o que está sendo feito
é uma complementariedade invertida, já que o privado passa a ter
supremacia ante o público. O que vai ao encontro da explicação
de Menicucci (2006), que expõe que apesar de o direito universal
à saúde não houve rompimento com o padrão segmentado ou
com o modelo híbrido de assistência à saúde praticado no país,
antes de 1988, na realidade, a autora expõe, que a partir dos anos
de 1990, houve novo estímulo, com a criação de mecanismos
específicos para a regulação do segmento privado e essa dualidade
foi devidamente formalizada.
Assim, em vez de um sistema único de saúde, o que há é um sistema
híbrido, dual que se caracteriza por um lado, pela ampliação da
intervenção estatal na estruturação e oferta de serviços de saúde
públicos; mas de outro lado, se caracteriza também pela ampliação
dos serviços privados, que, em grande medida, tem o subsídio do
Estado, o qual atua ainda na regulação do setor, garantindo a sua
exequibilidade no mercado.

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 369


162
Lourenço, Edvânia.

Além da dualidade do sistema de saúde, a partir dos anos de 1990,


passa-se a ser adotado no setor público, os novos modelos de
gestão, por meio das ditas parcerias-público-privadas (BRASIL,
1995). Ou seja, são entidades terceiras criadas para receber dinheiro
público e gerir serviços e, portanto, introduzir no setor público o
modelo gerencial de gestão.
[...] outra forma de privatização, são os novos
modelos de gestão, que são parcerias escancaradas
com as entidades privadas. Então, por mais que
se diga que não é privatização, porque dizem que
não é... vocês viram a repórter da globo que disse
entidades privadas sem fins lucrativos, ela deu a
ênfase, aí, é muito interessante. Dizem: “não, de jeito
nenhum, é entidade [...], E o que é isso? a gente tem
aquele documento que a gente expõe Contra Fatos
não há Argumentos... que mostra o que eu dizendo...
(Profa. Maria Valéria Correia).
Disseminou-se um discurso que os modelos privados de gestão
são mais rápidos e eficientes na gestão dos equipamentos,
como afirmado pela assistente social de um HU “[...] tem aquele
discurso..., que a Fundação viabiliza exames mais rápidos”. Observa-
se que esse discurso de eficácia e de desburocratização não elimina
o problema de falta de recursos para a saúde e da gestão. Na
verdade, o que se tem é a retirada de regras necessárias para a
administração pública sob o discurso que “[...] é necessário porque
sem isso a gente não poderia viabilizar o tomógrafo novo, que
estava quebrado ou que funcionava uma semana e que quebrava
duas, então, o tomógrafo que veio importado não sei de onde e
custou não sei quanto...” (Assistente Social – HU). Esse é um ponto
extremamente importante, que se deve salientar a respeito do
problema da gestão privada da saúde, que é a imagem que a gestão
privada tem mais agilidade para realizar compras de materiais
e equipamentos necessários ao funcionamento dos serviços, já
que, na ausência de uma adequada compreensão dessa relação,
ocorre a transformação de serviços públicos em mercado público,
ou seja, a compra permanece em profundo mistério, comprou de
quem, por qual valor, nada é informado. Ademais por se tratar de
gestão privada está livre de efetivar licitação para as compras e de
fazer as prestações de conta nos moldes da administração pública.

370 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


163
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

Apesar disso, é bom reforçar o dito pela profissional durante a


entrevista: “[...] então, esse repasse é do SUS para a Fundação que
compra”. É uso de dinheiro público sendo investido sem maiores
transparências.
Observa-se que a criação de formas estratégicas de gestão para
burlar as regras da administração pública representa uma série de
ameaças aos direitos sociais.
Tudo vai se perdendo... se fosse um hospital público
e as pessoas entendessem o quanto que é de fato
um direito, pois, às vezes, até profissionais não tem
essa noção de direito e a população que a gente
atende também não, então, é um trabalho que
temos que construir e o fato de estar sob a gestão
da OS caminha na contramão desse sentido... (Grupo
Focal– HospitalFilantrópico).
[...] os novos modelos de gestão ameaçam os
direitos sociais, por que? As OS, e se você pegar a
Lei 9.6376, que é a Lei das OS de 1998, ela diz que
o serviço público será extinto, e se transformará em
Organização Social, ela fala em extinção, a palavra
na Lei é extinção e isso já se comprova, pois estou
na Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde e
acompanho as coisas no Brasil inteiro... (Profa. Maria
Valéria Correia).
Ainda que alguns direitos estejam atrelados ao contrato de gestão,
não há preocupação em efetivar o direito à saúde, pois como
dito pelas entrevistadas, oferta-se o básico, para cumprir tabela
ou o que está nos contratos. Portanto, sem preocupação com o
fortalecimento do SUS e seus princípios e a garantia dos direitos e
da saúde coletiva.
A Profa. Maria Valéria Correia enfatiza que a partir das Fundações,
engana quem pensa que esse modelo de gestão não precariza
o trabalho ou não destrói direitos, até porque a Fundação pode
passar essa imagem porque ela realiza concursos públicos, mas
a contratação é por meio da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). Na entrevista, ela relata que trabalhador\a(s) de uma
unidade de saúde, que era gerenciada por uma Fundação, estavam

6 Lei Nacional que dispõe sobre a publicização (BRASIL, 1998).

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 371


164
Lourenço, Edvânia.

há três meses sem receber os respectivos salários e ao procurar


pela Secretaria Municipal de Saúde, foram encaminhados de volta
à Fundação, que justificou que pagaria quando quisesse. Então,
esse é um dos exemplos do desmando da gestão privada nos
serviços públicos, por meio das ditas “entidades parceiras”. Além
de total desrespeito às regras criadas para a lisura e transparência
da administração pública fere-se frontalmente os direitos do\a(s)
trabalhador\a(s) e do próprio direito social na sua real significância.
É preciso dizer também que 26.46% das contratações das assistentes
sociais ocorreram sem concurso público para o trabalho no âmbito
do SUS, o que implica na coexistência dos vários tipos de contratos
trabalhistas, mas, para além da precarização do trabalho, as OS,
Fundações e EBSERH promovem ameaças ao direito universal à
saúde.
A ideia que o governo busca passar é que os modelos privados de
gestão resolvem os problemas relativos à falta de trabalhador\a(s)
do setor público e de aquisição de materiais. Contudo, a gestão
ocorre sem maiores debates e discussões com a sociedade e com
o\a(s)trabalhador\a(s) envolvido\a(s). Como resultado, além da
existência de um corpo de funcionário\a(s) com vínculos diferentes,
há também salários e jornada distintos. O que gera uma grande
fragmentação entre o\a(s) trabalhador\a(s) do setor público. Outros
problemas que comparecem se referem à interferência da gestão
dos serviços, com imposições e perseguições aos trabalhador\a(s)
que não se adequam ou que fazem algum questionamento à falta de
transparência dos gastos, das contratações e aos métodos gerencias.
A Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde vem questionando
os processos e denunciando a forma como os modelos privados
usam os recursos públicos, esvaziando o seu sentido e restringindo
os direitos, ao mesmo tempo, que se apropria dos recursos (FRENTE
NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA SAÚDE, 2011).
Quanto a carga horária de trabalho das assistentes sociais na área
da saúde, constatou-se que 61%, ou 178 respondentes, trabalham
seis horas diárias, ou seja, 30 horas semanais e 12,33% atuam 40
horas semanais; 2,74% fazem 20 horas semanais, 10,96% afirmaram
fazer outra carga horária se referindo a 60 ou 45 horas semanais
(em decorrência de mais de um vínculo de trabalho).

372 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


165
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

Embora tenha predominado a jornada de trabalho de 30 horas


semanais, ou seis horas diárias, para as assistentes sociais que
atuam na saúde, verifica-se que os modelos privados de gestão
impõem sérias diferenças para a carga horária de trabalho dentro
de um mesmo serviço, como é o caso do Hospital Filantrópico,o
qual é gerido por uma OS, onde se realizou um grupo focal com
assistentes sociais. Verificou-se que no início da implementação da
legislação federal, de 2010, que estabeleceu a jornada de trabalho
de seis horas diárias para o Serviço Social, ocorreu inúmeras
situações de desrespeito a esse direito e às assistentes sociais.
As assistentes sociais afirmaram que conseguiram fazer as seis
horas diárias a partir da Lei Federal (BRASIL, 2010), mas isso
somente foi possível em decorrência da capacidade de organização
e resistência. Pois diante da redução da carga horária, a primeira
coisa que a OS buscou efetivar foi a redução dos salários.
Com a mudança na carga horaria, tivemos que fazer
uma reunião e foi um período horrível..., não sei
como tivemos energia para suportar as hostilidades,
telefonemas, até coisas bobas como “virar a cara”, os
advogados do Hospital e a diretoria se posicionavam
como um paredão e batiam a mão na mesa. Não
tivemos apoio da equipe multi, porque ela se retraiu,
porque todos esses males que, às vezes, a equipe
multi também passava com processos semelhantes
em tramitação, e as falas eram: “se vocês aceitarem
nós teremos que aceitar”. E nós, em um grupo
de profissionais, buscando força uma na outra,
recorremos ao sindicato, consultando primeiro
um advogado trabalhista que nos apoiou muito, a
fala dele foi muito importante, a participação no
acolhimento..., ficávamos naquela ansiedade e o
Hospital em silêncio, não nos chamava para nada
e o advogado sempre falando para termos calma e
esperar. Até que nos chamaram para uma reunião
com todas nós, foi mais para chover no molhado, para
falar que nós estávamos sendo injustas com as outras
equipes.... (Grupo Focal– HospitalFilantrópico).
Observa-se que as assistentes sociais para acessarem o direito à
jornada de 30 horas semanais no Hospital, sem redução salarial,
foram hostilizadas, pressionadas de tal maneira que elas não sabem

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 373


166
Lourenço, Edvânia.

como conseguiram suportar tamanha pressão. Interessante que


não se tratou de discussões técnicas, mas de uso de mecanismos
que interatuam diretamente no emocional, buscando fragilizá-
las, como informado, a diretoria e o advogado do Hospital não
dirigiam o olhar à elas e durante reuniões batiam na mesa, o que
indica a postura machista e violenta que se impõe sobre a classe
trabalhadora, sobretudo, quando se tratam de trabalhadoras. A
gestão utilizou também da estratégia do silêncio, o que favorece
à ansiedade e ao medo, pois sem saber claramente sobre os
posicionamentos do Hospital, as assistentes sociais não tinham
como se organizar. Ademais, em uma das reuniões mencionadas
pelas entrevistadas, a gestão se valeu ainda do apelo moral como
se as profissionais ao buscarem os seus direitos estivessem sendo
injustas com o\a(s)demais profissionais.
A equipe multiprofissional do referido Hospital apesar de se
solidarizar com o grupo de assistentes sociais, não participou
ou apoiou efetivamente a sua luta pelo direito de fazer 30 horas
semanais, sem redução salarial, conforme a conquista legal da
categoria de Serviço Social em território nacional. As assistentes
sociais informam que a equipe multiprofissional do referido
Hospital verbalizou medo que se as assistentes sociais aceitassem
a redução da jornada de trabalho, seria possível o hospital estender
a redução salarial para todas as profissões, apesar da consciência
que a intensificação do trabalho e o possível rebaixamento salarial
seria estendido para outras profissões, a equipe multiprofissional
não atuou em conjunto.
Foi um período horrível, nós ficamos recebendo um
salário menor durante seis meses, não me recordo
sobre a porcentagem que reduziu, e isto afetou
a nossa vida particular, nós vivemos momentos
difíceis e, ainda, tínhamos que atender os mesmos
indicadores, nós tínhamos que atender os usuários
e a nossa demanda não é fácil, temos atendimentos
muito particularizados e difíceis, e nós tivemos que
segurar a onda e nós conseguimos. Desta forma,
o outro passo foi pedir para o sindicato contatar o
Ministério do Trabalho... e enviaram um email para
diretoria do hospital, que seria necessário uma visita
aqui para ser descrito no processo de negociação e,
aí, responderam que os salários foram mantidos, que

374 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


167
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

iriam voltar o salário e pagariam as perdas anteriores.


Então, voltou e, hoje, a gente está normal e muita
gente saiu do hospital e amenizou os tratamentos que
eram hostis .... (Grupo Focal– HospitalFilantrópico).
As assistentes sociais do referido hospital foram muito unidas e
não deixaram se intimidar pelas ameaças e todo tipo de pressão
feita pelos gestores para o aceite do rebaixamento salarial em
decorrência da redução da carga horária de oito para seis horas
diárias.
Na realidade, a atual gestão do trabalho dissemina o individualismo,
fato que favorece muito às empresas. Mas isso não é tarefa fácil,
na verdade, a organização política é muito complicada, porque
a classe trabalhadora, independente se realiza trabalho simples
ou trabalho complexo, tem uma dependência econômica com o
empregador, daí que há o medo de perder o emprego, o salário e
de manter a vida, ainda mais em contexto de desemprego.
Quanto ao salário 21%, ou 60 respondentes, afirmaram receber de
dois a três salários mínimos. Esse mesmo percentual especificou
“outros” sem informar qual valor se trata. 16%, ou 47 respondentes,
disseram receber de três a quatro salários mínimos. Mas 15%, ou
43 respondentes, afirmaram receber até dois salários mínimos. 11%
[33 respondentes] informaram receber de quatro a cinco salários
mínimos, sendo que esse mesmo percentual também foi indicado
para o grupo de cinco a seis salários mínimos. 5% [15 questionários]
deixaram essa questão em branco.
Interessante observar que 15% das respondentes recebem até
dois salários mínimos, ou seja, de R$937,00 até R$1.874,00. 16%
declararam receber entre R$2.800,00 (Dois mil e oitocentos reais)
até R$3.748,00 (três mil setecentos e quarenta e oito reais), ou
seja, de três a quatro salários mínimos. Ao somar total de pessoas
que indicaram receber de dois a quatro salários mínimos, ou de
R$1.874,00 até R$3.748,00, obtém-se o total de 107 questionários
ou 36,76%.
36% disseram receber até R$3.748,00, pode-se dizer que as
assistentes sociais ganham em média até quatro salários mínimos
nos serviços de saúde, o que é considerado um salário mediano,
quando relacionado ao mínimo oficial, mas, segundo,o Dieese o

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 375


168
Lourenço, Edvânia.

salário mínimo necessário deveria ser no valor de R$3.810,00 (três


mil, oitocentos e dez reais).
Na verdade, qualquer concurso hoje no Hospital das
Clínicas, o salário pode ser um pouquinho maior por
conta do prêmio incentivo, porque se você tirar o
prêmio incentivo, o salário cai, cai muito, acho que
não dá R$1.100,00(Um mil e cem reais) inicial. Você vê
eu entrei no hospital ganhando só salário do Estado
registrado na carteira, entrei ganhando 900 reais, há
doze anos e, hoje, é o que R$1.300,00 bruto, sem o
prêmio incentivo (Assistente Social – HU).
Ao analisar a proporção dos salários se comparado com o restante
da classe trabalhadora poder-se-ia dizer, apressadamente, que
se tratam de salários altos, tendo em vista o valor do mínimo no
país. Mas, antes de se pensar no salário é necessário pensar no
investimento feito pelas profissionais, na formação de graduação
(ainda que nos últimos anos essa tem sofrido enorme precarização)
e pós-graduada, no trabalho que realizam, a lida cotidiana com o
sofrimento e demandas muito particulares, que exercem enorme
pressão emocional sobre as profissionais, que nem sempre
conseguem dar os encaminhamentos necessários, visto que
enfrentam inúmeros limites para o atendimento e resolutividade
às situações apresentadas. Além disso, a recompensa financeira,
nem sempre é compatível, com formação continuada, com o
acesso a atividades culturais e de lazer, impactando negativamente
o trabalho e a sócio reprodução da vida.
Verifica-se ampla heterogeneidade nos valores percebidos entre
as profissionais, as entrevistas auxiliam na compreensão desse
processo. Os salários nas Secretarias Municipais de Saúde seguem
os valores estipulados e construídos naquele nível, em torno de
R$2.600,00 (Dois mil e seiscentos reais), demonstrando valores um
pouco mais altos que os salários pagos pelo Hospital Filantrópico
e HU, os quais apresentaram valores muito baixos, em torno de
R$1.400,00, ausente os benefícios e incentivos mencionados pelas
assistente sociais.
Mais uma vez é preciso destacar as diferenças salariais promovidas
pela distinção de vínculos, sobretudo, por meio dos modelos
privados de gestão. Observa-se que o Estado rebaixa ao máximo os

376 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


169
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

salários dos seus funcionários, daí que as OS, Fundações, EBSERH


ao contratarem acabam oferecendo salários um pouco mais altos
que o valor pago pelo Estado. Fator que promove falsa imagem da
gestão privada como melhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, verificou-se que há uma contradição pulsante que
revela um saber-fazer profissional do Serviço Social nos serviços de
saúde, que visa estreitar o conhecimento dos problemas de saúde
e sociais, ora categorizando-os em patologias, ora em hierarquias
sociais, tanto um como outro isento dos antagonismos de classe.
Em consequência, os efeitos colaterais desse deslocamento das
questões mais estruturais para o indivíduo, que adoece e morre ou
que restabelece a sua condição de saúde, tornam as ações mais
voltadas para o acionamento de mecanismos capazes de garantir
o acesso ao direito à saúde, sem dúvida de extrema importância,
contudo, reduz esse direito a um consumo de medicamentos ou
outros insumos necessários ao mínimo tratamento e ou melhoria
da qualidade de vida diante de alguma doença e ou limitação
provocada por esta, torna a prática na saúde necessária em termos
de assistência, mas limitadora em termos mais gerais.
Constatou-se que os serviços de saúde vêm sendo transferidos
para a gestão privada e isso cria uma fragmentação muito grande
entre o\a(s) trabalhador\a(s), que têm condições contratuais,
salariais e jornadas diferentes, o que afeta as suas condições de
trabalho e sua organização política. Observa-se que 26.46% das
assistentes sociais foram contratadas sem passar pelo crivo do
concurso público, o que gera instabilidade e insegurança, situando-
as na corda bamba das relações políticas, tanto para a contratação
quanto para a demissão.
O que está ocorrendo é a substituição de trabalhador\a(s) público\
a(s) e concursados\as por trabalhador\a(s) terceirizado\a(s) e
celetistas. A estrutura institucional é a mesma, mas os modelos
privados de gestão têm viabilizado o uso dos serviços públicos à
iniciativa privada, por meio da incorporação de leitos destinados
a convênios particulares e atendimentos privados, assim, essas
empresas não precisaram investir na estrutura e passam a utilizá-las
comercialmente. A estrutura dos Hospitais Universitários foi feita ao

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 377


170
Lourenço, Edvânia.

longo de muitos anos com o investimento público e, agora, esses


passam a ser geridos por profissionais vinculados à inciativa privada
sem qualquer conhecimento e defesa do SUS (LOURENÇO, 2016b).
É importante deixar claro que a gestão privada da saúde não
significa ampliação dos serviços, embora seja bastante comum a
cobrança pelo aumento do número de atendimento, o que está
ocorrendo é apenas a mudança de gestão, com esvaziamento do
que é público e do sentido do direito.
São várias questões que foram constatadas neste estudo, por
exemplo, o uso de termos genéricos para a contratação de
assistentes sociais, assim, na saúde utiliza-se o termo Agente
Técnico em Saúde, que pode englobar inúmeras profissões, o que
permite maior autonomia para o empregador em pagar baixos
salários e exigir a jornada de 40 horas semanais. Para as assistentes
sociais é uma grande perda, já que a conquista de 30 horas
semanais foi difícil de se conseguir e, ainda hoje, grande parte das
profissionais não conseguiram acessar esse direito. Como também
ainda não se conseguiu a aprovação da lei que garanta o piso
salarial para as assistentes sociais, sendo essa uma reinvindicação
que pede o salário de R$3.700,00 (três mil e setecentos reais).
Durante as entrevistas, verificou-se que a Fundação remunera um
pouco melhor que o Estado, assim, abre a possibilidade para que
a gestão privada dos serviços públicos envolva o\a(s) trabalhador\
a(s) numa miríade de relações bastante fragmentadas e distintas.
São formas de contratação diferentes, carga horária diferente e
salário também diferenciado. Mas, no depoimento da assistente
social do HU, há uma questão crucial que se quer destacar:
trata-se da naturalização do caráter privado no interior do que é
público, inclusive indicando a separação de uma ala do hospital ao
atendimento privado, ela indica a existência de uma porta e vidro,
para essa separação, mas o atendimento particular está nas várias
clinicas e nos vários andares do HU, o que gera grande confusão.
Então, acredita-se que o caráter do que é público vai se perdendo,
além de se criar uma grande diferença no tratamento dentro de
uma mesma instituição.
A Profa Maria Valéria Correia chama a atenção para o fato que o
Serviço Social ainda tem mantido determinada distância do debate

378 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


171
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

da privatização da saúde, ou seja, da gestão privada nos serviços


públicos, o que é importante para a compreensão dos seus vínculos
de trabalho, mas sobre tudo, para a defesa dos direitos sociais e do
SUS de qualidade e 100% estatal.
REFERÊNCIAS
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afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.
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2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada
pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis n°s
6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e
8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às
novas relações de trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13467.htm>. Acesso em:
30 set.2017a.
BRASIL. Presidencia da República. Lei nº 13.429, de 31 de março de
2017. Altera dispositivos da Lei n° 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas
e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho
na empresa de prestação de serviços a terceiros. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/
L13429.htm>. Acesso em: 30 set. 2017b.
BRASIL. Congresso. Câmaras dos Deputados. Proposta de
Emenda à Constituição n° 55, de 2016 - PEC do Teto dos Gastos
Públicos. Brasília (DF), 2016. Disponível em: <https://www25.
senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337?o=c>.
Acesso em: 30 set. 2017.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. PEC 87/2015:
Proposta de Emenda à Constituição. Brasília (DF), 2015. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitac
ao?idProposicao=1567815>. Acesso em: 15 set. 2017.
BRASIL. Presidência da República. Lei no. 12.317. de 26 de agosto
de 2010. Acrescenta dispositivo à Lei no. 8.662, de 7 de julho
de 1993, para dispor sobre a duração do trabalho do Assistente

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 379


172
Lourenço, Edvânia.

Social. Brasília (DF), 2010. Disponível em: <http://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12317.htm>. Acesso em: 12
jun. 2017.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.637, de 15 de maio de
1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações
sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a
extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de
suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9637.
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BRASIL. Presidência da República. Plano Diretor da Reforma
do Aparelho do Brasília: DF. 1995. Disponível em: <http://
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Documento “Contra Fatos não há argumentos que sustentam
as Organizações Sociais no Brasil”. In: BRAVO; MENEZES (Orgs).

380 Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.


173
TRABALHO E SAÚDE DAS ASSISTENTES SOCIAIS DA ÁREA DA SAÚDE

Cadernos de Saúde: saúde na atualidade: por um sistema único


estatal, universal, gratuito e de qualidade. 2011. Rio de Janeiro:
UERJ, Rede Sirius, 2011. Disponível em: <https://docs.google.com/
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LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza (Org.). Saúde do/a
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no mundo do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017. 381


174
TRABALHO PROFISSIONAL DOS ASSISTENTES SOCIAIS NA
SAÚDE NA CONTRARREFORMA ESTATAL

PROFESSIONAL WORK OF SOCIAL WORKERS IN HEALTH POLICY IN THE


COUNTER-REFORMATION OF THE STATE

Gleiciane Viana Gomes1


Liana Brito2

RESUMO
Este estudo visa analisar o trabalho profissional3 do Serviço Social na política
de saúde, em uma instituição pública no município de Fortaleza (CE), no con-
texto da contrarreforma do Estado. Observa-se o processo de precarização
da política de saúde, posto pela tendência de minimização dos gastos públi-
cos na esfera social, que se manifesta inclusive nas condições de trabalho
e na ausência de concursos públicos, além da ampliação dos trabalhadores
terceirizados. Para a consecução do objetivo apresentado, foi realizada uma
pesquisa de campo em uma instituição de saúde pública, de caráter quanti-
qualitativo, utilizando a entrevista estruturada e a observação simples como
técnicas de coleta de dados e tendo os assistentes sociais da referida insti-
tuição como sujeitos pesquisados, perfazendo uma amostra de seis entrevis-
tados. O Serviço Social na Instituição analisada, como parte desse contexto,

1 Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Esta-


dual do Ceará (UECE) e assistente social da Universidade Federal do Ceará (UFC).
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e docente ad-
junta da Universidade Estadual do Ceará (UECE) dos cursos de Serviço Social (ba-
charelado e mestrado acadêmico).
3 Trabalho profissional no sentido adotado por Iamamoto (2011), entendendo o
Serviço Social como profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 335


175
sofre nos últimos anos um processo de desgaste de sua capacidade de dar
respostas às demandas postas no cotidiano hospitalar, como parte das re-
frações da questão social, aprofundadas no contexto da crise estrutural do
capital. Apesar disso, o estudo aponta que, no quadro de minimização do Es-
tado na saúde, os profissionais de Serviço Social conseguem desenvolver um
trabalho profissional condizente com os princípios do Código de Ética e da
Lei de Regulamentação da Profissão. Fica perceptível o compromisso ético-
-político em garantir, legitimar e promover os direitos dos usuários do SUS no
espaço estudado, utilizando-se de um instrumental técnico qualificado que
embasa seu trabalho, inclusive lutando contra os processos de privatização
que vêm se dando nos espaços das instituições públicas brasileiros.

Palavras-chave: Política de Saúde. Sistema Único de Saúde. Contrarreforma


do Estado. Trabalho Profissional do Serviço Social.

ABSTRACT
This study examines the professional work of social work in health policy in a
public institution in Fortaleza, state of Ceará, having the counter-reformation
of the State on healthcare system as context. It is observed the healthcare
policy decline, caused by the decrease of public investments on the social
field, which is expressed by the working conditions, the absence of public
examinations and the increase of outsourced workers. For reaching the pre-
sented objective, a quantitative and qualitative field research took place in a
public healthcare institution, using structured interview and simple observa-
tion as data gathering techniques and having the institution’s social workers
as subject, making a sample of six respondents. The Social Work of the insti-
tution analyzed, as part in this context, suffers a failing process in its capacity
of giving answers to the demands of daily hospital routine in recent years, as
one of the expressions of the social issue, worsened in the capital’s structural
crisis. Nevertheless, the research points that in the minimization of the State
on healthcare the social workers can develop a professional work according
to the principles of the Ethical Code and the Professional Regulatory Law. It
is then noticeable the ethical-political commitment to secure, preserve and
promote the SUS beneficiaries’ rights in the studied space, using qualified
technical instruments which bases its work, and also fighting privatization
processes that are happening among the Brazilian public institutions.

Keywords: Health Policy. Single Health System. Counter-reformation of the


State. Professional Work of Social Work.

Submetido: 05/06/2015. Aceito: 26/11/2015.

Introdução
Com a Constituição Federal de 1988 foi estabelecida a criação
do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS desponta pautado nos princí-
pios básicos da Reforma Sanitária: equidade, universalidade, integrali-
dade e participação social. É nesta Carta Magna que se estabelece no

336 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

176
Brasil pela primeira vez o conceito ampliado de saúde4 e o de seguri-
dade social5. Com isso, têm-se a possibilidade de ampliação de direitos
sociais e de garantia de serviços no âmbito das políticas sociais. No
entanto, nesse mesmo contexto, na década de 1990, observou-se um
movimento em sentido contrário que o governo federal designa de
Reforma Estatal, que para Behring e Boschetti (2008) representa de
fato uma contrarreforma.
Para as autoras, as reformas do Estado ocorridas na sociedade
burguesa são aquelas que historicamente estão vinculadas ao avanço
progressivo nas conquistas sociais e na ampliação dos direitos. O que
se tem no Brasil, a partir da década de 1990, é um retrocesso no cam-
po dos direitos. Portanto, Behring e Boschetti (2008) utilizam o termo
contrarreforma do Estado para designar esse processo de redirecio-
namento das políticas sociais com vistas à adequação econômica em
contexto de crise do capital na década de 1990 e início do século XXI
no Brasil.
Esta contrarreforma trata-se de um processo de retração dos
gastos públicos das políticas sociais, justificado e posto em prática
através dos ajustes neoliberais. Tais ajustes estavam orquestrados
com as exigências dos organismos internacionais, como o Banco Mun-
dial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), presentes no Consenso
de Washington (IAMAMOTO, 2008), com a preocupação central de
criar mecanismos facilitadores do processo de reprodução e de acu-
mulação ampliada do capital. No centro de tais orientações, têm-se
como principais características: a privatização, a descentralização e a
focalização das políticas sociais. Esses princípios de imediato atingiam
as conquistas legais estabelecidas no movimento amplo da sociedade
brasileira envolvida na elaboração e na aprovação da Constituição de
1988. Dessa forma, percebe-se o movimento imprimindo um retroces-
so ante as conquistas sociais recém-criadas no país.
A atual configuração da saúde neste contexto no país é prota-
gonizada pelo confronto de dois projetos: o Projeto da Reforma Sani-
tária, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) de cunho universa-

4 Este conceito concebe a saúde não apenas como ausência de doenças, mas tam-
bém como resultante de um contexto sanitário, social, político e econômico.
5 A seguridade social é composta pelo tripé: saúde, previdência e assistência so-
cial. A saúde é direito de todos e dever do Estado. A previdência social é para quem
a contribui. A assistência social é para quem dela necessita.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 337


177
lista, e o Projeto de Saúde Privatista ou Articulado ao Mercado, tendo
como principal ideologia a política neoliberal. Para Lessa (2003 apud
FONSECA, 2010, p.24), este confronto posto pelo movimento desses
dois projetos significa para a categoria profissional de Serviço Social
um duplo processo. Por um lado, ele representa “[...] uma expansão
do mercado de trabalho para os assistentes sociais na esfera da saúde
pública, decorrente, principalmente do processo de municipalização”
e do “aumento de postos de trabalho no SUS”; por outro lado, a mu-
nicipalização da política de saúde não garante condições mínimas de
implementação conforme a legislação, resultando num processo de
“[...] precarização do trabalho no que se refere às relações trabalhis-
tas e reduções salariais”.
Por conseguinte, o Serviço Social como uma das profissões
partícipes das políticas sociais, consequentemente da política de saú-
de, está intrinsecamente relacionado a esse contexto, sofrendo suas
influências. Conforme Fonseca (2010, p.24):
O assistente social, assim como os demais profissionais
que atuam nessa área, realiza o seu fazer profissional
em condições difíceis, colocando-se como mediadores
entre uma população miserabilizada demandante destes
serviços públicos e o descaso das elites dominantes.

Para a realização desta pesquisa é fundamental o arcabouço


legal do Serviço Social, composto pelas Novas Diretrizes Curriculares
(1996), pelo Código de Ética Profissional (1993) e pela Lei de Regula-
mentação da Profissão (1993). Esta base legal é essencial para a com-
preensão da direção crítica da profissão sustentada no projeto ético-
-político profissional6 do Serviço Social e materializada na instituição
investigada. Sobre esse arcabouço legal, Sarreta e Bertani (2011) infor-
mam que ele está em consonância com os princípios da Reforma Sa-

6 Conforme Paulo Netto (1999), os projetos profissionais apresentam a autoima-


gem de uma profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam
e priorizam seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e
institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos
profissionais e estabelecem as bases de suas relações com os usuários de seus ser-
viços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais privadas
e públicas. Por sua vez, o projeto ético-político do Serviço Social tem sua estrutura
flexível, tem em seu núcleo central o reconhecimento da liberdade como valor cen-
tral; propõe a construção de uma nova ordem social, sem exploração/dominação de
classe; posiciona-se a favor da equidade, da justiça social e da cidadania; dá ênfase
na formação acadêmica qualificada, visando à qualidade dos serviços prestados à
população.

338 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

178
nitária na busca pela efetivação da universalidade do acesso à saúde.
Iamamoto (2008) expressa que a prática profissional busca
fundamentar-se em três dimensões: a teórico-metodológica, a técni-
co-operativa e a ético-política, que se inter-relacionam e complemen-
tam o trabalho profissional no cotidiano das instituições.
Com isso, a presente pesquisa tem como objetivo analisar o
trabalho profissional do Serviço Social em uma instituição de saúde
em Fortaleza (CE), no contexto da contrarreforma do Estado. Para
isso, busca-se delimitar a função do Serviço Social na política de saúde
no contexto de minimização do Estado, identificar e analisar a estru-
tura do Setor de Serviço Social e o seu cotidiano do ponto de vista
de sua instrumentalidade, analisando os limites e as possibilidades do
Serviço Social nesta instituição em interlocução com os profissionais
do setor, a seguir, detalharemos o percurso metodológico para ob-
tenção desses objetivos.
1 Percurso metodológico
Os objetivos acima apresentados conduzem à realização de
uma pesquisa7 de caráter quanti-qualitativo, de tipo bibliográfico e
de campo. Para tanto, tomamos como técnicas de coleta de dados: a
observação simples, com suporte no diário de campo, e a entrevista
estruturada, com utilização de aparelho de gravação de áudio.
A equipe de Serviço Social desta instituição é composta por
doze assistentes sociais. O processo de escolha dos entrevistados pro-
curou englobar assistentes sociais com regime estatutário, caracteri-
zado pelo vínculo empregatício efetivo com a instituição; com vínculo
pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), através da contratação

7 Trata-se, esta pesquisa de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de gradua-


ção em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). A pesquisa de
campo foi realizada nos meses de maio e junho de 2011. Por fim, desenvolveu-se
com base nos pressupostos éticos outorgados pela Resolução nº 196/96 do Con-
selho Nacional de Saúde, sendo submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) da instituição, sob o protocolo de número 35/11. A participação dos
sujeitos é consolidada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE). Neste Termo, estão expressas as condições para a sua partici-
pação, constando objetivos e garantias de sigilo de identidade dos sujeitos. Para
tanto, os assistentes sociais entrevistados são nomeados numericamente de um a
seis. A devolutiva dos dados da pesquisa aos sujeitos pesquisados se apresentaram
de dois modos, a saber: foram entregues duas cópias impressas do TCC – uma para
o CEP da instituição e outra para a equipe de Serviço Social do locus pesquisado.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 339


179
por uma fundação; e residentes. Também se busca fazer uma mescla
entre profissionais que têm mais tempo de serviço na instituição e
profissionais com menos tempo.
A análise e interpretação dos dados coletados fizeram-se por
meio da técnica Análise de Conteúdo de Bardin, explorada por Minayo
(2007). Para a referida autora, essa técnica costuma apresentar três
etapas: pré-análise (organização do material); exploração do material
(codificação); e tratamento dos resultados, inferência e interpretação
(categorização). Por essa análise, observamos quatro eixos centrais
para discussão: trabalho profissional do Serviço Social na saúde, es-
trutura do setor de Serviço Social, competências para uma prática
profissional crítica e ações profissionais do assistente social na saúde.
2 Serviço Social na saúde
Concomitantemente às políticas de saúde implantadas em
1930, há o surgimento do Serviço Social no Brasil como profissão inse-
rida na divisão social e técnica do trabalho (IAMAMOTO, 2011). No âm-
bito hospitalar no Brasil, conforme Lessa (2003), o primeiro hospital
a incorporar assistentes sociais foi o Hospital das Clínicas da Faculda-
de de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1943. Nesta
conjuntura, o assistente social concentra-se no âmbito da assistência
médica hospitalar, com vistas a ser um elo entre o serviço prestado,
que é excludente e seletivo, e o usuário.
Nesse período, constatou-se que o assistente social tem uma
condição paramédica, subsidiária aos ditames do saber e do trabalho
médico, institucionalizado através da cooperação vertical na saúde,
em que a dinâmica do trabalho coletivo organiza-se de forma hierár-
quica (LESSA, 2003). O Serviço Social cresce, por conseguinte, “quan-
titativamente como profissão inserida no núcleo de execução do mo-
delo assistencial, individual, curativo e hospitalocêntrico de saúde”,
Mendes (1994 apud LESSA, 2003, p. 68), mantendo esse mesmo dire-
cionamento em meio à ditadura militar (KRÜGER, 2010).
No atual contexto da política de saúde no Brasil, percebe-se o
confronto entre uma proposta de saúde universal, expressa pelo SUS,
e outra de cunho neoliberal. É neste contexto que se insere o Servi-
ço Social, como profissão partícipe dessa política, reconhecido como
uma das treze categorias da saúde de acordo com a Resolução nº 218,
de 6/3/1997, além da Resolução do CFESS nº 383, de 29/3/1999, junto

340 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

180
a biólogos, profissionais de Educação Física, enfermeiros, farmacêuti-
cos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários,
nutricionistas, odontólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais.
O assistente social está inserido nesse processo coletivo do tra-
balho nos serviços de saúde, sua utilidade, então, se dá pela dinâmica
de cooperação entre os seus diversos profissionais, constituindo-se,
de acordo com Costa (2000), o caráter multidisciplinar do trabalho.
O que se procura adotar no SUS é a cooperação horizontal em detri-
mento da vertical, utilizada nos modelos de saúde anteriores ao SUS,
em que há uma hierarquização das categorias profissionais de saúde.
3 Trabalho profissional do Serviço Social na saúde
A instituição de saúde analisada, situada no município de For-
taleza, é parte integrante de uma das universidades públicas. Possui
tanto profissionais com vínculo estatutário, quanto profissionais vin-
culados a uma fundação, com base no regime da Consolidação das
Leis Trabalhistas (CLT).
Como uma instituição de assistência à saúde, especificamente
da saúde da mulher, e vinculada ao ensino superior, está ligada, res-
pectivamente, ao Ministério da Saúde (MS) e ao Ministério da Educa-
ção (MEC). Por isso, possui como principais áreas de atuação as de
ensino, pesquisa e assistência médica ginecológica e obstétrica. Seu
público-usuário é, preferencialmente, pacientes com gravidez de alto
risco, como: adolescentes, mulheres de idade mais avançada e mu-
lheres com complicações na gravidez (pressão alta, problemas cardía-
cos, respiratórios, dentre outros).
O Setor de Serviço Social possui doze assistentes sociais, que
trabalham 30 horas semanais8, sendo que oito são servidores efeti-
vos, dois são funcionários da fundação e dois estão cursando a Re-
sidência Integrada Multiprofissional em Atenção Hospitalar à Saúde
(Resmulti)9.

8 Conforme o Projeto de Lei – PL nº 12.317, que fixa a carga horária máxima dos
assistentes sociais em 30 horas semanais, aprovado em agosto de 2010, no final do
governo Lula.
9 A Resmulti é um programa de residência, com bolsas de estudo disponibilizadas
pelo MEC. No período da pesquisa, a instituição contava com dezesseis estudantes-
-residentes: dois assistentes sociais, seis enfermeiros, dois farmacêuticos, dois fisio-
terapeutas, dois nutricionistas e dois psicólogos. Cabe salientar que esta residência

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 341


181
Num universo de doze profissionais, identifica-se o seguinte
perfil:
Tabela 1 – Perfil dos assistentes sociais na Instituição

Trabalha em outra
Ordem de Tempo de Serviço Tipo de Vínculo
instituição? Se sim,
Profissionais na Instituição Empregatício
onde?

1 25 anos Servidor Público ------

Contratado, via Prefeitura Municipal –


2 25 anos
Fundação num Hospital

3 24 anos Servidor Público -----


Prefeitura Municipal –
4 23 anos Servidor Público
num Hospital
5 22 anos Servidor Público NUTEP
Contratado, via Prefeitura Municipal–
6 22 anos
Fundação num Hospital
7 20 anos Servidor Público -----
8 7 anos Servidor Público -----
9 7 anos Servidor Público -----
Prefeitura Municipal -
10 7 anos Servidor Público
num CAPS
11 1 ano e 5 meses Residente – MEC -----
12 5 meses Residente – MEC -----
Fonte: Dados coletados pela própria pesquisadora.

Deste perfil, temos:


1) Oito assistentes sociais são efetivos e estáveis, desse gru-
po, cinco possuem 20 ou mais anos de trabalho, e três estão com 7
anos de instituição, trabalhando também em outras instituições pú-
blicas municipais: em um Hospital, no Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) e no Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (NUTEP).
Desse grupo de três, identificam-se outros vínculos trabalhistas, dois
são servidores estatutários de Prefeituras Municipais e um tem con-
trato de trabalho regido pela CLT.

é de duração de dois anos.

342 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

182
2) Dos dois profissionais com mais de 20 anos na Instituição e
contratados por uma Fundação conveniada, identificamos que traba-
lham em outras Instituições como servidores efetivos de Prefeituras
Municipais, lotados em Hospitais públicos.
Deste quadro exposto, em relação aos profissionais da Funda-
ção conveniada ao Hospital, embora não sejam efetivos, pode-se afir-
mar que eles têm certa estabilidade, pois ambos estão há mais de 20
anos nesse trabalho. Trata-se de uma realidade bastante diferenciada
da tendência posta atualmente, marcada pela rotatividade tão pre-
sente na configuração do mercado de trabalho (IAMAMOTO, 2008).
Por outro lado, pode-se também afirmar que a falta de novas contra-
tações por parte da Fundação no setor de Serviço Social que, embo-
ra apresente aumento da sua demanda, em duas décadas este setor
amplia o quadro em três profissionais, todos com vínculo estatutário,
conforme o quadro expresso.
4 Estrutura do Setor de Serviço Social na instituição
O Serviço Social, objeto da pesquisa, foi criado apenas em
1985, embora a Instituição esteja em atividade desde 1965. Os assis-
tentes sociais, aos poucos, vão consolidando o setor na instituição,
inicialmente realizando atividades em horário comercial (8h - 17h); po-
rém, para responder às demandas, passam a se estruturar em regime
de 24 horas por dia, durante toda a semana. No final dos anos de 1990,
o setor perdeu sete assistentes sociais, vinculadas à Fundação, com
contratos via CLT. Com esse corte de pessoal fica difícil garantir a co-
bertura dos plantões. Por este motivo, o setor passa, então, a realizar
suas atividades apenas no período diurno (7h - 19h). Isso representa,
de fato, o processo de precarização que passam a viver desde então.
Em 2011, esse contexto ainda persiste. Percebe-se um retrocesso para
a categoria profissional, representado pela perda de espaço sócio-
ocupacional.
A equipe do Serviço Social atua em diversos tipos de atendi-
mentos sociais à população usuária, nos seguintes locais: nas unida-
des de internamento - observação obstétrica, puerpério, oncologia,
ginecologia e mastologia; na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI)
-Materna e na Neonatologia; nos ambulatórios – Planejamento fami-
liar, Serviço de adolescente e Projeto Nascer, bem como na emergên-
cia e na sala de parto.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 343


183
Em relação às condições de infraestrutura, considerando toda
a complexidade de atendimento que o Serviço Social realiza, observa-
se que o setor dispõe de uma sala específica e ampla com a estrutura
básica necessária. No entanto, uma questão abordada por um Assis-
tente Social (AS-2) é a falta de um espaço reservado que preserve o
sigilo nos momentos de atendimento individual, conforme Resolução
CFESS nº 493/2006, de 21 de agosto de 2006. Essa Resolução é clara
quanto às condições éticas e técnicas do exercício profissional da ca-
tegoria e em seus artigos 2º e 3º expõe que:
Art. 2º - O local de atendimento destinado ao assistente
social, deve ser dotado de espaço suficiente, para abor-
dagens individuais ou coletivas, conforme as característi-
cas dos serviços prestados, e deve possuir e garantir as
seguintes características físicas: a- iluminação adequada
[...]; b- recursos que garantam a privacidade do usuário
[...]; c- ventilação adequada [...]; d- espaço adequado para
colocação de arquivos para a adequada guarda de materi-
al técnico de caráter reservado (CFESS, 2006).

Art. 3º - O atendimento efetuado pelo assistente social


deve ser feito com portas fechadas, de forma a garantir o
sigilo (CFESS, 2006).

O Código de Ética de 1993 também dispõe sobre o sigilo pro-


fissional, no Capítulo V - Do Sigilo Profissional, abrangendo do artigo
15 ao 18, que versa sobre o atendimento mais reservado. O Assistente
Social (AS-4) fala que a sala da Ouvidoria, que se localiza ao lado da
sala do Serviço Social, fica disponível para um atendimento mais sigi-
loso, quando necessário. No entanto, essa não é a situação ideal, que
permita autonomia e liberdade para a realização de atendimentos
com privacidade aos usuários e à sua família.
Nas entrevistas, indagando sobre os atendimentos realizados
pelo Serviço Social, os assistentes sociais entrevistados colocam que
devido a um quadro de profissionais reduzido isso reflete sensivel-
mente na qualidade dos serviços prestados.
Aqui no Serviço Social, por exemplo, têm pouquíssimos
profissionais, e assim, o trabalho acaba sendo precarizado
de certa forma, pela falta de profissionais, porque não con-
seguimos dar conta de todas as demandas que são apresen-
tadas para a nossa categoria, às vezes, por falta de profis-
sional, por falta de materiais, então é bem difícil. Olha, eu
acho a equipe muito mínima para dar conta de toda a de-

344 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

184
manda (AS-3).

Para tentar minimizar a falta de profissionais, por vezes, o


auxiliar administrativo, que possui graduação em Serviço Social, faz
atendimentos de competência do assistente social, caracterizando a
existência do trabalhador polivalente ou multifuncional.
O trabalhador polivalente é:
[...] chamado a exercer várias funções, no mesmo tempo
de trabalho e com o mesmo salário, como consequência
do enxugamento do quadro de pessoal das empresas. O
trabalhador deixa de ser um trabalhador ‘especializado’
[...] sendo solicitado a exercer múltiplas tarefas, até en-
tão não necessariamente envolvidas em suas tradicionais
atribuições (IAMAMOTO, 2008, p.32).

Outro elemento que merece destaque, revelando a realidade


de precarização do Serviço Social no Hospital, afetando a atuação
profissional, é a presença de diversos tipos de vínculos empregatícios.
Tem-se, por exemplo, que dos doze assistentes sociais, oito são com
regime estatutário, dois com contrato via CLT e dois com bolsa da Re-
sidência disponibilizada pelo MEC. Os dois profissionais com vínculo
com a Fundação contratados via CLT, ganham em média, conforme
suas falas, quatro vezes menos do que os efetivos da Instituição Pú-
blica. Analisando essa realidade, comparando com os dois residentes,
a situação é ainda mais precária, pois os residentes também contam
com uma remuneração superior dos contratados pela Fundação. Além
disso, eles não possuem alguns dos direitos que os efetivos possuem,
como o Adicional por Plantão Hospitalar (APH).10
Explicitado as condições estruturais de infraestrutura e de
trabalho do Serviço Social na Instituição, a seguir serão discutidas as
competências para uma prática crítica do assistente social na saúde,
outro eixo central de discussão da pesquisa.
5 Competências para uma prática profissional crítica
Segundo Iamamoto (2008), para uma prática profissional críti-
ca, o assistente social deve ter domínio de três competências: a teóri-

10 Na Instituição, o valor de um APH corresponde a cerca de um Salário Mínimo


bruto. Para o setor de Serviço Social é oferecido por mês oito APHs, o que corres-
ponde a cada profissional efetivo. Cabe salientar que o APH corresponde a um plan-
tão de 12 horas.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 345


185
co-metodológica, a ético-política e a técnico-operativa.
A competência teórico-metodológica diz respeito ao profissio-
nal visualizar e compreender a dinâmica da sociedade na qual está
inserido assim como a Instituição em que trabalha. Dessa forma, o
desafio é sair da aparência imediata da realidade para adentrar a sua
essência. Observamos essa questão presente nas preocupações dos
profissionais entrevistados, vejamos:
[...] por conta de todos os problemas estruturais, históri-
cos da nossa sociedade, da falta de oportunidades, de edu-
cação, desemprego, do desinteresse realmente de governo,
de política de governo, de políticas públicas, então, assim
eu acho muito difícil trabalhar na saúde nesse contexto
em que vivemos de pouca oportunidade, trabalhamos no
serviço terciário [...], temos um terreno até razoável, mas
sentimos hoje muitos reflexos disso tudo (AS-4).

Ficam evidenciados os limites postos à prática profissional pela


causalidade posta pelo contexto da flexibilização das relações de tra-
balho e da precarização das políticas públicas, o que recai sobre a con-
dição dos usuários que demandam serviços sociais e sobre os próprios
assistentes sociais como trabalhadores assalariados, limitados tam-
bém pelas condições objetivas precarizadas das instituições públicas.
Ambos, usuários e assistentes sociais, vivenciam os desdobramentos
dessa realidade tanto em suas condições de vida e de trabalho.
Krüger (2010, p.142) relata que para a competência teórico-me-
todológica “é imprescindível que a ação profissional esteja sustenta-
da no conhecimento da realidade dos serviços e das necessidades dos
sujeitos para as quais são destinadas”.
É fundamental na competência ético-política que o assistente
social, para ter sua prática baseada em uma direção social, tenha um
posicionamento político diante das questões que aparecem na reali-
dade social, tendo como base as orientações do Código de Ética. Essa
questão foi apontada em várias falas dos entrevistados:
A nossa prática é baseada nos valores do Código de Ética,
está garantindo direitos, respeitando os usuários igual-
mente, aceitando as diferenças. Tem que ir ao encontro do
que o Código preza (AS-1).

A prática do assistente social na saúde é muito difícil, muito


difícil e contraditória, certo?! Porque a nossa atuação aqui,

346 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

186
o público que a gente atende, na verdade, é um público que
geralmente vem de uma classe social desfavorável [...]. En-
tão assim, a nossa categoria aqui enfrenta, para garantir os
direitos dos usuários, desses pacientes, outras questões da
instituição para poder estar garantindo esses direitos. E na
nossa prática a gente procura sempre estar trabalhando, ou
espera trabalhar com o projeto ético-político, de estar le-
gitimando, de estar garantindo, fazendo a articulação com
o nosso Código de Ética, com as Diretrizes Curriculares (AS-
3).

O Código de Ética é a água que a gente bebe todo dia (AS-5).

São os seus princípios que norteiam a prática do assistente


social e possibilitam que possamos desenvolver o trabalho
realmente coerente e voltado para o interesse de seus
usuários (AS-6).

Na competência técnico-operativa, o assistente social tem o


desafio e a possibilidade de criar um conjunto de habilidades técnicas
que fundamentem sua prática perante os usuários e a instituição em-
pregadora, considerando sua inter-relação com as dimensões teórico-
metodológica e ético-política, como unidade na diversidade. Destaca-
se, nessa dimensão, a fala do Assistente Social (AS-5).
Ao longo dos anos a categoria vem aperfeiçoando cada vez
mais essa prática, trazendo realmente suporte de referên-
cia técnico-instrumental, e para isso, eu diria com toda a
tranquilidade de que para toda e qualquer ação de ativi-
dade, o Serviço Social, ele exige o instrumental que baliza
a essa prática.

Na competência técnico-operativa, o Serviço Social conta com


instrumentos diretos ou orais, indiretos ou escritos, que estão presen-
tes no cotidiano profissional. Estes não estão desligados, como an-
teriormente posto, das dimensões ético-política e teórico-metodoló-
gica da instrumentalidade, como exposto por Iamamoto (2004 apud
SOUSA 2008). Com base nisso, os instrumentos orais ou diretos des-
tacados do Serviço Social na Instituição estudada são: a observação
participante, utilizada para (re)construir o instrumental; a entrevista
individual e grupal; a dinâmica de grupo; e a reunião. Os instrumentos
escritos ou indiretos são: as listas dos pacientes internados (incluindo
gestantes, parturientes, recém-nascidos (RN), e mulheres com doen-
ças ginecológicas); e o controle de óbitos e de mães que saíram de
alta hospitalar e deixaram seu RN no berçário.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 347


187
Acrescentando-se a eles, o setor conta com as atas de reunião;
os livros de registro, neles estão as atividades realizadas por assisten-
te social no seu plantão, importante na continuidade das ações do
cotidiano de trabalho; os relatórios e os pareceres sociais, com vis-
tas a dar encaminhamento dos usuários para a rede social, como, por
exemplo, os encaminhamentos de recém-nascido para o Conselho Tu-
telar, no caso de a mãe desejar deixá-lo para adoção; o instrumental
do auxílio funeral; as estatísticas do atendimento do setor na institui-
ção; dentre outros.
Todos esses instrumentos, diretos e indiretos, fundamentam
e dão concretude ao trabalho do Serviço Social na Instituição, como
uma instrumentalidade que se materializa na relação das finalidades
do setor conformes às condições objetivas em que se encontram.
Considerando a dinâmica contraditória da própria realidade (ARAÚ-
JO, 2003) permitindo sempre a descoberta de novas possibilidades de
melhoria do trabalho profissional e da vida dos usuários. Este trabalho
tem sido baseado nos preceitos que guiam a profissão, como a Lei de
Regulamentação da Profissão e o Código de Ética, como sempre ex-
presso nas falas dos assistentes sociais.
No entanto, numa das falas dos entrevistados, percebemos
uma visão fatalista da prática profissional, resultado de uma deficiên-
cia na relação entre as competências teórico-metodológica, técnico-
-operativa e/ou ético-política, conforme expressa abaixo:
Eu não consigo enxergar por mais que se discuta, quando sai
daquela sala lá de discussão, quando volta para o seu setor
de trabalho, a prática volta a ser aquela prática que reforça,
o quê? Que reforça o sistema neoliberal. Não tem nada de
revolta, não tem nada de questionamento, de reflexão [...]
A gente aceita como as coisas estão [...]. Não sei que práti-
ca seria essa de diferente, sabe?! Então fica difícil visualizar
mudanças aqui claramente, nós estamos imersos e a gente
representa a classe dominante, mesmo sem querer estamos
reproduzindo na nossa prática o que estão colocando aí, o
que o neoliberalismo está colocando. [...] Ele está reproduz-
indo tudo, eu me sinto assim na minha prática. O que o pod-
er está mandando aí, não adianta ser ingênua e dizer que
você vai ser contra. [...]. Eu não sei se eu sou pessimista não,
mas eu não vejo assim: ‘Ah, mas na sua prática você pode
assim tentar arranjar uma brecha’ (AS-2).

Não podemos deixar de considerar que essa análise do espaço


profissional revela parte da realidade presente sob a política neolibe-

348 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

188
ral, com seus rebatimentos sobre o espaço institucional. Isso produz
essa condição de impotência do profissional comprometido com o
Projeto Ético-Político e limitado por uma materialidade posta que se
assume determinante. A análise de Marx (1989) acerca da alienação
do trabalhador sob o capital nos ajuda a perceber a condição profis-
sional limitada pela realidade maior presente na Instituição e na políti-
ca pública. No entanto, como diria Lukács (1978) essa realidade é uma
causalidade posta pela dinâmica da sociedade que, em última instân-
cia, é desdobramento das escolhas dos homens, portanto é produto
da práxis social dos homens. Dessa forma, não estamos diante de uma
natureza dura, imutável, mas de uma realidade dialética e contraditó-
ria em permanente movimento. Nesse sentido, fica o desafio perma-
nente para os assistentes sociais e para a categoria profissional de se
apropriar desse movimento que é a realidade social e, pela mediação
de sua instrumentalidade, ir contribuindo na melhoria das relações so-
ciais em geral, institucionais e das políticas públicas.
Apreendemos que o assistente social é desafiado permanente-
mente nas suas competências no contexto de contradição expresso
na política de saúde. As respostas por um lado podem ser de ordem
imediatistas, sem reflexão, limitando o trabalho profissional e condu-
zindo a crises de identidade, de outro podem ser construídas na refle-
xão crítica da sua própria condição de trabalho e, coletivamente, ir em
busca de alternativas postas pela dinâmica dialética do real.
Para finalizar os eixos centrais de discussão, apresentaremos o
próximo item: ações desenvolvidas pelo Serviço Social na Instituição
de saúde pesquisada.
6 Ações desenvolvidas pelo Serviço Social em uma instituição de
saúde
O trabalho profissional do assistente social na saúde “[...] se
dá através da compreensão dos aspectos sociais, econômicos e cul-
turais que interferem no processo saúde, doença e a busca de estra-
tégias para o enfrentamento destas questões.” (CFESS, 2009, p.12).
Com base nisso, o CFESS (2009) elaborou um documento intitulado
“Parâmetros para a atuação de assistentes sociais na saúde”, com-
posto por seis ações profissionais11, a dizer: assistencial; em equipe;

11 A ação profissional, conforme Nogueira e Mioto (2007, p. 281) é o “[...] conjun-


to de procedimentos, atos, atividades pertinentes a uma determinada profissão e
realizadas por sujeitos/ profissionais de forma responsável, consciente”, contendo

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 349


189
socioeducativa; mobilização, participação e controle social; investi-
gação, planejamento e gestão; e assessoria, qualificação e formação
profissional.
Essas ações profissionais “[...] constituem um instrumento im-
portante na construção de estratégias para o exercício profissional
e a busca de alternativas efetivas visando o atendimento das neces-
sidades sociais apresentadas pelos usuários nos serviços de saúde.”
(SARRETA; BERTANI, 2011, p. 49).
As ações assistenciais “têm-se constituído nas principais de-
mandas” aos assistentes sociais (CFESS, 2009, p. 18). Essas ações de-
vem transpor o caráter emergencial e burocrático da atuação profis-
sional, buscando ter uma direção socioeducativa para com a popula-
ção usuária dos serviços, visando à potencialização da mesma. Acerca
dessa questão, destacamos a seguinte fala do Assistente Social (AS-
4):
[...] eu acho que nosso papel é esse: tentar viabilizar o que
podemos de direito, de se fazer presente no que eles po-
dem receber em termos de orientação, de procedimentos
que como eu posso dizer, é de procedimentos e práticas
que iram favorecer a sua situação de saúde aqui dentro, a
condição de saúde de seu filho.

Nas ações em equipe, o assistente social tem um olhar dife-


renciado no processo saúde-doença que o torna necessário numa
equipe multiprofissional atuante na saúde. Consoante CFESS (2009,
p. 21) “[...] o assistente social tem tido, muitas vezes, dificuldades de
dialogar com a equipe de saúde para esclarecer suas atribuições e
competências face à dinâmica imposta nas unidades de saúde”. Assim
destaca o entrevistado:
[...] eu acho que todos os profissionais são importantíssi-
mos no atendimento, na recuperação do paciente e tudo,
só que, como médico é muito técnico, [...] nós assistentes
sociais não abrimos a barriga de ninguém, então o nosso
é abstrato, não está ali, é difícil materializar [...] aquilo que
falamos subjetivamente com alguém. Então por isso os tec-
nicistas não dão muita importância ao que a nossa catego-
ria faz. Às vezes até [...] veem a questão da subalternidade,

para isso dimensões ética e operativa. A ação profissional do assistente social na


saúde é pautada no direito e na cidadania, numa visão de cidadania estratégica, na
busca do direito a ter direito.

350 Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015.

190
de [a assistente social] ser sua secretaria, essa coisa toda.
Então se não fincarmos o pé e dizer a que viemos, acabamos
fazendo o que eles querem mesmo (AS-4).

No ambiente hospitalar, a profissão médica ainda é tida como


a única categoria autônoma, devido a seu caráter técnico e à sua con-
tribuição objetiva na obtenção do princípio básico que é a recupera-
ção da saúde. Nesse campo, de acordo com a fala acima, há dificulda-
des nessa relação. Em contrapartida, o Assistente Social (AS-4) relata
que há um reconhecimento do trabalho do Serviço Social por outras
categorias.
[...] desde quando assumimos, desde quando foi criado [o
setor], eu acho que por essa presença constante, trocando
ideias com os segmentos do dia a dia, cada um na sua área
[...] mas trocando esses saberes com a enfermagem, com
o médico, com a psicóloga, tentando sensibilizá-los. [...]
então, hoje a nossa categoria é muito reconhecida aqui,
o profissional de Serviço Social, muitos chegam até nós e
pedem orientação.

É interessante a construção do setor e a conquista de espaço,


possível de ser observado considerando a permanente articulação
do grupo de assistentes sociais, que se reúnem, discutem seu
trabalho profissional e seus desafios e, mais, articulam-se com a
equipe multiprofissional. Nessa perspectiva, a Instituição pesquisada
apresenta um setor de Serviço Social consolidado, com suas
atribuições definidas e reconhecidas pelos outros profissionais e
usuários, embora seja um processo, portanto dialético e contraditório,
e não homogêneo e estático.
Nas ações socioeducativas, também conhecida como educação
em saúde, o assistente social orienta e socializa informações, através
de abordagens individuais, grupais ou coletivas à população usuária
(CFESS, 2009). Costa (2000) expressa que essa ação acontece no pro-
cesso de informação das normas e rotinas da instituição. O assistente
social atua em todas as etapas do atendimento, a saber: identificação
das condições socioeconômicas e sanitárias dos usuários, para agilizar
o diagnóstico e o tratamento da doença; reabilitação; alta e/ou enca-
minhamento, ou óbito, para isso utiliza a linguagem e o conhecimento
sobre as leis vigentes. Um dos entrevistados destaca esse aspecto:
Temos também o instrumental que foi criado pelo Serviço
Social sobre os direitos, da mãe e do bebê, que tem sobre a

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 351


191
certidão de nascimento, o teste do pezinho, a importância
do aleitamento materno, a licença maternidade, paterni-
dade, com todas as orientações sociais. E tem também o in-
formativo do acompanhante, pelo qual a gente passa todas
as orientações dos direitos e deveres dos acompanhantes
daqui (AS-3).

Quanto às ações de mobilização, participação e controle social


o documento do CFESS (2009, p. 26) destaca:
Estas ações estão voltadas prioritariamente para a inserção
dos usuários, familiares e trabalhadores de saúde nos es-
paços democráticos de controle social e construção de es-
tratégias para fomentar a participação e defesa dos direitos
pelos usuários e trabalhadores nos conselhos, conferências
e fóruns de saúde e de outras políticas públicas.

Essas ações do Serviço Social da Instituição, ficam restritas à


orientação aos usuários quanto à existência da ouvidoria na institui-
ção, quando algum direito daqueles é violado e/ou negado, e ao en-
caminhamento do usuário para uma instância maior como a Promoto-
ria de Justiça e Defesa da Saúde (PROSUS)12, de responsabilidade do
Ministério Público, ou seja, é uma ação de socialização das informa-
ções e mobilização dos usuários para a luta por melhores condições
de vida, de trabalho e de acesso aos serviços de saúde (CFESS, 2009).
Nas ações de investigação, planejamento e gestão, no Serviço
Social, destacam-se a elaboração de planos e projetos de ação profis-
sional e a participação nas Comissões e Comitês temáticos como de
ética e de humanização, sua participação nesses espaços dá visibili-
dade para a profissão. Sobre essa ação, percebe-se a consolidação do
Serviço Social na Instituição. A equipe está continuamente inserida
nos espaços, sempre engajada e por dentro do que acontece no seu
local de trabalho.
Por fim, nas ações de assessoria, qualificação e formação pro-
fissional, o Serviço Social atua na linha da formação profissional atra-
vés da supervisão de estágio e do programa de Residência Integrada
Multiprofissional em Atenção Hospitalar à Saúde, articulando-se com
as demais categorias da saúde, como enfermagem, farmácia, fisiote-
rapia, psicologia e nutrição, bem como com o curso de Serviço Social

12 Paim (2009, p. 129) denomina isso de Judicialização da saúde, “[...] em que os


cidadãos buscam no Ministério Público e no Judiciário uma via para o atendimento
daquilo que julgam fazer parte do seu direito à saúde.”

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da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Externamente assim, em nível de nossa imagem fora, o que
me retorna, o que eu sei, o que me dizem é que o Serviço So-
cial é reconhecido nos órgãos da categoria e é reconhecido
também o Serviço Social da [Instituição] na universidade,
na UECE. Eu acho que é um trabalho que nós iniciamos aqui
em 1985 [...], acho que conseguimos imprimir uma marca de
responsabilidade, sabe, um acompanhamento responsável
com os estagiários. Nós tivemos um grande avanço agora
com a questão da Residência Multiprofissional, que foi cria-
da no Governo anterior, do presidente Lula (AS-4).

Quanto a todas as ações expostas, percebe-se que os assis-


tentes sociais demonstram o compromisso com o Código de Ética de
1993 e a Lei de Regulamentação da Profissão, quando destacam: a
importância do trabalho multiprofissional na saúde; a busca pela im-
posição do que seja a profissão, suas atribuições e funções; o compro-
metimento da equipe com a garantia e o repasse de informações dos
direitos do usuário; o conhecimento de uma gama de serviços sociais
que estão na rede, inter-relacionando com a mesma; o engajamen-
to e participação da categoria com todos os espaços na Instituição:
Comissões e Comitês, Supervisão de Estágio e Residência Integrada
Multiprofissional.
Considerações finais
O Serviço Social na Instituição pesquisada, desde sua implan-
tação em 1985, vem consolidando seu trabalho profissional nesse
espaço sócio ocupacional, refletindo isso no reconhecimento e na
legitimidade da categoria perante a instituição e o usuário. É senti-
do, com isso, o comprometimento da equipe de Serviço Social com o
projeto ético-político da profissão, destacando a busca pela qualida-
de dos serviços prestados; a contribuição na formação acadêmica por
ser campo de supervisão de estágio, de pesquisa e do aprimoramento
profissional com a residência multidisciplinar.
Percebemos ainda os visíveis de rebatimentos da contrarrefor-
ma do Estado no SUS chegando também à Instituição. Isso se expres-
sa no setor de Serviço Social com a redução de sua equipe, a existên-
cia do trabalhador polivalente, a sobrecarga de trabalho e a diferen-
ciação dos vínculos empregatícios, fatores que influem efetivamente
no cotidiano profissional.

Temporalis, Brasília (DF), ano 15, n. 30, jul./dez. 2015. 353


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Mesmo neste contexto de desafios e de contradições no SUS,
rebatendo sobre o Serviço Social da Instituição na qual realizamos
esta pesquisa, observamos que o Setor de Serviço Social não se abate
por essas dificuldades apresentadas, porém, se ratifica como equipe
comprometida com um trabalho profissional crítico, ético e engajado
com o projeto da categoria, materializado no Código de Ética, reafir-
mando os direitos dos usuários e buscando dia a dia novas formas
de avançar na garantia da gratuidade, universalidade e qualidade dos
serviços no campo da saúde.

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