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Marx, um pensador moderno?

Resumo

A presente comunicação pretende polemizar uma questão: seria Marx um pensador


moderno? Ao sugerir os possíveis limites da associação de Marx ao pensamento moderno,
abre-se a possibilidade da superação de sua forma de sociabilidade, bem como da crítica
limitada reproduzida pelo pensamento crítico à modernidade.

Palavras-chave: Karl Marx; modernidade; pós-modernidade

A presente comunicação pretende polemizar uma questão: seria Marx um pensador


moderno?
Esta pergunta costuma receber uma resposta categoricamente afirmativa,
especialmente de pesquisadores que se alinham a um posicionamento crítico à
modernidade. Em geral, compreende-se a modernidade e seus termos correlatos, como
modernismo, modernização e mundo moderno, enquanto expressões de um padrão de
sociabilidade marcado pela lógica científica racionalista, por um projeto politico de
grandes promessas descumpridas e por uma forma de produção completamente destrutiva.
É certo que pensadores defensores da modernidade tendem, em grande medida, vincularem
o autor de O capital enquanto moderno. Mas estes costumam demarcar claramente o
posicionamento político comunista de Marx como algo destoante nesta classificação. No
entanto, os críticos à modernidade, mesmo que reconheçam a diferenciação realizada por
seus opositores, tendem a borrar esses limites.
As expressões de sociabilidade decorrentes desde o século XVIII, pelo menos,
estariam marcadas pelo cientificismo destrutivo, que rebaixaria gradativamente a vivência
humana até o presente momento. Não só o capitalismo em seu conjunto de relações, mas
até mesmo seu modelo crítico, o socialismo, estariam marcados por essa condição. Assim,
a associação de Marx à modernidade aconteceria negativamente borrando as fronteiras dos
conflitos políticos entre liberais e comunistas.
Há dois tipos de crítica a se fazer contra essa assertiva. A primeira é a de que se
compararmos as formulações teóricas dos pensadores legitimadores da ordem capitalista
com aquelas de Marx, encontraremos substanciais diferenças.
Perry Anderson, em seu A crise da crise do marxismo, caracteriza o pensamento
marxiano enquanto uma “teoria crítica”1. O comunismo, o movimento teórico-político
nomeado por Marx que almeja ainda hoje a superação das formações societais marcadas
pelo mercado de trocas mundializado e pela lógica do capital, é uma teoria crítica, antes de
tudo, porque é autocrítica. E não se trata aqui de uma crítica próxima daquilo que se
entende por autoajuda, ou seja, uma série de exercícios motivacionais que agrada aos
leitores propensos a um texto fácil e com uma grandiosa carga emotiva, e que agrada,
também, a lógica mercadológica das editoras por todo o mundo. A autocrítica própria ao
pensamento marxiano permitiria um parâmetro de avaliação das condutas humanas através
de sua apreensão no devir histórico, bem como das suas consequências reais na realidade.
Em outras palavras, o pensamento marxiano trataria de avaliar o processo de exteriorização
(objetivação) de formulações abstratas através da prática que, por sua vez, só pode ser pré-
definida idealmente por um processo de interiorização de certos aspectos da realidade
1
ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo [tradução de
Denise Bottmann. – 3ª ed. – São Paulo : Brasiliense, 1987, p. 13-14.
objetiva. A autocrítica permitiria reconhecer, portanto, o caráter ativo do ser humano
através de um processo que intercala pensamento e ação, abstração e efetivação. Não a toa
que categorias analíticas como as de totalidade e de dialética lhe são tão caras.
O pensamento autocrítico marxiano se distingue de maneira considerável de seus
supostos coetâneos modernos. A principal corrente teórica da modernidade, o positivismo,
possui características completamente distintas. Ao invés de se pautar pela contradição
existente na realidade, busca-se afirmar o momento estático como o correspondente ao
verdadeiro. Ao invés da totalidade do conhecimento, se estabelecem uma série de critérios
que parcelam a atividade do saber, criando o falso corolário de que um bom pesquisador é
aquele que se especializa em um aspecto apenas da realidade.
Este modelo de saber se aproxima ao daquele criticado pelos pensadores que
buscam superar a modernidade. Assim, o pensamento marxiano estaria longe de ser um
pensador defensor da modernidade.
No entanto, é possível realizar uma segunda crítica, questionadora da própria noção
de modernidade adotada pelos pós-modernos. Afinal, como afirmar que suas características
elencadas anteriormente são exclusivas da modernidade, ou predominantes em seu tempo?
Henry Lefebvre2 aponta uma distinção bastante importante sobre a maneira como
avaliar a modernidade, algo que o pesquisador brasileiro Nelson de Melo e Silva3 ratifica,
mesmo que por outros caminhos: não é possível identificar as ideias sobre um período
histórico de maneira unilateral. Ideias que se tornam predominantes na modernidade
podem muito bem ter sua origem num período anterior. Neste sentido, os termos
modernismo e modernidade, por mais contatos que possam estabelecer, apontam dinâmicas
distintas.
Aquilo que os críticos da modernidade definem enquanto modernidade parece
corresponder de maneira mais precisa a noção de modernismo, que não ocorre exatamente
no período da modernidade. Enquanto esta representaria uma forma de vida baseada numa
tentativa de sistematização, não necessariamente bem sucedida, do autoconhecimento da
forma industrial de sociabilidade, aquela expressaria uma lógica desenvolvimentista,
centrada numa postura de baixa potencialidade crítica, reveladora de um comportamento
social bastante ensimesmado. A modernidade traria consigo um novo patamar cultural,
marcado por características bastante semelhantes àquelas defendidas como necessárias
para superar os dilemas postos no atual momento, tal como pretendem os seus críticos. O
modernismo seria um padrão cultural pertencente a um período anterior à modernidade, e
que por mais que estivesse presente na modernidade, representaria algo distinto do espírito
dessa época.
Nesse sentido, retornando à questão inicial, podemos instar a hipótese de que Marx
seria um pensador da modernidade, e não propriamente um pensador do modernismo. Suas
formulações estariam alinhadas ao entendimento de modernidade, apresentando um caráter
crítico e autocrítico. Considerando ainda que suas posições se contrapõem ao pensamento
modernista, a crítica à modernidade estaria infundada.
Ao sugerir os possíveis limites da associação de Marx ao pensamento moderno,
abre-se a possibilidade da superação de sua forma de sociabilidade, bem como da crítica
limitada reproduzida pelo pensamento crítico à modernidade.

2
LEFEBVRE, Henry. Introdução à Modernidade [Tradução de Jheovanira Chrysóstomo de Souza]. – Rio de
Janeiro : Paz e Terra, 1969, pp. 3-9.
3
SOUZA, Nelson Mello. Modernidade: a estratégia do abismo. – 2ª ed. rev. e ampl. – Campinas : Editora da
Unicamp, 1999.

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