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OS PARADOXOS DO IMAGINÁRIO


A COLEÇÃO FOCUS da Editora Unisinos, composta
por obras ensa fsticas contemporâneas sobre filosofia
ou ciências humanas, coloca a serviço dos estudiosos
um acervo bibliográfico reconhecido pela sua
atualidade e padrão científico .

• Sob direção de Marcelo Fernandes de Aquino.

ISBN' 85-7431 -132-4

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1tNIVttMNII >Al>H 1>0 VALE DO RIO DOS SINOS- UNISINOS
1'111 lfr1lori,1 Comwlitária e de Extensão

Reitor
Pe. Aloysio Bohnen, SJ

Vice-Reitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ

Pró-Reitor Comunitário e de Extensão


Vicente de Paulo Oliveira Sant' Anna

d/[J EDITORA UNISINOS

Diretor
Carlos Alberto Gianotti

Conselho Editorial
Carlos Alberto Gianotti
Fernando Jacques Althoff
Pe. José Ivo Follmann, SJ
Pe. Marcelo Fernand~'S de Aquino, SJ
Nestor Torelly Martins
Os paradoxos do imaginário

Castor M. M. Bartolomé Ruiz

EDITORA ÜNJSINOS
Coleção Focus
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
Pró-Reitoria Comunitária e de Extensão

Reitor
Pe. Aloysio Bohnen, SI

Vice-Reitor
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Pró-Reitor Comunitário e de Extensão


Vicente de Paulo Oliveira Sant'Anna

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Pe. José Ivo Follmann, SJ
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Nestor Torclly Martins
Os paradoxos do imaginário

Castor M. M. Bartolomé Ruiz

EDITORA UNISINOS
Coleção Focus
©2003 Castor M. M. Bartolomé Ruiz
Os paradoxo;; do imnsintirio
Ensaio de filosofia

2003 Direitos desta edição reservado~ à Editora da


Universidade do Vale do Rio dos Sinos
EDITORA UNISINOS
ISil:--.1 85-7431-132-4

Coleção Focus
Sob direção de Marcelo Fernandes de Aquino

Editor
Carlos Alberto Gianotti

Preparação
Rui Bender

Revisão
Marcos Bohn

Editoração
Paulo Furasté Campos

Capa
Isabel Carballo

Impressão
Gráfica da UNISINOS, verão de 2003

A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que
compõem este livro, para uso não-individual, mesmo para fins didáticos, sem
autorização escrita do editor, é ilícita e se constitui numa
contrafação danosa à cultura.
Foi ft>ito o depósito legal.

Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos


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Sumário

Introdução ........................................................................................ 13
DO (PRO)LOGOS AO PATHOS .............................................................. 17
CAPÍTIJLO I
O IMAGINÁRIO

IDÉIAS PARA UMA ONTOLOGIA DA INDFTER~AÇÃO .................... 29


O que é o imaginário? .................................................................... 29
Nosso horizonte: A formulação de um conflito .......................... 32
A lógica e ontologia da determinação: um olhar panorâmico . 35
Alguns questionamentos à lógica e ontologia
da determinação .............................................................................. 44
A indeterminação radical do imaginário ..................................... 48
A FRATIJRA HUMANA ........................................................................ 53
A alteridade e o sujeito ................................................................... 55
A emergência da fratura humana ................................................. 57
O mundo como representação ...................................................... 59
A fissura entre a pessoa e o mundo .............................................. 62
Fragmentos do processo ontogenético da fratura humana ...... 64
A etiologia bíblica da fratura humana ......................................... 70
O desejo estabelece as pontes dos sentidos ................................. 77
O SEM-FUNOO HUMANO E OS PARAOOXOS DA PSIQUE .................... 81
Na busca de intersecções compreensivas .................................... 85
Imagem e representação ................................................................ 88
O PODER OBJETIVANTE DO IMAGINÁRIO
E A SOCIALIZAÇÃO DA PSIQUE .......................................................... 93
A dualélica do prazer e da insatisfação ....................................... 94
6 Os paradoxos do h11ngti1tirio
A sublimação ................................................................................... 97
Alteridade e (re)prcssão ................................................................. 98
A psique dilacerada e realizada pela sublimação
e pela (re)pressão .......................................................................... 101
Entre Narciso e Utopos ................................................................ 104
CAPÍTULO II
A IMPLICAÇÃO SIMBÓLICA DO IMAGINÁRIO

DO r-.1ÍTICO-MÁGICO AO SIMBO-LOGISMO ....................................... 109


Algumas distinções conceituais ................................................... 110
Rastreando as origens do mito ..................................................... 112
O amanhecer simbológico ............................................................ 116
Filo-sofia e mito-logia .................................................................... 118
Monoteísmo e Teos-logia ............................................................. 123
133
O SIMBÓLICO ....................................................................................
Do signo ao mito ........................................................................... 136
O SIMBOLISMO E O MITO ......... , ........................................................ 141
Racionalidade narrativa do mito e estrutura mítica
do racional ..................................................................................... 142
Afetividade e efetividade simbólicas ......................................... 144
O totemismo racional ................................................................... 150
157
ARE-LIGAÇÃO SIMBÓLICA ...............................................................
165
A DIMENSÃO EPIFÂNICA 00 SIMBÓLICO .........................................
A confrontação entre o epifânico e o apocalíptico ................... 167
A REDUNDÂNCIA E INADEQUAÇÃO DO SIMBÓLICO ....................... 173
A arbitrariedade do signo e o parabolismo do símbolo .......... 175
A CO-IMPLICAÇÃO SIMBÓLICA ........................................................ 179
A transitividade da imagem (simbólica) e a persistência da
definição (lógica) ........................................................................... 181
CAPÍTULO III
SIMBOLISMO E LINGUAGEM

191
O SÍMBOLO E A LINGUAGEM ............................................................
Mediações e paradoxos dualéticos da linguagem ................... 195
O ENRAIZA1'.1ENTO SIMBÕLICO DA LINGUAGEM ............................. 199
A OBJETIVAÇÃO DA LINGUAGEM ..................................................... 209
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 7
A tensão simbológica na objetivação da linguagem ................ 214
A TENSA CO-EXISTÊNCIA DAS FUNÇÕES DENOTATIVA
E CONOTATIVA DA LINGUAGEM ......................................................219
O formalismo da linguagem e o dualismo de suas funções ... 222
O contraponto da hermenêutica ................................................. 229
A co-implicação dialética das funções na linguagem .............. 233
O CONSENTIMENTO DA LI~GUAGEM .............................................. 237
As feições divinas da palavra humana ...................................... 240
A FUNÇÃO METAFÓRICA IJA LINGUAGEM ....................................... 245
A dimensão metonúnica da linguagem ..................................... 249
O DISTAJ\'CIAMENTO LÓGICO DA LINGUAGEM ............................... 253
BIBLIOGRAFIA .................................................................................. 263
Meu agradecimento, sempre insuficiente, 11 quem
aventurou-se 110 vida,
na wnturn de me dar a Vida.
Àqueles (Jaime e Ju!ia) a quem nunca poderei re(com)pensar
s1ificientemente.
Porque, ao me deixar existir,
viver a (minha) vida,
deixaram voar uma parle de s,:·
talvez uma parte de sua espera e esperança.
EI hombre es por natura la besfii, pamdó;ii:a/
un ,mimai absurdo que necesito lógica.
Creó de nada un mundo, y su obra termhtada.
Yo estoy en el secreto -se dijo-, todo es nada.
(Antonio Machado, Proverbios y Cantares)
Introdução

O tempo dn vídn humana: um ponto. Sua substnncin: um fluxo. S11ns


Sf'nsnçoes: tn•vns. Todo sru corpo: corrupção. S11n nlmn: um rrdrmoinho. Sun
sorte: um en;,~mn. Seu renome: umn crgn opiniiio. Resumindo, tudo, em sun
matéria: prffnriedndt•. Em sru l'Spírito: sonho efiannça. Sun existêncin: umn
gunrn, n dnpn tft, 11mn ving1'111. Sun glória póstuma: t'sq11eâmr11to. Qur nos
pode enliio SJ.'nJÍr dr guin? A filosoftn, apenas ,:,so. *

A reflexão de Marco Aurélio nos situa perante o abismo


das três interrogações clássicas: quem somos, de onde viemos e
para onde vamos. Sua insinuação de solução é apenas isso, uma
insinuação.
Este trabalho, Os paradoxos do lmagimirio, é o resultado de
um longo processo de insatisfação com as posturas clássicas que
buscam na racionalidade o segredo último da realidade para,
tornando-nos mais racionais, adaptar-nos com maior fidelidade
aos postulados de uma verdade pré-estabelecida. Essa insatisfa-
ção com as posturas clássicas não se resolve com a diluição da
razão, com a sua negação ou com o mero apelo a dimensões me-
tarracionais ou simplesmente irracionais, como algumas posições
pós-modernas defendem. Se a razão moderna mostrou sua face

MARCO Al'RÉLIO. Meditnrões. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 25.


14 Os paradoxos do ,innginário

perversa, se ela perdeu a aura de divindade com que foi investi-


da, propugnar seu sepultamento pode nos levar ao nosso pró-
prio velório como espécie.
Nos introduzimos nos interstícios desse debate para ten-
tar construir uma trilha diferenciada que não procura o caminho
do meio, mas que tenta assumir a tensão dos diversos pólos cm
questão como elementos implicados nos variados âmbitos da
existência humana.
A proposta de aproximação que desenvolvemos nesta obra,
a Sofia que apresentamos, distancia-se da obediência dócil às leis
deterministas de uma natureza fechada, algo muito comum na
nossa tradição filosófica. Uma grande parte desta tradição filo-
sófica viu na racionalidade o princípio explicativo último e defi-
nitivo da realidade, o alfa e o ômega da natureza e do ser huma-
no. Em decorrência dessa convicção pregou a obediência como
critério de sabedoria.
Os paradoxos do 1i1,n/;à,tirioevidenciam que o ser humano é,
por natureza, indeterminação criativa. Seu desafio não consiste
em submeter-se a uma ordem natural pré-estabelecida, mas em
(re)criar a natureza. Não descobrimos uma mera explicação racio-
nal do mundo, mas nos implicamos de modo criativo no sentido
que damos para as coisas e na prática através da qual nos inseri-
mos no mundo. Nos mundanizamos ao recriar o mundo COII}O
algo nosso, e o mundo adquire nossas feições na medida em que
não permanece como algo determinado por uma racionalidade
natural. Ele se humaniza através da prática com que o sentimen-
to humano impregna cada elemento ao constituí-lo com um sen-
tido não natural, mas simbólico.
Esta obra pretende reconduzir o debate sobre a racionali-
dade desde a perspectiva do imaginário e suas implicações sim-
bólicas. A complexidade do humano não permite reducionismos
de nenhum tipo, mas apela para a implicação tensa das diversas
dimensões. O ~ l faz uma intromissão nos ti:;rre~s da
ontologia com O ob·etivo de debater as visões det~:_!IlltJist_as da
pes e o mundo que ormu aram a subm~~io racion~ do
hmriãho as vercfãttcs e defermmaçôes ao pré-estabelecido. No
se
e m h à ~ percebemos-que osét1niihãno abrê ao" mun-
do na medida cm que cria uma imagem própria e singular do
Castor M M Borto/omé Ruiz 15
mundo. Por isso a razão é sempre um modo de pôr em imagens o
sentido lógico. Admiramo-nos ao compreender que esse sentido
lógico se manifesta sempre implicado em formas simbólicas. O
imaginário remele a um semfundoltumnnocriador que se expres-
sa de modo simbo-lógico. Um semfimdo ltumano que não se expli-
ca de modo absoluto já que se implica sempre de modo criativo
em tudo que realiza.
A nossa intromissão pelos caminhos que a filosofia tradi-
cional considerou secundários, nos direcionou a resgatar catego-
rias excluídas por esse pensamento tradicional. O capítulo se-
gundo realiza um percurso indiscreto pelos domínÍÕS'do 1mã'i-
náno eaosírn ólico. es s pre oram c 1 os criaturas
inferiores ao logos e à razão. O imaginário e o simbólico habitam
o submundo do incompreensível; para a razão eles estão locados
no infra-humano, por isso foram catalogados como instáveis e
perturbadores. Mas é neles que reside a dimensão criadora do
ser humano. Na medida em que se implicam no modo lógico de
interpretar o mundo, produzem uma criação significativa de tudo
que tocamos. As diversas tentativas de submetê-los ao domínio
do logos ou de sufocá-los sob o império da racionalidade, frus-
traram-se. No outro ex Iremo, algumas pretensões do imaginário
e do simbólico de subsistir fora de uma racionalidade levam-nos
a construir delírios inconseqüentes ou fanatismos demolidores.
Entramos neste terceiro milênio com a nova consciência
de que somos seres da linguagem, hermeneutas de um mundo
que re-criamos de modo contínuo com o sentido que permeia
nossa práxis. No entanto, a compreensão hermenêutica da lin-
guagem sofre uma fecunda inseminação quando a vislumbra-
mos atravessada pela dimensão simbólica. O capítulo terceiro
almeja confraternizar estas dimensões inseparáveis d-ª.12rahca
humana:-Não é sufic:ieute resgatar a Unguagem de suá-mera f~n-
çãà~mental e restituí-la corno manifestação primária daquilo
"'
se._!"eS da hngua~m, ·--
que somos e fazemós. Além de autocompreendermo-nos como
,, temos de contemplar a trama simbo-lQgjfa
que subsiste nela. Areflexão hermenéUtica contemporânea deu
desTaque ao sentido como dimensão constitutiva da linguagem;
nossa tarefa agora é nos aproximarmos um pouco mais da lin-
guagem e perceber que esse sentido não é uma mera construção
16 Os paradoxos do imag1i1ório

lógica e. que ele está configurado, também, pela dimensão sim-


bólica. A linguagem é sempre uma forma simbo-lógica de expres-
sar-nos e de articular nossa prática. Isso nos remete ao discurso
não mais como uma construção estritamente lógica, mas como
uma criação essencialmente mito-lógica.
Por último retomarmos aos clássicos agradecimentos que
por ser tais não são menos sinceros. Registramos a valiosa cola-
boração das discussões e diálogos com o professor Patxi Lance-
ros que desde a universidade de Deusto, Espanha, foi um inter-
locutor qualificado desta obra. Agradeço aos colegas do PPG-
Filosofia,·Onisinos que no debate das idéias contribuíram para
burilar aspectos deste trabalho.

Cnstor MM Bnrto!omé Ruiz


Do (pro)logos ao pathos

Só/o qu,:,ém dar/e (1'sfa obra) mond,1 .1/ d,·snuda sà1 l'I oma!o dt' prólogo, ni de
ln i1111111t·mbtl1dady cntrflq_,;:o de los acostumbmdos sondo::-~ npigmmns .1/
diwios, q11e nl prinâpio dt' los !toros sudt'n pmrers,·. Porque li' sé deâr '1"'',
n111u7111• me costó n{,;:1í11 tmbajo compom,rfa, llil~,;:,mo !uw por mnyor '1"<'
/JaCl'r esta pnfoción, que ms lt'.1/l'lldo.
Mi1:,11.1el de Cervantes (Prólogo a D. Quixote da \fancha)

Vivemos momentos históricos de indefinição. Existe uma


forte tendência a caracterizar estes novos tempos como pós-mo-
dernos, mas a modernidade resiste com todo seu potencial e in-
clusive se exibe de um modo triunfal.
Visto que a modernidade se identifica pela hegemonia da
razão, seja instrnmental ou emancipadora, não podemos desco-
nhecer que atualmente a racionalidade exerce uma influência
onipresenle em todos os âmbitos da existência, desde o cotidiano
do mundo da vida até os modelos estruturais de desenvolvimen-
to. Mas seu anverso também se revela como emergente. Há um
cansaço existencial proveniente dos efeitos inerentes à racionali-
zação da vida; borbulha em todos os ambientes uma insatisfação
generalizada referente à razão instrumental que mercantiliza a
vida no altar da racionalidade do mercado; escuta-se um clamor
globalizado contra os efeitos perversos de um sistema que racio-
18 O, pamdoxos do il11t1,fi11ário

naliza mais intensamente para dominar mais eficazmente; esta-


mos no limiar de uma razão instrumental que construiu o perigo
possível ou iminente de nossa autodestruição; há uma procura
cada vez maior por qualidade de vida e não tanto por quantida-
de de bens; a eficácia não é mais tão racionalmente absolutizada
pelas pessoas em suas vidas particulares quando se trata de diri-
mir seu modo de vida; a eficiência racional se relativiza cada vez
mais perante os novos modelos estéticos, éticos ou lúdicos de
vida; a lucratividade prescritiva pelo sistema, embora seja um
objetivo hegemónico do nosso modelo social, não goza de muito
boa reputação, etc. Em resumo, aparece apontado e bem defini-
do um conjunto de tenãências h1slõricãs; ue demanda uma rup-
túra de para igmas. E esta ruptura atmge diretamente a razão;
f o ~ t o modelo da modernidade tal como o co-
nhecemos.
Na tentativa de esboçar alternativas para essa crise da mo-.
dernidade, já faz algumas ljécadas que se confrontam duas gran-
des tendências. Uma dessas pretende reafirmar a racionalidade
como o único modo possível de pensar nosso futuro; para tal obje-
tivo aposta numa racionalidade de tipo crítico ou emancipador,
mas, afinal das contas, a ênfase é colocada essencialmente na racio-
nalidade. Defende uma prática social marcada por um novo tipo
de racionalidade emancipadora, dia lógica ou libertadora.
Em contraste com as pretensões de dar uma nova chance à
racionalidade, um leque de tendências desconstrucionistas de-
nuncia que as tendências destmtivas são increntes à racionalida-
de e permanecem insuperáveis desde a própria razão. As preten-
sões de verdade da razão são modos de autoritarismo, suas cer-
tezas universais são formas de dominação que ocultam interes-
ses inconfessáveis e suas perversões instrumentais são intrínse-
cas a seu modo de proceder. Não é possível pensar um modelo
de racionalidade que não imp.lique asfixia da vida no marco dos
objetivos instrumentais da eficácia e do controle. Nesse caso, pen-
sar um modelo diferente daquele que a modernidade implantou,
requer a superação da racionalidade cm todas as suas manifesta-
ções, ou cm muitos casos se propugnam simplesmente sua nega-
ção e sua substituição pertinente por novos paradigmas não-ra-
cionais de tipo estético, lúdico, místico, vital, etc.
Cilsfor M. M. Bnrtolomé Ruiz 19
No deserto de tantas fragmentações que nos atingem, cor-
remos sedentos cm busca de um sinal de identidade. Tenta-se
achar no prefixo pós aquela característica que identificaria nosso
circunstancial momento histórico; para tanto, pensou-se numa
ruptura com a modernidade racional, a fim de poder adentrar
numa pós-modernidade cm que as certezas do progresso racio-
nal do homem e do mundo não são tão críveis. As grandes ver-
dades sobre nosso inevitável destino natural, racional ou teleoló-
gico se desmancharam ao apresentar um rosto demasiado hu-
mano. Elas se mostraram como _certezas vulneráveis, feitas com
a fragilidade de nosso próprio barro. Muitas torres de aparência
segura caíram ou foram derrubadas não pelo avanço da irracio-
nalidade, mas em conseqüência de uma racionalidade perversa,
destruidora. As grandes expectativas sobre o progresso de um
ótimo futuro racional viraram decepções que desmascararam nos-
sa ingênua crença na bondade essencial da ciência e da técnica.
Esta obra, Os paradoxos do imngimírio, se insere no fogo cru-
zado dessas duas tendências; não para encontrar o caminho do
meio, mas J;§ra indicar que a confrontação entre a racionalidade
e o símbolo, entre o logos e a vidapão se resolve na_11_e_gação <:le
Ul11 pelo outro, nem !\él_9i]uiç_ª-Q.a_Q_\J..Ql !}O outro, mas na tensão
que os implica como co-reieridos e necessários. Com o presente
trabalho ~ão acha~9s_ u~~_9!!linh.9_ i_!lterm~_c!_iárjo, mas 1~csgata-
f!.lQS a ~ensão como categoria necessária que co-implica os con-
trários e os manifesta co-relacionados de modo produtivo, !!em
çair_ n_~~m c-s_t_ruturalismo _e!§.-_fjxado. Ao pensarmos uma nova
prática social, temos -que incorporar sua dimensão simbológica;
perceber a relatividade de nossas verdades e o caráter de liber-
dade que impregna os modelos históricos que desenhamos, mas
confrontá-los com os critérios de caráter racional qu~ emergem
da alteridade da Vida e do outro.
A clássica li~ tese de Marx sobre Feuerbach - Os filóso_fos
1Ttiofizeram nf/ agora 1Tndn mais do IJllt' 1i1ferprdnr dt' diversos modos o
111 undo, ngom do que se frnftz / de frt111~formd-!o - assinalou uma con-
traposição até hoje dificilmente superada. Ela denuncia um dua-
lismo, teoria-práxis, próprio de nossa tradição cultural, mas a
tese de Marx desconhece que toda prática constitui um modQ..Qe
i!}serir-se interpretativamente no mundo e que toda interpreta-
20 Os pnmdoxos do imngiiuirio

ção é uma produção de mundo. O paradoxo do imaginário respeita


profundamente o questionamento de Marx, sem apostar num dos
pólos de tensão contra o outro. A dimensão paradoxal do imagi-
nário co-implica produtivamente hermenêutica e prática, resol-
ve a tensão afirmando a dimensão hermêutica da práxis e mos-
trando al!1f_lg_ênc~ dec~iva que a prática tems_obre qualquer tipo
de interpretação.
Esta obra tem como 9bjetivo inserir-senas fendas dessa
problel!lª-Jica, não discutindo problemas pontuais ou conjuntu-
rais, n,1J1s desafiando tanto o absolutismo da razão quanto a sem-
r~z.n_o_q_u~ tenta negá-la ou não a reconhece como um dos critérios
decisivos de nossa :";>Ubjetividade. Fizemos ;;i radiografia amarga
das pervcrsid.adc:i,dimodcmidade; e para distanciar-nos da ve-
lha ordem, temos de achar novos paradigmas que, às vezes, não
são tão inovadores, pois como já disse o sábio Coélel:

VnM11de d11s ,widndes, tudo é vnidnde.


O quefi;i sná,
O que s,'_./i:'::: se tornnrá n fazn:
Nodo Irá 110110 dt'l1fliJ:o do sol/

A própria autocrítica de Coélet tem feições muito pós-mo-


dernas. O sábio C:oélet viveu no século III a.C, mas seu ceticisi;no
ou relativismo parece muito atual. Muitas vezes, a tentativa de
constituir um novo paradigma pós-moderno leva a eroc!.lri1[ an-
s_i_!?~~~n___te f>P!" novas fo~rn-<\-S s!l'. pmgresso dá histór_ia~omo se a
pós-modernidade fosse _um novo salto evolutivo na emergência
de novos modelos históricos, que, neste caso, consistem cm su-
perar uma racionalidade esgotada. E aqui a velha lógica nos apon-
ta para uma nova contradição. Reivindicamo-nos pós-utópicos
enquanto, muitas vezes, levantamos novas ilhas para novos utó-
picos, ainda que agora se caracterizem como não-racionais e mais
relativos. Auto-afirmamo-nos como pós-religiosos, confessando
novos credos, praticando renovadas liturgias de consumo ou de
pós-consumo, de prazer hedonista ou de êxtase estética. Anunci-
amos com Zaratustra a morte de Deus e desconfiamos de que a
existência do ser humano seja uma mera fabricação de subjetivi::._
dades, e, no entanto, elevamos altares para novos deuses e os
·---~
Castor M. M. Barto/omé Ruiz 21
invocamos nos novos símbolos emblemáticos do dólar (ú1 l,od ,w
fm_c;f) ou do real (Deus sqn loumdo).
O pós é um bom prefixo que serve, como qualquer outro
que já se utilizou ao longo da história: renascimento, ilustração,
romantismo, socialismo ... , para mostrar o empenho de uma ge-
ração que não quer ser uma mera reprodutora de verdades
(im)postas, mas pretende provocar sua própria ruptura históri-
ca, seu !aziros. O prefixo pós enuncia a relatividade e o injusto re-
ducionismo inerente a qualquer modo de classificação. Escolás-
ticos, humanistas, racionalistas, empiristas, modernos, cristãos,
comunistas ou pós-modernos, q~lq_~':'!" forma de classificação
implica uma redução do s_in_gular a um universaJ. Classificar para
discriminar, dLc;criminar para normatizar, normatizar para con-
trolar, controlar para dominar, dominar classificando .... Este é o
círculo vicioso e asfixiante que produz qualquer classificação.
Talvez o prefixo da pós-modernidade possa nos ensinar a ser-
mos mais cautelosos com as classificações genéricas das pessoas
e dos pensamentos e nos estimule a saborear a riqueza específica
escondida no detalhe.
Desde a perspectiva do indeterminável, empreendemos a
difícil tarefa de resgatar o imaginário como categoria central da
filosofia, que nos remete a uma dimcnsão_da s:11bjctividade e de-
safia a compreensão da prática social. Propomos como patlros ini-
cial, não um "novo pacto" meramente racional, mas uma con-
junção de sensibilidades que nos possibilitem superar a simples
inércia da desconstrução e nos impulsione a repensar novos ho-
rizontes de existência. Um pathos inicial que nos permita cons-
truir, de modo imaginativo, o lrumrmo como possivelmente l111111a110.
A contemporaneidade nos ajudou a assumir, sem cinismo, como
h111111111os demasiado h11m1111os, não só na perspectiva êio niilismo
sem saída, mas compreendendo que aquilo que existe de mais
divino, a criação, habita em nós. Como novos pós-nietzschianos
Deus já não nos assusta; não nos dói saber-nos limitadamente
abertos, nem nos deprime reconhecer que não mais existimos
definidos por uma essência uniforme. Aceitamos a vertigem de
perceber em nós um sem-fundo lr1m111110 inesgotável, incomensu-
rável, inatingível, singular e disforme, universal por ser diferen-
te. Como disse o poeta:
22 Os pnrndoxos do à1111gú1ário
---------------

Nunm lmces tu fronlem,


ITÍ audt>s tu per_lil;
lodo t'SO c_ç cosa d1• fucm. 1

Ao reivindicar-nos como /,1111111,ws de11111.,ft1do humanos, não


nos afundamos na depressão do niilismo paralisante. A consci-
ência niilista dos nossos limites nos empurra, sem querer, para a
beira do infinito. Mt1s eis que 110 fundo do nb,:~mo se mcontrnm n
desesperação se11ti11wt1fnl e volitivo f' o Cf'tici.,mo rncio1111/frente 11frt'nte
e SI' nhrnpmz como irmiio.,;. E vni 5f'r deste nbrnço, um abraço fni,'{ico,
isto 15, entrnnluívd e 11momso, de ondt' ,111i brotar o mana!lctnl da vida,
de 11mt1 vida séni1 e terrível2. No infinito, reencontramo-nos com a
insondável potencialidade criadora que habita em nós.
Existe uma inesgotável dimensão simbólica da subjetivi-
dade e da sociedade. A dimensão simbólica__ i~__pUca subje!ivi- ª
ciªde no horizonte da irilcrpretação e a projeta numa abertura
permanente por ser. A prática social t~ permeada pelo universo
simbólico em que nasce, mas ela transforma dinamicamente qual-
c1uer universo instituído.
Sem prefixos nem determinações prontas, empreendemos
o caminho da vida em uma (a)ventura aberta; assumimos a exis-
tência como um desafio de criação socioistórica sem trama pré-
escrita. E~as convicções demasiado humanas não podem s~1;,;-
tenlar-se sónas intenções, elas precisam uma fundamentação
suficiente; a pretensão de criação humana num horizonte indefi-
nido de abertura tem que se contrastar com seu anverso, consli-
tuído pela fabricação durante séculos de sistemas absolutos, de
pensamentos fechados e teorias conclusivas sobre o ser humano
e o mundo. No final, o reverso de nossa Emid<1__J?.!ºf!Osta 11~"'.~
confrontar-se com seu anverso, istõ--é, a Idéia (Logos) e sua lei
natural-racional que ditam o que nós somos e prevêem o que
devemos ou podemos ser. Esta é uma das questões centrais que
atravessa o modo de sinfonia barroca, como se fosse o desenvol-

1 MACHAOO, Antonio. Provabios y Gmtnws. Madri: Losada, 1980, c1.x1, n. 14.


2 tc'>A~fll:,,:o, Migtwl. E/ .,-,,nfimüwto Tn~,;ico de la Vid,1. Madri: Albor, 1998.p.
125.
Cr1stor M. M. Bartoloml Ruiz 23
vimcnto de uma fuga de Hach rcaparcc_cndo permanentemente
com novos matizes e cores.
Ao tratarmos essa temática, estamos adentrando perigo-
samente nos sagrados çl.omínios da racionalidade. Ela já p_ro~11-
ziu generosas formas de humanização, também 111oslrotJ a per-
versidade que encerra em seus porões. Acima de tudo, agora a
razão ficou nµa. Aquela que foi entronizada como a nova deusa
do ilurninisri10, aquela que agl:;>aria
__ com o Deus da superstiçJ_o
cultural e do atraso social, produziu também as mais perversas
formas de des-humanização e os mais tertíveis sacrifícios idolá-
tricos. Na pós-modernidade, a racionalidade está colocada cm
questão, como tempos atrás ela questionou os outros paradig-
mas culturais hegemônicos. Não vamos, nem podemos, negar~
racionalidade, porque isso, além de ser irracional, teríamos que
fazer racionalmente, isto é, aporistica_~cnte. Mas temos quedes-
cer a racionalidade do trono do absolutismo, onde foi enaltecida
pela modernidade. A racionalidade não é uma nova divindade,
ela é também lmmmin dm111sú1do 1111111111111. ·
Temos que re-encontrar-nos para além da racionalidade.
O ser humano que é racional transcende sua própria condição, e
na busca do verdadeiramente humano relativiza a racionalida-
de, situando-a na sua verdadeira condição de humana, isto é,
relativa-relacional.
Temos de mergulhar no semfúndo h11ma110 para nos auto-
comprecnder. Somos cientes de que ~oda autocomprccnsão é par-
cial, e qualquer aulodefinição é aberta, isto é, relativa. Por isso
não pretendemos explicar-nos racionalmente, Tªs ir:t1p_Uçar;.~s
~*·üment,e, simbolicamente, naquilo que somos. Ao levantar o
véu da divindade humana, o que encontramos? Surpresa nosso
próprio rosto! Mas não é só o rosto da finitude conhecida, do
humano determinado ou do logos explicado que vemos. É tam-
bém um rosto inescrutável, um rosto que n~o1-19ci~ ?_e_r exaurido
por nenhum tipo de determinação ou explicação; ele nos lança
para um horizonte de infinito e nos submerge no abismo do 1,rm-
f1111do humano. Í!i- esse sem-furn:io_humano, tragicc_1~c;_nte)1uma-
i;to, denominamos de ilnns-ituirio. Sua principal característica é a
criação, e paradoxalmente ele possui a possibilidade de encolher-
se, determinar-se, numa identidade finita e histórica. O imaginá-
24 Os pnrndoxos do imaginário
----------------
ri o humano é um manancial criativo que (rc)sente o mundo de
forma criadora; um mistério que emerge de nós na forma de cri-
ação (divina) e que transforma o /uímusinsignificante da nature-
za em mundo humanizado.
Ao longo de nossa exposição, mostramos que o poder do
imaginário nos revela que o snn-fimdo humano é indeterminação
e indeterminável. Mas acima de tudo o imaginário, como todo
humano, é paradoxal. O paradoxo nos envolve e penetra; ele nos
frutifica e limita. O paradoxo do imaginário emerge como força
criativa, mas só pode existir na fmma de identidade delimitada.
Ele é indeterminável, mas só se concretiza se estiver determina-
do.
Há uma implicação do símbolo e do logos na constituição
da linguagem. A linguagem constitui a prato-significação huma-
na. O paradoxo do imaginário co-!inplic11 símbolo-e-linguagem,
mito-e-logos. Ele não os contrapõe como contraditórios excluden-
tes, mas os implica como contrários necessários. Assim revela
aquilo que realmente son{os, isto é, seres mitológicos. Ele nos
confronta tragicamente com a fragilidade de nossas próprias obras
e nos situa esperançosamente frente a um horizonte de infinito.
O infinito dentro de nós e frente a nós; a fragilidade de nossos
absolutos contrasta com nossa demanda insaciável de plenitude.
A consciência niilista de nossa limitação não se conforma com os
limites em que se encontra; ela anseia por horizontes ilimitados
de existência, olha para o infinito; intui-o, mas não o vê; contem-
pla o horizonte ilimitado de seu ser, mas não sabe onde ele de-
semboca. Na sua contingência procura o Absoluto e facilmente
absoluliza as obras de suas próprias mãos. Paradoxo dos para-
doxos, o paradoxo transforma-se na condição existencial do lm-
mano venilldeirnmente !tu11111f10. S~~~ certezas frágeis sempre ter-
minam em fé, suas verdades relativas em crenças. ,e
Terrível e esperançosa visão. Agora que nos auto-afirma-
mos no simbolismo pós, não podemos fazê-lo de modo fixo. Não
podemos substituir um préfixo por um pó:,-fixo, pois qualquer
forma de fixação implica um modo de aniquilamento da criação
humana. O húmano verdt1dârnmn1fl' humano descobre nossa irre-
nunciável condição de seres mítológicos. Fora do símbolo-razão,
mito-logo!>~ não existe o humano. Pensar-nos prospectivamente
C11stor M. M Bmio/omé Ruiz 25
implica aceitar o desafio de integrar no novo modo humano que
sempre está por ser uma inovadora forma social que implique
essa tensão mitológica que nos permeia. Projetamos um modo de
viver em que o simbolismo adquira o mesmo s/11/us que a razão.
Um mundo onde o Logos e o Pathos convivam não mais como
lobo e cordeiro, mas como irmãos siameses que se auto-afirmam
à medida que estão em tensão mútua, sem que isso implique ex-
clusão ou destruição de um deles para que o outro possa existir.
O humano verdadeiramente humano está abocado a viver a co-
i111plic11piodo seu Logos-Pathos numa permanente tensão criado-
ra.

É t'Vide11te que a lmmt1111dnde 110 111ed1dt1 em lf{le existe contraída no


homem co-liuplicn todos as coisas seguudo a 110/urezo da mnrcirmo-
do co11tmriio.
A virtude de sun 1111idotft, nbmp1 lodos ns co,~YIS e as 111011/fm denhv
dos /i,111/es de sc11 âmbito, de modo que nada t'Scnpn a Sl'II poder.
S11põ1~ com eft'i!o, q11c pode mplnr tudo com os sn,tidos, com n mziio
011 com o á1tckcfo,
t'co-implkn nn 5110 1111idnde 1'5505 'llirhid,•s,
e podl' olcn11fY1T !,w11n110111e11/l' todas ns coisos enqunnto se contem-
pln n si ml'smn.
O homrm / 11111 D1'11s,
nindn qu,' não dl' um modo nbsolu!o, porque é hrmuwr.
É um Dl.'us humn110.
O homl.'m também é um mundo,
mns não é de maneira que conlmi t11do,
porq11e é um !tomem.
O ho,m:111 il um microcosmos 011 um 1111mdo hmnnno.
A n~,;;lifo dn !t11mn11idnde nbrnnse, 110 s11n po!l1Tcli1 /1111',1n11n, a Dt'IIS
e 110 mundo universo.
O lro111c111 pode ser um deus /1111110110 011 /111111t111nme11/c um deus.
Nicolas de Cusa, in: Co11jt'lurns
Capítulo I
O IMAGINÁRIO

A ciêncin tn1ta construir 11m mundo


que permaneça !Íwnritive! às inknções ,, co11Jlitos lmmnnos(..)
No entanto, o /1111111111istn oc11pn-s1', pniloiwlml'nte,
do ,mmdo e das m11da11ç11s IJllt! t!xpeni111mta (. ..)
Jllfvez sqá por este motivo que os tiranos
odeiam ou temem fmt!o
os poetas, os novelistas, historiadores e filósofa!i.
Jeromc Bnmer
Idéias para uma ontologia da indeterminação

No homem 1' 11n soa't>dnde sobrevive 11m pod1•rvso glnio construtor


f/llt' cons1-g11t' /ezmrlnr sobn• nlfa,ra's insfril'n'.,
1', por nss1i,1 di::a, sobn• tf,_ç;11a em mm,fmrn lo,
1m1,1 mtedml de• mncnfos ti,jl11ilan11•11!1• cvmple.w.
Nietzsche

O que é o imaginário?

O que é o imaginário? Eis uma questão singela que todo


mundo entende, mas que provavelmente ninguém pode respon-
der com exatidão. Antes da racionalidade consciente, existia a
imaginação. Ela nos acompanha desde o seio materno. Ao nas-
cermos, não pensamos, mas imaginamos; não raciocin,amos, mas
sonhamos; não argumentamos, mas fantasiamos o mundo que
nos rodeia. Constatamos, pois, que a mera racionalidade não cons-
titui a totalidade da identidade humana, embora não se possa
falar do humano sem que o racional se explicite. A criança, ser
humano que não pensa, imagina. Sua identidade humana não é
constituída pela capacidade de raciocínio, mas pela singularida-
de de colocar em imagens representativas, mesmo que sejam fu-
gazes, uma alteridade ainda incompreensível.
30 Os paradoxos do li1111simírio
---------
Todos nós, enquanto pessoas, muito antes de pensar cons-
cientemente, já imaginávamos. Nosso primeiro contato com o
mundo está embalado pela imaginação. Os sons que escutamos,
o corpo que tocamos e os cheiros que sentimos vão confeccionan-
do no recém-nascido sua primeira experiência do mundo. Pou-
cos dias depois, o mundo aparece como imagem visual. Imagens
que nos resultam próximas ou distantes, conhecidas ou temidas,
mas que invadem a experiência existencial e vão confeccionando
um sentido do mundo, um mundo para nós. Por meio das ima-
gens significativas do mundo, vamos tecendo nossa identidade:
somos a imagem do mundo, que de modo criativo refletimos em
nossa interioridade e projetamos cm nossa práxis.
Mas, afinal, o que seja esse imaginário é uma questão que
deverá estar minimamente explicitada no final desta obra. Ante-
cipamos, porém, que o imaginário e a imaginação, por princípio,
são indefiníveis, isto é, nenhuma explicação racional por muito
densa ou extensa que se pretenda poderá exaurir todas as possi-
bilidades de conceber e existir o imaginário. O irpaginário sem-
pre deverá ser descrito pelos seus efeitos, pois nunca poderá ser
explicado por meio de definições conclusivas.
É preciso realizar um prévio esclarecimento semãntico. Os
tem10s imaginário e seu correspondente imaginação são ampla-
mente usados e nem sempre com o mesmo sentido. Na acepção
comum, imaginação é sinônimo de alucinação. O real se contra-
põe à imaginação, assim como a verdade, ao erro. O imaginado é
um subproduto da racionalidade. Enquanto o racional possui um
estatuto ontológico de verdade, a imaginação é caracterizada por
sua falta de consistência. Atribui-se à imaginação um papel de
co-adjuvante da racionalidade. Ela possibilita que o logos possa
extravasar tensões, recreando-se com a imaginação estética, ali-
viando-se no mundo da imaginação onírica, alienando-se no ho-
rizonte da imaginação mística ou simplesmente relaxando-se na
arena da imaginação lúdica. O estético, o lúdico, o místico e o
onírico constituem os universos secundários aos quais é relega-
da comumente a imaginação. Eles n!9 §,~e> realidades empirica-
mente aceitáveis, não produzem conhecimento com estatuto de
verdade, nem criam práticas políticas com densidade socioistó-
rica.
Cnstor MM. Bnrtolomé l<uiz 31
t· é nisto qut• os /nfinos d111n1t1m de lin11gi1111çno, por mu.'M da imn-
gnn crit1dr1 pdn vi,no, e nplk//111 o mesmo termo, ni11dn q11t•
i11devidnmn1fe, nos outros snrtülos. Mns os sregos dmm11m-110 dt'
jimtnsin, que signifim npnréncin; é tão nd1•17undo 111n senhdo q11n11fo
o outro. /J.J'!1ag}!1nfàO nodo mais é, portanto, do qul' 'f!ll1!1_Se11snriio
dà11inuíd11 t' et1co11frn-,'il' t1os homi•ns, tal como em muitos outros
seres vivos, quer rst,jam ndorm1•ádos, quer estqnm dôperlos.3

Desde essa perspectiva, a imaginação, mesmo sendo uma


dimensão inegavelmente hum.ana, resulta secundária perante a
objetividade da racionalidade. A imaginação aparece como esté-
ril, enquanto a razão contém um potencial produtivo inesgotá-
vel, promovido por suas filhas prediletas: a ciência e a tecnolo-
gia. O racional se apresenta como sinônimo do verdadeiro e, con-
comitantemente, daquilo que é bom. Na modernidade, estabele-
ceu-se uma estreita ligação moral entre o bem e a racionalidade.
Algo é bom e verdadeiro se é racional. Sua verdade ou bondade
dependem da argumentação lógica, da comprovação empírica e
da utilidade tecnológica.
As sociedades contemporâneas impregnaram as diversas
dimensões da vida desse paradigma da racionalidade, porém se
trata de uma racionalidade instrumental. Tudo é mensurado, com-
provado, analisado em lennos de eficácia prática, resultados eco-
nômicos, de eficiência administrativa ou de utilidade pess<;>é!l. Nesse
marco da racionalidade instrumental,~ imaginação converteu-se
em um subproduto comercial, (sub )metido aos resultados do mer-
cado virtual: o mercado do onírico, do lúdico, do estético.

Q11alq11a que se;n o modo rncioual ou t'.tperim,•11/0/ rk descobrir 05


falos, semprr, dt, sua cofljórnudade, direto ou indirdn, 'com osfi·11ô-
m1•110,; obsen111dos rt'stllln exdusivnmmll' sua 1jii-ácia aá1f[fk11. A
pum ima,K!Ílr_lfiiq fl!'rdemtrio d,, modo irremgávd s1111 mrtign s11prt'-
m111:in m1'11ln/ e~1_· subordtim 11ecessrmnmmt,· ir obsen'flçiio, pnrn co11s-
tit111'r um estado ldgico plmammte normal.<

3 HOBBES, Thomas. Lel'ialán. I3arcdona: Altaya, 1997, cap. li


4 CO\flE, Auguste. D1~<cour.< prl/imli111ire, sur J'r:,prit pos1flf Paris: Apo~tolat
Positiviste, 1893, p. 16.
32 Os pamdo.ros do i11111ginário
--------

Porém, a realidade humana da imaginação é bem outra


daquele irrelevante divertimento a que ficou relegada. A rele-
vância da imaginação e do imaginário não se restringe a resíduos
incontroláveis do logos. Sua existência não se reduz a meros sub-
produtos da racionalidade instrumental, nem a fúteis ou úteis
excedentes do mercado da fantasia. A imaginação e o imaginário
constituem dimensões antropológicas e sociais que interagem com
a racionalidade de forma necessária. Racionalidade e imagina-
ção estão implicadas numa tensão permanente. Não há raciona-
lidade, nem ciência ou tecnologia fora da imaginação, assim como
não existe a imaginação fora da dimensão racional. Ambas se
correlacionam, interagem e criam a partir da dimensão simbóli-
ca inerente ao ser humano.
Após este esclarecimento prévio, requer-se uma segunda
distinção semântica. Não se pode usar indistintamente os termos
imaginação e imaginário. O imaginário corresponde ao aspecto
insondável do ser humano, em que se produz, além de lodos os
condicionamentos psíqÚicos e sociais, o elemento criativo; ele
constitui o sem-fundo inescrutável da pessoa humana, que possi-
bilita a imaginação e também a racionalidade como dimensões
próprias do humano. A imaginação e a racionalidade são cria-
ções do imaginário, e ambas coexistem necessariamente, co-refc-
ridas na dimensão simbólica inerente ao ser humano.

Nosso horizonte: A formulação de um conflito

Ao estabelecer as primeiras distinções semânticas, surgiu


um conjunto de questões e hipóteses. Num primeiro momento,
temos de realizar uma aproximação à ontologia. Essa reflexão
ontológica almeja construir horizontes e não persegue a formu-
lação de um sistema teórico acabado. Até porque a indefinição
do imaginário não nos permite cercá-lo de um modo absoluto e
conclusivo. Ele possibilita aproximarmo-nos de forma familiar e
alé entranhável de sua insondável natureza. Podemos sondar as
entranhas do humano, mas nunca conseguiremos solidificar o
sem-fundo, o imaginário, em fórmulas dcfinitórias ou em previ-
sões de tipo lógico, científico ou empírico. No instante em que
Castor M. M. Bartolomé Ruiz 33
modelarmos uma definição plena do imaginário, petrificaremos
o humàno com o olhar da nova medusa da nossa verdade, que
sempre tem pretensões de totalidade.
Nesses tempos de desconstrução, resulta como mínimo
arriscado introduzir-se nas areias pantanosas da ontologia e, no
entanto, é indispensável refletir sobre o que é uma visão indeter-
minada da realidade. O foco de nossa reflexão é a realidade ~ocio-
istórica e não a realiâádeTí;ica. Iniciamo~s essa breve ~nd,ança
precedidos por séculos de reflexão, que fizeram correr rios de
tinta, às vezes tingidos de sangue, com debates acirrados em tor-
no da natureza do ser humano e da realidade socioistórica. __A
q~cstão nuclear que nos propomos desenvolve~ t sªl:>.çr: esltí a
renlidadl' configumdn de forma definitim e possui eln umn estrutura
plenmnmle dderminadn? Se assim for, a realidade será cognoscí-
vcl racionalmente à medida que descobrirmos as configurações
que a delimitam e desvendarmos as leis e regularidades que a
estruturam. Se o real existe como algo definido e determinado, é
possível pensar numa compreensão completa e exaustiva, lógi-
ca, do real por meio duma racionalidade explicativa. A visão do
real como algo determinado leva inexoravelmente à já clássica
conclusão de que o r('(l/ se c:rplicn 110 raciona/, e o rncionnl se ma11(1i's-
tn como rml.
Porém, também é possível formular~ questão desde outra
perspectiva: será quen nwlidndeexíste num processo permnnenteecm
certaforma almtón'o, de ren/iznçiio e subsiçfe emfarmn de i11determi11n-
çiio? Só há possibilidade de podermos pensar numa criação hu-
mana se a realidade é indeterminada. Se ela estiver determina-
da, poderemos falar em criação de um modo metafórico, alegóri-
co, mas não num sentido estrito, pois aquilo que se constrói his-
toricamente, de uma ou de outra forma, já vinha dadô nas deter-
minações exi:,tentes 'no ser da reaiidade.'
Resulta tibvio que, ao· falar de determinação e indetermi-
nação da realidade, há uma grande diferença entre a realidade
da física, da química, da astronomia e, inclusive, da biologia e a
realidade antropológica e sociohistórica. O foco de nossa refle-
xão se centra sobre a ontologia do humano e do s~ciohistórtco,
porém existem muitos indícios que apontam para o CQ!l.f~ito _ci_e
indeterminação ontológica de toda a reali~a~~- Mesmo que as
34 Os p,m1doxos do tinagú11írio
realidades da física, da química, da biologia, da astronomia ... se-
jam, de fato, indeterminadas de modo diferente à realidade do
socioislórico e do antropológico, elas estão impregnadas pela
complexidade. Essa complexidade possibilita o conhecimento por
meio de leis e regularidades preestabelecidas e indica a probabi-
lidade de uma indeterminação possível que possibilita que nem
sempre aconteça aquilo que está previsto pelas leis: O verdadeira-
mmte cimtífico em, até opm,'t'llÜ', diminar n Jinprecisão, n nmbz:i?iiidn-
de, n contradirão. Mns é prccà,o aceitar uma certo linprecisão e uma
imprecisão certa, mio sâ nos fenô111e11os, mas também no., concf'itos, e
um dos smndes conceitos dt1s mntemáticns de hoje é o de consitkrnr os
fussy sets, os conjuntos imprecisos (,f Abrnlznm Mo/e5. Lf., sciences
d,, /'impm:is. Du Seuil, 1990f. Os modelos socioistóricos, antropo-
lógicos e também os cosmológicos dependerão, e muito, do tipo
de resposta que construímos para os c1uestionamentos anterio-
res.
A visão do mundo ~orno algo determinado restringe a prá-
xis humana a descobrir a realidade oculta pela superíicialidade
mulante e descontínua dos fatos. Em tal caso, a racionalidade se
apresenta como o ponto de partida, o caminho e o objetivo final a
ser atingido: racionalizando o real, realizamos sua essência racio-
nal. Este é o modelo de racionalidade instrument<1l que de várias
formas vem sendo implementado hegemonicamcntc cm nossas
sociedades durante os últimos séculos.
A ontologia da determinação reduz o antropológico e o
socioistórico a algo pré-definido por uma essência, teleologia, leis
ou regularidades. Dentro dessa concepção, a ação humana se li-
mila a compreender as leis implícitas na natureza do socioistóri-
co, com a finalidade de aplicá-las o mais corretamente possível.
Desse modo se contribui para o desenvolvimento natural das
potencialidades subjacentes à essência do socioislórico.
Ao ousarmos pensar a realidade desde a perspectiva da
indeterminação, emerge um mundo novo de indefinidas possi-
bilidades de ser. Ao conceber a realidade como algo indetermi-
nado, a práxis humana não se limita a descobrir o já implícito,

5 MORJN, Edgard. /11trod11cción ai pen.samientammpll'jo. Barcelona: Gedisa, 1994,


p. 60-61.
Lnstor M. M. Bnrtolomé Ruíz 35
mas a criar o inédito. Se a realidade está permeada pela indeter-
minação, o conhecimento das inegáveis regularidades que cons-
tituem parcialmente o real formaria um aspecto complementar
da sua natureza, porém o objetivo da práxis humana não se res-
tringiria a conhecer o já existente, para aplicá-lo corretamente,
mas a criar novidade socioistórica. Se a realidade é indetermina-
da, o caminho da criação socioistórica está aberto.
Caso contrário, se a natureza do real fosse algo inextrica-
velmente definido, o ser humano pode conjugar alternativas hi-
potéticas dentro de um conjunto limitado de possibilidades na-
turalmente pré-definidas; pode escolher aquelas que acha mais
viáveis e, inclusive, tem possibilidade de entrelaçar diversas op-
ções para constituir um conjmlto diferente. Mas o que ele não
pode fazer é criar algo inédito; não pode produzir uma criação
socioistórica, no sentido estrito da palavra.
Pensar a realidade como algo indeterminado nos permite
compreender que o humano e o socioistórico só existem enquan-
to criação real e ontológica. Eles não são fruto de uma evolução
programada, nem mero desenvolvimento de uma essência ou
teleologia implícita neles.

A lógica e ontologia da determinação:


um olhar panorâmico

Ao tentar resumir algumas idéias de autores, nunca se faz


justiça plena a nenhum dos dois, pois todo resumo é inevitavel-
mente uma forma de reducionismo. Isto desafia o leitor a ampli-
ar e complementar os caminhos apontados, seja concqrdando ou
discordando deles.
Os clássicos - A tradição greco-ocidenlal tem pensado a
realidade em geral e o socioistórico em particular como algo de-
terminado em si mesmo (prrns). Em palavras de Hegel: É só nn
s11pl'lfície onde ex,~·te ojogo dos nznrt's, pois a realidade nada ma is é
do que uma ordem física em que todos os elementos estão deter-
minados pelas prescrições da natureza, uma ordem biológica em
que cada indivíduo obedece à norma de sua espécie e uma or-
dem social onde cada pessoa obedece à norma de sua cultura. A
36 Os parndoxos do imngintirio

objelividadc ou verdade do real se encontra situada numa hete-


ronomia; o sentido pleno do real vem dado por algo que já está
pré-definido.
O conceito elcático do ser, assim como o postulado que ele
expressa constituem o começo hislórico e a temática recorrente
da lógica em geral. Pensar e ser são concebidos não só como co-
rcferentcs, mas como coincidentes. Eles estão numa relação de
pura identidade. Aquilo que o ser é, sua essência, só se deixa
captar pelo pensamento. E na inversa, todo pensar se refere a um
ente determinado corno a seu objeto. Em palavras do próprio
Parmênides: O pensar e o objl.'fo do pensamento são 111110 sócot~'tl, por-
que não podes encontrar o pt'11b'tlmento bí.'111 o l'llfe no qual ele se ncltn
t'xpresso.
Platão construiu o mundo das idéias (eiiiob'). É o mundo da
perfeição, onde se encontra o ser pleno e determinado das coisas.
É ali que reside a autêntica verdade dos entes, que aqui contem-
plamos como sombras. N6s, homenc; da caverna, só temos acesso
às tênues sombras que os ddos projetam sobre nossa existência.
Para nos encontrarmos com a verdade, devemos sair da caverna
constituída pelo socioistórico, só assim poderemos aceder ao ver-
dadeiro ser das coisas. Filósofo é aquele que possui a práxis su-
blime que lhe pcrrnile sair da caverna dos sentidos e o transpor-
ta, por meio da snosis, ao mundo definido dos ddos.
Aristóteles, ao perceber a ilusão inerente ao mundo platô-
nico das idéias, volta seu olhar para os entes concretos. Neles
pretende recnconlrar uma explicação menos idealista que a de
Platão. Fugindo das determinações r,dltim..; do idealismo, cons-
trói a realidade a partir de uma essência (ousin), na qual reside
em potência o ser da cada coisa. As perfeições não estão mais no
mundo puro das idéias, mas na ousinoculta no ser dos entes. A
ousin possui de forma potencial todas as possibilidades d e ser de
cada ente particular. O conhecimento da realidade se efetiva por
meio do descobrimento das potencialidades da ousin. O ser da
realidade está perfeitamente determinado na essência inerente a
cada ente concreto. A práxis humana, em geral, e a do filósofo,
cm particular, consiste em desvendar as potencialidades ocultas
da essência. O futuro reside no tdos inerente a cada essência. Todo
ato está conlido na potência, que já o possuía como possibilidade
Cnstor M. M. Bnrtolomé Ruíz 37
de ser. Ele, na verdade, não representa uma novidade absoluta,
pois, de alguma forma, já estava presente na essência. O ato por
acontecer é algo previsível; ele reside como potencialidade espe-
cífica de uma essência determinada. Esta é a lógica da identida-
de.
Há um paralelismo pleno entre a lógica da identidade e
sua ontologia. Nelas, o conceito constitui a revelação da essên-
cia. O juízo formal representa plenamente a realidade objetiva
do ente. O raciocínio consegue desvelar totalmente o ser dos en-
tes, pois todo raciocínio é um reflexo do ser. A realidade é susce-
tível de ser conhecida de modo pleno, dado que está constituída
de forma determinada. É o conhecimento racional que desema-
ranha a trama oculta da realidade e a realiza como algo racional-
mente estruturado. Desentranha sua essência pelo conhecimen-
to e a realiza pela ciência e técnica. A ciência e a técnica se limi-
tam a projetar um desenvolvimento correto das potencialidades
próprias dos entes. Ciência e tedme sã concebidas como modos
instrumentais de efetivar-se a racionalidade. Desse modo, a racio-
nalidade instrumental chegou a constituir-se na (per)versão do-
minante do paradigma da nossa modernidade.
Estritamente falando, a realidade não pode ser algo dife-
rente daquilo que potencialmente já é. A lógica e a ontologia da
identidade marcaram de modo hegemônico o pensamento da
maior parle da história da filosofia greco-ocidental. Elas pressu-
põem um conjunto de categorias que definem e determinam a
realidade em geral e os entes em particular: identidade, oposi-
ção, diversidade, totalidade, unidade, realidade, necessidade,
possibilidade ... Embora essas categorias sejam constmtos racio-
nais, definem as causas e conseqüências, delimitam o que consi-
deram o princípio material e princípio formal do ser, sendo am-
bos constitutivos da substância. O movimento está determinado
no seu princípio pela causa eficiente e no seu fim, pela causa fi-
nal.
Na lógica e ontologia da identidade, o termo ser não é es-
tritamente unívoco nem equívoco; ele é análogo. O sih'Ilificado
original do ser está referido à substância primeira. Diferente de
Platão, que definia o ser como o ideal universal das coisas con-
cretas, a ontologia aristotélica identifica o ser com o indivíduo
38 Ospnmdoxos do ti1111sindrio
---------
concreto, com o ente como especificação da substância. Em am-
bos os casos, concebe-se a realidade como algo determinado. A
verdade é algo definido (pems), que deve procurar-se por meio
do dt',wendamento racional do real. Nós só teremos acesso à ver-
dade oculta na realidade quando retirarmos o véu que encobre a
essência escondida no seu ser. Na lógica e ontologia da detenni-
nação, o sentido está pré-determinado por algo já definido, que
possui a explicação última sobre o princípio e o fim de ludo o
que existe.

A ml'lnfisicn grf'gn que pensn o ser do q11e épt'f1Sll f'Sft' Sf'r como um
e11ft• 'fllt' s1.' cumprf' ou renlízn no pcn.-ar. Este pn1snr éo pcnsnmt'!Tlo
do 'nous: qul' s,· pr11sn LVJJIO o enfl.• s11prt'mo f' mais n11th1tico, o q11e
,r1í11e em si o ser dl' tudo o qut• é'.

Os modernos - Dando um sal lo à filosofia moderna e ana-


lisando algumas linhas dê pensamento mais significativas, cons-
tatamos que a percepção do ser como algo determinado continua
sendo um objetivo amplamente perseguido. A dialética hegelia-
na pretende constituir a superação da determinação do ser hile-
mórfico, entendido este como uma essência pré-definida e aca-
bada. Para isso concebe o ser como uma autoconsciência que se
projeta historicamente. O socioistórico acontece como resultante
das leis da dialética, que, por sua vez, estão enraizadas e direcio-
nadas pela Idéia. Esta projeta teleologicamente os acontecimen-
tos históricos. A dialética pretende superar o mecanicismo racio-
nalista e o hileformismo estático; para tanto, elabora uma nova
prospecção, na qual se integram os contraditórios de forma dinâ-
mica e dialética, porém dirigidos por uma nova forma de telas
racional incrente à idéia.
No primeiro capítulo da Introdução à Hi-,tória dn Filosefi11,
Hegel afirma: Conceito, Jdàn ou Rnzão e n evolução ddes. Srio estas ns
determinações dn evolução do concrt'fo. O p,vduto do pensnr, o pmsn-
mmto em gpro/ é o objeto dn jilosojin. O pmsamenfo aparece p11rn nós,
inidnlmente, como jormnl, o conceito como pensamento determinado

6 GADA:\lliR, Hans Georg, Verdad y mltodo:fi111dame11tos de u1111 lwrnrmlutk~,


jifosójic11, Salamanca, Sígueme, 1977, p. 547.
Castor M. M Bnrtolomé Ruiz 39
(comopensnmento dt!fi11ido); n Jdârz é o pmsamento na sua totalidadt',
o pe11snmento determinado rm si e por s,: A 110/ureza da idéia/ agom
desenvoluer-se (evoluirf.
Nada escapa à autoconsciência da Idéia, como nada está
fora da lógica teleológica da dialética. A realidade deixou de es-
tar determinada por uma essência, mas agora está definida por
um fl'los racional. Este te/os configura, de forma determinada, o
socioistórico e impede que tenha um sentido autônomo. O te/os
racional invalida a possibilidade da criação não pré-vista pela
Idéia. O verdadeiro e autêntico sentido do socioistórico reside na
teleologia implícita na estrutura dialética da Idéia.
Marx inverte a perspectiva da dialética hegeliana, inserin-
do-a na estrutura da matéria. A realidade não é mais transforma-
da pelo processo de autoconsciência da idéia. Agora são as leis
da natureza, que existem de forma implícita em todas as coisas,·
as responsáveis pelo processo de transformação da realidade. O
socioistórico também está penetrado por essa teleologia imanen-
te das leis naturais. Sociedade e história se desenvolvem a partir
de um processo dialético pré-definido pelas leis implícitas da
história. A história é pré-visível. O que deve acontecer já está sub-
jacente na dialética do fazer histórico. Não existe possibilidade
de modificar as grandes diretrizes que impulsionam o rumo da
história. Desde esta perspectiva, não nos é permitido falar de uma
criação histórica no sentido real ou ontoló!:,rico da palavra, ou seja,
não podemos pensar na possibilidade de fazer acontecer algo que
não é previsível, nem está potencialmente implícito no já exis-
tente. A práxis humana deve pautar-se pelo conhecimento das
leis da dialética implícitas no ser das coisas.
Não pretendemos ser exaustivos no estudo qistórico, só
queremos mostrar algumas das principais concepções filosóficas
que, estando de uma ou outra forma imbuídas de uma lógica e
ontologia da determinação, nos possibilitam ter uma visão do
alcance histórico que Leve e ainda tem a ontologia da determina-
ção e as conseqüências que ela acarretou para a compreensão da
realidade antropológica e socioistórica.

7 HEGEL, Georg W.F. !11/roducáón II la Tt!osefta. !\1adrid: 5arpe, 1983, p. 39.


40 Os paradoxos do li11agi11rírio

Desde uma postura contrária ao pensamento dialético,


porém nessa perspectiva de uma ontologia da determinação,
devemos considerar a importância que o positivismo teve e sua
versão mais atual, o neoposi li vismo, ainda tem. Ambos analisam
a realidade a partir dos paradigmas da racionalidade empírica.
Só é verdadeiro aquilo que é possível comprovar e demonstrar.
O socioistórico está circunscrito a fatos positivos. Estes fatos são
algo objetivo, suscetíveis de uma análise empírica. Tudo o que
escapa ao domínio da comprovação experimental é descartável
ou secundário. A verdade se reduz ao método de comprovação.
A verdade é concomitante a sua descrição, constatação, sem es-
paço para a criação.

O l'l"rdadúm mdodo da jilosefin serrn p1vpriammf1' esf1': 11iio dizf'r


nada, n 11iio ser aquilo que 51' porf,, dbr; iç/o 1~ as proposições da C1Í'll-
c1n natural - nlgo, p01:,, qu,, nõo tem nada a wr com n_ftlosojin- ... B_

O socioistórico também é essencialmente positivo. Deve


ajustar-se ao rigor da análise científica, que estabelece com exati-
dão as causas e conseqüências, ao tempo que projeta com um
alto nível de precisão as probabilidades futuras. No nível doso-
cioistórico, tudo o que não for científico deve ser superado. Este
é o imperativo da etapa positiva.

A revolução fimdnmental q111' mmcteriza o r'sfndo v11ronil da nossa


h1td1~rh1ctn consiste t'm substduir por toda parte n inaces:;;íwl dt'-
lerm11117çiio das m11_,;n.,-proprimnenfl~/nlm1do pda simpf,,s i,w,,.,flta-
çõo das suas lá,, das rdaç&·s constanfl'S que ex,i;ft>m enln' os}wô-
meno5 obSl'n,ado1,JJ.

Dentro do conjunto de teorias atuais que pensam a reali-


dade socioistórica de modo determinado podemos mencionar o

8 \IVITIGENSTEIN, Ludwing. Trnctntus Lógio-PhrlosapJ11á1s. Madi-i: Alianza,


1979, 6.53
9 COMTE, Auguste. Di,wurs prélimmu,re, sur /'esprit pos1iJf. 2 Ed. París:
Apostolat \Positiviste, 1893, p. 17.
Castor MM. Barto/omé Ruiz 41
funcionalismo. Uma das pretensões do funcionalismo é reduzir
a sociedade à natureza. Parte da premissa de que todas as neces-
sidades humanas são naturais e que a sociedade se constitui para
satisfazê-las. Para tal finalidade criou-se um conjunto de funções
fixas e estáveis. A sociedade se explicaria pelas funções estabele-
cidas, pela relação entre elas e por sua complexidade. Desse modo,
o social sempre pode ser reduzido às funções sociais que o expli-
cam e determinam 10. A sociedade é análoga a um organismo ou
hiperorganismo com um sistema de funções independentes, de-
terminadas a partir de uma finalidade. Oado que a finalidade
última de todo organismo se pode reduzir à auto-reprodução e à
autoconservação, a organização da sociedade pode ser compre-
endida a partir dessa mesma finalidade.
A chamada Teoria Social de Sistemas constitui uma vari-
ante mais elaborada do funcionalismo 11 • O social se explicaria
pela interação de sistemas. Cada sistema está formado por uma
lógica própria, que interage de forma aberta com a lógica dos
outros sistemas que o circundam, até formar um todo lógico, co-
erente e harmonioso.
O arredor de um sistema está formado por outros sistemas.
Internamente cada sistema se subdivide em subsistemas que pos-
suem uma dinâmica própria e estão entrelaçados com outros sub-
sistemas. Os sic;temas surgem como resposta social ao caos de su-
cessos contingentes, pois a complexidade e o caos só são reduzí-
veis com um maior aumento da complexidade sistêmíca 12• Essa
teoria resulta muito valiosa à medida que nos possibilita uma com-
preensão mais acurada da complexidade das sociedades contem-

10 MALIJ\'OWSKI, Bronislaw. Unn leorífl denl(/k'fl de l11 cultuni. Buenos Aires:


Edhasa, 1981.
11 Após os anos cinqüenta, a visão fw1cionalista muda a metáfora sucial do
organismo vivente para a concepção de sistema. É Talcott Parsons quem
baseando-se nos estudos de cibernética aplicada que foram dt>~envolvi-
dos durante a segunda guerra mundial, realiza o giro metafórico para a
sociedade como "sistema auto-regulado". Cf. !d. The Soanl System. Glcncoc:
Pree Press, 1967; Id. Sodologiml Tlreorymrd Modem Soaety. New York: Frcc
Prcss, 1967.
12 LUIIMAN:--, Niklas. S1stem11, so,111k,. México: Fondo de Cultura Econónúca,
1984, p. 48,
42 Os prmzdoxos do 1i11ngimirio
-----------
porân eas. Ela também nos permite conectar de modo aberto os
complexos nichos sociais que se desenvolvem na contemporanei-
dade. Porém, à medida que tende a reduzir o social a uma deter-
minação sistémica explicativa, reduz a sociedade e a práxis huma-
na a um modelo pré-definido por funções complexas, que intera-
gem nos diversos subsistemas e que direcionam a práxis humana
para o modo natural de ser da sociedade. Isto equivale a peTL'iar o
social a partir de um modelo natural definido, que estrutura a com-
plexidade para um modelo único, ainda que complexo, de consti-
tuir-nos como sociedade e como pessoas. Nessa linha se propõe a
realizar uma classificação da evolução histórica dos diversos siste-
mas sociais, tendo em conta seu grau de organização. Houve uma
sociedade baseada nas interações, seria a sociedade arcaica; outra
sociedade sustentada em organizações, que corresponderia às al-
tas culh1ras regionais; e finalmente uma sociedade, a contemporâ-
nea, baseada no sistema social1 3 •
Olhando outra per?pectiva, o estruturalismo constitui uma
outra visão contemporânea, que concebe a realidade antropoló-
gica e o social como algo determinado. O socioistórico se explica
por meio das combinações lógicas possíveis e finitas que se reali-
zam num conjunto determinado. A mesma operação lógica, re-
petida um determinado número de vezes, explica a realidade
humana. Esta é a resultante de uma combinação binária de mul-
tiplicidade de elementos. Alto e baixo, masculino e femininô, dia
e noite, frio e calor, morte e vida são tomados como dados natu-
rais, sem interrogar ou questionar a carga de significação social-
mente instiluída que existe neles. O estmturalismo sustenta que
a esfera de significado de toda a sociedade é produto da ordem
interna dos signos estruturadores cm pares de oposições1-1.

13 LUll'-'lAN1',Niklas. Tht'D!fferrnfi,1tio110/Soctc~lf NPwYork: 1982;ld. Flmktúm


dt'r Religion. Frankfurt am '.\.1ain: Suhrkamp, 1990. ld. lntroducdón f1 lf1 tmrin
de sistf'mll.<. México: Universidad Iberoarnericana de Guadalajara, 1996.
14 LEVI-STRA!.lSS, Claude. Le cm el f,, mr!. Paris: Plon, 1964. Para uma melhor
compreensão da visão estruturalisla d: Jd. TotémL<mt' f1UJ'ot1rd'/1111: París:
PLE, 1962; !d. Antropo/ogíf1 Estrud1m1/: milo soacdnd, humn111d,1d,-•. Madrid:
Siglo xx1, 1979; ld. Las t'Hfructums elemen/11/es de pnn-11l1'.<co. Buenos Aires:
Paidós, 1969.
Castor M. M. Bnrfolomé Ruiz 43
Ponp1e se fmfn aqui tft, separar nrfo tanto o que ex,:,·te nos 1111/os...
mos o s1skmn dt' n.riomns e dt' pos/11/ndo;.~ d1ji111ildo o melhor cód(r;:o
possível, mpnz de dar umn signijil'llfdo co11111111 n elnbornçõt's i11-
co11sck11ft's15.

A lógica e a ontologia da detenninação se manifestam de


modo excepcional na teoria dos conjuntos. Os objetos são bem
definidos e delimitados, e suas relações surgem a partir de uma
gama combinatória possível. Uma vez delimitados o objeto e as
relações possíveis entre os diversos objetos, pode-se prever um
número finito de novos conjuntos. Estes novos conjuntos surgem
a partir dos já estabelecidos. Essa lógica con;imtistn supõe a cons-
tituição prévia de um conjunto de operações específicas para
definir os objetos: distinguir, definir, separar, juntar, contar... Não
importa qual seja a natureza dos objetos, o decisivo é compreen-
der que existe um conjunto de operações lógicas, que são prévias
e concomitantes à constituição do objeto como objeto. Essa lógica
conjtmtisln e úimliftírin resulta necessária a todo pensar sobre o
objeto. É necessário pensar o objeto definindo-o, separando-o,
relacionando-o, contando-o ... A lógica con;imti-,tn-idmtiltilirn es-
tabelece que uma coisa é predicável enquanto faz parte de ... O
objeto é definido pelos atributos e por estes determinados atri-
butos. Dedutivamente, a lógica conjuntistn estabelece a ~
determinação do que é essencial ou acidental para cada elemen-
to de cada conjunto. O elemento fica definido por aquilo que se
considera essencial para pertencer a um determinado conjunto e
sem o qual seria excluído desse conjunto. Concomitantemente se
define aquilo que resulta acidental nele: aquilo que resulta pres-
cindível para sua pertença e participação nesse determinado con-
junto. ·

15 LEVI-STRAUSS, Claude. Le cm l'f /e cuit. ParL~: Plon, 1964. Para uma melhor
comprt'ensão da visão estruturalista d: !d. lõtémisme 011;óurd'/11(1. París:
P.l'.F., 1962; !d. A11tropolosí11 ütructuml: mito .<ocied11d, lmmr1mdnd1•. Madrid:
Siglo XXI, 1979; Id. Las l'structums e/emcnloles d,, parmle.<eo. Buenos Aires:
Paidós, 1969.
44 Os pnmdoxos do imaginário
---------------
Alguns questionamentos à lógica
e ontologia da determinação

O elenco de teorias anteriormente mencionadas e outras


muitas, que por falta de espaço não podemos referir, sendo mui-
to diferentes nos seus postulados e conteúdos, têm em comum a
constituição de uma lógica e ontologia da determinação como
matriz teórica, que possibilita compreender a realidade em geral
e o socioistórico em particular como algo pré-definido ao que
nos devemos acoplar.
Tendo como base a determinação do real, o antropológico
e o socioistórico são reduzidos às categorias que os instituem:
coisa, objeto, idéia, conceito ... Desse modo, eles se encontram
subordinados às operações lógicas que elevam elementos parti-
culares à categoria de universais. Segundo uma conhecida sen-
tença de Heidegger, Knnt jtí sn/Jin ditmle de qué 'de recunvn: qunndo
subtmiu n rnziio próticn à l'<Jmpeténcin (às atribuições) de umn imngi-
nnçiio prod11fil1r1.
Se o antropológico e o socioistórico são configurados pela
determinação ontológica do real, a pessoa, a história e a socieda-
de não podem acrescentar nada de essencial que a realidade já
não possua, pois eles são partes determinadas pela totalidade. Se
o real é detenninado, a sociedade e a história existem na m~dida
em que se submetem às determinações do ser. Nesse caso, o real
não só está determinado, como também é determinante. Pessoa,
sociedade e história são na medida em que se adaptam dentro de
uma ordem de possibilidades estabelecidas pela ontologia deter-
minante do ser. Pode-se pensar um conjunto de possibilidades
do ser socioistórico, porém todas elas estão limitadas à essência
ou teleologia do real1 6 •
Ao manter as premissas da ontologia da determinação,
resulta inexplicável a novidade socioistórica; é incompreensível
a divergência dos diversos modelos sociais e dos multípliccs
modos de vida construídos ao longo da história. O mullicullura-

16 111:u1., Gcorg W. F. lntmduca6n ,1 /11 l11stori11 d,, Ili fi!osqfío. J\fadrid: Sarpc,
1983, p. 195-199.
Castor M. M Bartoloml Ruiz 45
!ismo, por exemplo, seria uma excrescência da história, que deve
ser superada na medida em que a racionalidade uniformiza, num
padrão comum, universal e superior, o conjunto das culturas e
reduz a diversidade a meros elementos acidentais de comporta-
mentos curiosos e folclóricos. Resulta fácil perceber como por trás
dessa lógica universal, fundamentada numa ontologia da deter-
minação, paira a sombra do poder dominador. Para explicar a
realidade como algo determinado por uma racionalidade implí-
cita, devemos podar todas as singularidades que não se ada piam
ao nosso modelo teórico e nos vemos impelidos a ignorar ou ne-
gar tudo aquilo que, de um ou de outro modo, não se encaixa
plenamente nas premissas preestabelecidas. Esta é a grande iro-
nia representada em tantas ocasiões na forma de tragédia huma-
na. Tragédia que sempre está embalada pelas concepções fecha-
das e deterministas do socioislórico e do antropológico. Dizia Ri-
lke: As coíst1s nos desbordam. As ordenamos. Se desagregam. As orde-
namos nommcnte e nós nos dôngrt'gfl11tos (Elegias do Duino).
Retornando ao exemplo do funcionalismo, desde seu cír-
culo explicativo resulta incompreensível a multiplicidade de ações
sociais que não preenchem uma função determinada. Não tem
como explicar por que se as necessidades são naturais, se criam
necessidades diversas em sociedades contemporâneas e, inclusi-
ve, necessidades contrárias dentro da mesma sociedade; não tem
como explicar por que se institui de fom1a plural e divergente a
solução para uma mesma necessidade. Todos concordamos que
alimentação é uma necessidade, mas por que em algumas cultu-
ras, determinados alimentos são proibidos, como a vaca na cul-
tura hindu, o porco no judaísmo e no islamismo, etc., enquanto
em outras constitui a dieta básica? A habitação é natural, mas
por que em algumas culturas se privilegia dentro da rosa o espa-
ço privado e em outras tudo é comum? O sexo e a reprodução
são funções naturais, mas por que o sexo é visto como pecamino-
so por muitas pessoas e por outras não. Diz que a família é uma
estrutura natural, porém a diversidade de formas culturais cm
que se estrutura a família não se explica pela mera função social.
Muito mais complexo resulta compreender o desejo humano a
1-1artir meramente da função que ele desenvolve na sociedade. O
funcionalismo não tem resposta para esses porquês, já que nem
sequer leva em conta o porquê da ação humana. Limita-se sim-
46 Os pamdoxos do tinn,finário
------------------
plcsmcntc a constatar a importância social de um determinado
elemento, destacando a função ou funções que desenvolve sem
poder explicar sua origem. Se a ação humana se explicasse pela
mera necessidade biológica ou de subsistência, não se entende-
ria a diversidade nem a multiculturalidade.
Não se pode explicar o ser humano nem a sociedade de for-
ma absoluta por nenhum tipo de determinação. Não é possível
reduzi-los a categorias ou construtosexplicativos definitivos. Qual-
quer explicação será sempre um modo parcial e fragmentado de
aproximar-nos do fazer humano. Embora as leis e as regularida-
des sejam parte da realidade, ambas se estruturam de modo aber-
to e indeterminado. A abertura das regularidades humanas possi-
bilita a confecção de visões globais, porém todas elas relativas. A
práxis humana que produz o socioistórico não está pré-definida
por nenhum tipo de categoria, racionalidade, normatividade, lei
natural ou regularidade. Ela é construída sempre a partir do senti-
do que a pessoa e a societjade instituem para aquilo que realizam.
Esse sentido não pode ser deduzido nem induzido de forma abso-
luta a nenhum outro elemento. Ele é uma criação, na acepção mais
mnpla da palavra. Só a significação instituída de modo criativo
pelo ser humano e pela sociedade pode explicar o porquê da prá-
xis humana, pois: O homem é pré-visor. Está orientado - como Prome-
teu -ao longúu1uo, ao não pre..;mte 110 esparo e 110 tempo: no contrário do
aminal, llll't' pam ofuturo e não pnrn o presente.17 ·
Dentro da lógica e ontologia da determinação, é possível
aceitar a pluralidade, a variedade e diversidade, mas sempre de
modo limitado, conjugando-as com os limites que o real impõe.
Sendo assim, o tempo se constitui num simples receptáculo de
acontecimentos que se produzem com o de.wendamento do ser.
Não existe uma alteridade radical que crie o tempo como novi-
dade socioistórica. Nesse caso, a racionalidade histórica constrói
leleologicamente a história, e o tempo é um simples meio no qual
se desenvolve o acontecer social. A história não tem novidade
porque possui uma racionalidade implícita. A racionalidade his-
tórica é a lógica que constitui o ser da história.

17 CcHLlN,Arnold. E/ l!ombrc .su !l{lfum!cw y su lugar m d mundo. Salamanca:


Sígueme, 1980, p. 36.
Castor M. M Bnrto!omé Ruiz 47
O tempo da determinação do real é submisso aos ditados
do desenvolvimento já pré-definido. Só se pensarmos o antropo-
lógico e o socioistórico sob a ótica de uma ontologia da indeter-
minação (apeíron), pode existir o tempo real. Este devemos en-
tender como um tempo de criação, produtor de novidade histó-
rica.
Só é possível a existência da natureza criadora do ser hu-
mano e da sociedade, se pensarmos numa indeterminação ine-
rente a seu ser. Os questionamentos que viemos realizando à on-
tologia e à lógica da determinação não podem induzir-nos a pen-
sar que não existe um modo de ser do humano e do socioistórico.
Pois se a indeterminação da realidade em geral e do humano cm
particular fosse absoluta, o caos também seria absoluto e a con-
fusão total. A indeterminação absoluta do ser tornaria impossí-
vel a existência continuada de algo e impediria simplesmente
pensá-lo como tal. Isto não sib111ifica que a alternativa ontológica
à indeterminação absoluta tenha que ser a determinação plena
do ser.
Para poder existir, o socioistórico deve configurar-se sob
determinações específicas, sejam estmturas sociais, modos po-
líticos, valores, leis, formas produtivas, idéias, costumes, etc.
Essas determinações manifestam a realidade por meio de entes
particulares, porém ela não se esgota nessas determinações es-
pecíficas. Junto com a possibilidade de concretizar-se em for-
mas determinadas, o ser do socioistórico não pode ser identifi-
cado com as especificidades que ele constitui. O antropológico
e o socioislórico existem na medida em que se determinam na
forma de instituições, funções, normatividades, valores, estru-
turas, modos de ser... , mas nenhuma dessas determinações es-
pecíficas nem a soma de todas elas conseguem expli~ar sua na-
tureza. O ser do humano e sociedade são radicalmente inex-
plicáveis, porque sua raiz ontológica está impregnada pela in-
determinação.
Existe, bem entendida, uma natureza da pessoa, da socie-
dade e da história: n criação. Nas palavras de Rilke: Nossn v1dn se
esgotoº" trnn.,Jórmnrno (Elegias do Duino). O modo de ser da
pessoa e da sociedade se realiza mediante a possibilidade, no
sentido ativo, de criar formas (eidos) de existência social e pessoal.
48 Os pnmdoxos do ti1111gi111írio

Essa natureza ou modo de ser do humano e do socioistórico se


manifesta na possibilidade de inovar, de fazer existir algo que
não eslava pré-visto nem pré-definido anteriormente em nenhum
tipo de essência, teleologia ou lei natural. Essa natureza criadora
se exprime na alteridade diferenciadora das instituições, das lín-
guas, das personalidades, do ethos... Essa criação não está con-
cluída em nenhum sentido da palavra. Ela não pode esgotar as
possibilidades indefinidas de ser do socioistórico, nem com ela
se conclui o modo de ser das coisas.

A indeterminação radical do imaginário

Como pensar essa indeterminação radical do ser humano


e da sociedade? Ela não pode emergir a partir da mera racionali-
dade. O logos leva implícito um princípio de determinação que
regulamenta e estmtura a realidade em função de uma racionali-
dade causal, teleológica, instrumental, ele. A mera razão não pos-
sibilita a criação. A criação deve estar tramada por um princípio
de indeterminação que não reside na própria racionalidade. Onde
achar este princípio de indeterminação no ser humano e na soci-
edade?
O ser humano, antes de pensar logicamente as coisas, ima-
gina-as. A pessoa, por diversos motivos, seleciona do fluir caóti-
co de sensações que invadem os sentidos, determinadas imagens
e as institui com um sentido específico. Da amálgama de sensa-
ções sem sentido que fluem perante ele, algumas são captadas e
transformadas em imagens. Essas imagens são imediatamente
significadas. Desse modo, o caos fugidio das impressões sensori-
ais se organiza como um cosmo de sentidos imaginados. A ima-
ginação é muito mais que a mera possibilidade de fantasiar a
realidade; ela constitui a potencialidade que o ser humano tem
de impregnar de sentido - de modo volitivo e afetivo - as sensa-
ções. A imaginação possibilita ao ser humano que o mundo deixe
de ser para ele uma mera apresentação, como é o caso da consci-
ência animal, para transformar-se numa representação. Os obje-
tos passam de elementos sem sentido a ser coisas com significa-
do.
Castor M. M. Borto/oml Ruiz 49
Enlrt'fnnto, 1111 mrdrdn t'm que o imngtiuirio Si' rt'dflz fii111lmenle ti
JiTc11/dnde origli1áJin dt' pôr ou de dar-se, sob nfonnn de r,•presm/11-
ção, umn coisn e umn ll'lnção q111' não sito (que não são dnd11s 1111
pt'l'Ci.'PfllO ou que 1111nm fornm), falarmros de 11m i1111Tgi111írio 1ílftiJ10
011 radical, como miz comum do à1111gindrio c:Jdivo t' do simbólico. É
jinalm,'llfe IT mpncidade ,•lementtTr e irredutíwl de evomr 11111,1 ima-
gt'l!I. '"

O imaginário é, por natureza, indeterminação radical. Ele


flui como uma força incontrolada e incontrolável dentro do ser
humano e da sociedade. O imaginário não está definido por ne-
nhum tipo de determinação, por isso se constitui como força cri-
adora que emerge do sem-fundo humano e da sociedade, a fim
de fazer possível a novidade socioistórica. O imaginário se mos-
tra irredutível a uma lógica e ontologia da determinação. Ele se
manifesta como fluir criador que constrói permanentemente ima-
gens com sentido de um mundo que, por princípio natural, é in-
significante para o resto das espécies animais. 19

18 c,,sTORIAms, Cornelius. A i11slit111ç~io imap1uiria da sociedade. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1991, p.154.
19 Para ampliar as referências sobre o imaginário cf. C,\SlORIAOl5, Cornc!itL~.
L 'fnsldulimt 1i11as,i1aire de la sodeté. Paris: Seuil, 1975; Id. Les mrrejours du
/aberynlhe. París: Seuíl, 1986; CORIHN, Henry. L 'imn,rh111tion erra/ice da11s !e
so1tfis111ed'fb11 Amb. París: Flammarion, 1959; rn:RANO, Gilberl. Ú.'S slr11l'fure5
Qt1fhropolosiques de /'1111aginnire. Paris: Bordas, 1':179; Id. L '1magi11ntio11
.,ymbolique. Paris: Presses Cniversitaires de France, 1984; ELIADE, Mírcea.
/111t1,\Y.- l'f s.1pn/Joles, essQi s1tr /e symbofisme magü:o-re!(r;ieux. Paris:
Gallimard, 1952; ORTIZ-OSÉS, Andrés. Lns dal'l''S simbólicas d,, nuesfra mllurn.
Barcelona: Anthropos, 1993; Td. e LA'(CEROS, Patxi (Orgs.). bicciom1rio de
!termnu•ulirn. Bilbao: Deusto, 1997; RICOFUR, Paul. "Le conflit des
herméneutiques: épistémologíe des interprétations" 01!11ás lnta11nlio11n11x
d,· s.1/mhol,smc. l (1962); !d. lnlroducadn a ln simbóliw dd mal. Megalópolis:
Buenos Aires, 1976.
Para uma visão mais ampla do imaginário e do simbólico remetemos aos
estudos da Escola de Eranos fundada pr C.G. Jtmg (1875-1961) em 1933.
Esta s•scola fez do imaginário e do simbólico, assim rnmo da implicação
existente entre eles, o objetivo da sua existência. Dela participaram auto-
res como C. G. Jung, K. Kerényi, W.F. Oito, 11. Zimmer, J. Campbell, C..
50 Os pnmdoxos do ti11ngindrio
Embora o imaginário seja a potencialidade criadora do
humano e não possa ser delimitado por qualquer tipo de deter-
minação lógica, ele não pode existir senão imbricado na raciona-
lidade. Não é possível pensar o imaginário sem a racionalidade.
Só nas patologias se manifesta uma sensibilidade absolutamente
fora da razão. Também não é possível pensar uma razão que con-
segue sufocar o imaginário ou esgotar suas possibilidades cria-
doras. Ambas as dimensões, razão e imaginação, estão indissoci-
avelmente implicadas. Uma não pode existir sem a outra. Ambas
existem co-rcferidas, porém de uma forma tensa e conflitante. A
tensão própria do imaginário e da racionalidade leva, muitas
vezes, a pretender explicar um anulando o outro ou pretender a
dissolução de um no outro.

O homem St' situa aqui entre a lógica 1dmhftiria (apolínm) e a ll~(rim


des1de11flMri11 (diom:,1ácn), qual Hames o I /('1771enmfn capaz de klm-
t(ficnr a difi'Tl'IT(ll, co11scti'llliznr o i11co11scie11/e e reimplicnr n
dr5implil'llçõd-0•

O imaginário não pode ser delimitado pela racionalidade.


Esta se manifesta incapaz de reduzir a potencialidade criadora do
imaginário a categorias lógicas ou a estruturas de pensamento. Pelo
contrário, a própria ~acionalidade está impregnada pelo poqer cria-
dor do imaginário. E este poder criador do imaginário que capaci-
ta o logos para pensar a novidade socioistórica e criar além do já
existente. A mera lógica racional reproduz e combina logicamente
o existente, mas o poder de criar o diferente - algo que não existe
nem se deduz ou induz do já dado-reside na polencialidade cria-
dora do imaginário. Esta é uma faculdade que não se esgota na
mera racionalidade, mas também não pode existir fora dela.

Duraml, J. llillman, M. Eliade, H. Read, A. Portmann, G. Sholem, H.


Corbin, A. Ortiz-Osés. Este círculo surgiu com o propósito de manter um
diálogo multidisciplinar e multicultural, tendo o simbolismo como ponto
chave de reflexão.
20 ORTIZ-OSÉS, Andrés. Vt:çfonr.ç Dd mundo. Bilbao: lJniversidad de Deusto,
1995, p. 89.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 51
Por sua vez, não podemos pensar o imaginário como uma
força superior e independente da razão. O imaginário é pura
potencialidade de renovar o sentido do já existente. Porém essa
criação de sentido só pode expressar-se por meio do logos. Só a
lógica permite especificar as potencialidades criadoras do ima-
ginário. Assim como a razão não pode existir sem a fecundação
do imaginário, este não pode concretizar-se se não por meio das
determinações lógicas que a racionalidade impõe. A força cria-
dora do imaginário só pode existir sob a forma de determinações
concretas. Estas delimitações socioistóricas constituem as deno-
minadas significações sociais. As significações sociais são as ins-
tituições, leis, valores, normas, costumes, meios de produção,
formas de propriedade, estruturas, relacionamentos, ethos cul-
turais e sociais ... O conjunto das significações sociais se integra
em forma de rede de sentidos. Cada significação social adquire
seu sentido no contexto de outras significações, todas e cada uma
delas se conectam numa trama mai01~ constituindo, desse modo,
a identidade de urna determinada sociedade ou pessoa.
As significações sociais são determinações possíveis, nun-
ca necessárias, do modo de ser da sociedade e das pessoas. Po-
rém o ser da sociedade e das pessoas não pode ser reduzido ou
induzido de nenhuma dessas significações nem do conjunto de-
las. O modo singular de ser de uma sociedade é suscetível de
análises lógicas, mas estas análises - por muito amplas, profun-
das e variadas que sejam - não podem esgotar as possibilidades
de ser do socioistórico, nem possuem a capacidade de explicá-lo
de modo exaustivo e determinado.
Au pensar uma ontologia da indeterminação, estamos res-
gatando dos porões da exclusão aquela que foi habitualmente
considerada a "louca da casa": n ti!ln,_'{innrão. Pobre l0ttca, tão vili-
pendiada durante séculos de filosofia ocidental. Ela é a dimen-
são humana que nunca se conseguiu controlar. Por esse motivo,
foram estabelecidas as mais variadas formas de domesticação
sobre ela. Em último extremo, quando se chegou·à convicção de
que era inútil o esforço para sufocá-la, foi enclausurada no mun-
do da falácia, pendurando sobre ela o epíteto de perigo; a imagi-
nação é uma alucinação. Mas ela ressurge uma e outra vez desde
todas as perspectivas possíveis na mente do cientista e da mão
52 Os pamdoxos do hnngindrio

dos poetas, na reflexão do filósofo e na experiência dos místicos,


na criação do artista e na práxis do revolucionário, no planeja-
mento da gestão e na esperança da utopia. Porque o imaginário e
o socioistórico não são peras, mas npeíron.
A fratura humana

Aqmlo qul'faço não entendo, pois o que queroJÍT::er 11110faço,


110 l'llfnnto, o que 11õo q111'ro faur, é i»:s·o q111'faço (.. )
/11/di:: d,, mim/ Qunn mi' libertnrri d,· 1111'11 ser, Ji1sfru111cnfo d,, mork?
S. Paulo

O s1•r humnno I, em si mesmo, 11111n co!lfrndição ,,.n:,te11dn/-


Fjórçndo n s,'r lizn·.
Ortega e Gasst"t

A tentativa de aproximação ao ser humano está perpassa-


da sempre por um sentimento complexo em que se imbricam a
impotência de explicar quem ele é e a necessidade de buscar sen-
tido para sua existência. Não é possível realizar uma definição
conceituai do ser humano, já que toda definição denofa uma clau-
sura de sentido. A pretensão de definir o humano mais do que
sabedoria indica um desconhecimento profundo de quem somos.
A pessoa não pode ser esgotada cm explicações, teorias ou fór-
mulas. Ela é, por definição, indefinível; por princípio, resulla ina-
preensível; pela lógica, ela é inexplicável.
Feliz ou infelizmente, nós não podemos explicar-nos. Para
nos compreendermos, devemos implicar-nos inexoravelmente
naquilo que somos e fazemos. Não há uma distância objetiva a
partir da qual olhar com neutralidade o ser humano. Não é pos-
sível isolar uma essência humana, como se se tratasse de um tubo
de ensaio. Talvez porque a essência humana seja a indetermina-
ção radical do seu ser. Não podemos explicar-nos, nem definir-
nos, porque, se temos uma essência ou natureza, ela é indefini-
ção e indeterminação radical. Porém não somos tão indefinidos
que não possamos aproximar-nos, sempre relativa e processual-
mente, de nós mesmos. No entanto, devemos realizar essa apro-
ximação por meio do nosso ser socioislórico, que se manifesta
nas dimensões psíquica e social. Toda aproximação do humano é
uma perspectiva a mais no complexo caleidoscópio de teorias
que, a partir de elementos fragmentados d.e verdade, vão confi-
gurando a autocompreensão não tanto de quem somos, mais do
que podemos chegar a ser.
A pessoa não é um produto acabado, mas uma criatura
aberta pela ambigüidade e enriquecida pelo desejo. Não consti-
tuímos um ser defiqido, mas perambulamos entre a necessidade
de plenitude e a busca de sentido. Não habitamos um mundo
natural, mas vivemos numa selva de símbolos. Não somos um
animal meramente racional, mas criaturas hermenêuticas que
dotam de significado tudo o que tocam. Não nos adaptamos fun-
cionalmente à realidade, mas a transformamos por meio da prá-
xis criadora. Não respondemos compulsivamente a pulsões defi-
nidas pela nossa natureza, mas consl ruímos nosso modo de ser a
parlir do desejo permanente; desejo que não está definido em
nós, mas que nos define pela abertura sobre o que desejar e por
que desejar isso e não aquilo. Não nos sujeitamos funcionalmen-
te ao meio ambiente, mas nos constituúnos sujeitos e sociedade
por meio da práxis, pois somos seres práxicos 21 • Não ficamos num
presente, senão que nos transcendemos ansiosamente para um
futuro sempre em aberto. A tensão é a categoria que interaciona e
implica conflitivarnente as dimensões divergentes e até contra-
ditórias da personalidade humana. Somos urna criatura fratura-
da pelo conflito e rejuntada pela tensão existencial. Estamos im-

21 GEIILEM,Arnold. E/ liombre. Su naturaleza y su lugar en el mundo.


Salamanca: Sígucmc, 1980. p. 31.
Cnstor M. M. Bnrtoloml Ruiz 55
pregnados pelo paradoxal. Esta é a realidade em que estamos
imersos e a partir da qual, sem poder emergir para uma hipotéti-
ca distância racional, objetiva ou neutra, pretendemos desenhar
alguns traços de nossa própria identidade.

A alteridade e o sujeito

Quando emergiu o ser humano da natureza para a consci-


ência, instituiu-se entre ele e o mundo algo inédito para o resto
das criaturas: n n/teridnde.
O animal está vinculado ao mundo de forma natural e não
tem consciência de si porque não percebe o mundo como algo
distante. O mundo e ele formam uma única realidade; ambos
estão unidos de forma absoluta. Entre eles não há alteridade, não
existe distanciamento. O outro simplesmente não existe. A ani-
malidade não faz distinção entre sujeito e objeto, entre eu e mun-
do. O eu se dilui na naturalidade do mundo, e o mundo da natu-
reza sufoca qualquer sinal de identidade. A consciência animal
não identifica o mundo como algo diferente do eu. Isto é, não
existe o eu porque não há subjetividade nem sujeito, por este
motivo para o animal não existe o outro. Sem alteridade não é
possível a subjetividade. Não há lugar nem para o sujeito, tam-
pouco para o objeto. Simplesmente não é possível a distinção entre
o eu e o mundo.
A identidade da autoconsciência não é algo prévio à alte-
ridade, nem o outro constitui um momento posterior ao eu. A
alteridade é a referência primeira e concomitante à constituição
da própria identidade. O outro não é alguém posterior à confi-
guração da pessoa, senão que constitui a condição de possibili-
dade para sua existência. Nas palavras do poeta:

Poned atc•11c1ô11:
1111 comzó11 solilario
no es un corazón (Antonio Machado)

Os primeiros hominídeos suscetíveis de serem chamados


s11pú-'11svivenciaram o mundo com uma consciência nova e iné-
56 Os paradoxos do linagindrio
dila alé aquele momento entre o resto das criaturas existentes.
Eles experimentaram o mundo corno algo diferente de si, como
o outro. Sentiram que a realidade se distanciava de sua própria
consciência. Perceberam que entre eles e o mundo se abria urna
fissura até aquele momento inexistente para as outras espécies
animais. Vivenciaram a autoconsci[•ncia, sua identidade. Com
isso ocorreu sua separação irreversível do mundo natural. O
cordão umbilical que os unia ao mundo natural foi cortado, e
uma fenda irreparável se abria entre ambos. Um paraíso natu-
ral se perdia!
Essa nova criatura, distanciada do mundo pela autocons-
ciência que possui de sua própria identidade, vivenciou esse
mundo como algo paradoxal. Está inserida irremediavelmente
no mundo, porém este permanece sempre distante e distinto. Essa
vivência paradoxal de proximidade e distanciamento entre a cons-
ciência e o mundo possibilitou, de fato, a existência da humani-
dade. Ela fez transcender a humanidade do mundo da harmonia
natural para o paradoxo da autoconsciência.
A alteridade aparece como paradoxo que estabelece um
distanciamento relacional, une-e-separa o sujeito do objeto. É
graças a esse paradoxo que ambos se configuram enquanto sujei-
to e objeto. A altcridade não é uma opção do ser humano, mas
sua condição de possibilidade para existir como pessoa. Ela não
foi uma simples conquista pessoal, coletiva ou da espédc. Não
representa um mero sallo quantitativo na evolução das espécies.
De fato, é o salto qualitativo mais extraordinário que até este
momento tem acontecido no universo.
Como se instituiu historicamente a alleridade? Esta é urna
questão que não pretendemos abordar de forma explícita neste
trabalho. Porém esse salto qualitativo da natureza para a consci-
ência extrapola qualquer forma de evolução simplesmente natu-
ral e nos força a repensar a presença de uma ação criadora além
da mera evolução da consciência animal.
A alteridade é uma dádiva que possibilitou a criação da
humanidade, porém também é uma imposição, pois nenhum ser
humano pode optar entre a aHeridade ou ou Ira alternativa. Ela é
a matriz geradora da liberdade do ser humano. Contraditoria-
mente, é uma liberdade imposta, pois é a dimensão necessária
Castor M. M. Barto/0111/ R11iz 57
para que a humanidade possa existir como espécie qualitativa-
mente diferente do resto.

A emergência da fratura humana

A alteridade, que constitui a grande "conquista" da hu-


manidade, exige por sua vez um preço a ser pago. O animal vive
num ninho mmuidico, onde identifica a natureza com seu ser, e
seu eu se dissolve no mundo. Existe nele uma (con)fusão que fun-
de de forma diluente a consciência no mundo. Essa confosão en-
cerra o mundo e a consciência num.a unívocidade mondtHcn de
sentido. Em contraste com a percepção animal, a consciência
humana foi desligada do mundo e projetada além da naturalida-
de do instinto e da programação genética.
A animalidade vive uma relação de harmonia plena com a
natureza. Entre ela e o mundo existe um contim,um. Não há fen-
da, nem fissura. Dentro dessa harmonia natural, não se percebe
nenhum tipo de fratura. A consciência e o mundo estão tão es-
treitamente vinculados, que não possuem existência real nem
como (auto)consciência, tampouco como mundo.
O nascimento da pessoa se realiza a partir de uma ruptura
com o mundo natural. Essa mptura cria inevitavelmente uma
fratura entre ela e o mundo. O ser humano foi expulso do paraíso
natural. É desse modo que ele se distanciou do mundo ao qual
anteriormente seu ser estava integrado de modo pleno. Essa dis-
tância relacional do mundo propiciou uma separação relativa en-
tre a pessoa e a realidade, que nunca mais poderá ser suturada
de modo absoluto. Com esse distanciamento se consolidou uma
mptura entre o sujeito e o objeto. De agora em díantc, o mundo
sempre será vivenciado como algo contraditório: estando próxi-
mo, sempre aparece distante; embora somos um fragmento dele,
percebemo-lo como o outro.
Uma fratura irreversível se estabeleceu entre a pessoa e a
realidade, entre o eu e o mundo. A fratura rasga internamente o
ser humano e o constitui como um ser incompleto e distante do
mundo natural do qual emergiu. Essa fratura lhe possibilita ter
consciência e identidade própria, confere-lhe a potencialidade
58 Os paradoxos do imaghuírio
-------------
de libertar-se das amarras do instinto compulsivo ou da progra-
mação genética. No entanto, ela lhe impõe a dor do distancia-
mento, da instabilidade, da angústia, da desa1111onia e do dese-
quilíbrio. A fratura; wnl e n sutura s1inbólim. 22
O ser humano roto e fraturado, confrontado com um mun-
do dislante e diferente de si, busca fundir-se nele, tentando ex-
pandir sua consciência sobre o mundo. Procura, desse modo, res-
taurar sua unidade monódicn com o mundo natural, porém nun-
ca o consegue de forma absoluta e sempre tem que conformar-se
com experiências relativas e fugazes de harmonia. A pessoa, para
poder integrar-se no mundo, tende a pontes de desejo. No entan-
to, a tensão do desejo nunca se satisfaz plenamente. O desejo
_!_i_u ~~no~ a1">e1t~e p~:r:_a~o)(al. É permanente, mas não estáaeff-
nido. Ele faz de nós seres desqimtes, mas não estabelece o que
devemos desejar. O desejo é uma tensão antropológica e também
urna constmção de sentido. Possibilita-nos suturas frágeis com o
mundo, mas nos impede uma integração natural com ele.
Projetamos a insátisfação e o desejo sobre tudo o que entra
cm contato conosco. O desejo nos lança à procura da harmonia
perdida. Tudo o que tocamos fica marcado pelo desejo. Num
movimento inverso, nada consegue satisfazer plenamente o de-
sejo humano. Cada circunstância, objeto, experiência vivida, meta
alcançada, ideal conquistado, etc. nos situa num novo ponto de
partida. O desejo costura formas de harmonia com o muntlo que
nos rodeia, a insatisfação re-institui a realidade da fratura 21. O
g.çscjo nos abre para a possibilidade da plenilude perdida, a in-
satisfação nos afunda na realidade da fratura consumada. Reali-
zamo-nos sempre de modo fragmentário, por isso nos vivencia-
mos pe1manenternente insalisfei los. O desejo se constrói por meio
das pontes de sentido que vamos confeccionando sobre todas as
circunstâncias que vivemos. A insatisfação nos provoca para per-
manecer em tensão criadora, pois não existe o paraíso terreno

22 OR11z-os1õs, Andrt>s. L11s d,we.; shnbólims rk n11estm c11//11m. Barc!'lona:


Anthropos, 1993. p. 55 s.
23 Sobre a ontologicidade da fratura e sua irreditubilidade dC'finitiva cf.
LA:slCEROS, Patxi. "AI filo de un aforismo". ln: !d .. Anp1ct1j1os y sim/,olos
colccfr't,os. Barcekma: Anthropos, 1994.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 59
onde reencontramos a harmonia perdida. Percebemo-nos seden-
tos de infinito e invadidos pela contingência. A condição huma-
na é a de seres fraturados que peregrinam recriando o mundo
em que vivem e revivendo cada momento e circunstância como
inéditos. Essa nova relação com o mundo se efetua por meio da
construção de sentido que o sujeito institui para tudo aquilo que
o rodeia.

Dn diP11117 i11ftml11d,• do nbi,mo


qunsl' por 11111n 11àw contnnplnmo.,~
por mm:,, fJllC' o nlmfl 11df seu olho ji.rd. ..)
Lorenzo de Médici (Altercado)

O mW1do como representação

Para o ser humano, o mundo nunca pode ser apresentado;


ele sempre tem que ser representado. Toda apresentação é imedi-
atamente transformada numa representação de sentido instituí-
do. A pessoa não tem um acesso direto à realidade nahtral. Qual-
quer conhecimento do mundo implica uma construção de senti-
do. As coisas não se apresentam para ele de forma imediata, na-
tural ou objetiva. Ele as recria por meio do sentido, transforman-
do-as de elementos insignificantes em objetos carregados de sig-
nificado cultural. O mundo do ser humano é sempre um sentido
do mundo. Desse modo, o sentido reflete o mundo como se fosse
uma rede de significados culturais por meio dos quais se com-
preende e transforma a realidade. Ele não conhece as coisas de
forma imediata; para aceder a elas, precisa sempre de uma medi-
ação ou /Jermcneusis. Essa mediação é constituída pelo sentido
que a pessoa cria para tudo o que a rodeia.
A fratura só pode ser suturada fugazmente por meio do
sentido criado. O sentido constitui, pois, a ponte que liga ambos.
Todo sentido é sempre uma construção simbólica. Ele é uma sig-
nificação criada e por isso mesmo se configura como uma forma
de simbolizar a realidade. O ser humano, distanciado irremedia-
velmente da realidade, une-se a ela por meio da dimensão her-
menêutica, a qual forma parte constitutiva de sua pessoa. Do
60 Os pamdo:ros do imas1iltirio

mesmo modo que não pode escoll1er ter ou não alteridadc, não
pode optar por ser ou não ser hermcncuta. A lrermeneusisé a_çon-
<HÇE__O___iSJ~()Ssibilidade da sua existência.
O sentido é sempre uma forma de significar o mundo, um
modo de simbolizar a realidade. Ele é criado sempre a partir do
desejo. Os sentidos simbólicos que a pessoa cria para as coisas,
para as experiências de vida, assim como para o mundo cm ge-
ral, entrelaçam-se íormando redes de significados. Essas leias sig-
nificativas constituem visões de mundo ou cosmovisões. Todos
nós, seres humanos, formamos nossa subjetividade na medida
_em que nos inserimos na trama de uma determinada cosmovi-
s_ão: Ao sermos tramados por uma rede simbólica específica, pas-
samos a ser sujeitos socializados. Sujeitos que pautam sua práxis
a partir do reíerencial simbólico no qual se instituiu sua subjeti-
~i9-_;:i.lie. Existe uma interação permanente entre a subjetividade
tramada pelo universo simbólico, que constitui a identidade do
sujeito, e sua ação sobre a trama social em que está inserido. A
subjetívidac!_e é histor"icamente construída, mas nunca definiti-
vámentc concluída. A subjetividade permanece sempre em aber-
tura por ser; é isto que possibilita sermos sujeitos de nossa ação,
não meros atores de uma trama pré-definida por ontologias de-
terministas. A subjetividade repudia a condição de essência defi-
nida desde o momento da concepção ou do nascimento, mas tam-
bém não aceita ser diluída na mera trama social. Ela interage com
o socioislórico numa tensão que a impele a inserir-se na trama
das identidades comuns, e de modo concomitante, por ser um
sem-fundo criativo, desenvolve uma força ativa com a que se
define como uma subjetividade diferenciada. A subjetividade é
tramada cm parte pelo universo social em que se insere, mas ela,
ao interiorizá-lo, recria-o como seu universo pessoal. A partir
desse referente comum e ao mesmo tempo diferenciado, se cons-
titui como uma pessoa única e singular. Ela se institui de modo
ativo, criativo e singular, modelando seu próprio modo de sei~
embora também é instituída pela trama simbcílica que serve de
referência para sua práxis. A dimensão de subjetividade institu-
ída possibilita a criação das identidades sociais; sem essa condi-
ção comum de subjetividades tramadas por um mesmo universo
simbólico, seria impossível pensar urna linguagem, uma comu-
Cll::.for M. M. Hartolomé Nuiz 61
nicação, um consenso de valores, uma convivência inslituciona 1.
Teríamos um arquipélago de individualidades desconexas e in-
comunicáveis, e, nesse caso, a sociedade seria inviável. Mas se a
subjetividade fosse uma mera resullanle da inserção da consci-
~ncia na trama social definida, assistiríamos ao desenrolar de uma
obra cm que os atores cumprem um papel socialmente definido
e todos são padronizados por um universo que evita e impede as
singularidades criativas.
A pessoa se rdig11 ao mundo por meio da rede de sentidos
que constituiu sua idenlidade 24 • É assim como transforma o caos
das impressões sensoriais num cosmo de sentidos. O sentido sim-
bólico se constitui, desse modo, na religação do ser humano com
a realidade. Ele configura o mundo natural dado como um cos-
mo de sentidos criados, uma cosmovisão.

É por meio do imnginririo sh11bó/ico como conjáimos co111•.mo 1' 51'/l-


tido à rm/1dnde/mgmmtnd11 dn llOSSrT exi,tfndn, pondo em com11111~
ar,;ão 110,,:;o ,mmdo i-rd1;rndo com ns refig11ções de um senfldo de
i111plrá1çiio. 25

A teia de significados socialmente instituídos é diferente e


inédita em cada sociedade, pois cada grupo social m:ria o mun-
do com um sentido novo. Ela se configura de forma particular
em cada coletivo, socializando os indivíduos e constituindo sua
identidade pessoal e social

O mrmdo sodnl l mdn wz constituído e nrticullldo t'm fim,;iio de um


si,frmn d1' frTÍs .'ir~rn[limções, e t'SSIIS sig11ifknçõe3 t'Xisft'm, 1111111 vez
constituídns, 1111 fimm, do que dtnnrnmo.s um imnginririo ~'/'divo (o
if1111gi1111do). 26

24 zu11m1, Javier. J11td~t;mcio :.mfimk. Madrid: Alianza Editorial, 1980.


25 mmz-osEs, Andrés. /.11,,; dolles simbó/icns de 111Nsfrn c11/t11ro. Barcelona:
Anthropos, 1993, p. 68.
26 CASTORIADI~, Cornclius. A i11stitu1i1io 1m11:,;1n,íria dn soai•dndc. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1991. p. 177.
62 Os pnrndoxos do ri11ngi111írio
--------------
Expulso do paraíso terrena/, o ser humano é um eterno pe-
regrino que busca restaurar o equilfürio natural perdido. Ele pro-
cura ansiosamente a unidade perdida, sem saber que esse equilí-
brio natural jamais poderá ser reconstituído do mesmo modo.
Negar a fratura humana para re-instaurar o co11tirm11111 com a
nalureza significaria renunciar à identidade de pessoa e retornar
à diluente confusão da animalidade natural.
O ser humano é um novo Sísifo, condenado a carregar so-
bre sua consciência a pesada pedra da fratura. Ele deve buscar
continuamente múltiplos modos de soldar essa fralura aberta
entre ele e o mundo, entre sua consciência e o outro, sem que
nunca chegue a suturá-la plenamente. O mito de Sísifo se atuali-
za no perene empenho da pessoa para criar pontes que a aproxi-
mem do outro lado da fratura. Estas pontes são os sentidos cria-
dos para as coisas.
A pessoa, para paliar a condenação de Sísifo, deve apelar
a Hermes. Tem que ass~mir a mediação interpretativa das coisas
como único modo de aproximar-se da realidade. Para atenuar a
fratura que o distanciou do mundo, transforma-se, irremediavel-
. mente, num hermencuta da realidade. Ele não tem outro acesso
ao mundo senão por meio da hcrme11eusis compreensiva das coi-
sas.

A fissura entre a pessoa e o mtmdo

O ser humano tenta sua integração com o mundo por meio


das experiências de gratificação e prazer. Procura, de forma in-
sistente e compulsiva, o princípio de prazer como experiência
que o religa de modo gratificante ao mundo. Mas, contrariando
seu anelo, o mundo lhe nega o acesso a uma junção plena; se lhe
opõe como altcridade inalienável que frustra as fugazes experi-
ências de integração prazenteira.
A par!ir dessa perspectiva, a alleridade se impõe à pessoa
como uma frustração que a impede de retomar ao equilíbrio do
paraíso natural. Fraturado internamente e distanciado do mun-
do natural, vê emergir ante si a alleridade sem tê-la procurado,
r\em ler feito uma opção primeira por ela. De modo contraditó-
Castor M. M. B11rtolo111t' Ruiz 63
rio, a pessoa é livre à força. Diante de tamanha imposição antro-
pológiéa e existencial, a pessoa luta de forma denodada contra o
paradoxo que implica vivenciar a proximidade-distante da altc-
ridade, sem conseguir paliar o abismo que se abre entre ela e o
mundo. Procura com desesperação o prazer como meio para di-
minuir essa dolorosa fratura. O prazer -não necessariamente nem
exclusivamente hedonista -permite-lhe experimentar um transi-
tório sentimento de felicidade que por meio da satisfação das
necessidades mais imediatas reaviva nele a experiência de uni-
dade com o mundo. Já Ovídio exclamava:

Do11ec ais _kli:>.~ muitos flllfllt'mbis nmicos,


tempora si fuerint nubila, solus cris.27
(E11q11nnlo sqirsjdi::, Ians m111los n!ll~f?OS,
mns s,· o ft'mpo s,• ,mbln, Jicnrds só.)

Essas necessidades manifestam a radical contingência da


realidade. Elas, que se apresentam como frustração imediata de
seu desejo, lhe vão desenhando a verdadeira face do mundo cm
que habita. Um mundo que é concomitantemente próximo-e-dis-
tante, limitado-e-inapreensível, que complementa, mas que não
sacia. A relação com as outras pessoas lhe permite identificar-se
e transcender-se no relacionamento intersubjetivo, mas não con-
segue preencher a sede de plenitude e harmonia que late no seu
interior. A alteridade, enquanto elemento que distanciou o ser
humano do mundo, é sinônimo de separação-aproximativa e,
conseqüentcmcrtte, de frustração ou negação do objeto querido.
A fratura humana faz surgir dentro da pessoa um mundo
ignoto e abismal: o mundo da criação imaginária. O objeto, antes
de ser conhecido pela razão, é imaginado. Ek, antes qi.1c um con-
ceito ou idéia, é uma imagem por meio da qual a pessoa si6>nifica
as coisas. O sentido é sempre criado e não emana naturalmente
das coisas. O objeto, que é uma imagem mm sentido, é sempre
um objeto construído pelo imaginário do sujeito e da sociedade.
Isto não quer dizer que o objeto seja inventado - subjetivismo -

27 OV!LJIO. Trístia,I, IX, 5-6.


64 Os pnrndoxos do imngindrio

ou que a realidade não exista - idealismo -, senão que as coisas


para o ser humano só existem enquanto n'Constiluídas pelo sen-
tido que as compreende, prendendo-as e as interpreta interpene-
trando-as. Esse sentido criado é sempre uma forma de imaginar
o mundo.

Fragmentos do processo ontogenético da fratura humana

As pulsões são energia vital que, de fom1a i11t1•nc1011nl e nfe-


tivn, se concretizam nas representações. As pulsões são previa-
mente imaginadas para posteriormente serem pensadas. Elas se
constituem a partir de imagens 28 • Estas imagens são a especifica-
ção das representações volitivo-afetivas. As pulsões são regidas
pelo princípio do prazer. Este princípio orienta o sentido que o
sujeito constrói para elas. Porém o princípio do prazer é com-
pensado tensionalment.e pelo princípio contraditório da realida-
de. Entre essas duas tendências do ser humano se estabelece um
antagonismo que as pulsões tentam compensar por meio do me-
·canismo da projeção: O ncordo entre ns gnmdei:i pulsões ref/exns do
sujeito e seu meio lo que em'llízn de umn mnndrn fiio impernfivn ns
grnmfe.,; imnge11.,; 11n wpw.,n1tnpTo e as cnrregn com wnn fi'lícíd11de que
bn.,fn poro pt·1pet11á-lm,..,. 9 • Prazer e realidade são categorias sinôni-
mas as de desejo e a insatisfação desenvolvidas anteriormente.
Ó mortais, agora vocês têm consciência de si e do mundo.
Conhecem e sentem as potencialidades da liberdade, mas sofrem

28 mELD, Sigmtmd. "Les pulsions ct leur dcstin ". Ra1.frn11rnt:,,·dcps_1jd11m11/v.~1•.


9 (1936) 1, p.1.
29 JJURA:-;n, Gilbert. fr.< .<fmdun·s n11fhropolog11711es de /'1mng1i111;re. París: Bor-
das, 1979, p. 52. Gilberl IJurand, fundamentando-se na Rdlexiologia da
Escola de Lcningrado, propõe a existência de reflexos dominantes ou es-
truturas scnsomotores inatas que constituem os sistemas de acomodação
mais originais da ontogénese. Esses reflexos dominanks são tr€-s: a domi-
nante postural, a dominante de nutrição, a dominante copulativa. Esses
conjuntos sensomolores são apresentados como o lugar ou o nível onde
as representaçfws se integram naturalmente, o iúvel onde se formam os
grandes símbolos.
Castor M. M Bartolomé Ruiz 65
as contingências do mundo. Vosso eu se eleva orgulhosamente
sobre omtmdo que permanece eqüidistanle, mas também se afun-
da depressivamente na autoconsciência da contingência que vos
invade. Quebrou-se a harmonia do paraíso natural. Vocês sabem
que vivem, mas conhecem que morrem. Vocês se alegram por-
que podem contemplar a vida frente a frente, mas choram por-
que pressentem o fatal abraço da morte. Vangloriam-se de ser
criadores do presente, mas se humilham desafiados pela incerte-
za do foturo. É o preço que devem pagar pela autonomia da cons-
ciência30.
Quem fechará o abismo criado pela fratura humana? Como
suturar essa fratura ontológica? Eis aqui o grande drama da in-
determinação radical do ser humano e de sua irremediável con-
dição de ser errante em busca de um sentido que compense o
paradoxo instaurado pela sua proxhnidade do mundo e sua coe-
xistência com uma fratura abismal os distancia 31 •
A fratura radical não constitui uma distância absoluta en-
tre pessoa e mundo, pois, se assim fosse, impediria a comunica-
ção e empurraria o ser humano para um subjetivismo estéril ou
para um idealismo alucinatório. Pior ainda: se a comunicação
entre pessoa e mundo fosse impossível, o ser humano estaria con-
denado à solidão incomunic.1vel, ao isolamento absoluto. Am-
bos existiriam em um autismo infranqueável. A pessoa estaria
encerrada em si, e o mundo permaneceria como o absolutamente
inacessível. Se não houvesse possibilidade de acesso real entre
pessoa e mundo, aquela seria incapaz de existir além de si mes-

30 Sobre como a tragédia grega expressou esse lado dramátirn fia existéncia
humana, d. J\lléJZSCHE, Friedrich., E/ nndmil'nt" dr ln lrngrd1á. :viadri:
Alianza, 1984.
31 Gilbcrt Durand prnpi"ie que uma das funções da imaginação é a e11femi::oriio,
qLte consiste em simbolizar o drama e a tragédia da existf,ncia humana
com um sentido de esperança a fim de que seja suportável o minimamen-
te sofrível. Esta é a maneira de compensar, suturar, o abismo existencial
que a fratura radical provocou no sujeito. Cf. IJL'lv\ND, Gilbert. l,rsstmclures
,111tlrropolo,1•ú711es dt' /'111111gi111111r. París: Jfordas, p. 158 ss., 1979, também
Idem., l'imnshlf/fto11 s_vmbol,quc. París: Presses Unive~itaires de France,
198-1. p. 119.
66 O::.pamdoxoH do li11a,_<:çi11ririo
--------------------
ma. Estaria eternamente condenada ao encerramento m0111idico
de sua subjetividade.
Talvez seja esta a imagem mais próxima da metafórica fi-
gura do inferno existencial ou teológico para o egoísmo i11 extre-
mis. Isto é, a pessoa que, pela negação pertinaz da alteridade (o
outro), constrói com sua pr.Hica um muro de egoísmo que en-
claustra num isolamento radical. Eliminando a possibilidade da
alteridade, ela permanece num autismo infranqueável. Seria o
ingresso consciente numa hipotética realidade sem alteridade
possível.
A relação e a comunicação entre os dois extremos da fratu-
ra são possíveis, porém a comunicação nunca poderá ser uma
com11111-1111iiio natural com o mundo. A pessoa deverá realizar-se
sempre por meio de uma parcial comum-açiio (comunicação), que
sutura fugazmente o abismo da fratura. Essa comum-ação entre
pessoa e mundo se realiza como práxis humana que implica o
sentido criado e a ação.transformadora. ·
É neste sentido que a pessoa se constitui numa copuln ,mm-
di(Marcelo Ficino, 1433-1499). Nela se entrelaçam a ma teria lida-
. de insignificante do mundo e o sentido-sentimento humaniza-
dor. A pessoa anima o mundo com o sentido e mundaniza seu
pai/tos criador por meio de sua inserção na ma teria lida de do cos-
mo. Enquanto copu/11 mrmdi mantém a co-irnplicação tensa dos
dois pólos (t1mi!la-mundo). A imbricação da anima e do mundo cons-
titui o modo de ambos existirem para o ser humano. Copula m,m-
di que~auto-afirma anima e mundo à medida que os correlaciona
numa coexistência necessária e produtiva. O mundo, sem a ani-
ma humana, existe, mas permanece desanimado e insignificante;
só a !termem·usi,;, sempre transformadora, da pessoa anima signi-
ficativamente o mundo e o transforma num cosmo criativo de
sentidos. De outro lado, a amina humana sem mundo é uma ente-
lét7wi1 (fantasia) impossível. A anima humana se insere na materi-
alidade do mundo e adquire as múltiplas feições que a diversi-
dade socioistórica lhe proporciona. Ela não existe como amína
pura, não pré-existe ao mundo como essência aistórica. Ela só
existe encarnada nas feições de um sujeito histórico.
É o poder do imaginário que nos permite constituir essas
pontes de sentido entre a consciência e o mundo, entre o desejo e
Castor M /vi. Bartolomé Ruiz 67
a realidade. A potencialidade criadora do imaginário faz com que
não habitemos num mundo de objetos naturais, mas vivamos num
universo de sentidos culturais. O sentido é sempre social. Ele se
organiza em teias e estruturas de significados, a fim de estabele•
cer,suturas simbólicas que dêem coerência à ação humana. Por
este motivo, a realidade se manifesta para o ser humano de modo
contraditório: como algo sólido e efêmero, paradoxalmente es-
pecífico e htgaz, tensionalmente presente e futuro. Ele não pode
apreender a realidade num só aspecto, sempre deve compreen-
dê-la como abertura a ser construída. Não pode definir analitica-
mente o real, pois sempre se implica vitalmente no mundo que
analisa.
A distância do mundo se compensa com sua representa-
ção. O eu já não é o mundo. Falta a harmonia da identidade com-
pulsiva entre ambos, mas a pessoa necessita dele para seguir exis-
tindo: reclama-o com urgência vital. Por este motivo representa-
º na sua ausência. O mecanismo de projeção pelo qual se coloca
uma coisa no lugar de outra é um elemento fundamental da re-
presentação. A projeção é fundamental no duplo sentido da pa-
lavra, isto é, constitui seu fundamento e importância. Ela atua
como o dispositivo que institui um sentido para um objeto espe-
cífico. Na projeção realiza-se uma distinção básica entre objeto e
significado. Esta distinção, por sua vez, constitui a base da com-
preensão da significação. Este é o mecanismo que o imaginário
pessoal e social utiliza para recriar a realidade por meio da pro-
dução de sentidos novos para o mundo que o rodeia.

s,·
No C/750 da cria11çn, nf1mp10 da dt's1:,,,-,111çiio 1'!lco11fm l11111bém no
fim do de5t'IIVOlvimenfo lú1giif;tico: dumnt,, tempo ns palm 1rns dn
/i11,ç;11n,_'?<'111 ob;éhm que reab,, por meio do nprmdiza;fo tnmpouco
thn pnm eln o ser1 I ,do cspecifi·cnme11ft' objetiva n ff' co111 que n lifl<\'11a-
:,:,'111 ns Pi11c11/n. Tt,do o que fl'm um senhdo tem s11ns mf::1•s no t'sfrn-
fo da ajhi"tio 1• dn e.nitnpfo sensível t' 1' tmz,do 1111111 e 011/m wz n
de.,. Progn'.,:,i-011111mte v11i--se abrindo rspnço itfim{iio n-1m'se11fllfi--
z'fl pum 110 ,·urso do dcsenvofvimmfo lingii/,·fll.--o para ir-sl'jôrt11ft,..
ce11do md11 l'l'Z mnis nté dNgar fl dominar a tot11/rd11d1• da /i,wun-
gnN. A co11e:r110 com II z1ioé11âa 1'.tpn'ssi,111 primtiri11, por 111111/0 que
lll'llllff 1!17 direção da represmtaçiio c dfl pum st;\wificnçifo lr~fim,
68 Os p(/rndoxos do fm(lghuirio
-------------------
11ão St' q11dm1 111111cn. /11d11sil1e seus mai.-; t>kvndos rendimentos in-
tdectunis se e11trl'ft'C1'11t nindn com cnmden·s expressivos perjh/11-
menfl' detemuiiados. 31

A potencialidade criadora da psique se apropria do objeto


distinto e distante por meio da imagem. Esta imagem eslá sem-
pre carregada de sentido. Ela é, pois, uma imagem significativa.
O sentido da imagem não é extraído do objeto de um modo natu-
ral, mas ele é sempre uma produção hermenêutica. A possibili-
dade da criação dos significados para as imagens não dimana do
objeto, mas é produzida pelo imaginário do sujeito e da socieda-
de. O poder que o imaginário possui para instituir significativa-
mente as coisas e o mundo está presente desde as primeiras eta-
pas onlogenéticas e filogenéticas do ser humano''.
A pulsão constitui o modo como a representação se dá na
psique, mas não devemos confundir a pulsão com a origem da
representação. A pulsão, enquanto elemento constitutivo da psi-
que, é um fragmento construído por ela. A pulsão remete ao sem-
fundo humano. Ela é urna manifestação da insondável potencia-
lidade do imaginário e do modo como este interage com o mun-
do. A análise das pulsões não possibilita sua explicação exausti-
va. O raciocínio sempre necessário sobre as pulsões humanas nos
permite um conhecimento aproximativo dos indefinidos !11odos

32 CA551RER, Ernst. F1/osojií1 dt• lns formn.< .<imbó/1à1s. v. 3. México: Fondo de


Cultura Económica, 1976. p. 134-135.
Cassirer afirma que a função rcpresenlaliva pura se realiza, na criança,
em fases posteriores aos dois anos e de forma progressiva. Entendemos
que se refere à capacidade de domínio das significações da linguagem-
Pob a furn;ão representativa pura, no sentido de criar uma representação
no lugar do objdo ausente, é uma potencialidade que o ser humano ad-
quire desde o momento em que realiza a fratura, a separação entre sujeito
e objdo. Esta fratura se manifesta vi talmente como processo desde os pri-
meiros momentos da existência do ser humano. Cassirer não desenvolve
esta concepc;ãn de representação, que é essencial para compreender o modo
de ser, existir e conhecer da pessoa.
33 Bergson falou da f11nrão.fi1bulndorn dn 11n11g11u1rõo, que consiste• na busca de
sentido, cf. BERGSON, Henri. Obras e.<cog1d,1.s. México: Aguilar, 1963- p. 569_
Castor M. M. Bnrto!omé Júúz 69
de ser por meio dos quais elas se manifestam, mas repelem qual-
quer Firetensão de definição explicativa sobre seu comportamen-
to. Sempre que se lentou explicar e prognosticar o modo de ser
das pulsões humanas, fracassou-se. Pois elas remelem a um sem-
fundo indeterminável, cuja natureza está associada ao modo cri-
ativo e singular de apresentar-se. O potencial criador do imagi-
nário não pode ser apreendido de forma exaustiva pela raciona-
lidade, nem explicado de forma definitiva pelo logos, pois am-
bos, logos e racionalidade, são produtos do imaginário. O sem-
fundo humano, sendo indeterminação criativa, sempre deve apa-
recer tramado por um modo racional de ser e sob a constituição
de uma lógica, mas ambos se manifestam incompetentes para
poder compreender em plenitude o abismo do qual emergem. A
racionalidade e o logos podem aproximar-se das manifestações
do imaginário, mas não são capazes de cercá-lo conceitualmente.
A racionalidade e a lógica constituem a forma necessária para
poder explicitar o imaginário, porém eles mesmos são invadidos
e permeados pela função imaginativa e conseqüenlemenle pela
dimensão simbólica que os possibilita: O Ji11ng1i11írio l 11 renlidlllk
1íllti1111 n partir d11 qunl o co11lleci111enlo humn110 deâji'fl os impcmtivos
rio se,: Sobre dn se ordt'nnm - co11sa't-11tr 011 il!l'OflSC1á1/1'lllt'llle - todns
ns obm:.', ns nlitudes e ns opàúÕt'S lt11111n11n5'\ A esse sem-fundo im-
penetrável da rmim11humana, que constitui seu mistério inexau-
rível, é o que denominamos de imn,_rti1rfr;o rndà~n/35.
A fratura-fissura que se produz entre o objeto desejado e o
sujeito desejante é uma fratura original e originante. Essa fratura
atravessa todas as dimensões da própria pessoa. Ela é original
porque está na origem da sua existência corno sujeito e originan-

34 DURAND, Gilbert. "Tâches de l'espril e! impératiís de l'o>lre". Enmo., jt11!rb11c'JÍ.


34(1965) 34. Gilbnt Durand concebe a imaginação como mn/i1/or ,Y7u1- ,,i·
líbrro. A partir de sua rnncepção dualista da reillidade, a imaginação ten-
de a equilibrar os pólos oposlos. É reslauradora do equilfürio vital, psicos-
social, antropológico e cósmico. Como o dualismo si> manifesta i>m toda a
realidade, a imaginação é onipresente e ftmdamcnta sua função mediado-
ra na dualidade do símbolo.
35 CASTORIADIS, CornPlius. La 111stitució11 ú11ngi11nrin de ln .<ooédnd. v. 2., Barce-
lona: Tusquets, 1Y8Y. p. 220.
70 O., pnmdoxos do i11111xà1ório

te porque produz a alleridade que, por sua vez, institui tanto a


pessoa quanto o objeto. Ela é uma fratura que possibilita ser rela-
tivamente superada por meio das pontes simbólicas das signifi-
cações instituídas, mas ela não pode ser anulada por nenhum
outro elemento ou definitivamente suh1rada por qualquer dimen-
são.

A etiologia btblica da frahrra humana

Essa fratura humana também teve um momento filogené-


tico. Como espécie, o ser humano teve um momento em que se
separou dos humanóides com os quais mantém uma raiz comum.
Tendo urna estmtura morfogenética semelhante, o ser humano
deu um salto qualitativo supranatural: ele transcendeu o mundo
da natureza, distanciando-se dela e significando-a como alteri-
dade a ser objetivada .. Esse salto qualitativo da natureza para a
consciência se perdeu de fom1a irremissível na noite dos tempos.
Podemos elaborar muitas conjeturas e teorias a fim de entendê-
lo um pouco melhor, mas a cruel realidade é que ele permanece-
rá sempre como um mistério a mais da nossa existência. Como
aconteceu a fratura no interior do ser humano? Que força miste-
riosa poderia ter conferido a potencialidade de superar a própria
natureza? Será que a mera evolução natural tem a potenêialida-
de para criar uma 5uprrmahueza como a consciência humana?
Dificilmente a natureza pode ser a origem de um ser que extra-
vase seus próprios limites.
Imperceptivelmente, estamos pisando o limiar que liga a
filosofia e_ a_teologia, a racionalidade e o mistério. Eis por que
qualquer compreensão etiológica do processo da filogênese hu-
mana deve apelar ao gênero literário da metáfora. Nessa tentati-
va de aproximar-se da compreensão do sentido da constituição
da fratura humana existem duas narrativas bíblicas, que não pre-
tendem ser narrações históricas ou científicas, mas etiológicas. A
primeira, Gênesis 1,26-30, é uma tradição liter,hia do séc. V a. C.,
da escola teológico-literária denominada sacerdotal. Ela está in-
fluenciada pela cultura babilônica. Por esse motivo explica a d u-
pla dimensão homem-mulher do ser humano como reflexo do
Castor M. M. Rnrtolomii Ruiz 71
próprio ser de lahv,,eh. O masculino e o feminino são imagem e
semelhança de Iahweh.
A outra tradição etiológica sobre a origem da humanidade
encontra-se cm Cênesis 2,7.21-25. É uma tradição que pertence à
chamada escola Iahwista e Eloísta, que se situa, aproximadamen-
te, no séc. X a.C. Ela reflete uma cosmovisão agrária; por isso
toda sua simbologia está de uma ou de outra forma ligada à ter-
ra. lahweh cria Adam do barro da terra. A palavra Adam, na eti-
mologia hebraica, deriva do termo ndnmnh, que significa terra. O
sentido etimológico da palavra induz o sentido filosófico e teoló-
gico que ela quer expressar. A nova criatura saída das mãos de
lahweh emerge umbilicahnente unida à terra, formando uma
unidade natural com ela. O termo Adam não designa - como vu 1-
garmente se aceita - o homem varão. Ele é um termo com um
sentido de coletividade; é um substantivo coletivo. Sua tradução
mais correta seria a humanidade.

Entno !nhwdr Eloluin muddou à Adam (/mmmudadr) mm borro dt1


terra, i11sujlo11 em suns narinas hrílito de z,idn ,, Adnm Si' frrmefór-
llfOII 111,111 sa vil 1O (Gen 2,7).

lahweh não criou, num primeiro momento, o varão (aner),


mas a humanidade. Esta humanidade ainda não tinha sido fra-
turada. Ela vivia numa unidade natural consigo mesma e com a
natureza. Adam constitui uma mônada indivisível, que não tem
altcridade. Ela não conhece a existência do outro. Aparece como
alguém fechado que não necessita de ninguém para existir. Apa-
rentemente é auto-suficiente, não precisa de altcridade para vi-
ver. O outro não forma parle de sua identidade. Ela está integra-
da na natureza de forma harmônica. Num primeiro relance, esse
modelo de criatura, Adam, constitui o ideal de felicidade; seria o
modelo de criatura perfeita que não necessita dos outros para
existir nem subsistir. Sua característica principal é a auto-sufici-
ência, e sua dimensão dominante é a falta de alteridade.
Mas é aqui que essa criatura vive uma profunda experiên-
cia de solidão. Sua existência sofre a impossibilidade de comuni-
car-se, pois não pode ir além de si mesma. A humanidade -Adam
- é infeliz porque sua auto-suficiência a enclausura no angusti-
72 Os paradoxos do imasli1drio
---------------
ante tédio de uma solidão infranqueável. Sua unidade harmôni-
ca traz como conseqüência a falta de altcridadc. Sem alteridade é
impossível a comunicação. Adam possui uma integração natural
plena com o mundo, mas não consegue estabelecer um diálogo
além de seu círculo monádico. Vive a harmonia natural absoluta,
porém está impossibilitada de estabelecer urna comunicação com
alguém fora de si mesma. Encerrada na auto-suficiência da uni-
dade natural, é incapaz de estabelecer uma alteridade com a na-
tureza.
Eis por que Deus disse: Não rf bom que a Adam t'slt7a só, vou
fazer um acompanhnnte que /Ire corm,pondn (Gênesis 2,18). Quando
Deus percebe que realmente não é possível a felicidade sem a
alteridade, decide realizar uma primeira fratura na Adam. A altc-
ridade rompe seu encerramento natural e lhe permite transcen-
der-se por meio do dia-logo:; e do dia-pat/10s. Desse modo confron-
tou Adam com o resto das espécies. Distanciou-a do mundo natu-
ral. Estabeleceu uma fissura irreparável entre a nova criatura e o
mundo natural, a terra: de onde emergia. Criou um primeiro ní-
vel de alteridade entre a subjetividade de Adam e o mundo.

lnlzwd1 1:/ollim modelou 1•11tiio, da Iam, Iodas ns fems sdmgens r


todos ns oves do céu e ns conduziu no !tomem pnm Vf'r como de ns
d1nmnria: cndn qual dn1rrit1 lt!vnr o nome que Adam /Ili' d1'SS1'
(Gênesis 2,18-19). '

O modo metafórico de narrar o processo de emergência da


altcridadc no ser humano manifesta uma complexidade implíci-
ta no texto. Observamos que no relato a alteridade é concebida
como um complexo processo durante o qual Adam se distancia
da natureza, confrontando-se com ela como algo distante e dife-
rente de si. A capacidade de dar nome a todas as coisas denota
uma nova potencialidade conferida por Deus a Adam. Esse po-
der - que é divino - se traduz na possibilidade de recriar o mun-
do, equiparável a transformar significativamente a realidade. Pelo
poder da linguagem, Adam está capacitado para nuiar todas as
coisas. É um poder divino transferido para Adam, na medida em
que ela, fraturada pela alteridade, se distancia do mundo e ore-
cria, nomeando todas as coisas. O nome, na concepção semita,
Castor M. M. Bnrto/om( R11iz 73
reflete a essência da coisa. Dar nome a algo equivale a reconsti-
tuí-lo significativamente naquilo que é sua natureza.
No relato bíblico, a mera alleridade com o mundo natural
não é condição suficiente para que Adam estabeleça um processo
de comunicação pleno. Ela está aberta ao mundo, mas permane-
ce fechada em si mesma, pois não existe uma outra subjetividade
igual a ela. Eis por que Deus decide realizar uma segunda fratu-
ra Adam. Agora a fratura não será externa, frente ao mundo, se-
não que deverá rasgar a própria identidade de Adam. Esta se-
gunda fratura vai significar, de fato, o desaparecimento de Adam
como realidade auto-suficiente e fechada em si mesma, dando
lugar à gênese da intersubjetividade. Deus decidiu que Adam
devia ser fraturada cm duas partes semelhantes.

Então 117/Jwl'li E/0!11i11 /Í'Z cair um torpor sobre Adam e e/n dormiu.
Tomou pnr/1' de s11ns 1'11/rn11hns t'}<'Z cresffr rnrne fifi seu lugnr.
Dq101:,, da pnrft' dns mtm11!1t1s q11t' I irnm d11 Adnm, /a/uwh E/o/11i11
mode/011 /(ll/fl 't,lzn (11111/lwr) t' n lro11xe à Adnm. 1.',1tào r.tdnmo11:
E,tn s,i11 / osso dos m,'llS o.-;sos ,, c:amc da 1111i1hn mme! Ela 5<"rl7
chnmndn '/,!ta porq/(t'Jói tirada do 'f..,h. (Gênesis 2,21-23)

A narração bíblica cuida muito da linguagem, porque as


palavras carregam significados profundos que nos introduzem
de modo sutil no complexo processo da constituição da fratura
humana e conseqüentemente na forma em que foi instituída a
intersubjetividade como um modo de alteridade. Segundo a nar-
ração bíblica, Deus, para fraturar internamente a humanidade e
possibilitar a emergência da intersubjetividade, decidiu tomar
parte das mfmnhas de Adnm. Habitualmente se traduz o termo
entranhas por costado ou costela. Mas esta é uma interpretação
reducionista do texto. Para o semita, o costado é sinônimo de
entranhas. Nas entranhas da mulher é onde se gera a vida; é onde
se gesta a criança; as entranhas são o lugar biológico onde reper-
cutem com maior intensidade as emoções. As entranhas consti-
tuem a sede dos sentimentos e a fonte da vida. Como conseqüên-
cia, na cultura semita as entranhas são a parte mais importante
do ser humano. É um simbolismo muito semelhante ao sentido
tradicional do coração na civilização ocidental ou mais recente-
74 Os pamdoxos do imaginário
~-----------------------
mente do cérebro. Por esse motivo, quando Deus decidiu criar a
intersubjetividade para Adam, tomou urna parle de suas enlra-
nhas, ou seja, parte de seus sentimentos, parte da sua vida, parte
do seu ser mais fundamental, enfim, parte da sua harmonia na-
tural, para poder constituir uma outra subjetividade que fosse
correlativamente diferente e semelhante. Inclusive o relato narra
o detalhe metafórico de que Deus fez crescer carne desde dml!v,
pretendendo, desse modo, enfatizar a unidade intrínseca que liga
os dois novos seres - agora sujeitos - que surgem do ato criador
da altcridade.
O poder criador de Deus fraturou Adam, fragmentando-a
em dois seres semelhantes cm natureza, mas diferenciados. Com
identidades singulares co-rcferidas que se necessitam. A partir
desse momento, Adnm não existe mais. A fratura radical que se
instaurou no seio de sua personalidade e que deu origem aos
dois novos sujeitos significou, de fato, o desaparecimento daquela
criatura: Adtlm. Para dar urna maior ênfase na transformação ra-
dical que se produziu 'em A dom, o rela lo bíblico realiza uma troca
de nomes, que agora não é mais Adam, já que os novos sujeitos
passam a ser chamar de 'fs!t-'fs!to respectivamente. Estes novos
seres possuem intersubjetividade como forma específica de sua
alteridade; eles se constituem cm sujeitos que têm a capacidade
comum do dia-logos e do dia-pnthos e incorporaram a práxis como
seu modo específico de relacionar-se com o mundo. Eles·se reco-
nhecem no olhar que revê as feições de um sujeito diferenciado
com o que se implica por ser seu semelhanle. A sua identidade
de sujeito singular não é mais auto-suficiente, pois está correlaci-
onada a um outro. Cada um exisle como sujeito a partir do outro.
Fraturados na sua harmonia interna, ambos constituem sua iden-
tidade na intersubjetividade como um modo da altcridadc. Essa
intersubjetividade os confronta e une concomitantemente. São
subjetividades diferentes, que carregam a tarefa de autoconsti-
tuir-se na relação com o outro. Estando irremediavelmente sepa-
rados, sentem-se impelidos à mútua procura. A auto-suficiência
não é mais um modo de ser, senão uma carência no existir. Ser
auto-suficiente não se constitui num objetivo de vida para as
novas subjetividades, pelo contrário sua identidade fraturada
necessita de outro semelhante para poder realizar-se.
Castor M. M Barto/omé Ruíz 75
Os nomes 'íhs-'f.41a são palavras-chaves para entender o
significado anh·opológico e teológico do relato. A fratura radical
criou uma fissura na unidade natural, mas, em compensação, a
fratura lhe proporcionou a dimensão da alteridade que tanto
anelava. Daí o sentido da exclamação: F'itn sim I' osso dos meu:-·
ossos e cnrne dn minhn a,rm'! A Adnm fraturada descobre um pri-
meiro nível de alteridade que lhe possibilita a reflexão, o vollar-
se conscientemente sobre o mundo. Num segundo nível de alte-
ridade, descobre a intersubjetividade como o único modo de re-
alizar sua nova natureza fraturada. •
O preço que AdtJm pagou pela alteridade foi a autodestrui-
ção de sua identidade natural, a fragmentação de sua harmonia
interna. De agora em diante, os dois novos sujeitos, 'íhs-'f.,;hn, só
experimentarão fugazes momentos de harmonia que, como faís-
cas no meio da noile, se desvanecerão nas sombras das lembran-
ças. Na sua frente permanece a dura realidade da fratura. O de-
cisivo para eles é o paradoxo de ter que conviver com sua perma-
nente sede de transcendência e sua experiência da contingência,
sua insegurança e ambigüidade frente ao mundo e sua abertura
para o infinito, sua projeção para um futuro e a incerteza do por-
vir.
A ruptura radical está consumada e com ela a alteridade.
Esta permite o diálogo e o dio-plltlws com o outro, possibilita a
ação transformadora do mundo, mas é incapaz de saciar a sede
humana de plenitude, a busca de harmonia total. Ela não pode
restituir o equilíbrio natural pleno. Ela representa a autêntica
expulsão do paraíso natural. Significa o grande desterro do ser
humano como sujeito errante, impelido a construir a hic;tória como
ser que busca a plenitude com uma sede insaciável de felicidade.
Ele é um caminhante condenado a ser livre, alguém qtle de modo
incessante procura a plenitude - a felicidade-, mas que sempre
topa com a contingência. Ele é um ser que busca o infinito, mas
não pode superar o mundo limitado que o envolve. Agora a som-
bra do mito prometéico se projeta ameaçadora sobre o seu contí-
nuo esforço para tentar soldar a fratura abismal que separou a
consciência do mundo. Uma ferida trágica sangra existencialmen-
te no ser humano pela contingência consciente que envolve sua
vida.
76 Os pnrndoxos do it11n,_ri11tfrio

A fi'nda trágica ofi'n'cr-.w ir r.1pl'ri/incin totnl ,, mio difarmcindn, 1i;/o


i, n umn <'Xpr'rifncin q111' não npn'ndr11 n drsngrrgar o rmir 1l'rso rm
p11rcdns 1111tô11om11s e lát'T11rq11izndas, n cada uma dns quni,
corresponde umn npre.,.,ffo d[Jámtr rrgida pelo câdigo r' nmlinda
prlos trib11nm:,·. F,sn r.1prrilncin i, srm dúv,dn, qur jnz no homrm
modrmo oculto r sot,,rrndn p,,Jn 11111/tidõo dr inidntivns qur 1'xigrm
n plmrificaçõo st'fori11I dos âmbitos de vivhrdn e e.ipressõd'6•

Oi felicidade ingênua da harmonia natural, em que a fra-


tura não era percebida porque não existia consciência da vida!
Agora, como novos e permanentes prometeus, estamos acorren-
tados, às vezes dolorosamente, à alteridade que nos libertou da
determinação genética. Foi ela que nos possibilitou ser indepen-
dentes, em parte, dos instintos compulsivos. Mercê dela, fomos
empurrados para o ignoto mundo da liberdade possível e da cri-
ação permanente. Porém devemos pagar um preço por esse novo
nível de consciência autónoma: a expulsão do equilíbrio incons-
ciente do paraíso natural. Saímos da naturalidade programada e
entramos no desafio da construção socioistórica. Estamos conde-
nados por toda nossa breve eternidade existencial de espécie a
tentar de modo perene, e sempre de forma infrutuosa, suturar a
fissura abismal da altcridadc. Estamos destinados a buscar ansi-
osamente a felicidade da harmonia absoluta. A fratura é irrever-
sível, por isso a alteridade nos situa ante um utopos imp;ssível.
O mundo, essencialmente contingente, não tem potencialidade
para suturar a fratura. O ser humano se projeta necessariamente
para o infinito na busca da plenitude almejada. Ele transcende a
finitude da naturalidade na procura da infinitude da mbrmalu-
ralidade. Ele, que já emergiu para a sobrmalureza da consciên-
cia, transcende os limites da contingência natural na busca de
um 11/opos impossível que preanuncia um possível ft•o.,;topos.

36 LANCEROS, Patxi. Lt1 hend,1 fnígú,1. Barcdona: Anthropos, 1997, p. 54.


Cn.,for M M. Bnrfolom/ Ruiz 77
O desejo estabelece as pontes dos sentidos

A inquietante vivência da fratura impulsiona a pessoa, de


modo inexorável, a sofrer como algo instigante e doloroso a per-
da da unidade que, na harmonia natural, a identificava com o
mundo. Ela sofre conscientemente, e em muitos casos de modo
trágico, a fenda abismal que os separa. Agora, ambos estão uni-
dos exclusivamente pela ponte do desejo. Esta ponte é sempre
uma sutura simbólica que a pessoa constrói ao representar signi-
ficativamente, de forma volitivo-afetiva, o objeto que permanece
sempre distante e que nunca poderá ser alcançado plenamente.
A fratura constitui a pessoa como ser de desejo, porém a
modalidade do desejo não vem predefinida por nenhum tipo de
teleologia natural. É a própria pessoa invadida pela inalienável
dimensão antropológica do desejo que constrói o sentido e o con-
teúdo do desejo. Ela é concomitantemente um ser instituído pelo
desejo e instituinte de desejo. A fratura radical fez emergir nela o
desejo, o impulso do desejo, que a projeta de forma inexorável
para o objeto. Porém o sentido do desejo, seu conteúdo específi-
co, o que desejar, é uma inadiável criação do sujeito.
Ernmanuel Levinas denomina a esta dimensão antropoló-
gica de df•sejo mt'lnfi'.,ico:

Os dt'sejos que pod,•mos snh,jazer só se assemelham no desejo


mdnfí:,iw nm, dt'Cl'pçõ,•s dn sntú,fapio 011 nn an~pernçiio da niio-
snhifaçiio ,, do dt'Sc'}O, qut' conslilui a própria volúpia. O desr'/o
mdnfísko tem umn outrn i,rfmçiio - deseja o que estri parn nlá!I de
ludo o tfllt' pode simplesmmfe completá-lo. É como n bondade - o
des,jt1do não o acumula, anft'5 lhl' nbn, o npditt'. 37

A pessoa se experimenta como um ser de necessidades,


mas definir o que necessita não está predeterminado pela natu-
reza nem por nenhum outro tipo de heteronomia. A pessoa, que
é necessariamente um ser de desejo, cria ao mesmo tempo seu
objeto de desejo. Caso contrário, como se explicaria a pluralida-

37 LEVI'.\:AS, Emmanucl. Tiitt1l1d,1de t' inji111fo, Li~boa: Ed. 70, 1988, p. 22.
78 Os pnrndoxos do linnsilrtírio
------------------
d e de sentidos, funções, objetos, insliluições ... que cada socieda-
de e até cada pessoa cria para uma mesma necessidade? Se o ser
humano, enquanto mamífero, vivesse a ruptura com seu objeto
de desejo de um modo estritamente funcional, a resposta para a
compensação pela perda do objeto desejado seria única em todos
os indivíduos da espécie, como acontece no resto dos mamíferos.

Podemo., dizer, c:om Lorm:.: ,, Guillnum,,, qur (nos nminnis) o t'sll:


mulo 5ubstituído rntm como únol do s,;i;:11il1k, biolo,i;:ú:oml'lfft' 1'S-
·"'11áol, 1110$ 111io dl'l'l'TÍlllllOS 1'!11J1Tl'!{OT !ll'Sf{' coso 11 exprt'sstio ..::igni-
fià,do, dndo que o sign(licndo de sli1nl, i..::to é, sun concepçiio como to/
sino/ não se rmlizn 11/é o momento da diferenciflçiio com rl'Sprifo oo
que s(çn(lim, t' 11ess1' m1•smo momento o sri111/ se tm11sjrJn1111 rm 5Ím-
bo/o, ou seja, rtn·!JI• 11111 mlor posúionfll dentro do cmnércio socinl.
Por e.rl'mplo, um sinnl dejárovirl é 11111 ..::1ilo/ brez,e limllodo n dois
tl'xfos possíz 1,•is, o St'for ótico, 1' 'l"'' não podt' Sl'r t'.tplkfldo por n:fk-
xos condicimlfldçs".

Não é possível afirmar que as diversas redes de sentidos -


· sentido do parentesco, lúdico, do trabalho, o religioso ... -, criadas
pelo imaginário social e que instituem o ser de cada sociedade,
são simples projeções inconscientes da busca do objeto perdido,
como se houvesse uma relação causal teleológica entre dçscjo e
representação. Se assim fosse, deveria existir no ser humano uma
uniformidade entre as necessidades sentidas pelos diversos in-
divíduos e as respostas dadas para solucioná-las. Também não é
possível reduzir a potencialidade criadora do imaginário pesso-
al e social, que cria o sentido para as coisas, a mero subproduto
que pode e deve ser desvendado pela racionalidade. A própria
racionalidade está impregnada de modo irremissível pela dimen-
são dese/1111/t'. Conseqüentemente a existência e o funcionamento
da racionalidade estão midiatizados pelo poder do imaginário
tanto pessoal quanto social.

38 CElllEN, Arnold. r:t hombrc su 1111t11mk::a y .<u !us;,1r ,,,, d rmmdo. Salamanca,
Sígucrne, 1980. p. 32.
Cn!>ior M. M. Bartolomi R11iz 79
Somos um ser de desejo. Desejo insaciável que a contin-
gência do mundo não consegue preencher. Nossa sede de pleni-
tude está sempre insatisfeita. Somos impulsionados pelo desejo
e coagidos pela insatisfação. Enquanto o desejo nos abre para
horizontes de busca,. a insatisfação nos retrai para os limites do
possível. Desejando o novo, perambulamos ansiosamente alar-
gando fronteiras. Cada fronteira aberta ilumina novos horizon-
tes de desejo, manifestando, por sua vez, a finitude do almejado;
cada conquista realizada estabelece seus próprios limites. Nenhu-
ma fronteira aparece como a última, nenhum limite é o definiti-
vo.
O desejo estrutura nossa abertura; projetamo-nos para o
futuro a partir daquilo que desejamos. É nossa condição e nosso
condicionante. O desejo nos impele para a busca de plenitude,
mas não determina o que devemos desejar. Desejamos ser feli-
zes, realizar-nos, ser queridos, estabelecemos valores que espe-
ramos que culminem nossas expectativas, optamos com o objeti-
vo de conseguir melas que preencham nossos desejos. Mas cada
meta adquirida situa-nos frente a um novo limite, cada desejo
realizado nos encrava na dura realidade da insatisfação. Nada
consegue preencher nossa sede de desejo. O desejo é nosso hori-
zonte; podemos definir para onde vamos, mas à medida que ca-
minhamos, o horizonte recua perante nós. Temos a potencialida-
de de direcionar nossos desejos, mas não podemos renunciar à
nossa condição de seres desejnntes. Mesmo sabendo que perse-
guimos um impossível e que o desejo sempre se converte na som-
bra da nossa insatisfação, temos que abraçar o desejo como a for-
ça que nos impulsiona em busca de mundos possíveis e que via-
biliza a possibilidade de criar nosso mundo. Ainda mais, sem o
desejo nos encolhemos interiormente e reduzimos no~sa práxis
aos limites do já dado. Se porventura tivéssemos a possibilidade
de negar nossa dimensão desejante, nos descobriríamos apáli-
cos, inertes e sem estímulo para viver.
Seres desejantes, mas seres insatisfeitos - grave e difícil
paradoxo existencial. Ele remove cm nós a experiência do infini-
to. O infinito não é uma mera idéia cartesiana. Se assim fosse,
constituiria um acessório fácil de neutralizar com argumentações.
O infinito cartesiano é lógico e por isso não represeri.la uma ques-
80
-----
Os pnradoxos do imn,_rú1ário
Ião existencial. Pode constituir-se num argumento lógico e até
ontológico, mas enquanto argumento é só isto: um construto ar-
tificial que pode ou não ser aceito; aliás, só quem leu Descartes
soube da que existência de um infinito lógico e ontológico em
nós. O infinito dos geômetras aparece como uma abstração dis-
tante e artificial:
Qw:, procurar, depois disso, outros verdades, e lendo-me pro-
posto o objeto dos seómt'fras, que se concebia como um corpo conhímo,
011 um espaço infinitnmente extenso em comprimento, largura e altura
ou profimdidndl', divisívd em diwrsas partes, que podiam ter diversos
figuras e grnndez11s, e ser movidas ou trnnspostas de todas ns maneiras,
pois os geômetras supõem que tudo z~--so em seu objeto percorria n~ru-
mas das mai, simples demon.,tmções (.. .) Voltando 11 examinar 11 idéia
que tinhn de um Ser pe,jelfo, verifií:ava qut' 111.'.ri,têncin estnvn níi11d11-
st1, dn mesma forma como na de um trinngulo estd ziu-f115v scnw seus
três ,b~fulos t;rum~· a dois retos, ou n de uma esfera saem todas as s1111s
parte:, ifun!mente dist1111tes do seu ce,rtrd3 9 •
(.) infinito carte;iano se debate no mundo do logos e, por
ter tal condição, resulta prescindível. Porém a experiência do in-
finito que o desejo instaura em nós é universal e universalizável.
O desejo nos projeta numa condição universal de abertura per-
manente para a busca e para a práxis. Essa abertura se confronta
com a in,;atisfação de um mundo essencialmente contingente. É
possível negar a existência real do infinito, mas o que não se pode
negar é que a experiência do infinito habita em nós e que ela só
poderá ser satisfeita na hipótese de uma comunhão como um
infinito real.

39 orscARTFS. Dismrso dei A1étodo. IV parte. Barcelona: Orbis, 1983, p. i5


O sem-fundo humano e os paradoxos da psique

lfmn liunginnçiiojortemn1fe preocupada com um aconkcimento


podt' provocd-!o.
Montaigne

St' os /romms so11bl'SS1.'m supemr 11 d1~·M11cin qu,, í'.risfe


í'l!frt' n mrísicn t' n n/ma,
consFgu1i"i11111 snir dn p(}{'fm nn qunl vfr,,,111 submersos.
Puccini

O imaginário é a nossa sombra, companheira fiel dos nos-


sos afazeres. Sombra inseparável que projeta a imagem inapre-
ensível do que somos. Está presente e é inatingível. Quando ten-
tamos abraçá-la, ela se transporia para além da nossa própria
vontade. Assombra-nos com sua maleabilidade e persistência.
Volátil como a dinâmica da luz, é tenaz como a própria existên-
cia. De aparência frágil, resiste a Iodas as vicissitudes. Sempre
reaparece como indicador externo de quem somos, como nos
movemos e para que existimos. Surge em nossa consciência na
intersecção de um corpo opaco e sem a presença do outro desa-
parece numa aparente inexistência. Constitui o perfil escuro no
qual se manifesta o seu imperceptível contorno. Transita na afir-
mação paradoxal da aparência e da realidade, da ausência e da
presença. Afirma a um tempo o sombrio e o assombro da vida.
82 Os pamdoxos do tínnginrírio
----
Ao aproximarmo-nos do imaginário, a metáfora da som-
bra nos alerta de que devemos desistir de cercá-lo conceitual-
mente de um modo definitivo. Nossa compreensão sempre de-
sencadeia novas incompreensões. Eis por que temos de nos apro-
ximar de modo descritivo, sem pretender descobrir essências
definitivas que o determinam. O imaginário emerge como força
criativa do sem-fundo humano, e o atalho que nos aproxima dele
de forma intensa é a psique humana.
A modernidade, principalmente nas versões racionalistas,
constituiu a psique num novo objeto de estudo. Sobre ela se vol-
tara de modo obsessivo a pretensão de exaustão tão própria de
nossa cultura ocidental. Constituído o novo objeto, seguiu-se a
receita mecanicista que desde Newton, Galileu e Bacon recomenda
o método de reduzir, num primeiro momento, aos elementos mais
simples para, depois, num segundo movimento, construir hipó-
teses sintéticas mais amplas. A psique humana foi catalogada
como novo objeto de es.tudo. Caracterizada sua objetivação, cou-
be a tarefa analítica de dividi-la em fragmentos menores para
análises explicativas que levassem a uma conclusão definitiva
sobre os diversos modos complexos do comportamento huma-
no. Coube à razão a incumbência de descobrir as leis internas de
cada movimento da psique. Configuradas as leis, pode ser defi-
nido o que é uma psique normal e o que se constitui um desvio.
Ao padronizar e explicar a psique, pretendeu-se chegar aos re-
cônditos segredos da anima humana. Porém a psique manifes-
tou-se como uma maleabilidade inapreensível para a mera racio-
nalidade explicativa. Possui uma nahtreza magmática, que lhe
possibilita solidificar-se em determinadas formas, comportamen-
tos, personalidades, atitudes, ele., mas que se modifica constan-
temente, fazendo de cada pessoa uma singularidade que não
admite clonação, de cada sociedade uma criação histórica única
e da práxis um momento criativo imprevisível.
A psique humana existe como fluxo criador que integra de
modo indissociável representação, afeto e intenção. Os parado-
xos coexistem nela como parte constitutiva de sua natureza. É
uma mônada, porém existe como fluxo criador de relações. Fe-
chada em si mesma, a mônada psíquica morre ou forma pa tolo-
gias destmtivas. A psique só pode existir na medida em que con-
Lnslor M. M Brlrlo/om/ Ruiz 83
segue identidade social específica. Ela flui como uma força indô-
mita de criação de sentido, um fluxo permanente de representa-
ções que não permite uma sujeição definitiva nem uma determi-
nação última. Sua natureza paradoxal exige, porém, que ela só
pode existir na medida cm que se concretiza na formação de iden-
tidades históricas e se determina na configuração de personali-
dades concretas. O paradoxo da psique demanda que seu fluir
irredutível só pode existir se se reduz a um modo peculiar de ser
pessoa. Esse fluxo indômito e criador de representações e senti-
dos, que constitui a textura singular da psique, é o que podemos
denominar de imflgintirio mdim/W.
Enquanto fluxo criador, o imaginário radical ignora, ou
melhor dizendo, integra de modo produtivo o tempo e a contra-
dição. Nele não vigoram os esquemas lógicos elementares. Ao
aproximarmo-nos conceitualmente dele, fazemo-lo sempre com
a lógica da vigflia. Ao tentarmos delimitar seus contornos em
categorias definidas, engessamo-lo em nossas formas lógicas. Pre-
tendendo compreendê-lo de forma plena, simplesmente o sufo-
camos nos limites por nós definidos de modo conceituai. Tencio-
nando sua explicação definitiva, nós o anulamos.
O esvaziamento da psique em moldes conceituais sempre
conduz a uma compreensão fragmentada. Quando elaboramos
amplas teorias explicativas funcionais de seus mecanismos ou a
definimos por meio de estreitos sistemas metafísicos, estamos
conduzindo o manancial criador do imaginário a uma situação
terminal. Término que, muitas vezes, identificamos com a expli-
cação definitiva e conclusiva de sua essência, quando, na verda-
de, é o começo de sua agonia. Desse modo, enclausuramos o sem-
fundo da psique humana numa delimitação lógica que não cor-
responde à sua natureza essencialmente magmática e inovadora.
O absurdo e o lcígico coexistem de modo conflitante no ser
da psique humana. Eles se imbricam produtivamente além da
lcígica da vigília-i 1 _ O sem-fundo da psique humana é o reduto

40 e'ASTORIADIS, Cornelius. A mslif111~iio imaginúnn d,1 sooi•(iade. Rio de Janeiro:


Paz e 'forra, 1991. p.329.
41 nu,t;D, Sigmund.L11111terprl'f11o'ó11 de los sue,ios. 3 \lo!. Madrid: Alian.1a F.di-
torial, l':!72.
84 Os pamdo.ros do imaginário
vital onde a contradição tem vigência criativa; ela convive em
confronto com a coerência lógica. Ambas colidem e pugnam pela
mútua superação, mas se implicam de modo necessário na mú-
tua existência. No âmbito do sem-fundo humano, o tempo da
lógica lineal perde seu sentido, pois ele se dilui na intemporali-
dade criadora do imaginário. A própria distinção que nós reali-
zamos da psique como um fluxo criativo que integra representa-
ção, afeto e intenção é uma mera distinção conceituai que orienta
nossa compreensão, mas que não explica seu ser. Necessariamente
devemos servir-nos da linguagem da vigília para poder descre-
ver, de forma dinâmica, o modo como percebemos o sem-hmdo
humano. Com isso fugimos conscientemente da pretensão de
exaurir cognitivamente seu fundamento ou natureza.
A psique humana é í11dett'rmi1111d11porque não pode ser redu-
zida a nenhuma ou Ira forma. É índetemuiuivelporque não é possível
ser induzida de nenhum outro elemento. É i11dtji11id11 porque não
pode ser criada por nent,uma lógica identitária. É um abi,moporque
sua natun:'za resulta inexplicável para o logos racional. É uma fmh,-
m original porque se situa como fruto e origem da fratura humana.
É sem-fundo porque não é possível encontrar para ela os elementos
primários e originários a partir dos quais se constitui.

P11m N(lforp, 11 conscié11ci11 (p;;ique) nõo é llfl/17 pmk do Sf'r que se


possn trnfnr e im't'.-!((;17r com os métodos com1111~: vríl!do.-; parn lodo
conhecimento objefil!O, St'nôo qut· t'Í17 vn/e comofimdl711tt'nlo co11d1~
cio1117dor dosa(. .. ) A pú,:o/ogf17 11do ft'lll 17 ,lt'r com um St'r qul' rstrjn
ddt'rmi1111do, mas inlerrog11 sobre 17'711tlo que preCfde e está por !rrís
dr• cndl7 uma dess115 de!1'mlÍt1flÇÕe.-. Na medidn 1'111 qut' a psicologia
s1' comprenu/17 corrd11me11ft' a si mesm11, niio podt' St' propor LVnhe-
cer a 1."'011sai111ci11 dt'screvn1do-a como 11111 anrí!ogo q11a/1711er da rmli-
dade objetivl7; pnm dn, pdo conlrrírio, o fato da r111to-coJ1scif11cin
signtfka 17/go !Í/timo r irrrd11tft1d que pode St' mostmr rnquanto tal,
111175 que niio podt' ·"' e:1.plicnr de 17COrdo com 175fom,ns mtegoriais do
conlJ,,ainenlo das coi,;n~~ particu/nrme11te de llLVrdo com 17 mt,yoria
de s11bsf1711cir1/idnde t' causnlidnde12 •

CASSlREI(, Ernst. rdos[!/111 d11sfann11s súnbó/1á1s. Vol. 3. México: F.C.E, 1971,


p. 68.
Castor M. M. B11rto!omi Ruiz 85
Na busca de intersecções compreensivas

O sem-fundo humano se manifesta corno inesgotável po-


tencialidade criadora do imaginário. Uma das intersecções em
que podemos captar esse fluxo criador é a representação. Are-
presentação, seja consciente ou inconsciente, principa 1mente esta
última, nos remete a um nódulo intrincado de possibilidades de
ser. Ela extrapola toda objetividade na lura! ou as explicações ló-
gicas sobre sua natureza, inserindo-se no eixo criador do imagi-
nário. Eis por que II reprcsentr1rão, seja consot'nfe 011 li1ronsâenft',
resulta dt> fato à1-n11a!isáve!.43 Isto não significa que tenhamos que
renunciar a sua compreensão ou que devemos nos reme ler a uma
"lógica" do absurdo, devaneando entre a confusão e a incoerên-
cia. A representação resulta ti1-111111!t:,tfve!porque ela sempre pos-
sui o germe criador que permite produzir novos sentidos e redi-
mensionar significativamente qualquer realidade além do signi-
ficado já conhecido.
A representação renova o sentido do mundo; desse modo
ela resulta sempre inovadora de práxis e transformadora da rea-
lidade instituída. Nunca poderemos fixar de modo definitivo o
sentido de uma representação, porque ela sempre projeta as coi-
sas, os fatos, as instituições para um leque indefinido de possibi-
lidades de ser. Ao pensar que conseguimos definir o que é a vida,
que tipo de família queremos, que forma de ócio desejamos, qual
é a melhor jus liça, o modo de produzir mais eficazmente, as ma-
neiras de vender um produto, as crenças religiosas mais convin-
centes, etc., estamos produzindo representaçÕC's sobre um modo
determinado de entender e fazer as coisas. Nenhuma dessas re-
presentações, enquanto determinações histó1icas, constitui um
modo conclusivo ou verdadeiro de explicar algo; pelo contrário,
todas elas estão submetidas ao fluxo transformador do imaginá-
rio, que as ressignifica continuamente segundo finalidades, cren-
ças ou métodos.

43 CASTOKIAIJIS,Cornelius. A ú1stituiçiio imllgi111íri11 dtl .<oáednde. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1991, p.318.
86 Os pnmdo.ros do imaginário
-------
A representação não se dobra à análise lógica conclusiva.
Ela deve ser compreendida de modo racional; mais ainda: é uma
forma racional de explicar e transformar o mundo, porém ne-
nhum tipo de teoria pode explicar plenamente todas as possibili-
dades da representação. O sem-fundo humano produz uma aber-
tura indefinida de sentidos, que permite estabelecer relações e
compreensõcs inéditas. Podemos ter uma certa compreensão do
modo como o sem-fundo humano realiza as representações e ins-
titui os sentidos; isto viabiliza uma certa análise lógica ou psicon-
11tilisedas representações. Porém se as representações são susce-
tíveis de interpretação, a interpretação nunca pode substituir a
representação. Esta tem uma potencialidade criadora singular e
uma autonomia própria. Interpretar as representações e realizar
um discurso interpretativo delas não substitui a representação,
nem supera sua especificidade. Nem sequer o sonho ou as repre-
sentações do inconsciente podem ser substituídas pela interpre-
tação. O sonho é algo, ontologicamente diferente da interpreta-
ção e foge a todas as determinações psicoanalíticas que sobre ele
se possam formular. Não se pode confundir a representação com
sua interpretação, nem pretender suplantar o sem-fundo huma-
no pelas teorias explicativas sobre sua natureza ou a lógica de
seus mecanismos 4·1•
A interpretação não pode assimilar-se à representação,
como a cor não pode identificar-se com uma equação de 'magni-
tude de onda. As equações matemáticas e as magnitudes de onda
nunca poderão explicar a cor nem substituí-la ontologicamente.
A interpretação sobre as representações do sem-fundo humano
não pode substituir, sem mais, uma pela outra.

44 Nossa posição se distancia da maioria das doutrinas psicoanalílicas que


propugnam a interprt>ta,;ão <los sonhos como o dt>sv .. lamcnto lógico dos
seus sentidos ocultos. Uma vez dedfrados os sentidos lógicos, o sonho e
as repres.,nlaçôcs por de produzida~ perdem qualquer interesse. Não ne-
gamos a possibilidade e a validez do psicoanálisc, porém cremos que é
um rcducionismo lumentávd esvaziar o sentido das representações oníricas
na lógica da vigília. Cf. '.\!ORRIS, Clifford. 51/{11S, Lnngungetmd Bdrrwror. New
Yorf: Prenlice Hall, 1946.
Lnstor M. M. Bnrto/0111/ Ruiz 87
É possível e necessário construir interpretações sobre o sem-
fundo humano. Esta é urna função analítica irrenunciável da pes-
soa e da sociedade. Porém se, estritamente falando, a análise ló-
gica tentasse estabelecer meras equivalências de sentido entre a
representação e as coisas, toda análise seria rigorosamente inter-
minável. Nunca conseguiria pôr um término ou definição con-
clusiva à potencialidade criadora do imaginário humano. Seria
incapaz de explicar todos os sentidos possíveis ou prováveis de
qualquer representação.
No entanto, só podemos nos aproximar da indetermina-
ção radical do sem-hmdo humano estabelecendo determinações.
Este paradoxo impulsiona uma correlação necessária e conflitan-
te entre o fluir criativo do imaginário e sua imperiosa necessida-
de de solidificar-se em determinações sociais para poder existir.
Esta confrontação lógico-ontológica late subjacente na maioria
das nossas interpretações e compreensões do imaginário. Ao bus-
carmos um sentido para as representações, introduzimo-nos, cons-
ciente ou inconscientemente, na dimensão caótico-lógica do sem-
fundo humano, na sua natureza fluente-e-objetivante, no seu ser
criativo-e-determinante.
A dinâmica da lógica da vigília pretende dissolver os pa-
radoxos inerentes ao sem-fundo humano, com o objetivo de esta-
belecer critérios claros, distintos e coerentes que harmonizem a
argumentação. Ela necessita definir, delimitar, diferenciar, deter-
minar os elementos para relacioná-los, interpretá-los e confecci-
onar um sentido racional e totalizante para sua existência. Na
maioria das vezes, esses senlidos logicamente definidos suplan-
tam ao sem-fundo humano, não só lógica, mas também onlologi-
camente. A razão se desgalha da sua raiz imaginária e se emanci-
pa sobre ela e contra ela. Nega-se assim o abismo do paradoxo
humano e se estende uma cômoda esteira de teorias explicativas
e coerentes sobre o mundo, a vida e a sociedade.
À medida que avançamos na reflexão, o paradoxo do sem-
fundo humano se volta contra nós e nos revida para voltarmos a
reafirmar a necessidade que ele tem da linguagem da vigília para
chegar a ser. A linguagem possui uma dimensão lógica inegável
e irredutível, embora não seja possível reduzir o potencial cria-
dor do imaginário a construções lógicas. O sem-fundo criativo
88 Os paradoxo.,; do ímagliuírio
------------
d a humanidade só pode aflorar na forma de linguagem e esta
sempre é uma determinação conceitua}. Porém ela não consegue
negar nem soldar o abismo instaurado pela fratura humana e
que está na origem do sem-fundo que constitui a natureza cria-
dora da pessoa. A dimensão lógica da linguagem não consegue
resolver o paradoxo da indeterminação radical do imaginário,
mas evita que se dissolva na patologia diluente de um fluir caó-
tico de imagens inapreensíveis ou de sentidos efêmeros.
O sem-fundo humano se manifesta como imaginário radical.
Sua natureza é a criação, mas a lógica possibilita sua inserção socio-
istórica. A natureza criadora do imaginário produz um leque indefi-
nido de representações por meio das quais a pessoa e a sociedade se
inserem no mundo e o transforma rn. As representações, para existir,
devem solidificar-se a modo de significações sociais, de instih1ições,
de formas históricas. Embora o imaginário seja um sem-fundo inde-
terminável, um npdivn indefinido e indefuúvcl, ele só pode existir
detcm1inando-se em cada pessoa, em cada sociedade, em cada
momento histórico. Un; modo de produção, urna forma de organi-
zação social, uma escala de valores, uma criação tecnológica, um
estilo de moradia ou urna obra de arte nada mais são do que deter-
minações históricas construídas pelo potencial criador do imaginá-
rio e concretizadas em cada sociedade. Desse modo, o sem-fundo
humano, por intermédio do imaginário, é o produtor das represen-
tações e o instigador da práxis social.

O imn,_í[7i1tirio não i dijÍ-'rt'lllt' do tm;i'fo 1'111 qu1' a reprt'Sl'ftlação do


ob1do St' dt'i.:m nssitm!ar f' modt•lar pelos impernlims p11/sio11m:, do
.;11jf'ifo e 110 qul', redp,vcmnn1lt', ns nprc:..,'11!,1çõl'S s11bjl'fil1ns St' t'X-
plicnm por acomodnçÕt's a!l!aion·s do Stljt'Jto ao máíio objetirid=-.

Imagem e representação

Qual é a origem do material com que a psique produz as


representações? A psique não pode ser a fonte única e exclusiva

45 DIJRANL>, Gilbert. L& !'lnu'hm'.< (}nfhropologiqr,cs de /'fm(}gúuurc. Parb: Bor-


das, 1979, p.38.
C11stor M. M Bartoloml Ruiz 89
de suas próprias representações. Onde encontraria a psique algo
diferente de seus próprios produtos? Se afirmarmos que toma os
materiais do real, estamos confundindo o real com a representa-
ção. A psique toma da realidade as impressões, mas estas, enten-
didas em si mesmas, transitam como um fluido caótico sem sen-
tido próprio. Se a psique se limitasse a captar as impressões sen-
síveis do real, ficaria turvada por um fervilhar de sensações in-
significantes. Os elementos do mundo careceriam de sentido.
Despojados de um nome que os identifique como singulares, es-
tariam privados do estatuto de objetos e impedidos de consituir-
se corno coisas. O caráter de coisa e de objeto implica uma densa
produção de sentido. O objeto carrega sobre si um intenso traba-
lho significativo. Para caracterizar o objeto, é preciso destacar do
fluir insignificante algumas impressões e impregná-las com um
sentido próprio. Desse modo, a impressão sensível insignificante
chega a constituir-se num objeto com sentido, numa coisa com
nome e significado próprios. ·
Não devemos confundir sensação e representação. A sen-
sação carece de sentido, carrega o real de forma insignificante. A
representação é o sentido produzido para a sensação. A repre-
sentação é construída a partir da sensação. A sensação insignifi-
cante é transformada em imagem significativa. A imagem já é
uma construção de sentido, ela carrega um modo de ver e enten-
der as coisas. A imagem integra a sensação e a significação. Toda
imagem é uma produção de sentido, um significado produzido
para um objeto. Desse modo, a imagem se constitui cm sinônimo
de representação. Representamos imaginando e imaginamos sob
o modo de representação. A representação é sempre uma trama
confeccionada pela intencionalidade e afeto da pessoa. A pessoa
pressiona o fluir caótico das sensações e destaca algi.imas delas,
impressionando-as imaginativamente com um sentido específi-
co. Desse modo, produz as mesmas significativamente, fazendo
delas um objeto social, uma coisa historicamente definida.
A pessoa não cria a realidade natural. O mundo a precede
como um primeiro nível de alteridade, necessário para sua exis-
tência. Porém não capta o mundo de modo neu Iro e objetivo, não
acha os sentidos na realidade, nem encontra os significados pre-
definidos nas coisas. Ela é produtora de sentidos para o mundo
90 Os paradoxos do ímnginrído
----~ - - ------------
que sai a seu encontro como alteridade irredutível, mas também
como materialidade aberta à criação. A representação implica de
modo paradoxal e conflitante a a 1Leridade do mundo e a potenci-
alidade criadora do imaginário. Na representação se integram,
confrontando-se, a novidade produtora da psique e a materiali-
dade referencial do objeto. Esta tensão que reintegra a pessoa
(sentimento-vontade-imaginação) e o mundo foi refletida ampla-
mente pelo memorável pensador Miguel de Unamuno, quando
afirmava:

Não se mt' ocu/111 lmnpouco que poderiio me diur q11t' tudo i,;fo dt'
qut' o homem crín o lfllmdo St'llsíwl e o amor idml (. ..) siio mdijóms.
Assim 1~ e niio pretmdo rnciodnnr n 11110 ser por mdrifoms. Dado
qut' esse smlido social, filho do nmo,; pni dn li11g11ngm1 e d11 rnzõo r
do mundo idm/ que dt>fe ~-urge, niio / nofimdo 011/rn coisn que o que
chnmnmos dt'fimfnsia t' 111111sú10çiio. Da fimtnsia hro/11 n mziio. E se
to11111m1os 11qud11 como 1m117fac11/dad1' qul'jorjn li1volunfr7nn111e11ft>
únagl'ns, pn~r1111t111á q11e é f7 ,,ontnde, ,. 1'111 qualqurr CtTSO lr7mbém
os sentidos ermm:"'

Quem ou o que produz o sentido para o caos indefinido


das impressões? A transformação das impressões em imagens com
sentido é a obra-prima do imaginário. Esses sentidos nãp se en-
contram em nenhuma essência ou natureza oculta das coisas, eles
são uma produção criativa da força imaginária própria da psi-
que humana. A origem do sentido da imagem está dentro da pró-
pria imagem; o princípio originário da representação está na
mesma representação, já que da constitui o modo de ser do ima-
ginário humano. Procurar a origem da representação fora dela
equivale a inverter os termos, conferindo ao real uma potenciali-
dade criadora que não possui.
O sem-fundo humano da psique integra os paradoxos de
um modo tenso, mas produtivo. Ele tem uma natureza criadora,
mas também depende do mundo em que vive. Cria o sentido
para o mundo, mas a realidade interfere no modo do sentido.

46 l!NMIUNO, :\-fig11Pl. E/.,,•11ti1111á1fo trágico de /11 vúlo. Madri: Albor, 1998, p. 51.
Castor M M Bartolom/ R11iz 91
Possui a potencialidade de inovar, mas é também receptor das
sensações do mundo cm que está inserido. A psique não pode
existir de modo auto-suficiente, pois a auto-suficiência conduz à
patologia. Porém a origem das representações está na natureza
criadora da psique, e não na realidade do mundo. Essa natureza
da-psique humana é o que denominamos de potencinlidnde cniufo-
rn do ilnasinário.
O poder objetivante do imaginário
e a socialização da psique

Os hmm'fl5, niio o homt'm, vivem na lerm I' lll7hilam o mrmdo.


Hnnnah Arendt

Um dos paradoxos do imaginário é que, sendo essencial-


mente inovação, não pode existir como pura criatividade. Ele
precisa objetivar-se em formas concretas. Se o imaginário fosse
pura potencialidade criadora, não haveria possibilidade de con-
ferir estabilidade aos significados, e as coisas se desvaneceriam
no mesmo ato criador. Estas não conseguiriam solidificar-se como
realidade social e histórica. A mera cri.ação inviabiliza a socieda-
de e a história. Ambas estariam submetidas a um trepidante rit-
mo de transformações e instabilidades que impediriaR1 sua pró-
pria existência. Eis por que o imaginário demanda urna dimen-
são objetivante ou instituinte dos produtos que ele mesmo cria.
A objetivação das significações sociais, como a linguagem,
cultura, técnica, instituições políticas ou qualquer outra, é um
pré-requisito estabelecido pelo próprio imaginário que as cria. A
objetivação introduz nas significações sociais uma dinâmica de
conservação e estabilidade, que entra em confrontação com a
natureza criativa e transformadora tão própria do imaginfüio. A
pessoa, cm cujo seio palpita uma radical indeterminação criali-
94 Os paradoxos do imngindrio
va, é sempre um sujeito socialmente instituído que tece sua iden-
tidade num processo de objetivação. Objetiva-se por meio da in-
trojeção de atitudes, valores, hábitos, crenças e práticas social-
mente definidas. De igual forma, a sociedade se configura por
meio da dialética, que implica tanto a inovação transformadora
quanto a preservação do criado.
Uma vez mais captamos o imaginário nos seus processos
paradoxais, que co-implicam dimensões contraditórias. Consta-
tar a existência da dimensão objetivadora do imaginário é insufi-
ciente. Há duas questões que exigem ser explicitadas: Onde loca-
lizamos esse poder objetivador ou instiluinte do imaginário?
Como ele se implementa?

A dunléticn17 do prazer e da insatisfação

O princípio que ri::-ge as pulsões do sem-fundo humano está


midiatizado fundamentalmente pela busca da felicidade ou,
numa linguagem freudiana, pela procura do prazer 1~. Como rc-
. fletimos anteriormente, essa ânsia de felicidade remete a pessoa
ao intento de restabelecer sua harmonia plena. Desse modo, o ser
humario se coloca no limite de seu ser, um ser fraturado que se
assoma ao abismo do seu eu. Um abismo insondável e uma fra-
tura que nunca poderá ser soldada plenamente.
Desde o prazer somático, experimentado no momento do
nascimento, a busca de felicidade se vivencia como experiência
de satisfação e/ ou de frustração-insatisfação, dependendo do
grau de realização que a pessoa alcança. A procura de prazer-

47 Tomamos a categoria dunldico de Andrés Ortiz-Osés. Ela conota uma


intpgraçãn conflituosa entre as partes, mas sem exclusão contraditória ou
diluição dP uma na outra. A difl'rença da dialética hegeliana a d1111!dú,1
pcrdl' qualquer conotação teleológica ou essencialista. Cf. ORTrz-os1's,
Andrés. Mânfi',;kn dd .~m!tdo. Bilbao: Universidad de Deusto, 1989; Id.
VJ'.,;/0111'.< dd mundo. Bilbao: Univ<c>rsidad de Dcusto, 1995; ld. Ct1esfü111es
fivntcnzn,;. Barcelona: Anthropos, 1999.
48 mEL'D, Sigmund. Obras comp/ef{JS. 3 cd. Vol 3. Madri: Biblioteca Nueva,
1973, p.1141-1180.
Castor M. M. Bnrto/omé Ruiz 95
felicidade lança a pessoa num horizonte de desejo cm busca de
plenitude. As necessidades sentidas, mesmo as de aparência mais
natural, nunca são meramente naturais, pois sempre são imagi-
nadas, isto é, significadas com um sentido culturalmente defini-
do. O desejo de felicidade transcende a necessidade natural no
rasto da harmonia plena. Já nas primeiras fases da infância, o
objeto é imaginado como desejo querido, chorado, gritado. Esse
objeto externo que deve satisfazer a necessidade imediata da cri-
ança não é pensado de modo lógico, mas imaginado de forma
vital, fantasiado como aquilo que necessita para satisfazer seu
desejo. Essa imaginação do objeto se realiza numa tensão irreso-
lúvel e fértil que implica a imaginação criadora e a fmslração
realista. A criança reclama e imagina o objeto para conseguir a
harmonia desejada, vivenciando concomitantemente a frustra-
ção da falta. O outro compensa sempre parcialmente seu desejo.
A criança experimenta a insatisfação e demanda a alteridade, a
presença do objeto querido, porém cada experiência de prazer
reconfortante é seguida de uma nova insatisfação frustrante. A
dinâmica de prazer-desprazer, desejo e alteridade se repele de
modo permanente como aprendizado vital imprescindível da
existência humana. No âmago desse conflito late um paradoxo;
de modo correlativo se gesta a potencialidade criadora do sujeito
e se processa a objetivação da sua identidade social.

É hom de comerar a nplimr II n1orme importd11d11 d11fimt11sif1. É o


poder 1111/enfimmt•nt,, co11111nic11fivo q11e gem 11 1111id11de dt' 11os.-a
r11d11 cti1éltá1 c de nosM v1d11 pnccptilJt1 t' 11 p11rtir desse momento 11
l't'mos em 11ç11õ, prrilcfJJ11/me11t,, 1111 l'ida d11 linguagem. Anti•.- de 11111f,
11ad11, 11fiml11sia ,,incu"1 noss{}s dil11'Tsos smltdos. 19

O paradoxo e a tensão existentes entre a representação


desejada do objeto e a fmstração de sua irredutibilidade definiti-
va ao desejo atravessam o processo de configuração da identida-
de pessoal e social. As funções vitais mais _incipientes, como a
sensação de fome, a busca de um sentido para a vida, o desejo do

49 GEHLEN, Arnold. E/ lwmbr,•. Salamanca: Sígueme, 1987, p. 75.


96 Os pnmdoxos do IÍ11ngínrírio

amor, a procura de moradia, o ideal da justiça, a sociedade sem


classes, etc., remetem um princípio de realidade que a pessoa
tem que significar imaginariamente e dar uma resposta. Porém
nenhuma solução ou meta alcançada consegue eliminar a neces-
sidade de forma absoluta, nem integra plenamente a pessoa numa
harmonia natural. Surge então a experiência da insatisfação. Esta
emerge como condicionamento inevitável da fratura humana. A
experiência da insatisfação aparece como se fosse uma imposi-
ção da alteridade à psique humana, que se efetiva na ausência do
objeto querido ou na insatisfação da plenitude tão almejada. Mas
é a experiência de insatisfação que estabelece o reconhecimento
da exterioridade, da alteridade. É desse modo que a psique tem
acesso a algo diferente de si mesma e consegue uma abertura
para a exterioridade. A subjetividade se trama na interação dua-
lética do prazer e da insatisfação que a psique estabelece com a
alteridade. A noção de identidade, longe de ser urna essência que
encontramos, remete a um sem-fundo maleável que produz as
identidades cm funçãÓ das práticas.A singularidade de cada prá-
tica define a especificidade de cada identidade. Essa prática en-
volve um complexo conjunto de fatores direcionados pela expe-
riência vertebradora do prazer e da insatisfação. A subjetividade
modela sua identidade ao singularizar o modo como interage
com a alteridade na sua condição de objeto desejado e nunca al-
cançado. A experiência de insatisfação cumpre um papel'insubs-
tituível para a constituição do sujeito; ela propicia o núcleo refe-
rencial onde se realiza a gestação da identidade.
Prazer e insatisfação estruturam um modo dualético de
relação com a alteridade. O prazer oferece a gratificação como
recompensa, mas sua presença é sempre efêmera. A insatisfação
sinaliza a contingência da subjetividade e estrutura sua abertura
para a alteridade. Enquanto a busca do prazer compulsivo pro-
voca a persecução de um narcisismo impossível e, em última ins-
tância, frustrante, a persistência da experiência da insatisfação
conduz também ao mesmo beco da frustração aguda. Caminhos
contrários levam a um mesmo destino. Como alternativa resta o
aprendizado humano para coexistir com a dualética inevitável
do desejo, que necessita o prazer para satisfazer-se, e a insatisfa-
ção que instaura os limites de qua !quer experiência prazerosa. O
Castor M. M. Bnrto!omé Ruiz 97
fantasma da relatividade paira sobre todo prazer humano, e a
finitudc está inoculada na sua vivência. A experiência do prazer,
embora necessária, nunca é plena; por isso a pessoa sempre está
projetada na busca do infinito almejado. A insatisfação impõe um
princípio externo à subjetividade, que serve corno referente para
processar a prMica com a qual definir sua identidade de sujeito.

A sublimação

O complexo processo desenhado anteriormente


(co)implica, na prática do sujeito, a introjeção duma exteriorida-
de socialmente definida e a transformação projetiva dessa exteri-
oridade. Para tanto, a psique deve instituir imaginariamente o
mundo no qual está inserida e projetá-lo de modo criativo como
o mundo querido ou como o objeto desejado. Isto, em parte, cor-
responde ao que a linguagem psicoanalítica denominou de su/Jli-
mapio. A sul?limação não deve ser caracterizada num sentido pe-
jorativo ou redutivo, como se fosse uma carêneia de racionalidà-
de da qual a pesc;oa não tem consciência. Pelo contrário, ela re-
presenta a forma origirutl em que a pessoa i;epresenta o mundo;
pensa seus desejos e racionaliza sua práxis50 .
A sublimação não permite uma compreensão unidirecio-
nal, seja desde o interior do sujeito como mera projeção inconsci-
ente dos desejos, seja desde o exterior como simples imposição
da realidade. A representação constitui um modo de sublimação
do mundo realizado a partir da intencionalidade e do afeto d~
pessoa. Eis por que qualquer forma de paradigma, teoria, filoso-
fia, cosmovisão ou modelo racional constitui uma forma de su-
blimação significativa do mundo. No outro pólo da ten'são, cons-
tata-se que nada poderia ser imposto pela sociedade ao sujeito
de um modo absoluto, nem de forma definitiva, pois o sem-fun-
do criativo renova todas as coisas que interferem na sua existên-
cia.

50 CASTORJAIJIS,Cornt'lius. A 111stit111j.~ío 1i1111,,;huírit1 d,1 .<oocd11dc. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, lYYl, p.360-364.
98 Ospnrndoxos do imaginário

A sublimação é um mecanismo aberto para a integração


do paradoxo conflitante da psique: sua potencialidade criadora
e sua abertura objetivante. A sublimação não projeta de modo
compulsivo a psique para a criação de novos sentidos, já que ela
está aberta para uma integração fecunda da alteridade. É desse
modo que a sublimação realiza a socialização do sujeito e impe-
de sua determinação absoluta pela sociedade instituída. A pró-
pria sociedade existe a partir do processo de sublimação e é cons-
truída pela prática criativa do imaginário. A sociedade integra a
tensão dualética da criação transformadora junto com a necessi-
dade de estabelecer mecanismos conservadores daquilo que foi
criado. Criação e conservação, sublimação e objetivação são di-
mensões correlativas ao modo de ser da sociedade e do sujeito.
A riqueza da sublimação como mecanismo representativo
impede que ela seja associada a uma mera projeção de insatisfa-
ções sexuais ou de qualquer outro tipo. Por meio do mecanismo
da sublimação a psiq\.1c desenvolve a dinâmica da representa-
ção, conferindo ao mundo uma gama indefinida de possibilida-
des de ser. O mecanismo da sublimação também está perpassa-
do pelo paradoxo do imaginário. Na sublimação, a pessoa vive a
tensão de re-significar inovadoramente o mundo concomitante-
mente com seu processo de adaptação a ele.

Alteridadc e (re)pressão

A fratura humana possibilitou a abertura criadora do ima-


ginário a um mundo que aparece em abertura com possibilida-
des inéditas de ser um mundo diferente. Esse processo de fratura
real e de sutura imaginária não se esgota em si mesmo, pois, se
assim fosse, o ser humano se encerraria num círculo de idealis-
mo estéril. Uma outra dimensão externa interfere na tensão entre
a fratura e a sutura imaginária, provocando na psique o reconhe-
cimento da alteridade. A ruptura realizada pela fratura humana
confronta a subjetividade com urna alteridade irredutível. Esta
ruptura, como vimos, é a responsável pela emergência do ser
humano e de sua dimensão hermenêutica, porém a fratura inter-
na se confronta com uma exterioridade de certo modo irredutí-
Castor M. M. Bartolomi Ruiz 99
vel aos ditados da herme11f'11.,is. A subjetividade fraturada, para
poder existir, tem que introjetar como própria a trama de signifi-
cações socialmente instituídas, servindo-se dessa trama como
referente para constituir uma identidade singular.
A alteridade é imprescindível para a existência da subjeti-
vidade, mas é insuficiente para preencher todas as suas expecta-
tivas latentes. Mais uma vez, a contingência da alteridade se de-
senvolve, também, na forma de fmstração. A pessoa se singulari-
za num processo de inserção social que integra a dialética expec-
tante de uma abertura para a plenitude e a frustrante realidade
da limitação socioistórica. A resultante dessa confrontação é um
sujeito socialmente instituído. A constituição do sujeito resulta
impensável sem a potencialidade criadora do imaginário, que
possibilita a singularidade de cada pessoa. Porém o sujeito é in-
viável sem a inserção dolorosa na alteridade social que o deter-
mina como um sujeito histórico. O sujeito e a sociedade são viá-
veis porque se objetivam na intersecção com um princípio estra-
nho e irredutível: a alteridade do mundo.
O estranhamento do mundo não é absoluto, caso contrário a
relação seria inviável. A pessoa integra a alleridade em virtude da
criação significativa. Ela é transformada e re-humanizada pelos sen-
tidos que a pessoa e a sociedade instituem. É desse modo que se
realiza o processo de constituição do sujeito, o qual se sustenta no
sem-fundo humano da psique. A psique se manifesta de forma pa-
radoxal como um sem-fundo que possui uma radical interminação
criadora e, no outro pólo, uma abertura para sua objetivação social,
possibilitando, desse modo, a realização da socialização.
A objetivação funciona devido a uma (re)pressão da reali-
dade sobre as pulsões criadoras. A psique encontra um mundo e
uma sociedade já instituídos; ambos, que são estranhos a ela, a
conformam e a transformam segundo exterioridades definidas.
Essas heteronomias pressionam o potencial criador da psique e o
singularizam, adaptando-o à realidade social em que se desen-
volve. A pressão da alteridade sobre a psique, longe de ser uma
dimensão meramente destrutiva ou anulante das suas potencia-
lidades criadoras, viabiliza-as e as insere num contexto cultural,
definindo-as sob forma de personalidades históricas, de particu-
laridades sociais ou de identidades específicas:
100 Os paradoxos do imagi,uírio
(. ..) ajónlfaçno dt• luib,tos-bnse, esfdr,efs efimdm,,mtm'!:, desmr,ç;a t'
"fmnspassn pam nctilln "n em·rg,n qm' origitmrtflllfC'fl/e SC' empr,xn-
vn pnrn n motimçno, ns pro,!fls <' os confrolei''.

A psique se especifica como sujeito histórico a partir do


processo de abertura que a permite inserir-se num cosmo de sig-
nificações sociais, configurando, desse modo, uma identidade es-
pecífica.
O potencial criador da psique sublima o mundo sob inde-
finidas possibilidades de ser, e a alleridade o concretiza pressio-
nando as representações com o princípio da realidade. A pressão
da alteridade insere o manancial criador da psique no contexto
sociocultural, define-o possibilitando sua existência, delimita-o
singularizando suas criações, determina a própria psique, confi-
gurando a identidade do sujeito social, demarca a sociedade, con-
ferindo ela a especificidade cultural e estrutural.
A insatisfação provocada pela alteridade finita e fugidia
introduz no sem-fundo humano um princípio de singularidade
que permite a inserção socioistórica da criação humana. A pres-
são da alteridade desperta a psique do sono da auto-suficiência e
a abre para o horizonte da complementação possível no outro.
Por sua vez, o choque de realidade imposto pela pressão desafia
a psique a se ajustar às possibilidades históricas viáveis sem se
asfixiar no imobilismo do status quo. •
Não é a mera pressão da alleridade que consegue delimi-
tar o polencial criador do imaginário, pois o próprio imaginário
possui uma abertura para determinar-se nas construções sociais
e culh1rais. Se o imaginário não albergasse em seu seio o poder
de especificar sua força criadora, haveria uma impossibilidade
de comum-ação entre a realidade do mundo e o sem-fundo hu-
mano. A alteridadc do mundo pressiona a força criadora da psi-
que para que se determine e socialize em construções culturais,
em identidades pessoais ou sociais, mas é o poder objetivante do
imaginário que refreia sua própria potencialidade criadora, deli-
mitando-a em formas sociais e induzindo sua estabilidade e con-

51 GFIIJ FX, Arnold. E! ltombre. Salamanca: Sígm:me, 1980, p. 75.


Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 101
servação. O imaginário integra os contrários e os resolve a modo
de produção relativa. A potencialidade criadora e o poder objeti-
vador coexistem como dinâmicas que se implicam e configuram
a complexidade insondável do imaginário. Elas apresentam um
pequeno fulgor do mystrrium que constihü o sem-fundo huma-
no.

No 1's d yoJimdammtnl
,'so q11e buscn d pol'fn,
sino el tu esencial.
(Antonio Machado)

O imaginário eslrulura a pessoa num paradoxo enrique-


cedor e irresolúvel. Integra nela a potencialidade criadora e o
poder objetivante como dimensões coexistentes que modelam o
ser do sujeito e configuram a natureza da sociedade. A dimensão
paradoxal se alarga para outros aspectos. Enquanto indivíduo, o
ser humano se constitui a partir de sua singularidade pessoal,
que desafia qualquer forma social instituída. É um processo que
podemos denominar de idiosn1ltico. Porém, enquanto sujeito so-
cial, ele se configura de modo relacional na interferência com o
cosmo de significações sociais já instituído. Este constitui sua di-
mensão social ou de koinonin, dimensão que podemos denomi-
nar de koinogmética. Ambas as dimensões, mais do que comple-
mentárias, coexistem como contraditórias. Elas estão co-referi-
das de modo necessário e conflituoso.
A dimensão koinogenéfiCll precede o indivíduo, ela o insere
numa visão de mundo, mas não o determina de modo absoluto
ou necessário. A dimensão idiogmétim possibilita q~e o indiví-
duo interfira criativamente no cosmo que o socializou e, inclusi-
ve, refaça a cada momento sua própria identidade.

A psique dilacerada e realizada


pela sublimação e pela (re)pressão

A sublimação tem como companheira inseparável a repres-


são. Ambas são faces de uma mesma moeda ou a única face do
102 Os paradoxos do imngú11frio
--------
rosto humano. Coexistem na auto-exclusão, mas resistem por-
que cada uma resulta necessária para a existência da outra.
O cu sublima o mundo e produz como seu mundo um
mundo recriado pelo sentido. Pela sublimação projeta o mundo
para novas possibilidades de ser, realiza a transformação do exis-
tente no diferente. Se quisermos falar de uma natureza humana,
temos de encontrá-la na sua dimensão criadora, que tem a espe-
rança como dinâmica e o infinito como horizonte. No entanto,
essas três dimensões coexistem num universo de contingências
em que a repressão cumpre a função primordial de ressituar os
anseios irreslrilos, delimitar as expectativas possíveis e determi-
nar os horizontes viáveis. A força criativa é descontrolada e im-
precisa e tem que aprender a inserir-se na finitude. A repressão
cumpre essa função pós-maiêutica de dirigir a força criativa en-
tre os limites possíveis do mundo.
A repressão mostra a realidade como ela é e não como de-
veria ser, viabiliza a jntegração da psique humana na realidade
social, ajuda a configurar sua identidade, inc;ere a subjetividade
na rede de relações sociais. Se a subjetividade não tivesse a capa-
cidade de acolher a pressão que a realidade exerce sobre o sem-
fundo humano, a sublimação remeteria a subjetividade a um efê-
mero fervilhar de possibilidades de ser sem capacidade para con-
cretizar algo. Se não existisse a repressão efetiva do real sobre a
subjetividade, o sem-fundo humano derivaria numa caótica cons-
trução de metaforismos e se frustraria na fabricação de utopis-
mos impossíveis. O princípio de realidade desenha uma figura
possível para potencialidade criadora, confere forma a seus an-
seios e dá corpo a seus ideais. É_p princípio da realiclade que_dá
esta~ilidade a todas as criações cstabelecea (linâmica de sua pre-
e
servação a possibilidade de durabilidade do criado.

Fstnsfón,:ns de coesno não são p11rn1111'11k, como nos psiconnnlistns,


psicoló,ç;icns ,, biogrrificns, mns dns são tombém sodnis e njldcm n
glob11l!dnd1' dn cu/furo que se tomn em conta. 52

52 DLIRAND, !ves. "Le test archétypal à neuf éléments". G1/11ás lnll'mnâonnu.r


de .-ymbofüme. 4, 1964.
Cnstor M. M. Bnrtolomé Ruiz 103
~ subjetividade possui, além _da na!µ_re 4 ª---criativa,_a aber-
~ura paradetemi.inar-se e integrar-se1_10 1m!nd_o ci~ U!Tl n10do_~iP1-
bológico. Essa tensão é realmente dilacerante e leva, em muitos
casos, à falsa tentativa de resolvê-la por meio da redução de uma
na outra, seja pela negação da criação, enfatizando o princípio
da realidade, seja pela negação de qualquer estabilidade do cria-
do. É desse modo que surgem as patologias que tê fe-
rências antiéticas as figuras de Narciso e Utopos. naros1smo
p~tcndc conservar o estabelecido a qualque~_cus~o, porCÜ!e _se
olhaa si mesmo no melhor dos mundos ossíveis e s~_ÇQ.DJ~}!!Rla
com todas as perfeições cab{v-eisfO utopista ega qualquer valor
aoeslabéfedêfoe vive-numa obsessao compulsiva pela novida-
de, não aceita as limitações e contingências do real e pretende
instaurar a perfeição no presente, o parafao na terra, a plenitude
no aqui e agora.
Outra falsa solução comumente proposta para aliviar essa
relação conflitante consiste em querer dissolver ambas as dimen-
sões -(críaçãcrt1-re~- por meio de uma mera conjugação
harmoiiiõsã·cte·somãí:ôrios, negando a tensão que perfaz sua re-
lação, como se fosse possível integrar ambas numa hipotética ati-
tude de reconciliação vital. O decisivo entre ambas é a tensão; o
conflito inerente à sua relaçãoe· produtívo.-As-ii"biíinaç~o estimu-
la a subjetividade, alimenta sua criatividade e reforça sua aber-
tura ao ilimitado. A sublimação projeta a subjetividade num ho-
rizcmte de busca insaciável de plenitude, lançando-a para um
universo ilimitado na procura de perfeição e impulsionando-a
numa criação incontrolada e insaciável. A (re)pressão confere
identidade à subjetividade, outorga-lhe o rosto de sujeito históri-
co. A (re)pressão inerente ao princípio da realidade constrói os
contornos culturais da sociedade e estabelece suas fôrmas insti-
tucionais, mas não preenche o sem-fundo humano. As determi-
nações do real sempre resultam estreitas para a subjetividade,
sua finitudc asfixia a sede de infinito que late no sem-fundo hu-
mano.
A subjetividade está fadada a conviver com o drama, às
vezes com a tragédia humana, dos paradoxos da confrontação
interior. Irresolúveis e indissolúveis, essas contradições se inte-
gram e excluem ao mesmo tempo e se resolvem numa dolorosa
104 Os paradoxos do imns1ntirio
--------------
dinâmica produtiva. A riqueza e a diversidade da subjetividade
não se explica pelas limitaçôes dispostas pelo real, mas pela aber-
tura indeterminável do sem-fundo humano. As realizações soci-
ais não podem ser reduzidas a meras projeções sublimatórias da
psique, nem a sublimação pode ser compreendida como mero
resullado da pressão externa.
Desde o momento da concepção, a sublimação possibilita
gerar o novo, e a (re)pressão singulariza a subjetividade, definin-
do sua identidade a partir dos parâmetros de uma determinada
inserção cultural. As pulsões do sem-fundo projetam a subjetivi-
dade para a novidade de sentido, as pressões da realidade as
comprimem numa definição cultural. A subjetividade se sente
impulsionada a transcender o imediato e pressionada a aceitar o
existente. Essa tensão dialética dilacera suas entranhas, mas é nela
que se gesta produtivamente o sujeito histórico e se institui o ser
da sociedade. A pluralidade e a surpreendente capacidade da
criação humana se realizam na dunléticn co-implicante da subli-
mação criadora e da (re)pressão objetivante.

Entre Narciso e Utopos

A experiência do mundo está configurada pelo paradoxal


vaivém do prazer e da insatisfação, da sublimação e da (re)pres-
são. A subjetividade vivencia esses paradoxos como presença e
ausência concomitante de ambas as dimensões. Na presença usu-
fmi do mundo como algo que realiza suas necessidades, na au-
sência o reclama como finitude que não consegue preencher de
modo definitivo suas expectativas existenciais. Na presença ten-
de a dissolver seu eu no mundo, na ausência busca transcendê-lo
para um horizonte de infinilude. A relação dualélica de prazer-
insatisfação, presença-ausência constitui a forma como o sujei lo
vivencia a dimensão da alteridade. Mais ainda, podemos dizer
que a alleridade emerge para o sujeito enquanto contradição que
não se dissolve na subjetividade, nem se resolve pela negação de
sua exterioridade. A alteridade manifesta-se como a dimensão
necessária que complementa a natureza indeterminada da sub-
jetividade, mas resulta insuficiente para preencher as possibili-
C..nstor M M Bartolomé Ruiz 105
dades e expectativas do sem-fundo humano. É nessa tensão que
o sujeito vai configurando seu sentido de alteridade e sua identi-
dade com respeito a ela. Não pode diluir-se nela, porque seu sem-
fundo criativo sempre a transcende para um além, mas não pode
negá-la porque, sem ela, a psique não pode existir nem desenvol-
ver-se.
Os paradoxos da alleridade confundem a pessoa. Um mes-
mo objeto é causa de prazer e insatisfação. Um fato, uma pessoa,
uma relação, uma opção, uma circunstância, etc. proporcionam
concomitantemente a experiência da realização e a fnistração da
insatisfação. Esse paradoxo lança a pessoa na procura do utopos,
que anula a dimensão da insatisfação e lhe proporciona a pleni-
tude almejada. O paradoxo da busca do prazer e da realidade da
insatisfação produz um choque de realidade na subjetividade e a
desafia a aceitar a dimensão contraditória da realidade, sob pena
de encerrar-se no autismo patológico das experiências subjetivas
ou de frustrar-se na busca do paraíso histórico perdido.
A não-aceitação vital dessa natureza paradoxal do imagi-
nário e da alteridade pode encerrar a pessoa num estado narci-
sista permanente. Narciso~pwcurélsc1ti~faze_i--se a si mesmo olhan-
do só para suas próprias possibilidades. Guiado pelos impulsos
de gratiiicação, nega qualquer forma de insatisfação advinda da
alteridade. Para Narciso, o outro existe enquanto serve parasa-
tisfazer os desejos do seu eu. O outro é reduzido à medida das
necessidades do eu, ele é dissolvido na busca do prazer próprio.
Freud denominava essa experiência da evolução infantil de de-
senvolvimento 1111adíttàf3 • Na medida cm que o outro não preen-
che as necessidades de Narciso ou resulta uma alteridade irred u-
tível a seus desejos, é catalogado como frustração. Narciso não
só rejeita compulsoriamente as experiências de insatisf'ação, como
descarta a alleridade, o outro que as provoca. No momento da
insatisfação, Narciso dirige para a alteridade seus instintos agres-
sivos com intenção de destruí-la. Anulado o outro, Narciso se
af9g~_no oce~no de seu sem-fundo patologicamente enclausur~l-
d-o. --

53 rnrun, Sigmund. "Uma teoria sexual". Obms compld11s. Vol. 1. Madrid: Bi-
blioteca Nueva, 1948, p. 233-589.
106 Os paradoxos do imaginário

Mis o/os m despejo


o/os qur cit>gos miran
sof/
los ojos con los que veo. Quan de Mairena, CLXVlll)

E/ ojo que ves 110 es


ojo porque tú lo vcas,
es ojo porque teve. (Antononio :\1achado)

Se Narciso é uma forma patológica de estruturar a subjeti-


vidade, seu lugar não pode ser ocupado por Utopos. ~ f e -
rece a felicidade plena, dizendo que irá suturar a frahmilm-tna-
na, conseguindo a plenitude tão dramaticamente perseguida. Ele
promete o paraíso perdido numa terra que mana perfeição. As
feições do utopismo são reconhecíveis nos mirabolantes projetos
sociais ou nas ofertas de felicidade plena que se anunciaram como
sistemas absolutos ao longo da história. Ut~e>_s~ o ir_n:,_ã(?_g~l!!eo
de Nªrciso. Cara e c;ruz de uma mesma moeda. Como ocorria
êom Na~ciso, a entrega incondicional nos braços de Utopos con-
duz fatalmente para o desespero ou para o fanatismo.
A natureza paradoxal do imaginário se projeta em todas
as direções. Narciso e Utopos afogam ou dilaceram o sem-fundo
humano, porém ambos são necessários e insubstituíveis para que
a subjetividade possa realizar-se numa dimensão social e históri-
ca. A auto-estima de Narciso é condição sine qufl 11011 pàra que a
subjetividade possa auto-afirmar-se como sujeito autônomo e
criativo. O horizonte de Utopos é imprescindível para dirigir a
práxis do sujeito e da sociedade a um horizonte de possibilida-
des. Esse horizonte, mesmo que possa ser realizado com perfei-
ção, indica a necessidade e a possibilidade permanente de supe-
ração e transformação do social. A compreensão e a aceitação
dessa tensão entre Narciso e Utopos evitam as fantasias dos pa-
raísos sociais absolutos e superam as ideologias conservadoras
paralisantes que repetidamente anunciam a chegada no fim da
histórifl.
Capítulo II
A IMPLICAÇÃO SIMBÓLICA
DO IMAGINÁRIO

Ti1do / st~'{tmdo a dor com que se olha.


Mario Bcncdetti

A q1wm sr esforça num perene ft'nder,


A esse poderemos sa!Vtlr!
Goethe
Do mítico-mágico ao simbo-logismo

Ao hommr jo,~l!te concedida a intnsi11llrifo por nqudo q111' nifo é.


Bacon

O 1i11nsindrio é nfacu/dndt· origimiria de SI.' pôr 011 se dm;


sob n farmn de r,prr.,rll/açiio, 11111n coiso e 11111n relação que 11ão sifo(. ..)
É a cnpncitillde iJTdestmlh'l'I d1• evocnr uma imngnll.
Cornelius Castoriadis

O imaginário não consegue manifestar-se a não ser sob


formas simbólicas. Um simbolismo sempre perpassado pela ra-
cionalidade, mas também uma racionalidade sempre impregna-
da de simbolismo. Eis por que podemos caracterizar o ser huma-
no como um ser simbo-lógico ou, de forma mais ampla, um ser
essencialmente mito-lógico.
A complexidade simbológica do ser humano deflagrou
historicamente confrontações entre os teóricos que defendiam
uma ou outra posição e, para tanto, se empenhavam em negar a
contrária ou mostrar sua insignificância. Mais uma vez percebe-
mos o paradoxo do imaginário alastrar-se pelas diversas dimen-
sões do humano. O mito e o logos, o simbólico e o racional estão
co-reíeridos e se integram dialeticamente num processo que St'
anuncia, ao mesmo tempo, excludente e integrador. Como se pro-
110 Os paradoxos do imaginário
duz a dimensão simbológica do imaginário? Por que podemos
afirmar que o ser humano é essencialmente mitológico? São ques-
tões a desenvolver. Para tanto, devemos embrenhar-nos em al-
gumas distinções conceituais.

Algumas distinções conceituais

Temos de realizar uma primeira diferenciação entre o míti-


co e o mri/rico. A identificação de ambas as categorias induz a er-
ros de percepção importantes. A confusão tradicional entre os dois
conceitos levou a concluir a superação evolutiva do mito pelo
logos. Esla confusão diluiu o mítico no mágico e consolidou a per-
cepção de que o mito é uma fase pré-racional do humano, na
qual a sociedade e as pessoas estavam incapacitadas de compre-
ender os mecanismos lógicos ou científicos da natureza, da psi-
que e da socie.dade.

A co1,ji11nft1 d,•po.-itndn fxdu.-ivrmtf'ltff' na "mcio110/idndr" conduz,


por e.umpio, 110 sfculo XIX n con.>7dernr puros 11bsurdos as rd(riôt'::.·
primihvos r os mito5 ("tolice" primitiva comodl'Sc,n,f11 Engels m11n11
mrtn n K. Sdrmidt rm 27 dr outubro dt> 11190); t'S5tl co,tfiim{fl con-
duz t11mbà11 no.- leitos de Procusto co1tfemporâ11eos estrrrh!mlisfas t'
de outros tipos. 54

Uma segunda distinção deve ser realizada entre a catego-


ria do mítico-mágico e o simbolismo mitificador. Consideramos
que o avanço socioistórico do logos descaracterizou muitas das
representações mítico-mágicas usadas como etiologias explicati-
vas da natureza ou do comportamento humano. O poder expli-
cativo da racionalidade desentranhou cosmovisões mítico-mági-
cas e as destituiu do seu estatuto de verdades, invalidando-as
socialmente. Esta é uma árdua e difícil tarefa que a humanidade
assumiu desde os primeiros hominídeos e que deve ser louvada

54 CASTORIADIS, Comdius. Os domí11;0s do hommr. São Paulo: f'az e Terra, 1987,


p. 272.
(JI~"for M. M. B11rtolomé Ruiz 111
e potencializada em todas as frentes. Porém não podemos nos
enganar com a ingenuidade do racionalismo ilustrado que, en-
tronizando a deusa razão, pensa ter extirpado evolutivamente
todas as formas mítico-mágicas de nossas sociedades tão pro-
fundamente tecnificadas. O mítico-mágico está tão vivo e produ-
tivo em nossas sociedades pós-industriais quanto nos grupos
nômades de coletores e caçadores. É só dar uma olhada nos ho-
róscopos cotidianos de quase todos os jornais, nos fetiches do
consumo, nos ídolos do esporte ou da música, nas seitas da mw
age ou nas torcidas fanatizadas dos times·5\ Q trabalho humani-
zador da racionalidade não tem 1,!!!1..E.Q_ntu fina!,_e_le_é_!~~~-(ip_e_re-
~
Temos de estabelecer um ponto de contraste entre os con-
ceitos do mítico-mágico e o de simbolismo mitificador. O simbo-
lismo mitificador não é uma mera alucinação, como ocorre com
as representações mítico-mágicas; ele responde a uma dimensão
antropológica do ser humano e da sociedade. Enquanto as cons-
truções mítico-mágicas podem e devem ser descontruídas pela
racionalidade, o simbolismo mitificador não pode ser anulado
ou superado pelo logos, pois está implicado nele. O logos tem a
pretensão de denotar objetivamente o mundo que analisa, mas
usa inevitavelmente elementos simbólicos para conotar os senti-
dos que produz. Um sentido lógico envolve também uma cons-
trução simbólica. Uma teoria racional e mesmo científica consti-
tui uma forma simbólica de explicar a realidade, sendo que toda
forma simbólica remete à dimensão mítica do humano. O logos
não supera o simbolismo milificador, nem a racionalidade de-
sentranha de forma definitiva lodos os sentidos simbólicos. Am-
bos, racionalidade e símbolo, estão imbricados de modo parado-
xal pelo imaginário humano que os ativa na produção d"e signifi-
cações sociais.

55 Sobre as novas formas de fanatismo geradas pela modernidade R.


Dharendorf diz: "lV,io .,ó nos ,1pro.timt1111os pt'ri;,tos11m,'nfe 1111nomú1, mas 11111111-
g,·m mar:, brutal do r.,lildo d,• nntureZll" Id. Úl ley y l'Í orden. Madri, 1994, p.
65.
112 Os pnrndoxos do imnsit1ório
O 11ufo serue dt! instância normativa para a qual apela o orador. l ld
no seu âmago alguma co1:;a que tt'm val!dade universal. Niio km
cnrdtrr mernmmteficticio, nnbom origi11n/me11te seja, st'm dúvida
nlg11mn, o sedti11ento de aconteainentos históricos que a/cnnçarnm a
únortal!dnde por meio dt! uma /011g11 tradição t! da inferpretação
1'llnltecedorn dn_!imtnsin crindom da postendnde. 56

Rastreando as origens do mito

Para poder aprohmdar as afirmações anteriores, devemos


rastrear a filogênese do ser humano. Nas origens da humanida-
de, nos incipientes e frágeis grupos de hominídeos primitivos, as
representações mítico-mágicas se sobrepunham ao real com uma
força quase compulsiva. Os signos adquiriam um poder próprio
superior ao objeto designado. A dimensão mítico-mágica era he-
gemônica, quase co]1lpulsiva, e impregnava todos os signos e
produções humanas. Estes signos detinham uma autonomia pró-
pria, que interferia ativamente no mundo. O signo incorporava
um poder autônomo e desprendia-se do seu artífice. O ser huma-
no não percebia mais aqueles signos como meras produções, pois
eles tinham incorporado urna entidade própria. Esta é urna ca-
racterística própria da consciência mítico-mágica; nela a criahtra
volta-se contra o criador, eleva-se sobre ele. Q.s.ig_no. inCà!:QOra o
poder de direcio_~ar as c_q11dutas.
Num segundo nível, o mítico-mágico adquire um certo
caráter de absoluto. Ele não se restringe a um aspecto ou signo,
mas se expande sobre Ludo e invade todas as relações. O mundo
se vê impregnado por esse caráter mítico-mágico: a alimentação,
a procriação, a caça, a doença, os sentimentos, etc. Nossa relação
com o mundo envolve uma dimensão hermenêutica, uma tenta-
tiva de interpretar o sentido do mundo para interferir nele se-
gundo uma intencionalidade específica. Na origem da humani-
dade, essa relação hermenêutica estava pautada pelo caráter mí-

56 JAEGER, VVerner. P,1idàt1. A _!ômu1r,fo ti" hom,•m gri'gO. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 68.
Cnstor M M. Bnrtolomé Ruiz
--------------------------------
113
tico-m,1gico, que invadia com sua presença hegemónica todas as
dimensões vitais, existenciais e sociais57 •
Nessas circunstâncias, a onipresença do mítico-mágico
constrangia o logos à sua mínima expressão. Uma pressão quase
compulsiva do mítico-mágico sobre o entorno anulava qualquer
distanciamento crítico da pessoa sobre a representação que tinha
do mundo. Imagem e realidade se fusionavam numa confusão
indecifrável entre o criador e a obra; isto provocava uma indefi-
nição da subjetividade e da alteridade. A consciência da própria
subjetividade estava constrita à sua mínima expressão, o que
impedia a criação simbólica de imaginar com distância suficien-
te uma separação entre subjetividade e mundo. A subjetividade
restrita e a alteridade indefinida provocavam a inversão do sig-
no, o criador virava dependente da criatura, a pessoa se subme-
tia ao signo por ela instituído. O signo, investido de autonomia e
poder próprio, detinha a explicação e os desígnios do grupo; ele
definia o comportamento de cada pessoa e linha o segredo das
forças da natureza. Hermann Usener, na sua obra Gottemnme,r,
analisa desde a perspectiva lingüística o processo de evolução
das formas míticas primitivas na Grécia clássica e afirma:

A musfl dfl mobilitifldt· e t•xcitnb,lidflde do smtimmto rd(rioso, um


co11ct'llo q11a!q11t'r, tJfllllqutr objeto tJllt' domiu11 todos os pe11snmm-
fo::,~ pode .,;er exnltndo sr'm mais à cnlrgorin dt• divino: o t'11fe11dh11t'11-
fo e a razão, n riquezfl, o nzn,; o momento d1•c,àvo, o vinho, os praze-
res do bn11q11t'fc, o corpo de um ser amado (.. .), o que nos cl1e.,,;a como
sríbita visitação de admn, o q111' 110.,; alegra, o que nos entristece t'
depni11t', aparece à excifnbil,dade exnltndn como uma 1•ssf11cia divi-
na. Os gregos ,mu:, antigos dt, que fl'mos notícia di5p&m t'les para
tal caso do conceito de daimo11. 56 •

Na concepção mílice>-mágica se produz uma indistinção


entre imagem e mundo, entre a representação e a realidade, en-

57 1Jl.'RA:s!1J, Gilbcrt Le dit:or myt!riqul' dr la Charfrt'.use d,· Parme: Les sfruct11re.<


figurntiv1'.ç du mm,m 5fhmdhalien_ París: José Corti, 1990, p. 115.
58 CSJ:NEK, l lcrmann. Ciitternanrl'!1. Versuclr ,•iner Lehrl' von der religió'.çen
Begrif.febl!dug. Bonn, 1896, p. 290.
114 Os parndo:ros do IÍllt~fÍlldrio

lre o sentido e a coisa. Os objetos se dissolvem nas representa-


ções, e produz-se uma identificação entre a realidade e a imagem
construída para eles. Não existe diferença enlre representação e
realidade, e a imagem tem a mesma entidade que o mundo. O
caráter mítico-mágico dola de eficácia os signos instituídos, exer-
cendo uma coação dnimonicnsobre a consciência, suprimindo sua
autonomia pela heteronomia do signo. A consciência mítico-má-
gica sente-se dirigida pela indistinção entre a imagem e o objeto;
ambas são indissociáveis e atuam em uníssono. Na conexão do
enlace geral dos fenômenos naturais e das coisas, a imagem de-
tém o primado explicativo. O nome de um indivíduo, sua ima-
gem ou alguma parte de seu corpo (cabelo, unhas, etc.) não o
representam na ausência, mas pela conexão dos efeitos entre ima-
gem e realidade eles são o indivíduo.
Na visão mítico-mágica, a parte inclui o lodo, só e:,-tó dndn à
intuição uma totalidndt• i,1dim~,1 nn qual não teve lugar nenhuma ''di-
luição" dos fatore:,· objdivos da percepção e dos fatom; subjetivos do
sm!Ítm'nfo19 • Seu axioma principal afirma a força objetiva do sig-
no e o poder real da palavra e da imagem. O mundo constitui
uma realidade fechada em que prevalece a totalidade das formas
e se obscurecem as características particulares. O mundo está ani-
mado por uma mobilidade incessante; sua Çil~cteríslica princi-
pal é__<! ft!gacidade. A consciência mítico-mágica 11ão consegue
destacar permanências, nem estabelecer continuidades nos fenô-
menos. Tudo é vivenciado como uma seqüência de fatos pontu-
ais que desaparecem e reaparecem de modo fugaz e impreciso.
Não consegue estabelecer as conexões causais, nem interligar os
fenômenos num conceito generalizável. Os limites entre os di-
versos fenômenos são indefinidos, e sua interconexão é aleatória
e maleável. O fenômeno particular adquire uma densidade tal
que resulta rfeificndo na sua singularidade. A intensidade do fe-
nômeno na consciência impede qualquer forma de distanciamento
sobre ele e inviabiliza a abstração analítica. Os fatos (im)pres-
sionam intensamente a consciência, provocando um impacto que
invade a pessoa e o grupo. A densidade do impacto gera o as-

59 CASSJIU:K, Ernst. Fllosq/in d1! lüs_lórmos simbó/1à1s. vol. 2. México: Fondo de


Cultura Económica. 1972, p. 72.
Cnstor M. M. Bnrtolomé Ruiz 115
sombro do 111}/Steríum, que provoca a deificação do fenômeno ou
do objetd.o.
A consciência mítico-mágica integra de modo acrítico os
dados da sensibilidade. Sente-se incapaz de distanciar-se das
impressões. Isto a impede de realizar uma distinção entre ima-
gem e objeto, sentido e mundo, entre o subjetivo e o objetivo,
entre o passado- presente e futuro. Nessas circunstâncias, a sub-
jetividade não se compreende como um sujeito ativo, mas como
um ente passivo. Sobre ele se desencadeia um conjunto de forças
misteriosas de(fia11l11s por ele mesmo e das quais se sente incapaz
de tomar distância. Os objetos que ele criou adquirem essa dáfi-
c11pio mti:,ric11, que os investe de um caráter absoluto.
A consciência mítico-mágica não consegue elaborar um
conceito do idt'lll. Por este motivo, quando produz o sentido das
coisas, tem que objetivar o ú/m/num objeto concreto. Ainda que
consiga estabelecer uma diferença empírica entre os diversos ele-
mentos, qualquer diferença empírica fica apagada perante a con-
cepção holística da natureza. Daí que o cosmos fica impregnado
de urna solidariedade que conecta lodos os elementos entre si.
Acima da singularidade dos objetos existe uma força vital que
enlaça as coisas num todo animado. Essa força se manifesta de
modo dinâmico nos diversos objetos e circunstâncias, da os cor-
relaciona vitalmente e os vincula ao todo de onde provêm os de-
sígnios últimos. Objetos, plantas, animais e pessoas possuem um
e/ãvital que os integra numa unidade prévia e determinante de
sua singularidade"1•
A visão mítico-mágica impõe à realidade uma si11cro11ici-
dllde que unifica presente-passado-futuro numa experiência in-
dissociável. Os mortos, enquanto antepassados, permanecem vi-
vos no presente e integram o passado na atualidade ctJtidiana. O
que foi é. E o que será também está no presente. A experiência
vital impregna com um caráter de a-temporalidade todos os acon-

60 CNS1Krn, Ernst. Filoso_fí,1 de lnsform,1s simbólicns. vol. 3. México: Fondo de


Cultura Económica. 1971, p. 133.
61 CA5SJRLK, Ernst. Filosefín de lnsfonnns simbólrà1.<. vol. 2. México: Fondo de
Cultura Económica. 1972, p. 234; Id. Antropo!ogfn Fdosófim, Mfaico, Fondo
de Cultura Ecom'imica, 1983, p. 128.
116 Os paradoxos do linn,'{àttfrio
tecimentos. A sincronicidade contemporizo todas as dimensões da
existência e possibilita que a pessoa vivencie como experiência
presente os feitos passados e que os antepassados e os atuais con-
vivam no presente numa unidade vital. A morte e a vida se inte-
gram na sincronicidade cíclica do todo, já que o todo é cada um e
cada um é um todo 62 • A consciência mítico-mágica não consegue
estender o instante para além de si mesmo; não olha para adian-
te ou para atrás do presente; não relaciona os elementos particu-
lares com causas gerais.

O amanhecer simbológico

Embora nos primeiros milênios da existência humana a


pressão mítico-mágica sobre a consciência humana fosse prepon-
derante, não era absoluta. Caso contrário, inviabilizaria qualquer
desconstrução de sentido e impediria a produção de novas for-
mas significativas de caráter simbólico e lógico. Em lermos de
durabilidade, devemos considerar que a humanidade viveu a
maioria de sua existência sob o império hegemônico da consci-
ência mítico-mágica. Embora esse tipo de subjetividade tenha sido
amplamente superado, não existe uma perspectiva evolutiva da
razão que anule de modo absoluto a tendência mítico-mágica da
consciência, pois esta sempre renasce sob as formas mais impre-
visíveis. Em nossas próprias sociedades do conhecimento, os fo-
cos de manifestação mítico-mágica proliferam amplamente sob
as características de novos esoterismos religiosos, torcidas fute-
bolísticas, agremiações de fãs ou massas de consumidores.
A visão mítico-magica ficou durante milênios aparente-
mente estagnada, mas de modo imperceptível o imaginário foi
retrabalhando o conjunto das produções humanas, provocando
um maior desenvolvimento lógico do simbolismo. A maior im-
plicação do logos na consciência mítico-mágica possibilitou a
gestação de representações com uma autoconsciência mais autô-
noma dos sujeitos. O fruto principal desse longo processo foi a
linguagem. A fugacidade dos fenômenos isolados e pontuais,

62 LEVI-BRllHL, Lucien. D alma prti11it1à1. Barcelona: Península, 1986, p. 234.


Castor M M Barto!omé Ruiz 117
próprios da visão mítico-mágica, foram remetendo à medida que
adquiriam uma maior permanência. O caráter mais estável de
algumas produções humanas permitiu uma observação mais dis-
tante e uma ressignificação mais consciente do mundo com alte-
ridade diferenciada. A subjetividade foi estabelecendo relações
de diferenciação específica com o mundo e constituindo genera-
lidades entre os fenômenos. A compulsão da pressão emocional
e a densidade imperativa dos sentidos foram-se fraturando.
Nos interstícios do distanciamento entre a pessoa e o mun-
do, uma nova dimensão simbólica foi modificando o modo da
consciência dos sujeitos e a identidade dos gmpos sociais. De
forma lenta, tateando na imensidão do possível, sofrendo as ale-
grias excitantes da criação e a frustração dolorosa da decepção,
durante milênios, a potencialidade criadora do imaginário foi
alargando a fresta da visão mítico-mágica. Nela, um modo de
consciência inédito foi nascendo, um novo sujeito histórico, uma
nova forma de identidade social. Eis o longo amanhecer da cons-
ciência simbológica. O mito deixava de estar associado a uma
compreensão mágica do mundo para estmturar-se de modo cada
vez mais raciona I. O ser humano começa a abandonar seu cosmo
mítico-mágico para constmir seu universo mito-lógico do que
poderá realizar muitas variáveis, mas de cuja dimensão antropo-
lógica nunca poderá escapulir ou superar.
O distanciamento simbólico e lógico teve como primeira
conseqüência a desconstmção significativa da deificapio mtigica
dos objetos, provocando um desprendimento de sentido. À me-
dida que a visão mítico-mágica vai cedendo terreno, surgem no-
vas significações sociais, tecidas por uma consciência mais autô-
noma. É o momento das religiões estruturadas como crenças ex-
plicativas do mundo. Nelas a argumentação, a coerência de sen-
tido, a explicação convincente substituem o impulso compulsó-
rio da sensibilidade mágica. Concomitante ao desenvolvimento
das religiões vai-se realizando a produção de um modo de racio-
nalidade mais explicativa e autônoma. A consciência mítico-má-
gica está presa de modo compulsivo aos fenômenos e não conse-
gue analisá-los com distanciamento. A estruturação da crença
religiosa incorpora uma grande dose de racionalidade que visa
dar coerência argumentativa ao conjunto de crenças e sentido
118 Os pnrndoxos do imaginário
prático às formas litúrgicas praticadas. A produção religiosa en-
volve uma complexa trama de racionalidade explicativa e simbo-
lismo implicante. No marco do distanciamento lógico, promovido
pelo surgimento das religiões, foram concebidos outros saberes tão
simbólicos quanto lógicos: matemática, astronomia, geometria,
escrita, agronomia, biologia, reflexões sobre vida e a morte. A pró-
pria filosofia como reflexão autoconscientc e a política como auto-
definição do grupo social representam formas históricas por meio
das quais a racionalidade foi adquirindo maior relevância e cen-
tralidade tanto para a subjetividade quanto para a sociedade, po-
rém sem conseguir anular a din1ensão simbólica que estrutura os
diversos saberes. Esse processo de criação social se realiza num
conflito larvado e silencioso entre a longa noite da visão mítico-
mágica e o lento amanhecer da consciência mitológica.
À medida que{) logos teceu de sentido autônomo o sujei-
to, as significações mítico-mágicas foram perdendo sua vigcncia.
Os novos saberes foram elucidando a espessa trama com que se
autolegitimavam as co'ncepções mítico-mágicas. O distanciamento
compreensivo que o sujeito e a sociedade realizaram de suas pró-
prias obras foi desfiando a trama que urdia o caráter mágico e
que lhe permitia se impor como uma entidade com poderes pró-
prios. Desse modo, o simbólico deixa de ser associado ao mágico
e passa a integrar-se ao novo conjunto de produções significati-
vas, marcadas pdo crescimento da racionalidade. ·
Essa distinção conceituai nos possibilita concluir que a
desconstrução do caráter mágico do símbolo não implica a anu-
lação da dimensão simbólica do humano. O logos mostrou que o
mítico-mágico possui um caráter alucinatório, que está marcado
pela falsidade e denota uma irrealidade ou falácia inexistente.
Porém isso não significa que conseguiu apagar a dimensão míLi-
ca do ser humano, já que esta faz parte constitutiva da dimensão
explicação racional.

Filo-sofia e mito-logia

Ao pretender caracterizar historicamente a confrontação


entre a visão mítico-mágica e a mito-lógica, temos de destacar
Castor M M. Bartolomé Ruíz 119
dois momentos elucidativos. Embora esses momentos resultem
muito limitados para explicar o processo complexo dessas duas
formas de subjetividade e de sociedade, servem de referência para
entender alguns modos de ruptura entre o míLico-mágico e o
mitológico. Estes exemplos que vamos desenvolver não são pa-
radigmas universais, mas criações específicas de sociedades par-
ticulares. Cada grupo social, cada pessoa realiza seu modo parti-
cular de confrontação e resolução dessas duas visões. Não existe
um modelo de ruptura nem uma direção preestabelecida.
O primeiro evento que escolhemos refere-se ao processo de
constituição da filosofia na Grécia. Desde a perspectiva filológica,
a palavra ll~lfl/10s é um tc1n10 grego que Homero usa como sinôni-
mo de discurso, prodamnriio ou not(licnção. Hcsíodo o utiliza com o
sentido de verdndt' nmmdn 011 notícin contada. Em nenhum dos casos
mencionados, !1~1flhos tem sentido de algo falso ou fictício'\ Na
Grécia clássica do século VT, os significados dos conceitos se modi-
ficam. Os termos logos e kgni1 têm o sentido de discurso demons-
trativo e explicativo da realidade tal como ela é, enquanto o m_ytho!i
fica caracterizado como um mero discurso herdado, não necessa-
riamente comprovado e dificilmente demonstrável; por isso seu
sentido reside em acreditar naquilo que ele transmite.
Nesta segunda acepção, o m_ytJws complementa o logos,
porém não é algo contraditório. O 11~1/fhos é colocado frente ao
logos, mas não é oposto a ele. AfYfJ!os não é sinônimo de mentira
ou ficção, mas de verdade que não necessita de demonstração ou
de história que não se pode comprovar. No entanto, já se realiza
uma importante distinção na qual o /,egos manifesta um sentido
verdadeiro, pois o que ele afirma ppd_e se!_<?e_1?10,nstrado f'ela ar-
gumentação lógica ou p~l-~!iP!._C?'-'..<!~ c;rrtpí_ricao;, enquanto o mythos
ó algo indemonstrável que nos deixa na incerteza de suâ,;êida-
de. De forma paulatina, o conceito de lososvai sendo associado à
verdade e o de 11~vt/10:,--, à falsidade. Paralelamente, o logos incor-
pora como instrumental próprio a argumentação, enquanto o SÜ!l-
bolismo é associado ao modo mítico de se expressar. O simbolis-
mo foi sendo confinado na exclusão da simúlaçào e do erro, en-

63 c;AIJAll-lER, l lans-Gcorg. "Mito y Logos". In: Mtlo y rn:z6n. Barcelona: Paidús,


199i, p. 23-28.
120 Os pnmdoxos do 1i11nginrírío

quanto a explicação lógica foi adquirindo os rasgos da verdade


única e universal. Desse modo, constituiu-se uma oposição irre-
conciliável entre mytlwse logos, entre simbolismo e racionalidade.
A origem do significado do termo logos remele ao âm~ito dos
nútn~ros. Logos surge como um termo genérico que estabelece a re-
fação entre os números e racionaliza o significado deles. Nesse
contexto, (çgqs!em o sentido de reunir, contar. O conceito de logos
migrou do âmbito dos números para o resto dos discursos e saberes.
Um saber se considerava lógico à medida que adquiria um modo
preciso, quase matemático, de explicar e demonstrar algo. O logos
matemático, isto é, demonstrativo e conclusivo, constitui-se no pa-
radigma de todos os saberes. Um saber é lógico se demonstra exaus-
tivamente e de forma definitiva algo. Evidentemente, o súnbolo__não
tem essa capacidade explicativa, lógica; pelo contrário, ele ~J?liC~ o
sujeito numa abertura de interpretações possíveis, que longe de es-
tabelecer conclusões precisa<; remete a horizontes possíveis. Qlogos
matemático é preciso e.explicativo, SL?_Íillbolo é impreciso e impli-
cante. Por isso o logos foi tomado em oposição ao mythos.
No fim do século V a.C., o termo mytl!osera usado princi-
palmente pela retórica. Ele designava aquilo que não necessita
ou não pode ser demonstrado, enquanto logos é aquilo que pode
ser comprovado. Desse modo, m.1/fhos adquiriu o sib'Ilificado de
ftibulu, pois a verdade por ele exposta não precisa ou não pode
ser justificada ou provada pelo logos. Aristóteles já usa ó termo
mythos cm oposição ao verdadeiro.
A confrontação entre a visão mítico-mágica e mito-lógica
está presente na totalidade dos pensadores e escolas da Grécia.
Os pitagóricos, com sua concepção sobre os números, são um
paradigma da tensão e confusão que se vivia entre o mágico e o
lógico. Diz Aristóteles:

E comoflindfl 110 dnnflis t1 Nt1hm•w pt1n•cifl flss1•mdllf1r-se todt1 dt1 fTO:i


mímeros, e os números sifo os primeiros de lodt1 fT Nnf11reZ11, porsnmm
'l"" os elmrf'nlos dos mímeros SITO os ele111t·11tos dns coisos. 64

64 ARlSTÓTrt.ES.Ml'fnjískn. I, 5:985615. Embora perdeu-se sua obra sobre O.,


Pitngóncos, Aristóteles constitui a fonte principal de informação pelas nu-
merosas referências espalhadas au longo de sua obra. Ko entanto, resulta
Castor M. M. Barto!omé Ruíz 121
Os pitagóricos perceberam o contraditório como o elemento
fundamental do cosmo e junto com ele a necessidade da harmo-
nia. O dualismo e a contradição formam parte constitutiva da
realidade. Existe uma contradição fundamental entre o limitado
(péms, pepernsmmon) e o ilimitado (npeú·on), entre o cheio e ova-
zio, entre o ser e o não-ser. Concebiam as coisas particulares como
unidades constituídas por fragmentos extensos, originados pela
desagregação do ser pelo não-ser, do cheio pelo vazio ou pelo
espaço, em virtude da respiração cósmica. As coisas são iguais
aos números extensos e materiais que, por sua vez, originam di-
ferentes figuras geométricas com sua diferente posição no espa-
ço. Lom;fituem todo o universo com mímeros, mn,,; pe11bt1!!l que 11 uni-
dade tem atensão. 65
Os números pitagóricos, ao menos na sua época primitiva,
não equivalem aos números de Platão. Eles não representam
modelos extrínsecos das coisas, senão que são as mesmas coisas.
Cada coisa é equiparada a uma unidade real. Os números possu-
em um caráter mítico-mágico que expressa a estrutura contradi-
tória da realidade e, por sua vez, serve para constituir sua har-
monia.
A realidade primeira é o pncumn í!ànítndo (p11eumn npt'imn),
que constitui o ser. Fora dele só existe o não-ser, o vazio (kt'non)
ou o espaço. Dentro do pneumn npdron, agitado pelo movimento
eterno, formou-se um Co.,;mo esférico, limitado, cheio, compacto,
sem distinção de partes. Este Cosmo é o Um, a Mônada, o Ímpar
e constitui o princípio da unidade. A partir dele origina-se a plu-
ralidade numérica de todas as coisas, cada uma das quais se equi-
para a uma unidade ou número. O vazio e o espaço servem para
desagregar a unidade primitiva do Cosmo esférico compacto e
para determinar a natureza das coisas, limitando-as, situando-as
em diversos lugares e fazendo possível o movimento.

estranho que só mencione a pessoa de Pitágoras duas vezes. Dele diz que
começou pela ciência e concluiu na extravagância. No resto de suas alu-
sões fala sempre dos d11m1ado.~ plln/{órkos. (Mel. I, 5:985b15; D,· Cndo. n
13:293 aq 20, ele.).
65 ARISTÔTElES. Ml'lt1fi,iCt1 XIII, 6: 1080b}9.
122 Os pamdoxos do imaginário
-------------
0, püngóricos afirmamm IJ!lt' ex1i,fe o 'lJazio f' que pml'frn no infim~
to do pflew1tn do du, tanto que este também respira o vazio; o qual
d(Ji'rmcin as naltm•zas por sa o vazio uma sq,amçào das coisas
seguintes e sua dishi1ção. E isto afirmaram qm• aconll'Ce pni1cipal-
me11fe com os mímeros, jtf que o rlflzio di.frrrncin a rm/,ifadc•.""

Sendo diferentes e opostos os elementos que compõem as


coisas, faz-se necessário um vínculo que as coordene. Este víncu-
lo é a harmonia. Eis por que os números e a harmonia são os
princípios constitutivos de todas as coisas. Tudo é número e har-
monia. E a harmonia se constitui em causa e fundamento do Cos-
mo. A música tinha, no pitagorismo, uma função catártica muito
importante. Ela servia para aquietar as paixões e elevar o espíri-
to a fim de poder perceber a harmonia em todas as coisas. A vir-
tude é harmonia. A conciliação dos contradilórios na harmonia
musical era mais uma prova de como os números, de fato, eram
constitutivos da natm;eza de todas as coisas. Os pitagóricos estu-
daram a relação entre os intervalos musicais e os números; atri-
bui-se a Pitágoras ter observado a relação que existe entre o som
e a longitude da corda vibrante.

11,ndo que o_, otribufos ,, a5 razoes do escala musicaleram f'xprl'Sstfffis


em mímeros, d;• aqui d,•duzimm ffUt' todas as coi,as na_ natureza
eram e.tpresstfr•ds em mímeros, ,, os mím,•ros 1/zrs parff,•mm q11e
l'mm 05 primeiras co,~,1s em todo n 11af11rt'za, e qur todo o c//1 em
uma esmla 111115i,w/ e 11111 mím,•ro."7

Os pitagóricos desenvolveram, de modo muito explícito,


a natureza paradoxal que imbrica o ser humano. Eles represen-
tam um exemplo prático do trânsito entre as visões mítico-mági-
cas da realidade e o modo simbológico da subjetividade. De um
lado, conferem aos números uma dc(ficnrõo de entidade autôno-
ma e fundamentadora do universo, porém essa deificação passa
por um longo e complexo processo argumentativo. O logos bus-
ca confeccionar as crenças para além das meras impressões sen-

66 ARISTÓTELES. Fl<im. 5:212a 30.


67 ARSJTCÍTEJ.1,S. Mdnfí.<1á1. I 5:985b31-986a3.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 123
síveis ou do assombro inexplicável. Tenta, mas não consegue. Ao
procurai- argumentar, transforma seu argumento numa nova for-
ma dáficndorn. Pneumr1 ,!imitndo, ~er e não-ser, números e vazio
são categorias que superam qualquer impressão míticó~mágica e
que carregam na sua elaboração urriTongo processo lógico. Não
obslanle, !odas elas perambulam como novas significações deifi"-
cndm,. A crença na sua deificrlfiio induziu uma busca ansiosa, qua-
se desesperada, dos números fundamentais de cada coisa. Essa
crença quase obsessiva estruturou o modo de vida da congrega-
ção dos pitagóricos, influiu nos modelos políticos de muitas pó-
lis da magna Grécia, principalmente no sul da Itália. A crença
mitológica no valor ontológico dos números impulsionou cren-
ças, comportamentos, escolas, etc. de !amanho efeito, que não é
possível entender o conjunto da filosofia grega sem sua influência.

Monoteísmo e Teos-Iogia

Uma outra prátirn parndi1:,'lllática sobre experiências cria-


tivas de transição da visão mítico-mágica para a simbológica diz
respeito à constituição de uma religião.
Está consagrada a tese durkheimiana de que a religião cons-
titui o marco autocompreensivo da quase-totalidade das socie-
dades pré-modernas. Como mencionamos anteriormente, temos
que estabelecer uma diferença qualitativa entre as impressões
m ítico-m.ígicas - por exemplo as diversas formas de animismo -
e as formulações ft•os-lógicas das várias religiões. A religião re-
presenta um esforço para superar a visão mítico-mágica e confe-
rir argumentação lógica e coerência racional aos símbolos insti-
tuídos pelas diversas crenças. A religião implica também formas
de organização mais complexas e estruturadas, criação de insti-
tuições, estabelecimento de códigos, universalização das crenças
para o grupo e integração das práticas religiosas e na estrutura
social.
Um momento particularmente rico para poder perceber
essa transição está na crise desencadeada pelo Iahwismo, ao cen-
surar e tentar anular as visões mítico-mágicas de Deus. O pró-
prio Iahwismo é um longo e intrincado andamento cultural de
124 O, paradoxos do imasindrío

mais de dez séculos com uma derivação cristã que culmina no


século II d.C. e outra judaico-farisaica que se canaliza e define na
assembléia de escribas ocorrida na cidade de Yamnia, em 90 d.C.,
após a destruição de Jerusalém por Tito Lívio, e que terá suas
derivações na releitura do Talmud, nos massoretas e na Cabala.
O Jahwismo é, antes de mais nada, uma criação cultural,
uma dinâmica social. As referências que temos dele foram trans-
mitidas durante séculos por meio de tradições orais e se concre-
tizaram num conjunto de tradições literárias recopiladas ao lon-
go dos diversos livros da Bíblia. As primeiras tradições literárias
da escola lahwista recolhem principalmente os relatos dos pas-
tores nômades do Médio Oriente no século XII a.C. No entanto, a
primeira tentativa de recopilação de que temos notícia foi reali-
zada no século x a.C., no reinado de Salomão.
Os textos lahwistas espelham de forma abundante o con-
flito entre a visão mítico-mágica de Deus e a tentativa de conferir
a Deus um estatuto gc Único, Invisível, Irrepresentável. O mo-
noteísmo Jahwista toma como alvo prioritário para sua auto-afir-
mação a desconstmção de todas as visões mílico-mágicas do
mundo e de Deus. Porém, e isto é o mais interessante, essa des-
construção não se realiza de forma linear e definida, pois o pró-
prio lahwismo está permeado de elementos mítico-mágicos que
as gerações posteriores tentam depurar, a fim de conferir-lhe uma
pureza cada vez maior. ·
A arnbigüidade lahvvista pretende afirmar a exclusivida-
de do monoteísmo, mas ainda navega nas turbas correntes das
concepções mítico-mágicas. Um exemplo dessa complexa práti-
ca podemos encontrá-lo na narrativa literária de Gênesis 31,19,
em que Jacó decide fugir de seu sogro Labão. Na saída, sua espo-
sa Raquel roubou os ido/os domésticos que pertencinm n seu pní. Rou-
bou-os sem Jacó saber. Estes ídolos são os temfim ou deuses do-
mésticos que protegiam o clã e a ele estavam vinculados. Um clã
que perdesse seus tertifiin estava fadado a cair em sucessivas des-
graças e até desaparecer, pois carecia de proteção. Aquele que se
apropriasse dos temjim de um clã levava consigo a bênção e os
bons augúrios predestinados para o clã. O roubo dos tem.fim de-
sencadeia um conflito à morte entre os dois ramos do clã. Labão
não duvida nem um segundo e sai cm perseguição a seu genro,
Castor M M. Barto/omé Ruiz 125
Jacó, e seu clã. Ao encontrá-lo, a pergunta: Por que roubaste meus
deuses? (Gênesis 31,30).
Em nenhum momento da narrativa é questionada a vali-
dez ou insignificância dos temjim. O contexto de lodo o conflito
afirma a necessidade de seu papel protetor para a sobrevivência
do clã. Jacó, mesmo sendo Iahwista, reconhece, de modo implíci-
to, a de(licariio dos taajim para que continuem protegendo o clã
de seu sogro e garanlam sua existência. Por isso, ignorante do
roubo que Raquel cometera, afirma: Aquelejunto ao qual encontra-
res teus deuses nffo jicnrtf vivo (Gênesis 31,32). Os diversos perso-
nagens se debatem'ao redor do roubo, mas não se insinua em
nenhum momento a desconstrução mágica dos tenzfim. Pelo con-
trário, Jacó contrapõe os terafiin de Labão ao Deus de meu pai, o
Dew; de Abraão, o Parente de lsat1c como seu protelor particular,
pois se Ele não estivesse comiso, tu me terit1s dt~,;ped1do de miios v11z1i1s
(Génesis 31,42). Não se argumenta sobre o caráler mágico dos
tera.fim ou a favor de lahweh como único lJeus possível; pelo con-
trário, ambos, ternfii11 e Iahweh, se equiparam como deifimfõt·s
particulares que auspiciam de igual modo a seus protegidos.
O conflito tramado pelo interesse de Raquel cm levar os
fernfiin do clã de seu pai termina pacificamente graças à sua inte-
ligência e astúcia de mulher. Raquel senlou sobre os ternjim e
quando vieram procurar na sua tenda diz:

Que o senhor não ven!tn wm cólan lfUe eu não me kvnn/1' 11a sua
presença, pois tenho o 1/llt' l costumeiro às mullu:res. Lnhão procu-
rou e não 1'!1co11trou os deuses (Gênesis 31,35).

O processo de desconstrução do mítico-mágico f~i-se apro-


fundando e alastrando no Iahwismo, às vezes, inclusive, de modo
violento. Nele interferiram não só as reflexões teóricas, mas tam-
bém os interesses econômicos, políticos e de poder social. Aliás,
as mudanças sociais nunca se realizam só num aspecto, pois as
significações sociais implicam tanto os saberes quanto as práti-
cas, tanto os significados quanto os interesses particulares e soci-
ais. Por isso temos de entender que as transformações históricas
das visões mítico-mágicas foram também modificações estrutu-
rais, econômicas, políticas e sociais.
126 Os paradoxos do tinagli11irio

A conivência inicial entre as visões mítico-mágicas e a teos-


lógica não será mais aceita pelas gerações Iahwistas posteriores.
Assim encontramos a escola teológica chamada sacerdotal, sécu-
lo V, empenhada de forma insistente em depurar qualquer res-
quício mítico-mágico da tradição lahwista, para afirmar o poder
da casta sacerdotal que estava na crise do exílio babilônico. Para
tanto redigiu novos escritos, principalmente o livro do Levítico,
e os inseriu nas narrativas anteriores com o objetivo de elaborar
um cânone oficial de escritos sagrados que todos os israelitas
deveriam seguir. É assim que surgiu a Thorá e se consolidou o
judaísmo como fenômeno étnico-cultural. Diz o Levítico:

Nno acudais a ídolos, nem mnmkisfimdir deuses di_, mt'lnl. Eu sou


/11/rweh vosso Deus. /\'no mltan•i,; pnm 111•av11111fltes m·m consultnrds
ndimirhos, p01'., dl's z1os contaminariam. Eu sou lnluoeh vosso Deus.
Aqude 1111e rc'correr nos 11ecrom1111ft'S e nos adivinhos para s1' prosh~
tuir wm elt'S, t 1oltnr-me-d co11tm e:,~,e homem e o exft'rminnrl'i do
m!'io do meu povo. O homem 011 a mulher que, nrfn• z1ós, ferem
11rcroma11tes 011 adivà1/ro,; sano morto,.,, serão npcdnjndos e S1'11 sm1-
gue cnini sobre eles (Levítico 19,4.31; 20,6.27).

A ênfase do Iahwismo no monoteísmo visa desconstruir


todas as concepções mítico-mágicas. Existe uma confrontação de
formas simbólicas; o próprio lahweh não pode ser representado
por imagens. Seu simbolismo é a falta de imagem apropriada,
isto é, a transcendência absoluta. Desse modo, o Iahwismo sacer-
dotal pretende evitar qualquer forma de antropomorfismo da
divindade e consolidar a pureza do culto oficial.
A tradição profética se afasta, em grande parle, das pre-
tensões da escola sacerdotal e das suas representações e, inclusi-
ve, enfrenta de modo contundente os interesses de casta e da classe
que aquela defende. O profetismo tem no monoteísmo a legiti-
mação inescusável de uma prática ético-política. Os ídolos enco-
brem a injustiça e legitimam a opressão, enquanto a figura de
lahweh é associada à prática da justiça. O imperativo de não usar
o nome de Deus em vão equivale a não utilizar o transcendente
para beneficiar-se pessoalmente ou legitimar situações de inu-
manidade. Amós, no século VII a. C., gritava:
Castor M. M Bartolomé Ruiz 127
O Sc11/tor lnlrwe/r Jitrou por si mi'smo - onicu/o dt' lnhwdr, Deus
dos Exércitos- t:11 detesto o orgulho di' fncó, odeio seus palddos (. ..)
Vós lm11~fórmnstes o di1"1'ito 1'111 riemwo l'O/mio dn justiçn l'III nbsi,1/0
(. .. ) Ouvi isto,vós que esmagais o indigl'lllt' i' q111'rt'i, 1'limi11nr os
pobres dn terra( .. ) (Amcís 6,8. 12; 8.4).

A ambigüidade da convivência entre as visões mítico-má-


gicas e monoteísta é constante, e os conflitos são permanentes.
Em certas ocasiões, o confronto se resolve de forma pacífica, às
vezes, de modo sincrético e, cm outros casos, de forma trágica.
Nº 1º livro de Samuel 9,1-10; 10,9-15 existe uma narrativa exem-
plar daquilo que estamos analisando. O texto recolhe tradições
orais de finais do século XI a.C., embora ele tenha sido redigido
posteriormente. Nele se.conta a história de Saul, primeiro rei de
Israel, que antes de ser ungido como rei foi consultar um vidente
sobre seu futuro. Isto representa uma flagrante contradição, pois
a primeira iniciativa do primeiro rei de um povo essencialmente
monoteísta foi acudir às práticas mágicas. Práticas fortemente
criticadas, censuradas e perseguidas nessa cultura, porém que
ressurgem continuamente na vida social.
Se quisermos apontar, na tradição bfülica, um outro aspec-
to em se focalizam a confrontação e a imbricação entre o mítico-
mágico e o teos-lógico, podemos encontrá-lo na numerologia. O
Iahwismo integra o simbolismo numerológico cm suas narrati-
vas teológicas. Em muitos casos, os números são um símbolo lo-
gicamente constituído com um significado teológico definido que
o leitor deverá entender; porém, em outros casos, o número ad-
quire uma entidade específica ao modo pitagórico e incorpora o
poder mágico de provocar efeitos autônomos. O númc~o 3, asso-
ciado ao passado-presente e futuro, é o número que designa a
divindade: Iahwch. Por exemplo, quando em Gen 15,9 Abrão re-
aliza um sacrifício de comunhão para selar a aliança com lahweh,
este lhe pede: Procum-mf' uma novilha de três anos, 1111111 cnbrn de três
nno:.~ 11111 cordeiro de três anos, uma mia e um pombinho. Quando
lahweh apareceu em Mambre à Abrão, foi sob a forma de !rés
homen.,; (Gen 18,2). SCf,'1.lindo essa linha teológica, o Deus cristão
é uma comunidade tritária de pessoas. O número 4 adquire o
significado dos quatro pontos cardeais: com ele se significa a to-
128 Os paradoxos do imaginário
talidade do mundo, por isso cm Ap 5,8 são quatro seres vivos que se
prostrnrnm diante do Cordeiro. O número 7 significa totalidade, eis
por que foram sete os dias da criação {Gen 2,3); no Apocalipse há
sete trombetas, sete anjos, sete taças. O número 10 simboliza a
vontade de lahweh; foram dez o número dos mandam.entos. O
número 12 lem o sentido de plenitude; são doze as tribos e os
apóstolos. O número 40 expressa grandiosidade ou muita quan-
tidade; foram quarenta anos que o povo esteve no deserto, qua-
renta dias que Jesus também permaneceu no deserto, assim como
Elias caminhou durante quarenta dias até chegar ao monte Ho-
reb {l Rs 19,8).
A religião realiza uma ruptura gradual, porém qualitati-
vamente diferenciada da visão mítico-mágica. Ela integra os co-
nhecimentos empíricos, a argumentação lógica e a compreensão
coerente dos fenômenos num tramado de crenças racionalmente
organizadas. Uma profusa simbologia tece os credos e as práti-
cas religiosas. Essa sinJbologia, a diferença do mítico-mágico, está
direcionada por um certo distanciamento lógico do objeto cultu-
ado. Embora para o observador externo nem sempre aparece com
clareza, existe uma coerência lógica interna ao credo religioso. A
astrologia babilônica, o panteão egípcio ou a religião dos ances-
trais chineses são formas religiosas que se desenvolveram na in-
tersecção dos conhecimentos empíricos, procurando uma expli-
cação para a existência do mundo em suas diversas facetas.
O Iahwismo é um exemplo histórico de como uma socie-
dade específica desconstruiu a consciência mítico-mágica e de-
senhou uma nova forma de subjetividade simbológica. Esta nova
forma de consciência produziu, numa relação dialética, a identi-
dade dos novos sujeitos sociais e modificou profundamente a
estrutura das diversas sociedades. Não que houvesse uma pree-
minência da consciência sobre a materialidade do socioistóríco,
já que é na dunllticn co-implicante de ambas as dimensões - ma-
terialidade e subjetividade - que se modelam as identidades. O
monoteísmo Iahwista é uma singularidade cultural, mas não uma
exclusividade histórica. Nas diversas sociedades e de diferentes
modos foram implementados processos que tendiam à descons-
trução da visão mítico-mágica do mundo e à produção de novas
formas simbólicas e lógicas de aulocompreensão.
[nstor M. M Bnrto/omé Ruiz 129
A religião, assim como a filosofia e outras significações soci-
ais, ao produzirem uma dimensão simbólica impregnada de senti-
do lógico, provocaram um distanciamento cada vez mais evidente
entre a pessoa e a significação instituída. Enquanto na visão míti-
co-mágica o signo se impõe sobre a pessoa sem que esta tenha um
distanciamento crítico, na religião, a pessoa, mesmo acreditando
fervorosamente, consegue um certo distanciamento do objeto, de
tal modo que entre ela e a divindade existe um conjunto de inter-
mediações simbólicas e lógicas que adquirem a forma de crenças
com esl ru luras coerentes de sentido. A religião, embora mantendo
a dimensão do sagrado, propicia um certo distanciamento da dei-
dndt•. Os objetos são despojados de qualquer sentido deificndor, e a
ddjicnçiioé transferida para um âmbito transcendente que a sensi-
bilidade dos sentidos não consegue captar. Com isso se produz
um distanciamento entre a pessoa e o objeto, entre o sujeito e sua
criação. Este distanciamento provoca uma dessacralização do ob-
jeto e sua conseqüente naturalização. O objeto sofre uma perda de
força e um despojamento de autonomia. Inicia-se o que Max We-
ber designará desencantamento do mundo, embora - e esta foi a
enganação de Weber - esse desencantamento sempre será relativo
e nunca concluirá com o trunfo definitivo da razão sobre o símbo-
lo nem com a superação do mito pelo logos.
A visão mítico-mágica, uma vez que foi dessacralizada e
despojada de poder, a detif11dedas coisas fica reduzida a mero obje-
to. No lugar do objeto animado por uma força incompreensível,
surge a mera criatura. As coisas passam a ser enxergadas como
simples criações significadas e não como significações criadoras.
A desconstrução da visão mítico-mágica não desencadeou
um processo de anulação _total da dimensão simbólica do ser
humano. O simbolismo não é uma dimensão superável, mas o
modo antropológico e social de se relacionar com o mundo e de
transformá-lo. De igual modo, o progressivo desenvolvimento
do logos não provocou a superação do mito, pois a dimensão
mítica está implícita no desenvolvimento simbólico do humano.
O mito está inserido na estrutura de sentido que as pessoas e as
sociedades constroem para o real'.a. Os sentidos, mesmo as for-

68 Neste ponto nos distanciamos de Cassircr, pois ele concebe o mito .-amo
130 Os pnrndoxos do imngimirío
----------------
mulações científicas mais abstraias ou empíricas, estruturam-se
a modo de teorias explicativas. Estas teorias sempre são uma for-
ma simbólica de aproximação do real. Elas não são o real, nem
esgotam todas as possibilidades de significar a realidade. Qual-
quer explicação teórica é relativa em vários sentidos: de um lado,
sempre está exposta ao princípio de falsibilidade, que permite
superá-la por outra formulação considerada melhor ou mais ver-
dadeira, e, além do mais, existem outras perspectivas possíveis
para olhar a realidade que não a meramente empírica, sendo que
todas as perspectivas são conslruções significativas que carre-
gam uma parte de verdade, veracidade e realidade. Por isso, qual-
quer formulação teórica é sempre uma forma mítica de significar
o mundo.
A dessacralização do mundo sempre é relativa. Ao desen-
tranhar simbo-logicamente a validade da visão mítico-mágica,
não invalidamos a experiência do sagrado. O sagrado, segundo
o sentido literal do termo, implica uma separação intencional e
uma caracterização especial de algo. Nossa relação com o real
sempre se realiza por meio do destaque significativo de aspec-
tos, perspectivas, possibilidades das coisas. O mundo sempre é
para nós uma representação-separação intencional de aspectos
possíveis. O real, enquanto representação intencional que desta-
ca aspectos significativos do mundo, é sempre um espaço sagra-
do. Sempre existe uma certa dimensão de sacralidade na forma
como o ser humano se relaciona com o mundo.
Um exemplo elucidativo de como o simbolismo e o mito
resultam logicamente insuperáveis constitui o processo de revi-
são crítica a que foram submetidas a matemática e a lógica no
início do século XX por diversos autores. Entre eles destacam-se
Frege, Peano e Russel. Depois das contradições encontradas na
teoria de conjuntos de Cantor e no sistema axiomático de Peano,
Russell, com :influência da obra de hege e a lógica de Peano,

uma forma cultural importante, mas superada e superável pela racio-


nalidad('. CASSIRER, Ernst. Esencia y (jecto dei conceplo de símbolo. México:
Fondo de Cultulra Económica, 1989, p. 79. Sobre a crítica ao racionalismo
remanescent,~ em Cassirer, cf. DL'RAND, Gilbert. L 'imngi11ntio11 s_ymbolti;ue.
Paris: P.U.F., 1984, p. 95.
Càstor M. M Barto!omé Ruiz 131
publicou cm 1903 os Principia Mnthemntica. Ele tentou lcv ar a bom
termo o propósito de Frege de construir toda a matemática sobre
bases exclusivamente lógicas. Curiosamente, esses três autores
defendiam urna visão platônica e até pitagórica do mundo -
embora Russel suavizasse suas posições posteriormente - e de-
fendiam que o mundo era urna realidade objetiva, existente por
si mesma, de entes e relações matemáticas e que ao ser humano
só cabia a tarefa de descobrir os segredos da natureza, mas não
tinha um espaço para a criação no sentido literal do termo.
O milo não foi nem será superado pelo logos, nem o logos
poderá ser anulado pelo mito. O mito e o logos estão implicados
no processo de produção significativa e de transformação criati-
va do mundo. Eis por que podemos afirmar sem nenhum tipo de
reparo que o ser humano é essencialmente mitológico.
O simbólico

Niio l11i nnda dr bom 011 mau St'III o p1•nsnmr11to qur nsslin oJirz.
William Shakespeare

O desenrolar da nossa reflexão levou-nos a perceber que o


mythose o /~fOSestão co-referidos e que ambos são urdidos pelo
imaginário numa tensão que os confronta e os faz necessários.
Cabe agora nos embrenhar pelas trilhas dessa urdimbre, a fim de
esclarecer alguns de seus aspectos. Metodologicamente faremos
essa (intro)missão no rastro do simbolismo, dado que é a dimen-
são menos desenvolvida pela filosofia, enquanto o estudo do lo-
gos constitui o grande tema da reflexão ocidental.
A palavra symbolon tem em grego o sentido de reunir duas
partes separadas. Duas metades de um objeto que ao juntar-se
formam a unidade perdida. A origem do termo symbô/011 remete
a um sentido sociológico. Os símbolos eram as metades de um
objeto, repartidas entre duas partes, dois povos ou duas pessoas
e que se certificavam de que existia um pacto entre ambas; o povo
ou a pessoa que mostrava o ·>..1/mholon e encaixava perfeitamente
na outra metade era reconhecido como portador dos direitos pre-
viamente pactuados. S.vmbolon são as metades de um objeto, que
significam a existência prévia de um pacto, contrato, tratado,
contra-senha. Eles não têm o sentido cm si mesmos, mas reme-
134 Os pnradoxo5 do tinnsimirio
----
tem a algo previamente acordado. Cada um deles, cm separado,
não tem valor real; o s__vmbo/on adquirirá seu sentido pleno quan-
do as partes, que estão separadas, se juntarem.
É a Jimçõosimbólica que confere o sentido pleno à realida-
de fraturada. O símbolo niunta as partes separadas. O ser huma-
no, ao conferir um sentido às coisas, realiza uma junlura sànbólicn
com o mundo. Ele tenta, desse modo, uma superação da fissura
interior que, ao constituir-se num ser autoconscicnte, o fraturou
como pessoa e o distanciou do mundo.
É neste sentido que Platão usa o termo s_vmbo/011, quando
na obra O Bnnqude e na sua reflexão sobre a criação do ser hu ma-
no afirma:

ldm:, uma 7,,,z qut'foi separada a nat11n'zn l111mann {'/11 dm'.,: s1'f1hi1-
do cndn pr!rlr afalta da sua próprio 111dnd1 s1.• nwria com da. R.od1'-
1,

al'mn-st' com seus braço.,~ enlaçavam-se e11fn' si; dt'sqosos de 1111ir-


sr mmm srf 1117/ureza (... ) Cndn ,1111 de llÓ!>~ tji1tivn111,,nft'1 é um
symbo/011 dr homl'm, como resultado do lVrte t'III doi,· de um só ser, e
aprl'Sl'nla umr! sóface como os /Ji1gundos. De níque cndn um busque
St'mpr{' a seu próprio 5.tjlnbolo11.'''

O mesmo sentido de juntar as partes separadas tem o ter-


mo hebraico mnshnl ou a palavra alemã Sitmbi!tflº. À natmezn do
símbolo corresponde a capacidade de juntar as partes separa d as,
conferindo uma nova unidade ao que estava distante. Esta é uma
dimensão específica que diferencia o simbólico do lógico. O lo-
gos analisa, discrimina, organiza conjuntivamente, relaciona ar-
gumentativamente, mas, por si só, não fusiona as parles numa
nova unidade de sentido. O símbolo tem como potencialidade
própria a c01rjunção das partes fraturadas numa nova unidade
significativa. O simbólico é uma potencialidade própria do ima-
ginário. Ele tem a capacidade de entrelaçar signos diversos num
significado comum, perfazendo novos elementos que se relacio-
nam, embora não os identificam. O simbolismo transcende o sig-
no externo. Supera a mera função denotativa do signo e se abre

69 PLATÃO. Bnnq11ete. 19UE-191D


70 ALLEAU, Rcné. De ln nntun· du symbole. París: Hammarion, 1958.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 135
para a construção de um universo indefinido de sentidos possí-
veis, que não estão implícitos no signo, mas que são criados pela
dimensão simbólica. O simbolismo não está no signo, usa o signo
como referência, mas o molda metaforicamente, reconstituindo-
º significativamente e apresentando-o como um novo objeto.
As concepções do símbolo são variadas e sempre incom-
pletas. Gilbert Durand o define assim: Todo signo que evoca, ntrn-
r,és de uma relação naturnl, nlgo ausente 011 impossível de perceber 1•
Para Jung, são os arquétipos ou funções do inconsciente que dão
forma à existência do símbolo. Para Cassirer, o símbolo é uma
função da consciência:

Toda enl'rgia do espfrifo em virtude dn qunl 11111 confnído espinfual


de signtficndo l tl{'fl'lllndo n um signo smsivel concrdo e llzl' f nfri-
lmfdo itrlerionnen/1•.. .n.

Porém nem a consciência pode delimitar todas as possibi-


lidades do simbólico, tampouco o inconsciente pode impô-lo
como uma determinação inexorável. O simbólico, como o imagi-
nário, tem uma estrutura paradoxal. Ele transita entre os espaços
da consciência e do inconsciente, liga o sem-fundo humano e o
logos da vigília, co-implica produtivamente a potencialidade cri-
adora e o poder objetivador do imaginário. Na implicação para-
doxal desses aspectos, o simbolismo emerge como produtor de
novos sentidos, objetivando-os, por sua vez, a modo de formas
culturais.
O simbólico não se limita às definições conceituais do lo-
gos, nem imita uma correlação de significados previamente defi-
nidos pelo inconsciente. O simbólico extra-limita tod~s as defini-
ções prévias, porém para existir deve concretizar-se em formas
culturalmente definidas. O simbólico é a manifestação da poten-
cia !idade criadora do imaginário, mas também se restringe à sig-
nificação social definida. O símbolo integra de modo co-impli-

71 Dl'RA'-ID, Gilbert. Lt1 imt1gin11ció11 5imhólica. Buenos Aires: Amorrutu, 1971,


p. 13.
72 CAS.STRER, Ernst. Esmeril y ,fi•cto dd ,:om:,pto dt' súnho/o. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989, p. 163.
136 Os pnmdoxos do lÍnagindrio
cante o individual e o coletivo. Implica as potencialidades abis-
mais do sem-fundo humano com as formas culturais existentes.
Confronta o ilimitado do imaginário com as determinações soci-
ais vigentes. O símbolo é forma cultural definida e abertura in-
definida de sentido.
Mesmo que adicionemos todas as concepções possíveis do
simbólico, nunca chegaremos a defini-lo. Ele transcende todas as
finitas formulações conceituais e foge para horizontes novos. Seu
caráter polivalente impede de ser cercado numa mera delimita-
ção conceitua}. A indefinição intrínseca do simbólico faz com que
ele se desenvolva dentro de um círculo, o que não significa que a
circularidade se resolva em pura tautologia73 • Para além da defi-
nição exaustiva, devemos aproximar-nos do simbólico desde a
pluralidade de perspectivas, que sempre oferecerão comprccn-
sões parciais e nunca absolutas. O simbólico é aquilo por meio
do qual conhecemos. Por isso, enquanto tal, ele não pode ser co-
nhecido de modo pknp. É também o que nos define como huma-
nos. Por isso nunca conseguiremos explicá-lo totalmente.

Do signo ao mito

A função simbólica da pessoa mana da sua fratura. fratu-


rada e confrontada com um mundo próximo e distante, sua rela-
ção não é mais a da harmonia natural do instinto, mas a da cria-
ção significativa. Essa ruptura interior provoca a necessidade
permanente de uma junção com o mundo do qual faz parte, em-
bora sempre o está transcendendo. Junção que não mais pode ser
natural e sempre tem que ser cultural. A tensão entre fratura e
junção é o manancial ou horizonte que produz e projeta a poten-
cialidade simbólica do ser humano. Por meio do simbolismo pro-
duz suturas culturais na fratura ontológica, mas não a supera de
modo pleno. A separação do mu.ndo nunca é absoluta, mas a fu-
são também não é lotai. O que permanece é a tensão, e por meio
dela realiza-se a produção simbólica. Os elementos não têm um

73 CADAMER, Hans Georg. Verd11d_11 miitodo. Salamanca: Sígueme, 1992, p.


331 ss.
Castor M. M. Brzrto/omé Ruiz 137
sentido natural eles são permeados pelo imaginário, ressignifi-
cados na sua função ou sentido e constituídos simbolicamente
como coisas culturais e como objetos sociais.
O imaginário se manifesta como símbolo e como logos. O
imaginário necessita do simbolismo e da lógica não só para ex-
pressar-se, o qual resulla óbvio, mas para poder existir. O imagi-
nário só existe expressado em formas simbólicas e estmturado
de modo lógico. A potencialidade criadora mais exuberante só se
realiza por meio de imagens significativas do mundo, isto é, de
formas simbólicas dadas para as experiências vividas e para os
objetos analisados. O simbolismo apresenta a coisa naquilo que
ela não é, configura-a intencionalmente numa metamorfose ino-
vadora para além do que já aparece 74.
A fissura aproximativa provocada pela fratura radical im-
plica uma unidade prévia do sujeito e do mundo no horizonte do
ser. Sem essa unidade precedente não existiria sequer a possibili-
dade da relação. Unidade e fratura se integram numa tensão du-
a/étíca, que os relaciona e confronta como necessários e contrári-
os. Eis por que o símbolo não é natural - não está exigido pela
natureza do objeto, embora dela se aproprie-, mas também não
é uma pura criação do sujeito.
O imaginário entrelaça natureza e criação na produção sim-
bólica; mantém algo da natureza do objeto e introduz um olhar
inédito sobre ele. O símbolo não é um impedimento para chegar
à natureza do objeto, mas a condição da possibilidade de conhe-
cê-lo. Ele não é um filtro que distorce a realidade, mas o modo de
se aceder ao mundo. A pura semiologia não consegue denotar
um único sentido verdadeiro do mundo e sente-se impotente para
expressar o mundo profundo do humano. Só a simbologia pode
conotar as indefinidas possibilidades de ser do mundo e aceder
metaforicamenle ao sem-fundo do mundo humano.
O signo é arbitrário, prático, racional, abstrato, possibilita
uma economia de esforços, indica que devemos parar no trânsito
ou demanda silêncio num hospital, ele. Ele pode remeter a um
significado presente ou ausente, mas seu objetivo é substituir com

74 CASTORIADIS, Corndius. A i11sllf11ição im,~,;;1ndrli1 dn soo;,dnde. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 199, p.154.
138 Os paradoxos do imaginário
economia uma longa dtfimí:õo conceituaf5. Essa arbitrariedade lhe
confere uma margem para escolher imagens diretas das coisas
ou criar signos totalmente abstratos. Na maioria dos casos, os
signos não podem abandonar-se à pura arbitrariedade. O signo e
o sentido devem ler um ponto de intersecção que possibilite a
relação, caso contrário se eslabelece a paranóia. Mas a intersec-
ção do signo não pode anular o sentido, pois o sentido sempre o
extravasa. O sentido do símbolo não pode ser contido num sig-
no, por meio complexo, formal, científico ou natural que o signo
se pretenda. A significação simbólica sempre transborda o signo
e o expande para horizontes inédilos de significados.
Gilbert Durand estabelece uma concepção tríplice do es-
quema, do arquétipo e do símbolo. O esquema seria uma genera-
lização dinâmica e afetiva da imagem. Forma o esqueleto dinâ-
mico da imaginação, realizando a união entre os gestos inconsci-
entes e as representações. Os arquétipos são mediadores entre os
esquemas e as imagens concretas proporcionadas pela percep-
ção, adequadas ao esquema. O símbolo é a realização dos arqué-
tipos na intervenção de vários esquemas, que se especificam em
imagens diversas. O símbolo é como a ilustração dos esquemas e
arquétipos, que possui um caráter ambivalenle. Quando o sím-
bolo perde sua polivalência e se identifica univocamente com um
sentido, transforma-se em signü76 •
O desbordamento simbólico se derrama a modo áe peque-
nos complexos teóricos ou de redes significativas que formam as
nkgorins. A alegoria amplia o sentido do símbolo e o expande
para outros signos, interligando os significados e construindo uma
pequena unidade narrativa. Na alegoria é possível pensar uma
dupla distinção. Num primeiro momento, podemos destacar os
signos arbitrários, que remetem a uma realidade que pode ser
apresentada mesmo que em certas ocasiões não esteja presente.
Estas são alegorias meramente indicativas. Existem também ale-
gorias que projetam a representação de realidades dificilmente

75 DURAND, Cilbert. Úl imt1gú111dó11 simbólica. Buenos Aires: Amorrutu, 1971,


p. 10.
76 DUU\1''D, Gilbert. Les structures 1mthropolo,f117m•s de /'imaginoire. Paris: Bor-
das, 1979, p. 62-64.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 139
compreensíveis ou apresentáveis. Neste último caso, o signo re-
mete com muita mais intensidade ao sentido do que à realidade.
A linguagem alegórica não é privativa da poesia ou da li-
teratura; ela abrange a totalidade dos jogos lingüísticos, desde os
matemáticos aos mais técnicos ou científicos. Cada íórmula ma-
temática encerra uma complexa simbologia prévia que necessita
ser narrada para penetrar no sentido por ela manifestado. Toda
teoria explicativa constrói seu próprio jogo de linguagem a modo
de uma estrutura significativo-simbólica com um sentido inter-
no. A pretensão denotativa d os signos científicos incorpora a pré-
via conotação simbólica que os configura como signos válidos
para esses significados e não para outros.
Símbolos e alegorias se tecem em forma de redes narrati-
vas amplas com intuito de criar visões explicativas da realidade,
cosmovisões coerentes ou sentidos convincentes para a vida.
Desse modo, tecemos nossa estrutura mítica do mundo. Mito que
não implica falsidade ou alucinação, mas narrativa explicativa
que sempre está aberta a novos significados. O mito explica, mas
não esgota o sentido. O absolutismo do mito o converte em dog-
ma, fanatismo, ideologia ou cmtolosinc, nesse ponto, nega o mito
para converter-se cm credo. O _milo, por natureza, tem uma aber-
tura para a transformação significativa, que permite denotá-lo,
quando existem motivos ou razões lógims para tal. ~ superação
de um mito não leva ao porto da razão única e verdadeira, mas à
reconstrução lógica de novas explicações míticas para ludo o que
n-Ós rodeia.
O simbolismo e o mito

Apa,ç;n nfi' or(filtnl, t' todas as á/lncinsjimriio vnzifls t' carentes de :,mfido;
podem assobiar, mfls não podem falar nem responda.
Jacobi

No capítulo anterior, estabelecemos uma distinção impor-


tante entre a consciência mítico-mágica e a mitológica. A dimen-
são mágica ou alucinatória é desconstruída e superada pelo cres-
cimento do logos, porém uma maior compreensão racional do
mundo não supera a dimensão mítica do humano. O mito não é
uma disfunção do logos, mas a dimensão antropológica que con-
fere coerência ao mundo que habita e sentido à existência vivi-
da77. O mito sobrevive e convive com o logos porque ele se impli-
ca no modo de ser da própria racionalidade. Porém a questão a
elucidar é como o logos e o mito, a racionalidade e o sim1)olismo
interagem produtivamente, mesmo confrontando-se como con-
traditórios?
Na reflexão ocidental, e simplificando para aprofundar,
podemos distinguir duas grandes atitudes ante o mito. Um dos

77 CORHII, Emerich. "Historia de la 1-krmenéutica". ln ORTIZ-OSÉS, Andres e


LANCEROS, Patxi (org). Diccio11nrio de Ht•rmmrrd1á1. llilbao: Univer~idad de
Deu.~to, 1997, p. 312.
142 O, pamdo:ros do tinagintirio

caminhos procurou ao longo de séculos a dt•smistificariio mais ár-


dua possível com o objetivo de entronizar o logos como único
princípio humano de verdade. Este vem a ser o caminho da mai-
oria das tendências filosóficas oficiais e predominantes, que deu
origem a uma iconoclastia feroz, a fim de destituir de valor lógi-
co, epistemológico ou ontológico qualquer aspecto simbólico ou
referência ao mundo do imaginário.

A racionalidade narrativa do mito


e estrutura mítica do racional

Um outro caminho é possível. Ele, ainda que bem mais


estreito, mar!9J1al e tortuoso, nunca foi totalmente abandonado:
é o caminho da remtfijicaçiio. Sem pretender desconhecer a con-
tribuição histórica para esse caminho, apontamos alguns pensa-
dores contemporâneos como Heidegger, Vander Leuw, M. Elia-
de, G. 13acherlard, C. G. Jung, K. Kerényi, W.E Üllo, H. Zirnmer,
J. Campbell, G. Durand, J. Hillman, H. Rcad, Portmann, G. Sho-
lem, H. Corbin, Ortiz-Osés, etc., que vêm colaborando para des-
matar o complexo emaranhado de resistências teóricas e acadê-
micas, tecidas com desprezo cm torno do mito.
Remitificnrimplica re-colheíta de smtido. A realidade por si é
insignificante. É o símbolo que outorga significação para 0°mundo.
O mito é jti um t'sboço de mcionalizariio, pois utiliza ofio do di,;cur.,o,
110 qual os símbolos se rt'5olvem em palavras t' os arquéttjJos em idéias. 78
A realidade é vi vencia da pela consciência a modo de epijimia ins-
tauradora de sentido. A própria consciência humana só pode exis-
tir enquanto confere epifimicnmenteum sentido a tudo aquilo que
entra em contato. Essa instauração de sentido é sempre uma cons-
trução mitológica do mundo. Ela não tem um primeiro momento
de relação neutra com os estímulos sensoriais, para depois ela-
borar um sentido. No mesmo ato-instante da percepção se cons-
titui uma imagem significativa dos elementos e os simbologizncom
um determinado significado. O mítico não é um sentido posteri-

78 VUl{A:s;D, Gílberl. Les slmclurc.< nnthropologiquc.< de /'im11gm111re. Paris: Bor-


das, 1979, p. 61.
Castor MM IJartolomé Ruiz 143
or ao lógico ou vice-versa, ambos estão imbricados na produção
significativa da verdade do mundo e do sentido da práxis. A ver-
dade é sempre mitológica, ela se estrutura na forma simbólica e
com argumentação lógica. Não existe argumentação sem forma
simbólica, nem construção mítica sem inserção lógica. Por isso os
mitos se encontram num contínuo processo de desconstrução e
reconstituição lógica, e as formulações racionais procuram cons-
tantemente novas formas simbólicas para expressarem verdades
sempre novas. Podemos falar, pois, de uma razão mitológica le-
gitimadora (do sem sentido) e 1/egtfimndora (do sentido). 79
As formas simbológicas não permanecem como verdades
fragmentadas em jogos de linguagens fechados; elas se interli-
gam em redes de significados que buscam dar coerência e senti-
do de totalidade ao mundo e à existência. Seja na forma de uma
coerência parcial ou de um sentido total, a simbologia assim de-
senvolvida corresponde à forma do mito. Supera-se, desse modo,
o estreito conceito de mito, associado a narrativas pré-científicas
dos povos primitivos, e reintegra-se o mítico no seio da formula-
ção científica mais coerente, verdadeira e veraz. A física quânti-
ca, a teoria da relatividade, a grande explosão cósmica, o geno-
ma humano, a teoria dos fractais, a física subatômica ou a explo-
ração cósmica, todas as formas de ciência ou de pensamento ra-
cional incorporam necessariamente formas simbólico-míticas a
modo de paradigmas para definir as conclusões racionais de seus
modelos teóricos 80 • E todo paradigma, como qualquer narração
mítica, está sujeito ao princípio de superação.
O mito se expressa na forma de discurso narrativo que efe-
tiva uma interpretação vital do ser humano e uma compreensão
"verdadeira" e relativa do mundo. A compreensão não é um dos
modos de comportamento do sujeito, mas o modo de ser do próprio ser-
af'l. Ele integra na narrativa discursiva o sentido existencial e a
verdade científica, construindo uma significação afetiva e um

79 ORTIZ-OSÉS, André~. Antropología siml,ó/á·a msm: Barcelona: Anlrhopos, 1985,


p. 44.
80 MJL:S."ER,Max. "Metáfora~ ., metamorfoses no imaginário científico: o exem-
plo da ótica". ln: Vários: A ciência e o lmagáuírio. Bra5ília: UnB, 1994, p. 27-53.
81 GAUA.',,tER, Hans Georg. Verd11d y método. Salamanca: Sígueme, 1977, p. 11.
144 OH paradoxos do ànagúuírio

paradigma efetivo que imbricam o conjunto dos sentidos a modo


de visões de mundo. Confere ao mundo um sentido que ele não
possui, metamorfoseando a insignificância caótica e inocente dos
sentidos num cosmo significativo. O mito empapa de valor a in-
significância natural dos objetos, carrega-os de uma espessa e
rica densidade simbológica e abre o humano para um indefinido
e infinito horizonte da criação.
Todo significado se organiza numa rede de sentidos, den-
tro da qual se exprime de modo maLc; amplo e complexo. As pala-
vras se organizam em frases, as frases em orações compostas, as
orações em parágrafos, os parágrafos cm rnicrorrelatos, os mi-
crorrelatos em rnetarrelatos ou narrativas amplas que, por sua
vez, constituem universos de sentido. Nessas unidades signifi-
cativas, os objetos adquirem vida e o mundo se humaniza. Tudo
aquilo que o ser humano vivencia, ele o faz inserido numa densa
trama simbólica que ele mesmo tece corno modo de compreen-
der, penetrar e transfon;nar a realidade. Não podemos pensar nada
além do simbo-logismo ou da mitificação racional.
A sociedade existe como rede de representações que sociali-
. za os sujei tos, sem determiná-los, e os insere numa forma de prá ti-
ca social. Qualquer formação social manifesta uma visão de mun-
do, seja o modelo republicano de Roma, o feudalismo, o reinado
científico da Atlânlida baconiana, a igualdade plena da sociedade
comunista, o darwinismo social do neoliberalismo, a sociedade
aberta de Popper ou a modelar sociedade do consenso de Haber-
mas. Não é possível uma sociedade que ultrapasse as representa-
ções simbólicas e conseqüentemente as narrativas míticas.

Afetividade e efetividade simbólicas

Gilbert Durand propõe que a efetividade simbólica mani-


feste-se em várias dimensões fundamentais, desembocando numa
teojimia8 2• Perante a realidade da morte e da incompreensão exis-
tencial e angustiante da vida, o símbolo restabelece um eq11il1brio

82 Dl.'.RAND, Gilberl. Lo imogi11odót1 !'imhólico, Buenos Aires, Amorrutu, 1971,


p. 125.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 145
vitnl que possibilita ao ser humano dar um sentido à sua morte e
transcender sua realidade empírica, significando-a positivamen-
te, de modo sentimental e esperançoso. Pela função simbólica e
por meio do simbolismo, a angústia da morte pode ser neutrali-
zada oures-significada positivamente em outras dimensões, res-
tabelecendo, desse modo, um equilíbrio vital para a existência
humana. A esta função da imaginação simbólica denomina e11fe-
111iznção. Não porque constitua um engano ou uma ocultação da
realidade da morte, mas porque consegue dar a ela um sentido
otimista tão verdadeiro quanto o pessimista. A mfamiznção sim-
bólica consegue que o thd11nfos freudiano não exclua o sentido da
vida, mas que se impliquem de forma que o thdnntos se reconfi-
gura num instinto de morte que nega a própria morte. Esta se
mfi•mizn ao extremo no simbolismo da vida eterna. A morte sim-
bolizada como repouso, descanso, sono ou fim de todo o sofri-
mento já é uma negação da própria morte. Já Horácio senten-
ciou:

A pálida 111orft' /Jrtte {fllfllmmte


llfl.'• d1011pm111s dos pohrcs
e nos pnltíâos dos rei,l 3

O simbolismo implementa uma outra função consistente


em restabelecer o eq111llbrio psicossocinl. Para Freud, a imagem-
símbolo é um mero subproduto, direto ou indireto, do processo
de sublimação que, por sua vez, se origina a partir do conflito
entre as pulsões internas e a repressão externa. O símbolo, desde
o ponto de vista da análise freudiana, constitui uma forma enga-
nosa e irreal de sublimar as repressões. A imagem-símbolo deve
ser usada como um meio para uma análise lógica, psicoanálise,
pois ela não possui um valor em si mesma.
Jung resgatou, em parte, o valor do simbolismo como sín-
!esf' re-equilibnmft', na forma de valor arquetípico dos símbolos114 •
Porém não considerou o simbolismo como um meio terapêutico

83 HORÁCIO. Od11s. Livro 1, 4.


84 Jt:NG, Carl G. Arqul'lipos dei inco11scJi.>11tr co!ecti1 10. Barcelona: Paidós, 19Yl.;
Id. Aio11: conlribuctdn a los súnbolos de si miçmo. Barcelona: Paidós, 1992.
146 O., paradoxos do ,inngimfrio

direto. Este preconceito lógico contra o simbólico vem sendo su-


perado de modo paulatino por seus seguidores, que atribuem à
imaginação simbólica um papel essencial, ao ser, um fator de npti-
l!õrio psú:o.,.,ocinl. Como já disseram Cassirer e Jung, no limite, a
doença mental nada mais é do que perda ou distúrbio da função
simbólica. O enfermo psíquico é um desajustado do próprio meio.
Essa função de equilíbrio psicossocial que realiza o simbolismo
no indivíduo se translada ao conjunto da sociedade. A subjetivi-
dade produz sua identidade e se autoconstrói por meio de sua
inserção na rede de representações sociais já instituídas. Ela se
equilibra à medida que integra de modo pedagógico e equilibra-
do as representações socialmente instituídas e as assume como
próprias. Não é possível a integração social do indivíduo e nem
sequer sua constituição como sujeito social, a não ser pela assun-
ção significativa da teia simbólica socialmente consolidada. Quem
não se integra no universo simbólico de um grupo adquire o es-
tigma do diferente qu~ leva, em muitos casos, à (des)identidade
do excluído. Levado ao extremo, o desconhecimento total do
universo simbólico de um grupo impede sequer a comunicação,
nega a relação e consolida o princípio da esquizofrenia.
A função pedagógica consiste em integrar harmonicamen-
te, mesmo com consciência crítica, o indivíduo numa rede de re-
presentações socialmente instituída.A consciência crítica peran-
te o social sempre é parcial; se fosse total, implicaria a negação
total dessa sociedade, o que leva para um limiar alternativo seja
da revolução, da sabedoria, da poesia, da utopia ou da loucura.
Na função de sínfeseeqrti!ibrnntese manifesta o poder objetivador
do simbólico, embora sempre devemos ter presente que o simbo-
lismo traz em si também a potencialidade transformadora das
cosmovisões estabelecidas e da realidade social constituída.
A tentativa tradicional de definir o ser humano como um
ser essencialmente racional possui limitações flagrantes e social-
mente perigosas. A partir do princípio de que todo ser humano
tem que ser racional, é possível negar a humanidade de quem
não atingir o patamar que os humanos de tumo definem de modo
l,1xonômico como o nível racional mínimo aceitável. Este é o tris-
11• ,1rp1menlo que possibilitou o extermínio de deficientes men-
l,1is pt'los nazistas, que estava latente no lançamento de crianças
Castor M. M. Bartolomé Ruíz 147
deficientes desde o monte Taigeto na Esparta, que provocou a
negação da alma humana aos índios paleolíticos e irracionais no
continente americano, que alimentou a escravidão dos negros
bárbaros e animalescos na América ou dos bárbaros boreais na
Grécia e que deixa aberta a possibilidade para a prática da
(dis)tm11f..,"IÍ1em deficientes que nunca chegarão a ser racionais85 •
Temos de afirmar a racionalidade não mais como o artigo
que a determina como única, mas com a indeterminação própria
que lhe confere ser uma dimensão essencialmente humana, sem
lhe outorgar o estatuto de exclusividade. Para compensar o hu-
mano, devemos ampliá-lo para além do racional, integrando o
simbolismo como a outra dimensão que o define. O ser humano
é essencialmente um homo -~IJmbo!ícus, ou de modo mais comple-
to, poderíamos dizer que é um homo símbo!ósic·o. O simbólico re-
side no modo de ser de todos os humanos, desde os primeiros
hominídeos até os tecnocratas atuais, dos portadores de defici-
ências mentais aos cientistas mais renomados, desde a criança
recém-formada ao ancião no leito de morte. O simbólico integra
no humano a diversidade racial e a separação temporal, a dife-
renciação cultural e a dispe~são geográfica e impede qualquer
legilímação ideológica que pretenda justificar as diversas formas
de exclusão social, de exploração humana ou de extermínio étni-
co. É a partir da densidade simbólica do humano que podemos
conferir o mesmo valor criativo às técnicas do paleolítico e às
modernas técnicas aeroespaciais. A vitalidade do simbólico nos
possibilita vibrar com igual intensidade ao contemplar a beleza
estética das pinturas rupestres ou com a audição das sinfonias
cl,bsicas. A ahtalidade do mito integra de modo criativo os senti-
dos primitivos da linguagem e as formulações da lógica analíti-
ca; costura produtivamente os relatos de Édipo e a pslcoanálise;
perpassa a visão pitagórica dos números, a visão newtoniana do
universo ou a teoria matemática de Russell. É assim que o simbó-
lico desenvolve uma função de equíllbrío 1mtropo!ó,_ficO.

85 Sobre o ~imbolismo e a solidariedade universal do homem, cf. ELIADE,


Mircea. Jm,~,:enes y símbolo.~: n1s11yos ,obre d simbolismo mti,_,:1co-rdigio.<o.
Madri: Taurus, 1991, p. 17.
148 Os paradoxo.,; do itm1,f1"nrírio
O t'qttil!ôrio socio/ústórico dt' uma rktemri11odo socir'dad,, não 5erin
outra coiso que uma constnnft' renliznçnõ simbó/k:a, f' a mda de 111110
ddaminadn cu/tum estaria composto de ditistoles e sístoles, mais
ou m1•no_ç /n1tos St-g1111do n coua·pçõo qul' l'Ssn.,; sodedndes tenham
da hrstórin. 80

O humano é um ser em tensão. A fratura ontológica criou


uma fenda abismal, motivo pelo qual sua existência transcorre
retesada por uma ferida trágica. A tensão é insuperável e consti-
tutiva do et/10.,; humano. Ela pode se desdobrar em tragédia an-
tropofágica, que persegue a auto-afirmação pelo consumo exas-
perado e predador do mundo e que não vê no outro ser humano
a alteridade irredutível de um próximo, senão a objetivação de
uma mercadoria cuja posse pode aliviar a tensão in_terna. Porém
a tensão humana também pode expandir-se corno expectativa
desafiante de rc(l)ação simbológica que conecta o eu e o outro
num diálogo de doação e de acolhida. A conexão dialogal do eu e
do outro não sutura a fratura, mas alivia a ferida; não nega a
tensão, mas constrói um modo de existir; não devolve a harmo-
nia perdida, mas abre o cu para o infinito possível da plenitude
almejada. A própria cultura é um universo mitológico que a modo
de !tintus pretende suturar a dolorosa tensão instaurada pela fra-
tura. As fonnas culturais procuram restaurar a unidade indife-
renciada do eu, e o mundo, não o conseguindo se auto~afirma
como seu paliativo: O mito é o sistema último de refereitcin 11 partir
do qual 11 !tistórin se compreende. 87

1
No fardt's, Muerte, que muero;
l'l'M porque viva contigo:
quiéreme, pl/es ql/1' te q111áo,
que con tu rnuda esprro
no tener guerra conmigo.

86 IJUllAND, Gilbert. La imflgi1111ció11 simbólico, l:lucnos Aires, Amormtu, 1971,


p. 132.
87 Dt:RA:-JD, Gilbert. fij;11,t'.< mytiqut'.~ e! visag,•s de /'oeuvre. De ln mythocrilitfue11
ln 11zvt/Jn11n~IJ.<t'. Paris: Ucrg, 1979, 32.
Castor M. M. Bnrto/omé Ruiz 149
li
Remédio de nlegre rotdn
no lo lrny por mi1sú11 medio,
porq111' misrm,e heridll
1'5 ck lfll parle ve11idfl,
que e1;•s hí so/n remedio.
Wm nquí, /Jllt'S, _1/fl f/111' llllll'IV.
Búscallw, p111's qut' te sigo
quifremt', pm·s que te quiero,
.V co,r tu z1idn t'SJNTO
no tener vida conmigo.
(Jorge Manrique, 1440-1479, Coplfls por ln m11erft' de su padre·)

O simbólico, ao afirmar a vida perante a morte ameaçante,


estabelecer um equilíbrio psicossocial e constituir a unidade an-
tropológica, adquire uma tal densidade que possibilita a abertu-
ra do humano ao sentido do absoluto. Transcendendo o empiris-
mo do logos, projeta a consciência para uma experiência do inco-
mensurável. O sem-fundo humano, longe de se afogar nu seu
próprio mistério, se expande para a imensidão na experiência do
infinito. A fratura humana se realiza na abertura que transcende
ludo o que contata e a catapulta para o sentido de valor supremo,
no qual se auto-afirma perante a entropia positiva do universo.
Enquanto o mero logos encerra o humano nos limites da
contingência, o simbolismo desafia a finitude asfixiante do em-
pírico e intui a possibilidade simbológica do valor supremo do
ser. Com isso abre o humano para a experiência da eternidade e
da plenitude tão longamente almejada. Sem pretender entrar em
disputas teológicas, o simbólico afirma a possibilidade da expe-
riência humana da transcendência. Desse modo, o simbólico pos-
sibilita o arremessamento do humano para a experiência da fm-
fania. Porque o mito integra a categoria da esperança88 • Para o
simbólico, os pontos de referência deixam de ser limites intrans-
poníveis e se constituem em modelos orientadores de uma aber-
tura indefinida. A realidade concreta não é mais a meta onde ins-

88 LAPJ.A:S.:TJNE, François. Llls i•oces de ln 1mllginllción co!rcfiPn. Barcelona:


Gránica, 1977, p. 57.
150 Os paradoxos do lillagàzdrio
talar-nos, mas o caminho para continuar avançando. O presente
não é um imperativo a ser obedecido, senão uma parte de nós
que se desintegra no crescimento.
Porém o mero simbolismo, abandonado à sua própria sor-
te, introduz-se facilmente por rumos imprevisíveis. Sem o papel
crítico-compensador do logos, o símbolo pode desembocar nos
fanatismos mais obtusos e emaranhar a existência humana numa
irracionalidade endógena que a conduz para uma tragédia auto-
destrutiva ou para uma alienação frustrante. Os horizontes sim-
bólico-míticos têm que contrastar com as argumentações do lo-
gos. É na tensão mítico-argumentativa que o ser humano e aso-
ciedade têm de constituir suas verdades e projetar suas crenças.

O totemismo racional

O termo totem prncede da palavra ototeman, utilizada pela


tribo algonquina dos ojibwa. Ela significa: n,7u!lo que tem pnrmtes-
co comigo. No totemismo primitivo não existe urna estrita dife-
"rencíação entre os diversos reinos da natureza. Os limites entre o
vegetal, o animal e o humano ainda não tinham sido delimita-
dos. Se um animal pertencente ao totem do grupo morre casual-
mente, todo o grupo deverá levar luto, e ele é enterrado c_om as
mesmas honras e rituais que uma pessoa. A própria consciência
de si, a identidade do sujeito, está vinculada de modo compulsi-
vo à existência do gmpo; nessas circunstâncias não é possível
existir uma subjetividade do eu diferenciada da alleridade do
grupo. O indivíduo e a coletividade se confundem numa unida-
de indissolúvel de sentido. Um holismo vital integra tudo numa
unidade em que a existência dos diversos elementos está, mais
do que correlacionada, vinculada numa relação de necessidade
causal. Forma-se uma coexistência plena num ecossistema úni-
co. Um animal totem defende e protege os membros do grupo a
que está vinculado. Os membros dos gmpos totêmicos pensílm
que possuem urna origem comum com seus totens 89 •

8\1 FREUD, Sigmund. Totem y la/JIÍ. Madri: Aliança, 1970, p. 134-135.


Cn.,for M M. Bnrtolomé Ruiz 151
Contrário ao que comumentc se pensa, o totemismo pri-
mitivo representa uma forma de construção mitológica que in-
corpora um alto grau de racionalização. Ele introduz de modo
incisivo o germe da diferenciação e distinção dos elementos. Ao
propiciar uma fusão com a realidade, efetua uma distinção inici-
al no todo indiferenciado da natureza. No totem, o simbolismo
capta uma interpenetração bidirecional entre a natureza e a pes-
soa. A pessoa experimenta a natureza e a objetiva, humaniza, a
modo de objeto-subjetivado, conferindo, desse modo, rasgos hu-
manos e até pessoais aos diversos elementos da natureza. O an-
tropomorfismo totêmico destaca e diferencia um cosmo particu-
lar de sentidos dentro do fluir caótico de uma natureza hierofâ-
nica. Esse antropomorfismo constrói o berço cultural por meio
do qual as pessoas identificam o mundo como seu lugar-lar. Ele
possibilita sua integração numa relação humanizada com a na-
tureza. A integração estabelece uma unidade diferenciada e dife-
renciadora entre a pessoa e o mundo, unifica vi talmente o ecos-
sistema único e diferencia os elementos correlacionados antro-
pomorficamente. A autoconsciência pessoal se expande na cons-
ciência cósmica, porém não se dilui completamente nela. Eis por
que as relações totêmicas:

Tlm por objeto estabckn'r 110 hrm1m1 e no nnimnl totémico rdnções


genenlógims que Jáçam do primeiro pnrmte do s1:f1111do. A partir
desso origem comum repres1•11tadn, afim do mais, de maneira dife-
renfl', ncrf'difn-.,e dar conta de sua comum 11at11n'za. 90

O mito, ao aproximar dois elementos diferentes, correlaci-


ona-os, fundindo-os numa unidade de sentido. Esta noya unida-
defi1.s-1onn/mítica de sentido, ao co-referir os elementos, integra-
os e supera por meio de uma relação-união entre palavras e coi-
sas. A fusão totêmica de sentido flui num vaivém de sentidos
que animam os objetos e objetivam os significados. O logos, em
contraposição, realiza a separação-distinção dos elementos, se-
gundo critérios taxonômicos por ele estabelecidos e denomina-

90 m1RKIIEIM, Fmile. las formns d,wentn/es de ln vida rd1giosn: Buenos Aires:


Schapirc, 1992, p. 125.
152
------
Os pnmdoxos do imngituirio

dos de racionais. No mitológico, as duas dimensões da consciên-


cia conflilam e interagem continuamente na produção de signifi-
cados (conhecimento) e na práxis social. A mera separação entre
fusão (mítica) e distinção (racional) não deixa de ser um artifício
lógico que não corresponde à unidade indissociável com que, de
fato, aluam ambas as dimensões. Toda fusão mítica realiza uma
primeira diferenciação entre os elementos apreendidos e o resto
dos outros objetos, que permanecem como uma totalidade dis-
tinta e (in)diferente. Essa primeira diferenciação mitológica pos-
sibilita desencadear um processo simbológico posterior de dife-
renciações entre o todo e as partes, entre o conjunto e os elemen-
tos, entre a coisa e os atributos, etc. Esse processo de identifica-
ção-diferenciação das diferenças constitui o modo antropológico
de constituir o fofemismo c11lt11rnl. 91
Se totem é oqwlo que tem parentesco com(qo, temos de con-
cluir que o totemismo não foi anulado pelo "progresso" da racio-
nalidade. A identidade individual e social contemporânea, embo-
ra fragmentada, remete continuamente a uma dimensão simbóli-
co-totêmica. Na construção de qualquer forma de identidade flui
,imerso um totem. A identidade se gesta em torno de um elemento
que é comum à pluralidade dos sujeitos. Aquilo que é comum, o
totem, se exterioriza e objetiva. Ao objetivar-se, se lhe confere uma
omino própria, um significado parlicu lar que atrai para si a plura-
lidade dispersa dos indivíduos e os agmpa um referente con'mm o
totem. Por exemplo, as identidades nacionais nada mais são do
que representações coletivas construídas a parlir de um totem co-
mum: que pode ser a bandeira, a ehüa, o território, a língua ou a
emissora de televisão. De igual modo a constituição da identidade
individual é realizada a partir da interação da pessoa e da simbo-
logia socialmente instituída. Na medida em que essa simbologia
comum é única para todo um grupo social, surgem identidades
uniformes com u rn grande impacto de coesão social. Porém, quan-
do, dentro de um mesmo gmpo social, a simbologia se fragmenta
numa pluralidade indefinida de símbolos contrapostos, desenha-
se urna sociedade esfacelada cm microidcntidades relativas e vo-
lúveis, temos o desenho de nossas sociedades pós-modernas.

91 LÉVI-STRAUSS, Claude. Totfm1smr· ,111jo1mtJ1w: Paris: P.U.1'., 1%2.


Cnstor M M. Bnr/0/0111/ Ruiz 153
Os indivíduos pós-modernos não têm mais o referente sim-
bólico de uma crença única para todo o gmpo, nem acreditam
numa unidade cultural universal. A pluralidade é seu princípio,
a relatividade sua força criativa, a consciência da própria criação
socioistórica dilui a solidez de todos os fundamentos últimos. A
mitologia do modernismo iluminista entronizou a deusa razão
como a única e verdadeira certeza. Porém a razão, constituída no
maior símbolo (mito) da modernidade, mostrou também sua face
perversa. Ela, como qualquer mito, pode provocar também a ali-
enação ideológica, a dominação política, a exploração econômi-
ca e a exclusão social. De fato, a nova deusa da modernidade
possibilitou um alargamento sem precedentes do conhecimento
humano e do desenvolvimento social, mas também gerou conco-
mitantemente as tragédias humanas mais terríveis jamais pensa-
das, que nunca teriam acontecido sem o planejamento e o conhe-
cimento científico-tecnológico propiciado pelo desenvolvimento
da racionalidade.
O sujeito moderno, ao perder o último baluarte das certe-
zas - o mito da verdade e da bondade natural da razão - se dilui
facilmente no relativismo das microverdades ou nas certezas sub-
jetivas. Nasce, desse modo, o indivíduo pós-moderno. Sujeito
moderno ou indivíduo pós-moderno, ninguém pode fugir ao
imperativo humano de configurar sua identidade pessoal e soci-
al. Uma implosão de pluralismos e crenças fragmentou as novas
sociedades pós-modernas num politeísmo de relativismos axio-
lógicos. Os indivíduos pós-modernos são projetados para uma
mulliplicidade de microidentidades aleatórias e relativas. Eles
devem configurar sua identidade, firmar suas verdades e dar
sentido a sua existência a partir de microrrelatos fragmentários,
heterogêneos e relativos. Eis por que seu totem possui uma gran-
de versatilidade e pode ser modificado aleatoriamente. A malea-
bilidade das identidades pós-modernas interliga os indivíduos a
modo de rede. Uma amálgama simbólica de micrototens impul-
siona as pessoas a identificarem-se e desligarem-se nos diversos
grupos da rede, atraindo-se e repelindo-se de forma contínua
numa constelação de identidades difusas.
O totcmismo pós-moderno se refaz numa multiplicidade
de símbolos que contribuem para a geração prolífica de subiden-
154 O.,; paradoxos do imngindrio
-----
tidades que enlaçam as pessoas num referente externo. Esses
novos totens ligam os indivíduos ao redor do súnbolo numa coe-
são relativa e numa relação grupal normalmente frágil. O time
de futebol, o grupo religioso, os modismos de todo tipo, as várias
agremiações ou clubes, os cada vez mais efêmeros vínculos fami-
liares, etc. são novos totens que congregam as novas tribos urba-
nas e definem sua identidade social de gntpo92 • A unidade global
dos totens universais que projetavam um destino histórico co-
mum para a classe, a nação, a religião e até a humanidade cedeu
passo a um pluralismo heterogêneo de grupos diversos que se
ligam e desligam de modo natural a partir de novos totens cultu-
rais. Eis uma forma peculiar de o simbolismo implementar seu
poder objetivador.
No entanto, existe uma grande diferença entre as formas
do totemismo primitivo e as que atualmente se realizam. No to-
temismo primitivo estabelecia-se uma identidade compulsiva,
unívoca, das diferençai. Os totens da águia, do urso ou do vento
unificavam numa unidade natural todos aqueles que neles se
integravam. Na atualidade, a dimensão totêmica do simbólico se
realiza como abertura e não como clausura do real, abre a reali-
dade para uma plurissignificação interpretativa. O tolemismo
simbólico estabelece um referencial comum a partir do qual se
cria uma multirreferência significativa. A dimensão lotêmica do
simbólico possibilita configurar identidades plurais em torno de
um objeto comum. A identidade nacional se esfacela num leque
indefinido de subidcntidades, o novo politeísmo ético gera uma
maleabilidade que integra e desintegra os indivíduos numa rede
plural de círculos e grupos. O lotem contemporâneo perdeu seu
caráter de permanente e fica corroído pelo vírus da relatividade;
as pessoas mudam de lotem ao longo de suas vidas ou se ligam a
vários totens ao mesmo tempo. Totens simbológicos nascem e
m_o_r:rem engolidos pela voracidade de uma sociedade q,.i"e f~__g_a
àntropofagia semiótica seu modo de ser. Porém nenhuma pes-
soa, nenhum grupo social pode sair fora das identidades dos to-
tens simbológicos.

92 MAFFESOLI, Michel. E/ tiempo d,, las tribus. Barcelona: Icaria, 1990.


Ln:,ior M. M Bnrto/omé R111z 155
Não existe um espaço neutro de onde possamos contem-
plar de modo objetivo, ou só racional, a produção simbólica. Sem-
pre que acharmos esse espaço, teremos realizado uma consh·u-
ção significativa e com ela nos teremos introduzido numa nova
forma simbólica. A própria noção de espaço não existe para nós
de forma natural. Estamos imersos num espaço produzido cul-
turalmente. Nossa percepção do espaço se apresenta como uma
aprimorada elaboração simbólica dos elementos, coordenadas e
referências que nos circundam:

Todo t'spnço possui um signijicndo, 110 mt'smo tempo i11df,,,d11n/ e


socin/, cnso confrririo de s,•r,il i,1co1111micrivt'l Ele é 110 mesmo tempo
lllJIIT estruturo e um im'f'11fririo provi,ório de fórmns e dl' rdaçÔl'S

simbólims. 9 ;

93 rKANC!',SihL, E Pl'intun' el socielé. Paris: Galhimard, 1965, p. 64.


A re-ligação simbólica

A f'Slnht!idllde dfl religião


procedt' d,, 'lllf' o st'nfido
sempn' f rt'l{fÍOSO.
Jacques Lacan

O simbolismo tem uma polivalência que dificulta qualquer


pretensão classificatória. Ao refletir sobre as diversas formas como
o simbolismo se manifesta ou as aberturas de sentido que provoca
para o real, sempre ficam outras formas ou aberturas passíveis de
ser pensadas. Aí reside a riqueza insondável do simbolismo (do
imaginário). Abertura que sempre deixa caminho para outros se-
guirem a infindável tarefa de repensar a metamorfose criativa dos
sentidos e que nunca se deixa esgotar numa taxonomia acabada.
O símbolo infunde anima ao mundo. Sem o simbdlismo, o
mundo seria um corpo dt"s-nnimndo, sujeito a meras dissecações
analíticas e a objetivações lógicas, supondo que pudessem existir
ambas as dimensões de modo independente. O símbolo vitaliza
o mundo porque insere um sentido naquilo que, por si mesmo,
resulta insignificante. Sem os sentidos do mundo, isto é, as for-
mas simbólicas, a existência humana se arrastaria como subsis-
tência animal, adaptada aos estímulos funcionais dos instintos
predominantes ou da programação genética.
158 Os paradoxos do li11ngliuirio

Por meio da significação simbólica do mundo, a pessoa


humaniza a realidade e realiza o humano de modo social e histó-
rico. O simbolismo liga a amil!fl humana ao 11/fert;fo. l:go e alter se
conectam como realidades irredutíveis. Porém essa conexão vai
além da exterioridade dual com que habitualmente os represen-
tamos. O cu e o mundo se ligam, interpenetrando-se vitalmcntl',
isto é, re-l(r;muto-se. Pessoa e mundo se rl'-ligam numa conexão
real (simbólica), que constrói pontes de vitalidade significativa
entre ambos os lados. O sentido realiza urna recriação do mun-
do; nele as coisas adquirem uma função, um valor, uma tecn/ie,
que as insere num outro estágio compreensivo. O humano, por
meio do sentido, encharca criativamente o mundo e se mu11d1mi-
za numa integração transformadora. Levinas diz:Propomos que se
chn111t.' rd{fttio no lnço que se estnbelcce t'ltfrt' o Mesmo e o Outro, St'm
L"Oltstituir uma totalidadtM.
A dualidade sujeito-objeto, instituída pela fratura radical,
se compensa ao mínirnq -embora não se anule - na experiência
de re-ligação simbólica. Essa divisão da desarmonia dual é sutu-
rada pela potencialidade transcendente do sujeito que, re-ligado
ao mundo, se integra nele por meio da práxis transformadora.
Práxis que é significação instituída e que transforma as significa-
ções já estabelecidas. Sentido e práxis vinculam intensamente a
pessoa e o mundo, possibilitando a superação do dualismo, abrin-
do-nos, desse modo, à experiência da unidade, que sempre é re-
lacional, ou seja, relativa, sujeito-objeto.
Não existe relação sem re-ligação95 • Are-ligação não é uma
mera opção voluntarista - embora requeira também uma certa
dose de adesão-, mas uma estrutura antropológica e social. Re-
ligar-se com a realidade é uma questão de sobrevivência huma-
na. A alternativa à re-ligação simbólica não é a objetividade racio-
nal ou científica, mas a psicopatologia do autismo. O mundo for-
ma parte de nós, e nós nos integramos ao mundo. Sem a alterida-

94 LE\-1NAS, Emmanuel afirmu: Td. Tt1t11/idndee 1,!fi,rito. Lisboa: Ed. 70, 1980, p.
28.
95 zt:nIRI, Javin. /11td,;rnmi1 smlimle. Madrid: Alianza Editorial, 1980; Id.
Inte!t;fl'IICIÍI .11 ksvs. Madrí: Alianza Editorial, 1982; Jd. F.,tructurn dh1ti111im
de Jr, realtil"'I. Madrid: Alian7.a Editorial, 1989.
Castor M. M. Rnrtolomé Ruiz 159
de do mundo o sem-fundo humano se afogaria no seu imanen-
tismo. O ser humano só chega a ser quando se realiza na abertu-
ra para o mundo, na inserção socioistórica que o identifica corno
um sujeito específico. Essa abertura implica uma dinâmica de
transcendência por meio da qual o sem-fundo humano transcen-
de os limites de seu próprio ser e se expande numa abertura de
sentido para o horizonte que se desenha como infinito.
A subjetividade, ao transcender-se, se re-1 iga ao mundo na
intenção de constituir uma forma de plenitude ou de harmonia
natural. A experiência da re-ligação confirma, pela finitude do
mundo, o paradoxo do humano por meio do qual a pessoa expe-
rimenta momentos sempre transitórios de realização. Isso 1105 levo
n co11s1dernr n 1déin obsednnle de estnr-;imto como Jendo esse11cinlme11-
te 1111111 "rd,;façiio" m&fica .,;em objeto p11rticuln/!1'. Porém a frustra-
ção emerge inevitável, pois nada pode suturar de modo definiti-
vo a fratura abismal, ninguém pode devolver totalmente a har-
monia perdida ou constituir uma experiência existencial de ple-
nitude absoluta. O ser humano, por meio da transcendência, se
projeta como um eterno peregrino que busca na re-ligação signi-
ficativa do mundo constituir um utopos (im)possívcl em que pos-
sa deixar de sofrer o paradoxo que o atravessa. Intui a possibili-
dade de uma plenitude que não lhe é possível alcançar pelas pró-
prias forças. Eis aqui o novo Prometeu, que carrega a fratura in-
terior para os cumes inatingíveis da recriação permanente do
mundo.
A re-ligaçâo simbólica foi identificada comumente com as
formas culturais denominadas religiões. Embora haja uma cone-
xão intrínseca e indissociável entre ambas, exisle uma diferença
importante entre a religião como forma cultural histórica ou tran-
sitória e a rc-ligação como dimensão antropológica. Normalmente
se reconhece que o fato religioso constitui o marco dentro do qual
emergiu a maioria das significações sociais e que foi nele que se
incubaram muitas das instituições sociais. As significações reli-
giosas serviram:

96 MAHESOLI, Michel. Dofimdod11.,·11p,1r/mü.,·. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 29.


160 Os ptlmdoxo.,; do it111{'?Ílllírio

St'rvimm pnm si11ll'liznr o t>tlms dr• um povo - o /0110, o crmíter, n


qualidade de sua vida, s,·u t>sfi/o mom/ t' s11n estltica - t' sua
cosmovisdo, o quadro que esse povo seforja de• como siio as coisas 11a
rmlkúide, s11ns idéins mm:~- abrangentes sobre 11 orde!!/17•

Porém é comum considerar que a dimensão religiosa é


superada e superável pela "evolução" crescente da razão. Nesta
hipótese, a rc-Iigação simbólica constituiria também uma etapa
histórica da humanidade a ser superada -como toda superstição
- pela marcha emancipatória do logos. Realiza-se uma identifi-
cação entre dimensão re-ligante do simbólico e prática religiosa,
como se ambas as coisas fossem coincidentes.
Em certa medida, essa é a visão que sustenta o próprio
Cassirer a respeito do simbólico:

Dt•sdt• o ponto d,, z,,:çfn /11'.,tórko pode sem dúvida obsermr-s,• q11e o
co11ceito de símbolo só mi amadurecendo lmlamnrte até esta extt'11-
siio e gmemlid11de de sm S{\'llifimdo _,:;1'.,temrítico. Com tfáto, tem
originariamenfi' suas mízes 11n esjem religiosa e permnllt'l"t' htado a
da por muito lnnptf 8•

No entanto, are-ligação supera qualquer prática religiosa


específica. As diversas manifestações históricas do fato religioso
estão ancoradas na re-ligação simbólica, enquanto estrutura an-
tropológica, mas esta não fica reduzida a uma ou outra forma de
experiência religiosa. A re-ligação simbólica é uma dimensão
antropoló!:,rica do ser humano, um modo de manifestar a potencia-
lidade criadora do imaginário. Are-ligação não é uma opção pos-
sível, mas uma demanda do humano. Por meio dela a pessoa
realiza uma ;imrão de sentido entre a alteridadc e o cu. Conecta-
das pela rc-Iigação simbólica, a tensão paradoxal provocada pela
fissura humana se alivia de modo transitório e a ansiedade de

97 GEERTZ, Clifford. ú1 i11tcrptt•faa611 ,t,, las ,:ul/urns. 13arcdona: Gedisa, 1989,


p. 89. DCRKHEN, Emile. l.esfam1<'S élémentmi-..s de ln Pie religi,·us,,. Paris: !!IH.,
1968.
98 CASSIRER, Ernst. lsencin y [!fedo dd cona:pto de símbolo. México: F.C.-.F, 1989,
p. 162.
Cm,for M. M Barfolomé Ruiz 161
plenitude do sem-fundo emerge mitigada ao transcender-se para
um mundo que se apropria como seu mundo.
O símbolo apresenta uma estrutura de sentido ambivalen-
te. De um lado, oferece um sentido do mundo para a consciência,
mas concomitantemente esse sentido liga-se a outro(s) sentido(s)
ocultos, inconscientes, complexos, que fogem à percepção da cons-
ciência vigilante99 • O sentido dado se entrelaça com os sentidos
ocultos ou inconscientes, e é neste entrelaçamento que se elabo-
ram as novas formas simbólicas. Aju11çâoou suturado símbolo se
realiza numa dupla direção. Ela junta o significado consciente
(tipo) com o simbolismo inconsciente (protótipo). Desse modo se
estabelece uma re(l)ação entre nosso mundo da vigília conscien-
te e as configurações inconscientes e prototípicas. Essas configu-
rações prototípicas não são 11 priori ener,féticos subjacentes no in-
consciente coletivowº. Elas existem como experiências humanas
comuns a todas as pessoas e sociedades; por esse motivo, possu-
em um valor universal e transpassam o espaço e o tempo. São
experiências universais que cada sociedade e pessoa vivencia de
modo singular: a morte, o nascimento, o fogo, o sangue, a vida, o
firmamento, o pai, a mãe, etc. Nenhum deles preexiste como ar-
quétipo. Embora existam como universais, todos subsistem como
experiências socialmente significadas. Essas experiências são co-
muns a toda a humanidade e a todas as sociedades, porque elas
formam parle do modo humano de ser, mas só subsistem de modo
historicamente sih'Tlificadas e socialmente (simbolicamente) mo-
deladas101.

99 RICOcUR, Paul. A meldjórn z,im. São Paulo: Loyola, 2000.


100 Esl<-' é o modelo arquctípirn de Jtmg, Neumann e l'ortman. Jl~G, CARL G.
Arrpré!tpos ,. 1i1co11scli'11fe mkdil'o, Barcelona: Paidós, 1991; Id. Psi:o/ogia y
,<imbólrá1 de los 11rq11el1i•os. Barcelona: Paidós, 1992.
101 Esta visão se aproxima mais das concepções de II. Corbin, J. Hillman e
parcialmente de G. Durand. 1111.LMAN, James. Le mylhe de J,1 ps_1jd1a11nlys,·.
París: Imago, 1977; Jd. Pnn el m11chem,1r. París. Imago: 1979; ld. L,· storie dze
crmmo. ~1ilán: Cortina, 1990; CORlllN, Henry. 7i·rrr d/este et corps dr
rés11rrectio11. París: l:luchct-Chastel, 1960; l<l. Mundus Imaginalis ou l'
Imagina ire et l' Imaginai. ln: C11hirr.< /11tematio11n11.r de Symboli<mr, (6) 1964;
ld. "Hcrméneutique spirituellc comparée". ln: Er,mos /nhrbuch, nº 33; ld.
"Dt! l't!popée heroique il l'epopée mysliquc". ln: Ernnos /lli1rb11ch, nº:15.
162 Os paradoxos do imaginário
O símbolo é capaz de comunicar os âmbitos incomunica-
dos do inconsciente e do consciente. A relação que estabelece entre
ambos os âmbitos não é de identidade plena ou de abertura total,
mas de sutura relativa. O símbolo é mediação (médium) porque
estabelece um equilíbrio que esclarece o inconsciente por meio
do sentido consciente que ele constitui, porém impregnando com
as potencialidades ignotas do sem-fundo a consciência vigilante.
O símbolo sempre reuda, qualquer que sefn o contexto, 11 u11idadefim-
d11me11t11! de várias regrões do rea!. 101 O sem-fundo humano perma-
nece sempre como abertura. Esta abertura indefinida se abre para
a consciência a modo de imagem (auto-imagem), ou seja, auto-
consciência. Autoconsciência de si e do mundo (alter). Do alter
como diferente de si e do cu como delimitado pela finitude e
apertado pela contingência. Porém o sem-fundo possui uma in-
contida abertura criativa, transcendente, além de todas as deli-
mitações e qualquer definição. Sua densa e insondável comple-
xidade se manifesta paradoxalmente presente e ausente, desco-
nhecida e atuante, ausente e presente, longínqua e atual, fratura-
da e unificadora, aberta para o infinito e apertada no histórico.
O mundo ao qual se re-liga a subjetividade foge conUnua-
mente dela como uma sombra inapreensível. Procura verdades
autênticas, sentidos definitivos, explicações conclusivas que lhe
permitam apropriar-se plenamente dos mistérios que o envol-
vem e penetram. Porém todas as respostas que obtém são, mais
cedo ou mais tarde, relativizadas por outras questões e supera-
das por outros sentidos. Nunca consegue formular um sentido
conclusivo para o real: seu mundo tão próximo sempre resulta
tão distante! Desse modo, o humano resulta antinatural por na-
tureza 103.
Parafraseando o mito bíblico (Gen 3), a fratura humana
expulsou o ser humano do paraíso da harmonia natural. A auto-
consciência abriu seus olhos e o fez perceber a nudez (finitude)
em que se encontrava e da qual anteriormente era desconhece-

102 HIADE, Mircea. Tratado de hh;foria de las n.>11;'{iones. Madri: Instituto de


Estudios Políticos, 1954, p. 385.
103 GEIII.J:N, Arnold. E/ hombre, .s·u nalurn/ezn y su lugar en d mundo. Salamanca:
Sígueme, 1980.
Castor M. M. Bllrfu!omf Ruiz 163
dor. Despertou-o para seu lado trágico, para o dilema do niilis-
mo ou da transcendência. Essa autoconsciência se debate entre
ampliar seus horizontes para um infinito desconhecido ou sub-
mergir sua existência no drama (tragédia) da incompletude per-
manente. Por comer do fruto proibido, foi desligado do paraíso
da harmonia natural. Agora, expulso do paraíso, deverá carre-
gar a fratura interior ao longo de Ioda a sua vida e de todas as
vidas humanas. Deverá comer o pão com o suor de sua utopia,
buscando ansiosamente restituir a unidade perdida ou constituir
uma nova forma de plenitude. Trabalhará com fadiga contínua,
tentando re-ligar-se a um mundo que agora lhe resulta parado-
xalmente próximo e distante. Lançado do paraíso natural para
um mundo sempre por conhecer, foi-lhe conferida uma nova rou-
pagem para cobrir a nudez da sua finitude: o sentido. Foi procla-
mada uma sentença solene: de agora em diontf#lio serti,; mni., como
os outros n111i11ni.,, tu .,eni, 11111 llnti11n! sànboló,_rico.
Ades-ligação ocorrida com a fratura humana só pode com-
pensar-se fugazmente pela rc-ligação simbólica. Esta re-ligação
só voltará a ser plena em duas hipóteses: quando o humano vol-
tar definitivamente dissolvido pela morte para o luímusdc onde
saiu ou ao se transcender de modo definitivo para um infinito
onde possa realizar uma experiência inédita de encontro com o
Absoluto.

Por 1Ílfimo, depois d,• ter instnurndo n v!dnfrenf,, nmorte, efrente n


desordem p.-Í,'055oánl o bom St'!lltdo do equillbrio; depoi, ,ft, ta com-
provildo n,rrn11d1• uniwrsnlidfldi• dos mitos e poemas r instaurado ao
!tomem enq11a11to "homo symbo/kus': o súnbo/o firnte à t'll!ropli1
posil Ivo do 11111ú·rso, erigefi11a/111en ft' o domú1 iodo valor .-11pre1110 e
,•q111libm o 111,;l'er.ço que trn11s('Orrt' com um ser que mio imnscorrl',
ao qual JJ/'rll'flCt' a injiincia l'lerna, a eterna aurorn, e dl'sl'mhoca 1•11-
t/io mmm tcq/imia. '°"

104 Dt:RAND, Gilbert. La irrmgmnod11 s1mbólim. Buenos Aires: Amorrutu, 1971,


p. 125.
A dimensão epifânica do simbólico

Umn sociedade sem poetas e s,'m n11:C;ficos


só conduz no ndrnlnml'!tfo dosa h11111n110.
Juan Goytisolo

Uma das diferenças fundamentais entre o racional e o sim-


bólico reside em que o racional f!}pliai,e o simbólicoimp/ü,1:· O
racional, para conseguir uma compreensão explicativa da reali-
dade, divide-a, disseca-a cm fragmentos analíticos, secando o
vitalismo e a indeterminação que ela encerra. Para conseguir um
sentido de totalidade, o racional constrói sistemas lógicos que
integram numa argumentação fechada coerente e global a diver-
sidade e indeterminação do real. O diferente se uniformiza, o
plural se equipara, o singular se classifica. Definições, classifica-
ções, taxonomias e todo ou qualquer tipo de definiçãCJ analítica
são instrumentalmente inevitáveis, válidos enquanto recursos
lógicos ou pragmáticos, porém eles não caracterizam o único
modo de entender o mundo, nem conseguem definir uma única
forma de verdade.
As pretensões de verdade se associam ao modo das repre-
sentações. Aquilo que a realidade é para nós não é diferente das
representações que fazemos dela. No entanto, a representação
não exaure as possibilidades de ser de cada coisa, não é possível
166 Os pnmdoxos do it1111sh1drío

reduzir o objeto à representação. A realidade possui uma alteri-


dade irredutível à nossa própria hermenêutica ou analítica. É na
co-implicação tensa e produtiva que se realiza a interação entre
Jzermeneuise práxis humanas com a realidade do mundo. Porém
encontramos o ser das coisas nas representações que delas reali-
zamos. As representações não são algo diferente do ser; elas são
as formas, diversas e plurais, em que o ser se manifesta. É o cará-
ter rmlizntivo do real. O modo como n{f{o se npresmffz fl si m1·smo
forma porte de seu próprio ser. 105
Não é possível realizar uma separação dual entre aquilo
que a realidade é, sua natureza ou pretensa essência, e o modo
como ela se apresenta aos nossos sentidos. Toda apresentação é
uma nprcscntação significativa. Os significados socialmente cons-
truídos não são uma segunda realidade, mas a realidade mesma
tal como nós a percebemos. A distinção entre ser e represen lação
resulta, por sua vez, numa indistinção. A realidade só emerge
para nós à medida quf a conjugamos, interpretamos ou repre-
sentamos. Não existe um terreno neutro, nem uma essência ver-
dadeira ou única do real; pelo contrário, persiste sempre o modo
· plural, indefinido e aberto em que a realidade se mostra para
nós. Eis por que podemos afirmar que a realidade tem também
parte do seu ser no representante. Desse modo, a representação
não é uma propriedade do real, mas o modo como as coisas se
manifestam, isto é, uma natureza ep(ftiníca.
O sentido etimológico do verbo grego epi-foi110 é mostrar
ou aparecer. Por sua vez, o verbo fai110 possui uma pluralidade
de sentidos possíveis, tais como: dar à luz, alumiar, fazer brilhar,
acender, mostrar, fazer ver, indicar, assinalar, manifestar. Dado
que o real se mostra de modo aberto, representativo, simbólico,
podemos afirmar, neste sentido, que ele possui um caráter ep[fti-
nico. O simbolismo se implica no ser das coisas, manifestando,
desse modo, uma multiplicidade de sentidos possíveis com que
elas podem se revestir. Isto não quer dizer que exista um conjun-
to definido de sentidos implícitos nas coisas e que nós devemos
desvelá-los. Pelo contrário, é o poder do imaginário que possui a
potencialidade de criar uma variedade de sentidos não-implíci-

105 (;ADAMliR, Hans-Geog. Vt.nt11d y 1Hltodo. Salamanca: Sígueme, 1977, p. 568.


Cnstor M. M. Bnrto!omé Ruiz 167
tos nem naturais para uma mesma coisa. O poder do imaginário
possibilita dar à luz novos sentidos, formulações inéditas para
objetos tradicionais. No entanto, qualquer forma simbólica deve
ter sempre algum tipo de conexão com a alteridade do objeto,
caso contrário não haveria possibilidade de epifania do objeto e
só reslaria um devaneio fulgurante. O símbolo deve possuir:

Em pr1111áro lugar, o aspecto concrefo {smsà 1,,f, úna;:inndo, .ft.ç-llm-


do, de.) do si,_í[nifiamft', emsegundo lugar sr11 cnráfl'r ótimo: é o
mdhor parn evocar (fazer cmrhrcr,; s11grrir, rp!fimiznr, ele.) o S{í[flf~
ficado. Por rí/fimo, o mencionado si,_1;nificndo é, por suo ,1f'Z, algo
impossívd d,, perceber (ve,; tinnghmr, compm'!lder, Ji.r,;urnr, rlc.)
dire1a1111.'11tr°".

A confrontação entre o epifânico e o apocalíptico

Desde uma perspectiva sensualista, os significados já es-


tão implícitos no objeto; cabe ao sujeito o mero trabalho de des-
cobri-los107. Em tal hipótese não existe uma criação real, mas uma
desve!nçíio dos sentidos ocultos ou das verdades implícitas. Isto
nos levaria a admitir que a realidade não possui uma dimensão
epifânica, mas npocnllí1ticn.
A etimologia do verbo grego npo-knlipto remete para os sen-
tidos de descobrir algo que está oculto, desvendar, dar a conhe-
cer o escondido. O substantivo npocnlipsà, tem também o sentido
de revelar ou manifestar algo que está oculto. Desde a perspecti-
va apocalíptica, quem possui a prioridade ou exclusividade de
desvendar o oculto na realidade é o logos. A raciona.lidade é a

106 D1 JRAND, Gilberl. F;g11r,•.< myfli/tll'S d vis,1ges d,, /'orwre. D,• /11 mylocril1i111e à /11
mylhonalyse. Paris: Bcrg, 1979, p. 18.
107 "Na medido ,•m que o smstlfllt:<mo e o positivismo se lim1taram por pni1cípio 110s
dados sensíveis, mio só se.fizeram ce,r:os n•spe1fo 110 simbólico, mas também res-
pnfo ii mesma paceprão, pois elúninoram ;úslamente o mommlo e o motivo ca-
r11ct,nsflco que dr:,·tingue n percepção da mera _çensaçõo e que lhe permlfe ir para
,ilém de.,·t11" CASSIRF.R, Ernst. Fdosefia de las.forma.< simbólicas. México: Fundo
de Cultura Económica, 1976, p. 228.
168 Os paradoxos do imngintirio

única competente para poder decifrar por meio do método analí-


tico ou sintético, dedutiva ou indutivamente, ou por meio de
qualquer outra metodologia, as verdades implícitas no ser das
coisas.
Segundo a concepção epifânica, a realidade não possui um
sentido próprio ou natural; ela é, estritamente, sem-sentido. O sen-
tido é sempre uma criação ontológica do ser humano e não algo
que deve ser meramente encontrado. O ser humano institui epi-
fanicamente a realidade num leque plural e fecundo de possibili-
dades de ser. Na visão apocalíptica, a realidade se esgota e deli-
mita por meio de sua definição e da constmção de verdades, aná-
lises ou sínteses.
Embora apareçam como totalmente contraditórias, as di-
mensões epifânica e apocalíptica do real estão correlacionadas
de modo conflitante, mas não se auto-excluem de forma absolu-
ta. A natureza simbólica cu-implica ambas as dimensões numa
relação concomitante de contrariedade e de necessidade. A me-
todologia analítica, crítica ou sintética própria da dimensão epi-
fânica é um elemento imprescindível na formulação de qualquer
•significado ou na estruturação de qualquer argumentação. Fora
da racionalidade só resta o mundo do absurdo. Porém a raciona-
lidade não existe de modo exclusivo ou prepotente, corno se fos-
se a única forma ou fonte de verdade. Toda racionalidade já é
~ma forma de lzermmeusis, parcial, do real; ela está inserída na
dimensão simbológica por meio da qual o ser humano articula a
fecundidade metafórica do simbólico e o senso pragmático ou
crítico do racional. O racional coexiste imbricado no símbolo e
não pode existir um logos além do mito.
De outro lado, se o simbólico estivesse projetado pela pura
epifania do sentido, levar-nos-ia inexoravelmente ao delírio in-
conseqüente ou a um fanatismo incontrolável. No extremo da
dinâmica só restaria um dualismo esquizóide entre a alucinação
do sentido e a alteridade do real. Romper-se-iam os limites entre
a dimensão mitológica e a mítico-mágica. A criação epifânica de
sentido requer, necessariamente, uma relação mínima ou máxi-
ma, dependendo dos casos, com o objeto ou a realidade signifi-
cada. A produção simbólica remete a uma alteridade do objeto
que resulta irredutível ao sentido, seja na perspectiva idealista
Cnstor M. A1. Bflrtolomé Ruiz 169
ou na realista. Cria o sentido, mas não as coisas. !\'ão é possível
deduzir ou induzir o sentido do interior das coisas, mas não po-
demos reduzir as coisas ao mero significado. Existe uma alteri-
dade que serve de contínua referência para o sentido, e ela se
manifesta de modo aberto, ou seja, epifânico. À medida que o
real possui uma alteridade irredutível ao sentido, podemos loca-
lizar, na realidade, um /ocus mínimo ou insinuante de presença
ou dimensão apocalíptica.
Resta lentar responder a uma questão sempre instigante:
Como podemos discernir se um sentido corresponde ao mundo
mítico-mágico (alucinatório) ou é uma criação epifânica possí-
vel? A resposta para esta questão nem sempre é fácil e nem sem-
pre é possível elucidá-la com clareza. Quantas utopias foram
desconsideradas como tais ao longo da história e pensadas como
meras fantasias ou alucinações e hoje são nossas realidades coti-
dianas. E vice-versa, quantos projetos concebidos como lógicos e
possíveis, hoje os vemos como meras fantasias dos nossos ante-
passados. Essa tensão entre utopia possível e alucinação impos-
sível é (in)solúvel de um modo definitivo; ela constitui o modo
de ser da criação humana. No entanto, a tensão remete a um ponto
de contraste no qual se confrontam as significações socialmente
instituídas e a alteridade do real.
Os sentidos socialmente instituídos não possuem um
hmdamento último de verdade definitiva, mas eles devem con-
trastar-se com a alteridade do real. A alteridade constitui o refe-
rencial que possibilita a criação de sentidos, mas também impõe
os limites pertinentes ou impertinentes à hermenêutica e à prá-
xis humana.
Desse modo, o real se manifesta ao mesmo tempo apocalíp-
tico e epifânico. Apocalíptico, porque possui uma alteridade irre-
dutível que condiciona a criação hermenêutica, impondo limites e
possibilidades às significações sociais. Epifânico, porque se mani-
festa de forma aberta, sem urna delimitação naturalpré-€Stabelecida
e interage com a potencialidade criadora do imaginário pessoal e
social. O imaginário integra ambas as dimensôes e as correlaciona,
seja na produção significativa da práxis humana (sua potenciali-
dade criadora), seja na objetivação, conservação das significações
sociais já constituídas (o poder objetivador do imaginário).
170 o~- paradoxos do li11ngi11drio
A existência de uma certa dimensão apocalíptica do real
coloca uma questão, entre outras, referente à possibilidade de
uma dimensão de esxnton própria do mundo. O esxnton anuncia
uma abertura definitiva para o absolulo. Não podemos pensar
que existe uma teleologia implícita no cosmo nem na história,
pois ela negaria, de falo, a criação humana. Porém a abertura
para uma escatologia aponta na direção da possibilidade de uma
instituição plena de sentido. Essa plenitude de sentido, não ne-
cessariamente, deve ser algo pm:icfinido por uma teleologia ima-
nente na realidade. Precisamente ela pode ser pensada como uma
possibilidade aberta de ser, como a abertura para uma plenitude
de sentido que está por ser feita. Aqui reside uma das originali-
dades possíveis de serem pensadas ao conceber a realidade numa
cu-implicação epifânico-apocalíptica. Essa co-refcrência cu-im-
plicante da dimensão epifânico-apocalíptica do real nos permite
superar o conflito secular e dualista enlre imanentismo ou trans-
cendentalismo. Podemos pensar e refazer a tensão entre a liber-
dade criadora huma~a e a necessidade teleológica, resolvendo
ambas numa práxis humana com abertura real para um f'5Xt1fo11
não definido, mas possível de alcrmç:nr, 1i11ngti111re criar.
A indeterminação do real e o potencial criador do imagi-
nário tencionam a criação socioistórica para um horizonte onde
a plenitude adquire um sentido de valor supremo108 • Ao afirmar
de modo irrenunciável a criação humana, não necessariamente
nos vemos na obrigação de negar a possibilidade da abertura
para um sentido p!en!ficnnte dela. Sentido que não está totalmen-
te nela, mas que remete à dimensão escatológica que a alteridade
do real propõe. A criação humana, no sentido ontológico do ter-
mo, é possível de encontro e em abertura para um absoluto que
não o predetermina, mas que a insinua como possibilidade de ser
e em abertura para um sentido pleno; sentido que desintegra a
desarmonia natural perdida na fratura humana, reintegrando-a
ou saciando-a na comum-união e na convivência do infinito.

108 UUJ{AND, Gilbert. Ln imngi11nción s1i11bcilrá1. Buenos Aires: Amormlu, 1971,


p. 125.
Castor M. M. Bnrtolomé Ruiz 171
...porqut' o .-;ímbolo m'io 1' uma mem s1,tt1li::t1fÕO ouf1111daçifo r1rúJfrrí-
rir1 d,, s{i;;nos, mas prl'ssupõl' 1111r nexo metafísico do z,,:-;íz,d com o
im11:,ívd. Qw a co1111'111plap10 visível e o s(;nifimdo invisível 11iio
pos517111 se s,pamr uma da outrn, l'Slll coim,dhrd,1 d11s d1111s 1·:;fi·ms é
algo úu•n•flft> a todas as farmas de culto 1d1j;ioso. E issv mesmo o
aproxima do giro pnm o 1•stltko. u,•

Aco-implicação epifânico-escatolúgica do real preanuncia


a possibilidade hierofânica do mundo110• O sagrado não é uma
negação do humano, nem supõe sua alienação. A hierofania re-
vela uma possibilidade inédita do real, ela aponta para um senti-
do viável e provável enquanto possibilita desabrochar o mundo
para um infinito criador que potencia a criação socioistórica. Desse
modo, a práxis social, a criação humana e a realidade como um
todo carregam-se numa densidade de sentido que transcende os
limites espaciotemporais e desenham uma dimensão que na sua
plenitude é teefiinica.

Seja estrítka ou dli1a1111á1mmtt', a teqjn111í1 mesma 1•sfti e11m111i11ha-


da para a d1àkticn. D1~ tal modo l assim que n dinlétka, I' o sh11bolo
q1w f a d1àl/licn ,•m alo, fmslio crindom, niio pode to/1•mr r1 ab.-,fm-
(170 dr 11111 fim. Dito de outro modo, n n11tropologit1 simbólim
1a-011sfit11i em todns suas tensões n11tngónict1s 1111111 tt'Ofimin. 111

109 GADAMF.R, Hans-Gerog. Vrrdnd y Método. Salamanca: Síguemc, 1988, p. 111.


110 .RJCOEL'R, Paul. "Lc conflit dcs hcrméneutiques: épistémologie d~,s
i.nlerprélalions". ln: ld. Cllhiers l11fernatio11,111x de Symbolism,~ n. 1, 1962.
111 UlJRA:S.lJ, Gilbcrt. Ln i111ng111t1a611 simhólict1. Buenos Aires: Amorrutu, 1971,
p. 139.
A redundância e inadequação do simbólico

Com 11 pl11m/idi1dt:' do:i lrmllt'llS


t•stri coloa1d11 a p/11mbd11de das sign!fim,;õc:,~

O simbólico não se deixa prender a definições conclusi-


vas. Nossa aproximação deverá envolvê-lo desde uma multipli-
cidade de perspectivas, cientes de que sempre é possível acres-
centar urna nova compreensão ou sugerir um novo olhar.
O simbolismo é a exuberância de possibilidades de ser. Um
mesmo objeto, pela dimensão epifânica que o caracteriza, pode
ser significado de forma redundante. De igual modo, toda repre-
sentação é essencialmente inadequada à ~alidade que representa,
pois ela não manifesta a plenitude do real, nem esgota todas as
suas possibilidades de compreensão. A potencialidade cri.adora do
imaginárioepifaniza o real numa redundância de significados que,
em muitos aspectos, são coincidentes e, em outros, divergentes.
A redundância significativa do simbólico, longe de ser tau-
tológica, enriquece as possibilidades compreensivas e estimula a
diversidade da práxis. A redundância simbólica alcança um de
seus momentos álgidos nos !>'Ímbolos ritunú;. O simbolismo rih1al
repete os mesmos gestos uma e outra vez, porém sempre impri-
me uma novidade significativa tanto em quem os realiza como
em quem os interpreta. O símbolo deve ser compreendido:
174 Os pnmdo.ws do linngrirrírio
--------------
Como 11111 s;g,10 que rnnete n 11m s~,;:11ijimdo i!1tfrh1d e ilwisíPe/, ,,
por isso dn 1e ellcr1nu1r concrdam,,nfr, 1':;fa ad1•q11ariio, sr' /!te czmii', e
fm:é-lo mt'dianfr o jogo dt' redundrincias mllicas, rituais,
ti.mwgrnjicas, ff"" corrigem ,, compll'111e11tnm i11esgotn,•e!mt•11ft• n
i11ad,,q11aç110. 112

A redundância é também uma característica das relaçôcs


lingüísticas, pois habitualmente as mesmas formas lingüísticas
podem expressar significados coincidentes, semelhantes, sinóni-
mos, parónimos, análogos ou até divergentes. Os símbolos ico-
nográficos são outro exemplo de redundância simbólica. Eles, que
são reproduzidos de modo permanente, introduzem significa-
ções diferenciadas, dependendo do contexto, das pessoas, da in-
tencionalidade, etc.
A redundância simbólica expressa a radical inadequação
existente entre a representação e a realidade. A adequação plena
equivaleria à exaustão ú,ltima da sua natureza. Se conseguirmos
uma adequação tola] entre representação e realidade, alcançaría-
mos o sonhado mundo da verdade natural, objetiva, definitiva,
única. Mas isso não ocorre. A inadequação simbólica remete à
necessidade permanente que o ser humano tem de produzir sen-
tidos para tudo o que toca. A fratura que o humanizou, o dt'sade-
quou do mundo natural. O mundo é para ele sempre inadequa-
damente compreendido. Precisa re-nomcá-lo de fonna redundan-
te, e mesmo assim sua altcridadc resulta sempre irredutível a
qualquer forma de produção significativa. Desencaixado do
mundo, o ser humano recria-o permanentemente na procura de
um encaixe harmonioso entre suas expectativas vitais e as possi-
bilidades naturais de realizá-las.
A inadequação simbológica impossibilita a objetividade
total. O simbolismo - seja metáfora ou fórmula científica, signo
ou mecanismo tecnológico - nunca alcança o objeto. Sempre há
um plus de significação, que pode ser pensado ou criado. No en-
tanto, o simbolismo cria sentidos que poderíamos denominar de
essências objetivas, entendendo estas como formas possíveis do

112 DU!v\'.'.LJ, Cilbert. L'im11gin111lim s_11mboliq11e. Paris: Prcsscs Univcrsitaires dP


France, 1984, p. 21.
Castor M. M. Bnrto!omé Ruiz 175
objeto ser. O simbolismo revela sempre novas possibilidades ob-
jetivas do objeto, porém o símbolo nunca será objetivo porque
não se exaure no objeto, nem revela uma única ou verdadeira
essência objetiva. Os diversos significados são objetividades pos-
síveis do objeto. Contudo as objetividades simbólicas não podem
ser reduzidas a uma única objetividade. Não existe uma objetivi-
dade única do objeto. A objetividade simbólica é aberta e opera
de modo criativo.

O símbolo d,,5ig11n n i11ndf'q11nçíio do dndo dn co11sah1cin no s,'r IJllf'


umn co11scif11cin nect'ssllndn eJim11i1fn do ser que lhe
t'1f' simboli::n,
fal!n, do ser que St' flll1tnc1i1 llfl própniT predsíio com que l vivrdn n
sun n11sà1d11, uma pothrcin pn'St'11fe no ato. 113

A arbitrariedade do signo e o parabolismo do símbolo

A inadequação se manifesta na não-linenrídndedo simbóli-


co e no fato de que este não é pura nrbitrnriednde. Se o símbolo
fosse pura arbitrariedade, poderíamos afirmar uma total adequa-
ção entre o símbolo e o significado. Desse modo, o símbolo fica-
ria reduzido a mero signo e o signo identificado com uma cria-
ção arbitrária na qual o sentido se ajusta de forma plena ao signi-
ficante114. Feita a redução do símbolo a um signo arbitrário, este
só pode ser compreendido como pura linearidade. O signo arbi-
trário anula a pluridimensionalidade do simbólico e se transfor-
ma numa existência plana. Seu desenvolvimento se realiza num
tempo linear do qual toma as características da extensão, com-
preensão e durabilidade. Sendo assim, o signo só pode ser inter-
pretado de um modo linear e não plural. Ele encerra uiii. signifi-
cado preciso e único, no qual se realiza a adequação plena entre
o signo e o sentido expresso.
Contudo o símbolo não realiza uma definição arbitrária
do sentido, senão que o sentido se manifesta por meio do símbo-

113 LEVINAS, Emmanuel. lófn/Jd11de oil}i11rlo. Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 185.
114 SAUSSl:RE, Ferdinand. Cur.~o de lingülsticn ,fenernl. Buenos Aires: Losada,
1978, p. 130.
176 Os paradoxos do Íl!lfl,'?Ímirio

lo. O significante não se esvazia no sentido convencionalmente


definido; pelo contrário, ele germina numa abertura plural e in-
definida de possibilidades de sentido. Não é possível reduzir de
modo arbitrário o símbolo a mero signo, pois aquele sempre guar-
da uma reserva significativa pronta para abrir-se numa nova gama
de sibrnificados. Entre significante e significado existe uma l{mvi-
dez siinbólica. A percepção sensível impregna as coisas com signi-
ficados intuitivos, que não estão dados de modo imediato aos
sentidos nem se encontram de forma evidente no objeto ou no
signo:

A percepção mesnrrr rrdquirt' em virtude dt' S/1(7 própria ,•strufl1r11s;:iio


i,11n,u,nte 11111a espécie de arficu/açiio espiritual, n qunl, em si 11//'sma
ordeundn, perf('JICt' fambán fl umn certa ordem de sentido. Em nr-
tude de sua afua/i:::nçiio, pkmlude e vi!nltdade é no mesmo lr'mpo
vida no s(í[nifkndo. 115

As possibilidades da inadequação simbólica se manifes-


tam de modo privilegiado por meio de sua dimensão parobólim.
· Segundo a etimologia do termo grego, o prefixo pnm indica uma
intensidade d irígida a algo que não consegue alcançar plenamen-
te. A dimensão parabólica libera o símbolo da mera apresentação
do signo e lhe permite transbordar-se pnm uma abertura indefi-
nida de significados. Os signos possuem um certo canHer arbi-
trário, porém esta arbitrariedade está cercada pelo próprio signi-
ficado. Isto quer dizer que o símbolo não pode reapresentar em
imagens aquilo que significa. Seu caráter parabólico lhe confere
um sentido transcendente ao objeto significado. De certo modo, a
dimensão parabólica permite que o símbolo seja uma trnnefi,'?ura-
ção de um objeto específico. O simbólico consegue figurar de for-
mas diversas o significa d o de um elemento, transfigurando, des-
se modo, a objetividade de qualquer objeto. O significante do
objeto está carregado de concreção e virtualidade, porém a di-
mensão parabólica permite fazer aparl'cer, no objeto, sentidos não-
aparentes nem previamente estabelecidos pela arbitrariedade. A

115 Ernst. Filosojiá di! /,;sfçm/fls sú11bólia1s. ;\.11c"xico: Fondo de Cultura


CASSIRER,
Económica, 1976, p. 239.
Castor M M Bnrtolomé Ruiz 177
dimensão parabólica do símbolo anula a arbitrariedade do sig-
no, manifestando sentidos anteriormente desconhecidos pela pura
materialidade ou predefinidos pelos convencionalismos.
As chamadas parábolas evangélicas constituem um exem-
plo ilustrativo do caráter pambólico dos símbolos. Se tomarmos o
exemplo da significação "Reino de Deus", ela excede, em senti-
do, a qualquer significante usado para denotá-la. Um grão de
mostarda, um pouco de fermento, a semente de trigo ou a luz de
uma lâmpada não possuem cm si mesmos nenhum outro sentido
além da estrita materialidade daquilo que são. Aferrados à mera
concrcção dos sib'Ilificantcs, resulta impossível estabelecer um do
comum entre todos eles. Entretanto, o caráter parabólico do sím-
bolo permite inserir, nesses significantes, um sentido que trans-
cende radicalmente a materialidade dos objetos. ü simbolismo
ep(jimizn neles um sentido que nunca manifestariam por si mes-
mos. A dimensão parabólica permite a produção de novos signi-
ficados, que transfiguram os objetos com novos olhares. Impreg-
na-os de novas figurações, fazendo-os portadores de sentidos que
superam qualquer arbitrariedade predefinida: O símbolo é uma
fiiurn que vale mio p1n·,~·am,'11fe por si mesma, po,~· então niio seria
f;IÍ11/Jolo, ma!>· mediante dn mesmn116 •
A trama do símbolo nunca se tece no nível do logos, ou
seja, o da consciência explícita. Se assim fosse, não existiria um
sentido figurado ou possível em relação a um sentido próprio. O
símbolo se trama nos porões do sem-fundo ltumnno. É na indeter-
minação profunda do semfundo que se gesta a gravidez simbóli-
ca por meio da qual o imaginário se manifesta. O humano fratu-
rado humaniza o mundo por meio da práxis significativa e se
1111111dm1izn ao inserir-se na alteridade irredutível do mundo. O
imaginário emerge, impregnando, de modo simbológico;o mun-
do que o rodeia. Por isso, todo símbolo necessita ser decifrado de
modo lógico, a fim de entender os sentidos nele implicados, em-
bora nunca se consiga explicar logicamente as potencialidades
que ele incorpora.

116 DLTRAND, Gilbert. !111n111gim1túín simhâlú,1. Buenos Aires: Amorrutu, 1971,


p. 15.
178 Os paradoxos do imaginário

O simbólico não explica, mas implica; não explicita, mas


insere. Na r:rplicaçiio se detém o fluxo do ser, limita-se o próprio
ser; na implímçiio se contém o ser como possibilidade e abertura
de significado. Na e:rpliclfarõo se limita o ser às potencialidades
que ele lem para existir; na inserf-ÕO se condmSllm as possibilida-
des do ser, desabrochando-se de modo criativo por meio das rea-
lizações socioistóricas.
No limite, a e:rplicap'io estabelece o dualismo. Ela separa,
diferencia, contrapõe. Sua lógica busca a verdade naturnl, o que
equivale a afirmar aquilo que se ajusta à sua definição de verda-
de e rejeitar o diferente. A ímplicaçiio mantém a coexistência da
diversidade, a coabitabilidade com o diferente, a co-implicação
dos contrários que divergem e, no entanto, se necessitam. A im-
plicação não nega ou exclui uma das partes; afirma ambas. Afir-
ma a tensão como elemento referencial da ànplicapio simbólica.
Enquanto a e:rplicnçiio lógico-formal delimita, a linplilwf-ÕO
simbólica religa. O simpólico é a grande mediação que rejunta o
diverso, religa o diferente, reúne o distante. A implicação simbó-
lica realiza urna junção entre o Hem-fundo ltmnn110 frnturndo e a al-
·teridade irredutível do mundo. É a mediação ou médium que
imbrica - de modo inseparável e sem fusão - sujeito-e-mundo. A
função simbólica é co11junctio ou união, onde dois elementos se
fundem sinteticamente num pensamento simboliznnte.m

117 JlrN<;, l'ARLG. E/ lrombrr y su.s símbolos. Madrid: Aguilar, 1969.


A co-implicação simbólica

Sem o i11gr,·diente dn loucura


não pock existir nt'nhum prazer.
Erasmo de Rotterdam

O simbólico sutura a fratura do sujeito e o mundo. Imbri-


ca-os num modo de relacionamento em que os contrários não se
excluem de modo absoluto, mas seco-implicam de forma neces-
sária.
No sem-fundo humano, a contradição se dilui, e o simbo-
lismo, ao manifestar-se, integra os contrários numa correlação
conflitante. O logos define com nitidez os contornos dos elemen-
tos, analisa-os e classifica-os por meio da separação e diferencia-
ção. Os contrários se excluem, por definição. No simbólico, os
contrários se implicam por necessidade. Amor-ódio, belo-feio,
frio-quente, homem-mulher, pai-mãe, guerra-paz, etc. na lógica
da identidade são conceitos que se excluem por definição. No
entanto, para o simbolismo, a existência de cada um é possível à
medida que se co-implica no outro. Eles coexistem de modo co-
implicado. Simbolicamente não é possível pensar só na existên-
cia de um dos elementos, pois no momento em que ele se consti-
tui, seu contrário emerge co-implicado nele.
180 Os pflmdoxos do timzsimírio
------------------
Estamos perante uma das mú 1tiplas dimensões hermenêu-
ticas do simbólico. Hermes confere ao simbólico o dom de ser
um intérprete que nos interpreta ao interpretarmos a realidade.
Ao interpretarmos o mundo, co-implicamo-nos na interpretação,
consliluindo-nos sujeitos interpretantes e objetos da interpreta-
ção. Nossa relação com o mundo é mediada sempre pela signifi-
cação que damos a ele. Na ação interpretativa não só nos apro-
priamos dele como nosso mundo, senão que nos produzimos
como subjetividade mundanizada. O simbolismo é o modo de
nos relacionar com o mundo e a forma com que estruturamos
nossa subjetividade. Ao interpretarmos a realidade, o simbólico
nos interpenetra e nos implica no seu próprio modo de ser. Não
existe um lugar neutro desde o qual possamos simbolizar o mun-
do. No ato de significar o mundo, criamo-nos como sujeitos. Não
só explicamos o mundo de modo simbólico, senão que na dação
de sentido nos co-implicamos nele. O simbolismo nos insere no
mundo que criamos, pr9duzimos nossa identidade nele e o iden-
tificamos como nosso mundo. Por meio do simbolismo infundi-
mos um 11111i1111 nas coisas inanimadas, animando um mundo apa-
Tentemente inumano.
Essa abertura criativa do simbólico se manifesta de modo
ambíguo. A ambigüidade é usada como argumento acusativo
contra o simbólico; acusa-o de fragilidade. No entanto a argu-
mentação se mostra pela solidez do discernimento, a ambigüida-
de do simbólico insinua uma inconsistência que o situa em infe-
rioridade de condições perante o raciocínio lógico claro e distin-
to, como diria Descartes. Essa inconsistência débil é aparente, pois
ela integra um.a potencialidade específica do simbólico, que con-
siste em ser mediador entre a realidade e o sentido. ~capacida9e
de co-implicar os contrários permite ao simbólico ligar de modo
transitivo o particular-universal, a subjetividade-mundo, a ima-
nência-transcendência, etc. A transitividade co-implicante afir-
ma cada um dos pólos, confirmando concomitantemente sua se-
paração diferenciada e sua imbricação necessária.
Hermes, mediador entre os deuses e os humanos, realiza o
diálogo entre o mundo invisível dos sentidos e o visível dos obje-
tos. Sua função intermediária e interpretativa possibilita a rela-
ção entre os dois mundos que, de outro modo, permaneceriam
Castor M. M. Bnrtoloml Ruiz 181
incomunicáveis./Iermes represmtn n única po.,;sibilliindt' dt' ta o e.r-
periê11cia do pensamento mat:, anfl/?o como ntividndt' nutónomn dn que
se é objeto.m Só por meio da mediação de Hermes, o ser humano
consegue transcender o imediatismo da facticidade e reproduzi-
la criativamente.

A transitividade da imagem (simbólica)


e a persistência da definição (lógica)

Enquanto a dinâmica da racionalidade se realiza priorita-


riamente por meio do logos, o simbólico se desenvolve princi-
palmente por meio da imagem. O logos busca determinar de
modo conclusivo a realidade; a imagem provoca uma abertura
indefinida de sentidos. A imagem é produção significativa; o lo-
gos é configuração explicativa. A imagem implica uma plurali-
dade de sentidos; o logos os separa em definições precisas. A
imagem flui como indeterminação radical; o logos fixa os limites
precisos por onde deve transcorrer o pensamento e até onde lhe
é permitido chegar.

Com ns imagens e os símbolos se persuadi', mas ,rii{I si' dm1011sfrn.


P(lr ,:,so se tem tanto horror ns imagens e nos stí11bo!os 110 campo da
aéncia, poi, nele niio se pretende co11ve11a'r JTt'lll fazer algo verossí-
rm!, sl.'niio q11l' p<'lo contrdrio, si• pnjáe suscitar n mais.fria desco11-
1

fin11çn, ntirda qu<' sq'a só com a forma de 1'.rpn•sMo e da nudez das


paredi'S, porque n desccmjinnfn é o j1111da111mto pni1dpa! da cY'rfe-
za.119

Embora estejamos emaranhados pela complexidade con-


traditória com que se relacionam logos e símbolo, não podemos
pensar no trunfo de um dos pólos, apostando no desaparecimen-
to ou anulação do outro. A implicação simbólica correlaciona, de
modo necessário, ambas as dimensões do humano. Não é preci-

118 JI.J)\G, Carl. G. Símbolos de tnmsformndó11. Barcelona: Paidós, 1982, p. 44.


119 NIF.17!iC:HE, fricdrid1. O mrr1111/tn11/e e .<un sombm. Aforismo 145.
182 Os paradoxo., do imasinório
so, nem possível, anular a divergência, pois ela é parte constitu-
tiva da tensão inerente à criação humana. Ambas as dimensões
(razão-símbolo, logos-imagem) existem co-implicadas e estão co-
referidas na sua existência e nas suas dinâmicas. A práxis huma-
na tem de afirmar ambas as dimensões, confirmando a tensão
inerente que as imbrica. implicar a imaginação no logos e expli-
car a imaginação mediante a razão. Transitividade co-implicante
que confirma essencialmente: somos um diálogo (Hõlderlin).
O símbolo, sem o logos, se transforma num efêmero trans-
curso de imagens que transitam de modo fugaz e irrelevante. O
logos, sem o símbolo, degenera numa estrutura vazia de sentido,
impotente na sua rigidez conceituai. Essa tensão tem muitos des-
dobramentos; uma dessas dobras aparece ao pensar imaginati-
vamente a c_ategoria de musnlidndc.
Na hermenêutica simbólica, a noção de causalidade é per-
cebida de modo diferente à estrila causalidade lógica. A herme-
nêutica simbólica não nega nem invalida a noção de causalida-
de, mas a relativiza e amplia à medida que a entende como algo
relacional e interpretativo. A causalidade está, conseqüentemen-
'tc, submetida ao processo permanente da desconstrução-criação.
Para o simbólico basta que exista uma semelhança entre as coisas
ou uma mera coincidência para poder estabelecer relaçõescasu-
ais. Por exemplo, para o simbólico é suficiente que entre dqis ele-
mentos haja uma contigüidade no espaço ou no tempo; isso pos-
sibilitará estabelecer conexões entre as coisas. Para o simbólico, o
~wsualpode chegar também a ser uma relação cnusnl. O causal e o
casual também estão implicados no modo de interpretar a reali-
dade. A causalidade lógica deve muito à casualidade interpreta-
tiva.
Um exemplo do que estamos comentando, encontramos
nas investigações e teorias do prêmio Nobel de medicina Ramón
y Cajal sobre a unidade funcional e independente do neurônio e
das estmturas do sistema nervoso de todas as espécies animais,
incluindo as do ser humano. Essas mesmas estruturas e imagens
foram observadas muitas vezes no microscópio durante décadas
por outros cientistas muito eminentes, mas nunca tinham sido
titlerpretndtisa.o modo como fez Ramón y Cajal. O elemento dife-
renciador de suas contribuições para a ciência neurológica não
Castor MM. Bnrto/omé Ruiz 183
reside em que viu coisas que outros não tinham encontrado, mas
em que ele imaginou uma relação diferente entre as ramificações
neuronais. foi o potencial criador do imaginário que imaginou
uma apresentação diferente da comumenle conhecida, e isto pos-
sibilitou que se transformasse numa representação inédita para
a ciência. ~mera empiria mostra faclicidades sem sentido, o ima-
ginário constrói os sentidos possíveis. Muitas pessoas viram cair
maçãs das árvores antes de Newton, mas foi um estouro imagi-
nativo que provocou a relação entre a maçã e a teoria gravitacio-
nal.
Desde a perspectiva simbólica, a categoria de causalidade
está impregnada, também, pela sincronicidade. Esta pode ser
compreendida como coerência a-causal. Desse modo, podemos
contrapor a uma visão evolutiva e linear da história uma certa
dimensão sincrônica. Acontecimentos separados por séculos po-
dem ter uma certa contemporaneidade. O passado pode mani-
festar-se no presente de modo atuante por meio da interpretação
do acontecido. Por sua vez, o presente já está no futuro por ele
condicionado, e o futuro pode ser antecipado ativamente no modo
como se compreende o presente. O simbólico possibilita um sen-
tido correspondente que sincroniza ativamente as diversas di-
mensões do lempo 120 • O raciocínio lógico situa os fatos na distân-
cia, a implicação simbólica aproxima o passado do presente e o
incorpora como vivência atual. O simbólico tem a virtualidade
c;le presentificar o acontecido e atualizar o porvir. O passado se
atualiza como memória efetiva e afetiva que remove a vivência
do presente e ilumina a prática. O futuro se incorpora no presen-
te como expectativa que motiva as ações cotidianas; ao imagi-
narmos o porvir, atualizamos o futuro no presente e direciona-
mos nossa prática segundo o futuro imaginado. O futuro se faz
presente na motivação e na direção conferida à prática. A expli-
cação lógica separa e diferencia a temporalidade em passado,

120 DU{AND, Gilbert. F(rures mytiques et m~<agf:, de /'oeuv/1.'. De ln mythocrdii/11<' à


la mythana~vsl'. París: Berg, 1979, p. 300; ld. Scie11ce de /'l1omme t'f traditio11.
Le nouvel ôprif ,111thropologiq11e. París: Berg, 1979, pl66. Sobre a dimensão
da sincronicidade ver também: JIJNC, C,\l<L G. Úl intnprdacrô11 de la 11at11rnkza
y de /11 psique. Barcelona: Paidós, 1982.
184 Os pamdo.ros do imasinrfrio
presente e futuro, como tempos distintos e incomunicáveis; a
hermenêutica simbólica implica com uma certa sincronicidadc
na vivência do presente os fatos acontecidos e o futuro imagina-
do.
Um outro aspecto em que podemos identificar a diferença
co-implicante entre símbolo e logos reside precisamente no modo
de se relacionar com a realidade. O logos científico decompôc-a
analiticamente e a recompõe sinteticamente segundo premissas
teóricas explicativas e definitórias. A consciência simbólica des-
taca a unidade indissolúvel em que se integram todos os elemen-
tos, formando a totalidade de um objeto. O logos recebe os dados
dos sentidos como elementos a serem definidos, analisados; o
simbólico integra os dados da sensibilidade numa unidade sig-
nificativa, constituindo uma plenitude de sentido. A racional ida-
de científica procura leis que relacionem e expliquem ª~_regula-
ridades dos elementos do modo mais pleno possível; o simbólico
impregna significativamente cada um dos fenômenos e os singu-
lariza, tornando-os irr~petíveis.
A co-implicação entre logos e simbolismo se espraia por
• meio dos sinuosos processos históricos e antropológicos pelos
quais ambos se configuram. Se tomarmos como referencial o
método empírico, percebemos que ele parte de casos particula-
res para extrair axiomas primeiramente particulares, para depois,
a partir destes, construir generalidades até confeccionar leis uni-
versais. Ç) saber sobre uma coisa é sempre o conhecimento de
suas qualidades; determinar sob que condições se realiza uma
qualidade significa determinar as causas dessa qualidade. Para
o pensamento científico, o conhecimento verdadeiro se identifi-
ca com o conhecimento das causas. Essa percepção nada mais é
do que uma forma valora tiva da realidade, que estabelece arbi-
trariamente a dimensão funcional ou instn1mental como a me-
lhor, a mais importante ou a verdadeira. A_perspectiva científica
procura um conhecer para dominar a natureza por meio da téc-
nica. Estamos, pois, perante uma perspectiva interpretativa.

l/111 ldstorimior perspicaz, observando um caso ddssico de


rt'ortá1la(tio da ahrcril por mudrmça de pmml~fm11, desa,·v,·11-0 rr-
a•11fl'me11ft' como tomar o r,'Vt'r.-o d11 medalha, proc,•sso que ('flll()fl't'
Castor M. M. Bnrtoloml Ruíz 185
"mamjmlnr" o lllfSmo ronjtmfo de dndos que n11feriom1mte, 111,1s
estr,befeü,11do nrlrt' l'ks um novo s1~,temn de relações, o,gnnizndo a
partir dr um quadro dt' nji-rt1naá difáenft•. 121

As perspectivas hermenêuticas do saber científico se ampli-


am se pensarmos que a causalidade formulada pelo pensamento
empírico não se explica pela relação de totalidade dos objetos da-
dos, mas porque cm cada um dos objetos se diferenciam e definem
alguns elementos. Estes elementos, por sua vez, permitem genera-
lizar fenômenos que se expressam na fonna de leis ou regras uni-
versais. Porém todas as magnih1des, variáveis ou leis devem ser
simbolizadas como fórmulas. Nenhuma dessas magnitudcs, variá-
veis ou leis é percebida de modo imediato pelas impressões senso-
riais; elas não se encontram nos objetos, nem se apreciam nos fe-
nômenos como se fossem dados evidentes. Todas as fórmulas são
formas representativas (simbólicas), criadas pelo imaginário. Elas
foram criadas para interpretar de modo explicativo (lógico) a rea-
lidade. A própria linguagem matemática nada mais é do que um
complexo sistema simbólico, cstntturado na forma de lin1:,ruagem
denotativa. !\;este sentido, as formas simbólicas da ciência, sua lin-
guagem, são significações sociais submetidas aos processos socio-
istóricos de criação e desconstrução.
Desde ambas as perspectivas, a objetividade do saber cientí-
fico nada mais é do que uma significação simbólica da realidade,
uma perspectiva compreensiva, uma forma de verdade. Um olhar
esgueirado ou fronta I, mas que não invalida outra'i perspectivas nem
outros modos de construir uma pluralidade de verdades sobn:' um
mesmo objeto ou fato. A perspectiva científica permite que nos apro-
ximemos simbolicamente de objetos nahlralmente distantes. A ci-
ência está mediada pelo simbolismo em vários aspectos.Vejamos al-
guns exemplos: Qual é a relação existente entre a queda de uma
pedra, a lua, as marés e os movimentos dos astros? Na aparência

121 KUH-.;,'fomas. A estrufrmr d11., remlu{Ô!',, cimtijíà1.<. São Paulo: Pt:rspectiva,


1987, p.116. Sobre o debate cm torno da teoria e história da ciência entre
Thomas Kuhn e Imrc Lakatos, cf. rr.iAs, Norhert. "T.,oría de la ciencia e
historia de la ciencia ". In: Id. Co11oá1111á1l0 y poder. 1'1adri: La pique ta, 1994,
p. 167-194.
186
-------
O.,:; pnmdoxos do imaginário
------ -------
não há nenhuma relação, porém a lei gravitacional interligou todos
esses fenômenos numa única relação causal, aproximou-os numa
causalidade semelhante. Qual era a relação existente entre as for-
mas vegetais, animais e ser humano antes da teoria da evolução?
Temos de reconhecer que mínima, porém a noção de evolução rela-
cionou causalmente todas as formas vivas e as fez interdependen-
tes. Aqueles que o simbolismo pré-científico compreendia como in-
dependentes foram interligados simbolicamente por uma teoria ci-
entífica corno semelhantes. O contrário também acontece: elemen-
tos relacionados pelo senso comum foram desconstruídos simboli-
camente por um saber científico. Um exemplo disso encontramos
no sentido de responsabilidade absoluta que nas sociedades tradici-
onais era atribuído ao réu num tribunal. A psicanálise e a sociologia
introduziram variáveis que mostraram que o ser humano está inter-
namente fragmentado e externamente condicionado. Isso desc011S-
trói o simbolismo da unidade indivisível do sujeito e a responsabili-
dade absoluta de suas as;ões.
A co-implicação do símbolo e do logos possibilita que a for-
mulação de uma lei ou de uma teoria científica unifique elementos
· distintos ou separe os semelhantes, permite relacionar coisas apa-
rentemente desconexas e diferenciar aquilo que parece único.
O símbolo não é um mero resultado da experiência; ele a
configura e se implica nela. A cu-implicação hermenêutica do sim-
bólico com a prática humana supera o dualismo gnosiõlógico
secular entre conhecimento sensível e inteligível. Sentidos e intci-
ligência estão impregnados pela dimensão hermenêutica. A pró-
pria oposição de teoria e práxis é superada por meio da correla-
ção dialética que o simbolismo estabelece entre ambas. Toda prá-
xis surge no seio de uma trama significativa herdada e é por ela
fortemente condicionada. Mas a práxis da pessoa e da sociedade
incide .amplamente no modo de ser ou suas representações. A
práxis condiciona amplamente o lipo de significados que se esta-
belecem. A ltem,meusi:, é conc;truída a partir de sua re(l)ação dia-
lética com a práxis. A função co-implicante do simbólico se ma-
nifesta 110 ver como que co-implica ser (/11/ coiso) e não-sê (lo). 122

122 mcoi:ui.:, Paul. ú1 Mdd.fóm m1~1. Madri: Cristiandad, 1982.


Castor M M Bnrto/omé Ruiz 187
Quando se pretende impor a lógica da identidade sobre o
simbolismo, produz-se a identificação entre o símbolo e o stinboh-
zndo. Essa identificação tem pretensão de absolutismo e se carac-
teriza por negar a possibilidade de novas formas compreensivas
do símbolo. Estamos perante o dogmatismo, que religiosamente
se traduz numa intolerância resultante da apropriação absoluta
de Deus e politicamente desemboca na ditadura de quem se pen-
sa possuidor das verdades únicas. No sentido inverso, se apli-
carmos o absolutismo do simbólico e anularmos a lógica dora-
zoável, degeneraremos num fanatismo social ou num sectarismo
religioso. Dogmatismo e sectarismo, ditadura ou fanatismo per-
passam quadros trágicos da história humana. Com as variáveis
correspondentes às diversas conjunturas históricas, a tragicomé-
dia do humano representa um cenário típico onde o roteiro con-
clui na representação de dogmatismos lógicos e fanatismos irra-
cionais. O humano suficientemente humano propõe a afirmação
dos extremos, sem vias intermediárias nem sínteses plenas. So-
mos desafiados a viver em tensão simbológica permanente para
criar o humano que podemos ser. Somos um húmus nnimndo, um
SIJll!bolon fraturado. Humanizamos a terra para animar nossa vida
ao tempo que niuntamos o logos e a imagem.

O símbolo e.tpressa a rmlidade partida, dimidíada flt, 110550 111111uio


em co-imp/ú:açno ,m:,tka como 51'II outro Indo, parti' ou Ji:,sum por
onde o desejo 011/0/ó,_<?ú:o insl'rido 1111 sim/Jolosin md1à1/ de nossa rl'-
11/rdade ,:o,nparttda... Dmo111ri111111os 11 ess,•fimdo (só simbolimmen-
Ü' percl'ptíwl) N11111,•111, co-implic1111do 1111 sua llrdume ou textum
tnnlo o numinnl ou m11111i,050 (011 sngrndo ou místico) como o
11om11l't1al ou noumhui:o (o onfo-lógico). 123

O simbólico produz um sentido que, por ser co-implicante,


não procede nunca por abstração, mas por relação. O símbolo não
possui o olhar analítico que abstrai conclusões; ele refere os obje-
tos de modo relacional, co-implicando a plurissignificação de sen-

123 ORIIZ-O~b, Andrés. Lns dcwes simbólú-ns de mm;frn culturn. Barn,lona:


Anthropos, 1993, p. 61. Sobrlc' o conceito de Nmnem como experiÉ'ncia da
dinvindade cf. OTIO, Rudolí. Los,mfo. f\,fadrid: Alianza, 1985.
188 Os pamdoxos do imaginrírio
--------------------- - - -- - -- -

tidos possíveis. Ele tem o olhar da abertura e não das conclusões.


O poder do símbolo cria relações; o logos abstrai conceitos.
O ser humano está permanentemente solicitado pela ten-
são relacional das tendências instintivas e das coerções sociais.
Mais uma vez, o que aparece como contraditório se resolve na
implicação constante. Afirmar a psique não leva a negar a socie-
dade, nem vice-versa. A tentação é sempre a mesma: afirmar uma,
anulando ou dissolvendo a outra. O desafio? Manter a tensão
que afirma o dinamismo de ambas. O ser humano, que é conco-
mitantemente psique e sociedade. Essa afirmação de tensa har-
monia só é possível através da co-implicação simbológica de
ambas as dimensões. É desse modo que se pode compreender
logicamente a cultura como uma rede simbólica.
Capítulo III
SIMBOLISMO E LINGUAGEM

A primt'ú·n n 1111scerfai a linguagemJigumda,


e o sentido própriofai encontrado por último.
Só se cluzmflram ns coi,:;ns pdos sn,s verdadeiros nome!/
quando foram vistns sob _,:;11a farma verdadeira.
A principio só sefiliou pela poesia.
.5ó mudo tempo depois r5 que se tratou de rnciocti111r.
Rousseau
O símbolo e a linguagem

Não existem fatos, só represmtnções.


Nietzsche

Somos crirrfums d11 /Ji1g1111gcm.


Herder

O imaginário P. o simbolismo só podem existir na forma de


linguagem. Fora da linguagem só subsistem possibilidades cria-
tivas não realizadas. A l;nguagem não é um instrumento que usa-
mos para ser, pois somos criaturas da lti~rungem (Herder).
Nada humano existe além da linguagem. A palavra se fez
carne, e na encarnação se humanizou o húmus que, por sua vez,
possibilitou a existência da linguagem. A linguagem engendrou
a autoconsciência. Por meio da palavra originou-se o pré-senti-
mento do mundo: a humanização do verbo e a verbalização do
húmus.
A linguagem animal é essencialmente denotativa de sig-
nos com significados instintivamente predefinidos ou transmiti-
dos de modo uniforme pela espécie. Ela resulta de uma adapta-
ção funcional. O animal não decola do mundo natural ao qual
esta vinculado. Não possui o dom criador da palavra, não pode
fecundar simbolicamente, nem imaginar praticamente um novo
192 O:.· pnmdoxos do tin11gi11drio

modo de ser ou sequer seu modo de ser. O instinto impele as


divt•rsas espécies animais desenvolverem códigos de comunica-
._-i\o correspondentes com as diversas funções vitais. O animal
capta o real de modo natural por meio das impressões sensíveis
imediatas. Uma vez desaparecidas as impressões, desaparece
também a realidade. A realidade pressiona a consciência animal.
Esta, por sua vez, age pressionando de modo compulsivo os sen-
tidos. O animal não tem possibilidade de representar a realidade
como algo diferente de si. Para ele, as coisas são sempre 11prc&'n-
tnd11s e nunca rcprt'St'llfndas.
A representação produz o simbólico, uma característica
intrinsecamente humana. Esta distinção npnscnlativn provocou
a ruptura do instinto animal para a autoconsciência humana. Na
imagem significativa encontra-se a singularidade humana, pois
para o ser humano ,1 ling11agm1 la ms,1 do srrqiei9~gg_ex).
Entre a linguagem funcional do animal e a linguagem sim-
bólica do ser humano não existe uma mera evolução linear, mas
uma ruptura de nature za, um salto essencial. Só num sentido
0

metafórico podemos usar a palavra linguagem para designar


ambos. A linguagem animal está atrelada a um conjunto limita-
do de signos e sinais fixos que designam realidades precisas, mas
não criam sentido, nem podem evoluir pela incorporação cons-
trutiva de novas significações ou pela transformação dos sentidos.

Karl I'oppl'r su...fmfl7 que a emlução da li11g11agc111 pn.-_.;011 por r,rfr,~


os t'Stridios, nu parliculnr um "t'stridio 1irfaior" 110 qual s1' usnvnm
g1'sfos z,oau:, pnm 11 <'J.pn'sstio de 1'stados 1'motfl1os1 por l'Xl'IIIJJIO, e
"um <'Sttidio .,·upt'rior" 110 qual o som nrticulndo s,' ''-'ª para n t'X·
pr,•sstio do /Jl'llsam,•11/0 ou, dito 110s ll'rmos de Popper, para n descri-
fÕO I' n di.-cus:,;no critica. No curso de St'II exomt! dos e:;trid1iJs da
rz,o/ufrio da hi1g11a.ft'lll, Popper pnn·,,, q111n'r indicar que s1' dri cala
co11ti11111df!dt' l'nhr d,•s, mfls dtjãto niio estf!bdect' 11m/111111a rt'fflçiio
mire os estridios superior e tirferior e níio dri nml111!11a rdéin sobre o
mecanismo ifllt! pemrilirio o fm11sif110 entre o estridio t! o segmirte. 12'

124 CHOMSKY, '.\loam. "Contribuiciones de la lingüística ai estudio dei


entcndimiento". ln: Id. E/ lengunje y e/ e11tmdim1mto. Barcelona: l'lanela-
Agostini, 1992, p. 120.
Cn.,for M. M. B11rto!oml Ruiz 193
A linguagem é recriação simbólica. A representação só pode
existir na forma de linguagem, pois qualquer imagem do mundo
está sempre impregnada de uma significação particulp. ~
imagem foi:a do sen.tid~ e conseqüentemente não exdte repre-
sentação sem linguãgem: A prrgunta pela "or~rem da linguagem"
esftí indissoluvelmente !{,;;nda ii pagun!fl pdn "ori._{{l'11l do mito"; em
qualquer caso, cndt1 umn dt.'sfns questões .,6 podt' co/ocnr-se em referên-
cin à outm. 125
A linguagem se solidifica na forma de cultura e nos socia-
lizamos por meio de um código lingüístico. A linguagem que
pensamos construir nos constituiu previamente como sujeitos
históricos. Na hora de nos expressar, a linguagem adquire uma
conotação pública que a transforma em significação socioistóri-
ca, a qual passamos a denominar de líng~ta particular de urna
sociedade. A linguagem, enquanto significação social instituída
ou língua, rl'npresenta uma representação. A língua é uma segun-
da representação da realidade. A linguagem é a obra primeira e
prática primordial da humanidade. Ao constituir-se socialmente
como língua, a linguagem se manifesta como desdobramento sim-
bólico, que tece uma teia de representações socialmente aceitas e
constitui um universo de sentidos e valores próprios do grupo
social que os produz. A língua é um desdobramento da lingua-
gem, e cada língua constitui uma dobra possível em que a lin-
guagem se solidifica. Qualquer língua aparece como uma signi-
ficação social profundamente retrabalhada como forma cultural.
Para o ser humano não existe fronteira definida entre o
natural e o cultural e qualquer relação com a natureza se realiza
sob os desígnios da construção cullural. Para o ser humano não
há um momento ou espaço natural para depois retrabalhá~lo de
modo cultural seu_çgnfronto com a natl!~e~a é.~pr~c1:!-ltu1a.l-
1Jle~_f!l_~iado. Por sua vez, a especificidade de todas as cultu-
ras requer a linguagem como mediação prin1eira e universal, que
possibilita a criação singular de cada forma cultural. Linguagem
que se estrutura na forma de rede simbólica, em que por meio
dum intrincado processo se entrelaçam os mais diversos senti-

125 CJ\SSm.ER,Ernst. Fl!o.,,!fí:1 de l11sfon1111.< _.;fmbólims, Vnl 2. México: Fondo de


CL1ltura Económica, 1972, p. 10-11.
194 Os paradoxos do imagimírio

dos e as mais variadas produções sociais. Essa rede simbólica de


representações configura a identidade pessoal e social; desse
modo, a linguagem se transforma num proct'sso vital no qunl v;ve
sua representação uma comunidade de vida126•
A linguagem é a proto-significação social; possui uma_ du-
pl~ condição de criatura e criadora. Enquanto criatura, ela é pro-
duto do sújeito e da sociedade, deve sua existência ao poder cri-
ador do imaginário na sua dimensão individual e social. Criatu-
ra da prática humana, consolida-se como significação social na
medida em que incorpora a dimensão simbológica do sentido,
ou seja, simbolicamente permanece sempre cm abertura para ser
e logicamente denota sentidos claros e precisos que designam
coisas e fatos. Ela é a criatura mais preciosa da práxis humana.
Como insinuamos anteriormente, o paradoxal do imagi-
nário também perpassa o ser da linguagem. Ela não se resigna a
ser uma dócil criatura e não aceita ser reduzida a instrumento
servil. A linguagem, uma vez instituída socialmente como lín-
gua, se transforma num' poderoso elemento produtor de subjeti-
vidades, objetivando identidades e criando cultura. ~la precede
a subjetividade; o s.ujeito, para poder constituir-se como tal, deve
inserir-se num mundo cullural configurado simbolicamente por
uma língua. É dentro dessa língua que tecerá sua identidade sin-
gular de sujeito histórico. A língua adquire, pois, o poder de ob-
jetivar, socializar, os sujeitos históricos. É na linguagem sociali-
zada, língua, que somos, nos movemos e exú,timos.
Condicionados, porém não determinados. Inserimo-nos na
história num horizonte de pré-juízos que nos possibilitam inter-
pretar o mundo na medida em que nos interpretamos como su-
jeitos desse mundo12;. Interpretando o mundo, transformamos a
linguagem. A_subjet!vic:lade se produz no horizonte interpretati-
vo, simbólico, de uma determinada cultura, ~Q_está deter-
m~dapor ~}e. O potencial criador do imaginário possibilita a
superação dos condicionamentos histórico-culturais e permite a
interculturalidade como dimensão simbológica de abertura e

126 GADAMER, Hans-Georg. Vt•1-d11d y mftodo:/11ndi1mentos de un11 herme,réulicn


jilosqjia1. Salamanca: Sígueme, IY77, p. 535.
127 GADAMER, llans-Georg. Op.cit. P· 373.
Castor M. M. Barto/omé Ruiz 195
encontro. A especificidade do horizonte hermenêutico não en-
cerra os sujeitos nem as sociedades num hermetismo lógico, tam-
pouco os dispersa no relativismo incomunicável. A dimensão sim-
bológica da linguagem institui de modo concomitante a singula-
ridade do horizonte hermenêutico, a abertura para a ~er-rela-_
ção entre sujeitos diversos e a intercomunicação entre socieda-
des diferentes.
O simbolismo da linguagem age sincronicamcntc, interfe-
rindo nas particularidades históricas e abrindo-as para um hori-
zonte pleno de m11111111-ação. Mas ele reage de modo diacrônico,
desferindo uma punção metafórica na facticidade histórica, abrin-
do-a, por meio da interpretação, para um horizonte compreensi-
vo, onde o passado se presentifica e influencia o presente. Essa
punção simbólica possibilita a comum-união com a história, que,
ao nos preceder simbolicamente, concede ao nosso presente, por
meio da interpretação _do passado, um sentido próprio.

Mediações e paradoxos duaMticos da linguagem

A linguagem é o médli1m do sentido. Ela não pode ser re-


duzida a mero instrumento analítico. Quem assim o pretender
será envolvido na aporia de mostrar simbolicamente que existe
uma função verdadeira, analítica, da linguagem e que esta pode
ser captada metaforicamente cm formas e fórmulas lógico-analí-
ticas, simbólicas. A função instrumental da linguagem é uma
perspectiva que possui utilidade prática em determinadas cir-
cunstâncias e constitui um modo relevante de constmir uma prá-
tica sócia]; porém devemos fugir das pretensões de verdade ab-
soluta que envolvem muitas das tendências analíticas da lingua-
gem, pois, enquanto perspectiva da linguagem, ela se insere no
modo simbólico de conceber a realidade.
A mediação simbólica da linguagem humaniza o mundo.
O mundo só existe, para o ser humano, corno cosmo organizado
de sentidos. As impressões amorfas e insignificantes da sensibili-
dade só se transformam em mundo - objetos, fatos, ele. - à medi-
da que são significadas, simbolizadas. A transformação signifi-
cativa do mundo, sua simbolização, se realiza por meio da lin-
196 Os paradoxos do tinaginário
-------------
guagem. Por sua vez, a linguagem só adquire existência quando
se confronta com o mundo e o representa. Nessa confrontação, a
linguagem é criadora, mas também está condicionada. A rea lida-
de das coisas condiciona o modo de ser dos significados, e não
pode conferir-se qualquer significado a qualquer coisa; existe um
estrato natural que não é possível reduzir à mera linguagem. A
linguagem pode simbolizar, de modo aberto, qualquer coisa, mas
não com qualquer sentido. A realidade do mundo interfere no
simbolismo da linguagem, e é nessa interferência que se configu-
ram socialmente a aceitação ou rejeição dos significados.
Eis outra vez desenhados a tensão e o paradoxo. Impossí-
vel resolvê-los afirmando só um dos dados. Eles persistem na
tensão dua!ética em que, de um lado, a hermenêutica simbólica
afirma sua abertura indefinida e, de outro, o mundo confirma
sua alteridade irredutível. A tensão dunftiticn propicia a criação
permanente e define aquilo que é aceito historicamenw.
Oh humano, eis ,mais um paradoxo! És humano demais
para te integrar naturalmente no mundo e não tens o poder de
negá-lo ou desconhecê-lo. Vives num horizonte tenso onde só
·Hermes te propicia existir. Resulta inútil apostatar de Hermes,
pois a interpretação constitui tua única possibilidade de rela-
ção com o mundo. Além de todos os círculos hermenêuticos e
de qualquer teleologia dialética, Hermes te confronta com a ten-
são de abertura criadora e do horizonte indefinido da existên-
cia.
O paradoxo do imaginário faz com que a linguagem, sua
criah1ra, seja estruturadora da realidade. Como criatura, ela ma-
nifesta o sentido do mundo que a pessoa cria; como significação
social, estrulura a visão do mundo numa rede simbólica de sen-
tidos e significados que constituem o imaginário da sociedade e
dos sujeitos. ÇQ.mo.çriatura, eossil,j!fürn lrA.~fprrnaçªo do mun-
d<?_; como forma cultural, e~servá o mundo, confere-lhe-estabili-
dade e possibilita a tradição. Como criatura, a linguagem é ino-
vação permanente do mundo; como instituição social, P!ocu ra a
conservação do já estabelecido. Como criatura, a linguagem ldes-
construída pelo sujeito que, desse modo, renova o sentido do
mundo; como significação social, institui o sujeito com uma iden-
tidade histórica definida.
Cm,tor M. M. Bnrtolomé Ruiz 197
LJevemos reconhecer honestamente que estamos hoje tão lon-
ge quanto estava Descartes faz três séculos de compreender o
que é que permite a um ser humano falar de um modo que é
ao mesmo tempo inovador, sem estar sujeito ao controle por
parte dos estímulos, e também adequado e coerente. Este é
um problema sério, com o qual devem enfrentar-se cm última
instância os psicólogos, os biólogos, e que não se elimina sim-
plesmente com o recurso a termos como "hábito", "condicio-
namento", seleção natural.':,;;

A linguagem exige o consenso, porém essa exigência ma-


nifesta-se abrangente e paradoxal; o consenso se situa como con-
dição inicial da linguagem e como sua conclusão final relativa. O
ser humano, no diálogo intersubjetivo, busca o consenso (Haber"'
mas). Na intersubjetividade se configura como sujeito que não
pode existir a não ser na comunicação intersubjetiva por meio da
qual configura sua identidade. A linguagem exige a relação in-
tersubjetiva e no extremo dessa relação demanda um diálogo
social permanente para consensuar a sociedade. O consenso fi-
nal demanda uma comunicação, ou comum ação, comunicativa.
Porém resulta insuficiente pensar o consenso como mera culmi-
nação da linguagem, pois, para que o diálogo aconteça, o con-
senso deve preexistir. Ele é a condição prévia para o próprio en-
tendimento intersubjetivo (Gadamer). O consenso também é Ull\a
exigência inicial do diálogo. Todo consenso final surge como rê-
sul tado de um consenso primeiro que possibilitou o diálogo o e
entendimento dos interlocutore~ A liil.,bTtiagem, como prato-sig-
nificação social, insere a pluralidade dos sujeitos de uma socie-
dade num consenso inicial consistente na compreensão comum
de um cosmo de sentidos, a partir do qual é possível inicial, o
diálogo e concluir um consenso posterior. Todo diálogo requer
uma comunhão, ou comum união, prévia dos sujeitos.
A linguagem perambula na tensão dos seus contraditórios:
comunhão ou comunicação, comum união do consenso inicial
ou comum ação do consenso final, horizonte hermenêutico ou

128 c:1-10~1SKY, l\:oam. E/ Jmguajeyel entmdimúnto. Barcelona: Planeta-Agosti.ni,


1992, p. 34.
198 Os paradoxos do ànnghuírio

intersubjetividade dialógica. Postular a verdade de um dos pó-


los, pretendendo a negação do outro, é um indício grave de que
ainda não nos implicamos suficientemente em nossa própria di-
mensão paradoxal. Por não sermos capazes de superar, de forma
definitiva, essa tensão, necessitamos dos outros para poder espe-
lhar nossas convicções, sendo que essa interlocução é feita desde
um horizonte hermenêutico comum que possibilita o entendi-
mento inicial. Sem solução última para a confrontação, somos
levados a assumir a tensão paradoxal que o imaginário insere
em todas as relações sociais e nos impele concomitantemente a
aceitar-nos como sujeitos paradoxais. Paradoxo e tensão são o
húmus da criação.
O enraizamento simbólico da linguagem

E n P11/nvrn .,,,Ji'z cnmt' t' lrnblfo11 no meio de nós.


Jn 1,14

O símbolo está enraizado no ser humano, raiz que perfaz


sua identidade e caracteriza sua exclusividade no seio da nature-
za. O simbolismo é criatura singular do humano, mas, em con-
trapartida, o humano só se constitui como tal por meio da signi-
ficação simbólica.
A comunicação não é algo exclusivamente humano, mas a
significação simbólica sim. Todas as espécies animais possuem
códigos de comunicação, que de forma lata podemos denominar
de linguagem. Esses códigos estão subordinados à funcionalida-
de. São instrumentais para a sobrevivência, alimentaqão, repro-
dução, etc. Eles estão inseridos no próprio instinto da espécie ou
incorporados no código genético. À medida que as espécies se
complexificam e se especializam, principalmente os mamíferos
superiores, os códigos de comunicação se ampliam e a capacida-
de de apreender dÓs indivíduos se aprimora. Os códigos de co-
municação mais complexos de certos animais chegam a desen-
volver alguns sinaL-; de substituição indireta por meio dos quais
mandam avisos de perigo, atração, alerta, etc. Estes são signos
produzidos pelos reflexos condicionados e subordinados a uma
200 Os pnmdoxos do imngintirio
---------------
reação funcional. Eles não denotam sentido, nem significam nada
além da mera função instrumental. Os animais não se relacio-
nam com as coisas por meio da linguagem, não as significam,
nem as caracterizam com um sentido particular. Simplesmente,
por meio dos códigos de comunicação, se inserem funcionalmente
no jogo de subsistência individual e da espécie.
Estamos muito distantes do sentido simbólico, pois não
existe uma linha evolutiva direta que possibilite a passagem dos
códigos animais para a significação humana. Não há evolução
direta dos signos instrumentais para o simbolismo conotativo.
Entre a experiência da comunicação animal e o simbolismo hu-
mano existe uma ruptura de natureza e não uma mera evolução
de complexidade.

d,,.,,,
Dt'll-:.,"'f.' 1111porfti11dil demmi; à qm•sttio os llllli111Tis t'm St'lô' g,i-
tos dt• prewnriio niio querl'm ",illr ll ,•nfl'mkr" um paigo ddt·mu~
11/ltÍO, pos_.;uindo, J?0f'f1mfo, 11111(1 "/i11gu(lgl'm" ( ... ) Porlm crmtinu-
0111 sem ln fli1,ç;11a,_,:1'm, /d qu,· ti lit1gu11gem perf1'11Cl'm tamblm 011-
tms fr,1, proprtáladcs essenciru'.,·: 11 t'.t71ect11tiv1T, qm• jédtt1dt1 1111111
som SI' dirigi' n sun rmliznj.:tio ple1111 em outros sons; (I subordinação
de co1,fi,_i{11mçõcs sonoms prt•d,ns 11 objt'fos preci_,-os e t•xntos; 1• 11 in-
depe11dà1da na d1:'fJOt1i/Jiltd11de de 1111111 li11gun,_,;;e111 t111//11tic11 com
n·sp,•lfo ao conlnído 0/1111/ d1' umn situação. 129

No código de comunicação dos animais, o sinal proveni-


ente do reflexo condicionado não estabelece um sentido, mas in-
dica de modo unívoco a existência de algo. Por isso, o sinal está
incorpor.7.dO ao objeto que designa e é inseparável daquilo que o
induz. Produz estímulos induzidos, mas não cria uma represen-
tação significativa do objeto. É possível estimular a sensibilidade
de um animal por meio de um sinal, mas isso não o capacita para
representar significativamente um objeto. O sinal possui um ca-
ráter fixo, quase perene, único para toda a espécie. O sinal in-
duz, de forma compulsiva, determinados estímulos que deter-
minam o comportamento do animal, impedindo-o de reagir de
forma reflexa. Ele não pode tomar distância daquilo que o condi-

129 GEIII.F.N, Arnold. O homem. Salamanca: Sígueme, 1980, p. 166.


Castor M. M. Harto/omé Ruiz 201
ciona. O sinal não é percebido pelo animal como um elemento
com significado, mas assumido como determinante instintivo,
perante o qual reage de modo programado.
A fratura interiorconf rontou o humano com o mtmdoe cons-
tituiu o paradoxo da sua identidade-alteridade. Essa fratura para-
doxal introduziu a mediação significativa como junção criativa de
ambas as dimensões. O médium significativo é sempre uma forma
simbólica, e por meio da mediação hermenêutica o ser humano
(se) integra de modo simbológico identidade e alteridade, seu eu
no mundo. Sua linguagem é sempre urna junção simbólica que, ao
humanizar criativamente o mundo, insere-o como parte de si, pois
o sujeito se humaniza ao modelar significativamente o húmus da
realidade em que insere. Criando o mundo, produz sua subjetivi-
dade e se constitui humano plenamente humano, húmus totalmen-
te húmus. Sua humanização é práxis inlerprelaliva, sua lingua-
gem cria uma identidade e história.
A linguagem não pode ser reduzida a meros sinais deno-
tativos, pois sua raiz simbólica impossibilita ser definida numa
forrnu lação lógica. Ela não se esgota num código serniótico, nem
permite seu encerramento na superficialidade do signo. Sinais,
signos e formulações lógicas se integram na raiz simbólica da
linguagem, mas não conseguem exauri-la numa única formula-
ção, seja ela lógica, semiótica, lingüística ou de qualquer outro
tipo. Mais uma vez constatamos que não é possível encerrar a
exuberância do símbolo na lógica do signo.

Os símbolos, no sentido próprio do pnlaurn, 11iiv podem scr rt·du=i-


dos fl meros sinnis. Sinais e ;;ímbo/os cor,,,.,po11d1•m 11 doi, tlllll't'rsos
dijére11fcs do discurso: 11111 stirn/ l umn pnrlt' do 1111mdofísico dosa;
um símbolo é umn parti' do 111111uio /1111110110 do .<;t•11tit!o. Os si,rm'.,
srfo "opa{l(fores"; os shnbo/os sifo "des(í(nndores". Os slirni<;, nindn
sendo l'llfe11didos 1• uh/i;:ndos como fn,~~ possut'm, 110 1•11/m1!0, umn
1's1éaé de scrfísico 011 substnncinl; os sh11/Jo/os possuem 1micnmr11-
II' um valorfimcionnl.'..,,

130 CASSIRER, Ernst. A11tropologit1fi!osefúw. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p.60-
1. Embora Cassirer realize uma distinção entre signo e ~ímbolo, Clifford
GcPrtz o critica por im:orrer no erro de identificar os símbolos com seu~
202 Os paradoxos do imaginário
A linguagem integra koi11011ico111ente o sujeito no mundo.
Há uma tensão inevitável entre a linguagem herdada e o modo
como cada subjetividade capta a realidade, porém não existe uma
prioridade espacial ou temporal de algum dos elementos. O pri-
oritário é a relação que se estabelece entre ambos, pois é a relação
que condiciona a existência dos dois pólos. Cada um existe de
modo relativo, relacional, ao outro. O modo de relação que se
estabelece entre as impressões sensíveis e o simbolismo dado a
elas definirá o tipo de linguagem. O som da linguagem oral exte-
rioriza um sentido vivenciado. O som não é um mero reflexo in-
significante; pelo contrário, ele carrega um sentido para o mun-
do. O sentido simbólico qualifica o tipo de linguagem proferida,
mas o sentido só pode existir de modo coletivo e histórico à me-
dida que se exterioriza num tipo material de expressão da lin-
guagem. Esse modo de expressar a linguagem também condicio-
na seus alcances, limites e possibilidades. Está, pois, desenhada
uma nova tensão dunlf~ica entre contraditórios que se confron-
tam visando uma produção criativa. Uma vez mais temos de cons-
tatnr que qualquer pretensão de explicar o ser ou a origem da
linguagem a partir de um dos pólos, negando o outro, é um ·re-
ducionismo esterilizante. ·

A lht!{llfl!{f'nl paff'11C(' a mim porquf' eu a produzo dfl_/omtfl como a


Jírço; I' como ofwrdamenfo de assim ofarn esttf flo mesmo ft-';npo 110
falllr e 110 lerJí,lfldo de todas ns /inhngms lt11mn11ns, na mi•dúifl que
entre das posSfl ter havido comrmicnçiio birgiiíslicn não Íltft•rrompi-
dn, é a /il1J>r111gem môWfl que me imp&• s1111s consf,:_~·des. Só que o
que ut'la me constmnge e dl'fa1111i1a entrou 11dn d,•.,;d,· uma llflfure-
Zll humana 1ilti111nmente lzrndn ll mú1/,a nntun'Zll indif!1dun/ mo-
menlânm, mio pnrn minha rrntureza origintfria. 131

recorrentes: "o qu11I resu/!11 trio ,1bsurdo quanto lljirm11r qur o drdo com que ru
assino/o fass,• 11 /110 poro o 171101 aponto". Id. "Religionas a cultural systcm".
In: Jd. Anthropolográ1/ Approoches to the Studv of Rdigúm. Londres:
lavistooock, 1968, p. 1- 46.
131 HUMBOLDT, Wilhcm von., So!rre la dil'ersidad de lo estmclt1111 dei lenguaje hu-
mano y su inf!u,•nc,i1 .,obn• d d,•s,1rro/lo espiritual de /11 hum11111tlad, Barcelona,
Anthropos, 1990, p. 87. Humbolt critica a teoria da linguagem racionalista,
Cnstor M. M. Bartolomé Ruiz 203
Ao analisar a origem da linguagem, a perspectiva realista
se interroga se é prioritária a designação das coisas ou dos pro-
cessos. Na linguagem se captam primeiro as coisas e como con-
seqüência constituem-se primeiramente as raízes nominais? Ou
se captam, em primeiro lugar, os processos e conseqüentemente
se elaboram inicialmente as raízes verbais? Esta divisão resulta
no mínimo ingênua. Pensar que a origem da linguagem pode ser
explicada a partir de um dos pólos - coisas-processos, duradou-
ro-transitório - implica desconhecimento da raiz paradoxal com
que o simbolismo impregna toda linguagem.
A linguagem não se origina dos sentidos que captam obje-
tividades naturais dadas, sejam coisas ou fenômenos. Ela é uma
criação significativa, um cosmo de sentidos que não está dado
nem no mundo dos objetos, nem no fluir dos acontecimentos. A
linguagem nos abre para a compreensão do ser como sendo de
modos diversos. Essa abertura interpretativa do ser se realiza por
causa da raiz simbólica da linguagem.

O ser se diz llSSIÍfl 011 ll&,11do, ou sejll, prr:,-.-n pdn lil~\'1117J(t'111. D1-
qunnto qut·, fnwft' it 1111·!1!flsica dtfssim, 11('1!1 tudo pa.,-.w pelo Sff (por
exn11plo o nndn), pam a lin,ruogem passa tudo, i11d11sivl' podt'fa!nr-
se do 11adn com Sl'l1hdo. A là1g1111gf'lll t~ m,sim, mm'., nmo/;,,•nk e
toftl!izndom que o se-r dtissico que cxdui o 11no-sa1.u

Podemos nos perguntar pelos sib>nos lingüísticos prim,frios,


porém não encontraremos a explicação de sua origem no reflexo
que a realidade produziu nas pessoas. Sua origem está vincula-
da à forma como os primeiros seres humanos vivenciaram signi-
ficativamente o mundo, ao modo como simbolizaram as coisas
para si, ao sentido mítico dado para os diversos elen~entos. As
coisas se desdobraram em novas possibilidades de ser, aparece-
ram significados diferentes, criavam-se utilidades para elas, etc.
A origem da linguagem está enraizada na fratura humana por

e rc-cstmtura desde a perspt>ctiva de um organismo vivo, imagem rntúlo


querida para o romantici,,rno.
132 omz-OSÉS, Andrés. U inco11.<rir11tr co/ecfif!o VnHo. San Seba~tián: Txcrcoa,
1982, p. 209.
204 Os paradoxos do imngimirio
meio da qual extravasa o poder criador do imaginário: Por sua
novidade, uma imagem poética põe em moz1ànento toda n ntividndc li11-
giif,ticn. A imnsem poética nos stfua 11a origem do serji1/anft'133 . Esse
poder criador é o especificamente humano que, não podendo nos
definir conclusivamente, projeta-nos como seres produtores de
sentido e transformadores do mundo. É na raiz simbólica do ser
humano que a linguagem se origina.
A linguagem se origina na raiz simbólica do sujeito, mas
não se reduz ao subjetivismo. Sµa origem está ancorada numa
dimensão psicogenética, mas ela, para ser, deve se expandir para
a intersubjetividade. Desde a mera perspectiva psicogméticn, a
linguagem reduziria o mundo ao sujeito e inviabilizaria a comu-
nicação. A origem da linguagem demanda, para chegar a ser, uma
dimensão koi110,renétr,.t1, onde a koinoniasocial expande os signifi-
cados para a compreensão de um mundo comum de sentidos. A
linguagem produz a cultura, institui o modo de cada sociedade.
Pela linguagem se desepha uma visão cultural do mundo, assu-
mida pelos sujeitos, muitas vezes, como natural.
As dimensões psicogenética e koinogenética se implicam
'tão densamente no tecido da linguagem, que não conseguimos
captar os fios primários que, ao desenhá-lo culturalmente nos
confeccionam subjetivamente. Um exemplo do que afirmamos
está na percepção que temos de muitas formas culturais como se
fossem evidências naturais, como se o mundo estivesse compos-
to de singularidades e indivíduos que podemos isolar, nomear,
denominar, conhecer, etc. Esta percepção que nos parece natural
é o resultado de uma longa produção cultural de milhares de
anos que assumimos corno se fosse algo natural e que produz o
modo específico de !]Ossasubjetividade.
Na visão simbólico-mítica original, o mundo se capta como
um todo interligado. As coisas não são compreendidas corno ele-
mentos diferenciados e independentes. O simbolismo mítico capta
a totalidade do mundo como o elemento primário a partir do
qual lodo o demais tem seu sentido. O natural era o todo; as par-
tes são derivados secundários que se explicam pela sua conexão

133 HACHELARD, Gaston. Ln poética dei esp11cio. México: Fondo de Cultura


Econúmica, 1\165, p. 14-15.
Castor MM Bartolomé Ruiz 205
com um todo natural. A pluralidade e as individualidades são
elaborações culturais muito posteriores. A identificação de cada
elemento como algo próprio, diferenciado, com sentido específi-
co, foi um longo e doloroso processo de produção simbólica.
Preuss assinala, por exemplo, que, na mitologia dos índios
coras, que estudou e descreveu a fundo a visão do céu noturno e
do céu diurno como um todo, houve de preceder a do sol, a lua e
as diferentes constelações. A concepção mítica lua não foi aqui
uma deidade luar ou solar, senão que foi a totalidade dos astros
de onde partiram, por assim dizer, os primeiros impulsos míti-
cos.
O mesmo que a consciência lingüística, a mística também
não dispõe de diferenciação entre as figuras particulares a não
ser à medida que ela mesma as vai estabelecendo, particulari-
zando a partir de uma visão unitária originariamente indiferen-
ciada.

Qunndo o cu se ,wtn;,:11 por completo n umn illlpn'ssiio momt'llfiinm


,, l'SftÍ totn/111c11t,• possuído por dn,
c sc produz, por outra parte, uma
tensiio supremo t'nfn' ele e o mundo o.krior; quando o ser altrior
11iio St' contemp/n t' htfui simpksmenfe, mas que 11ss11l!11, 1'm certo
modo, no indivíduo, dirt'/11 t' n71,•11fi,111111mfe no s,·11time11to do medo
ou dn t'.,pannrn, do terror ou do desejo S1Tfl'.~játo l' rcsoh,Jdo, mtiio
emerge de certo modo nfaí_.:;cn, e n tc11siio 51' r,·sol,•,·, ob;dimndo-s,' n
t'J.âtnção 511/J;i,fim ,, nprt•sn1tn11do-s1' 011/e o indivíduo q1111I deus ou
demo. Aqui l'Sl11mos paanlt' aqudt Ji·11ôm,•110 originário lllifico-
rc/igioso. JJ.I

Na experiência simbólico-mítica original da hun:ianidade,


a presença do sensível invadia todos os campos da personalida-
de. Perante tamanha impressão sensorial, as outras potencialida-
des se desvaneciam. O eu se orientava com uma força impetuosa
para uma totalidade única, com a que se identificava existencial-
mente. Esse centro único da realidade, quase absoluto, absorvia
as singularidades dos elementos da natureza, pois o todo era a

134 CASSIRER, Ernst. faencio _v ,fedo dei conceplo d,• símbolo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989, p. 85-86.
206 Os paradoxos do imflgindrio

explicação das partes. A impetuosidade mítica produzia uma


condensação intensiva do conhecimento diferente da ampliação
extensiva por meio da qual funciona normalmente nossa lógica
analítica. No lugar de proceder ao alargamento da intuição a
outros âmbitos do ser, como faz nossa lógica, o simbolismo pri-
mitivo realizava uma concentração extrema da intuição num ele-
mento dado. A impetuosidade do simbolismo primitivo conden-
sava todas as forças do conhecimento na existência de um só
ponto. 135
As epistemologias clássicas ensinam que o conceito se ela-
bora a partir da universalização lógica das características comuns
a vários dos objetos ou fatos particulares. O proceder da univer-
salização conceituai deve deixar de lado aspectos divergentes dos
elementos, que os tomam singulares e não iguais. Esse processo
de conceitualização é essencialmente um modo de taxionomia.
Todo conceito implica a escolha de alguns aspectos considerados
importantes e a exclusão de outros vistos como irrelevantes. A
e
escolha das prioridades a exclusão das irrelevâncias são pro-
cessos interpretativos que outra pessoa ou sociedade com outros
critérios poderia inverter e simbolizar, conceitualizar, diferente.
Por trás de cada conceito existe uma verdade construída; cada
verdade envolve uma perspectiva de mundo; cada perspectiva é
uma forma de apropriação da realidade.
A este respeito resulta ilustrativa a referência de Foutault
a um texto de Borges:

Umn ct'r!n mcidopldin chi11esn onde estd escrito qw' os nnimms se


dividem em: n) do1111•stimdos, d) kilõô~ t') snáns, j) Jhbu/oso::.~ g)
cães em libadntÍt', li) li1d11ídos nn presente dnsstfknçiio, 1) que se
ngitnm como loucos, j) i1111menfveis, k) desenhados com um pi11cl'I
muitofino dt' pflo dr' mmelo, /) l'fcl'lem, m) qm' nmbnm di' (f!ll'/Jmr
n b1lhn, n) que de longl' pnrl'et'm moscns130 •

135 CA5511U::R, Ernst. Eç,•nâ11 .11 ,f,·cto dd cona71to de .símbolo. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989, p. 105.
136 FOUCAULT, Michcl. As pnlavms f' a,,· cmsns. São Paulo: Martins Fontes, 1999,
Prólogo, p.IX.
Cn.,tor M M Barto!omé Ruiz 207
O conceito lógico está precedido da compreensão herme-
nêutico-simbólica do mundo. A representação é sempre uma sim-
bologia, ou seja, simboliza de modo lógico, ou se preferirmos,
conceitua de modo simbólico. A linguagem não existe como apro-
priação lógica de objetividades naturais, mas como representa-
ção simbólica de um sentido do mundo.m
As implicações dessa compreensão hermenêutico-simbó-
lica da linguagem são muitas. A principal decorrência advém do
fato de aceitarmos que, se a linguagem é uma representação sim-
bológica do mundo, a diversidade de línguas não reflete só uma
variedade de sons, mas uma pluralidade de visões de mundo.
Cada língua configura um sentido inerente a cada termo, estm-
turado na forma de sintaxe e modelado no modo de expressão. A
língua não é só um instrumento que usamos para nos comunicar,
pois é pelo poder objetivador da língjt!a que as subjetividades
conformam sua idenlidade e as sociedades constituem sua pecu-
liar- forma de ser. Desse modo, a língua passa de mero instru-
mento à agente configurador de subjetividades e identidades. n,
igual forma que o som litdiv,dual 5t' 5111111 entre o objeto ,, o ltomt'lfl,
assim também n lú1gut11irfeirn se põe entre de e 11 m1ft1rcza que 1':rerce
seus 1feilos .,obre ele, desde fome desde dmtro.

137 Nossa concepção hermenêutico-simbólica da linguagem se distancia, neste


ponto, da compreensão que Bachelar , baseando-se muna fenomenologia
racionalista, apresenta: "Em tese gemi, pensamos 1111e tudo o que é espec(/íá1-
mente humrmo no homem é logos. Não r1lomç11mos n med,frlr numa reg,íio que
,•.1i<tirú11111tes que t1 lit1g1111gem" BACHELARD, Gaston. La poftim dd e.spncio.
r-.-1éxico: Fondo de Cultura Económica, 1965, p. 15.
A objetivação da linguagem

O ser que podl' si'!" wmpmc11dido


/ ÍÍl{Ç/1111,_'i{l'/11.
! Ians Georg Gadamer

A linguagem, este obscuro objeto que nos objetiva. Ao in-


terrogar-nos por ela, é ela que nos questiona. A pergunta pela
sua origem é uma flexão que nos enreda num círculo, não sabe-
mos se vicioso ou virtuoso. Em qualquer caso, não podemos nos
subtrair a voltar-nos uma e outra vez sobre ele (e sobre nós), sem-
pre com perspectivas diferenciadas.
Por ludo aquilo que até aqui expomos, é plausível coligir
que a tese clássica de que a linguagem é uma mera construção
intencional do logos resulta totalmente insuficiente. ~o revisar
p·erspectivas, revidamos com novas possibilidades de compre-
ensão. A linguagem não é um produto elaborado só pela intenci-
onalidade reflexiva e consciente. Ela não se reduz a um mero re-
sultado apurado da reflexão consciente da racionalidade sobre
as impressões sensíveis. Não é um simples reflexo instrumental
da racionalidade sobre as determinações particulares.
A pesquisa sobre a origem das formas lingüísticas primiti-
vas nos faz mergulhar nas formas intuitivas da configuração sim-
bólico-mítica do ser humano. Este mergulho nos remele a ques-
210 { J~. pnmdoxos do imaginário
---------------
t<°ll's difíceis. Apostamos por entender a linguagem a partir das
cun Ii~urações simbólico-míticas, então: como é possível que o
st'm-fundo humano, que é indeterminação radical, possa objeti-
var-se numa constmção lingüíslica? Como se realiza o processo
rnrnplexo que transmuta a sensação insignificante em designa-
1,·,10 significativa? Como o fluir indeterminado do sem-fundo
humano consegue concretizar-se em significações sociais concre-
tas, como é o caso específico da linguagem? Questões complexas
que, em vez de mostrar urna saída, podem nos afogar no mergu-
lho. Mas não temos como fugir delas.
Para iniciar nossa reflexão, devemos apelar, como não, à
nossa imaginação. Desafiar-nos regressar no tempo e no espaço
ao que poderiam ser as tentativas dos primeiros seres humanos
de se humanizarem por meio da linguagem. Esse processo filo-
genético se reproduz, com diversas variáveis culturais, na emer-
gência e ~onstrução ontogenética de cada subjetividade.
A simbolização mftica do real inicia centrando a vivência
de forma altamente condensada num ponto de impressões. Ime-
diatamente essa simbolização tende a expandir-se como experi-
ência de sentido. No ser humano, as impressões vividas não
morrem no momento em que desaparecem da presença scnsí-
vel138; elas perduram um tempo mais ou menos longo na forma
de memória, recordações, vivências. Como expressou magnifi-
camente o poeta César Vallejo ao manifestar as saudades de seu
povo natal na primeira vez que chegou ao Callao: A umidndt' une
n memória pn'sente com 11 memória ambtimt,,.
A expansão da experiência simbólica se realiza à medida
que as significações vão adquirindo uma certa estabilidade e
durabilidade. Temos de conferir ao som da linguagem uma certa
permanência, como a existente nas experiências simbólico-míti-
l·,1s. A palavra proferida não é percebida como mero objeto ins-
trumental, mas como uma alteridade com a qual se confronta;
l'la é uma objetividade para poder espelhar nossa subjetividade.

1'\H 11,•nri R{·rgson realiza uma d btínção entre mcmóri11-htfbdo e lfletJJórin-recor-


,l,1r1io. A primeira seria a própria dos animais, enquanto a segtmda é a
1•~1wl'ifil-,111wntc humana. Cf. Id. Mntiere e memoire, Paris, 1896,
Castor M M Barto!omé Ruiz 211
A palavra descarrega sempre uma condensação emotiva,
explana uma tensão. O medo ou a alegria, o desejo ou a angústia,
em resumo, a tensão das impressões se descarrega na represen-
tação da palavra. O som proferido, o gesto encenado, isto é, a
linguagem, permitem extravasar, criando sentido, a excitação das
impressões. Ao extinguir-se a excitação interior que provocou o
som ou o gesto significativos, ficou aprisionado na subjetividade
um sentido. Este sentido se constitui na representação significa-
tiva das impressôes vividas. A memória resgata o significado dado
às impressões e associa este significado ao som emitido 139 . Desse
modo, a representação significativa provocada pela excitação-
tensão interior é associada a uma forma de linguagem. A partir
desse momento, a linguagem passa a objetivar o sentido. O sujei-
to, impressionado pela tensão volitivo-afetiva, pressiona os sons
da linguagem e os impregna de significado.
A intencionalidade é decisiva; ela decide o sentido das coi-
sas, qefine o que é significativo e como significar. A representa-
ção constitui em maior ou menor medida uma opção intencional
do sujeito. É o sujeito que decide destacar do fluxo insignificante
das impressões algumas que considera importantes para ele. Ao
destacá-las, simboliza-as. Ao simbolizá-las, significa-as. Ao sig-
nificá-las, objetiva-as na forma de linguagem.
A intencionalidade destaca da pluralidade insignificante
dos objetos ou do caótico fluir de sensações aquilo que pretende
significar. Uma vez destacado intencionalmente, passa-se a deno-
minar. A denominação visualiza a intenção, concretizando-a numa
forma lingüística definida. Aquilo que foi objetivado numa for-
ma lingüística é testado pela prática social do grupo e consolida-
do como representação social. Ao objetivar-se como representa-
ção coletiva, evita seu desaparecimento no fluir efêmero das ex-
periências individuais; de fato, uma grande parte de produções
lingüíslicas e cullurais se perdem, porque estas não são assumi-
das como significações sociais que identificam o conjunto da co-
letividade. O som fonético incipiente ou o gesto indicativo mais

139 Sobre a rela~·ão Pxistt>nlt> entre memória imaginativa e memória cinética,


cf. GEHLEN, Arnold. LI hombn su n11!11mlt z11 y su !11g11r nr d m1111do.
1, 1

Salamanca: Sígueme, 1980, p. 220.


212 Os paradoxos do imaginário
elementar imprimiram um carimbo significativo na experiênçia;
esse viés significativo constitui a base da linguagem inicial de
qualquer ser humano. Desse modo, para o ser humano um mun-
do naturalmente desconexo vai-se transformando num cosmo de
sentidos produzidos, e o fervilhar de elementos insignificantes
adquire o novo rosto de objetos culturalmente denominados.
Uma das primeiras manifestações simbólico-míticas da lin-
guagem se expressa por meio da forma mímico-indicativo. Segun-
do os estudos de Wundt:

O brnço e as mãos desde o primitivo dt'sn1zvlvime11to do homem


fiZl.'mm as Vl'zes de ÓT,í;flOS com os quais-'"' collrm1 e nprea1dem os
objetos( ..) O menit10 fllmbém trnfa de collrer aqudt's objdos q11e,
por estarrm muito /onst', não podt' 11/cançnr. M'SSt' cnso, o movimen-
to de 11sse._ç;1m1r se fmnsjorma imedinfnmenlt' em ns5inn/11mmto.,º.

A indicação do objeto desejado é uma forma de lingua-


gem. Ela externaliza a tensão interna e manifesta publicamente o
simbolismo que o sujeito confere ao objeto querido. É na lensão
entre o desejo e a vontade que se constrói a linguagem; a excita-
ção entre sentir e querer impregna nosso sentido de mundo.
A impressão e excitação volitivo-emotiva, enquanto proje-
ção significativa na forma de linguagem, se expande impregpan-
do de objetividade todas as coisas e imprimindo à prática um
sentido. À medida que esta prática se amplia, a subjetividade
vai-se produzindo como identidade específica, vai adquirindo
uma maior auto-organização e progredindo de modo mais preci-
so nas formas simbólicas e nos modos da linguagem. A lingua--
gem que interfere decisivamente na produção da subjetividade é
ela mesma objetivada pelo sujeito que a institui coletivamente
como significação social. Existe uma relação duoktica entre lin-
guagem e subjetividade. A subjetividade produz a linguagem,
mas a linguagem, por sua vez, objetiva os sujeitos, socializa-os
numa visão de mundo.

140 CASSIRF.K, Ernst. Filosqjin de lns formas sú11bó/1à1s. l vol. México: Fondo de
Cultura Económica, 1971, p. 137.
Castor M. M. Bartolomé Ruiz 213
Devido ao alto processo de abstração que nossas formas
lingüísticas já adquiriram, desapareceu a grande maioria das re-
missões simbólicas presentes no início da formação da lingua-
gem. Porém sempre podemos descobrir algumas conexões eti-
mológicas que remetem à sua origem simbólica. Vejamos algum
exemplo: qual é a conexão aluai que podemos estabelecer entre
palavras e experiências tão distantes como o palpitar do coração,
uma dança, o pranto, a alegria, o insulto, uma precipitação, um
despenhadeiro, um abismo ou urna selva, entre outras?
Ao pesquisarmos a etimologia da palavra latina !>'lllfu!>~
percebemos que ela condensa um conjunto de experi[~ncias que
só posteriormente foram se desdobrando em palavras diferen-
tes. O snltus latino originário podia significar simplesmente sal-
tar. Mas os saltos se realizam de modo particular quando dança-
mos, por isso de snltus deriva o nome de um baile ou dança que
se chama de solar, que, por sua vez, deriva num tipo específico
de baile ou dança, no qual se salta mui lo, chamado sola ou jota,
típico de muitas regiões da Espanha. Mas o efeito simbólico do
snltus remete também à vertigem produzida pela altura; por isso
saltus também significa despenhadeiro ou precipício. Porém o
medo também pode estar na espessura de um bosque, por isso o
termo sa/tus passou a significar também selva ou bosque denso.
Mas a selva está cheia de vida, por isso snltus pode gerar um solo,
palavra que significa "pedaço de terra fértil". O simbolismo do
medo próprio do snltus nos fez chamar de sobrt'ssnllo o susto que
recebemos. O simbolismo do iialto, sa/tus, remete não só ao medo,
mas também aos saltos de alegria; por isso f'Xullnmos de alegria.
A excitação do .,"11/tus gerou a raiz verbal insu/tnr, já que no insulto
nos exaltamos e sobressaltamos emocionalmente. O simbolismo
do sn/tus remete também aos saltos do coração (cor-cÔrdi:,"); por
isso o termo latino snltus sib'Ilifica também palpitar, porque os
movimentosdocoraçãosãocomosaltos.Arede de remissões sin1-
bólicas do tenno snltus se amplia a experiências como o choro;
saltus significa também chorar ou soluçar com grandes prantos,
pois nos soluços nos exaltamos, sobressaltamos e, inclusive, exu 1-
tamos, se for um choro de alegria.
Este breve exemplo lingüístico serve para ilustrar a raiz
simbólica que de forma oculta e imperceptível subsiste nas di-
214 Os pllrndo:ms do imngtiuirio
------
wrsas formas da linguagem. Toda forma lingüística remele, de
um ou de outro modo, a uma simbolização significativa do real.
No processo de dezenas de milhares de anos, a humanidade foi
reelaborando as expressões lingüísticas na tentativa de especifi-
car melhor, definir mais, delimitar com precisão cada experiên-
cia e objeto. Nesse processo, a linguagem foi-se tornando cada
vez mais abstrata, longe do sfmbolismo originário direto que a
gerou. Porém também nas suas formas mais abstratas ela reme-
le, uma e outra vez, ao simbolismo do qual emerge e para o qual
refere.

A tensão simbológica na objetivação da linguagem

A tensão simbológica do ser humano é permanente e pro-


dutiva. De um lado, o pensamento lógico articula a realidade de
forma analítica, para, pt,steriormcnte, ir integrando-a em conste-
lações significativas cada vez maiores. Cada elemento particular
_mantém sua especificidade e, ao mesmo tempo, se articula num
conjunto. A dinâmica do pensamento lógico consiste em progre-
dir das coisas mais concretas ao mais geral, por meio de círculos
concêntricos, que estabelecem uma certa hierarquia de concei-
tos.
O pensamento simbólico procede de modo inverso. A pes-
soa impregna com um sentido denso e concentrado um objeto.
Ao fazê-lo, esse objeto adquire um significado especial acima da
importância dos outros objetos ou de outras significações possí-
veis para esse mesmo objeto. A intensidade dessa significação,
concentrada num objeto definido, expande-se sobre o entorno,
adquirindo então as feições de totalidade contaminada pela im-
portância particular de um objeto. Há uma remissão do sentido
específico do objeto à totalidade do entorno. A simbolização densa
e concentrada num objeto possibilita à pessoa experimentar o
entorno como algo único, p!eno, total.
9 simbolismo, ao contrário do pensamento lógico, não sin-
gulariza dentro de uma hierarquia. Ele remete a totalidade ao
objeto simbolizado. Este objeto adquire um sentido especial e
único no entorno, referindo o sentido do entorno à importância
Castor M M Bartoloml Ruiz 215
do objeto. Desse modo, o simbolismo, a diferença do logos, não
procede por ampliação de conhecimento a círculos mais amplos
nos quais se inscreve o objeto, mas por intensificação significati-
va do objeto. Esta característica da linguagem simbólica desau-
toriza a tese racionalista e hegeliana de que existe uma única lin-
guagem natural e que essa linguagem natural encontra sua cul-
minação no desenvolvimento da lógica. O instinto lógico, que cer-
tnmenft' estti encrnvndo na linguagem mqwmto tnl, 11110 pode esgotar,
devnndo-on nível d,1 ló,_,,ricn, todo quanto St' prtji/(urn nn v115ta plurnli-
dnde dns !ti1g11ngem;. 141
À medida que o ser humano _alarga a experiência simbóli-
ca, caracteriza mais amplamente e define mais concisamente a
prática da objetividade e dos objetos, que adquirem contornos
cada vez mais definidos. O poder objetivador do imaginário vai
solidificando as impressões em significados. A pura criação du
sem-fundo humano se condensa em sentidos do mundo para for-
mas lingüísticas definidas. As impressões significativas vivenci-
adas pelo sujeito não ficam em puras vivências interiores, pois,
ao externalizar-se, se objetivam na forma de linguagem. A lin-
guagem nunca consegue exaurir a totalidade da vivência e tem
que se limitar a expressar de forma restrita a experiência do su-
jeito. Mas, se a vivência não consegue expressar-se como lingua-
gem, morre na fugacidade das impressões.
A definição do objeto se realiza na integração dialética do
simbolismo e do logos; ele se urde na prática simbológica. O sím-
bolo o impregna com um sentido denso, e o logos o estrutura e
organiza os significados. Os primeiros sentidos lingüísticos cria-
dos pelo ser humano não pretendiam relacionar elementos nem
destacar características comuns. Não almejavam a formação de
conceitos universais ou de juízos sintéticos. Eles refletiam uma
concentração de sentido, uma condensação intuitiva num só pon-
to. A densidade concentrada era remetida a uma experiência de
totalidade. O sentido intenso de uma experiência cm projetado
como visão global de mundo. Essa condensação de sentido se
realizava na forma de representação afetiva e intencional.

141 c;ADAMER, l lans-Ceorg. La dio/édicn d,• Hegel: cinco ms11yos lterme11éuticos.


1'.1adri: Cátedra, 1981, p. 100.
216
-----------
Os paradoxos do àttagindrio
N11 língungt'flf Knte, IJIII' sefaln em Nova Cuímf, t'.risft• 11m11 p11lnvm,
bilin, que desígun uma tipo ôpecijico de ,•rvn, dt• talos duros t'forte-
mellf,, ,•1tm1'zadn na terra. Das raízes se supõe q11e .>tfo t'las as que 1'111
caso dt' tarl'moto 17Jrii1'11lnm n Iam, pnm q111• não s1• parta. Ao ser
i11troduz1iio ali o prego pe/051'11rop1'11s e se conh1n•r o Sl'II emprego,
n palm 1rn t'//l q111•sfão 11ti/izo11-s<' pnrn designnr o crnvo, mns
trn11s/ndo11-se no próprio tempo no nmme e às barros de Járo ou,
numa pn/nvm, n tudo aq111lo que rmlizn n função de "n,r;iientnr'~
Por outro Indo, nn /ingungnn infantil podt• ohsavnr-se
fir'IJiimlt'mmte ainda njóm,nfiio de smrelhnntes rmidnd,•s de s{í;lll~
ficado ll'koló,_r;ico, que às vezes corrt'spo1tdem em muito pouco n nos-
sos concdtos l,Ywàicos 011 se afastam ddes por completo. 141

Nas sociedades funcionalmente diferenciadas como as con-


temporâneas, os sentidos da linguagem se fragmentam e se au-
tonomizam num marco secularizado e racionalizado dentro de
um processo de diferencjação progressiva, dando a impressão
de que se auto-instituem autonomamente sem conexão entre eles
ou sem manifestar a matriz simbólica que as gera.
Como mencionamos anteriormente, a experiência huma-
na, se não se objetivasse na forma de linguagem, não só morreria
na incomunicabilidade, mas podemos afirmar que seria incom-
pleta, porém toda linguagem integra a criação pessoal e a dimen-
são social. Esta é uma questão remitente que uma e outra' vez
reapar2ce e que precisa de maior atenção. O processo de reflexão
sobre a objetivação da linguagem colocou algumas questões: ar-
ticulação do conhecimento sensível deve ser compreendida como
algo anterior ou posterior à linguagem? A linguagem é causa ou
efeito da evolução do conhecimento sensível?
Por princípio, esse tipo de questões está mal colocada. Entre
o conhecimento sensível e a linguagem não existe uma disjunti-
va entre um antes ou um depois, mas uma articulação que trama
ambos de modo indissolúvel. Existe uma c_onexão interna entre o
conhecimento sensível e a linguagem que os entrelaça; essa co-
nexão é de interdependência eco-implicação. A evolução da lin-

142 CASSIRER, Ern~t. farndn .1/ ,jí•,_•fo dd concrpto de simho!o. México: Fondo de
Cultura Económica, 1989, p. 110-11.
Castor M. M. Bnrto!omé Ruiz 217
guagem modifica o conhecimento sensível e vice-versa. No en-
tanto, arnbos estão enraizados na mesma matriz simbólica que
os gerou na forma de significados sociais. Ambos, conhecimento
sensível e linguagem, são criaturas do imaginário. Não existe um
conhecimento sensível fora do sentido e conseqüentemente fora
da linguagem. A sentirmos e percebermos o mundo, fazemo-lo
conotando sentido para todas as nossas sensações e percepções.
Não existe uma sensação ou percepção neutra ou natural fora do
sentido; sentimos nossas sensações a partir de um modo cultural
de percepção. Nossas percepçõcs estão retrabalhadas pelos sen-
tidos da linguagem por meio dos quais lhes damos significado.
Nem as sensações mais primárias escapam ao imperativo da her-
menêutica simbólica. Quando sentimos frio, calor, fome, sede,
necessidade de abrigo, atração sexual, etc., cada uma dessas sen-
sações é vivenciada de modo cultural e nossa prática reflete um
modo pessoal e social de interagir com elas. Forque a natureza
da matriz simbólica não pode definir-se em explicações lógicas,
temos de formular sempre perspectivas de aproximação à com-
preensão de nossas sensações e percepções, embora nunca o con-
sigamos fazer de modo conclusivo. A indeterminação do sem-
fundo humano se manifesta como natureza criadora que institui,
de modo simbológico, o sentido do mundo e o transforma, hu-
manizando-o ao tempo que a indeterminação criadora se materi-
aliza produtivamente.
A insuficiência da linguagem para exaurir o mundo não o
impede de ser o elemento que estmtura a prática do sujeito. Por
sua vez, a prática do sujeito condiciona e transforma os modos e
sentidos da linguagem. A direção e o progresso de uma palavra
estão guiados pela práxis, e concomitantemente a práxis é direci-
onada pelo sentido que damos à nossa ação. Por isso, a ftguração
simbólica da palavra não reflete tanto a forma das coisas como,
principalmente, a atividade humana.
A práxis é o elemento articulador do processo de consti-
tuição da subjetividade e de configuração da própria sociedade.
À instituição da linguagem está correlacionada com a práxis, pois
existe uma interação dunlélicnentre a linguagem e a práxis. A prá-
xis define o modo da linguagem e dimensiona os sentidos em
função das experiências concretas que o sujeito e a sociedade cons-
218
----
Os paradoxos do imasürdrio
----·---- ------
troem, porém a práxis se configura a partir da linguagem. Toda
práxis está inserida num cosmo de representações instituídas que
define o modo específico de agir das pessoas desse grupo social.
A práxis é estruturada a partir dos sentidos construídos pela lin-
guagem. A cultura, na sua totalidade, pode ser considerada um
produto da linguagem. A linguagem funciona como eixo articu-
lador da atividade cultural do ser humano, sendo que ele mesmo
é um produto cultural. Não existe atividade humana, por mate-
rial ou incipiente que seja, que não se fundamente na linguagem;
chamamos cultura no âmbito dn rea!idndt' que estd estrufurndn lingriis-
ticamente.143

143 HAJIFR:1-IAS, Jürgen. 1t·orí11 de !1111crüín conumimtim. Madrid: Taurus, 1973, p.


128.
A tensa coexistência das funções denotativa e
conotativa da linguagem

O que njiibuln i11ve11fou, muitas vezes n hislóni,.o rtproduz.


Victor Hugo

Os lirmks dn /i11g11n:,;,e111 sig!!!ftmm os linuks do meu m1mdo.


Lud;vig Wittgenstein

A compreensão hermenêutica da linguagem não é uma


evidência e muito menos um consenso. Ela deve conquistar seu
espaço no complexo labirinto de visões que a retratam dos mais
diversos modos. Para poder caracterizar as possibilidades her-
menêuticas da linguagem, temos que realizar um diálogo difícil,
tenso, mas fecundo com aquelas que podemos denominar vis.ões
formalistas, objetivistas ou analíticas da linguagem. ·
Nosso pré-.-uposto (prejuízo) hermenêutico desenha a lin-
guagem como um méd1ilm indispensável e imprescritível por meio
do qual se estabelece a correlação entre a pessoa e o mundo. Sua
mediação é sempre significativa, isto é, simbólica. Ela impregna
de sentido a realidade, constitui-a significativamente e a ordena
como um cosmo com coerência própria.
Na história da filosofia tem prevalecido a concepção ins-
trumental da linguagem. Segundo esta visão, a linguagem deve
220
-------
Os pnmdoxos do imaghuirio

ser compreendida como um mero instrumento de comunicação,


como um sistema de signos que são usados de modo instrumen-
tal, desconsiderando a impregndncia significativa que a produz e
o enroiznme11to simbólico que a constitui.
A concepção instrumental da linguagem já se desenvol-
veu nos primórdios da filosofia grega. Ela realizou a cisão entre o
devir imperfeito da linguagem e a perfeição do logos realizada
ato de pensar. A linguagem pertence ao instável mundo dos sen-
tidos, enquanto o pensar do logos humano é reflexo da essência
do ser. A linguagem é inserida na ordem do sensível, do limita-
do, da percepção incorreta, é o modo de expressão do mundo
das sombras. Ela é um signo que representa sempre uma cópia
imperfeita do ser.
A concepção mítico-mágica mais primitiva estabelecia um
nexo de identidade ~ntre a palavra e o objeto. A palavra manifes-
tava a essência do objeto. A pronúncia da palavra prt'st·ntiftc1w11 o
objeto. Por isso, conhecer o nome de uma coisa equivalia a pene-
trar na sua essência; por meio do nome se conseguia desvendar a
natureza oculta das coisas. As palavras e as coisas se imbricavam
de modo indissolúvel, impossibilitando a separação entre a lin-
guagem e o objeto. O objeto se identificava com a palavra que o
designava, e a palavra revelava sua essência.
Na Grécia clássica, Heráclito ainda defendia a existência
de uma unidade indiferenciável entre u Todo da Linguagem e o
Todo da Razão. Por sua vez, estabelecia uma unidade entre a
Plzvsise o Logos. 144 Será Parmênides que em nome do pensar puro
do ser iniciará uma crítica radical da linguagem. Para ele, a lin-
guagem é uma representação efêmera e enganosa de um mundo
falsamente instável que apresenta a realidade como se fosse um
puro devir. O devir da linguagem oculta o verdadeiro ser das
coisas; o ser~ estável e permanente, corresponde a uma essência
única que não se equipara às formas lingüísticas sempre volú-
veis e transitórias que criam a ilusão de um mundo cm constante
mudança.

144 Emerich. "Historia de la Hcrm.,n{,utica". ln: ORTIZ-OSÉS, Andres y


CORETII,
Patxi (org.). Dú:cionario de Hamencúlia1, Bilbao, Universidad
J.ANCER(J!;,
de Deusto, 1997, p. 302.
Ca.-;tor M M. Btlrtoloml R11iz 221
Platão, seguindo a postura de Parmênides, defende já no
Cnitt!oqi.1e as palavras não possibilitam o acesso à verdade, pois
elas não têm um autêntico significado cognitivo. Fiel à sua filoso-
fia das essências, postula que o conhecimento destas não pode
realizar-se mediante as palavras. Para tal conhecimento, a alma
necessita ter uma relação direta com o mundo das essências. O
modo de verdade ou falsidade da linguagem se coloca em rela-
ção ao grau e à veracidade com que consegue explicitar o mode-
lo original que existe no mundo das idéias. Não existe urna vin-
culação direta entre o pensamento e a linguagem, pois a lingua-
gem só consegue manifestar a aparência das coisas -sua visibili-
dade ou exterioridade-, a qual é sempre sinônimo de imperfei-
ção ou impureza. O verdadeiro filósofo deve ser capaz de supe-
rar a linguagem e elevar sua alma para o conhecimento direto
das idéias.
Aristóteles nem sequer manifestou interesse pela nature-
za da linguagem. Para ele, a linguagem é uma forma instrumen-
tal da razão e como tal a usou. A linguagem se faz necessária e
imprescindível como sistema de signos que permite transmitir o
pensamento, organizar a lógica e designar os conteúdos necessá-
rios para que as pessoas e as sociedades se entendam. A palavra
faz referência ao conceito, e o signo ou linguagem que usamos
para designá-lo é o instrumento que utilizamos para poder ex-
pressar a essência das coisas. Q pensar purpÍ!!.Q.t:'.lilLda essência
(now-'), tem prioridade s.obr.e P trªn~üoricdade da linguagem (k-
gdn).
Ao longo da história da filosofia ocidental, houve uma pro-
funda identificação entre o pensamento e o acesso à essé:~ncia das
coisas e uma suspeita generalizada sobre a instabilidade e volu-
bilidade da linguagem. A linguagem ficou marcada pela função
instrumental que a utiliza como elemento necessário a serviço
das idéias, porém num nível inferior a elas. A essência do conhe-
cimento, a verdade, se condensa no pensamento, nas idéias, como
se houvesse possibilidade de um pensamento fora da linguagem
ou de idéias sem palavras. Neste caso, os conteúdos têm priori-
dade sobre a linguagem que os transmite, como se eles existis-
sem fora da linguagem. Seguindo esta linha de pensamento, Leib-
niz chegará a formular a pretensão de constmir uma linguagem
222 Os paradoxos do imng1i11írío
----- ------------
perfeita, universal corno um sistema de signos que denota um
único significado, o qual estará em perfeita sintonia com a ver-
dade objetiva ou natural das coisas. 1·15

Dir-sr-ó qut', em vez de imputar 05 tinpnft·iriit•s às pnlnw11s, cumprr


nntrs 11trib11í-lns no nos,o mtmdhnmto: a isto rl'spondo qut' 11s 1111/n-
vrns se infr'rpõem de ln/ mnm'1r11 e11frt' o nosso espírito r n rlf'rdnde
d11s coisas, qul' SI' podem compnrnr as pnlovms com o meio pelo quol
possam os raios dos objetos r•,'sí,,rr:,, que muitos l'l'Zl'S ôpn/1,n 1111-
,,,·ns sobre os nossos olho5; estou fentodo n crer ,711,•, s,• 1'Xnmintisst'-
mos mmi;n_fundons imprrjÍ'ifões do litrsurz,;1•111, desnpnrecenn por si
111es111n a maior p11rte dos di,cursos, sendo que o caminho do co11/Je-
airll'11fo, e tnlwz ffl!Nbém dn pnz, rstarin mais nberto 110s homens. w,

O formalismo da linguagem e o dualismo de suas ft..mções

O neopositivismo e suas derivações teóricas, entre outras


visões contemporâneas, constituem as linhas de pefüamento que
com maior ênfase teórica e êxito acadêmico desenvolveram urna
concepção instrumental da linguagem. Para tal fim, estabeleceu-
se uma primeira divisão interna às funções da linguagem. Defi-
niu-se que a linguagem possui uma/unção dmolntívn e outra co-
110/ativn. A função denotativa tem a capacidade de designar as
coisas de um modo objetivo, mostrando como elas se manifes-
tam na sua natureza ou nas suas propriedades. Esta é a lingua-
gem própria da ciência. É uma linguagem abstraia e objetiva,

145 Com esk mesmo objetivo, Bertrand Russell tentou construir uma lingua-
gem o mais abstrata possível, cuja perfeição se realizaria na correspon-
dência unívoca entre os signos e a realidad~! das coisas. Evitando, dcslc
modo, os inconv .. nicntcs de uma linguagem permanent.. mente conotativa
de sentidos diversos e até divergentes que só induz a uma perene
ltermme11s15 errônea das coisas. CLACK, R.J. !,11 fi/o_çoj/11 tfd lc11gulljf' r'n 8.
Russd!. Valcncia: Fernando Torres, 1976.
146 LEIBNIL, Gottfried \\'ilhclm. l1kmo.< f'lll'rJio.< sobre o e11/emiimmto '11111111110. São
Paulo: N"ova Cultural, 1999, p. 331
C115for M M. Barto/omé Ruiz
------------------------~----------
223
que denota o sentido natural das coisas, designando-as como elas
realmente são a partir de uma comprovação empírica daquilo
que se afirma delas.
Diferente da denotativa, a função conotativa não expressa
sentidos objetivos ou naturais das coisas, mas evoca sentidos pro-
duzidos pela pessoa. Ela é eminentemente subjetiva e, por isso
mesmo, é uma forma de linguagem que não consegue represen-
tar uma realidade natural própria das coisas. É um tipo de lin-
guagem que não se submete ao rigor da análise científica, e por
esse motivo não se pode comprovar a verdade ou a veracidade
de suas afirmações.
O neopositivismo persegue a formulação de uma lingua-
gem científica que denota o sentido verdadeiro, científico, das
coisas. Seria a única linguagem veraz e verdadeira. Sem dúvida,
esse tipo de linguagem é sempre uma linguagem denotativa e
nunca uma linguagem conotativa. Parle do pressuposto de que
as proposições que não podem ser demonstradas não existem,
são pseudoqueslões. Esta é a problemática central dos diversos
autores que integram o neopositivismo, que se consolida e di-
funde a partir da chamada escola de Viena 147 •
Um dos pensadores mais representativos dessa tendência
foi Ludwig Wittgenstein, na primeira fase do seu pensamento,
principalmente na sua obra Tractafu:, Lopco-p/11/0.-,oplticw;. Wit-
tgenstcin, na sua primeira fase, parte da convicção de que é pos-
sível construir uma relação denotativa entre a linguagem e a rea-
lidade. É possível construir imagens objetivas da realidade, po-
dendo afirmar que n n7m'sentariíodo mundo é linguasem. Para que
esta asseveração seja correia, devemos expurgar a linguagem de

147 A escola neopositivista, também chamada de positivismo lógico, tem sua


origem no assim chamado círculo de Viena. Os antecedentes deste círculo
se formaram na segunda década de nosso século pela obra de Hans l lahn,
Otto NeuraU1 e Philipp Frank. Seu objetivo principal :;ra completar e pre-
cisar as teses do antigo positivismo, tendo como rdcrt'.•ncia a modalidade
criada pelo grande ffoico Ernst Mach. Inclusive, no começo, o próprio dr-
culo se auto-denominou V,,retn Ernst M,udr (Grupo Ernesto Mard1). A ,•si,•
grupo se uniram depois outros pensadores como: Moritz Schlick, -qu,• "'
integrou em 1922; R. Carnarp, H. Frcigl, Bv. Juhos, J. Kraft, F. Kmtfmann,
li. Neider, F. Weismann, E. Zilsel.
224 Os paradoxo., do im11ginrírio
-------------
toda e qualquer ambigüidadc, ü;to é, temos que purificar a lin-
guagem de qualquer função conolaliva, a fim de construir uma
linguagem com signos e regras precisas que evitem qualquer tipo
de equívoco. Para lanlo propõe uma linguagem o mais formali-
zada possível.
Do mesmo modo que aos fatos correspondem as proposi-
ções, aos objetos correspondem os nomes. Assim como os objetos
não aparecem no mundo a não ser cm seus nexos e por seus ne-
xos, assim os nomes ocupam seu lugar na linguagem na medida
em que figuram em proposições: Só a propos,~tio lt'm smlido, só no
contexto d11 propostf'flO o nomt' lt'm s(rnificado. 148 Da mesma forma
como a totalidade dos falos constitui o mundo, assim a totalida-
de das proposições constitui a linguagem. As proposições com-
plexas são passíveis de análise, decompondo-as em proposições
simples; de igual modo, os falos complexos são suscetíveis de
análise, decompondo-os em fatos elementares.
Já que uma prop~sição pode ser falsa, para discernir a ver-
dade da falsidade de uma proposição, é necessário precisar a
natureza da correspondência que existe entre a linguagem e o
mundo. A linguagem não só contém proposições verdadeiras, mas
também falsas. Por isso não representa a realidade a modo de
uma fotografia, senão que n imagem figurn a realidade represmt11n-
do uma possibrlidade dn exi•;féncin e da 11iio-existh1cit1 dos/atos atômi-
cot.HY_ Da mesma forma que as proposições verdadeiras, as· falsas
também desempenham uma função importante, contribuindo
para indicar o que acontece na realidade ao evocar os estados de
coisas possíveis, que não cshio realizados. Possíveis enquanto
existem formulados pela linguagem.
Wittgenstein faz uma distinção entre sentido e valor da
verdade de uma proposição. O sentido deveex;t~ar-sc inde-
pendentemente da verdade da proposição. Uma proposição não
pode ser verdadeira ou falsa se não está dotada de sentido. E
uma proposição está dotada de sentido quando representa uma
situação possível.

148 1,•n-rGLi:s!STFI'-, Ludwig. li11ctt1l11s logú·o-pJ11l0..-oph11:u::, 3.3


149 WITTGDISTEI:S:, Ludwig. T,,1,!tl/11.< l.,,gko-p/11/osopl11á1.<. 2.20
Castor M. M. B11rtoloml Ruiz 225
Wittgenstein utiliza o conceito de sentido de uma proposi-
ção como sinônimo de correspondência entre a linguagem e uma
realidade possível. Realidade possível não quer dizer que exista
de fato, já que uma proposição falsa também tem sentido na me-
d ida em que é possível, ainda que não seja verdadeira, porque
não existe como realidade empírica 150 • Considera-se que uma lin-
guagem está dotada de sentido quando se ajusta a uma realida-
de possível; caso contrário, a linguagem não tem sentido. O sen-
tido de uma proposição está, pois, em relação direta com o con-
teúdo possível dela. Por isso as contradições lógicas, que são pro-
posições que não representam situações possíveis e que não po-
dem construir uma imagem de um estado real das coisas, não
podem ser consideradas com sentido 151 • Elas estão simplesmente
vazias de sentido, o que equivale a dizer que não têm conteúdo.

Uma propos,,iio deve com1111icar com 1Tprt"Ssõl's vdhas 11111 st•nfldo


novo.
A propostfiio tJllt' nos co1111micn um estado de coisos dei~· l'sfar fam-
b;m ,,.,_.,y11anl11w11t,, com•ctada com o rslado dl' coi5flS.
E 11 ,·onf'xiio co11sú;f1•, preoi;amcnlr, rm que é sua figura ló,_ricn.
A proposição só di:: algo mq11n11to é 11111n figura. 152

Uma proposição é verdadeira ou falsa se está de acordo ou


não com a realidade. A proposição por si mesma não indica se é
verdadeira ou falsa. Para verificar sua verdade ou falsidade, é
necessário compará-la com a realidade. A proposição é, conside-
rada como tal, unicamente uma manifestação de sentido. O sen-
tido da proposição é imanente a ela: A proposição mostra seu senti-
do. A proposição, se é verdadeira, mostra como estão as coisa.~--_ E diz quf'
as coisas t"stiio assim. 151
O sentido de uma proposição se explicita na relação
que a proposição leva em si mesma e que ela indica com a possi-
bilidade de sua verdade e, conseqüentemente, também de sua

150 Ludwig.
WllTGENSTElN, Trndafu.ç !..ogú·o-plulo,;ophim.ç. 4.061.
151 Ludwig.
WIITGENSTElN, Trncltlfus logú·o-p/11/osophicus. 4.461.
152 WITIGENSTEIN, Ludwig. Trndnfus logico-phi/osophrms. 4.03.
153 WIITGENSTEIN, Ludwig. 1i11ctr1f11s Logú·o-philo~·apl11á1s. 4.022.
226 Os porndoxos do ímaghzdrio

l,1lsidade. O domínio do sentido é o domínio do possível, e ele


l'Sl,l descrito pelo conjunto das proposições. Para determinar o
Sl'nlido de uma proposição, é necessário dar evidência à possibi-
lidade de sua verdade e indicar em que circunstâncias ela corres-
ponde a um estado de coisas realmente evidente. Este é o princí-
pio d11 verifímpio, que constitui um dos princípios fundamentais
do neopositivismo. Ele diz que uma proposição está dotada de
sentido quando é possível e só quando é possível determinar em
que condições é verdadeira. O sentido de uma proposição se iden-
tifica com o método de sua verificação.

Um exnnplo para esdart'l:er o conceito d1' vadnd,,(... ) a uma propo-


sição sem sentido não correspondi' nada em absoluto, jtf quF niio dF-
signa 11enh11mn cot~"tl (vt·rdad,•-vnlor), cfljns propnedod,,s se clrnmem
jó/517s ou z1crd11dt•irns; o l'abo Jp umn proposipro mfo é- como ocrc-
ddom Fn~ft' - 'é wrdaddro" 011 "ifa!,o'~ mos aquilo ,;m• é l'ndo-
ddro d,,,~, conter .jtf o verbo. 15·1

A partir desta perspectiva só são admissíveis as proposi-


0ções ana Iít icas - sejam analiticamente verdadeiras ou falsas - que
não falam de nada e as proposições de fato, que são as proposi-
ções científicas. As proposições filosóficas tradicionais que não
podem traduzir-se cm proposições científicas não estão dqtadas
de sentido: A mniorparft' dns proposições t' '7lll'!:ilÕ1's que&' tém escrito
sobre n mntérinfilosijicn niio siiofalsos, mn.,; sem Hentido. 155 O discurso
verdadeiro representa o mundo, tudo o que nele acontece, o con-
junto dos fatos. Ou seja, aquilo que se pode dizer, que são as pro-
posições da ciência natural1 56 .
A proposição, se é verdadeira, mostra como estão as coisas
l' diz que as coisas estão assim. Mas Wittgenstein, já no Tmct,lffls,
concede que toda proposição tem uma função dupla: representa
urna situação, mas também mostra um sentido. As proposições
da linguagem podem expressar o mundo, porque têm cm comum
com o mundo o elemento da forma, mas a forma não pode ser

l'••I Wll l<,INSTHN, Ludwig. Tmdafus Logü·o-ph1Josophk11.s. 4.063


l','1 Ludwig. 1rndnlus Logà-0-17/11/osophú·us. 4.003
l\'I li< ,INSTEIN,
l ',11 wn 1, ,1:--s·mN, Ludwig. Tmcflltu.s· Logico-p/11/osophicus. 1.11, e 6.53
Castor M. M. Bnrtolomi Ruà: 227
dita, o sentido não pode ser tematizado. A linguagem é apta a
nos fazer compreensível e inteligível o mundo, mas somente à
medida que refaz a seu modo o jogo do mundo. A proposição
imita o fato, sua articulação é diretamente a articulação do fato,
mas não a expressão de uma relação inteligível que residiria no
fato. A proposição revela o sentido no alo realizado, não no ato
significado. Há nos fatos, pois, um tecido ininteligível, mas não
há verbo que lhe corresponda. Mediante a linguagem nos intro-
duzimos numa atmosfera de compreensão, mas .a compreensão é
o resultado da linguagem e não sua fonte. Sem dúvida, é neces-
sário passar pela linguagem para que aconteça a compreensão,
para que o fato deixe de ser uma evidência muda, para que se
desprenda o sentido do fato. Mas a linguagem atua a modo de
intermedi.hio e não de representante. Neste aspecto, Wittgens-
lein aceita um certo sentido evocativo inerente à linguagem, uma
dimensão conotativa que ele mesmo desenvolverá plenamente
na sua segunda fase com sua concepção de }0,í;O.'i dn li1t,í;llll,_([t'm:
Há, certnme11t;•, o itrrxpressdvel, o que se mo.,·tm n si 1111•smo; isto é o
místico15 ;.
Já o mesmo Wittgenstein, na sua primeira fase, anuncia
que seu pensamento conduz a uma contradição insolúvel entre o
conceito de proposição verdadeira por ele defendido e a própria
reflexão filosófica. E conclui que é melhor não dizer nada, a não
ser aquilo que se pode dizer, que são as proposições da ciência
natural1.58 • O melhor que a filosofia pode fazer é calar-se, ficar
muda ou modificar seu objeto e o método para cingir-se apenas à
linguagem científica.

Mi11h11.- proposições MO e.-d11rec1:dom.- deste modo; fJ.Uf'llt me com-


prwndf' acaba por rf'conheca 1711e carecem de se11hdo, 51wrpre '7lfl'
q111•m compn•1•11da /t'11h11 snído atrnz 1és delas paraJõra ddas. (Dn1c,
por assim d1z1'r, tirar n t'scadn depois de ta subido.) Dew supaar
estas propo.,;íç&1s, e11tiio !tw111 justa z,fStfo do mrmdo.
Daquilo qul' mio s,• pod1•fala,; é mdhorjlcnr ca/11do. 159

157 WITIGENSTEIN, Ludwig. Tmct,1/us Lagim-p/11/o.<op/11ms. 6.522


158 Wf1TGE'.':5TEIN, Ludv,rig. Tmdnlus Logko-p/11/osophicw;. fí.53
159 1v1ncr.~STEIN, Ludwig. Tr11dntus h1pá1-p/11losophicus. 6.54.7
228 Os parndoxos do imaginário

A maioria dos positivistas do círculo de Viena dá um pas-


so além de Wittgenstein. Eles negam a possibilidade de que a
linguagem mostra coisas que não pode dizer. O campo do racio-
nal se identifica com o âmbito do discurso com sentido e, além
deste último, não existe nenhuma realidade que possa ter qual-
quer significação para a pessoa.
Para Moritz Schilink - um dos fundadores do círculo de
Viena e defensor da teoria empirista radical- o que pode ser dito
é a lógica: os dados sensíveis são zitdizíveisporque são subjetivos.
Ele estabelece uma distinção entre conhecer e experimmtar. O úni-
co meio eficaz de controlar o intfóvel, isto é, as qualidades sensí-
veis do objeto experimentadas pela pessoa, consiste em aplicar o
pri11c{pio de verificação. Segundo este princípio, n sign{ftcartlo de umn
p,vpos1i'lio se idmtifico com o método de suo verifica1-'lio. No empiris-
mo radical existe uma identificação plena entre o sentido de uma
proposição e as condições de sua verdade.
Um dos princípios do neopositivismo afirma que a lii1gua-
gm1 oferece uma ordem sú;f~mdtica que se e:tplicn e interprf'fo por si
mt•sma, sem reL-un;o n 111110 suhjf'fimdndc n:Jlcxivn. A idéia de su bjeti-
vidade é colocada entre parênteses ou negada. Desse modo, a
hermenêutica perde seu sentido, porque o sentido hermenêutico
não faz parte da linguagem. No seu lugar, o neopositivismo apre-
senta um sujeito cujo comportamento lingüístico é descritível.
Para tal finalidade, o pensamento behaviorista desempenha um
papel essencial.
No neopositivismo se impôs amplamente a concepção se-
miótica de Charles Morris, que distingue entre sintaxe, semânti-
ca e pragmática:

Sti1tnx1' como o estudo dns rdnçõesfarmnis dos signo5 mire si(... ),


semâ11lú:n como o estudo dns rd11{Õé'S dos signos com o obJl'fo no t711n/
os signos ;,"/fo nplkdveis (. .. ), prngmdlkn ,-01110 o estudo dns re/11çô1'S
dos signos com a p1'SSMS que os interpretan,16-0.

160 :!-lORRJS, Charles. Fundntions effite Theory efSisns. Chicago: Fundation.<; of


Sc:ienn,, 1938, p. 6.
Castor M. M Bnrtolomi Ruiz 229
- - - - - - - - - - - - - -- -~ -----------
. Seguindo o pragmatismo americano, para Morris ~~
i;,_ort~Inento humano es_tá determinado pelos interesses vitais. E
possível e neces.c;ário-admilir1nocfâHââdes significativas. Junto
com os juízos de constatação, devemos aceitar enunciados va-
lorativos ou enunciados que expressam necessidades. Para Mor-
ris, é essencial a compreensão do comportamento lingüístico
desde uma perspectiva behaviorista que o caracteriza como um
processo empiricamente constatável. No comportamento reati-
vo habitual, a pessoa usa signos. Os signos devem ser compre-
endidos como estímulos desencadeantes e, portanto, como si-
nais por meio dos quais a pessoa dirige seu comportamento. O
comportamento lingüístico não é decifrado desde seu interior,
como pretende a hermenêutica, mas simplesmente observado
desde fora.

O contraponto da hermenêutica

As concepções do neopositivismo lógico já suscitaram


amplas reações de todo tipo. Nossa contribuição pretende esta-
belecer um diálogo crítico com algumas das posições anterior-
mente expostas. Retomando a visão semiótica proposta por Mor-
ris, podemos constatar que os três aspectos nela descritos se im-
bricam de modo tenso, longe de constituir modos independentes
da linguagem, implicam-se mutuamente e interagem dialetica-
mente no seu processo d e construção. A distinção é sempre teóri-
ca, mas a implicação é real. As diferenciações conceituais são úteis
e até necessárias como formas metodológicas para poder nos
aproximar da compreensão da linguagem, porém n~o podemos
confundir nossas distinções analítico-metodológicas com dimen-
sões ontológicas da linguagem. Sintaxe, semântica e pragmática
são perspectivas da linguagem, distinções formais que remetem,
de modo compulsivo, ao sentido dado para a sintaxe, ao signifi-
cado social da semântica e à dimensão cultural da pragmática.
As distinções formais nos ajudam a introduzir-nos analiticamen-
te nos interstícios da linguagem, mas não nos habilitam a seg-
mentá-la cm fragmentos autônomos e independentes da matriz
hermenêutica da qual se originam.
230 Os pnmdoxos do im,windrio
O empirismo radical provoca uma redução da linguagem
ao mero sentido denotativo, enquanto ela teima em mostrar-se
como proto-significação social que conota um mundo indefinido
de sentidos possíveis. O sentido não é algo objetivo ou unívoco
que está no objeto. O sentido é sempre uma construção significa-
tiva, realizada pelo sujeito em interação dialética com o mundo.
Alguns sentidos são suscetíveis de comprovação empíri-
ca, possibilitando, desse modo, a constituição da linguagem ci-
entífica. Porém os sentidos científicos são uma forma possível,
entre outras, de compreender o mundo; eles não esgotam a pro-
dução de significados verdadeiros do mundo. A linguagem cien-
tífica está inserida na dimensão hermenêutica, mostrando uma
perspectiva válida ou verdadeira da realidade, porém ela não
define os limites da verdade, não esgota as pretensões de valida-
de das proposições lingüíslicas, nem exaure as possibilidades de
compreensão do mundo. A linguagem científica e seus métodos
de verificação não pode~ enclausurar a verdade nos limites da
empiria. Não pode nem deve ser negado um estatuto próprio à
verdade científica, mas também não pode ser enaltecido ao ex-
tremo de considerá-lo como o único modo de verdade ou como
única forma válida de sentido. A verdade não se restringe à com-
provação empírica 161 • Ela não se identifica com o método de veri-
ficação, pois as próprias formulações conceituais da f'lnpirin, as-
sim como seus marcos teóricos ou as cosmovisões que a o'rigi-
nam estão inseridas no processo da hermenêutica. üe fato, todo
processo de investigação científica está perpassado pelos inte-
resses pessoais e sociais que interferem diretamente na práxis ci-
entífica, no método por ela usado e nos resultados de verificação
obtidos 162 •
A linguagem científica possui um estatuto próprio, uma
importância indiscutível que deve ser aplaudida e desenvolvi-
da, embora ela constnia também os limites de sua própria verda-
dl•, Não se pode negar a função denotativa da linguagem, sob
1wna de cair no ceticismo diluente que deixa as palavras como o

li, 1 l',1r,1 uma crítica às diversas concepções formalistas da linguagem d.


1 AI •1mm-:, A. Lns lh11it11cio11cs i11tcm11s dd farm11/ismo. Madri: Tecnos, 1972.
111.1 IIAlll·KMAS, Jurgi.in. Conhecimento e 111tcrcs5r. Rio de Janerio: Zahar, 1982.
Castor M. M. Bnrtolom/ Ruiz 231
único território próprio para a ação humana e faz da retórica um
instrumento de persuasão que deve substituir a ciência. Este é o
caso clássico de Górgias de Leontinos (484-376 a. C.), que, persu-
adido da inexistência da verdade (nktltein) e da inviabilidade da
opinião (doxn) como modo de conhecimento válido, confere à
palavra uma autonomia própria, quase sem limites, já que ela
não está submetida aos vínculos do ser, porque simplesmente o
ser não existe: A palavra é uma srnnde dominadora, que com um cor-
po pequenino e invisível realizo obras divinns163 •
Conferindo um estatuto de verdade singular ao conheci-
mento desenvolvido pelo método verificativo próprio da ciên-
cia, temos de afirmar concomitantemente que as potencialidades
da linguagem superam a mera função denotativa. As formas pos-
síveis da verdade transpõem todos os limites que pretendem en-
curralar a linguagem em um mero sentido formalista. A lingua-
gem, enquanto prato-significação social, transborda todos os re-
ducionismos analíticos, induzidos pela sua função denotativa,
assim corno também questiona os metaforismos alucinatórios,
deduzidos de sua função conotativa. Ela é uma criação socioistó-
rica, um produto do imaginário pessoal e social. Tudo o que o ser
humano e a sociedade fazem, pensam, criam ou produzem reali-
zam por meio da linguagem e na forma de linguagem. Não exis-
te possibilidade de criar, de pensar, nem de existir, a não ser por
meio da linguagem. Ela constitui o modo de ser da pessoa e da
sociedade.
A linguagem não é um mero instrumento que o ser huma-
no usa; ela constitui a dimensão antropológica por meio da qual
ele conhece o mundo, interpreta-o e o transforma. Por isso o ser
humano é essencialmente um hermeneuta do mundo e da vida.
Enquanto para o resto das espécies animais o mundb é algo in-
significante - circunscrito aos limites de sua programação gené-
tica ou do instinto -, o ser humano o transforma cm um cosmo
com sentidos por ele produzidos. Institui significativamente to-
das as coisas, não a partir de um sentido natural dos objetos, mas
por meio da produção de significados. Estes significados são uma
criação hermenêutica das pessoas e das sociedades e não podem

163 GORGIAS LEONTI'"OS. 1:/ogio de flden11. 8, 12-14.


232
------
Os paradoxos do imngindrio

ser inferidos da mera objetividade do mundo, nem podem se li-


mitar à simples comprovação empírica. As próprias pesquisas
científicas e os resultados de suas investigações dependem, em
grande parte, da perspectiva hermenêutica com que se realiza a
compreensão do objeto de investigação. As conclusões científi-
cas não se observam só de modo empírico, mas se produzem de
forma imaginativa pela interpretação criativa dos fotos.
A linguagem não possui uma mera fonção denotativa, que
conduz à verdade objetiva do mundo; ela também tem uma di-
mensão conotativa, que produz uma multiplicidade indefinida
de sentidos para cada coisa ou circunstância. As funções denota-
tiva e conotativa não se dão de forma isolada ou dual, elas se
implicam de modo dialético no processo de constituição da lin-
guagem. Não existe uma linguagem meramente denotativa, pois
toda comprovação objetiva contém inerente uma interpretação
do mundo: A redupio completa do discurso aoformal não parece rl'llli-
z,ívef'ó4. Mas também nãq é possível pensar uma linguagem pu-
ramente conotativa - a não ser como patologia-, pois toda cano-
lação de sentido deve ter uma base empírica no objeto ou nos
fatos que possibilitem e justifiquem racionalmente a criação des-
se sentido. A mera linguagem conotativa, sem referência à reali-
dade do mundo, nos conduz à afirmação de Beckett no seu teatro
do absurdo: O que é qut' você qul'I; meu senhor? f:':ristem só palavras.
Não hd outm coisa1 65 • •

A linguagem tem uma relação dialética com o mundo. Ela


está influenciada pela realidade; os sentidos que ela institui, em-
bora não se esgotem na verificação das proposições, devem ter
sempre urna certa relação com os fatos. Mas a linguagem tam-
bém cria o mundo, não no sentido idealista. Ela produz novas
formas compreensivas de ser que não estão dadas na verificação
formal dos objetos e com isso estimula modos plurais de criação
humana e de transformação social.
A linguagem, enquanto prato-significação social, cristali-
za-se como uma formação cultural. Cada sociedade expressa sua

164 DURAJ\n, Cilberl. "Linguistique et métalangages". ln: Ert1110$ /nhrbuc/1, 39,


1970, p. 380.
165 ESSLIN, M. Tht'ntre dr lnbsurd,•. Paris, 1963, p. 81.
Castor M. M. Bartoloml Ruiz 233
visão do mundo por meio de uma linguagem. Enquanto signifi-
cação cultural específica de cada soci~dade, a linguagem tem o
poder de objetivar, socializar as pessoas como sujeitos historica-
mente definidos. A partir desta perspectiva a linguagem tem um
poder objetivador que constitui, em grande parte, as identidades
dos sujeitos históricos e define, cm parte, as identidades sociais.

A co-implicação dialética das funções na linguagem

Embora seja possível estabelecer pontes de diálogo com


algumas posições formalistas da linguagem - como é o caso de
Wittgensten na sua segunda fase-, a compreensão da linguagem
dificilmente pode reduzir-se ao formalismo lógico próprio da fi-
losofia analítica. Pois: Ao cin,rir-se 110 ló._ç:ico reduz o !torizonte pro-
blemóúw a umn verificaçãojormnl" elimina assim a nbn'fum no 1m111-
do que na nossa t'xperiê11dt1 do mundo/ interpretado lti1giiú,tícnm1'11-
fe-66.
Gilbert Durand propõe que, para conseguir superar as con-
cepções reducionistas da linguagem, seja no sentido lógico ou no
semiótico, é necessária uma nberfura em prefi111díd11d1' da própria
linguagem. Entende por abertura em profundidade o transbor-
damento necessário para passar do nível fonético-sintático do
discurso ao nível evocativo latente na ordem profunda da signi-
ficação. Este transbordamento implica uma autêntica ruptura
epistemológica 167 • A significação transborda a ordem superficial
dos significantes; por isso a linguagem, como qualquer outra sig-
nificação social, não se deixa reduzir ao mero sentido denotati-
vo, nem é possível objetivar formalmente um único sentido na-
tural das coisas. A pluralidade dos sentidos da linguagem não
pode ser captada por meio de urna mera leitura científico-analí-
tica. Para desabrochar produtivamente esse leque indefinido de
sentidos, temos de apelar para a dimensão hermenéutico-simbó-
lica. Segundo Gilbert Durand, devemos conceder a primazia do
sentido simbólico (o figurado) sobre o sentido próprio (o /item/).

166 CADAMFR, Verdnd ,1/ Método.Salamanca: Sígucmc, 1992, p.401.


167 DURANV, Gilbcrt. "'Linguistique et métalangages". Enmos. 39, 1970, p. 372.
234 Os paradoxos do imnshuírio
----------------
Ao contrário do que pretende o empirismo radical, a lin-
~uagem ten1_2rioridad': sobre a língua, assim como ~palavra)?-
bre a sintaxe. Pois é a signific~ção que origina o signo, e não o
·contrário. Não é a forrna que explica o conteúdo, mas, ao contrá-
rio, é o signif~<1do que instit1Ji _o se11tido para as form_a5_9.os sig-
Se
nos ousignilicantes 163 • quisermos levar esses princípios ao cam-
po científico, comprovaremos que não é a estrita formalidade da
linguagem que rege seu sentido; pelo contrário, é o transborda-
mento do sentido que possibilita a (re)interpretação significativa
dos fatos além das meras evidências empíricas, em si mesmas
insignificantes. Embora exista uma prioridade do hermenêutico
sobre o lógico, c:imb_a~ªJ~dimensões se implicam dialeticamente.
Alé o extremo de que qualquer distinção é sempre conceituai e
nunca real. A hermenêutica e a lógica, a função conotativa e a
denotativa seco-implicam n'o seio da linguagem, configurando
dialeticamente seu modo de ser, permitindo uma abertura inde-
finida para a constituição de sentidos ao mesmo tempo que pos-
sibilita uma análise lógica e empírica das proposições formula-
da~. Nenhuma das duas dimensões é exclusiva, nem pode ser
excludente, ambas são necessárias. Nenhuma pode outorgar-se
o primado do conhecimento, nem vangloriar-se de possuir o es-
tatuto da verdade. Elas coexistem tensional e dialeticamente. A
co-implicação dialética das funções da linguagem impede cair
na patologia de um metaforismo inconseqüente e alucinatório
ou asfixiar-se no reducionismo fonnalista.

A lll'Ct'SS1dnd1• dl' mudnr o s,mfldo dos concl'itos estnbd1nifos ,•fami-


hnres é cmai71110 1jálo rl'l10/11ármrírio dn ll'orin dt· Einsfnil. Embo-
rn St'jn mnis sutil qut' flS mudnn{llS do geocentn'.,mo pnm o
hdiocmlrismo, doflogr:,-10 pam o ox,;ffnio ou dos corp!Ísmlos parn
ns ondns, a lrn11sfim11nç:ào rl'sultnnfe ndo é menos dcslr11idom de ,1111
pm'lldt/ma prt·v1'am1•11/1• 1•stnbdl'árlo. Podemos tiu:/11sil'1' consúiari-
ln como 11m protótipo das r,•orlÍ'nfflç&~,· rt'volucionririns nns ciéndns.
Prt'ciSllmc11/1' porqur não implim 11 li1trodução de objdos ou conce,~
los ndü:ionm:~, n lmnsiçno dn mt'Cânicn de N,w/011 ;, de Eti1sll'in

168 DURAND, Gílbert. rigures m_vtiques d 1,,:,11gr.< d,· /'mwre. De la mylocrrliq11c à la


mythr11111lvse. Paris: Bcrg, 1979, p. 88.
Castor M. M Bnrlo/omé Ruiz 235
.tlus/m i:om pnrticulnr dnwzn como n rl'mlupfo cimtíjicn consisft'
1111m d1•slomme!lfo dn ri'dt' de co11cl'itos através do qual t'J1Xt'l;_ç;11111 o
llllllldo-os ckni,:~tns.T,u - .

A tentativa de separar de modo dual a linguagem numa


função denotativa, que se encontra em confronto irredutível com
a função conotativa, leva de modo inexorável a um reducionis-
mo da linguagem ou à sua aniquilação. Esse dualismo impede
que a linguagem assuma a função de mldium, como o I Iermes
humano que intcrmedia entre a pessoa e o mundo. A concepção
dualista das funções reduz a linguagem ora a uma imaginação
efêmera sem nenhum valor cognitivo nem prático, ora a uma ló-
gica forrnalbta que engessa o conhecimento e a vida em moldes
analiticamente preconcebidos.
Gadamer tenta superar o dualismo, mostrando que a in-
terpretação lingüística é o modo geral da interpretação, que Ioda
interpretação acontece no mldium da linguagem: Todo c11t1'1tdrr é
um titkrpretm; 1' todn intapretaçiio 5e dese11volz 1e no meio dt' umn li11-
g11nsem que prl'lende dáxnrfiilnr o o/Jjdo e que/ no m1•smo tempo n
li11g11as1•m própria do Sl'll i11tétprete170 .
A linguagem efetua i;_fuperaçã_<?_ desse dualismo por meio
da re/açãoco-implicante e dialética que estabelece entre as dimen-
sões subjetiva e objetiva, entre a pessoa e o mundo. A relação -
não no mero sentido utilitarista do pragmatismo - constitui a
categoria primária que possibilita a própria existência da lingua-
gem. Essa relação co-implicante e dialética permite a coexistên-
cia das duas dimensões, mantendo as diferenças e até as diver-
gências, mas evitando o dualismo excludente e reducionista. A
~ a e e a objetividade seco-implicam dialetica.mcnte no
seio a inguagem, confeccionando a unidade e o sentido da pró-
pria linguagem. Por sua vez, a linguagem, uma vez solidificada
como significação social, como língua própria de um gmpo ou
sociedade, estimula a efetivação das funções conotativa e deno-
tativa. O sentido produzido pela linguagem não é uma mera fo-

169 KD,, Thomas. S. A t'.s"frufurn d11.,; ral()/uç-ões cien!lfi,:11.ç, México: F.C.E., 1971,
164.
170 GAO,U..·IER, I lans-Gerog. Verdnd yAfitodo.Salamanca: Sígueme, 1977, p. 467.
236 Os paradoxos do imaginário

tografia da realidade, mas também não é uma pura construção


subjetiva. A linguagem é uma dimensão antropológica intrans-
ponível, mas ela é sempre socialmente constituída. Como signifi-
cação social, é uma construção intersubjetiva que se constrói em
referência dialética à realidade natural. Os sentidos da lingua-
gem transbordam o simples formalismo analítico; por isso ela é
irredutível à mera linguagem proposicional. Mas ela precisa da
dimensão analítica e formal para estabelecer as pontes de rela-
ção com a objetividade do mundo e a aproximação à natureza.
Não é possível reduzir a linguagem a um código de signos como
função instrumental, mas também não é possível diluí-la numa
evocação metafórica desligada da relação empírica com a natu-
reza. A linguagem é produzida pela insondável potencialidade
criadora do imaginário pessoal e social; nela se integram criação
de sentidos e objetividade natural numa co-implicação dialética
que permite a produção inovadora e criativa do mundo.
! ,' /'

O consentimento da linguagem

A hermn1êutica ,•nshrn prt'dstmrenft' que todo crítico resulto cnlimdo


110 procrsso VJ!nl do nco11tecimmto 011 rmli:::nção dinló,ç;icn
110 qun/ d1•scn11511 e se/11ndnmn1tn lodo discurso.
Hans Georg Gadamer

O real é uma alteridade irredutível à linguagem, mas a lin-


guagem institui o nosso modo de aproximação ao real. Não te-
mos outro caminho de interação com o mundo. Ao nomear as
coisas, simbolizamo-as. Ao simbolizá-las, denominamo-as na for-
ma de linguagem. Denominando-as, nos-apropriam~s do mun-
do e nos numdaniznmos. Denominar uma coisa implica criá-la para
si, investi-la de sentido.
O sentido costura a relação do sujeito com o muntio. Esta
costura abre espaços de significação nas coisas por meio dos quais
se introduzem novos sentidos. O ser humano se apega às coisas
por meio da costura sentimental e significativa.Ao se costurar, fura-
se o natural, perfura-se significativamente a al!eridade do mundo
e se insere a subjetividade numa objetividade do real. Desse modo,
a subjetividade se socializa humanizando concomitantemente o
inundo como sua oikose não mais uma natureza estranha.
Se a linguagem é o modo geral da relação e da comunica-
ção, as línguas são as especificidades da linguagem. No mesmo
238 Os paradoxos do imngindrio
ato em que o ser humano fia o mundo pelos sentidos próprios da
língua, transforma-se ele mesmo no fio por meio do qual a lín-
gua confere identidade à sua subjetividade. Cada lfr1gua tece uma
visão de mundo da qual não podemos sair a não ser entrando
dentro dela 171 • Cada ,língua institui uma cosmovi~ão. Nela os in-
divíduos se socializam ol11ando o mundo desde Úma das pers-
pectivas possíveis, aquela que os sentidos implícitos na sua lín-
gua focalizam. A maneira particular como, a partir da língua,
cada subjetividade olha o mundo que o configurou constitui o
seu modo natural de entender o mundo. Normalmente não se
percebe que a visão específica que temos sobre as diversas cir-
cunstâncias é um modo singular de interpretar a realidade. Ao
apreender a língua, não só estamos aperfeiçoando um mecanis-
mo de comunicação, senão que estamos internalizando um sen-
tido do mundo. Cada palavra apreendida inocula um viés espe-
cífico sobre a coisa, cada frase construída introduz uma nuance
própria, o modo de expres~ar e construir um pensamento intro-
jetam um sentido do mundo. 172
No entanto, a inlrojeção não implica determinação. O su-
jeit0 inserido pela língua numa visão de mundo recria o mundo
e reformula o modo de ser da sua língua. Por este motivo,ª Jw-
gua é uma construção viva. Ela está em constante produção de
novos sentidos para as mesmas coisas e reinterpreta os sentidos
herdados. f'Jão existindo um sentido único ou definitivo para 'as
coisas, a língua cria novas perspectivas e olhares, confere novas
possibilidades e significados inéditos àquilo que ela transmitiu
como herança cultural. 173

171 rn:MOOLDT, Wilhem von. Sobre 111 divasidi1d de 111 t',õfructurn dd k11g1111jr lw-
mt11w y su i,!flue1Tcli1 sobr,• d des11rrollo ,•spiritw,I ,1,, /11 humn11id,1d. Barcelona:
Anthropos, 1990, p. 83.
172 Hurnbolt, seguindo os caminhos abertos por Vico, Rousseau, Hamman e
Herder, enhmdt> cada língua particular como um organismo. Cada língua
se estrutura como se fosse uma forma orgânica, sendo que, no modo de
estruturar a linguagem, transnúte um modo particular de ver o mundo.
Hl'MBOLDT, \.\/ilhem von. Escritos sobre e/ /e1~r;w1j,•, Barcelona: Edicions 62,
1991.
173 A proposição de Humbol<lt, "au/11 /ingungcm rcpre.<cnln uma determmndn
cona7,pio de mundo", é feita desde uma perspectiva idealista e com uma
Gz.,;tor M. M. Bartoloml Ruiz 239
A língua é uma criação de sentido para o mundo, mas, ao
instituir-se como significação social, ela impõe uma visão de
mundo. Desde essa perspectiva, podemos afirmar que a lingua-
gem demanda um desvel11me11to de smtido. A subjetividade emer-
ge tramada por uma linguagem; sua autocompreensão e inser-
ção no mundo só serão possíveis à medida que vai desvelando
os sentidos da sua língua. Para penetrar nos interstícios de uma
língua, devemos descortinar o véu que oculta a riqueza dos seus
sentidos e suas possibilidades de nomear o mundo, o mundo lo
chão comum, não pisado por ninsuém t' reconhecido por todo.'i, q11t' 1111e
a todo.'i O.'i que falam entre si 17" A tarefa de desvelar aponta para
uma dimensão apocalíptica da linguagem, segundo o sentido eti-
mológico do verbo ápo-knlípto: correr o véu para ver algo que es-
tava escondido, despir, dar a conhecer.
A língua, como significação social instituída, antecede o
sujeito. Este só vai se configurando como tal, à medida que vai
desvelando e interiorizando os sentidos próprios da sua língua.
Simultaneamente, ao dcsvelamento e aceitação dos sentidos ins-
tituídos, o sujeito interpreta e ressignifica a herança cultural re-
cebida segundo seu modo particular de ver o mundo. Eis por
que a linguagem é concomitantemente criação e desvelamento,
pois a interpretação é n'Produçiio criadora de :,,mtido úitdigfw/175 •
Não podemos falar de originalidade de uma língua stricfll
sensu. A verdadeira originalidade da língua se manifesta na in-

visão formalista da linguagem. H.G. Gadmner critica a visão idealista de


Hum.bali e propõe a fundam.,ntação da linguagem a parlfr de sua unida-
de com a tradição. Cada língua é uma visão ou interpretação de mundo
por aquilo que ela fala ou transnúle e não por sua estrutura intei;na, como
afirmava Humbolt. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdnd_v método:fundn·
11wnlos de unn hermméutia1filosijkn, Salamanca, Sígueme, 1977, p. 530 ss.
Sobre o pensamento de llumbolt, d. CORETH, Emcrich. "llisloria dt> la
I Iermenéutica". ln: AAVV Dicdcmnriode Hermenéutim. Bilbao: Univl'rsidad
de Dcusto, 1997, p. 296-312.; VALVERDE, José María. Cutll,•rmo dr H11mboldl
.1/ lu ji/osofín dd /eng11n;é. '.1.1adri: Cr!'dos, 1955.
174 CALJAMrn, I Ians-Gporg. Verdad y mélodo:Jimdamenlos dt· 111111 hemrené11hà1
fi!osc!ficn, Salamanca, Sígueme, 1977, p. 535.
175 CALJAMt:R, Hans-G<'org. Vad11d y método:frmd11me11l0s de una hrrmenéutrá1
_(t!osóficn, Salamanca, Sígucmc, 1992, p. 188.
240 Os paradoxos do imagúuirio

terpretação que os indivíduos realizam dela ao se apropriarem


dos seus sentidos. A língua alcança seu sentido definitivo no modo
particular de cada um em utilizá-la. Ao escutar uma mesma pa-
lavra, não existem duas interpretações idênticas. A palavra evo-
ca, em cada pessoa, nuances diferentes, dependendo da experi-
ência vital a que ela está associada. Essa diferenciação de nuan-
ces se estende ao longo de toda a língua. Eis por que a com preen-
são de uma linguagem resulta também numa incompreensão ple-
na, e Ioda coincidência lingüística remele a uma divergência.

As feições divinas da palavra humana

A língua mantém sua forma própria e sua estrutura regu-


lar pelo caráter de significação social que possui; mas ela está em
constante processo de transformação significativa em virtude dos
novos sentidos que as pessqas vão incorporando à tradição rece-
bida. A compreensão da língua requer um consentimento dos sen-
tidos recebidos e um re-se11time11to inovador que a enriqueça com
a produção de novos significados.
A linguagem exemplifica o poder criador do ser humano.
Este poder criador remete, entre outras narrativas, ao mito bíbli-
co da palavra. Diz a narrativa bíblica, em Gen 2, 19-20, que, quan-
do Deus concluiu a criação, transferiu para Adam (a humanida-
de) o poder de dar nome a tudoq11anfoa1'.,te. Ao dar nome para as
coisas e animais, Adam ia recriando o sentido que elas tinham
para ele no mundo. O nome que lhes dava revelava alguma par-
ticularidade essencial da sua natureza, aquelas que Adam consi-
derava mais relevantes. Desse modo, Adam se equiparava a Deus,
pois só ela tinha o poder recriador do mundo. Ela era Í!!lfl,fem e
seme/lra11ra de Deus, porque tinha o poder de recriar o mundo, isto
é, de nomear, pela palavra, todas as coisas.
O paradoxo do relato bíblico acontece quando Adam, ao
concluir de nomear todas as coisas, não encontra ninguém seme-
lhante a ele. Enquanto as demais espécies animais se inserem de
modo natural na criação, Adnm procura uma altcridade que pos-
sa ser seu referente. O outro semelhante não se encontra nas coi-
sas nem nos animais. O poder da palavra conferiu-lhe a possibi-
Castor M. M. Bartolomé Ruiz 241
!idade de interpretar a alteridade do mundo e contrastar-se com
ela, a fim de dar sentido a sua própria existência. Só por intermé-
dio da palavra que nomeia o mundo pode conhecer com sentido
as coisas.
O poder criador da palavra se expressa teologicamente na
relação que as narrativas bíblicas estabelecem entre a palavra
proferida e a emergência do novo. No Gen 1,1-31, a criação do
mundo se realiza pelo poder da palavra. Cada dia Deus pronun-
cia sua palavra e por meio dela o universo é criado: E di,se Deus:
rara-se.... O dizer e o fazer se implicam e identific~_i:n- Esse poder
divino dc'criar através da palavra é transferídop-ara o ser huma-
no, identificando a palavra como o ponto de intersecção entre o
divino e o humano. Essa teologia da palavra está magnificamen-
te desenvolvida no prólogo do quarto evangelho:

No prinaí,io t'Xislit1 t7 pt1!tll1m,n Pt1/avrn est1n111 r•ollt1dt1 pt1m Deus,


e t1 pt1/avm t'Ttl Deus...
Tridofoifálo por máo dela, e, dt' tudo o que e.riste, nadafoi.frito .-1:•m
t'lfl.
lVda t'sfovt1 o vida, ,, o vida era 11 luz dos homrws.
EsSII luz brilha nas trevos, e 11s trevos niio cm1.'if'g11im111 npngá-lo (}11
1,1-4).

A leitura antropológico-teológica da linguagem não é ex-


clusiva da tradição bíblica; muito pelo contrário, em quase todas
as culturas encontramos narrativas que dão destaque à lingua-
gem e exaltam sua importância, vinculando-a, de uma ou de ou-
tra forma, a uma origem divina. Um dos documentos mais anti-
gos da teologia egípcia atribui ao d~us Ptah a força origir;tária do
coração e da língua em virtude da qual cria e domina todas as
coisas1;;,_
O próprio Platão narra no Ft_,dro que recebeu a tradição de
que, no Egito, viveu, nos arredores de Naucratis, um dos antigos
deuses do país, chamado Theulh, que foi o primeiro a descobrir

17tí CASSIRER,Ernst. Esmâ11 y tfeâo dd mnceplo de símbolo. México: Fondo de


Cultura Econômica, 1989, p. 114.
242 Os paradoxos do imaginário
o número, o cálculo, a geometria, a astronomia, o jogo das damas
e os dados e também as letras. 177
A tese de Usener, que Cassircr mantém cm grande parte,
situa na origem da linguagem o que ele denomina de os deuses do
instante. Estes deuses se identificam com sentimentos fortes, que
se transformam em modos metafóricos de representação sacra.
Para Usener, a linguagem surge como uma forma metafórica por
meio da qual os sentimentos mais chocantes são transpostos na
forma de deuses, aos quais se responsabiliza pela excitação inte-
rior do sujeito. Cada sentimento ou excitação forte tem um nome
que, por sua vez, corresponde à existência de um deus. A palavra
emerge como metáfora que transpõe o sentimento onipresente
no sujeito num deus presente como altcridade. A linguagem arti-
cula a experiência ofuscante e incompreensível da interioridade
humana com a alteridade do mundo simbolicamente instituído.

Não se.forma, com ,j'e,ito, um compkxo sonoro qtmlqut'l; pam intro-


duzi-lo como signo de umn coisn dt'lermi11adn, n modo de uma moe-
dn. t. n t'Xcifnçiio t'5pirifunl provocada por um s,•r qu<' nos sni no
encontro no mundo exterior e que constitui no mesmo tempo o lill-
pulso t' o médio da dn10111i11nçiio. Siio impressões sensivei,; que rece-
bem no c/1ocar-St' o eu com o 11iio-eu, e ns mais vivas dt'sfas imprl('Jfl
· por si mesmas II t'.tplicnriio sonora: c011sfih1l'm ns bnsl'H das denomi-
1111,;&·s pnrticulnres que ensnin o povo fa!nnte. m ·

Um exemplo ilustrativo dessa translação metafórica da


representação imaginária na forma da linguagem sacra é a cos-
mogonia dos pelasgos (povo grego primitivo), conservada em
grande parte por Hesíodo. Embora a redação de Hesíodo reflita
uma formulação lingüística posterior e muito mais elaborada,
ainda podemos detectar nas entrelinhas o que podem ter sido os
inícios da função metafórica de um povo que transladava suas
impressões mais vivas em símbolos sagrados.

177 PLATÃO. frdro. 274 B-E.


178 CASSJRtR, Ernst. Esencia y ifecto dd co11ceplo de .<ímbolo. M,~xico: Fondo de
Cultura Fconúmica, 1989, p. 91.
Castor M M. Bartoloml Ruiz 243
lnmmtnvn-se um pot!ln dnqu,,ks tempos: "niio sei onde esconder
111110 1111'dlitn de trigo: cndn bumco que cario esttf oc11pndo por um
det1s.'"N11t11 deus se perso11iftcn nfé cada ve11fo. Fossem slfidos como
,Voto e Furo ou tíbios como Céfiro, divafinm-se emanmlttmdo ns
cabdl'ims dns 11niades e nereidns que pmJOO'l'ª"' ns /orrt'ltft'., e lngos,
ncossndas por Pmt 011 roubn-comções corno qt1e as e11já1tj:nVII com
sun jlmlfn. 179

Na tradição latino-americana dos maias existe um relato


sobre o poder criador da palavra e como foi a palavra que origi-
nou toda a realidade que existe. O mundo é produto da palavra,
do seu poder criador:

Assim sucedeu. 011 no me11os nssim conta que suc,,deu. Havia cal-
ma. I ft1vin silê!lcio. lmob,hdndr. Tudo ,•sfam cfllfldo e mzfo. Assim
pdn exf,•11;;110 do clu. Nõo 1'.ti-linm, nindfl, o homem nef!I tmimn/
n{1;111n. Nem pei.n':,~ nem pássaros, 11,•111 tin10r,•s, 11cm ped!í1-'··· Nndn
St' mnnifesfnva naface da ferra, absolutnm1•11ti· nada.
C//ego11 017'1i t•11/ão n Pnlavm, viemm junto:; li•peu e GflC/l!llnfz.
Dinlo_ç;nmm, pois, wnsu/tnndo-st• mire si e medifnndo; dregnrnm n
11111 acordofarm1111do uma simbiose com suas palnvms e seu entendi-
mento.
Mnni/Í'sto11-se lf11quef,, mome11/o .-;,•111 /r~ç;nr de dúvidas, t'"' tanto
qt11? meditavam, que q11n11do d1,✓gas."-' 11 dnridnd,· d1.•l•in npnrec,•r o
lromem. Dispuseram 11 pnrtir d,·ss,· inslnnte 11 crinrõo e o crescimm-
to dos árvores e bqilcos e o nnscimmfo da vidn e n crinçõo do lto-
lllt'm ... 15"

A palavra possui uma dimensão de significantl'•por meio


do qual o ser humano representa o mundo. Enquanto significan-
te, a palavra é um modo instrumental e não consegue expressar
com clareza a riqueza do sentido. O sentido da representação
simbólica passa pela palavra, mas não se resolve nela. O que ai-

179 MON'IANl'LIJ, lndro. Historio d,· lo.~ griegos. Barcelona: Plaza y Janés, 1997,
P· '>2.
180 CLAUDET, Francisco. Ley,-11d11s mo_vosy azft•1'1J;;. Madrid: M.E. Editure 5, 1996,
p. 15.
244 Os paradoxos do imns-inário
guma vez foi retido na palavra é algo real, mas também constitui
o modo corno percebemos o real cm geral.
Ao nos depararmos com a linguagem como significação
social, a tensão original entre signo e significado se aplaca. Pro-
duz-se um processo de identificação entre o signo e o significa-
do, entre a palavra e a coisa, entre a imagem e o objeto. A lingua-
gem se substancializa, institui-se de significação própria e se cons-
titui em conservadora de sentidos. Ela adquire uma dinâmica pró-
pria, à qual deve submeter-se toda subjetividade para poder in-
tegrar-se socialmente. A linguagem é a forma simbólica de ex-
pressão de uma cultura.
O sentido da linguagem possibilita o consentimento do
mundo em que se habita, a empatia com nosso entorno; ele per-
mite a comunicação intersubjetiva, e é por meio dele que a inter-
subjetividade se lp(fimizn, o outro mostra seu rosto singular no
consentimento coletivo de um sentido comum. Não são possíveis
a comunicação ou a relação sem a existência do horizonte do
consentimento, no qual coin~idem as subjetividades. É esse con-
sentimento comum que integra as diferenças num consenso pré-
vio; só a partir dele são possíveis a comunicação e a singularida-
de irredutível das diferenças. Sem o horizonte do sentido comum,
do consentimento, os ruídos mais estranhos interferem na comu-
nicação dos sujeitos e inviabilizam o diálogo. Sem o consenti-
mento simbólico não é possível o diálogo intersubjetivo. Sem diá'-
logo, nem consentimento, não existe sociedade.
A função metafórica da linguagem

O homem, qui..-esse ou não, fai fi1rçndo afalar metnjorkamente.


Cassircr

O que tmmfomra o ser lrummro niio são os ncontedmentos,


mns n mannra de' ri1laprl'lri-los.
Epicteto

A linguagem não esgota suas possibilidades de ser nos cri-


térios empíricos de verificabilidade, no entanto a formalidade
do método pode dissecar a vida da linguagem. Ao reduzir a lin-
guagem a mero instrumento denotativo, confinamo-as num cer-
co lógico que não denota sua essência, mas a asfixia conceilual-
mente, restringindo sua exislência à subserviência de um signo
inerte. Mas a linguagem resiste a todas as tentativas de redução
lógica, assim como ultrapassa os diversos modos de idealismo
ou subjetivismo. A constatação dessa tensão nos remete a alguns
dilemas, quais sejam: Como realiza a linguagem a integração do
sujeito e a realidade sem esgotar-se num dos pólos? Como conse-
gue a linguagem manter essa tensão produtiva entre a denotação
formalista e a conotação idealista sem dissolver-se numa delas?
A linguagem não consegue fundir a subjetividade e o obje-
to numa unidade. A palavra se introduz entre ambos e circula,
246 Os paradoxos do ímngindrio

1•ntrl'laçando-os; ela se movimenta de um para outro rcligando-


os. Ela os une e relaciona, mas simultaneamente deve considerá-
los diferenciados. A palavra estabelece contínuas pontes de sen-
tido entre<! subjetividade e a realidade, porém não funde num
sentido pleno ou único suas diferenças.
Símbolo e linguagem possuem uma raiz comum, um pon-
to originário que os configura e estrutura articuladamente para
poder denotar e conotar sentido ao real. Esse ponto arquimédico,
por assim dizer, é o que podemos denominar defimrtio metafóri-
ca.
Habitualmente se define a metáfora pela substituição cons-
ciente da designação de um conteúdo de representação pelo nome
de um outro conteúdo com o qual existe algum rasgo coinciden-
te ou analógico. Essa compreensão da metáfora é uma figura de
linguagem que tem como ponto de partida um conjunto de con-
teúdos previamente definidos, os quais possibilitam a substitui-
ção de um pelo outro 1~1• •

No entanto, e previamente à metáfora como figura de lin-


guagem, existe uma função metafórica radical (instaurada na sua
raiz); que é comum tanto ao símbolo quanto à linguagem. Essa
função metafórica se institui no próprio ato de representação. Ela
se configura a partir da fratura radical que atravessa o ser huma-
no e que possibilitou a emergência do imaginário corno sua grande
força criadora. ·
A fissura interior que confrontou a subjetividade com o
mundo trouxe à tona o desejo. Fraturada a subjetividade na sua
harmonia interior, instaura-se no seu seio o desejo como impulso
conector da contingência vivida e da plenitude almejada. A har-
monia perdida com o mundo natural passa a ser o obscuro objeto

181 Sobre a origem da representação metafórica ,existem várias teorias. Umas


sustentam que a origem da metáfora está na formação da linguagem, d!'
tal modo que a palavra, com seu caráter metafórico, gera a função meta-
fórica. Esta é a lese de Adalbnt kunt e Max Muller. Outra posição defende
que a função simbólica é que origina o caráter metafórico da palavra. Esta
é a posição geral do romantismo s!'guida por Herder e Schelling. Cf.
CASSIRER,. Ernst. Esencia _li eftcto dei concrpto de símbolo. M~xicu: Fondo de
Cultura Econômica, 1989, p. 79-156.
Castor M. M Bnrtolomé Ruiz 247
de desejo. A ausência real de harmonia natural é superada pela
possibilidade do desejo. O desejo se projeta não mais como reali-
dade tangível, mas como metáfora possível. Esse impreciso obje-
to perdido e ausente é suprido pela função metafórica. Esta pre-
enche o vazio do objeto perdido com sua representação ou o de-
sejo dela.
A representação, corno imagem significativa do mundo,
constitui-se num modo metafórico de entender o mundo. Toda
representação, até o silogismo mais analítico, é uma figuração,
uma imagem impregnada de senlido, uma metáfora do mundo.
Uma imagem é colocada no lugar do objeto, significando um
modo de ele ser. As imagens do mundo fazem parte constitutiva
do modo humano de integrar(se) (n)a alteridade irredutível das
coisas. Desse modo, a função metafórica extrapola a mera figura
da linguagem para constituir-se no modo humano de
compreendcr(sc) (n)o mundo. Ela configura a natureza imaginá-
ria da representação e invade os d is tintos modos da linguagem e
as diversas linguagens possíveis. Não existe, pois, nenhum tipo
de linguagem que possa se situar fora da função metafórica, sen-
do que a metáfora é o modo de ser da linguagem.
Ao contemplarmos a origem da linguagem, encontramos
na subjetividade a necessidade de transpor metaforicamcnte um
sentimento, uma sensação, uma imagem num elemento estranho,
seja um som ou um outro signo lingüístico. O signo lingüístico
substitui a representação imaginária, coloca-se no lugar dela,
constitui sua metáfora.
A representação imaginária já é fruto de função metafóri-
ca radical do sem-fundo humano, pois ela substitui o objeto pela
representação, sem que isto signifique uma confusão de ambos.
Mantendo a distinção, preservando a alteridade do objeto, não é
possível para o ser humano uma relação que não implique sua
representação significativa. Essa imagem com sentido deve exte-
riorizar-se na forma de linguagem, sob pena de morrer numa
subjetividade autista. A transposição da representação imaginá-
ria em linguagem implica um segundo aspecto da função meta-
fórica. Isto é, um sentido imaginário ou símbolo instituído por
meio da representação é posto num elemento estranho e externo
como é a linguagem. Desse modo, o simbolismo e a linguagem
248 Os paradoxos do ímn,rinário
compartem a mesma raiz metafórica que os origina, enlaça e uni-
fica sem os confundir, sendo assim condição de possibilidade da
sua existência.
O simbolismo e a linguagem, por meio da criação imagi-
nária do sem-fundo humano, se imbricam na proto-relação ori-
ginária da função metafórica. Esta os entrelaça numa unidade e
reciprocidade da qual só de modo paulatino e por meio de uma
gradual utilização podem desprender-se como termos diferenci-
ados. Ambas são expressões de uma mesma função metafórica,
própria do imaginário. Só num momento posterior, quando já
estiver caracterizado o significado social de cada coisa, será pos-
sível recorrer à metáfora como recurso retórico da linguagem. A
partir dessa perspectiva, se identifica a figura retórica da metá-
fora como um terceiro momento da função metafórica. A lingua-
gem socialmente constituída possui a potencialidade metafórica
de conotar vários sentidos análogos por meio dos quais pode vin-
cular coisas e experiências aparentemente distantes. 182
A função metafórica da linguagem costura concomitante-
mente a junção e o distanciamento da representação com o obje-
to. A palavra se institui corno mediação entre a representação e a
realidade. Ela intermedia correlacionando e diferenciando sub-
jetividade e mundo. Nas origens filogenéticas do ser humano, o
imediatismo da imagem subjugava a consciência de um modo
quase absoluto. A função metafórica da linguagem possibilito'u
um progressivo distanciamento entre o símbolo e o sentido. A
palavra agiu como uma metáfora que transladava o sentido da
representação ao objeto. Ela foi se introduzindo nos interstícios,
relacionando e diferenciando simultaneamente imagem e senti-
do.
Mas a separação metafórica nunca pode ser absoluta, pois
em tal caso o sentido relacional da metáfora se perderia. A fun-
ção metafórica possibilita distinguir a palavra da realidade, po-
rém, por mais distantes que ambos estejam, a linguagem sempre

182 A função metafórica da linguagem tem sido a~sinalada também por


Gadamer quando fala do amíler especulativo dn linguagem. Cf. CADAMER,
I Ians-Gcorg. Verdad y método: fund(lmen/os de 11n11 hermrniulka filosófiá1.
Salamanca: Síguemc, 1992, especialmente a terceira parle.
Làstor M. M. Bnrtolomé Ruiz 249
possuirá uma certa impregnação metafórica. É o resíduo metafó-
rico da linguagem que possibilita uma remissão de sentido entre
o significante e o significado. Até a linguagem mais abstrata, como
a linguagem científica, conserva resíduos metafóricos que possi-
bilitam estabelecer conexões entre o signo e o sentido. A recípro-
ca também é verdadeira. Embora uma mesma palavra possa ser
significada melaforicamente com muitos sentidos, sempre deve-
rá existir um vínculo entre eles e a realidade à qual se refere a
palavra. Só assim é possível estabelecer uma remissaõ entre o sig-
no e os sentidos. 1~3

A dimensão metonímica da linguagem

A função metafórica faz da linguagem uma permanente


metáfora do mundo. A linguagem, ao designar uma coisa, limi-
ta-a com um significado. Priorizando-a num aspecto, ignora suas
outras indefinidas possibilidades de ser. A função metafórica co-
loca um modo possível de compreender o objeto como sua totali-
dade. O objeto adquire sentido total a partir de um significado
parcial. Uma parte designa o todo. Encontramo-nos perante uma
função metonímica da linguagem.
A função metonímica da linguagem extrapola a mera me-
tonímia literária, sendo que esta tem seu fundamento naquela. A
linguagem destaca um sentido, considerado prioritário, para de-
signar o objeto. Este sentido parcial adquire contornos de uma
essência definida. Sendo essencial ao objeto, remete seu signifi-
cado para outros objetos ou situações com as quais tem alguma

183 Derrida estabelece sua particular compreensão da relação entre a metáfo-


ra e a filosofia, afirmando: "Tt,n/ro tentado ,•.tpor de qur mandra a jilo.sqfit1 é
!ilera/um, não tanto por,711e se;a met,ífom mas porque é ca!dcre.si.s. O termo metá-
fam imp!rá1 g,,mlmente n"Íllçiio II lllllll í1ropried11de' de significado onginol, 11
11111 se11/Jdo í1róprio' no qual remele i11dirl'l11 ou equir,ocndoment,·, enqunnlo n
cntácresis é 11111n 11iolent11 prorlurão de s1~·11{fráJdo, um abuso que não remete a
lll'1Th1✓ma norma anlerrá,- 011 próprin". VERRIDA, Jacques. "La desconslrucción
y lo otro". ln: KEARXY, Richard. Ln pamr/0/11 europea. Barcelona: Tusquests,
1998, p. 192.
252 Os paradoxos do imaginário
de ausente. A linguagem realiza sacramentalmente aquilo que
diz, pois, ao pronunciar a palavra, aparece sua imagem. O poder
sacrarµental da palavra reúne a subjetividade presente e a coisa
ausente. Este encontro hermenêutico desfaz a diacronia inevitá-
vel dos fatos e integra sincronicamente o passado ausente na
imagem do presente. Neste sentido, a mímesis pode ser redefini-
da como um passado nrrnncndo no passado por meio da palavra pro-
nunciada, em que a força metafórica da palavra permite que o
recitador, o fato recitado e a personagem lembrada pelo fato se
atualizem num mesmo instante. 187

187 CORBLN, Henry. Terre céleste et corps de ré.<urrection, París, Buchet-Chastel,


1960. Sobre o encontro hermenêutico do ser humano e seu caráter sacra-
mental cf. ORTIZ-OStS, Andrés. Mundo, hombre y lenguaje crítico. E.<ludios de
fi/osojia hermenéutica, Salamanca, Sígucmc, 1976, P. P. 40-47; TRIAS, Eugc-
nio. F1/osefía dei futuro, Barcelona, Ariel, 1983, P. 44-47; CORlllN, Henry.
"1 lerméncutique spirituelle comparée", Era11os Jahrbuc/11 nº 33.
O distanciamento lógico da linguagem

A cifincin não pode ensinar n mi1s11ém o qul' devefazer,


mas umámienft' o qtH' podeJi,zer.
Max Weber

O imaginário do sem-fundo humano se manifesta nvma


tensão simbológica. Abandonado ao império da imagem, o ima-
ginário se volatiliza num simbolismo vazio que acarreta um de-
vaneio fútil. Sem o logos, o simbolismo transforma-se num delí-
rio in-transcendente que desemboca numa patologia destrutiva
ou num fanatismo trágico. Porém o imaginário humano, ao inte-
grar dialeticamente simbolismo e logos, desestrutura as preten-
sões absolutistas de cada um dos pólos. A tensão simbológica
não dissolve um no outro, mas se resolve produtivamente o modo
de prática criadora.
O estudo que até aqui realizamos pôs a ênfase no resgate
do simbólico, dada a des-compensada prioridade que o racional
adquiriu em nossa tradição socioistórica. No entanto, não pode-
mos concluir este trabalho sem apresentar uma reflexão sobre a
incidência concreta do logos no processo articulador do imagi-
nário humano. Faltaria algo essencial se não tentássemos ver
como, na integração simbológica, se processa de fato a desinte-
gração lógica do simbólico, ou desde outra perspectiva, como se
254 Os paradoxo:,· do imaginário
resolve na linguagem a articulação lógica sem diluir-se no sim-
bólico.
Para pensar esta queslão, ternos que remeler-nos, mais urna
vez, ao que pode ter sido o início filogenético da linguagem e seu
paralelismo no começo ontogenético de cada indivíduo. Em am-
bos os casos, existe uma preeminência quase absoluta do simbó-
lico sobre o lógico. No início do desenvolvimento da nossa espé-
cie e de cada criança, o logos é urna incipienle e recôndita possi-
bilidade de ser. Ele subsiste sufocado pela onipresença do sim-
bólico. O impacto simbólico das imagens do mundo flui perante
ele de modo incompreensível, criando perplexidade na consci-
ência humana. Nessa fase, a imbricação tensional de ambas as
dimensões se resolve na preponderância quase absoluta.da ima-
gem simbólica sobre o conceito lógico.

A conscà1!1cin mitim tem o ob;âo só quando se vl do!f11i111da por de;


mio o poss11( 110 entrmlo o mi co11slr11indo progressimml'nf1' por si
llll'Slllt7, jti qw simplesml'llft' épossuída por 1'11'. Aqui não domlitn n
vontnd,: de npreender o objeto 110 senhdo de nbrnngê-lo 111/t'/ectual-
mt'nlt' t' dispô-lo num complexo de musas t' tjt·ito;,~ Hn11io q11t· aqui o
objeto slinplt•Hme11/t' st• npodern dn co11sc1i111cin. Mns;itstnmr'llff' r:,sn
intmstdnde, e:;se poder 1n1t'diato ,vm que o objdo mitoló,_r.:ico se aprt'-
:,t'llfa ir consahtcia, puxn ll 1'5"1 do esquematismo de uma risrn: de
umn ld flt'Ct.'s.wrin, mdn o/Jjdo qu<' imprt·ss1o!lll l' úm11d1• n consdén-
cin np11rt'Ct' como n{fo incompnrrivd I' próprio tflll' só se p,•rfl'11Ct' n si
ffU'3lll0. 188

No entanto, o germe lógico vai se estruturando num pro-


cesso longo. Este processo paulatino se identifica com as cente-
nas de milhares de anos da nossa espécie. O modo lógico de en-
tender o mundo foi fragmentando a tirania simbólica que o sufo-
cava. Por meio das fissuras lógicas que o imaginário foi produ-
zindo se desestruturaram simultaneamente cosmovisõcs simbó-
licas que não condiziam com as argumentaçôes racionais. O lo-
gos desconstruiu a tirania simbólica e reconstituiu o papel argu-

188 CASSIRER, Ernst. hlosoftn de las jôrm11s sli11Mlkns. Vol. 2. México: Fondo dia!
Cultura Económica, 1971. p. 106.
Castor M M Bartolomé Ruiz 255
mentativo na práxis humana. Ele desenhou uma visão lógica do
cosmo mima pennanente tensão com a compreensão simbólica
do mundo.
Nessa interação simbológica, a linguagem lem um papel
privilegiado. Foi e é por meio da linguagem que se realiza priori-
tariamente o processo de integração e desconstrução simbológi-
ca. O simbólico, por meio da configuração lógica da linguagem,
foi cedendo espaço para a compreensão conceituai do mundo.
Na linguagem at~1am imbricadas as duas dimensões: símbolo e
logos. Sem perder a raiz simbólica que o configura, a linguagem
foi denotando de modo mais conciso os diversos elementos, foi
definindo mais precisamente os fenômenos e delimitando o cam-
po do racionalmente possível daquilo que é uma alucinação im-
possível. Sem essa delimitação lógica, estaríamos ainda peram-
bulando pe-Io mundo dos delírios mais estapafúrdios ou cegados
pelos fanatismos mais absurdos.
O logos, no ser humano e na sociedade, se estruturou pre-
ferencialmente por meio da linguagem. Ele articulou de modo
analítico as significações da linguagem189 • À medida que o logos
abre espaço para se constituir, os sinais da linguagem deixam de
ser meras figurações simbólicas e vão se transformando em sig-
nos conceituais. O poder analítico do logos opera uma separação
entre a imagem e o conceito. Ao ressignificá-la conceitualmente
por meio da linguagem, a imagem remele na sua impetuosidade
simbólica. Com isso o simbolismo se faz cada vez mais abstrato e
menos figurativo. lJesse modo, a linguagem inocula doses maio-
res de racionalidade no sujeito e na sociedade, conformando con-
ceitos e juízos cada vez mais complexos e abstratos.
O arrebatamento simbólico que a imagem provocava na
consciência vai diminuindo à medida que se consolida a lingua-

189 Hegel anali5a e5ta que5tão ao falar do im;fin!o lógi,:o d,1 lú1g11ngm1. Refere
que a linguagem natural tem uma tendência para a lógica na medida em
que as ca lego rias que operam (implícita men le) no falar são (expl ici la men le)
pensadas na Lógica, confluindo e consumando-se no pensamento do con-
ceito. Cf. {;AJJA\iF.R, Hans Georg. Vcrdad y Método:fund,mli!n!o,· de l/1111 étúw
ft/ost!ficn. Salamanca: Síguemc, 1977, p. Y8 ss.; Id. Ú1 d1nlédá:n d,• Hegel:
oúco ensnyos ITermenéu!icos. Madri: Cátedra, 1981.
256 Os paradoxos do imaginário

gem conceituai. A dmsificnrão simbólica que se concentrava num


ponto do objeto e o expandia a modo de totalidade vai perdendo
intensidade na consciência, e seus contornos holísticos remetem
às margens do conceito por meio do qual vão se definindo sua
natureza e propriedades.
A origem da linguagem remete à tentativa de aproxima-
ção direta entre as impressões da subjetividade e o objeto que as
provoca. A linguagem, nas suas origens, pretendia imitar, de al-
gum modo, a forma de ser do objeto ou do fenômeno. O modo da
linguagem sempre estava diretamente relacionado ao modo da
coisa. A forma simbólica era tão importante quanto o significado
que ela expressava, ainda mais que seu significado estava vincu-
lado diretamente à forma que ela adquiria, seja um som, dese-
nho, mímica, ele. À medida que a dimensão lógica interfere na
linguagem, os significados construídos se abstraem e com isso se
afastam da relação figurativa direta com o objeto que os provo-
cou. Atrás de cada palavra abstrata existe uma longa história de
transformação, que vai de Úm início figurativo que imitava a coi-
sa a um progressivo afastamento da forma simbólica em prol de
uma maior conceitualização. A palavra deixa de ser mera figura
fonética ou visual, e seu conteúdo passa a ter um significado au-
t(momo, independente da consistência simbólico-formal que o
transmite. Nesse trânsito, as formas lingüísticas são instrumen-
talizadas, revalorizando-se prioritariamente o conteúdo que e1as
transmitem, sem importar o meio por intermédio do qual o reali-
zam.
Exic;tem muitos exemplos que podem ilustrar a origem sim-
bólica da cada palavra e seu progressivo distanciamento lógico.
Se tomarmos uma língua distante como a sueca, veremos que a
palavra que designa a facn é quase idêntica àquela que se usa
para denominar a alma. Esta identificação fonético-ortográfica
entre a foca e a alma só ocorre na língua sueca e é devido ao fato
de que as focas emitem um penetrante e agudo grito que no ne-
buloso e frio mar Báltico, principalmente durante o longo e duro
inverno polar, faz lembrar o lamento das almas dos marinheiros
mortos no mar que pretendem se comunicar com os vivos; para
um povo, o sueco, que secularmente viveu lançado ao mar, isso
adquire um sentido simbológico de primeira magnitude.
G1stor M. M. Bnrtolomé Ruiz 257
Nos pontos de maior evolução lingüística, a separação en-
tre forma simbólica e conteúdo levou a uma fratura radical. A
referência da forma lingüística ao significado se processa inde-
pendentemente do tipo de linguagem utilizada e do símbolo lin-
güístico; não há qualquer necessidade de apoio entre o signo uti-
lizado e o significado transmitido. Atualmente restam poucos
vestígios da impregnação simbólica inicial da linguagem. Inclu-
sive a arte contemporânea seguiu a trilha da descontrução da
imagem e do simbólico em formas estéticas cada vez mais abs-
tratas.
Na origem da humanidade e da criança, não existe uma
manifestação evidente do distanciamento entre a representação
imaginativo-simbólica da realidade e a própria realidade. Are-
presentação possui uma impetuosidade simbólica maior que as
próprias coisas, é mais real que a realidade. A dimensão lógica
da linguagem foi operando essa diferenciação incipiente e gra-
dual para concluir numa separação consciente e duaU A pnlnvrn
da linguagem conceitualmente desenvolvida opera como signo
diferenciador da representação enquanto conteúdo e da realida-
de como alteridade diferenciada. A palavra tem uma fecundida-
de simbológica que, diferenciando representação e objeto, não
pode definir-se de modo pleno por um só dos dois pólos. Ela
consegue fraturar a impetuosidade simbólica inicial da humani-
dade e da criança, construindo um outro estágio significativo.
Essa distinção entre representação e alteridadc do mundo é a base
da autoconsciência da subjetividade. Ela se produz porque ocor-
re um distanciamento lógico da linguagem frente à impetuosida-
de simbólica inicial.
Nas origens da humanidade, a sutura simbólica religava a
_subjetividade à natureza de modo quase compulsiva; com isso,
deixava uma margem mínima para o seu distanciamento. O ger-
me incipiente da autoconsciência humana era quase diluído no
frenesi caótico das impressões sensíveis. O mundo se npn'sentnvn
quase que de modo natural e com duros esforços conseguia re-
presentá-lo com um sentido diferenciado. Mas a potencialidade
da representação, como criação de sentido que vincula-e-dife-
rencia subjetividade e mundo, só pode ser auferida por meio da
linguagem. O modo da representação se especifica quando a pa-
258 Os pnrndoxos do imaginário

lavra se estrutura e consegue integrar e diferenciar a dimensão


simbólica e a semântica. Nesse momento, a subjetividade adqui-
re uma autoconsciência que a distancia e a vincula ao mundo de
modo simultâneo.
A dobra simbológica da linguagem confere à consciência
humana a dupla dimensão mitológica. É neste sentido que Rof
Carballo desenvolve a idéia de que o termo grego mtfo pode sig-
nificar pnlnvrn, entendida como palavra pronunciada (epos), como
palavra pensada (lesein) e como

rmhdodl', como ll'slnmmlro iml'dioto doqwlo que 'foi, é t' será':


isto é, porn utiliznr sun e.ipressão, como mdo-revdnção dosa Não
serio outro coisa o tmfo senão eJ.pressão pritno,dinl pntentl'lldo, f'x-
periéncin nfmvés dn qunl o pt•nsnmento mcionnl se forno possíw/. 190

O distanciamento lógico da linguagem provoca uma ocul-


tnçíio de sua raiz simbólica. 0 signo abstrato vai se impondo como
conteúdo independente de qualquer referência simbólica. Porém
o símbolo acompanha cada palavra, e sua presença não pode ig-
norar-se, já que ele penetra até as formas mais racionais e se inse-
re nos significados mais abstratos, como a sombra da qual o lo-
gos não pode se desfazer, porque ele mesmo a projeta.
Um exemplo ilustrativo daquilo que viemos refletindo en-
contramos na raiz da palavra lun, tomada em duas línguas dife-
rentes. Qual é a relação entre o verbo medir e a lua? Ou por que o
satélite da terra brilha para os romanos e serve de medida para
os gregos? O distanciamento lógico da linguagem simbolizou com
dois sentidos diferentes um mesmo objeto. Os romanos denomi-
navam o satélite da terra com o termo brilhnnte(lue-n), já que alu-
mia a escuridão das noites, enquanto para os gregos a dimensão
mais relevante do satélite consiste em que se movimenta de modo
regular e permite medir o tempo por fases. Por este motivo, os
gregos denominam o satélite de medidora, (men) a men..:;uradora,
porque permite mmsurnro tempo. Na raiz de uma mesma pala-
vra se encontra um sentido simbólico próprio, que a originou e
ao qual se refere cada vez que é pronunciada. Com a evolução da

190 ROi' CARHALLO, Juan. Medicina .1/ ac/i{)ldaá cm1dom. Madrid, 1964, p.164.
Castor M. M. Barlolomé Ruiz 259
linguagem, a raiz simbólica que originou as palavras foi desapa-
recendo, e ficou valendo o significado abstrato que ela veicula, a
denotação concreta que ela imprime.
Embora em nossas civilizações altamente racionalizadas e
tecnificadas a linguagem tenha realizado um longo distanciamen-
to simbológico, nunca adquiriu um dualismo total. A linguagem
permanece inextricavelrnente vinculada à sua raiz simbólica, isto
não só por seu caráter qualitativo, mas também pela_inlmcionali-
dade. A linguagem se desenvolve dentro de um interesse defini-
do pela ação. As coisas são significadas a partir do interesse e
intencionalidade que têm para o sujeito. A linguagem mais abs-
trata pretende abstrair o interesse subjetivo, querendo, com isso,
mostrar uma pretensa objetividade de seu conteúdo e uma neu-
tralidade e veracidade formal nas suas conclusões, conseguindo,
desse modo, fazer da linguagem um pretenso instrumento deno-
tativo da realidade. Porém essa pretensão de neutralidade for-
mal é fictícia, pois em toda linguagem existe sempre embutido,
de modo implícito ou explícito, um interesse. E o interesse nada
mais é do que o destaque simbológico dos aspectos mais rele-
vantes, entre outros possíveis, da realidade que se pretende sig-
nificar.
Já a Teoria Crítica de Habermas realizou urna tríplice dis-
tinção da racionalidade: 1- rncio1111l1d11de calculadora, que atua corno
controle e manipulação positivista e que corresponderia ao in/t'-
res~·e tecnológico para dominar a natureza; 2- mcio1111/id11de i11krpn'-
latív11, que tenta representar os códigos e normas de um modo
criativo, procurando, no ti1ten'sse prático, o acordo com as demais
pessoas; 3- racionalidade critica que, a partir do interesse emnncipa-
tório busca a superação de todas as alienações históricas e abre
um horizonte utópico de libertação. •

A honra das ciênàa:.; consiste, com efeito, em aplicar rigorosnme11ft'


s,•us mitodos sl'm rrfll'lir sohrl' o 1t1f1•ress1~ que guia o con!tl'Ci!fll'llfo.
Qua!lfo menos snibam 1111'fodologicn111enlt• o quefazem, tanto mais
seguras e:.;fifo as ciência:.; de sua disciplina, isto eqrtimle a dizer: do
progresso mt'tódicodmtro de 11111 man·o não problematizado. Afalsa
consciàtcifl fl7ll uma fimção pro/dom. Pois, 110 plano dfl aufo-njk-
xifo, a., cibtcia:.; cnrecem de médio:.; pllra confrontar-se com os n'.,co:.;
260 Os paradoxos do imaginário
produzrdos pdo IÍl'sco!mi,renlo da com•x/io mire o co11/lt'dmmfo t' o
infl'Tl'SSI'. 1'' 1

A distinção de Habermas oferece uma contribuição para


poder entender melhor as diferentes formas como o interesse in-
terfere no processo de constituição da racionalidade, sendo que,
para Habermas, este interesse adquire uma dimensão quase trnns-
cendmtnl. No entanto, devemos pensar com Habermas e além de
Habermas, que, sendo a racionalidade uma dimensão essencial e
irrenunciável das pessoas e das sociedades, estas não podem ser
reduzidas ao racional, nem explicadas só pelo logos.
É interessante mostrar como a linguagem matemática mais
abstrata e com pretensões denotativas mais precisas está tam-
bém fortemente penetrada pela dimensão simbólica. É o caso,
por exemplo, da teoria dos conjuntos. A pretensão classificatória
comporta uma transposição simbólica que, na verdade, constitui
o fundamento de toda linguagem científica. _Ela não se constrói a
partir de essências objetivas das coisas, mas de sentidos constru-
ídos e de linguagens figuradas. Porém a particularidade da lin-
guagem científica é que consegue formular regularidades empí-
ricas e construir tecnologias úteis para a manipulação intencio-
nal da natureza. Isto confere à linguagem científica um estatuto
diferenciado e relevante que, em momento algum, se pode redu-
zir a mera figura literária ou equiparar a simples formulação" re-
tórica. Porém também não se pode desconhecer que a linguagem
científica é uma perspectiva possível do real, importante, impres-
cindível, se assim se quer afirmar, mas sem a pretensão de ser a
verdade única ou absoluta. A linguagem científica, respeitando
sua especificidade para comprovar a verificabilidade dos fatos
ou fenômenos, é também uma formulação metafórica na com-
preensão do real. 192

191 I IABERMAS, JÜib'l.>n. Ciencin y téc.má1 como 1devlogú1. Madrid: Temos, 1984, p. 178.
192 Já Austin considerou, desde a perspectiva analítica, em que sentido se
pode afirmar que di::er n/go éfazer n!go. Reconhece que a linguagem não
pode temalizar-se exclusivamente desde a ftmção enunciativa ou descri-
tiva dos falos, pois, em muitas ocasiões, emitir urna expressão equivale a
rl'alizar urna ação. AUSTI1', Jhon L /..n-' p11!n!m1s y las nffione.<. Buenos Aires:
l'aidás, 1972, p. 46.
Castor M. M. Hnrtolomé Ruiz 261
A mediação da linguagem não só modifica a relação do
sujeito-objeto, senão que transforma o próprio sujeito. À medida
que a subjetiviciade vai realizando um distanciamento lógico entre
a representação e a realidade, vai se configurando uma autono-
mia da consciência frente ao mundo, um distanciamento da pres-
são compulsiva com que a imagem prendia a consciência às coi-
sas. Os próprios sentimentos são agora objetivados e colocados
como elementos de compreensão. A subjetividade, por meio da
emergência da autoconsciência, consegue colocar a si mesma
como objeto de reflexão. É o distanciamento entre subjetividade
e objetividade que consegue transformar aquela num objeto de
análise e introspecção. lJesse modo, a própria subjetividade se
vê atingida de modo extremo pelo distanciamento lógico que a
linguagem operou.
O distanciamento lógico da linguagem não pode ser en-
tendido como uma mera associação de sons ou palavras a alguns
conteúdos específicos determinados pela percepção do pensa-
mento. Não há uma independência absoluta entre esses elemen-
tos. A linguagem imbrica dialeticamente a palavra e o conteúdo,
fazendo dos dois aspectos uma unidade de sentido. O conteúdo
e a expressão sensível, o conceito e o símbolo não estão enfrenta-
dos como entidades autônomas ou auto-suficientes, senão que
estão co-referidos numa co-implicação necessária, de tal modo
que um existe enquanto coexiste com o outro.
O primário entre os dois elementos é a relação. Na relação
se institui o ser de cada um. Sua identidade particular só pode
ser entendida correlativamente ao outro. Ou seja, a palavra emer-
ge a partir de um sentido definido, e este, por sua vez, adquire
entidade numa palavra. Não há uma existência prévia ou autô-
noma de ambos os elementos para depois se proceder à unifica-
ção de ambos. Não há prioridade ontológica ou temporária de
algum deles sobre o outro. Ambos se integram na linguagem de
forma correlativa. Eis por que toda distinção é relativa, fictícia, já
que toda diferenciação pressupõe a correlação. Linguagem e sen-
tido, forma e conteúdo, símbolo e logos se urdem e implicam
numa indistinção que só pode separar-se numa diferenciação
artificial. Esta urdidura simbológica anula qualquer pretensão de
transformar a linguagem num conjunto instrumental de signos
262 Os pnmdo:ros do imngindrio
denotativos, associado a um conteúdo mental previamente defi-
nido; concomitantemente invalida toda tentativa de diluir a lin-
guagem num devaneio figurativo sem correlação lógica. A lin-
guagem constitui uma unidade orgânica que, co-implicando de
modo simbológico a expressão sensível e o sentido instituído,
implica pessoa e mundo numa relação tensa e paradoxal, criado-
ra e respeitosa, mundanizando a pessoa, humanizando o mun-
do; mais ainda, divinizando o humano, mundanizando o divino,
ou seja, o seu poder criador.

Com 1ji•ifo n hmnnnidnde é umdade e também i11Ji'11it11de, /111111n11n-


mente confmídn.
Ejrí que é condição da tmidnde rxplicifnr os nrtes por si mt'smn,
11a ml'dtdn qu,, é entúinde que co-implicn os en!t:, nn sun si111p!ic1da-
de, di:..-so se segut' qut' n virtude dn lrumm11dndt• explico por si mesmn
tudo o que se drí dmtro do círculo de :mn rl'gião,
e dn potênàn de seu 111ídeo eximi tudo.
A i:o11dição de sun 11111dnde é constduir-se comofim de suns t'.tplicn-
çõ,•s, nn medrdn que é infiniln.
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O que é estética
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Trad. Fulvia Moretto

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Trad. Fulvia Moretto

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