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21/10/2023, 19:59 Um memorial para a amnésia | Revista Rosa 8

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R
Rosa
Um memorial para a amnésia
Márci
o Selig
mann
-Silva

O que a Tebas mítica, que serve de cenário para o conflito entre os fi-
lhos de Édipo e o déspota Creonte na tragédia de Sófocles, tem a ver
com o Brasil de 1979? A peça Um memorial para Antígona, do grupo te-
atral comitê escondido, com direção de Vicente Antunes Ramos, junta
esses dois espaços e temporalidades para encenar um teatro sobre —
o esquecimento. 1 Sete atores se alternam declamando passagens de
textos inspiradas no drama do autor grego e que são intercaladas com Cena de Um memorial para Antígona.
(Foto: Matheus Brant.)
trechos de discursos realizados no Congresso Nacional de Brasília
quando do debate, em 1979, em torno da criação da Lei de Anistia. Há
também testemunhos de ex-presos políticos, depoimentos e obras de
parentes de familiares de mortos e desaparecidos ecoam do palco. Em
um bem encenado e amarrado teatro pós-dramático brechtiano, é
através das palavras que as ações são anunciadas. Ecoando a estru-
tura de tribunal que caracteriza a tragédia clássica, é como se a Lei da
Anistia finalmente encontrasse um fórum para ser revista: o palco do
teatro. Os espectadores são o júri popular possível.
Os atores promovem oralmente uma dupla batalha que desdobra
e entrelaça os conflitos tebanos da tragédia com a história de um país Um memorial para Antígona
marcado pela prática de enterrar suas histórias de violência. Na ver- Um memorial para a amnésia — Márcio
são apresentada, transformando o enredo da tragédia de Sófocles, os Seligmann-Silva

cidadãos tebanos, após o assassinato de Antígona, reúnem-se para a Da garganta que berra —
Miguel Antunes Ramos e
inauguração de uma estátua em sua homenagem. Um paralelo claro é Vicente Antunes Ramos
estabelecido entre a homenagem a uma heroína realizada por inicia-
tiva do próprio déspota que a condenou à morte, Creonte, e, por outro
lado, a história do Brasil recente, determinada em boa parte por uma
ausência de julgamentos, apuração e devida condenação dos atos he-
diondos de terrorismo de estado ocorridos no Brasil entre 1964–1979 Em um bem encenado e
(ano da Lei de Anistia). Indo mais a fundo na questão: se Antígona foi amarrado teatro pós-
condenada à morte por ter desrespeitado o decreto de Creonte que dramático brechtiano, é
proibia o enterro de Polinices e tinha realizado por conta própria os
através das palavras que
devidos rituais fúnebres para seu irmão, no Brasil a Lei da Anistia per-
mitiu que corpos de desaparecidos assassinados pelo estado perma-
as ações são anunciadas.
necessem sem o devido enterro. Por um lado, em Tebas, a lei de Cre-
onte desrespeitava o direito natural de se enterrar um parente, reali-
zando os devidos rituais fúnebres; de outro, um estado moderno de-
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saparecia com as suas vítimas, impedindo os funerais, e repetia esse
tipo de decreto arbitrário ao anistiar os criminosos, barrar as investi-
gações jurídicas e o esclarecimento dos assassinatos, a demarcação
dos locais onde os corpos foram escondidos etc. Lá e cá, a injustiça
triunfa. Lá e cá, corpos insepultos poluem o ar da política, determi-
nando uma suspensão da democracia. Mas, se na Grécia mítica a vitó-
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ria de Creonte é uma vitória de Pirro, já que ele perdeu seu filho, He-
mon, que acaba se suicidando após a morte de sua amada Antígona, e
perde a sua esposa, que também se suicida, a situação no Brasil é bem
diferente.
É importante saber que essa peça foi concebida durante o fatídico
ano de 2019 e deveria ter sido estreada em 2020. Ela acabou sendo
apresentada apenas em 2023: após a pandemia, já no início do ter-
ceiro governo de Lula e em um momento que muitos exclamam “Sem
anistia”, referindo-se aos crimes cometidos pelo governo de 2019–
2022, que levaram à morte centenas de milhares de brasileiros por
conta do negacionismo contra as devidas medidas sanitárias que de-
veriam ter sido tomadas de modo célere diante da pandemia de covid-
19. As questões que serviram de estopim para o tema da peça, a reite-
rada prática, no Brasil, de se anistiar os criminosos que servem ao Es-
tado, o fato de termos eleito um presidente entusiasta da tortura, as-
sumiram entrementes um significado ainda mais carregado.
Isso sobretudo se lembrarmos do crime ocorrido em 25 de maio
de 2020 em Minneapolis, quando um policial branco assassinou, es-
trangulando de modo bárbaro e diante das câmaras, o afro-americano
Georg Floyd. A reação internacional a esse assassinato desencadeou a
derrubada de centenas de estátuas, monumentos e placas que come-
moram personalidades ligadas aos crimes da colonização e à escravi-
zação durante a Modernidade. Pensar a importância das marcas de
memória, que de certo modo orientam nossa geografia mnemônica e
espiritual em nossas cidades, passou a ser considerado um momento
central na construção de políticas de Estado. Não que essas estátuas e
marcas da memória já não fossem centrais nessas políticas desde a
mais profunda antiguidade. Basta lembrar o faraó Akhenaton e sua
fúria iconoclasta contra os templos a Amon que ele fez destruir de
modo massivo. Após a morte de Akhenaton, por sua vez, os faraós fi-
zeram uma destruição tão radical de sua cidade sagrada, construída
em 1370 A.C. em El Amarna, que apenas no século XVIII ela foi redes-
coberta. Mas na Modernidade, ou seja, desde o século XV, nossas ci-
dades tendem a ser pontuadas por estátuas e monumentos em home-
nagem a seus líderes políticos e militares. Essa prática também se se-
dimentou no modo monumental de se construir a história, como cri-
ticou Nietzsche, em 1874 , em seu ensaio Sobre a utilidade e a desvanta-
gem da história para a vida. 2
Depois de Nietzsche, coube a Walter Benjamin fazer a crítica
desse hábito de se monumentalizar déspotas e assassinos. Em suas
teses Sobre o conceito de história, ele anotou, criticando o viés da histo-
8 riografia tradicional, feita do ponto de vista das elites:

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A empatia com os vencedores beneficia […] sempre os que ora
dominam. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos
os que até hoje foram vencedores vão junto ao cortejo triunfal
dos dominantes, que marcham sobre aqueles que jazem hoje
no chão. Os espólios, como de costume, são levados no cor-
tejo triunfal. São os chamados bens culturais. O materialista
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histórico os observa sempre com o devido distanciamento.
Pois todos os bens culturais que ele contempla têm uma ori-
gem sobre a qual não pode refletir sem horror. Devem a sua
existência não apenas ao esforço dos grandes gênios, que os
criaram, mas também à corveia anônima dos
contemporâneos destes. Não há um documento da cultura
que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. E
assim como a cultura não está livre da barbárie, assim
também ocorre com o processo de sua transmissão, na qual
ela é passada adiante. Por isso, na medida do possível, o ma-
terialista histórico dela se afasta ao máximo. Ele considera
que a sua tarefa é escovar a história a contrapelo. 3

Justamente, este “escovar a história a contrapelo” é o que o nosso


comitê escondido realiza com essa encenação. De modo bastante ben-
jaminiano, a peça aproxima e coloca em curto-circuito eras cronologi-
camente afastadas, mas que ao serem sobrepostas, produzem uma
imagem dialética, ou seja, facultam visualizarmos de modo crítico e
empoderador a nossa história. A memória, afinal, é uma criação dinâ-
mica de cada presente. Ela só existe de modo múltiplo. Adentramos a
arena política armados dessas memórias. Os donos do poder no Brasil
sempre cultuaram com muito carinho a sua história linear, esse
triunfo de nossos regentes, de D. Pedros a Bolsonaros, construindo
uma história de supostos progressos e de um presumido acúmulo de
conquistas.
A história escovada a contrapelo, no entanto, revela uma longa e A uma população sem
plural miríade de narrativas que se perdem no tempo, são sistemati- direito à memória
camente silenciadas, rasuradas, apagadas e impedidas de se divulgar.
corresponde também uma
Existe uma relação direta entre a economia em termos financeiros e a
economia mnemônica. O fato de o Brasil ser o segundo país do mundo
população sem direito à
com a pior divisão de renda é estruturalmente correspondente ao fato identidade e às
das memórias dos subalternizados serem sistematicamente apagadas cidadanias social e
neste país. A uma população sem direito à memória corresponde tam- econômica.
bém uma população sem direito à identidade e às cidadanias social e
econômica. A uma polícia genocida correspondem práticas amnésicas
para lidar com as memórias dos espezinhados. A história do genocí-
dio indígena multissecular, da escravização, das torturas, da fome, do
aprisionamento, do abandono, da humilhação, a história dos inúme-
ros levantes dos escravizados, dos operários e camponeses, dos heróis
anônimos, essas histórias são passadas oralmente, via testemunhos e
via outras modalidades de inscrição que tentam burlar censura
onipresente.
Em Um memorial para Antígona, portanto, o comitê escondido nos
8 propõe uma inteligente e provocativa reflexão acerca desses hábitos

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típicos deste país pontuado por golpes e por continuidades das elites.
O mote da peça é a frase repetida com ênfase: “Passado abandonado
não se torna passado”. Nossas elites se perpetram no poder e suas his-
tórias unilaterais também. Elas precisam dessa pseudo-história para
se manterem no poder. Se no século XXI minorias (majoritárias, é ver-
dade) estão conseguindo se empoderar e estão enfrentando o poder
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patriarcal branco, a resposta tem sido uma enorme onda neofascista.
Como o escritor sobrevivente do campo de concentração de Da-
chau, Robert Antelme formulou em 1948: “Quando o pobre torna-se
proletário, o rico torna-se ss ”. Essa também tem sido a prática nas
burguesias latino-americanas, e o Brasil merece destaque nessa prá-
tica. Essa eterna reiteração e ostentação do poder e de seu cetro co-
manda a construção de estátuas a militares e bandeirantes, com des-
taque, é claro, para o Monumento às bandeiras de Victor Brecheret no
parque do Ibirapuera em São Paulo. Sob suas centenas de toneladas,
séculos de histórias de horror são reiteradamente sufocadas.
Talvez por conta desse sufocamento das narrativas da memória A memória sufocada
da maior parte da população — aliado ao fato de que essa peça foi brota aos jorros.
praticamente reescrita durante a pandemia, quando os brasileiros su-
focavam por conta da necropolítica oficial — atores (com ou sem
máscaras imaginárias contra a covid) respiram de modo insistente
por bocas entreabertas em Um memorial para Antígona. Frases são en-
trecortadas por respirações, ruídos estridentes impedem que ouça-
mos parte dos textos recitados. É como se estivéssemos diante de um
dispositivo enguiçado de produção crítica da memória. A memória
sufocada brota aos jorros. Um corpo em agonia emite sons que de-
nunciam histórias de horror e de memoricídios.
Mas essa peça também é resultado de um belo trabalho de pes-
quisa. Apresentando os debates em torno da criação e votação da Lei
de Anistia em 1979, ela faz um trabalho psicanalítico de escavação em
nossa capa de memória ressequida, composta por uma terra quase
petrificada pelas políticas memoricidas e de esquecimento no que
toca (também e não apenas) à ditadura de 1964–1985. Freud compa-
rava a sua técnica psicanalítica ao gesto de escavar de um escultor, e a
contrapunha ao do pintor de colocar camadas de tinta. Na peça, a es-
tátua de Antígona representa, por sua vez, uma “memória encobri-
dora”, uma imagem-biombo, feita para se ocultar os crimes de Cre-
onte, para se esquecer de Polinices (o guerreiro pela autêntica demo-
cracia) e de seus companheiros. Mas Freud também comparava sua
técnica psicanalítica ao trabalho de um arqueólogo, que escava na
terra. E as descobertas que o comitê escondido traz à superfície não
são de pouca monta.
Já a primeira fala, do herói da luta pela democracia Teotônio Vi-
lela, é estarrecedora. Trata-se de um largo elogio da Anistia como
pacto de esquecimento:

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Srs. senadores, Srs. deputados, membros da Comissão Mista
da Anistia. Estamos aqui reunidos para examinar matéria im-
portante para os rumos que toma a nação, a saber, o projeto
de Lei n. 6.683, a chamada Lei da Anistia, enviado para o Con-
gresso Nacional pelo Sr. João Batista Figueiredo, o Presidente
da República neste ano de 1979. Que se registre aqui este mo-
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mento histórico em que este Congresso, em Comissão Mista,
se reúne para debater esta lei. Com o selo da liberdade, a
Anistia é o mais belo movimento que já se estruturou no país
depois da instalação do arbítrio, principalmente pela
espontânea congregação de entidades civis e parcelas des-
comprometidas da sociedade aberta no firme compromisso
de erguer os direitos da pessoa humana acima de desentendi-
mentos e guerras, e firmar um pacto de esquecimento capaz de
gerar uma nova solidariedade pelo futuro. Srs. Membros da
Comissão Mista da Anistia, declaro aberta a sessão

Mas é sobretudo nas falas dos deputados da Arena, o partido que


apoiava a ditadura, que escutamos a insistência em associar anistia,
perdão, esquecimento e conciliação. Trata-se justamente do gesto
memoricida e assassino do direito, das leis e das convenções que tor-
navam e tornam impossível a suspensão da esfera jurídica em caso de
crimes imprescritíveis e não passíveis, portanto, de perdão. Não existe
anistia para os crimes cometidos pelo terror de Estado. Como pude-
mos ver e ouvir recentemente no excelente filme Argentina, 1985, de
Santiago Mitre, o promotor Júlio Cesar Strassera no seu discurso final
de acusação, em um belo gesto retórico, propõe aceitar a tese (na ver-
dade absurda) segundo a qual o que ocorrera na Argentina na dita-
dura de 1976–1983 teria sido uma “guerra”, ou seja, Strassera propõe
aceitar provisoriamente a famosa “teoria dos dois demônios”. O sábio
promotor pondera:

Adotemos agora a teoria da guerra, tão repetida pelos réus.


Podemos considerar o sequestro de indefesos, ao amanhecer,
por gangues anônimas, um ato de guerra? É um ato de guerra
torturá-los e matá-los, se não ofereceram resistência? É um ato de
guerra ocupar lares e fazer famílias de reféns? São alvos milita-
res os recém-nascidos?

E, na mesma toada, na peça, o guerreiro de Polinices, ou seja, o re-


presentante dos que caíram na luta contra os déspotas fala: “Eles di-
ziam que era uma guerra. Mas nós não tínhamos a menor chance.
Etéocles [representante do exército] girava a manivela [da máquina
de eletrochoque de tortura], e dizia que estávamos todos em guerra.”
Contra a noção absurda de que se poderia por decreto de anistia
perdoar aos verdugos e pacificar a sociedade, somos confrontados
com a poderosa manifestação do pronunciamento do Movimento Fe-
minino pela Anistia, que havia sido criado em 1975:

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Anistia, já foi dito, não é perdão. Porque perdoar pressupõe
humilde gratidão de quem é perdoado. Como sabemos todos
nós, reunidos aqui, não é bem disso que se trata. Foi, então,
sugerido, que se desse à palavra anistia outra conotação — a
de esquecimento. Acontece, porém, que aqueles que se apo-
deraram do poder sofreram apenas algumas baixas. Por con-
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seguinte, se anistia é esquecimento, o que têm a esquecer é,
relativamente, pouco E muito pouco diante do que, de nós,
será exigido em matéria de esquecimento. Porque teremos de
esquecer o Pau de Arara. A Câmara de Sons. A Cadeira do
Dragão. A Geladeira. Os choques elétricos. O isolamento. Os
estupros. As cicatrizes que marcaram para sempre o corpo e a
mente de tantas e tantas vítimas de terrível repressão que
varreu o país de ponta a ponta. Que se abateu como algo de
diabólico sobre toda a nação. As paredes úmidas das celas e
das salas de tortura guardarão para sempre o eco dos gritos de
agonia e as manchas de sangue, do suor e das lágrimas da-
queles de quem tentaram arrancar confissões e delações.

No entanto, tampouco muitas dessas paredes de prisões nas quais


os que lutaram contra o regime e por seus ideias revolucionárias fo-
ram presos podem ecoar algo, já que o Carandiru e o presídio Tiraden-
tes foram demolidos e mesmo o Deops de São Paulo, que hoje abriga o
Memorial da Resistência (principal local de memória crítica do pe-
ríodo da ditadura), passou por uma reforma que retirou das paredes
das prisões as inscrições que ali haviam deixado esses prisioneiros.
Políticas do esquecimento. Mas, no Brasil, os monumentos, ao molde
dos que reverenciam aos bandeirantes, continuaram a ser erigidos em
homenagem aos ditadores, como o Mausoléu a Castello Branco, no
centro de Fortaleza, além das milhares de denominações de logradou-
ros que homenageiam torturadores, ao arrepio das recomendações
que constam no relatório da nossa Comissão Nacional da Verdade.
Na peça, o guerreiro de Polinices também lembra das palavras de
Creonte que clamavam para que “deixemos o passado para trás”. Mas,
pondera o guerreiro, como esquecer, se o nome de Polinices não está
escrito em lugar algum, a não ser na sua própria memória de guer-
reiro: “Como eu posso esquecer, se eu ainda escuto os ruídos da
guerra, os gritos e o som da manivela que gira?”. E outra voz brada:
“Como eu posso esquecer, se a dor ainda dói, se o sangue ainda lateja,
se eu ainda me lembro?”. A memória do mal exige uma dupla inscri-
ção na sociedade: uma nos locais de memória e nas datas comemora-
tivas. Outra, imprescindível também, se quisermos construir uma na-
ção sem candidatos a pretensos “salvadores da pátria”, golpistas,
exige que o sistema jurídico faça o seu trabalho. Demanda que sejam
suspensos os pactos de esquecimento e de perdão. Lembrando que a
anistia aprovada foi articulada pelos próprios algozes, ainda durante
o período ditatorial. Essa lei se apropriou então da legítima bandeira
de uma anistia, reivindicada pelos que lutavam contra a ditadura, que
seria restauradora da justiça e sem perdão aos torturadores. A esfera
8 da justiça, que é um dos pilares do poder e resiste a se abrir para os

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que se colocam do lado da luta pelo fim da sociedade de exploração,
tem se mostrado particularmente avessa às lutas pela democracia no
Brasil, ao menos até o governo Bolsonaro (quando o stf se tornou a
única instância na Praça dos Três Poderes mais preservada do fas-
cismo). A cassação da presidenta Dilma, em 2016, e a prisão do candi-
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dato potencialmente vencedor das eleições presidenciais, Lula, em
2018 são dois casos eloquentes nesse sentido. A esfera do direito, que
habita os palácios de justiça kafkianos, gigantes e neoclássicos, tem
apoiado muitos regimes ditatoriais, como foi o próprio caso do regime
hitlerista, com seus “grandes” juristas. Na peça, não por acaso, ouvi-
mos repetido o mote: “Teve muito choque elétrico por entre essas co-
lunas gregas.”
Junto com esse processo mnemônico e de construção da justiça
vem também um processo de busca pela verdade dos fatos horrendos
de então. Os cadáveres insepultos devem ser localizados, identifica-
dos e seus familiares devem ter o direito de finalmente enterrá-los de-
volvendo a dignidade aos que foram assassinados de modo indigno.
O guerreiro de Polinices está assombrado por suas memórias. Ele Ele está traumatizado,
está traumatizado, lembrando que o traumatizado é aquele que está lembrando que o
tomado por “memória demais”. O paradoxo é que os traumatizados
traumatizado é aquele
no Brasil têm esse “excesso” mnemônico sem a contraparte de locais e
datas para inscreverem essas memórias. Não se trata de se reivindicar
que está tomado por
novos monumentos gigantes e pesados, mas de se propor espaços e “memória demais”.
dispositivos de memória ao molde de antimonumentos, que apresen-
tem justamente esse trabalho de memória enquanto trabalho de luto
— interminável. O guerreiro fala:

Sim, sim, mais que uma estátua, hoje deveríamos estar aqui
inaugurando um buraco. Um monte de terra, e um buraco
com sete palmos de profundidade, vazio. Se houvesse pelo
menos uma cova, uma cova que nunca pudesse ser fechada.
Se marcasse aqui o lugar onde ele caiu… talvez eu pudesse
olhar para esse buraco e gritar dentro dele.

Essa cova seria um espaço de memória intenso, um verdadeiro es-


paço de recordação.
Se a anistia e a estátua de Antígona, em frio mármore branco, sig-
nificam na peça as marcas do esquecimento, da construção de falsas
narrativas, que “sepultam o passado”, ao invés de acolhê-lo com dig-
nidade, ao final da peça resta a esperança quanto à construção de ou-
tras modalidades de inscrição mais abertas aos verdadeiros heróis da
história:

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Algum dia, vocês vão ver, vamos construir o nosso, o verda-
deiro memorial de Antígona. De Antígona e de Polinices. E de
todos os mortos. Lá estará a terra, lá estará o cetro — não
restará nenhuma dúvida, então, sobre a queda de Creonte.
Isso daqui é pouco, muito pouco. E lá estará escrito: Para que
nunca mais se esqueça: Passado abandonado não se torna pas-
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sado. (para Ismene) Você se esqueceu de tudo.

Nós nos esquecemos de tudo, ou de quase tudo, como o comitê es-


condido nos mostra. Mas o pouco de que nos lembramos pode ser se-
mente para resgatar os milhões e milhões de histórias a narrar.
Zarpemos!

Um memorial para Antígona

Um memorial para a amnésia — Márcio Seligmann-Silva


Da garganta que berra — Miguel Antunes Ramos e Vicente Antunes Ramos

Notas

1. A peça Um memorial para Antígona foi apresentada no Tusp entre 20 de abril e 14 de


maio de 2023. Contou com a direção de Vicente Antunes Ramos, que também assi-
nou a dramaturgia ao lado de Miguel Antunes Ramos, e foi apresentada com os se-
guintes atores: Danilo Arrabal, Giovanna Monteiro, Julia Pedreira, Joy Catharina,
Rafael Sousa Silva, Sheila Almeida e Victor Rosa. ↺
2. Friedrich Nietzsche, Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, Editora
Hedra, São Paulo, 2017. ↺
3. Walter Benjamin, Sobre o conceito de história. Organização e tradução, Adalberto
Müller e Márcio Seligmann-Silva, São Paulo, Alameda, 2020, p. 117. ↺

✵✵✵

Publicado no número 1 do volume 8 da Revista Rosa em 2/10/2023.

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Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.com, issn 2764-1333.

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e — notas sobre Um memorial para Antígona
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