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Revista da Faculdade de Direito da UFRGS – nº 28, 2011 135

O PRINCÍPIO DA ESSENCIALIDADE
NA TRIBUTAÇÃO

Rosane Beatriz Jachimovski Danilevicz1

RESUMO se realiza na tributação por meio da


seletividade.
O Estado brasileiro constitui-se
em um Estado Democrático de Direito Descritores: Tributação. Igual-
e tem por fundamento a soberania, a dade. Capacidade contributiva. Mí-
cidadania, a dignidade da pessoa nimo existencial. Dignidade humana.
humana, dentre outros. A dignidade Essencialidade.
humana identifica um espaço de
integridade a ser assegurado a todas
as pessoas por sua existência e seu 1 INTRODUÇÃO
conteúdo está associado aos direitos
fundamentais e ao mínimo existencial. O presente artigo tem por objeto
No âmbito da tributação, a proteção analisar e identificar os aspectos da
ao mínimo existencial se manifesta na essencialidade como um princípio
essencialidade de certos produtos. A constitucional da tributação. Cumpre
essencialidade consiste num princípio registrar que a essencialidade é
de política fiscal, instrumento de um tema que não tem sido muito
distribuição de renda e justiça que examinado pela doutrina, pois

1 Mestre em Instituições do Direito do Estado pela PUCRS. Especialista em Direito


Público pela ULBRA. Professora das Faculdades Integradas São Judas Tadeu. Advogada.
Currículo: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=E9231753.
Endereço profissonal: Rua Quintino Bocaiúva, 554/203, Moinhos de Vento, Porto
Alegre, RS, Brasil, CEP 90.440-050. Endereço eletrônico: rdanilevicz@yahoo.com .

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essa lhe tem dado pouca atenção, necessidades da coletividade, os quais


limitando-se a afirmar que consiste se consubstanciam na tributação.
numa diretriz à seletividade, bem Quanto aos princípios, é impor-
como poucas questões são levadas ao tante destacar que estão vinculados
Poder Judiciário. a valores, porém com eles não se
As razões que justificam o presente confundem. No direito tributário,
estudo são encontradas na atualidade e ainda que o orçamento e a tributação
na relevância do tema, na medida em não decorram de valores, estão em
que a exoneração da carga tributária um campo axiológico marcado pelos
sobre as necessidades essenciais na valores éticos e jurídicos que devem
tributação sobre o consumo pode ser estar contidos nas políticas públicas.
satisfeita pela graduação das alíquotas Ricardo Lobo Torres observa que
de acordo com a essencialidade dos os princípios, assim como os valores,
produtos, mercadorias e serviços. têm por características a generalidade
e a abstração, porém com menor in-
tensidade. Os valores são ideias abs-
tratas, supraconstitucionais, enquanto
2 ELEMENTOS
os princípios se encontram entre os
RELEVANTES PARA
valores e as regras, demonstrando em
ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA
parte a generalidade e a abstração dos
ESSENCIALIDADE
valores e a concretude das regras. Os
princípios podem estar presentes nas
Além da Noção de Princípios e disposições constitucionais como uma
Regras, serão abordados neste artigo: concretização dos valores. Porém, se
o Princípio da Igualdade, o Princípio estiverem ausentes daquele texto, não
da Capacidade Contributiva e o perdem suas características. De modo
Mínimo Existencial. que os princípios e as regras se con-
cretizam a partir dos valores, em pro-
2.1 Noção de Princípios e cesso de legitimação por intermédio
Regras da ponderação, razoabilidade, igual-
-dade (Torres, 2005, p. 194-195).
O Sistema Constitucional Tribu- Enquanto os princípios expressam
tário é formado por um conjunto de um dever, os valores expressam um
normas jurídicas – princípios e regras critério de valoração. Por isso os
– que atuam de forma coordenada e valores não possuem eficácia jurídica
lógica para que o Estado desenvolva direta e se concretizam na ordem
meios para obtenção dos recursos jurídica por meio dos princípios.
necessários ao cumprimento de No caminho da formulação do
suas finalidades e atendimento das conceito de princípio, Riccardo Guas-

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tini afirma que não é fácil individua- a impor uma aplicação obrigatória,
lizar quais propriedades deve ter uma devendo a lei suprir e esclarecer os
norma para merecer o nome de “prin- seus mandamentos.
cípio”. Todavia, a “grosso modo”, Vale dizer que os princípios
diz que os princípios caracterizam-se jurídicos são ideias fundantes dos
“pelo lugar que ocupam no ordena- sistemas jurídicos constitucionais e
mento jurídico como um todo e/ou eficazes instrumentos de interpretação
em algum setor específico.” São as e integração do Direito. No dizer
normas que aparecem como “caracte- de Ricardo Lobo Torres, “os
rizantes” do ordenamento ou de uma princípios são enunciados genéricos
parte sua. “Seriam enunciados dota- que concretizam valores morais e
dos de um significado muito elástico conduzem à elaboração, interpretação
e/ou indeterminado”. Normalmente, e aplicação das regras jurídicas”
os princípios são normas muito va- (Torres, 2005, p. 275).
gas. Um princípio é vago porque “não Nesse prisma, Juarez Freitas
possui um campo exato de aplicação” entende por princípios fundamentais
ou “porque possui um conteúdo teleo-
lógico ou programático”, exprimindo os critérios ou as diretrizes basilares
do sistema jurídico, que se traduzem
um valor ou recomendando um fim, como disposições hierarquicamente
ou “a realização de um programa” superiores, do ponto de vista
sem “estabelecer os meios que devem axiológico, às normas estritas (regras)
ser empregados”. E relativamente a e os próprios valores (mais genéricos
outras normas, os princípios se carac- e indeterminados), sendo linhas mes-
terizam em razão de sua generalidade tras de acordo com as quais guiar-
se-á o intérprete quando se defrontar
(Guastini, 2005, p. 186-190). com as antinomias jurídicas (Freitas,
Conforme José Canotilho, os 2004, p. 56).
princípios ou os valores por eles
revelados, de liberdade, igualdade, Tais orientações revelam que os
dignidade são essenciais ao sistema princípios são instrumentos valio-
jurídico (Canotilho, 2003, p. 1163). sos para uma adequada interpretação
Nessa linha, os princípios são normas constitucional. A par disso, os prin-
presentes na Constituição e nos cípios também constituem subsídios
fundamentos de regras jurídicas, importantes para fundamentar as de-
ou seja, são proposições básicas cisões judiciais, bem como critérios
que fundamentam o ordenamento para o processo de interpretação e
jurídico. A partir da sua positivação aplicação do Direito, uma vez que exi-
e constitucionalização, os princípios ge do operador jurídico a observância
ganharam normatividade, passando obrigatória aos mesmos.

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Ultrapassada a análise relativa Robert Alexy tem por ponto


aos princípios, cumpre apresentar a decisivo para a distinção entre regras e
distinção entre princípios e regras, princípios, o fato de os princípios serem
tema crucial para o direito público, normas que ordenam a realização
uma vez que as disposições constitu- de algo na maior medida possível,
cionais sobre tributação necessitam de dentro das possibilidades jurídicas e
regras reguladoras da criação, fiscali- fáticas. De modo que os princípios são
zação e arrecadação das prestações de comandos de otimização aplicáveis
natureza tributária. em vários graus, enquanto as regras
A distinção entre princípios e contêm determinações. O conflito
regras é um tema polêmico, haja entre regras se resolve pela introdução,
vista serem vários os critérios para em uma das regras, de uma cláusula
estabelecer as diferenças. Diante de exceção que elimina o conflito ou
disso, cabe destacar que o presente pela declaração de invalidade de uma
estudo não tem a pretensão de esgotar
das regras. A colisão de princípios
os doutrinadores que tratam do
se resolve com a ponderação entre
tema, mas apenas examinar algumas
os princípios colidentes, de modo
concepções sustentadas.
que um prevalecerá sobre o outro.
Ronald Dworkin estabeleceu a
O que não significa invalidar o
diferença estrutural entre princípios
princípio desprezado nem implica a
e regras a partir de critérios clas-
inclusão de uma cláusula de exceção.
sificatórios. Em sua concepção, uma
Assim, os princípios têm apenas uma
regra vale ou não vale. Trata-se de
um tudo ou nada, ou seja, ocorrendo dimensão de peso, não determinando
a hipótese descrita na regra, ela será as consequências normativas como
válida, devendo, portanto, ser aplicada. ocorre com as regras (Alexy, 2001).
Em havendo colisão de regras, uma Dentre os nossos doutrinado-
delas deve ser considerada inválida. res, destaca-se, inicialmente, Juarez
Quanto aos princípios, o autor entende Freitas, para quem os princípios di-
que admitem uma aplicação mais ferenciam-se das regras, não por sua
ou menos ampla e de acordo com as generalidade, mas por sua qualidade
possibilidades normativas e fáticas, argumentativa superior. Por isso, em
uma vez que contêm fundamentos caso de colisão, a interpretação deve
para a decisão, os quais devem ser ser conforme os princípios. A supre-
conjugados com fundamentos de macia da “fundamentalidade” na co-
outros princípios. Sustenta, ainda, que lisão de princípio ou no conflito de
os princípios possuem uma dimensão regras faz com que um princípio pre-
de peso ou importância que falta às pondere e não uma regra. Para o autor,
regras (Dworkin, 1993, p. 74-77). as regras são preceitos menos amplos

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e axiologicamente inferiores. Servem ou proibições, enquanto os princípios


para harmonizar e dar concretude aos são normas imediatamente finalísticas,
princípios fundamentais. Por isso, não pois determinam um estado de coisas e
podem ser aplicadas automaticamen- necessitam da adoção de determinados
te, porquanto “a compreensão das comportamentos para sua promoção.
regras implica uma simultânea [...] Sustentando que as regras também
aplicação dos princípios em conexão podem ser diferenciadas dos princípios
com as várias frações do ordenamen- quanto à justificação que exigem
to” (Freitas, 2004, p. 56-57). Hum- para a adoção de uma determinada
berto Ávila opta por posição diversa, interpretação e aplicação, o autor
sustentando que a solução do conflito afasta o modo do tudo ou nada, e
entre regras e princípios depende do afirma que, para a interpretação e
nível hierárquico das espécies norma- aplicação das regras, é necessária uma
tivas. Desse modo, em sendo de hie- análise da correspondência entre os
fatos e as disposições da norma. Já os
rarquia diferente, tanto se tratando de
princípios reclamam uma análise entre
um princípio ou uma regra, prevalece-
o estado de coisas a ser promovido e a
rá a norma de hierarquia superior. Já
conduta adotada. Segundo o autor, as
o conflito entre um princípio constitu-
regras ainda podem ser diferenciadas
cional e uma regra infraconstitucional
dos princípios quanto ao modo como
deve ser solucionado com a prevalên-
contribuem para a decisão. Desse
cia do princípio. O conflito entre uma
modo, os princípios são normas com
regra constitucional e um princípio in-
pretensão de complementaridade
fraconstitucional será resolvido com e de parcialidade, pois apenas
a prevalência da regra. Ocorrendo estabelecem diretrizes valorativas a
o conflito entre um princípio e uma serem alcançadas, não descrevendo
regra constitucionais, deve ser dada o comportamento adequado para
prevalência à regra, caso não se trate, a tomada de decisão, de modo que
apenas, de uma extensão ou restrição não geram uma solução específica,
teleológica em âmbitos permitidos do todavia, contribuem para a chegada
Direito (Ávila, 2004b, p. 85). a uma solução. Já as regras são
Humberto Ávila entende que as normas preliminarmente decisivas e
regras e os princípios diferenciam-se abarcantes, uma vez que abrangem
quanto ao modo como prescrevem os vários aspectos relevantes para a
o comportamento. Assim, as re- tomada de decisão a fim de buscar
gras qualificam-se como normas uma determinada solução ao caso
imediatamente descritivas da conduta (Ávila, 2004b, p. 63-69).
a ser adotada, tendo em vista que Na visão de Eros Grau, a
estabelecem obrigações, permissões generalidade de uma regra é diversa

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da generalidade de um princípio, demonstram a inexistência de um


porquanto a regra é estabelecida critério hermenêutico que estabeleça
para um indeterminado número de em princípio a prevalência de
atos ou fatos, enquanto os princípios princípios ou regras. Além do
comportam indefinidas aplicações. argumento de que, a partir de uma
É no momento da interpretação/ interpretação tópico-sistemática do
aplicação que surge a diferença entre caso concreto, é possível comprovar
regra e princípio. Assim, no curso as conexões lógico-axiológicas que
do processo interpretativo é que o indicarão a melhor solução possível
intérprete decidirá se existe ou não para o caso (Caliendo, 2006, p. 151),
conflito entre regras ou colisão entre há o argumento decorrente do fato
princípios. Ainda, os princípios atuam de os princípios e regras possuírem
como mecanismos de controle da natureza lógico-sintática diversa.
produção de normas-regras, bem Diante de tudo o que foi exposto,
como podem ser a medida do controle depreende-se que os princípios con-
externo da produção de normas. Além têm uma maior carga valorativa, um
do que cabe ao intérprete a escolha fundamento ético e indicam uma
do princípio a partir da ponderação determinada direção a seguir. São
do seu próprio conteúdo, enquanto a aplicados a um número indeterminado
declaração da validade de cada regra de situações mediante ponderação,
depende do exame de critérios formais pois não descrevem as condições
externos (Grau, 2005, p. 183). necessárias para sua utilização. A
Consoante aponta Paulo Calien- validade dos princípios resulta do
do, não há um critério hermenêutico seu próprio conteúdo, que, em maior
que estabeleça anterior à experiência ou menor medida, são universais,
“a prevalência dos princípios sobre as absolutos, objetivos e permanentes.
regras ou vice-versa”. Tal raciocínio Possuem uma aplicação explicadora
deve ser empregado “para os casos em e justificadora em relação às regras e
que princípios e regras possuam mes- sintetizam uma grande quantidade de
ma hierarquia (constitucional ou infra- informação de um setor ou de todo
constitucional)”, uma vez que, entre o ordenamento jurídico, conferindo-
normas de hierarquia diversa, os “fun- lhe unidade e ordenação. Quando em
damentos de validade” podem ser al- colisão nenhum princípio é excluído,
cançados “nos critérios sobre norma cabe ao intérprete hierarquizá-los
superior e inferior”. Somente a veri- axiologicamente.
ficação do caso concreto pode deter- Por sua vez, as regras se
minar se deverá prevalecer o princípio referem ao mundo concreto e são
ou a regra (Caliendo, 2006, p. 132). normas descritivas que estabelecem
Vários são os argumentos que obrigações, proibições ou permissões

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por meio de condutas pré- ciação e das finalidades justificadoras


estabelecidas. Decorrem de outras da diferenciação” (Ávila, 2004a, p.
regras ou até mesmo de princípios. 334-335).
Garantem a previsibilidade do sistema, A igualdade perante a lei é a
pois seu comando é objetivo, não primeira reconhecida em nossa
dando margem a outras incidências, Constituição Federal, ou seja, a igual-
de modo que sua aplicação se dá dade formal consagrada no caput do
sob a forma da subsunção, ou seja, art. 5º. Trata-se da obrigatoriedade
enquadram-se os fatos na previsão de aplicação das normas jurídicas
abstrata e produz-se uma conclusão. gerais aos casos concretos, exigindo
Em havendo conflito entre duas uniformidade na sua aplicação.
regras, somente uma será válida e No tocante à igualdade material,
irá prevalecer. é sabido que ela não existe entre os
Tais considerações sobre indivíduos, seja no aspecto social,
princípios e regras são relevantes, biológico ou psicológico, bem co-
tendo em vista que estabelecem e mo não irá acontecer, porquanto a
influenciam diretamente na unidade desigualdade entre os indivíduos é
interna constitucional, determinando inerente à natureza humana. Contudo,
os vínculos relacionais que se tem as desigualdades sociais podem ser
entre essas normas. reduzidas por meio do princípio da
igualdade material, cabendo ao Estado
2.2 O Princípio da Igualdade a promoção de oportunidades através
de políticas públicas e leis que atendam
A igualdade é um princípio que às necessidades dos indivíduos menos
permeia praticamente todo o nosso favorecidos, de modo a compensar
Sistema Constitucional. Humberto eventuais desigualdades.
Ávila refere que a igualdade possui O princípio da igualdade
uma “dimensão normativa proponde- consiste na determinação de um
rante de princípio”, pois estabelece tratamento idêntico pela lei, tratando
um estado ideal que deve ser perse- desigualmente os casos desiguais
guido no exercício das competências segundo critérios abrigados pelo
atri-buídas aos entes públicos. Porém, sistema jurídico.
tem também um sentido “indireto de Em sendo as pessoas desiguais,
regra” ao descrever “o comportamen- jamais o tratamento poderá ser o
to a ser adotado pelo Poder Público” mesmo. Logo, para a aplicação do
diante de “situações equivalentes” e princípio da igualdade, é necessário
de postulado ao exigir à aplicação “a um tratamento desigual que, de algum
consideração e avaliação dos sujeitos modo, adequar-se-á às peculiaridades
envolvidos, dos critérios de diferen- decorrentes da desigualdade.

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Essa é a razão pela qual Misabel to jurídico, sob pena de cometimento


de Abreu Derzi, ao atualizar a obra de discriminação arbitrária.
de Aliomar Baleeiro, refere que “o Pode-se afirmar, então, que é
princípio da igualdade formal é uma preciso verificar como alguns são
norma que impõe o mesmo tratamento iguais ou não, bem como estabelecer
aos iguais e outro aos desiguais”, qual o critério a ser adotado para a
presumindo a diferença “relativa” diferenciação para que sejam tratados
igualmente os iguais e desigualmente
entre as pessoas, a viabilidade
os desiguais.
de sua comparação conforme um
Consoante o disposto no artigo 5º
determinado critério e o caráter
da CF, todos têm direito ao mesmo
axiológico deste (Baleeiro, 2005, p.
tratamento, de sorte que “a lei
527). Consiste, então, o princípio da tributária deverá ser uniformemente
igualdade na determinação de um aplicada”. Sendo importante “que a
tratamento idêntico pela lei, tratando diferenciação normativa dos sujeitos
desigualmente os casos desiguais que se encontrarem” na mesma
segundo critérios abrigados pelo situação ocorra de maneira invariável,
sistema jurídico. “sem a introdução de exceções
A concretização do princípio ou privilégios para determinadas
da igualdade depende do critério pessoas” (Ávila, 2005, p. 414).
discriminatório, pois ele mesmo nada Nesse contexto é que o princípio
diz quanto aos bens ou aos fins de que da igualdade tributária consiste em
serve de igualdade para diferenciar uma limitação ao poder de tributar
as pessoas. A diferenciação somente consagrada no artigo 150, II, da
importa quando lhe é agregada uma Constituição Federal, que dispõe:
finalidade, de modo que as pessoas
Art. 150. Sem prejuízo de outras
são iguais ou diferentes segundo um
garantias asseguradas ao contribuinte,
mesmo critério. Portanto, a aplicação é vedado à União, aos Estados, ao
da igualdade depende de um critério Distrito Federal e aos Municípios:
diferenciador e de um fim a ser [...].
alcançado (Ávila, 2004b, p. 101-102). II - instituir tratamento desigual
Desse modo, para a busca da entre contribuintes que se encontrem
igualdade, faz-se necessária a escolha em situação equivalente, proibida
qualquer distinção em razão de
de um critério diferenciador justifi-
ocupação profissional ou função por
cante do tratamento desigual, tendo
eles exercida, independentemente
em vista que os desiguais devem ser da denominação jurídica dos
tratados desigualmente, segundo a fi- rendimentos, títulos ou direitos
nalidade perseguida pelo ordenamen- (Brasil, 2008).

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igualdade/desigualdade os recursos
Percebe-se que o princípio da financeiros de cada um.
igualdade na tributação acarreta
a proibição de arbitrariedades ou 2.3 O Princípio da Capacidade
excessos, à medida que veda a Contributiva
desigualdade entre indivíduos que se
encontrem nas mesmas condições. Tendo em vista que os encargos
De modo que é vedado à lei tributária públicos são repartidos entre os mem-
instituir privilégios ou gravames que bros da coletividade, o pagamento
não sejam uniformes aos contribuintes
de tributos é um dever fundamental.
em igualdade de condições.
Em sendo assim, o fundamento para
O princípio da igualdade ante
a tributação não é a contraprestação
a lei tributária, além de ser igual
do serviço público, mas o concurso de
para todos que estiverem na mesma
todos para as despesas do Estado.
situação jurídica, requer que o tributo
instituído por lei editada pelo Poder Ainda que o poder de tributar seja
competente não atinja apenas alguns uma das manifestações do poder do
contribuintes, deixando a salvo Estado, é certo que tal poder não é
outros que, comprovadamente, se livre nem pode ser arbitrário. Por essa
encontram nas mesmas condições. razão o Estado somente pode atuar
Diante disso, como aferir a igualdade dentro do Direito e em observância às
entre os contribuintes? Quem são limitações impostas, dentre as quais
os contribuintes que se encontram se encontra a capacidade contributiva
em situação equivalente e merecem do indivíduo.
tratamento isonômico? A capacidade contributiva está
É sabido que “o princípio da associada à capacidade econômica do
igualdade admite a comparabilidade indivíduo em contribuir para a manu-
entre indivíduos distintos”, para reuni- tenção do Estado e consiste no critério
los conforme “suas semelhanças e de diferenciação aplicado à igualdade
diferenças” e, por isso, a igualdade no âmbito do Direito Tributário, haja
somente é “aferível por meio de um vista servir de medida para a distribui-
critério de comparação” (Baleeiro, ção dos encargos estatais, igualando
2005, p. 378-379).
ou desigualando os contribuintes a
Um dos mais importantes
partir das possibilidades econômicas
modos de aferição da igualdade é a
de cada um.
capacidade contributiva, porquanto se
O princípio da capacidade
todos são iguais perante a lei, todos
contributiva está previsto no §
serão tributados, sendo o critério de
1º, do artigo 145, da Constituição

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Federal. Destina-se a informar a de cada um individualmente. Desse


discricionariedade do legislador, con- modo, a tributação será justa quando
dicionando-o a adaptar a tributação, for adequada à capacidade econômica
de maneira tal que as incidências não do contribuinte de suportá-la.
sejam excessivas nem resultantes de É precisamente nesse contexto, que
presunções, resguardando o mínimo o princípio da capacidade contributiva
existencial e obrigando o sistema de é o modo de operacionalização
tributação a respeitar a capacidade da justiça fiscal defendida pela
econômica dos contribuintes. Constituição. Através dele é possível
Desse modo, o princípio da realizar a igualdade, que somente tem
capacidade contributiva, além de sentido quando é possível crer que as
servir de instrumento para alcançar pessoas com rendas diferentes possam
recursos de quem pode mais, serve ser tributadas de modo diferente.
para limitar a discricionariedade do Por isso, quando se diz que “é
legislador, abreviando imposições justo cobrar impostos na proporção
dos beneficiários” não significa que
exageradas, com fins confiscatórios e
cada um deve pagar determinada
onerosos do mínimo existencial.
quantia na medida dos benefícios
A força normativa do princípio
recebidos, “mas sim que cada pessoa
da capacidade contributiva resulta
deve ser onerada em termos reais na
da conjugação dos fundamentos
proporção dos benefícios recebidos”
da República contidos no art. 1º –
(Murphy; Nagel, 2005, p. 24).
dignidade da pessoa humana, os
A capacidade contributiva inserida
valores sociais do trabalho e da no preceito constitucional exige que
livre iniciativa – e de seus objetivos toda imposição tributária se justifique
fundamentais previstos no caput em face de manifestações reais e
do art. 3º – sociedade livre, justa e concretas de riqueza. Isto é, onde não
solidária. Combinado, ainda, com o houver riqueza não há capacidade
art. 170 que preconiza os valores e contributiva.
os princípios que compõem a ordem Assim, se de um lado os indiví-
econômica. duos têm a obrigação de contribuir
Com a observância do princípio para as despesas públicas decorrentes
da capacidade contributiva, o do dever de solidariedade, de outro, o
tratamento tributário será justo princípio da capacidade contributiva
quando o legislador considerar as restringe esse dever e o poder de
disparidades entre os contribuintes, imposição do Estado.
tratando de modo desigual os Diante disso, para a caracterização
desiguais cuja imposição tributária da capacidade contributiva não
considere a capacidade contributiva é suficiente dizer que os fatos

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econômicos expressam capacidade suportada pelo produtor, industrial ou


contributiva, pois é necessário que comerciante que realiza a operação,
se indique quais fatos. Nessa seara, a mas pelo consumidor final, cuja
renda total, o patrimônio, o consumo mensuração da capacidade econômica
ou, até mesmo, a combinação desses, é difícil. Isso ocorre por não ser
podem ser fatos reveladores de possível, antecipadamente, conhecer
capacidade contributiva. quem será e quais as condições
Assim como os economistas, a econômicas do destinatário final do
doutrina jurídica costuma comparar produto, mercadoria ou serviço.
a capacidade contributiva com a Em razão disso, o constituinte
capacidade econômica. A capacidade estabeleceu a seletividade das alí-
contributiva teria início quando quotas como forma de minimizar
afastadas todas as despesas necessárias as consequências da transferência
à vida digna do contribuinte, bem do ônus tributário e aplicar, ainda
como de sua família. Por sua vez, a que minimamente, o princípio da
capacidade econômica consiste no capacidade contributiva àqueles que
montante total da renda econômica. acabam pagando o tributo inserido
O modo mais basilar de no preço do produto, mercadoria
compreender a capacidade econômica ou serviço.
é apreciá-la de maneira subjetiva,
atendendo as situações pessoais dos 2.4 O Mínimo Existencial
titulares de riquezas, uma vez que
nem todos que manifestam igual Como observado, o princípio da
capacidade econômica oferecem a capacidade contributiva estabelece
mesma capacidade para contribuir a margem econômica da riqueza que
com o Estado. pode ser tributada e a capacidade
Assim, a capacidade contributiva econômica se manifesta na pos-
se manifesta na possibilidade de o in- sibilidade do indivíduo em colaborar
divíduo colaborar para a manutenção para a manutenção do Estado. Ocorre
do Estado somente a partir do mo- que tal colaboração somente se realiza
mento em que estiverem supridas as a partir do momento em que estiverem
condições mínimas e indispensáveis a supridas as condições mínimas e
uma sobrevivência digna. indispensáveis à sobrevivência do
O princípio da capacidade indivíduo com dignidade.
contributiva melhor se aplica aos Razão pela qual Alfredo Augusto
impostos diretos. Nos impostos Becker advertira que é preciso que o
indiretos a capacidade contributiva legislador escolha “para a composição
nem sempre acontece, uma vez que da hipótese de incidência das regras
a carga econômica do imposto não é jurídicas tributárias, fatos que sejam

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signos presuntivos de renda ou capital pressamente previsto em nossa atual


acima do mínimo indispensável” Constituição Federal, está implicita-
(Becker, 1972, p. 444-445). mente compreendido pelo princípio
Em sendo assim, a renda tributável fundamental da dignidade da pessoa
não tem início com a mera obtenção humana e pelos objetivos fundamen-
de recursos, porque deve ser protegida tais da República: erradicação da po-
da tributação uma parcela da renda breza, marginalização e redução das
destinada a suprir as necessidades desigualdades.
básicas que garantam as condições O princípio da dignidade da
mínimas de existência digna do pessoa humana está previsto no
indivíduo e de sua família. inciso III, do artigo 1º da Constituição
Isso ocorre porque o Estado Federal (Brasil, 2008) e se encontra
não pode privar o indivíduo de sua inserido no fim primeiro de
própria renda até o limite do mínimo nosso Estado, constituindo-se no
necessário para sua existência. sustentáculo dos direitos fundamentais
O artigo 145 da Constituição Fe- que são indispensáveis e necessários
deral determina que os tributos sejam para assegurar ao ser humano uma
graduados segundo a capacidade eco-
existência digna e o mínimo existen-
nômica do contribuinte (Brasil, 2008).
cial deve ser considerado como uma
Assim, a tributação está limitada à
subespécie desses direitos.
capacidade contributiva do indivíduo
Do modo como a dignidade huma-
determinada a partir de sua capacida-
na foi constitucionalmente prevista,
de econômica, que deve ser entendi-
depreende-se sua valorização no sen-
da como aquela parcela excedente do
tido de que as atenções do Estado de-
mínimo existencial. De modo que a
vem ser dirigidas elevando o homem
proteção ao mínimo existencial é um
elemento indispensável na formação ao mais alto grau de importância.
da capacidade contributiva. Por isso, Humberto Ávila asse-
Por mínimo existencial entende-se vera que a dignidade humana “pos-
aquela parcela da renda que se destina sui uma dimensão preponderante de
a solver as necessidades básicas sobreprincípio”, tendo em vista que
do indivíduo e o núcleo familiar determina ao Poder Público “o dever
dependente, tais como: alimentação, de buscar um ideal de importância e
vestuário, educação, trabalho, saúde, de valoração para o homem cidadão”.
lazer, dentre outras prerrogativas Sua importância “na ordem constitu-
consagradas na Constituição Federal cional” é imensa, refletindo até mes-
e que possibilitam a manutenção da mo na “atividade hermenêutica”, na
dignidade dos indivíduos. medida em que essa deverá sempre
Apesar de o mínimo existencial colocar o homem no centro de impor-
ser um direito que não se encontra ex- tância e de valoração (Ávila, 2004a,

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p. 319). Segundo o autor, a dignida- previdência social, o salário mínimo


de humana tem eficácia indireta em dos trabalhadores – vinculam parte
questões tributárias daquilo que se considera necessário
para ser atendido pelo mínimo
como as relações obrigacionais tri- existencial, isto é, as prestações
butárias possuem efeitos patrimo-
que devam ser acolhidas por esse
niais decorrentes da apropriação de
meios de pagamento e efeitos com- mínimo e que sirvam de referência ao
portamentais juntos ou separados dos Poder Público.
encargos tributários, elas atingem a Importa considerar que o mínimo
esfera privada e mantêm relação ne- existencial não tem um conteúdo
cessária com a liberdade e a proprie- específico e mensurável, abrange
dade, cuja disponibilidade é afetada.
O direito à vida não é violado pelas muito mais aspectos de qualidade
leis tributárias, desde que se mante- do que de quantidade, bem como é
nha disponível um mínimo em liber- variável, tendo em vista que, além das
dade e em propriedade. necessidades humanas serem infinitas
[...]. e também variadas, constantemente
A preservação do direito à vida e à
dignidade e da garantia dos direitos
surgem novas necessidades, bem como
fundamentais de liberdade alicerçam as diversidades regionais contribuem
não apenas uma pretensão de defesa para tanto. Essa é a razão pela qual
contra restrições injustificadas do Ingo Wolfgang Sarlet salienta que
Estado nesses bens jurídicos, mas
exigem do Estado medidas efetivas já não se pode negligenciar a
para a proteção desses bens. O circunstância de que o valor
aspecto tributário dessa tarefa é necessário para a garantia das
a proibição de tributar o mínimo condições mínimas de existência
existencial do sujeito passivo (Ávila, evidentemente estará sujeito às
2004a, p. 318-319). flutuações, não apenas na esfera
econômica e financeira, mas também
Assim, em face da dignidade das expectativas e necessidades
da pessoa humana, as limitações ao vigentes (Sarlet, 2007, p. 49).
poder de tributar não podem consistir
apenas na igualdade tributária, Em sendo assim, o direito
tendo em vista que o seu resguardo ao mínimo existencial impede o
implica a observância da capacidade exercício do poder de tributar, em face
contributiva e do mínimo existencial, da situação econômica do indivíduo,
indispensável à subsistência humana. bem como se refere à prestação de
No que concerne ao mínimo serviços públicos. Isto é, o mínimo
existencial, os direitos sociais – a existencial não se resume ao direito
educação, a saúde, a moradia, a de condições materiais mínimas a

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uma vida digna, mas, também, ao determina que o legislador gradue a


direito de obtenção da promoção e incidência tributária sobre produtos,
facilitação estatal ao crescimento mercadorias ou serviços de acordo
econômico e social, que no Direito com sua essencialidade, de modo que
Tributário implica a eliminação de quanto maior a importância social do
obstáculos impeditivos da realização bem consumido, menor será a carga
desse mínimo. tributária incidente sobre eles.
Assim, a realização do indivíduo A seletividade visa isentar ou
como ser livre exige a atenção a privilegiar com alíquotas mais
requisitos indispensáveis, sem os baixas os bens e serviços essenciais
quais não é possível alcançar a à população. De modo que o
plenitude que lhe é assegurada pela imposto seletivo é aquele que onera
Constituição Federal. Daí que no diferentemente os bens sobre o qual
âmbito da esfera patrimonial do incide, escolhendo-se esses bens em
indivíduo deve ser garantido um
razão de sua essencialidade a uma
mínimo de condições de existência
vida digna.
que permitam seu desenvolvimento.
O que ocorre, através da aplicação
De outra parte, vale dizer, também,
da seletividade, é uma presunção de
que o mínimo existencial deve ser
existência de riqueza, reveladora do
observado tanto na tributação dos
potencial capacidade contributiva
impostos diretos, como na tributação
do consumidor. De modo que a sua
dos impostos indiretos. Uma forma
aplicação apresentará distorções
de proteger o mínimo existencial da
tributação dos impostos indiretos quando a parcela mais favorecida
ocorre pela aplicação da seletividade, da população também adquire
onde os impostos incidem com produtos, mercadorias ou serviços de
alíquotas mais elevadas, na razão primeira necessidade, com reduzida
inversa da essencialidade do produto, ou nenhuma tributação, quando, na
mercadoria ou serviço. realidade, teria condições de suportar
o ônus tributário.
De igual modo, o indivíduo
3 O PRINCÍPIO DA economicamente menos favorecido,
ESSENCIALIDADE ao adquirir um produto, mercadoria
ou serviço considerado supérfluo,
É por meio do princípio da arcará com a mesma carga tributária
seletividade que se viabiliza, ainda existente para os economicamente
que minimamente, a observância mais favorecidos, porém, o ônus
da capacidade contributiva nos suportado em relação à sua receita
impostos indiretos. Tal princípio será proporcionalmente mais elevado.

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Nos impostos indiretos, a exonera- consumidor de produtos, mercadorias


ção da carga tributária sobre as neces- ou serviços, uma vez que ela é objetiva
sidades essenciais pode ser satisfeita e igual para todos.
pela isenção de produtos, mercadorias A essencialidade dos produtos,
e serviços indispensáveis ou pela gra- mercadorias e serviços foi um meio
duação da alíquota. É justamente nes- adotado pelo constituinte para a
se contexto que a essencialidade dos operacionalização da seletividade, diz
produtos, mercadorias e serviços se a Constituição Federal
realiza na tributação.
A observância da essencialidade Art. 153. Compete à União instituir
serve para preservação do mínimo impostos sobre:
existencial e, por conseguinte, atenção [...];
IV - produtos industrializados;
ao princípio da dignidade humana, na [...].
medida em que estabelece que quanto § 3º - O imposto previsto no inciso
mais essencial for o produto, merca- IV:
doria ou serviço para a coletividade, I - será seletivo, em função da
menor deverá ser a sua alíquota, bem essencialidade do produto (Brasil,
como quanto menos essencial, maior 2008).
deverá ser a alíquota aplicável.
A discriminação entre as coisas Desse modo, o legislador ordinário
essenciais e as supérfluas, ou ainda, ao instituir concretamente o Imposto
a graduação do que é mais ou menos sobre Produtos Industrializados – IPI
essencial, visa atender o dever de – deve considerar que haverá de ser
tributação diferenciada daquilo que é seletivo em função da essencialidade
necessário e o que não é. do produto.
Também pode resultar da seleti- Quanto ao imposto sobre ope-
vidade em função da essencialidade, rações relativas à circulação de
que determinado produto, mercadoria mercadorias e serviços – ICMS
ou serviço tributado de maneira mais (Imposto sobre Circulação de Merca-
favorável ou menos gravosa, seja con- dorias e Prestação de Serviços) – a
sumido preponderantemente por uma Constituição Federal estabelece:
classe de pessoas menos aquinhoadas
financeiramente, tendo em vista que Art. 155. Compete aos Estados e ao
o consumo de produtos supérfluos e, Distrito Federal instituir impostos
por via de consequência, maior tribu- sobre:
[...];
tados, depende apenas da vontade de
II - operações relativas à circulação
cada um. de mercadorias e sobre prestações de
Por isso a essencialidade não serviços de transporte interestadual
depende da capacidade contributiva do e intermunicipal e de comunicação,

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ainda que as operações e as prestações É sabido que o IPI e o ICMS


se iniciem no exterior; são impostos que recaem sobre a
[...].
produção e o consumo e, portanto,
§ 2.º O imposto previsto no inciso II
atenderá ao seguinte: comportam a transferência do ônus
[...]; financeiro, por isso a sua adequação
III - poderá ser seletivo, em função da à capacidade contributiva do consu-
essencialidade das mercadorias e dos
midor não é muito fácil, como nem
serviços (Brasil, 2008).
sempre será possível obter resultados
muito justos.
De acordo com o texto
constitucional quando o legislador De fato, os gastos realizados
ordinário instituir concretamente com consumo de bens e serviços
o ICMS deverá considerar que o não revelam as características de
imposto poderá ser seletivo, em função pessoalidade dos contribuintes,
da essencialidade das mercadorias e como ocorre nos impostos diretos
dos serviços. Importa registrar que onde melhor se verifica a capacidade
parte da doutrina tem entendido que a contributiva dos contribuintes, uma
expressão “poderá ser seletivo” para o vez que neles são consideradas as
ICMS equivale a um dever.2 particularidades deles.

2 Roque Antônio Carrazza, lembrando que o ICMS serve de “instrumento de


extrafiscalidade”, sustenta que a seletividade é obrigatória tanto no IPI como no
ICMS. Porquanto o termo “poderá”, constante do art. 155, § 2º, III da CF significa
“deverá”. Não se trata de “uma mera faculdade do legislador”, mas sim de uma norma
de “observância obrigatória”. A Constituição Federal, quando confere um poder ao ente
estatal, está lhe impondo um dever. Por isso o princípio da seletividade “pode e deve
ser” empregado “como instrumento de ordenação político-econômica, estimulando a
prática de operações ou prestações havidas por úteis e convenientes para o País”, bem
como “onerando outras que não atendam tão de perto ao interesse nacional”. Razão pela
qual é possível aplicar “em algumas operações com produtos supérfluos, a alíquota” de
25% “e, em outras, com produtos essenciais, as alíquotas baixam para 18%, 17% e, até
12% e 9%” (Carraza, 2006, p. 374-375). Hugo de Brito Machado Segundo, analisando
sob outro aspecto, observa que “a Constituição não asseverou que o imposto poderá
ser seletivo, e que essa seletividade poderá ser de acordo com a essencialidade das
mercadorias e serviço”. Se fosse esse o sentido do dispositivo constitucional, “tratar-se-
ia de norma tola, porquanto todo o imposto pode, em princípio, ser seletivo, de acordo
com qualquer critério, inclusive a essencialidade do bem tributado”. Na realidade, o
sentido da expressão quer dizer que o ICMS poderá ser seletivo. Se for seletivo, a
“seletividade deverá ocorrer de acordo com a essencialidade das mercadorias e dos
serviços” (Machado Segundo, 2000, p. 72).

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A realidade revela que o imposto social da pessoa humana com um


incidente sobre o consumo tem efeito mínimo de dignidade.
regressivo, isto é, quem possui menor É precisamente nesse contexto
poder aquisitivo, proporcionalmente que Henry Tilbery constata que o
à sua renda, termina por pagar mais sentido da essencialidade alcança
imposto do que aquele com maior aquelas necessidades que são indis-
poder aquisitivo. pensáveis por natureza, como também
Anote-se que a Constituição “aqueles bens que, conforme a opinião
Federal não revela quais produtos, estabelecida de decência, não deviam
mercadorias ou serviços devem ser faltar” aos mais humildes. Assim, “o
considerados essenciais. Todavia, a conceito da essencialidade vincula-
partir de uma interpretação sistemática se a um mínimo de vida não devendo
do texto constitucional, pode-se ninguém ficar abaixo de tal padrão”
afirmar ser essencial todo o produto, (Tilbery, 1974, p. 326).
mercadoria e serviço que atenda às Em vista disso, a essencialidade
necessidades indispensáveis, tais deve ser analisada à luz do princípio
como: saúde, alimentação, moradia, constitucional da dignidade humana,
vestuário, trabalho, cultura, lazer, classificando os bens e serviços numa
serviços de telecomunicação, energia escala que varia de indispensáveis a
elétrica etc. absolutamente supérfluos para uma
Por outro lado, é intuitivo que a existência digna.
Constituição Federal quando refere a Em consequência, ao aplicar a es-
essencialidade emprega um termo que sencialidade, parte-se daquilo que é
permite uma variada graduação, sem, essencial em função das necessidades
no entanto, delimitá-la. Desse modo, básicas do indivíduo, tais como saú-
diante da variedade de produtos e de, alimentação, vestuário, moradia,
serviços existentes, há aqueles que acrescentando, tudo aquilo que decor-
serão considerados mais ou menos re do direito de cada um à dignidade
essenciais à vida humana. humana. Em outras palavras, partin-
Num primeiro momento, o do-se daqueles produtos, mercadorias
conceito de essencialidade enseja o e serviços que compõem o mínimo
entendimento de que estaria restrito existencial, os excedentes serão con-
apenas àqueles bens e serviços de siderados menos essenciais ou supér-
primeira necessidade, ou seja, àqueles fluos e, por conseguinte, passíveis de
indispensáveis à sobrevivência bioló- maior tributação.
gica do indivíduo. Contudo, é preciso Assim, considerando que a essen-
ampliar tal conceito de modo que cialidade pode ser graduada, o ônus
se assegure a sobrevida biológica e tributário poderá não existir em sen-

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do o caso de tributação sobre bens e construção, instrumentos de trabalho


serviços absolutamente essenciais às também são básicos, bem como peças
necessidades primárias da população, básicas de vestuário, serviços de ener-
ou ser fixada em escala ascendente, gia elétrica, telefonia, produtos como
variando para mais na proporção da gás natural, petróleo e seus derivados,
menor utilidade social dos bens e ser- combustíveis, devem sofrer uma tri-
viços. Portanto, a alíquota varia em butação mais branda ou até mesmo
razão inversa da utilidade do bem. nenhuma, em razão de seu elevado
Estabelecer o que é mais ou menos nível de essencialidade.
essencial não é uma tarefa muito fácil. Impõe-se referir, ainda, que a
Porém, é possível determinar um essencialidade, além de se apresentar
critério consubstanciado num mínimo sob a perspectiva do indivíduo,
de produtos, mercadorias e serviços importando na exoneração da tri-
que atendam ao princípio da digni- butação incidente sobre o mínimo
dade humana. existencial, também se apresenta
Dessa perspectiva, evidencia-se a sob a perspectiva da coletividade,
relação existente entre a essencialida- que considerando as necessidades
de e o mínimo existencial, na medida coletivas, não tributa ou tributa re-
em que os produtos, mercadorias e ser- duzidamente os bens de consumo
viços essenciais são aqueles indispen- generalizado da população, como por
sáveis à vida. Portanto, a noção daqui- exemplo, serviços de energia elétrica,
lo que é essencial insere-se na ideia de de telecomunicação e de transporte.
mínimo existencial e, por conseguinte, À vista do que foi apresentado,
no contexto da dignidade humana, na percebe-se que a essencialidade con-
medida em que tal princípio abarca o siste em algo mais do que uma mera
direito de todos a um padrão de vida linha diretiva para a tributação dos
que assegure sua saúde, alimentação, impostos indiretos. Trata-se de um
trabalho, dentre outros direitos. princípio constitucional à tributação,
Contudo, não deve ser olvidado aplicado pela seletividade das alí-
que o conceito daquilo que é essencial quotas dos impostos incidentes sobre
é mutável na dimensão do tempo e o consumo.
do espaço, em face da cultura, dos Considerando que o princípio
hábitos da sociedade, dos avanços diz respeito a valores e fins, a
tecnológicos. De modo que aquilo que essencialidade pode ser entendida
hoje não é essencial à vida humana, como um princípio constitucional.
poderá ser amanhã. Ela é um princípio na medida em
Nesse contexto, atualmente, pro- que supõe a incorporação do valor
dutos como remédios, gêneros ali- justiça e atua como mecanismo de
mentícios, materiais escolares e de controle de tributação determinando

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um estado de coisas, a par de aplicação, ele tem por finalidade


apresentar um conteúdo muito vago limitar a discricionariedade legislativa,
e indeterminado e estabelecer um uma vez que o legislador, ao fazer a
critério valorativo a ser perquirido eleição de produto, mercadorias ou
sem expor a conduta adequada. serviços sobre os quais recairá o ônus
A realização do princípio se faz tributário e em que medida, deverá
mediante critérios de valoração da considerar a essencialidade dos bens
conjuntura econômica e social. Assim, para a vida digna dos indivíduos.
o princípio da essencialidade se efe-
tiva mediante ponderação axiológica.
Na aplicação do princípio da 4 CONCLUSÕES
essencialidade, não há limites
específicos, visto que inexistem À vista do exposto, podemos
critérios capazes de determinar aquilo assentar que a distinção entre prin-
que está ou não em conformidade com cípios e regras não é uma tarefa
o princípio. fácil. Todavia, pode-se considerar
Ademais, o termo “princípio” o princípio como aquela norma
denota a ideia de fonte ou origem de dotada de generalidade, enunciadora
uma ação. Nesse sentido, pode-se de valores ou de um mandamento
dizer que o princípio da essencialidade sistêmico. Já a regra jurídica é aquela
tem como fonte ou origem a dignidade norma em cujo conteúdo se identifica
humana. O princípio da essencialidade prescrições específicas e concretas.
seria uma forma de operacionalizar Um dos mais importantes
a igualdade tributária em atenção critérios de aferição da igualdade
ao princípio fundamental da digni- é a capacidade contributiva das
dade humana. pessoas, uma vez que por meio dessa
A essencialidade pode ser consi- é possível verificar que alguns podem
derada um princípio na medida em pagar tributos e outros podem pagar
que a sua exclusão do ordenamento menos ou até não pagar.
jurídico implicará violação do Diante da noção de capacidade
princípio fundamental da dignidade. contributiva, nos impostos indiretos,
Para melhor compreensão do ra- particularmente no IPI e no ICMS, o
ciocínio, se a essencialidade for esforço à sua materialização ocorre
retirada do texto constitucional, não através do princípio da seletividade.
há como ser observado o princípio Perseguindo uma capacidade
fundamental da dignidade humana na contributiva que corresponda à rea-
tributação do IPI e do ICMS. lidade e que não fique apenas no
Em que pese o princípio da plano teórico, o mínimo existencial
essencialidade não oferecer de- apresenta-se como um elemento para
marcações claras e exatas para sua identificar a adequação da tributação.

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Pois parte das receitas do contribuinte observada, prestigia o princípio da


se destina ao suprimento de suas dignidade da pessoa humana, contex-
necessidades básicas para garantir to no qual o mínimo existencial está
condições mínimas de existência inserido. A essencialidade pode ser
digna e de sua família, visto que o considerada um princípio constitucio-
direito ao mínimo existencial deriva nal à tributação, na medida em que a
do princípio fundamental da dignidade sua exclusão do ordenamento jurídico
da pessoa humana. implicará violação do princípio fun-
Aos impostos indiretos, o legisla- damental da dignidade humana.
dor deve graduar a incidência tribu- Dentre os modos possíveis
tária sobre mercadorias, produtos e de materialização do princípio da
serviços de acordo com sua essencia- essencialidade, no Direito Tributário
lidade, de modo que quanto maior a encontra-se a isenção e a seletividade
importância social do bem ou serviço de alíquotas.
consumido, menor será a carga tribu- Observa-se que o ICMS e o IPI
tária incidente. dispõem do princípio da seletividade
A essencialidade está relacionada como instrumento de realização
com os produtos necessários às con- do princípio da essencialidade do
dições mínimas de vida e, quando produto, mercadoria e serviço.

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