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Ao longo dos últimos duzentos anos, os estudiosos da

Bíblia pensaram que a Bíblia hebraica havia sido escri­


ta e editada nos períodos persa e helenístico [do sécu­
lo V ao século II a.C.]. Evidências arqueológicas recen­
tes e contribuições da antropologia linguística, todavia,
apontam para uma era anterior, a Idade do Ferro tardia
[séculos VIII a VI a.C.), como o período de formação
da redação da literatura bíblica. Como a Bíblia tornou-se
um liirro combina as descobertas arqueológicas recentes
no Oriente Médio com as informações selecionadas da
história da escrita para tratar da questão de como a
Bíblia foi redigida e como tornou-se a Escritura Sagrada.
Este livro, escrito tanto para leitores leigos como para
estudiosos, oferece uma rica visão sobre os motivos
pelos quais os textos adquiriram autoridade como
Escrituras e investiga por que o antigo Israel, de cultu­
ra oral, passou a escrever literatura. Ele descreve a
emergência de uma sociedade letrada no antigo Israel,
contestando a afirmação de que o letramento surgiu
primeiramente na Grécia durante o século V a.C.

WILLIAM M. SCHNIEDEWIND é professor de estudos bíblicos e lín­


guas semíticas e catedrático do Departamento de Línguas e
Culturas do Oriente Médio na Universidade da Califórnia, em
Los Angeles. Foi professor visitante na Universidade Hebraica
de Jerusalém e professor adjunto no Instituto AIbright de Pes­
quisas Arqueológicas. É autor de The Word o fG o d in Transition
e de Sodety and the Promise to David.

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WILLIAM M. SCHNIEDEWIND

como a
BÍBLIA
tornou-se um
LIVRO
A textualização do antigo Israel

TRADUÇÃO

Luciana Pudenzi

Edições Loyola
Título original:
H o w the B ib le B e c a m e a B oo k. T he Textuaíization o f A n d e n t Israel
© William M. Schniedewind 2004
Cambridge University Press
The Edinburg Building, Shaftesbury Road, Cambridge CB28RU, England
ISBN 978-0-521-53622-6

Preparação: Sandra Garcia Custódio


Capa: Mauro C. Naxara
Diagramação; Maurélio Barbosa
Revisão: Renato da Rocha

Edições Loyola Jesuítas


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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
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escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-03784-1
© ED IÇ Õ ES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2011
Sumário

Lista de f i a r a s ....... ............................................. 6


Prefácio .................... 7
Abreviações...................................................................... 11
1 Como a Bíblia tomou-se iim livro................................. 13
2 O poder numinoso da escrita....................................... 41
3 A escrita e o Estado .............................................................. 53
4 A escrita no antigo Israel......................................................... 71
5 Ezequias e o início da literatura bíblica....................... 93
6 Josias e a revolução textual............................................... 127
7 Como a Torá tomou-se um texto............................................... 161
8 A escrita no exílio....................................................................... 187
9 As Escrituras à sombra do Templo............................................. 221
10 Epílogo............................................................................. 259
Sugestões de leituras.................................................................... 283
índice de citações bíblicas ............................................................ 285
índice de nomes............................................................................ 291
índice de assuntos ........................................................................ 297
Lista de figuras

2.1 Texto de Execração egípcio............................................................ 45


2.2 Escrita especial do nome de Deus num pergaminho encontrado
entre os Manuscritos do Mar Morto.............................................. 50
3.1 O desenvolvimento do símbolo cuneiforme A N .............. 55
3.2 Primeira escrita alfabética conhecida em Wadi el-Hol, Egito........ 58
3.3 Inscrição em Tel Dan [“Casa de Davi”) ......................................... 63
3.4 Escriba real diante de Bar-Rakib em seu trono............................... 65
4.1 Antiga aldeia israelita em Bersabé.................. 75
4.2 O alfabeto hebraico de Izbet Sartah............................................... 76
4.3 O Calendário de Guézer................................................................ 85
5.1 O crescimento de Jerusalém durante a monarquia judia............... 98
5.2 Jarro de armazenamento real e sinete lemelek............................... 102
6.1 Uma reconstrução hipotética de um documento selado com
impressões de sinetes..................................................................... 138
6.2 Um recibo de pagamento em prata com dezessete assinaturas..... 140
6.3 O mais antigo texto bíblico: amuleto de prata II........................... 146
8.1 Tábua em escrita cuneiforme listando quotas para Joiaquin......... 204
8.2 A casa da família real judia na Babilônia....................................... 206
9.1 As dimensões de Jerusalém............................................... 229
9.2 Algumas diferenças entre a escrita hebraica antiga e a escrita
aramaica......................................... 236
Prefácio

Não há limite para a produção de livros.


(E clesiastes)

uvidas durante milênios de confecção de livros, essas palavras do pre­


gador no Eclesiastes soam verdadeiras ainda hoje. A tecnologia recente,
como a impressão por encomenda, os e-books, o e-mail e a onipresente in­
ternet, dissemina a palavra escrita com maior facilidade e rapidez do que era
possível em qualquer época passada. A despeito de ocasionais queixas por
parte de bibliófilos, os livros estão vivos, estão indo bem e multiplicam-se
rapidamente. Desse modo, a produção anual de títulos no Reino Unido teve
um crescimento de 72% na década de 1990, segundo a Associação Interna­
cional de Editores [IPA — International PubUsher Association], e a produ­
ção de livros na Argentina, no Brasil, no Canadá, na Alemanha, nos Estados
Unidos e em outros países também registrou incrementos significativos.
Mas, embora atualmente o número de hvros pareça não ter fim, eles têm
um início mais definido, como bem devia saber também o antigo pregador.
Suas palavras servem como um alerta geral a respeito da prática relativa­
mente recente da produção de livros. O versículo supracitado ataca toda
Como a Bíblia tomou-sc um li\ru

escrita que não as “palavras dos sábios”, que requer estudos intermináveis e,
por conseguinte, “fatiga o corpo”. Uma preocupação disseminada com essa
fadiga só faria sentido numa cultura letrada, ou, mais provavelmente, numa
sociedade envolvida na perigosa transição de uma cultura oral para uma cul­
tura letrada. Meu estudo se concentra nessa transição no antigo Israel, na
difusão do letramento entre as classes sociais da sociedade judia do século
VII. Ao fazê-lo, focaliza o início da produção de livros — a Bíblia hebraica.
O que se segue não é uma conclusão definitiva para as questões acerca de
como a Bíblia se tomou um livro. Contudo, ele oferece uma nova perspecti­
va sobre a Bíblia, examinando importantes períodos de sua textualização
— ou seja, de quando foi redigida —, juntamente com novas idéias sobre
o desenvolvimento da escrita e do letramento no antigo Israel.
A maneira como a Bíblia surge como texto sagrado em tal contexto tem
profundas implicações para muitas tradições religiosas. Ela também tem im­
plicações revolucionárias para o estudo especializado da literatura bíblica.
Mas este livro foi escrito para um público mais amplo que os estudiosos da
Bíblia. Com este propósito, meu envolvimento técnico com o estudo espe­
cializado da Bíblia é, na maior parte das vezes, relegado às notas. Tentei ter
o cuidado, por um lado, de não permitir que meu embate com esse estudo
especializado se impusesse demasiadamente sobre o leitor geral, e, por outro,
procurei oferecer notas suficientes para representar parte da grande varie­
dade de tais estudos bíblicos e dialogar com eles. Aponto ao leitor geral alguns
tópicos do estudo bíblico, porém sem sobrecarregar o livro com debates
arcanos. Admito ter simplificado questões complexas, como o desenvolvi­
mento e a natureza do letramento. Tampouco tratei de todas as intrincadas
questões da crítica bíblica de maneira completa. Como critério, sacrifiquei
os estudiosos especializados no intuito de atingir um público mais amplo.
Espero que meus colegas possam me perdoar, uma vez que a situação é,
usuahnente, a inversa. Não obstante, espero que, esquivando-me dos detalhes
de algumas das questões especiahzadas, eu possa indicar uma abordagem
geral à hteratura bíblica que seja útil também aos especiahstas.
Este Uvro deve muito a muitas pessoas. Nas palavras do sábio bíbUco,
não há “nada novo sob o sol”, e, em certo sentido, pode-se dizer que eu não
redigi este fivro, mas tomei-o emprestado de meus professores, amigos e
colegas. O que tomei emprestado devolvo-lhes na forma deste livro. Espero
estar restituindo em condições tão boas quanto aquelas em que tomei em­
prestado. Quero agradecer especialmente a Ben Sommer, que leu o manus-
PretdLtu

crito com tanta atenção e aperfeiçoou-o de tantas maneiras. (Minhas des­


culpas, Ben, por ser demasiadamente obtuso para considerar profundamente
todas as suas sugestões.] Embora agora eu já esteja há muito afastado da
Brandeis University, a dívida que tenho para com os professores que tive ah
— especialmente Marc Brettler, Michael Fishbane e Stephen Geller — per­
dura neste hvro. Muitos outros leram e discutiram comigo partes do manus­
crito, incluindo Carol Bakhos, Scott Bartchy,Tamara Eskenazi, Adriane Leveen,
Bemie Levinson, Antonio Loprieno, John Monson, Michael Rosenbaum,
Joachim Schaper,Tammi Schneider, Daniel Smifh-Christopher, Marv Sweeney
e Ed Wright. O capítulo 7, sobre a Torá, foi primeiramente apresentado a
meus amigos e colegas do Centro de Estudos Judaicos da Universidade da
Califórnia (UCLA), e sou profundamente grato por seus comentários, suas
críticas e seu encorajamento. Todos esses indivíduos demonstraram verda­
deira amizade, tendo paciência comigo enquanto eu estava absorto neste
projeto, e contribuíram com ele de modos que a palavra escrita não pode
expressar adequadamente. Gostaria de agradecer meus alunos, que supor­
taram pacientemente minhas meditações e muito contribuíram para a fer­
mentação deste projeto nas aulas e seminários. Estendo meus agradecimen­
tos a Bobby Duke e Moise Isaac, que trabaUiaram como meus assistentes
de pesquisa durante a redação deste hvro. Por fim, agradeço à'Universidade
da Califórnia, que me ofereceu um local tão estimulante no qual empreender
tais buscas intelectuais. Além disso, o Senado Acadêmico da rmiversidade
concedeu-me subvenções de pesquisa, e a decana das humanidades, Pauline
Yu, também apoiou minha pesquisa. Meu editor na Cambridge University
Press, Andy Beck, foi um dos maiores trunfos deste hvro. Quaisquer defi­
ciências que persistam em meus escritos não podem se dever às vozes vivas
que me auxiharam ao longo do percrxrso.
A fim de tomar este livro acessível aos leitores em geral, adotei um
sistema muito simplificado para transcrever as palavras hebraicas. Cito o
texto e a versificação da Bíbfia inglesa (usualmente, sigo a New Revised
Standard Version ou a edição da New Jeunsh Publication Society, mas às
vezes adoto minha própria tradução e acrescento itálicos para destacar
meu argumento).
Embora seja costume agradecer à famífia por ultimo, certamente não
sou menos grato a minha paciente esposa, Jeanne, e a minhas duas encanta­
doras filhas, Tori e Mikaela. Elas põem tudo em perspectiva e me ajudam
a perceber que, de fato, a voz viva é melhor que as palavras escritas.
Ab reviacoes

AB Anchor Bible
ABD Anchor Bible Dictionary
AN ET Ancient N ear Eastem Texts, 3‘‘ ed., ed. J. Pritchard. Princeton,
Princeton University Press, 1969.
AO D erAlte Orient
BA Biblical Archaeologist
BAR Biblical Archaeologist Review
BASOR Bulletin of the American Schoools of Orient Research
BBR Bulletin of Biblical Research
BethM Beth M ikra [hebraico]
Bib Biblica
B JS Brown Judaic Studies
BN Biblische Notizen
BWANT Beitrãge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament
BZAW Beihefte zur Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CD Genizá do Cairo, Documento de Damasco
CTM Concordia Theological Monthly
D JD Discoveries in the Judaean Desert
D SD Dead Sea Discoveries
EI Eretz Israel
EJL Early Judaism and Its Literature
ESI Excavations and Surveys in Israel
FOTL Forms of Old Testament Literature
HSM Harvard Semitic Monographs
H SS Harvard Semitic Studies

11
Como a Biblia tomou-sc um livro

HTR H aw ard Theological Review


HUCA Hebrew Union College Annucd
IC C International Criticai Commentary
lE J Israel Exploration Journal
JAO S Journal of the American Oriental Society
JBL Journal ofBíbücal Literature
JESH O Journal of the Economic and Social History of the Orient
JJS Journal of Jewish Síudies
JN E S Journal ofN ear Eastem Studies
JNW SL Journal of the Northwest Semitic Languages
JQ R Jewish Quarterly Review
JS J Journal for the Study of Judaism
JSN TSS Journal for the Study of the New Testament Supplement Series
JSO T Journal for the Study of the Old Testament
JSO TSS Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series
JSP Journal for the Study of Pseudepigrapha
JSPSS Journal for the Study of Pseudepigrapha Supplement Series
JSS Journal of Semitic Studies
JT S Journal of Theological Studies
N CBC New Century Bible Commentary
NEAEHL New Encyclopedia of Archaeological Excavations in the Holy Land,
ed. E. Stem. Jerusalem/New York, Israel Exploration Sodety/C arta/
Simon Sô Schuster, 1993.
OBO Orbis biblicus et orientalis
OTL Old Testament Library
OTS Oudtestamentische Studiên
PEQ Palestine Exploration Quarterly
RB Reime Biblique
RQ Revue de Ç^m ran
RSR Reli^ous Studies Review
SBL Society of Biblical Literature
SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series
SBLM S Society of Biblical Literature Monograph Series
SBTSS Studies of Biblical Theology Supplement Series
ScrHier Scripta Hierosolymitana
SHANE Studies in the History of the Ancient N ear East
SJO T Scandinavian Journal for the Old Testament
TA Tel Aviv
TynBul Tyndale BuUetin
UF Ugarit Forschingen
VT Vetus Testamentum
VTSup Supplements to Vetus Testamentum
W TJ Westminster Theolo^cal Journal
ZA Zeitschrift für Assyriolo^e
ZAH Zeitschrift für Althebraistik
ZAW Zeitschrift für Alttestamentlischen Wissenschaft

12
Com o a

Bí )!ia
tornou-se um livro

‘ uando a Bíblia foi escrita? Por que foi escrita? Estas questões atin­
gem o próprio âmago do significado da literatura bíblica. Elas também
indicam uma profunda transição na cultura humana. A Bíblia é um livro.
Esta parece ser uma afirmação óbvia, mas é também um desenvolvimen­
to profundo na religião. Podemos pressupor que os livros são coisas tri­
viais, mas para os antigos não era assim'. O fato de que um texto sagrado
escrito tenha surgido numa sociedade pastoril, agrícola e de tradição oral
é um divisor de águas na civilização ocidental. Nas páginas seguintes,
investigaremos a passagem da oralidade à textuaUdade, de uma sociedade
pré-letrada a uma sociedade letrada. Ao longo desse trajeto, será preciso
delinear a história social do antigo Israel e do antigo judaísmo, bem como
a formação da Bíblia como literatura escrita. A Bíblia em si mesma será
uma testemunha dessa mudança épica na consciência humana, a mudan­
ça de um mundo oral para um mundo textual. Nessa mudança, é central
o fato de que o texto suplante a autoridade do professor.

1. W. Graham salienta a disjunção entre a moderna cultura do livro e o mundo pré


moderno em sua importante obra Beyond the Written World: Oral Aspects of Scripture in
the History of Religion, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, 11-66.

13
Como a Bíblia tornou-sc um livro

Como a Bíblia se tomou um Hvro? Este livro — o livro que você tem
nas mãos — oferece uma exposição histórica da escrita no antigo Israel e do
papel da escrita na formação da Bíblia como livro. Para responder a essa in­
dagação mais ampla, é necessário examinar diversas questões correlacionadas:
qual foi a função da escrita na antiga sociedade israelita em diferentes períodos
históricos? Como a crescente importância da escrita no antigo Israel se refle­
tiu na formação da literatura bíblica? De que maneira a Bíbha vê sua própria
textualidade? Qual é a relação entre a tradição oral e os textos? Quando e
como a palavra escrita suplanta a autoridade da tradição oral e a voz viva do
professor? Quando começarmos a compreender as respostas a estas ques­
tões, começaremos a compreender como a Bíblia tomou-se um livro.
Estas indagações podem ser relacionadas com três questões básicas. A
primeira é uma crítica da questão de quem escreveu a Bíblia. Este livro de­
fende que a questão “quando a Bíbha foi redigida?” é mais apropriada que
um interesse anacrônico nos autores da Bíblia. Essa questão não somente
oferecerá um esclarecimento sobre a hteratura bíbhca, como também abrirá
uma janela para a conturbada transição do antigo Israel para uma cultura
textual. Isso leva a uma segunda questão: como a Bíbha é escrita? O antigo
Israel, antes do século VII a.C , era amplamente não letrado. De que maneira
uma cultura oral como a do antigo Israel passa a expressar sua identidade
por meio de um texto escrito? De que maneira a orahdade básica do antigo
Israel moldou a Bíbha como texto escrito? Como a autoridade da palavra
escrita veio a suplantar a voz viva do professor e da comunidade? Isso nos
leva a uma última questão: quais foram as circunstâncias históricas especí­
ficas nas quais a Bíbha se tornou um texto e, depois, as Escrituras?
O papel da escrita no desenvolvimento da civihzação ocidental não é
um assunto novo. Há algumas décadas, Jack Goody, um professor de antro­
pologia social da Universidade de Cambridge, escreveu o primeiro de vários
artigos e hvros que tratavam das “Consequências do letramento”. Essa pes­
quisa, agora sintetizada em seu hvro recente The Power ofthe Written Tradition
[O poder da tradição escrita] (2000), influenciou toda uma geração de estu­
diosos. A obra de Goody foi complementada por Marshall McLuhan, um
professor de inglês da Universidade de Toronto, que argumentou, em seu
hvro A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico (1962), que a
inovação tecnológica da prensa tipográfica modelou profundamente a hu­
manidade moderna, ocasionando a transição de uma cultura auditiva-tátil
para a era visualmente dominante da imprensa. Tais estudos geraram obras

14
Como a Bíblia tornou-se um li\ ro

especializadas em mtdtas áreas das htimanidades e das ciências sociais. Por


exemplo, o linguista Walter Ong escreveu Orcdiãade e cultura escrita: a tecno-
logização da palavra (1982], tnna influente obra que delineia o impacto dos
desenvolvimentos da escrita sobre a consciência humana. A importância do
letramento emergente e do alfabeto na Grécia antiga no século V a.C. foi
destacada por Eric Havelock, um professor de estudos clássicos em Yale, em
seu livro Prefácio a Platão (1963). Havelock argumentou que houve uma
revolução de letramento na Grécia antiga que foi inspirada, ao menos em
parte, pela invenção grega de seu alfabeto. A pesqtoisa de Havelock, que está
sintetizada, para o leitor em geral, em The Muse Leams to Write: Reflections
on Orality and Literacy from Antiquity to the Present [A musa aprende a
escrever: reflexões sobre a oralidade e o letramento da antiguidade ao presente]
(1986), originou vigorosos debates no campo dos estudos clássicos. Embora
Havelock tenha sobrevalorizado a importância das inovações gregas no alfa­
beto e o alcance do impacto do letramento na cultura grega, ele estava certo
em apontar o papel do alfabeto e da difusão do letramento como causadores
de mudanças fundamentais na c^lltura grega. Esses dois fatores tiveram um
papel importante também no antigo Israel, surgindo ah alguns séculos antes.
A importância da escrita na história humana é muito bem exposta numa
pesquisa reaUzada pelo professor Henri-Jean Martin, da École des Chartes,
na França, intitulada Histoire etpouvoirs de Vécrit [História e poderes do escrito]
(1994). Todas essas obras (e muitas outras) atestam o poder transformador
da palavra escrita na sociedade humana.
O que argumentarei aqui é que xmi dos momentos mais centrais da
história da palavra escrita ocorreu no antigo Israel quando a palavra escrita
deixou de estar restrita aos escribas do templo ou do palácio e difundiu-se
mais amplamente na sociedade. A escrita tornou-se parte do tecido da vida
cotidiana. E, o que é mais importante, os textos escritos, pela primeira vez
na história humana, principiaram a ter autoridade rehgiosa ou ctátural. É
a essa transferência da autoridade do oral para o escrito que me refiro no
subtítulo deste livro: “a textualização do antigo Israel”.

O problema de quem redigiu a Bíblia

Tendemos a ler a Bíblia através das lentes da modernidade. Isso equi­


vale a dizer que lemos a Bíblia como um livro. Não apenas tendemos a

15
Como a Bíblia tornou-so um livro

pensar na Bíblia como um único livro, mas também lemos a Bíblia como
se ela fosse oriunda de um mundo repleto de textos, Hvros e autores.
Lemos a Bíblia a partir de nossa perspectiva de um mundo altamente
letrado. Todavia, a Bíblia foi escrita antes que houvesse livros. Pensemos
nisso de outra maneira. O “livro” moderno (no sentido estrito do termo,
como as páginas encadernadas entre duas capas) segue a invenção do
códice, que tinha folhas escritas em ambos os lados. A substituição do
tradicional pergaminho pelo códice foi um grande desenvolvimento tecno­
lógico na história da escrita. Os códices apareceram no século I d.C. e
tomaram-se comuns por volta do século IV d.C.^. O códice podia conter
uma série de textos muito maior do que se podería incluir num único
pergaminho, e isso tornou possível “a Bíblia” como um hvro — a Bíblia
como a concebemos hoje. Ao reunir uma coleção de pergaminhos, o códice
também definiu um conjunto e uma ordem dos livros, e tom ou possível
um cânone mais definido. Com o códice, a Bíbha podia ser um hvro^.
Mas a Bíblia foi redigida antes que existissem tais códices. É útil re­
cordar que a Bíblia em si é de fato uma compilação de hvros ou perga­
minhos. A palavra “bíblia” deríva-se do termo grego “biblía”, que pode ser
traduzido como “livros” ou “pergaminhos”. Consequentemente, quando
perguntamos como a Bíbha'se tornou um livro, estamos perguntando, em
parte, sobre uma coleção de hvros que compõem nossa Bíblia. A palavra
hebraica “sefer^’, usualmente traduzida por “hvro”, significa hteralmente “texto,
carta ou pergaminho”. Na hteratura Bíbha antiga, “sefer" podia se referir a
qualquer texto escrito, embora posteriormente, quando a escrita se tomou
mais comum, um vocabulário mais desenvolvido tenha passado a distinguir
diferentes tipos de documentos escritos'*. Um leitor pode observar que o
título Como a Bíblia tomou-se um livro não se refere a um “hvro” no sentido

2. Ver C. H. Roberts e T. C. Skeat, The Birth of the Codex, Londres, Oxford University
Press, para a Britísh Academy, 1983.
3. Sobre o impacto do códice, ver H.-J. Martin, The History and Power of Writing
(trad. Lydia G. Cochrane), Chicago, University of Chicago Press, 1994, 59-60.
4. A. Hurvitz, The Origins and Development of the Expression "IQD A Study
in the History of Writing-Related Terminology in Bibhcal Times, in Texts, Temples, and
Traditions: A Tribute to Menahem Haran (ed. M. V. Fox et a l), Winona Lake, IN, Eisen-
brauns, 1996, 37*-46* [hebraico].

16
Como a Bíblia tornou-so um livro

em que se compreende isso — ou seja, como um códice. Isso é verdade,


mas, como o leitor descobrirá em meu segundo capítulo, o poder quase
mágico que muitos ainda atribuem aos livros hoje não está dissociado da
antiga concepção israelita dos efeitos numinosos da palavra escrita. Escolhi
este título porque queria preservar, para os leitores modernos, o sentimen­
to de assombro e reverência que essa transformação do oral em textual
podería gerar. Os estudiosos da Bíblia, que invariavelmente traduzem a
palavra hebraica "se/er” por “livro”, reconhecem o alcance semântico mui­
to mais amplo desta palavra em relação a “códice”. É nesse sentido mais
amplo de “livro” como a palavra escrita e como uma fonte de autoridade
cultural que falo sobre Como a Bíblia tomou-se um livro.
A questão sobre quem escreveu a Bíblia é fascinante, ainda que de valor
discutível. A capacidade que tem de captar nossa atenção é ressaltada por
Richard EUiot Friedman, em seu best-seUer intitulado Who Wrote the Biblel
[Quem escreveu a Bíblia?] Essa popular e lúcida exposição da crítica bíblica
efetivamente fez muito mais que responder à simples questão de quem redi­
giu a Bíbha, mas a popularidade da obra sem dúvida deve muito ao fato de
estar apoiada nesta simples questão e nas simples respostas que podem ser
dadas a ela. Assim, temos, por exemplo: Jeremias é o deuteronomista (isto é,
ele “escreveu” o Deuteronômio]; ou: quem escreveu o documento sacerdotal
foi um sacerdote aaronita (por exemplo, o Levítico)^, Friedman sugeriu que a
literatura bíbhca muitas vezes não pode ser compreendida sem que se saiba
algo sobre seus autores, mas então ele oferece o exemplo: “O autor de uma
dada história bíblica viveu no século VII ou V a.C.?”®A real importância dessa
questão não é quem é o autor, mas, antes, quando o texto foi escrito. Friedman
efetivamente fornece esclarecimento sobre a Hteratura bíbhca por meio de
sua engenhosa contextuahzação. Em certos aspectos, é lamentável que o Uvro
se reduza à simples questão de quem escreveu a Bíbha. Contudo, é exata­
mente essa questão que capta a imaginação moderna.
Uma questão interessante apresentada nos círculos hterários é se o
autor faz diferença para o significado da hteratura. Num hvro imensamente
influente chamado Is There a Text in This Class? [H á um texto nesta classe?],
Stanley Fish argumentou que a comunidade interpretativa era, em última

5. R. E. Friedman, ]Vho Wrote the Bible?, San Francisco, Harper & Row, 1987,146,188.
6. Ibid., 16.

17
Como a Bíblia tornou-se um livro

análise, mais importante que o autor, porque o leitor — para desapontamen­


to de alguns autores — é quem define, em última análise, o significado
de tim texto^. O problema é radical no caso da literatura bíblica. A Bíblia é,
na realidade, um conjunto de livros e não o produto de um autor individual.
Além disso, muitas vezes é dificd (se não impossível) determinar o que um
autor hipotético pretendia dizer no caso de um texto antigo como a Bíblia.
E mais fácil (e talvez mais importante) compreender o que o texto signifi­
cava para seus leitores antigos, o que não necessariamente se assemelha à
intenção do autor. Por exemplo, o que a Constituição dos Estados Unidos
significa é usualmente mais um reflexo de seus leitores que de seus autores.
Consequentemente, o significado da Constituição permanece em mudança
juntamente com as gerações de leitores. Embora a intenção dos foij adores
certamente seja importante, de um ponto de vista prático foi o momento
histórico no qual a sociedade leu a Constituição que moldou a história de
sua interpretação. Da mesma maneira, o significado da Bíblia refletiu mais seus
leitores que seus autores. Mais que isso, o papel da comunidade na leitura
é até justificado, pois a Constituição (assim como a Bíblia) é o produto e a
propriedade da comunidade, mais que de um único indivíduo.
Quando um texto é central para uma pessoa ou uma nação, como a
Declaração de Independência ou a Constituição, a história de sua interpre­
tação pode servir de janela para a história daquele povo. Uma analogia social
da história norte-americana pode ilustrar isso. A decisão da Suprema Corte no
caso Brown vs. Board of Education [Conselho Educacional\ (1954) reverteu a
autorização de estabelecimentos de ensino “separados, mas iguais” (Plessy vs.
Ferguson, 1896) para diferentes raças, considerando-os uma violação da Quarta
Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que determina que todos os
cidadãos devem receber “igual proteção das leis”. Isso correspondia mais a
um panorama social em modificação nos Estados Unidos do que à intenção
dos autores®. As diferentes interpretações da Constituição em 1896 e em

7. S. Fish, Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretative Cominunities,


Cambridge, MA, Harvard University Press, 1980.Ver, de maneira mais geral, S. Suleiman e I.
Crosman (eds), The Reader in the Text: Essays on Audience and Interpretation, Princeton,
Princeton University Press, 1980.
8. Há um interessante livro sobre a evolução da interpretação da Constituição dos
Estados Unidos e seu lugar na identidade nacional, de autoria de Richard B. Bemstein,

18
Como a Bihlia tornou-se um livro

1954 refletiram a mudança no contexto social dos interpretantes. O texto


não havia mudado, mas os leitores e seu contexto social sim. Similarmente,
o significado da Bíblia estará inserido na história das pessoas que a escreve­
ram, leram, transmitiram, reescreveram e leram novamente. Ele está intima­
mente ligado ao momento em que as tradições foram coligidas, redigidas,
editadas, reescritas e por fim reunidas no livro que chamamos de Bíblia.
Num livro precedente, tomei um exemplo, a Promessa feita a Davi em
2 Samuel 7, e mostrei como funcionava como um texto constitucional
no antigo IsraeP. Esse texto promete ao rei Davi e a seus filhos que eles
reinarão para sempre no trono de Israel. Eu ilustrei de que modo a inter­
pretação desse texto, ao longo de um milênio, esteve intimamente associa­
da ao contexto do povo judeu e aos acontecimentos sociais, rehgiosos e
políticos. O texto teve suas origens no século X a.C., durante a transição
dos pastores seminômades para um Estado urbano. A Promessa feita a
Davi serviu de ideologia comum que dava sanção divina à política de um
novo Estado monárquico. Mais tarde, sob as mudanças ocasionadas pela
emergência do Império Assírio no século VIII a.C , a Promessa a Davi daria
origem a uma retórica religiosa irreafista que se iludia ao pensar que Deus
“havia prometido para sempre uma lâmpada para Davi” [IR s 11,36; 15,4;
2Rs 8,19). Nas reformas refigiosas do século VII a.C , a Promessa era
aplicada tanto ao rei como ao Templo, que se supunha que perduraria
para sempre como a morada de Deus na terra. O exílio na Babilônia no
século VI a.C conduziu a Promessa a uma crise. A Promessa havia falhado;
os filhos de Davi não estavam mais no trono, e o Templo havia sido destruí­
do. Reínterpretando a Promessa, novos leitores conseguiram reposicionar
o Deus de Israel como o Deus de toda a terra e aplicar a Promessa até
aos reinos estrangeiros [não procedentes da linhagem de Davi). A conexão
entre o cenário social dos leitores e a interpretação foi especialmente
clara nas leituras da Promessa a Davi feitas por diferentes comunidades
judaicas no período tardio do Segundo Templo. A primeira Cristandade,
evidentemente, leu na Promessa uma realização final na pessoa de Jesus

Amending America: If We Love the Constitution So Much, Why Do We Keep Trying to


Change It?, Nova York, Times Books, 1993.
9. Ver livro de minha autoria: W. M. Schniedewind, Society and the Promise to David
A Reception History of 2 Samuel 7:1-17, Nova York, Oxford University Press, 1999.

19
Como a Bíblia tornou-se um livro

de Nazaré. A interpretação da Promessa a Davi começou com a própria


Biblia, mas prosseguiria depois que a Bíblia se tornou as Escrituras — ou
seja, depois que se tom ou um documento sagrado.
A questão sobre quem escreveu a Bíblia é também equivocada porque
enfatiza a individualidade do autor. A ênfase na expressão individual não é
um valor cultural universal, ainda que seja um deus da cultura norte-ameri­
cana moderna. Em algumas culturas, o gmpo tem precedência sobre o indi­
víduo. Na literatura folclórica, por exemplo, a literatura pertence ao grupo
que partilha a tradição. O significado do texto não está vinculado àquele que
narra o conto. O conceito da autoria comunitária reflete-se também na
transmissão de textos da tradição oral, como o Talmude em determinadas
comunidades judaicas'°. O antigo Israel e sua literatura certamente refletem
essa ênfase no gmpo em vez de no indivíduo. Assim, por exemplo, quando
lemos uma narrativa como a do pecado de Acã, relatada em Josué 7, nossa
sensibilidade moderna pode se chocar com o fato de que todo Israel é pu­
nido pelo ato individual de Acã de roubar o espólio dedicado a Deus. Deus
diz: “Israel [não Acã] pecou” (Js 7,11-12). Além disso, não só Acã é apedre­
jado por seu pecado, mas também seus filhos e filhas e “toda a sua tenda”
(como a Bíblia sugere em Josué 7,24). Esse é um sistema cultural radicalmen­
te diferente de nossas culturas ocidentais. O indivíduo está submerso no
gmpo. De modo geral, a literatura de Israel não é meramente a expressão
de um indivíduo, é também uma tradição coletiva.

A autoridade do autor?

Por que estamos interessados em saber quem escreveu a Bíblia? Esta


questão não ganhou importância senão após a ascensão da civilização
ocidental no séctolo IV a.C. — bem depois que a maioria dos livros da
BíbUa havia sido escrita. Em contraste com isso, a importância da autoria
era um conceito amplamente desconhecido no mundo semítico antigo’ h

10. Ver Y. Elman e I. Gershoni [eds.}, TransmittingJuAsh traditions: Orality, Textuality,


and Cultural Diffusion, New Haven, Yale University Press, 2000,16-18.
11. Por exemplo, P. Machinist, On Self-Consciousness in Mesopotamia, in The Origfns
and Diversity ofAxial Age Civilizations (ed. S. N. Eisenstadt), Nova York, State University
of New York Press, 1986,192-195.

20
Como a Biblia lornou-se um livm

A famosa Epopéia de Gilgamesh, da Mesopotâmia, o mito babilônico da


criação conhecido como Enuma Elish, a narrativa egípcia O marinheiro
naufragado e o relato literário épico cananeu sobre a batalha dos deuses
B aal e Mot não têm autores. Eles têm escribas que os transmitiram. Os
escribas eram, antes de tudo, administradores ou burocratas; não eram
autores. O idioma hebraico clássico sequer possui uma palavra que signi­
fique “autor”. O termo de significado mais próximo seria sofer, “escriba”,
que era um transmissor da tradição e do texto, e não um autor. A autoria
é um conceito que se deriva de uma cultura predominantemente escrita,
enquanto a sociedade israelita era em ampla medida uma cultura oral. As
tradições e as histórias eram transmitidas oralmente de uma geração à outra.
Elas extraíam sua autoridade da comunidade que transmitia a tradição, e não
de um autor que redigiu um texto. Tais histórias e tradições eram as coisas
que os pais e as mães eram obrigados a ensinar a seus filhos, como determi­
na o Deuteronômio 6,6-7: “As palavras dos mandamentos que hoje te dou
estarão presentes no teu coração; tu os repetirás a teus filhos; tu lhes fa­
larás quando estiveres em casa e quando andares pela estrada”.
A queda do império persa sob o domínio de Alexandre Magno intro­
duziu profundas mudanças no Oriente Médio. A era do helenismo — ou
sqa, a difusão da língua, da cultura e dos valores gregos — trouxe consigo
o conceito de autoria. A autoridade de um texto passou a ser associada ao
seu autor. A tradição judaica naturalmente sentiu-se compeUda a encontrar
autores para sua hteratura nessa época, embora houvesse poucas evidências
explícitas acerca da autoria da Bíbha. O mais antigo texto judeu que identi­
fica seu autor é o Sirácida (de Ben Sirac), datado do início do século II a.C.
Em alguns lugares, a Bíblia indiretamente contradiria a posterior atribuição
da autoria. Isso fica claro, por exemplo, no hvro do Deuteronômio, que se
apresenta como xnn relato em terceira pessoa de um discurso de Moisés e não
como algo que Moisés escreveu: “Eis as palavras que Moisés diriffu a todo
Israel” (Dt 1,1). No hvro do Êxodo, no Levítico e nos Números, Moisés é
um personagem, não um autor. O Gênesis não menciona Moisés em ne­
nhum ponto. A despeito disso, o Deuteronômio, juntamente com os outros
quatro hvros da Torá, tem sido usualmente atribuído à pena de Moisés, em
vez de ser entendido como tradições que foram transmitidas desde Moisés
ou, de modo mais geral, como tradições do povo israehta.
Uma tentativa muito notável de tratar da autoridade da Torá encon­
tra-se entre os Manuscritos do Mar Morto, que foram descobertos em 1947.

21
Como a Bíblia tornou-se um li

O Pergaminho do Templo, um dos mais longos e completos pergarninhos


pertencentes a uma seita essênia de judeus que viviam às margens do
Mar Morto, reescreve aTorá e, particularmente, o Livro do Deuteronômio.
Embora faltem as primeiras colunas do pergaminho, e, por conseguinte,
seja difícil dizer precisamente como ele começa, ele trata fundamental­
mente do problema da autoria e da autoridade, trocando a voz de Moisés
pela de Deus. O pergaminho troca a voz em terceira pessoa de Moisés para
a voz em terceira pessoa de Deus. A mudança pode ser vista ao longo de
todo o pergaminho, mas um único exemplo bastará:

Deuteronômio 17.14: Quando tiveres entrado na terra que te dá o YHW H’^,


teu Deus, tomado posse dela e a habitares, e quando então disseres; "Desejo
constituir um rei à minha frente, como todas as nações ao redor”, quem cons­
tituíres à tua frente deverá ser um rei escolhido por YHWH, teu Deus. É
dentre os terxs irmãos que tomarás um rei para constituí-lo à tua frente.

Pergaminho do Templo (IIQ T ) 56.12: Quando tiveres entrado na terra que


eu te dou, tomado posse dela e a habitares, e quando então disseres: “Desejo
constituir um rei à minha frente, como todas as nações ao redor”, quem cons­
tituíres à tua frente deverá ser um rei que eu escolherei. É dentre os teus
irmãos que tomarás um rei para constituí-lo à tua frente.

A modificação da voz efetua uma espantosa asserção de autoridade.


Deus é o autor do Pergaminho do Templo. A questão da autoridade de um
texto passa para o primeiro plano nessa surpreendente transformação do
Deuteronômio. Certamente a afirmação de que Deus foi o verdadeiro
autor torna-se uma visão cada vez mais prevalecente ao longo da história
entre certos grupos religiosos. Aqui, no entanto, essa afirmação da autori­
dade do texto está embutida nele próprio. Ele cumpre a necessidade de
que esse novo e importante artefato cultural — o texto escrito — arrogue-se
o papel de portador da ortodoxia.
A era helenística produziu uma miríade de obras literárias que alega­
vam remontar à “era de ouro” do antigo Israel. Essas obras, conhecidas como
pseudoepígrafes, incluíam livros como o livro de Enoque, o Apocalipse de

12. YHWH é o nome pessoal do Deus israelita, cuja vocalização não é inteirament
determinada e que não é pronunciado por judeus religiosos em reverência a Deus.

22
Como a Biblia tornoii-se

Moisés e a Vida de Adão e Eva. Elas com frequência abordaram a questão


da autoridade e da autoria de maneira surpreendentemente direta. O Livro
dos Jubileus, por exemplo, começa, logo em seu primeiro versiculo, com
a entrega de “duas tábuas de pedra da lei e do mandamento que eu [isto é,
Deus] inscrevi”. O Livro dos Jubileus aborda ainda a necessidade de um
texto escrito, em seu quinto versiculo, no qual Deus ordena a Moisés:
“Inclina teu coração a todas as palavras que eu te disser neste monte, e
escreve-as num livro”. Mais tarde, um anjo é empregado para auxiliar
Moisés na redação. Do início ao fim, o Livro dos Jubileus tem a preocu­
pação com sua própria textualidade e sua atribuição à figura de Moisés.
O termo usado para essas obras, “pseudoepígrafes”, deriva-se do grego pseu-
dónymos, que significa “sob um nome falso”. Tais obras procuravam derivar
autoridade por meio da atribuição a figuras da antiguidade clássica; mais
que isso, havia nelas a consciência de todo o processo de redação. No
século III a.C., a pseudoepígrafe era uma norma para a escrita na literatura
religiosa judaica. Enquanto algumas obras literárias eram anônimas, mui­
tas outras eram pseudônimas ou incorretamente atribuídas a alguém.
A Bíblia, em contraposição, mostra um perturbador desinteresse pela
questão de quem a redigiu. Esse desinteresse era perturbador para leitores
judeus que viviam numa sociedade helenística em que a autoridade da
literatura estava estreitamente vinculada ao seu autor. Continua a ser per­
turbador para muitos leitores piedosos modernos que herdaram a ênfase
helenística que associa a autoridade com o autor. Para esses leitores antigos
e modernos, grande parte da força sagrada do Livro do Deuteronômio
deriva-se da pressuposição de que Moisés o tenha redigido. Ou a autoridade
do Livro de Isaías depende do fato de que o próprio profeta tenha dado a
forma final do texto de todo o livro canônico sob seu nome.
Surgiram dogmas relativos à autoria de toda a literatura bíblica. Assu­
miu-se que profetas como Samuel, Isaías e Jeremias acomodaram-se em
suas cadeiras e redigiram seus livros. Então Esdras, o sacerdote, coligiu e
editou esses livros no formato que hoje conhecemos como a Bíblia. Em
raras ocasiões, no entanto, a própria Bíblia indica autores, embora com
frequência atribua tradições a personagens bíblicos. Assim, por exemplo,
o Livro de Isaías começa com o pronunciamento: “Visão de Isaías, filho de
Amós, a respeito de Judá e Jerusalém” (Is 1,1]. Embora isso atribua as
tradições a Isaías, não afirma explicitamente que ele seja o autor do livro
em si. E, com efeito, o Livro de Isaías sugere que foram os discípulos que

23
Como a Bíblia tornou-se um livro

coligiram setis ensinamentos p s 8,16). Os profetas geralmente recebem


a injunção de apregoar a palavra de Deus, não de redi^-la. O exemplo de
Jeremias pode servir para ressaltar isto. A escrita passa a desempenhar um
papel mais central no Livro de Jeremias. As profecias, por exemplo, são
pela primeira vez explicitamente escritas por um profeta para o rei. Toda­
via, o próprio Jeremias não escreve; antes, o escriba Baruc atua como seu
secretário (Jr 36,32). D e fato, até períodos posteriores, não havia razões
fortes para registrar as coisas por escrito. Poucos eram aqueles que sabiam
ler, e os materiais para a escrita e a produção dos pergaminhos eram caros.
Não havia estrutura social para o aprendizado por meio de hvros. As tradi­
ções de Israel eram amplamente orais, ao não ser no âmbito da corte real
ou do templo, que detinham recursos econômicos e infraestrutura social
para ter suas tradições redigidas.
O período do Iluminismo, no século XVIII d.C , suscitou algumas ques­
tões para as tradições religiosas convencionais concernentes à autoria. Um
médico francês, Jean Astruc (1684-1766), aceitava a autoria mosaica, mas
argumentava que Moisés originalmente havia elaborado o Gênesis e o Êxodo
em quatro colunas e que dois documentos distintos caracterizavam-se pelo
uso dos nomes dé Deus {Jeová e Ehim); escribas posteriores teriam descuida­
damente combinado as partes para formar os livros canônicos. Vários estu­
diosos alemães desenvolveram as observações de Astruc. Johann Gottfried
Eichhom (1752-1827), por exemplo, propôs que o Pentateuco fora compilado
a partir de fontes literárias muito posteriores à morte de Moisés. WÜhelm
M. L. de Wette (1780-1849) vinculou a redação do Deuteronômio à reforma
de Josias no final do século VII a.C. Tais idéias tiveram seu coroamento na
articulação realizada por Julius WeUhausen (1844-1918). Resumidamente,
Wellhausen argumentou que duas fontes originais, J (Javista) e E (Eloísta),
haviam sido combinadas para constituir um documento, que ele denominou
JE. O texto D (Deuteronômio) foi posteriormente acrescentado, e, por fim,
no período pós-exíhco, acrescentou-se o texto P (Código SacerdotaP^) ao
conjunto JE + D, criando nosso Pentateuco''*. Tais teorias sobre os documentos

13. Em alemão, Priesterkodex, daí a letra P. (N. da T.)


14. Uma introdução, de leitura conveniente e agradável, à Hipótese Documental pode
ser encontrada em Friedman, Who Wrote the Bible?; ver também o artigo de J. C. 0 ’NeiU,
History of Biblical Criticism, in ABD, vol. 1, Garden City, NY, Doubleday, 1992, 726-730.

24
Como a Bíblia tornou-se um livro

têm início com a visão de mundo própria de uma cultura textual, ou seja,
com a visão de mundo dos críticos modernos, não das culturas antigas.
Essas teorias documentais dominaram o interesse dos estudiosos da
Bíblia ao longo do século passado, embora nunca tenham deixado de rece­
ber criticas. Muitos leitores piedosos rejeitaram qualquer tentativa até mesmo
de discutir a autoria composta dos livros, receando que isso de alguma
forma enfraquecesse a autoridade da Bíblia. Alguns estudiosos destacaram
que o mundo oral do antigo Israel dificilmente permite uma abordagem
documental complexa à sua literatura'^. As tradições de Israel, argumen­
tam eles, eram transmitidas de maneira amplamente oral, como os épicos
de Homero. Certamente o fato de que a própria BíbUa abstenha-se de dis­
cutir sua autoria é de pouca ajuda para a busca de seus autores. Ironica­
mente, a autoria não parece importante para os próprios autores da Bíblia.
O autor aparentemente não adotava uma atitude crítica adiante da au­
toridade da mensagem ou do significado do texto.
Mesmo que pudéssemos solucionar a questão de quem foram os autores,
estaríamos com isso mais próximos do significado da Bíblia? Provavelmente
não. Mas, se soubéssemos quando a Bíblia foi redigida, saberiamos algo mais
sobre o que significava para seus antigos leitores. Para o bem ou para o mal,
a interpretação da Bíblia está mais intimamente ligada aos leitores do texto
que aos seus escribas. O significado da Bíblia depende mais da questão de
quando a Bíblia foi escrita do que de quem a redigiu. Nossa questão, por­
tanto, não deveria ser “Quem redigiu a Bíblia?”, mas sim “Quando a Bíblia
foi redigida?”.

Por que a Bíblia é um texto escrito?

O segundo tópico deste livro, a saber, por que a Bíblia foi escrita, pode
ser uma questão mais intrigante que a de quem redigiu a Bíblia. A difusão
do letramento é um fenômeno relativamente moderno. O antigo Israel era
uma cultura primordialmente oral. Embora se possa fazer uma defesa
eloquente do letramento de uma figura como Moisés, é dificil imaginar

15. Ver, por exemplo, S. Niditch, Oral World and Written Word: Ancient Israelite Li
terature, Louisville, Westminster John Knox Press, 1996 (Library of Ancient Israel).

25
Como a Bíblia tornou-sc um livro

que as hordas de escravos que Moisés conduziu para fora do Egito lessem
livros. Moisés pode ter sido educado nas cortes egípcias, mas seus segui­
dores não foram. Isso suscita a questão: “por que a Bíblia é um livro?”. Por
que ela foi redigida se ninguém podia lê-la? Por que foi redigida se os
pergaminhos eram caros e tinham circulação Hmitada?
As tradições bíblicas apontam a orahdade da cultura israelita. James
Crenshaw, em seu livro Education in Ancient Israel, mostra que, de acordo
com a literatura bíblica, a sabedoria era transmitida por via fundamental­
mente oral no antigo Israel*®. O Livro dos Provérbios aconselha: “Ouve,
meu filho, a instrução de teu pai, e não rejeites o ensinamento de tua mãe”
(Pr 1,8). Isso se refere ao ensinamento oral transmitido por meio da família.
Os Salmos também safientam a transmissão oral da tradição. Assim, por
exemplo, lemos em Salmos 105,1-2:

Celebrai o Senhor, proclamai o seu nome.


Divulgai os seus feitos entre os povos.
Cantai para ele, para ele tocai;
Repeti todos os seus milagres.

Este salmo reconta a história de Israel num cântico. Por meio de cân­
ticos, histórias e provérbios as tradições das mães e dos pais eram trans­
mitidas a seus filhos e filhas. Até a própria Torá foi de início transmitida
oralmente a Israel — embora viesse a se tomar o texto escrito acima de todos
os demais. O mais antigo relato da apresentação dos Dez Mandamentos,
nos capítulos 19 a 20 do Êxodo, na verdade nem sequer menciona a
registro escrito dos Mandamentos. Essa gritante omissão indica a antigui­
dade desse relato da tradição do Sinai, pois reflete uma época anterior
àquela em que os livros houvessem se tomado centrais na cultura judaica.
O segundo relato da outorga da lei, no livro do Deuteronômio (pois é
isso o que significa hteralmente o termo ‘deuteronômio’: “a segunda lei”),
como veremos (no capítulo 7), toma central a escrita da revelação e, assim,
reflete o movimento posterior de uma cultura oral para uma cultura le­
trada e para “o povo do livro”.

16. J. L. Crenshaw, Education in Ancient Israel: Across the Deadening Silence, Nova
York, Doubleday, 1998.

26
Como a Bíblia tomou-se um livro

A ideia do letramento não pode ser discutida sem ressalvas. O que


significa “letramento disseminado”? Há muitos tipos de letramento, desde
o letramento inteiramente comum, envolvido na leitura e redação de breves
textos econômicos e listas de discussão, até os mais altos níveis de letramen­
to requeridos para ler e redigir textos literários como o Pentateuco ou o
livro de Isaías. Os linguistas enfatizaram a fluidez entre a oralidade e o le­
tramento. A conhecida sociolinguista Deborah Tannen, por exemplo,
afasta-se da dicotomia radical: “não pensemos na oralidade e no letramen­
to como uma divisão absoluta”^^. Os estudiosos da Bíblia seguiram essa
mesma ideia, salientando a oralidade do antigo Israel e mostrando como
a oralidade persiste mesmo nos textos escritos de Israel. Numa impor­
tante pesquisa sobre esse tópico intitulada O ral World and Written Word
[Mundo oral e palavra escrita], Susan Niditch enfatiza o continuum entre
a oralidade e o letramento. Em sua obra, Niditch rejeita a abordagem
diacrônica simples, ou uma dicotomia radical entre o oral e o escrito, con­
siderando-a uma abordagem equivocada porque pode desvalorizar a força
das culturas orais e negligenciar o impacto da oralidade sobre os textos
escritos^®. A literatura composta oralmente não deve ser caricaturada como
rústica ou desprovida de sofisticação. Obras como a Ilíada e a Odisséia
de Homero são excelentes exemplos da força, da complexidade e da so­
fisticação que a literatura oral pode possuir. As composições orais podem
ser complexas, e os textos escritos podem ser simples. Ademais, mesmo
quando começamos a ter textos escritos, o mundo oral deixa sua marca
sobre eles.
A oralidade fundamental do antigo Israel se reflete no gênero de muitos
dos textos primários da sociedade. No início do século X X , Hermann
Gunkel mostrou como o livro do Gênesis era profundamente dependente
da literatura popular'®. Mais recentemente, estudiosos como Robert Gulley
e especialmente Susan Niditch enfatizaram quão profundamente a lite-

17. D. Tannen, The Myth of Orality and Literaqr, in Linguistics and Literacy (ed. W.
Frawley), Nova York, Plenum Press, 1982, 47.
18. S. Niditch, Oral World and Written Word, 3.
19. H. Gunkel, The Legends of genesis [trad. W. H. Carruthl, reedição 1961, Nova
York, Schocken, 1901; ver também Gunkel, The Folktale in the Old testament (trad. M.
Rutter, com introdução de J. Rogerson [ed.]), Sheffield, Almond, 1987.

27
Como a Bíblia tornou-se um livro

ratura bíblica depende da cultura oral da sociedade israelita antiga^®. Um


exemplo na literatura bíblica é a fórmula profética do mensageiro, “Assim
fala O Senhor”. N a Bíblia, essa frase se tom a uma fórmula escrita fixa,
mas foi estabelecida na transmissão oral de mensagens^b Em seu livro
Stories in Scripture and Inscriptions, Simon Parker ressalta as dimensões
orais das antigas inscrições, bem como dos textos bíbhcos^^. Deste modo,
mesmo quando temos textos escritos, o mundo oral com frequência per­
meia sua expressão.
Talvez de maneira mais importante, a tradição oral e os textos escritos
também representam centros concorrentes de autoridade. Enquanto a ora-
lidade e o letramento podem existir num continuum, a oralidade e a teoctuali-
dade concorrem uma com a outra como diferentes modos de autoridade.
Quando a base de autoridade de uma ctdtura pasSa da tradição oral para
textos escritos, essa é uma mudança radical no centro social de educação.
Precisamos apenas examinar os debates modernos entre educadores sobre
diferentes abordagens da educação — por exemplo, em que medida o
computador deve substituir o professor — para perceber quão delicadas e
com frequência acaloradas podem ser até mesmo as menores mudanças
nos modos tradicionais de educação. Por fim, os textos escritos suplantariam
a tradição oral — uma transformação que não é considerada irrelevante
por aqueles que têm interesse na tradição oral. Ao estudar a formação da
literatura bíblica, tanto o movimento diacrônico da oralidade para o letra­
mento como a competição entre a tradição oral e os textos escritos têm
de ser considerados.
A transição do oral para o escrito é também uma profunda mudança
cultural. Jack Goody, antropólogo de Cambridge, salientou o enorme im-

20. Ver R. CtiUey, Studies in the Structure ofHebrew Narrative, Philadelphia, Fortress,
1976; S. Niditch, A Prelude to Biblical Folkbre: Underdogs and Tricksters, Urbana, Univer-
sity of Illinois Press, 2000. Ver ainda minha resenha dos estudos recentes sobre esse tópico:
W. M. Schniedewind, Orality and Literacy in Ancient Israel, RSR 26 (2000) 327-332.
21. Ver o ensaio clássico de J. Ross, The Prophet as Yahweh’s Messenger, in Israels Pro-
phetic Heritage (ed. B. Anderson e W. Harrelson), Nova York, Harper & Row, 1962,98-107.
22. S. Parker, Stories in Scripture and Inscriptions: Comparative Studies on Narratives
in Northwest Semitic Inscriptions and the Hebrew Bible, Nova York, Oxford University
Press, 1997.

28
Como a Bíblia toniou-se um livro

pacto cultural que a escrita e o letramento tiveram no desenvolvimento da


civilização ocidental^^. Alguns criticaram Goody argumentando, por exem­
plo, que ele supervaloriza a dicotomia entre oralidade e letramento^"*. Há
alguma verdade nisso, mas tampouco a crítica dá conta perfeitamente da
dicotomia entre oralidade e textualidade como loci de autoridade concorren­
tes. A ascensão da escrita e a difusão do letramento viriam a pôr à prova
a tradição e a comunidade orais com uma nova e independente base de
autoridade — o texto escrito. Tal inovação educacional não foi efetuada
sem resistências. E não foi feita num único momento. A resistência à escrita
em substituição à tradição oral é um fenômeno antropológico conhecido.
Na Grécia antiga, por exemplo, o Sócrates de Platão se queixa a Fedro: “As
palavras escritas parecem nos falar como se fossem inteligentes, mas se lhes
perguntamos qualquer coisa sobre aquilo que dizem, desejando ser instruí­
dos, elas continuam sempre a nos dizer o mesmo. E, uma vez que algo seja
transposto em palavras escritas, a composição, qualquer que seja ela, fica à
deriva por toda parte sem rumo certo” (Fedro, § 275d). Evidentemente,
não é o texto que fica à deriva, mas os leitores que interpretam o texto
sem a orientação de um professor. Embora Sócrates se queixe amargamen­
te da palavra escrita, sua queixa, ironicamente, está preservada num relato
escrito. N a Sétima Carta, Platão escreveu que “todo homem sensato, ao
tratar de assuntos realmente sérios, evita cuidadosamente expressar-se por
escrito, a fim de não sujeitá-los à inveja e à estupidez do público”.
No mundo greco-romano, havia uma resistência natural aos livros e
à escrita em todas as classes da sociedade, mas especialmente entre arte­
sãos, cujas habilidades eram mantidas no interior de uma comunidade de
ofício e mais bem aprendidas no contexto oraP^. Galeno, um médico e

23. Algtimas das obras mais importantes de Goody incluem J. Goody e I. Watt, The
Consequences of Literacy, Comparative Studies in Society and History 5 (1963) 304-345;
Goody, The Domesúcation of the Savage Mind, Cambridge, Cambridge University Press,
1977; Goody, The Logfc ofWriting and the Organization of Society, Cambridge, Cambridge
University Press, 1986.
24. Por exemplo, Tannen,The Mydi of Orality and Literacy, 37-50; os ensaios em Literacy
and Society (ed. K. Schousboe e M. TroUe-Larsen), Copenhague, Akademisk Forlag, 1989.
25. L. Alexander, The Living Voice; Scepticism towards the Written Word in Early
Christian and in Graeco-Roman Texts, in The Bible in Three Dimenskms: Essays in Celebration

29
Como a Bíblia tomou-se um 1í \to

filósofo romano [século II d .C ), depreciava “aqueles que — como no


provérbio — tentavam navegar com base em livros”^®. Similarmente, Plínio,
o VeUio, enfatizou a importância da transmissão oral em oposição aos livros:
“a voz viva {yiva vox), como se diz, é muito mais eficaz” {Ep. II, 3). Um im­
portante elemento nessas (e em outras) criticas populares à palavra escrita
era a proverbial sabedoria do crítico. Era justamente essa sabedoria prover­
bial — mantida no interior da comtmidade e transmitida pela tradição —
que era mais ameaçada pelos livros e pela escrita. Assim, embora houvesse
um continuum entre a oralidade e o letramento, há também uma tensão
e uma competição entre texto escrito e voz viva. Essa tensão se intensifi­
ca quando estes estão competindo para figurar como base da autoridade
cultural ou religiosa.
Uma ambivalência na fiteratura da formação cristã acerca da escrita
reflete uma crítica das instituições religiosas e políticas arraigadas. Patxlo de
Tarso, por exemplo, diz aos Coríntios que “Vós sois uma carta do Cristo
confiada ao nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do
Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, nos vossos
corações”, e, ainda, que “a letra mata, mas o Espírito vivifica” [2Cor 3,3.6).
Esta afirmação, usando a analogia da palavra escrita como oposta à voz viva,
não é uma coincidência nem um fato isolado. A avaliação de Paulo toma
emprestada uma metáfora de uma crítica cultural à escrita e aos livros,
que ameaçavam substituir o espírito e o testemunho da comunidade. Os
primeiros escritores cristãos sempre se desculpavam por sua escrita, como,
por exemplo. Clemente de Alexandria, do século II d.C., que paradoxal­
mente inicia sua obra Stromateis dizendo: “Este tratado é [...] um remédio
contra o esquecimento, uma imagem rudimentar, uma sombra daquelas
palavras claras e vividas que fui julgado merecedor de ouvir”^^. Aqui, a
crítica de Clemente lembra a crítica platônica à escrita. Ou seja, a crítica
à escrita fazia parte de um debate cultural mais amplo.
A oralidade era também uma ideologia do judaísmo rabínico. Nos pri­
meiros séculos da Era Cristã, os rabinos eram estridentes ao enfatizar que

of Forty Years of Bibücal Studies in the University of Sheffield (JSOTSS, 87; ed. D. Clines,
S. Fowl e S, Porter], Sheífield Academic Press, 1990, 221-247.
26. Galeno, De Ubr. Propr. 5, Kühn XDC 33/Scripta Minora I I 110.25-27.
27. ApudL.Alexander,The Living Voice, 221-222.

30
Como a Bíblia tornou-se um livro

a tradição oral (isto é, a Torá oral] representava uma autoridade última,


acima da Torá escrita. Mais uma vez, todavia, essa tradição oral foi por fim
preservada em textos (por exemplo, a Mishná e o Talmude). Contudo, a
tradição escrita formulou-se como hebraico vernáculo, refletindo a ideo­
logia oral. A ideologia oral também produziu efeitos em outras esferas do
judaísmo rabínico; assim, por exemplo, a liturgia não podia ter uma forma
fbca, mas tinha de ser fluida. As orações não podiam ser redigidas de uma
forma estabelecida. Embora a tradição oral persista concomitantemente
com os textos escritos^®, essa relação era conflituosa. Por um lado, a ênfase
rabínica na Torá oral — às vezes em detrimento da Torá escrita — refletia
uma forte ideologia que favorecia a autoridade do oral sobre a do escrito.
Por outro lado, as referências dos sectários de Qumran àqueles “que deslo­
cam as fronteiras”, “que seguem interpretações fáceis” ou àqueles que
dizem que a lei “não é fixa” refletem uma crítica à tradição oral em favor
da tradição escrita. Os sectários de Qumran eram um grupo sacerdotal de
elite que funcionava em oposição ao sacerdócio de Jerusalém. Do mesmo
modo, a tensão entre saduceus e fariseus acerca da autoridade da tradição
oral deve ser entendida, ao menos em parte, como uma tensão entre as
elites sociais letradas que controlavam os textos e a população mais leiga
que era amplamente iletrada. A Torá oral era iguahtária, enquanto a Es­
critura era elitista. Tanto a antiga igreja cristã como o judaísmo rabínico
inicialmente se distanciaram da autoridade exclusiva dos textos escritos,
mas a institucionalização do cristianismo e do judaísmo por fim resultou
no ressurgimento da autoridade dos textos (como o Novo Testamento e
a Mishná). A textualização da cultura não poderia ser impediáa, ainda
que fosse temporariamente interrompida pela aristocracia refigiosa e pela
destruição do Segundo Templo.
A mudança da autoridade religiosa — da tradição oral para os textos
escritos — teve importantes implicações. Como Haym Soloveitchik des­
tacou em seu estudo sobre os movimentos religiosos judaicos modernos^®,

28. Sobre a Torá oral, ver M. Jaffee, Torah in the Mouth: Writting and Oral Tradition
in Palestinian Judaism, 200 BCE — 400 CE, Nova York, Oxford University Press, 2001.
29. H. Soloveitchik, Rupture and Reconstruction; The Transformation of Contempo-
rary ortodoxy, Tradition 28 (1994j 64-130. Ver também M. Friedman, Life Tradition and
Book Tradition in the Development of Ultraorthodox Judaism, in Judaism from Within and

31
Como a Bíblia tornou-se um livro

a mudança preíigura uma propensão para a estridência religiosa. Ela tem a


capacidade de alterar o desempenho religioso. Ela transforma a natureza
e o propósito da educação. Ela redistribui o poder político.
A leitura do texto religioso detentor de autoridade [e inovador] com
frequência também resulta num sentimento de culpa e numa subsequente
necessidade de reforma radical. Dois proeminentes exemplos bíbUcos vêm
imediatamente à mente. O primeiro deles é a Reforma de Josias, que co­
meça com a descoberta do Livro da Abança: “Ao ouvir as palavras do livro
da lei, o rei rasgou suas vestes” (2Rs 22,11]. Depois disso, o rei “fez a leitura
de todas as palavras do livro da aliança encontrado na casa de YHWH.
O rei posicionou-se junto ao pilar e firmou diante de YHWH a abança que
obriga a seguir YHWH, a guardar seus mandamentos, suas exigências e
decretos, de todo o coração e com todo o seu ser, observando as palavras
dessa abança escritas neste pergaminho. Todo o povo aderiu a essa abança”
[2Rs 23,2-3). A culpa é sentida imediatamente, e isso determina uma
mudança no comportamento religioso. O povo então participa de reformas
de amplo alcance que extinguem atividades rebgiosas não ortodoxas (de
acordo com o livro). Do mesmo modo, a história das reformas de Esdras
começa com uma elaborada descrição da reunião do povo para ler “o livro
da lei de Moisés”. Esdras sobe num tablado especial, abre o bvro diante do
povo e em seguida faz a leitura (Ne 8,1-8). A reação é imediata: “Todo o
povo chorou ao ouvir as palavras da lei” (Ne 8,9). O povo foi então envia­
do à celebração da Festa dos Tabemáculos (Sukkoi). Em resposta ao texto
escrito, o povo sela um acordo por escrito para separar-se dos estrangeiros
— até mesmo de suas próprias esposas e filhos —, de acordo com a palavra
escrita (Ne 10,28-38), A violação das determinações escritas tem de ser
punida, ou ao menos justificada. Por exemplo, o grande número de mulhe­
res de Davi viola a injunção de “não ter muitas esposas” (Dt 17,17). Os
sectários de Qumran expbcam que “Davi não lera o bvro selado da Lei
contido na Arca, pois a Arca não fora aberta em Israel desde o dia da morte
de Eleazar e Josué e os anciãos que serviam a deusa Astarte. Ele ficou
enterrado e não foi revelado até o aparecimento de Sadoc” (CD 5,2-5). A
conduta em relação ao bvro tem de ser justificada na prática rebgiosa.

Without: Anthropological Studies [ed. H. Goldberg), Albany, State University of New


York Press, 1987,235-255.

32
Como a Biblia tornou-se iivr

Assim como a Reforma protestante foi possibilitada pelas mudanças


na tecnologia da escrita, a textualização do judaísmo foi possibilitada por
mudanças sociais e tecnológicas^^. Como mostrou McLuhan em A G aláxia
de Gutenberg, as inovações tecnológicas na escrita foram capazes de moldar
profundamente a civilização. O brado sola scriptura de Martin Lutero não
teria ressoado sem a invenção da prensa. Mas a mudança tecnológica que
possibilitou pela primeira vez a difusão do letramento foi a invenção do
alfabeto, que tomou o letramento mais acessível. Embora o letramento
generalizado seja possível nas sociedades modernas sem escrita alfabética,
como o Japão, a disseminação do letramento nas sociedades antigas sem
alfabeto teria sido impossível. O alfabeto, em conjunto com a ascensão
do primeiro império do mundo (o assirio] no século VIII a.C., tomou-se o
catalisador das mudanças sociais que atribuiram autoridade à escrita no
antigo Israel. Mais tarde, o códice, inventado no século I d.C., reuniría os
pergaminhos de maneira mais funcional. Os primeiros cristãos adotaram
inicialmente o códice para sua literatura sagrada^b O códice era mais con­
veniente que os pergaminhos para uso na oração, no ensino e na leitura
litúrgica. Quando os escritos das primeiras comunidades religiosas foram
reunidos num cânone definido, um único e grande códice ofereceu re­
presentação física ao conceito de um cânone escriturário. Desse modo, o
códice selou um estágio final em nossa compreensão de como a Bíblia
tornou-se um livro.

Quando exatamente a Bíblia foi escrita?

Um assunto polêmico no estudo recente sobre a Bíblia, e também a ter­


ceira principal discussão deste livro, é a questão de quando, exatamente, a
Bíblia foi escrita. Argumentarei que a literatura bíblica foi redigida em grande
parte entxe os séculos VIII e VI a.C., ou seja, entre os dias dos profetas Isaías

30. A respeito do impacto da tecnologia sobre a escrita e o letramento, ver W. J. Ong,


Orality and Literacy: Tbe Teclmologizing of the World, Padstow, Comwall, T. J. Press,
1982, e H.-J. Martin, The Histoiy and Power o/VPníing.
31. Ver A. Millard, Reading and Wriríng in the Time of Jesus, Sbeffield, Sbeffield Aca-
demic Press, 2000, 69-83 (The Biblical Seminar).

33
Como a Bíblia tornou-se um Iíxto

e Jeremias. A redação da literatura bíblica esteve estreitamente vinculada à


tirbanização de Jerusalém, ao crescimento da burocracia governamental, ao
desenvolvimento de uma economia global mais complexa e, em seguida, à
difusão do letramento. As duas figuras críticas no florescimento da literatura
bíblica foram os reis Ezequias (reinado de 715 a 687 a.C.} e Josias (reinado
de 640 a 609 a.C ). Desenvolverei esse tópico nos capítulos 5 e 6.
Minha tese contestará diretamente aquilo que se tomou uma tendên­
cia em voga entre uma minoria de estudiosos que argumentam que os textos
bíblicos ainda não haviam sido compostos até a fase tardia dos períodos
persa e helenístico, ou seja, entre os séculos IV e II a.C.^^. Esta tendência
cristalizou-se num livro escrito pelo estudioso britânico Philip Davies,
que foi publicado em 1992 com o provocativo título In Search o f“Ancient
Israel" [Em busca do “antigo Israel”]. Davies argumentou essencialmente
que o Israel bíblico era uma ficção de nacionafistas judeus que escreveram
no século IV a.C. (ou seja, durante os últimos dias do Império persa). Davies
considerava que o rei Davi não era mais histórico que o rei Artur. Ao res­
ponder à questão de quando a Bíblia foi redigida de um modo muito dis­
tinto do que se fez tradicionalmente, Davies deu à Bíblia um significado
dramaticamente diferente. Afinal, se a Bíbha foi inventada pelos judeus
no último período persa, ou até mesmo nos períodos helenístico e romano
(ou seja, do século IV ao II a.C ), como outros também já afirmaram^^,
então seria uma fraude difundida por engenhosos charlatães. Ou seria
propaganda apresentada por nacionalistas ou ideólogos religiosos. Como
exporei detalhadamente no capítulo 9, essa datação extremamente tardia
da Bíblia é seriamente problemática, mas o argumento de Davies ilustra
quão poderosa é a questão do “quando”.
Reahnente, a Bíblia — ou seja, a coletânea de livros canonizados da
Bíblia como viemos a conhecê-los — foi produzida entre o século V a.C. e

32. Para um resumo e uma crítica dessa posição cética extrema, ver: B. Halpem, Erasing
History, Bible Review 11 [1995) 27-35, 47; S. Japhet, In Search of Ancient Israel: Revisio-
nism at AU Costs, in The Jewish Past revisited (ed. D. N. Myers e D. B. Ruderman), New
Haven, Yale University Press, 1998, 212-233.
33. Por exemplo, N. P. Lemche, The Old Testament — A HeUenistic Book? SJOT 7
(1993) 163-193; L. Grabbe (ed.), Díd Moses SpeakAttic? Jewish Historiography and Scripture
in the HeUenistic Peiiod (JSOTSS, 317), Sheffield, ShefBeld Academic Press, 2001.

34
Como a Bíblia tornüu-ss e ura livro

O século IV d.C. Isso não significa, poréna, que a literatura bíblica foi com­
posta ou redigida pela primeira vez nesse período; antes, significa que os
processos editoriais — as decisões sobre qual literatura tomar-se-ia canô­
nica, sobre a ordenação dos livros, as relações entre os livros, a estmtura
editorial dos livros — ocorreram principalmente durante esses novecentos
anos. Meu livro ocupa-se primordialmente da redação dos pergaminhos da
literatura bíblica, e não da compilação de tais pergaminhos num único livro.
Indagar como a Bíblia tornou-se um livro é indagar algo sobre a histó­
ria do povo judeu porque a redação da Bíblia é central para essa história.
Este livro, portanto, fala algo sobre o início da história do povo judeu e
de seu livro, a Bíblia, ou Tanak (um acrônimo para a Torá, o Nebiim [pro­
fetas] e o Ketubim [escritos], que são as três divisões da Bíbha judaica).
O foco deste livro é então a Bíblia judaica ou o Antigo Testamento cristão,
ao qual nos referiremos daqui em diante simplesmente como “a Bíblia”.
Embora os fragmentados primórdios da Bíblia como literatura escrita pos­
sam ser datados dos dias dos reis Davi e Salomão (no século X a.C.), a
maior parte da Bíbfia foi redigida alguns séculos mais tarde, entre a época
do profeta Isaías (final do século VIII a.C.) e o final da monarquia e a épo­
ca do profeta Jeremias (início do século VI a.C.).

A complexidade da literatura bíblica

Neste livro, não fingirei que a Bíblia é um hvro simples. A Bíblia re­
flete uma riqueza e uma complexidade diacrônicas que devem ser levadas
em consideração em qualquer discussão a respeito de sua composição. O que
queremos dizer com isso? A Bíblia não foi redigida de uma só vez ou em
um único lugar. Parte da riqueza da literatura bíblica é a complexidade
que resulta do fato de que tenha sido composta ao longo de um extenso
período de tempo. Talvez isso possa ser ilustrado pelos Manuscritos do
Mar Morto — os mais antigos manuscritos bíbhcos remanescentes. Embora
os mais antigos manuscritos bíblicos dentre os Manuscritos do Mar Morto
datem do século III a.C., não se pode assumir que esta seja a data de sua
composição. Com efeito, antes da descoberta dos Manuscritos do Mar
Morto, há pouco mais de cinquenta anos, os manuscritos mais antigos eram
medievais, mas ninguém teria argumentado que a Bíblia era, por conse­
guinte, uma composição medieval. (Bem, na realidade, sempre se pode

35
Como a Bíhlia tornou-se um livro

encontrar alguém que argumente qualquer coisa.) Mas é simplesmente


uma redução absurda argumentar que a literatura bíblica foi composta
na data que se atribua à primeira evidência manuscrita que encontremos,
■ qualquer que seja ela. Além disso, é preciso reconhecer que os Manuscritos
do Mar Morto incluem também um grande número de comentários, pará­
frases e outras reelaborações da literatura bíblica. Esse processo ativo de
interpretação e até de revisão das Escrituras aponta para um período
muito anterior para a composição da Bíblia. Isso também pode ser visto
na linguagem usada. A linguagem dos comentários bíblicos que figuram
entre os Manuscritos do Mar Morto reflete um estágio do hebraico muito
posterior ao dos próprios manuscritos, assim como o idioma inglês de um
comentário moderno sobre Shakespeare difere da linguagem do próprio
Shakespeare. A evidência linguística exclui uma datação muito tardia para
a composição da Bíblia^"*.
Darei um exemplo da longa e complexa história hterária da Bíblia,
exemplo esse extraído da própria Bíbfia. Trata-se da história da campanha
do faraó Shishaq contra Jerusalém, ocorrida por volta de 925 a.C. Essa
história ilustra alguns dos aspectos diacrônicos da Hteratura bíbUca que
precisamos considerar ao indagar como a Bíbha tomou-se um livro. No
Primeiro Livro dos Reis (IR s 14,25-28), lemos;

No quinto ano do reinado de Roboão, Shishaq, rei do Egito, subiu para atacar
Jerusalém. Tomou os tesouros da casa do Senhor e da casa do rei. Levou
absolutamente tudo; até mesmo todos os escudos de ouro que Salomão
fizera. O rei Roboão substituiu-os por escudos de bronze e confiou-os aos
chefes dos guardas que guardavam a porta do palácio real.

Embora a maioria das avaliações dos estudiosos estipule o final do


século VIII a.C. como a data mais antiga para a primeira redação do Livro
dos Reis, o texto relata com precisão uma campanha do faraó Shishaq
ocorrida no mínimo dois séculos antes. A determinação do momento his­
tórico preciso do episódio é atestada por um relato egípcio dessa campa­
nha registrado pelo faraó Shishaq (ou Sheshonq) mrma parede do Templo

34. A. Hurvitz, The Historical Quest for "Ancient Israel” and the Linguistíc Evidenc
of the Hebrew Bible: Some Methodological Observations, VT47 (1997] 310-315.

36
Como d Bíblia tornuu-se um livro

em Karnak no Egito^^. Devemos à atividade dos escribas essa sincronia


cronológica tão precisa. Esses textos escritos serviriam de fontes para a
estrutura básica das narrativas históricas do Livro dos Reis, que foi redi­
gido no período tardio da monarquia (do século VIII ao VII a.C.}.
O Livro das Crônicas, que foi redigido no período persa (no século V
ou IV a.C.), usou o Livro dos Reis ao narrar novamente a história de
Israel. Em consequência disso, temos a oportunidade de ver a partir de dentro
o processo de composição das Escrituras. O Segundo Livro das Crônicas
(2Cr 12,2-9) reelabora o Livro dos Reis;

No quinto ano do reinado de Roboão, Shishaq, rei do Egito, marchou contra


Jerusalém — pois eles foram infiéis ao Senhor — com duzentos carros,
sessenta mil cavaleiros e um exército inumerável que veio com ele do Egito:
líbios, sukitas e kushitas.

Apoderou-se das cidades fortificadas de Judá e chegou até Jerusalém. O


profeta Shemaiá foi ter com Roboão e os chefes de Judá reimidos em Jerusalém
por causa da chegada de Shishaq e disse-lhes; “Assim Tala o Senhor: Vós me
abandonastes; por isso eu também vos abandonei nas mãos de Shishaq". Os
chefes de Israel e o rei se humilharam e disseram: “O Senhor é justo”. Quando
o Senhor viu que se haviam humilhado, a palavra do Senhor foi dirigida a
Shemaiá nestes termos; "Eles se humilharam. Não os exterrninarei. Em breve
lhes darei a libertação e não é pelas mãos de Shishaq que meu furor se abaterá
sobre Jerusalém. Contudo eles se tomarão seus servos e aprenderão a dife­
rença entre servir a mim e servir aos reinos das outras terras”.
Shishaq, rei do Egito, subiu então contra Jemsalém. Tomou os tesouros da
Casa do Senhor e os tesouros da casa do rei. Apoderou-se absolutamente
de tudo. Tomou até os escudos de ouro que Salomão fizera.

A primeira coisa que se nota é que o Livro das Crônicas expandiu


muito o relato de sua fonte original. A expansão, antes de mais nada.

35. Uma tradução para o inglês da inscrição histórica de Shishaq está disponível em Ancímí
N ear Eastem Texts Relating to the O ld Testamerã (ed. J. Piitchard), Piinceton, Princeton Univer-
sity Press, 1955, 263-264. Ver também B. Mazar, Pharaoh Shishak’s Campaign to the Land of
Israel, in The Early BtbUcal Period, Jerusalém, Israel Exploration Socáety, 1986,139-150.

37
Como a Bíblia tornou-se um livro

serve para explicar por que Shishaq atacou Jerusalém — porque eles
foram infiéis ao Senhor. Isso é típico do Livro das Crônicas. O historiador
posterior quer acrescentar uma explicação. Por que Deus permitiu que Shishaq
pilhasse o Templo? Deve-se notar também que o autor marca formalmen­
te a expansão. Observe-se que a declaração “Shishaq, rei do Egito, marchou
contra Jerusalém” é repetida exatamente no início e no fim da expansão.
Essa é uma técnica editorial comum na Bíblia (“reatamento por repetição”
ou Wiederaufnahmé] quando um autor ou editor posterior faz um acrésci­
mo^®. Isso mostra que o redator posterior está ciente de estar se baseando
ntun texto ou numa tradição anteriores.
A próxima questão é: de onde provém a expansão do Livro das Crô­
nicas? É uma interpretação inteiramente original de um autor ou também
tem suas fontes? Quando o texto diz que isso aconteceu “porque eles foram
infiéis ao Senhor”, seria isso a interpretação de um autor ou a compreensão
da comunidade religiosa tradicional? Parte dessa questão depende de acre­
ditarmos que a redação é encoberta ou intencional. O te3rto bíblico oculta
sua dependência de um texto anterior ou possui algum tipo de referência?
A noção de dependência textual consciente aqui é uma ideia moderna. Im­
plica uma suposição cultural acerca da integridade de um texto como texto.
Não se trata mais de urna história que se conta, mas de um texto que se
adapta. Essa consciência em relação à integridade de um texto e, conse­
quentemente, a seu uso e adaptação é uma mudança critica que se reflete
na perspectiva do Livro das Crônicas. A primeira pista para a resposta a
essa questão pode estar na própria natureza editorial desse acréscimo. Ele
está formalmente indicado. Saberiamos onde ele começa e termina mesmo
sem ter o Livro dos Reis diante de nós. Recordemos que, na antiguidade,
os leitores do Livro das Crônicas provavelmente não teriam acesso fácil ao
Livro dos Reis. Os pergaminhos certamente não estavam reunidos da ma­
neira como estão em nossas Bíblias modernas. O texto nos faz o favor de
assinalar o acréscimo por meio de uma repetição. O texto conclui o relato
do rei Roboão declarando; “Os atos de Roboão, dos primeiros aos últimos,
não estão escritos nos Atos do profeta Shemaiá e nos Atos do vidente Idô
a respeito da genealogia?” (2Cr 12,15). Aqui, novamente, o texto oferece

36. Essa técnica e a bibliografia relevante estão descritas em M. Fishbane, Bihlical


Interpretation in Ancient Israel, Oxford, Oxford University Press, 1985, 44-65.

38
Como a Bíblia tomou-so um liw

uma pista a respeito do processo de composição. Isso é uma invenção de


autoridades ficcionais^ ou o texto tem em mente alguma tradição escrita?
Embora não conheçamos a natureza exata dessas fontes, devemos presu­
mir que o escritor recorreu a elas de alguma maneira. A alternativa é acre­
ditar que o escritor intencionalmente tenta enganar a audiência — uma
posição que parece distorcida especialmente pelo fato de que o escritor
já indicou a expansão usando a repetição. Naturalmente, o uso de tradi­
ções não significa necessariamente que o relato seja inteiramente preciso
historicamente, mas fornece algum esclarecimento acerca do processo de
composição. Em suma, temos de supor um texto escrito, talvez anais reais
ou do templo, que remontem ao século X a.C., que seja posteriormente
incorporado no Livro dos Reis entre os séctxlos VIII e VII a.C. Um reda­
tor posterior do Livro das Crônicas aparentemente interpretou e revisou
o Livro dos Reis utilizando outras fontes (por exemplo, as crônicas dos
profetas) entre os séculos V e IV a.C.
Este exemplo ilustra um fragmento de um longo, rico e complexo pro­
cesso de redação da BíbUa. A questão de quando a Bíblia foi escrita é muitas
vezes excessivamente complicada. N a maior parte dos casos, temos poucas
fontes, indicações e referências explícitas acerca da composição da literatura
bíbhca. Contudo, podemos formar uma concepção do projeto passando dos
exemplos mais claros para os menos claros. E podemos reconstruir os ce­
nários sociais nos quais as tradições foram transmitidas oralmente, depois
redigidas e, por fim, editadas naquilo que conhecemos como Bíblia. Com
efeito, parte da força da hteratura bíbhca reside nesse longo processo. Foi
a vitalidade da tradição bíblica e sua centrahdade para o antigo Israel e o
antigo judaísmo que fez com que adotasse uma forma escrita que foi, por
sua vez, lida, interpretada e, ocasionalmente, revisada e rehda.
Por onde devemos principiar a jornada proposta neste livro? Antes que
possamos compreender como a Bíbha tomou-se um livro, temos de explorar
a natureza da própria escrita nas antigas sociedades e, em seguida, no antigo
Israel. A escrita tinha um poder numinoso no mundo antigo. Seus segredos
eram guardados pelos grêmios dos escribas no interior dos círculos fecha­
dos dos palácios e dos templos. O antigo Israel reflete essas atitudes pré-
letradas em relação à escrita. O capítulo 2 explorará o poder numinoso da
escrita e seu papel no antigo Israel. O desenvolvimento e o uso da escrita,
no entanto, estão intimamente relacionados com a ascensão do estado e a
mbanização. O capítulo 3 examinará o papel central da escrita no interior

39
Como a Bíblia tornou-se um livro

do Estado. O capítulo 4 se voltará para os antigos israelitas e examinará o


papel limitado da escrita em seus antigos reinos. Seria necessário um
grande levante social no antigo Israel para que a escrita se difundisse na
cultura popular. O florescimento da escrita e a posterior difusão do letra-
mento ocorreram nos séculos VIII e VII a.C. Os capítulos 5 e 6 esboçarão
algumas das mudanças sociais em Israel que resultaram no registro escrito
das antigas tradições hebraicas e, em seguida, enfocarão a difusão da es­
crita e do letramento que tomou possível uma religião textual. O capítulo
7 ilustra essa transição do mundo oral para um texto escrito por meio de
um exame da maneira como a Torá é tratada na literatura bíblica. Uma vez
que a escrita conquistou seu lugar na cultura religiosa, o conceito de Es­
crituras sucedeu naturalmente. O exílio babüônico foi uma crise tanto
para o texto como para a tradição oral. O capítulo 8 mostra como a lite­
ratura bíblica está essencialmente completa com o fim da casa real e seu
apadrinhamento. O capítulo 9 descreve a época mais sombria da literatura
bíblica na pobreza da província persa de Yehud, onde se suprime e preserva
a literatura bíblica. Mas o renascimento dessa literatura tem seu início no
século III a.C., na esteira do helenismo, com seu interesse na palavra es­
crita e na criação de bibliotecas. A tradição oral e os textos escritos tinham
uma relação conflituosa na antiguidade. Um epílogo esboça a tensão entre
o oral e o escrito no judaísmo formativo e na antiga Cristandade, quando
emerge nessas tradições um cânone das Escrituras — a Bíblia.

40
o
T‘
nuininoso da escrita

escrita possuía um poder numinoso, especialmente nas sociedades


pré-letradas. A escrita não era usada, a princípio, para canonizar a prática
religiosa, mas para gerar reverência religiosa. A escrita era uma dádiva dos
deuses. Ela tinha poderes sobrenaturais para abençoar e amaldiçoar. Possuía
um lugar especial na criação divina e na manutenção do universo. De acor­
do com uma tradição judaica antiga, as letras do alfabeto hebraico, bem
como a arte da escrita, foram criadas no sexto dia [M. Avot 5, 6). A ideia de
que a escrita foi conferida à humanidade como parte da própria criação
do mundo era conhecida também-no antigo Egito e na Mesopotâmia. A
escrita não era mundana; antes, era usada como forma de comunicação
com a esfera divina por meio de rituais ou recitações de fórmulas a fim de
afetar o curso dos eventos presentes ou futuros. Segundo a tradição ju­
daica, as tábuas de pedra entregues no Monte Sinai também foram criadas
no sexto dia. É Deus quem escreve nessas duas tábuas com seu próprio
dedo. A antiga Mesopotâmia também descreveu tábuas celestiais [conhe­
cidas como Tábuas do Destino) em seu mito da criação, Enuma Elish. De
acordo com a literatura bíblica. Deus efetivamente mantém um livro celes­
tial em que estão inscritos os nomes das pessoas e no qual Deus escreve
e apaga, registrando assim o destino eterno daqueles que ali constam. Os
livros de Moisés refletem essa antiga noção da escrita como sobrenatural.

41
Como a BíWia tornou-^SC um livro

Essas concepções misteriosas e numinosas da escrita são típicas de socie­


dades altamente orais como o antigo Israel.
Neste capítulo, pretendo salientar como a escrita é incomum, especial­
mente na antiguidade. N a sociedade moderna, a escrita é comum. É uma
parte trivial de nossa existência. Às vezes nos esquecemos de que a escrita
é uma invenção. Ela é um desenvolvimento relativamente recente na his­
tória humana. Além disso, o conceito de que a escrita ou um texto detêm
autoridade, ou até importância, certamente não é inato. O valor do letra-
mento é algo que ensinamos. Em contraposição, falar é algo que aprendemos
a fazer naturalmente no decorrer de nossas interações sociais. As estruturas
sociais do aprendizado da fala são intrínsecas ao próprio desenvolvimento
humano normal. Contudo, construímos escolas com o propósito de ensinar
as pessoas a ler e escrever. Nenhuma criança aprende a ler sem que seja
ensinada num contexto social criado artificialmente. As instituições sociais
para aprender a ler e escrever são criações de uma sociedade complexa.
A autoridade e a centralidade dos textos são também valores adquiridos.
Ensinamos a nossas crianças que os textos são importantes. Também ensi­
namos a nossas crianças quais textos são importantes, até canônicos. O
letramento certamente foi um valor central nas culturas ocidentais, mas a
ascendência da escrita fem uma história longa e variada. A transição do esta­
do oral para nosso mundo escrito foi algo monumental. Devemos ter cons­
ciência disso ao testemimhar o processo da própria textualização da Bíblia.
Usualmente discutimos a escrita do ponto de vista dos letrados'. To­
davia, a escrita antiga era controlada pelo rei e pelos sacerdotes. Muito
poucas pessoas eram letradas. Estima-se que apenas um por cento das pes­
soas no antigo Egito e na Mesopotâmia eram letradas. Será importante
também compreender como os üetrados viam a escrita, uma vez que a so­
ciedade israelita era amplamente não letrada. Faço aqui uma distinção entre
não-letrado e iletrado. N ão letrado denota as pessoas que pertencem a so­
ciedades nas quais a escrita é desconhecida ou restrita, como no antigo
Oriente Médio. Iletrado, em contraposição, é um termo pejorativo usado nas
sociedades que têm letramento difundido. Como discuto posteriormente
(capítulo 6], o letramento disseminado não se desenvolve no antigo Israel

1. Ver Bengt Holbek, What the Illiterate Tliink of Writing, in Literacy and Societ
(ed. K. Schousboe e M.TroUe-Larsen], Copenhague, Akademisk Forlag, 1989, 183-196.

42
o podtT numinoso Ja escrita

antes do século VII a.C. Consequentemente, os antigos textos israelitas


devem refletir (e de fato refletem) aspectos do que os não letrados pensam
da escrita. Os não letrados tinham noções mágicas a respeito da escrita que
eram um reflexo da crença de que a escrita era o domínio do divino.

O caráter divino da escrita antiga

Nas sociedades antigas, a escrita era um conhecimento reservado das


ehtes políticas e religiosas. A princípio, a escrita no antigo Israel refletia esse
papel restrito típico dentro do palácio e do templo. N a antiga Mesopotâmia,
escrever apropriadamente era domínio da deusa Nisaba [às vezes chamada
de Nidaba), a divindade pessoal dos escribas e de sua academia. No primei­
ro milênio, esse papel foi transferido para o deus Nabu, cujos emblemas
eram o estilo e a tábua. Nabu era quase desconhecido antes de 1000 a.C..
A partir de um período já um tanto tardio no segundo milênio antes de
Cristo, Nabu é descrito como o filho mais velho do deus Marduc, que era
a divindade padroeira da cidade da Babilônia e o sumo deus dos babilônios.
Nabu era muito estimado pelos babilônios e assírios e, mais tarde, pelos
persas. Marduc era o grande rei, e Nabu era seu prestimoso esciiba, o servo
do grande rei que mantinha o registro do conselho celestial e guardava as
Tábuas do Destino, que eram conhecidas por meio do grande épico mesopo-
tâmico da criação, Enuma Elish. De acordo com a narrativa, Marduc der­
rotou a malvada Tiamat e seu consorte Kingu e se tomou o rei dos deuses.
Em virtude dessa vitória, Marduc obteve o controle das Tábuas do Destino,
nas quais estavam inscritas as funções da ordem moral, social e poUtica^.
Essas Tábuas foram entregues a Nabu, o secretário-geral do conselho divi­
no. Essa posição ascendente de Nabu na corte assíria e babilônia indubita­
velmente espelhou a crescente importância dos escribas na corte real.
O deus Nabu [ou, como é chamado em hebraico, Nebo) era sem dú­
vida conhecido por aqueles que redigiram a Bíbha. Ele havia se tomado
muito proeminente no período neobabilônico e continuou a ser reveren­
ciado no período persa. Ele seria bem conhecido pelos judeus que viviam

2. Ver J. Black e A. Green (eds.), Gods, Demons, and Symbols ofAncient Mesopotamia
An Illustrated Dictionary, Austín, University of Texas Press, 1992.

43
Como a Bíhlía tnrnoii-sc um liv

na Babilônia após o exilio. Nabu é de fato mencionado em Isaías 46,1, mas


é o Nebo geográfico, tmi local na região de Moabe, que aparece mais fre­
quentemente na literatura bíblica. O Nebo bíblico é mais conhecido como
o lugar onde Moisés ascendeu ao céu no fim de sua vida (Dt 32,49). Talvez
não seja uma coincidência o fato de que Moisés tenha ascendido ao céu do
alto do monte Nebo, uma montanha aparentemente dedicada a um deus
dos escribas. Contudo, não importa quão tentadora possa parecer essa asso­
ciação de Moisés, do Monte Nebo e do deus Nabu, não há elaboração dessa
provocativa conexão, seja na literatura bíblica seja na tradição posterior.
Acrescentando ainda mais mistério à história de Moisés e do Monte Nebo,
outros textos bíbhcos chamam essa montanha de Pisga (Dt 3,27; 34,1).
Talvez esse nome refletisse sensibilidades ulteriores, tentando justamente
evitar tal associação entre Moisés e o deus mesopotâmico dos escribas.
Já no século X a.C., os escribas israelitas exibem um conhecimento
das práticas dos escribas egípcios. Refletindo essa influência, os israelitas
tomaram emprestados, por exemplo, os numerais hieráticos egípcios para
seus textos administrativos. Consequentemente, esses escribas hebraicos
provavelmente estavam cientes dos conceitos rehgiosos dos egípcios acerca
da escrita. O deus egípcio da escrita era Tot^, e um dos epítetos de Tot é
“deus dos hieróglifos” (a palavra “hieróglifo” significa “escrita sagrada”). Para
os egípcios, o caráter sagrado da escrita é sua própria essência. Tot era não
só o deus da escrita e dos escribas, mas também o deus da mágica. Ele é
descrito como “excelente na mágica”. Foi o deus Tot quem revelou aos
seres humanos os segredos das artes da escrita.
O papel proeminente da escrita na magia egípcia pode ser visto em
diversos textos. Por exemplo, uma fórmula mágica contida nos Textos dos
Sarcófagos instrui o leitor da seguinte maneira:
Escreva o nome em tinta de mirra em dois ovos machos. Fixando o olhar
num deles, limpe-se completamente; em segmda, lamba o nome até apagá-lo,
quebre o ovo e jogue-o fora. Segure o outro ovo em sua mão direita parcial­
mente aberta e mostre-o ao sol no ocaso [...]. Recite então a fórmula sete
vezes, quebre o ovo, abrindo-o, e sorva seu conteúdo.^

3. Sobre a escrita egípcia como mágica e sobre o deus Tot, ver R. Ritner, TheMechanics
ofAndent Egyptian M a^ al Practice, Chicago, Oriental Institute, 1993,35-56.
4. De R. Ritner, The Mechanics ofAncient Egyptian M a^ al Practice, 100.

44
ü poder niiminoso da eserila

Uma parte crucial desse encantamento é o poder mágico da própria


escrita. Os Textos das Pirâmides do Egito antigo do terceiro milênio antes
de Cristo refletem a crença de que a escrita efetivamente ganhava vida. Esses
encantamentos e os rituais mágicos usam a “escrita mutilada”, ou seja,
signos hieróglifos escritos de modo incompleto. O uso dessa escrita defeituo­
sa impedia que a própria escrita ganhasse vida, pondo assim em perigo tanto
os vivos como os mortos^. Um vestígio da noção do poder mágico da es­
crita hieroglífica é visto no moderno costume popular de usar pó raspado
da escrita nas paredes dos templos antigos no preparo de poções curativas.

A escrita ritual

Os Textos de Execração egípcios estão en­


tre os mais antigos exemplos do poder numi-
noso da escrita^. Os Textos de Execração são
maldições dirigidas contra pessoas ou cidades.
O poder da maldição é ritualizado pela escrita
das palavras ou do nome da pessoa amaldiçoada,
com frequência sobre uma estatueta daquele
que é amaldiçoado (ver figura 2.1). Essas listas
de nomes também podiam ser escritas em potes
ou tigelas. O efeito mágico não está na própria
escrita, mas na destruição ritual da estatueta ou
do pote que contém o texto escrito. A estatueta
ilustrada na figura 2.1, por exemplo, foi quebrada
como parte do ritual [e não em resultado dos
caprichos do tem po). Esses Textos de Execração
são, essencialmente, a contrapartida egípcia de
um boneco vodu. O boneco egípcio era des­
truído num ritual enquanto as maldições eram Figura 2.1.
recitadas sobre ele. Texto de Execração egípcio

5. Ver E. Hornung, The Ancient Egyptian Books of the Afterlife [traduzido do alemão
por D. Lorton], Ithaca, Comell University Press, 1999, 4-5.
6. Ver R. Ritner, The Mechanics ofAnríent Egyptian Magical Practice, 136-153.

45
Como a Bíblia tornou-so um livro

O USO egípcio ritual da escrita tem um bom paralelo na lei do marido


ciumento na Bíblia. No ritual descrito em Números 5,15-30, um sacer­
dote traz a esposa acusada diante do Senhor e então prepara uma poção
cujo ingrediente-chave é a escrita;
Então o sacerdote porá por escrito essas imprecações e as dissolverá na água
de amargura. Fará a mulher beber da água de amargura que traz a maldição;
esta água que traz a maldição a penetrará, para amargura. [...] depois, o
sacerdote fará a mulher beber dessa água [Nm 5,23-24.26).
O momento crucial desse ritual do marido ciumento é quando o sacer­
dote escreve a maldição, provavelmente num fragmento de cerâmica (conhe­
cido como óstraco), e em seguida lava na água da amargura o que foi escrito.
A escrita confere à água uma propriedade mágica. A água mágica pode ago­
ra discernir se o marido ciumento está justificado em sua acusação. O ritual
atesta o poder e a magia das palavras escritas. As similaridades entre esse
ritual e os rituais egípcios sugerem que as noções acerca da escrita man­
tidas pelos antigos israelitas eram partilhadas com seus vizinhos do sul.

O nome escrito '

Supunha-se que o nome de uma pessoa continha parte da própria


essência daquela pessoa. O nome do patriarca Abrão (que significava “pai
elevado”) foi alterado por Deus para Abraão (“pai das multidões”) para assi­
nalar o nascimento da criança que tornaria Abraão o pai de muitos povos
(Gn 17,5). Modificando-se o nome de alguém, poder-se-ia efetivamente
manipular o destino daquela pessoa (ver, por exemplo, Gn 35,18). A etimo­
logia de um nome também continha algo da pessoa que portava aquele
nome. As etimologias dos nomes pessoais são aspectos básicos da literatura
folclórica da Bíblia. As histórias do patriarca biblico Jacó (cujo nome signi­
fica "enganador”) mostram Jacó enganando seu irmão Esaú e seu próprio
pai. A guinada na vida de Jacó é narrada num estranho episódio no qual ele
luta com um homem não identificado — talvez uma aparição do divino —
e recebe um novo nome:

Jacó ficou sozinho. Um homem rolou com ele no pó até o romper da aurora.
Ele viu que não tinha condições de vencê-lo, e o homem atingiu Jacó na curva

46
o puder numinuso d;i escrita

do fêmur, que se deslocou enquanto rolava com ele no pó. Ele lhe disse: “Dei­
xa-me, pois a aurora despontou". “Não te deixarei”, respondeu Jacó, “antes que
me tenhas abençoado”. Ele lhe disse: "Qual é o teu nome?” “Jacó”, respondeu
ele. Ele prosseguiu: "Não serás mais chamado Jacó, mas Israel, pois lutaste com
Deus e com os homens e venceste” (Gn 32,25-29).

O novo nome de Jacó, Israel, capta sua essência como um patriarca do


povo Israel. Seu novo nome é explicado por uma pseudoetimologia que
conclui esse conto folclórico. Ou seja, a etimologia bíblica sugere que “Israel”
significa “lutar ou brigar” [da palavra hebraica Sara) contra Deus (El). É mais
provável que signifique “Deus luta” ou “Deus prevalece”.
A importância do nome é revelada por outra etimologia folclórica: a
história da nominação de Moisés. O relato bíblico do nascimento de Moisés
no capítulo 2 do Êxodo sugere que Moisés [ou Moshe em hebraico) é no-
minado assim porque a filha do Faraó retirou-o — “moshed” — das águas:
“O menino cresceu e ela, então, o levou para a filha de Faraó. Ele se tomou
um filho para ela, que lhe deu o nome de Moisés, pois dizia: ‘Eu o tirei
das águas’”. No entanto, o nome Moisés deriva-se de uma palavra conhecida
usuahnente transcrita para o inglês como — masses ou — moses. A palavra
egípcia significa “nascido, gerado”; por conseguinte, o nome do famoso
faraó egípcio Ramsés significa “gerado pelo deus Rá”, e o nome do faraó
Tutmosis significa “gerado pelo deus Tot”. “Moisés” era um nome — ou
parte de um nome — muito comum no Egito no fim do segundo milênio
antes de Cristo. O nome de Moisés, por conseguinte, significaria “gerado
por X ” — sendo “X ” o nome de um deus, talvez YHWH ou El, ou talvez
originalmente um deus egípcio. No entanto, a narrativa bíblica dá a Moisés
uma nova etimologia que capta parte da essência da vida de Moisés.
O ato de escrever um nome podería capturar sua essência humana.
Isso fazia parte da ideia por trás dos textos egípcios. Escrever podería ter
um poder ritual mesmo quando os seres humanos escrevem nomes numa
lista. Assim como em algumas culturas produzir uma imagem ou um re­
trato poderia capturar a essência da pessoa [que poderia ser então magi­
camente manipulada), também no Oriente Médio [inclusive em Israel)
escrever rmi nome poderia ser um ato ritual para manipular o destino de
uma pessoa. Em resultado disso, fazer um censo — ou seja, o registro de no­
mes numa lista —- chapinhava no divino. Fazer uma lista de nomes podia
ser um ato perigoso, pois poderia ter consequências desastrosas para aqueles

47
Como a Bíblia tornou-se um livro

nomeados na lista. Em Êxodo 30,11-16, Deus descreve o delicado proce­


dimento para fazer um censo:

O Senhor falou a Moisés dizendo: “Ao registrares o conjunto dos filhos de


Israel sujeitos ao recenseamento, cada qual dará ao Senhor o resgate de sua
vida, na hora de seu recenseamento. Assim nenhum flagelo os atingirá por
ocasião do recenseamento”. Todo homem que for recenseado dará meio sido,
conforme o sido do santuário, que vale vinte guerás: meio sido como trihuto
para o Senhor. Todo homem que for recenseado, de vinte anos para cima,
pagará o trihuto do Senhor. Para pagar esse tributo do Senhor em resgate de
suas vidas, os ricos não pagarão mais nem os pobres pagarão menos de meio
sido. Receberás dos filhos de Israel o dinheiro do resgate e o destinarás ao ser­
viço da tenda do encontro. Para os filhos de Israel isso será, diante do Senhor,
um memorial do resgate de vossas vidas.

A escrita de nomes em uma Esta tem de ser compensada por uma ofe­
renda para prevenir uma praga. A oferenda de reparação funciona como
um lembrete do resgate que é dado pelas próprias vidas daqueles nomeados.
O Livro dos Números começa com um censo. Deus ordena a Moisés;
“Faça um censo de todá a congregação de Israel [... ] todos os homens de
vinte anos ou mais” (Nm 1,2}. Há vários aspectos estranhos nesse censo.
O mais óbvio é o grande número de pessoas registradas. Segundo o capi­
tulo 1 do Livro dos Números (Nm 1,46}, havia 603.550 homens com vinte
anos ou mais, o que implicaria que haveria bem mais que dois milhões de
pessoas vagando no ermo. Obviamente, há algo de errado com esses núme­
ros. Pode ser que tenha ocorrido alguma deturpação no processo de edi­
ção, mas isso também pode ter alguma relação com antigos tabus concer­
nentes ao processo de inscrever nomes numa lista. Os descendentes da
tribo de Levi [isto é, aqueles da mesma tribo de Moisés} foram excluídos
desse censo. A explicação dada foi a de que os levitas são indicados para ser­
vir no tabemáculo e, por conseguinte, não devem ser inscritos (Nm 1,47-51}.
Isso, porém, dificilmente é uma boa explicação. A menos, é claro, que tam­
bém reconheçamos algims dos perigos inerentes do registro de nomes em
um censo. Por fim, ordena-se aos levitas que acampem “em tomo da morada
do Tabemáculo, o que evitará um desencadeamento de cólera contra a comu­
nidade dos filhos de Israel” [Nm 1,53}. Por que deveria haver cólera contra
os israelitas nesse momento? Talvez pelo fato de que se estava realizando

48
o puder numinoso da escrita

tim censo. O papel dos levitas era servir no tabemáculo, fazendo oferendas
para prevenir a cólera contra aqueles registrados no censo.
Uma vez que tenhamos compreendido a gravidade da inscrição de
nomes em uma lista, podemos começar a compreender a história do recen-
seamento feito pelo rei Davi, conforme narrado no capítulo 24 do Segundo
Livro de Samuel. Ele começa da seguinte maneira: “A ira do Senhor se infla­
mou ainda contra os israehtas, e ele instigou Davi contra eles dizendo: ‘Vai,
faze o recenseamento de Israel e de Judá’”. Quando Davi pede a Joab, co­
mandante de seu exército, que realize o recenseamento, Joab protesta vee­
mente: “Mas por que meu senhor o rei deseja tal coisa?”. Joab compreende a
gravidade de tal pedido, porém Davi prevalece sobre ele. A história continua:
“Davi sentiu remorsos por ter recenseado o povo. E rezou a YHWH: ‘Pequei
gravemente fazendo isto! Apaga, ó YHWH, a culpa de teu servo, pois cometí
uma loucural’”. Qual foi o pecado de Davi? A interpretação tradicional seria
a de que Davi simplesmente não confiou em Deus, mas, como vimos, a ins­
crição dos nomes numa hsta pisa na esfera do divino. Em resultado disso,
Davi e Israel teriam de sofrer com uma peste, e setenta milhões de israehtas
morreram em virtude do fato de que seus nomes foram registrados num
censo. A praga atínge não somente Davi, que reaUzou o censo, mas também
aqueles cujos nomes foram escritos na hstas.
Essa concepção do poder numinoso da escrita de nomes certamente
perdura no judaísmo até hoje. Já nos textos bíbhcos dos períodos persa e
helenístíco testemunhamos a crescente reverência pelo nome de Deus. O
Livro das Crônicas, por exemplo, muitas vezes substitui em suas fontes
(conhecidas com base nos hvros de Samuel e dos Reis) o sagrado nome de
Deus escrito com quatro letras pelo mais genérico Ehhim (que se traduz
simplesmente por “Deus”). Nos Manuscritos do Mar Morto, vários artifícios
dos escribas indicam a relutância em escrever o nome de Deus. Às vezes,
quatro pontos substituem as quatro letras do nome de Deus. Em outros
locais, uma escrita páleo-hebraica arcaica é empregada para representar
o nome de Deus (ver a figura 2.2). Isso é uma extensão da concepção do
poder numinoso de um nome escrito.
No entanto, o conceito do poder numinoso do nome escrito teria de
decair quando a escrita se tomou mais importante para a economia do pa­
lácio. A administração do governo teria de escrever nomes em listas para
as atividades econômicas básicas. Esse conceito primitivo e sagrado da es­
crita que é especialmente associado com os sacerdotes e o templo está numa

49
Comn a Biblia tornou-se um livro

tensão fundamental com a necessidade do Estado de registrar operações


básicas de uma economia complexa. É preciso fazer listas de provisões.
E preciso dar recibos para os impostos e os bens.

Ví<im n a jtfi i i f m W iiw v ® *»

Figura 2.2. Escrita especial do nome de Deus num pergaminho encontrado


entre os Manuscritos do Mar Morto

A escrita de Deus

A natureza numinosa da escrita alcança seu ápice com as duas tábuas


dadas a Moisés no Monte Sinai. A Bíblia descreve tábuas de pedra inscritas
pelo próprio dedo de Deus que foram recebidas por Moisés no Monte Sinai
[Ex 24,12; 31,18]. Embora o conteúdo dessas tábuas seja um mistério [que
procuraremos desvendar adiante), as propriedades mágicas dessas tábuas estão
claras. Depois que as tábuas são guardadas na Arca da Aliança, a arca se toma
um objeto perigoso. Por exemplo, tocá-la inadvertidamente resulta em morte
instantânea (2Sm 6,6-7). Depois que as tábuas são postas na arca, esta é
posta em seu lugar no tabemáculo (e, depois, no Templo de Jemsalém). Quan­
do a arca entra no tabemáculo ou no templo, a presença de Deus desce
àquele local [Ex 40,20-21, 34-35; IRs 8,6-11). Qual a relação entre a pre­
sença de Deus e o fato de que a arca contenha as tábuas? Há algo de especial
nos escritos especiais da arca que invoque a própria presença de Deus?
A história que cerca o anúncio das tábuas divinamente inscritas é
uma das mais notáveis da Bíblia. Ela tem inicio após a conclusão da reve­
lação inicial da Lei no Monte Sinai [Ex 19,3-24,4). Depois da revelação
inicial, Moisés aparentemente faz outra viagem ao alto da Montanha Sa­
grada. A história começa em Êxodo 24,9:

Então subiu Moisés, acompanhado por Aarão, Nadab e Abiú e setenta dentre
os anciãos de Israel. E eles viram o Deus de Israel, sob cujos pés havia como

50
o poder nurninoMí da escrita

que um pavimento de safira, semelhante ao próprio céu na sua pureza. Ele não
estendeu a mão contra os notáveis dos filhos de Israel. Contemplaram, pois, a
Deus, e a seguir comeram e beberam. Disse então YHWH a Moisés: “Sobe para
junto de mim, sobre a montanha. E permanece ali até que eu te dê as tábuas
de pedra — a Lei e o Mandamento — que escrevi para lhes ensinares”.
A mágica dessas tábuas de pedra pode estar relacionada à natureza in-
comum de sua produção. Essa é uma das poucas passagens da Bíblia em
que se declara explicitamente que as pessoas efetivamente veem o Deus de
Israel. O povo faz uma refeição divina no Monte Sinai. Em seguida, Moisés
sobe (mais além?), e o próprio Deus faz a inscrição nas tábuas de pedra.
As tábuas funcionam como um símbolo, não como um texto literário
para ser lido e consultado. Depois que as tábuas são guardadas na arca
(Ex 25,21-22; 40,20), a arca adquire seu poder numinoso. Isso se deveria
— ao menos em parte — à escrita divina? A arca é colocada no santuário,
e a presença de Deus (em hebraico, kavod) agora paira sobre a arca, de onde
ele fala a Moisés e os sumos sacerdotes. Faz-se um véu para resguardar
da visão a presença divina. Deve-se carregar a arca utilizando barras para
evitar tocá-la involuntariamente (como em 2Sm 6). Portanto, a poderosa
e perigosa escrita está lacrada na arca e encoberta.
O celestial “livro da vida” é outro exemplo da escrita divina. Há várias
referências na literatura bíblica a um livro divino no qual estão escritos os
nomes de toda a humanidade. Apagar nomes do livro extingue a vida. Quan­
do Deus ameaça aniquilar Israel porque seu povo pecou com o Bezerro de
Ouro, Moisés suplica por seu povo: “Agora, pois, vê se podes perdoar-lhes
o pecado. Se não, apaga-me do livro que escreveste” (Ex 32,32). O “livro da
vida” aparentemente deriva seu poder da escrita dos nomes, ou, no caso de
Êxodo 32,32, da eliminação de um nome. Esse conceito de um hvro celes­
tial persiste ainda num período muito posterior. De acordo com o hvro de
Daniel, uma figura celestial chamada de “um velho em dias”, um Ancião,
julgará o mundo tendo diante de si um pergaminho: “O tribunal entrou em
julgamento e os hvros foram abertos” (Dn 7,10). Esse pergaminho especial
assinala o povo de Deus, segundo Daniel 12,1:
Naquele tempo surgirá Miguel, o grande príncipe, o protetor dos filhos do
teu povo. Será um tempo de angústia qual não houve desde que os povos
existem, até aquele momento. E naquele tempo o teu povo será salvo, todo
aquele que estiver inscrito no Livro.

51
Como a Bíblia tornou-se um livro

Esse livro está sem dúvida relacionado com o “livro da vida” que figura
no Apocalipse. No Juízo Final, “se alguém não foi encontrado inscrito no
livro da vida, foi jogado no lago de fogo”. Entretanto, “somente os que
estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” têm sua entrada permitida no
paraíso (Ap 20,15; 21,27). O destino final de cada pessoa depende de
que seu nome seja escrito ou apagado no livro divino.
Vestígios de antigas noções acerca da escrita persistem na época mo­
derna. Perdura uma concepção de que os nomes são significativos, de que
eles podem comunicar algo sobre quem é tuna pessoa ou sobre quem
desejamos que uma pessoa seja. Gostamos de escrever nossos nomes em
determinados lugares. Deixamos uma memória nossa ao entalhar nosso
nome nvuna árvore ou numa rocha. Há vestígios da importância dos nomes
também nos rituais religiosos. Por conseguinte, temos nomes especiais
para marcar nossa iniciação em grupos religiosos. Temos nomes hebraicos
ou nomes cristãos. Algumas pessoas alteram seus nomes para refletir uma
transição em suas vidas. Até hoje, as sinagogas colocam um pergaminho da
Torá numa “arca” e celebram o aparecimento do pergaminho no serviço,
recordando assim uma poderosa imagem do Êxodo. A Bíblia é situada em
um pedestal e lida a partir de um púlpito elevado. Nós reverenciamos a
palavra escrita. '

52
uem escrevia na antiguidade? Por que as pessoas escreviam? As origens
e a difusão da escrita seguiram-se à ascensão das nações e dos impérios na
antiguidade. No Oriente Médio^ a escrita não floresceu em nenhum lugar
sem os auspicios do Estado. A escrita tornou-se parte da autodefinição das
antigas civilizações no Egito e na Mesopotâmia. Ela se tomou central na
administração e na alta cultura, ainda que estivesse essencialmente restrita
à classe emergente dos escribas. Ela era um elemento central dos monu­
mentos públicos, ainda que o público fosse essencialmente não letrado. A
escrita projetava o poder real nos fóruns públicos. O propósito dos monu­
mentos públicos que ostentavam escritos não era que fossem lidos, mas
exibir o poder e a autoridade reais. Mesmo os menores pretensos reis do
antigo Oriente Médio queriam ter seus próprios escribas reais. O floresci­
mento da escrita e da literatura no antigo Oriente Médio não pode ser com­
preendido sem o contexto do Estado.
Este capitulo delineia alguns dos importantes aspectos do desenvolvi­
mento da escrita tanto no Oriente Médio de modo geral como especifica­
mente em Israel. Na antiguidade, a escrita era complexa e cara. A escrita não
era uma atividade trivial. Ela requeria apoio institucional. Escrever era
principalmente uma atividade do Estado. A invenção do alfabeto foi um dos
desenvolvimentos cruciais que levaram à difusão da escrita fora das institui-

53
Como a Biblia tornou-se um 1í\ to

ções financiadas pelo Estado. Embora o alfabeto já houvesse sido inventado


no inído do segundo milênio antes de Cristo, isso não resultou imediatamente
ntxma onda de letramento por todo o mundo antigo. O florescimento da es­
crita na antiguidade, mesmo da escrita alfabética, exigiría o apoio do Estado
e condições políticas e econômicas favoráveis.

O uso antigo da escrita

Não apenas as origens, mas também a difusão da escrita estão vincula­


das ao desenvolvimento dos Estados complexos'. A escrita facilitou uma
economia urbana sofisticada na qual a mercadoria podia ser identificada,
tipos e quantidades de bens podiam ser registrados e podiam-se acumular
conhecimentos. A escrita parece ter se desenvolvido primeiramente na
Mesopotâmia, durante o quarto milênio, junto com as práticas contábeis das
cidades-estado, provavelmente para atender às necessidades administrativas
e econômicas das cidades mesopotâmicas^. Os escribas inscreviam cifras e
pictogramas nas tábuas de argila mole para manter um registro das transa­
ções. Essas marcas desenvolveram-se em métodos mais eficientes de escrita
que indicavam não apenas os objetos e animais trocados numa transação,
mas também palavras inteiras do idioma no qual a transação se deu. Por fim,
essas palavras também se tomaram símbolos para sílabas nos idiomas, e,
desse modo, o poder e a flexibihdade da linguagem escrita cresceram. Por
exemplo, o signo cunerforme sumérío para “céu” (AN) tinha oríginalmente
a forma de uma estrela e, ao longo do tempo, tomou-se cada vez mais esti­
lizado (ver figura 3.1). Quando o sistema foi adotado na Acádia, o signo foi
utilizado para representar o deus do céu. Anu. Por fim, o signo se tomou tão

1.Ver J. Goody, The Logix: ofWritingand the Organization ofSociety, Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1986, 53-56.
2. Ver, por exemplo, H. Nissen, The Emergence of Writing in the Ancient Near East,
Interdisciplinary Science Reviews 10 (1985] 349-361; P. Michalowski, Early Mesopotamian
Communicative Systems: Art, Literature, and Writing, in InvestigatingArtistic Environments
in the Ancient Near East (ed. A. Gunter), Washington, DC, Smithsonian Institution Press,
1990,53-69; M. Larsen, WhatThey Wrote on Clay, in Literacy and Sodety (ed. K. Schousboe
e M. Trolle-Larsen] Copenhague, Akademisk Forlag, 1989, 121-148.

54
A escrita e o Eslado

estilizado que mal é reconhecido como um pictograma. Para tomar o sistema


mais flexível, esses signos também começaram a funcionar como sílabas.
No caso dessa “estrela”, ela também podia representar a sílaba “íf’ ou “el”. O uso
dos signos como sílabas permitiu que o sistema de escrita cuneiforme co­
municasse palavras abstratas e idéias muito mais complexas.

Figura 3.1. O desenvolvimento do símbolo cuneifonne AN

Os antigos sistemas de escritas, como a escrita cuneiforme e hieroglí­


fica, eram muito intrincados. Em qualquer época dada, os escribas cuneifor-
mes empregavam cerca de seiscentos signos ou mais, muitos dos quais po­
diam representar palavras, conceitos gramaticais (por exemplo, plural) ou
semânticos (por exemplo, “homem”, “cidade”) e sílabas. A escrita hieroglí­
fica egípcia também tinha várias centenas de signos, a maioria dos quais eram
usados para transcrever palavras inteiras (ideogramas) ou grupos de somen­
te duas ou três consoantes (a escrita egípcia gerahnente não indicava as vo­
gais). Os egípcios também empregavam signos chamados de determinativos
para classificar as palavras e para distinguir homógrafos, Além disso, a es­
crita egípcia utilizava cerca de vinte signos “alfabéticos” para representar con­
soantes isoladamente; tais signos eram usados inicialmente para transcre­
ver nomes estrangeiros. Esses sistemas de escrita, complexos a tal ponto, em
grande medida restringiram o letramento aos escribas profissionais. Embora
a escrita desempenhasse um papel significativo na exibição artístiça no Egito,
o letramento se restringia ao cerne da elite e aos reis. A instrução dos escri­
bas era formidável, como reflete um antigo hino mesopotâmico: “Desde que
eu era uma criança, [eu estava) na escola dos escribas”^. Tanto no Egito como
na Mesopotâmia, o letramento oferecia poucos benefícios para aqueles

3. Ver G. R. Castellino, Two Sul^ Hymns (Roma, 1972), hino B, linha 11; ver A. W.
Sjõberg, The Old Babylonian Eduba, in Sumerolo^cal Studies in Honor ofThorkild Jacobsen,
Chicago, Oriental Institute, 1975, 159-179 (Assyriological Studies, 20).

55
Como a Biblia tornou-sí- um Iívto

que não participavam da administração, e as barreiras para sua aqtxisição eram


consideráveis. Além disso, ser iletrado não representava um estigma social.
Por sua própria natureza, a escrita era muito restritiva no Egito e na
Mesopotâmia. Os sistemas de escrita eram tão difíceis e complicados que
somente os escribas profissionais que haviam estudado em escolas especiais
controladas pelo palácio ou pelo templo podiam aprender a ler e escrever.
A despesa envolvida no letramento na antiguidade era considerável e só
podia ser provida pelas elites patrocinadas pelos grupos governantes. Os
escribas não eram independentes, eles atendiam às decisões dos grupos
dominantes que os produziram, proviam sua subsistência e controlavam seu
acesso ao público. Por conseguinte, o papel da escrita era limitado na anti­
guidade. Embora tenha sido recuperada uma grande quantidade de textos
em escrita cuneifoime e hieroglífica da Mesopotâmia e do Egito, a maior
parte desses textos trata de assuntos burocráticos, econômicos, adminis­
trativos ou religiosos'*. Em sua maior parte, os textos antigos consistem
em registros, com poucas peças literárias. Embora a literatura possa ter se
originado muito antes, foi somente no Período Babilônio Antigo (entre 2000
e 1600 a.C.) que muitos desses textos foram copiados nas escolas de escri­
bas. As principais coletâneas de obras hterárias efetivamente datam das bi­
bliotecas assírias do piirrieiro müênio. A famosa biblioteca de Assurbanipal
(ca, 650 a.C.}, em particular, reúne uma variedade de tradições literárias
mesopotâmicas, incluindo textos que tratam de rituais, mitos, matemática,
astronomia e outros assuntos^. Em sua maior parte, porém, a escrita cumpria
um papel administrativo e burocrático. A escrita preservava os registros da
corte e do templo; sua principal função não era preservar a herança cultural
da antigmdade.
A escrita era também uma demonstração do poder real. A escrita ador­
nava monumentos púbfícos, ainda que ninguém pudesse lê-la. Por essa
razão, os monumentos públicos que exibem escrita cuneiforme também
incluíam arte simbóhca que comimicava o conteúdo da escrita às massas.
Por exemplo, o famoso Código de Hamurabi (um dos primeiros códigos

4. Ver o resumo de J. Baines, Literacy, in ABD, vol. 4,333-337.


5. Ver S. Parpola, The Royal Archives of Nineveh, in Cuneiform Archives and Libra-
ries: Papers Read at the 30e Rencontre Assyriologique Internationale, Leiden, 4-8 July,
1983 Ced. K. R. Veenhof), Istambul, 1986,223-236.

56
A escrita e o Estado

legais da história humana, datado do início do segundo milênio antes de


Cristo) incluía, de modo proeminente, uma imagem visual da dádiva divina
da lei para o rei, bem como o texto escrito do código legal. Nos hieróghfos
egípcios, os aspectos artísticos e visuais eram efetivamente centrais para
o símbolo escrito.

A invenção do alfabeto

Um momento definidor na história da escrita foi a invenção do alfabe­


to. A escrita é usualmente analisada em relação com a fala, mas a escrita e
a fala não estão necessariamente relacionadas. No caso dos antigos hierógli­
fos e da escrita cuneiforme, a escrita era apenas um auxího mnemônico. Os
antigos sistemas de escrita eram sistemas semióticos independentes. Eles
tinham apenas uma relação distante com a fala. Mas a invenção do alfabeto
ahnhou o sistema semiótico da escrita com a fala e, assim, tornou o le-
tramento mais acessível®. O alfabeto tinha o poder de democratizar a escri­
ta e tomar possível que o letramento se difundisse para além das classes dos
escribas. Essa inovação também ehminou o mistério da escrita. Talvez não
seja surpresa que as primeiras inscrições alfabéticas sejam essencialmente
grafitos^. Embora a escrita alfabética tenha tomado muito mais fácü que
uma pessoa aprendesse a ler e escrever, mais de um milênio transcorreu
antes que encontremos evidências de que o letramento de fato se difundisse
significativamente fora da classe dos escribas. Ao contrário dó que foi suge­
rido pelo antropólogo Jack Goody e pelo estudioso clássico Eric Havelock,
a invenção do alfabeto não resultou automaticamente na difusão do letra­
mento, na ascensão da democracia ou na emergência do pensamento critico.
Isso não se deve às imperfeições dos primeiros alfabetos, mas ao fato de
que os desenvolvimentos sociais eram demasiadamente complexos para

6. Teóricos corretamente criticam o clichê de que a escrita representa a fala, particu­


larmente seguindo a obra de J. Derrida, G ram atob^ [trad. Renato Janine Ribeiro e Mí­
riam Chnaiderman), São Paulo, Perspectiva, 1973. Contudo, a invenção do alfabeto clara­
mente relacionava a semiótica da escrita com a fala, ainda que não fossem igualados.
7. Ver J. Naveh, Earfy History of the Alphabet: An Introduction to West Semitic Epi-
graphy and Palaeography, 2“ ed., Jerusalém, Magnes, 1987, 23-28.

57
Como u Bíblia lornou-.v: um livra

que pudessem ser ocasionados simplesmente pela invenção do alfabeto.


Dito isso, também não devemos subestimar o potencial do alfabeto como
uma tecnologia que poderia transformar a sociedade.
Os primeiros textos alfabéticos eram muito limitados e sugerem que
a escrita ainda tinha um papel restrito na sociedade. As descobertas em
Wadi el-Hol no deserto oriental do Egito possibilitaram aos estudiosos datar
os primeiros textos alfabéticos no início do segundo milênio antes de Cristo
[ver a figura 3.2). No entanto, as origens da escrita alfabética remontam até
a épocas anteriores; sinais consonantais haviam sido usados durante séculos
no Egito para transcrever nomes estrangeiros. Ainda que as inscrições de
Wadi el-Hol ainda não tenham sido completamente decifradas, elas confir­
mam que a invenção do alfabeto surgiu com base no sistema das consoan­
tes egípcias. Embora na escrita egípcia essas consoantes não fossem usadas
sistematicamente, da maneira como seriam na escrita alfabética, elas ofere­
ciam um sistema que podia ser adaptado para a escrita alfabética. Evidências
adicionais dos primórdios da escrita alfabética provêm de povos que fala­
vam um antigo idioma semítico ocidental em Canaã e Sinai durante os
séculos XVI e X V a.C. Num local hoje conhecido como Serabit el-Khadim,
foram descobertas quarenta e cinco inscrições “protossinaíticas” entalhadas

Figura 3.2. Primeira escrita alfabética conhecida em Wadi el-Hol, Egito


[fotografia de Bruce Zuckerman e Marilyn Lundberg, West Semitic Research;
cortesia do Departamento de Antiguidades, Egito)

58
A escrita e o Estado

em pedra. Elas ainda não foram completamente decifradas, mas os sinais


consistem em sistema alfabético simplificado, relacionado ao alfabeto de
Wadi el-Hol. A inscrição mais conhecida está numa estátua de basalto:
“Ibít”, e significa “à Senhora”. Em Guézer, Laquis e Siquém também foram
encontradas inscrições alfabéticas datadas do final do segundo milênio antes
de Cristo. Até onde sabemos, as letras são desenhadas de acordo com um
princípio acrofônico; assim, por exemplo, a consoante m é uma linha den­
tada que representa ondas na água e corresponde à palavra que começa
com o som /m / nos idiomas semíticos ocidentais (mayim, “água”). O antigo
alfabeto parece ter sido concebido como uma tentativa de representar
todos os sons consonantais (fonemas) com uma letra correspondente (grafe-
ma), sistema esse que posteriormente viria a ser simplificado e adaptado.
Até o momento, o primeiro uso extensivo do alfabeto de que se tem
conhecimento ocorreu na cidade de Ugarit durante o final do segundo mi­
lênio antes de Cristo. Os textos foram compostos em escrita alfabética cunei-
forme com Uinta letras, e a hngua foi chamada de ugarítico, tomando o nome
da cidade onde a maior parte dos textos foi encontrada. O arquivo esca­
vado inclui cartas enviadas a Ugarit a partir de outras cidades em Canaã,
o que implica que tais cidades também utilizavam esse sistema de escrita.
Com efeito, tábuas entalhadas em uma escrita alfabética cuneiforme foram
descobertas em escavações em algumas poucas cidades cananeias. Por con­
seguinte, essa escrita alfabética aparentemente foi usada de modo muito
amplo na região da Síria Palestina durante o final do segundo müênio antes
de Cristo, embora a vasta maioria das evidências provenha de Ugarit. Além
disso, a escrita ugaritica introduz, de maneira limitada, o uso de três vogais
— a , i e u . Quase todos os textos encontrados em Ugarit estão relacionados
aos assvmtos tratados pelos escribas: textos rehgiosos, econômicos, diplo­
máticos ou administrativos dos escribas do palácio e do templo®. A escrita
ainda era amplamente restrita aos círculos dos escribas, financiados pelo
templo ou pelo Estado. Apesar das dramáticas descobertas de antigos gra­
fitos alfabéticos, a escrita era primordialmente uma ferramenta do governo,
da religião e do comércio, sendo financiada por tais instituições.

8. Uma intrigante exceção a isso é o famoso manuscrito de Marzeah, que aparentemente


trata de uma associação particular e não foi escrito por um esciiba profissional. Ver a discussão
de R. E. Fiiedman, The MRZH Tablet ffom Ugarit, VL4AÍMV 2, n“ 2 [1979-80] 187-206.

59
Como a Bíblia tornou-se um li\To

O s escribas reais

O escriba estava entre as figuras mais necessárias dos antigos governos


do Oriente Médio. (Alguém sequer poderia ter a aspiração de ser rei caso
não tivesse um escriba.) Até mesmo cidades-estado pequenas e de pouca
importância tinham escribas. Isso pode ser ilustrado com dois exemplos.
No final do segundo milênio antes de Cristo (na Idade do Bronze Tardia),
as estruturas políticas de Canaã eram constituídas por pequenas e mfimas
cidades-estado. As Cartas de Amama, um arquivo de documentos cunei-
formes escritos em sua maioria em Canaã e enviados ao faraó no Egito,
são testemunhos do controle egípcio dessa região. O governo local era con­
cedido a prefeitos que controlavam pequenas regiões e contavam com o
apoio do Egito. A despeito do caráter pequeno e diminuto desses governan­
tes, todos possuíam escribas reais. Tais escribas redigiam cartas e mantinham
registros administrativos. As Cartas de Amama foram escritas num dialeto
simplificado comum do idioma acádio utilizado por escribas do governo
em toda a região da Síria Palestina no final do segundo milênio®. Os escri­
bas do templo certamente também mantinham registros de pagamentos e
podem ter preservado algumas liturgias. No entanto, a infraestmtura dos
escribas, tanto do palácio como do templo, era muito limitada. Há poucas
razões para esperarmos que se mantivessem documentos extensos que fos­
sem além das necessidades do registro rotineiro e da correspondência diplo­
mática. A literatura desses pequenos Estados era essencialmente a literatura
tradicional usada na instrução dos escribas. O propósito da escrita não era
a criatividade literária, mas a administração governamental.
Outro exemplo de um pequeno reino com um escriba real provém do
início do século IX a.C. em Moabe (que estava situada no planalto acima
da costa oriental do Mar Morto). Moabe era um pequeno reino que havia
estado sob o domínio de Israel. De uma perspectiva arqueológica, o remo de
Moabe do início da Idade do Ferro era em grande medida uma sociedade

9. Uma tradução acessível das Cartas de Amama para o inglês encontra-se em W


Moran, The Amatna Letters, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1992. Um estudo
exaustivo do dialeto cananeu desses documentos está agora disponível; ver A. F. Rainey,
Canaanite in the Amama Tablets: A Linguistic Analysis of the Mixed Dialect Used by the
Scribes from Canaan, 4 vols., Leiden, Brill, 1996. '

60
A escrita e o Kstaulo

agropastoril. A primeira coisa que Mesá, rei dos moabitas, faz ao libertar-se
da dominação israelita é mandar redigir uma longa inscrição (mais de trinta
linhas) para comemorar a vitória. A inscrição inicia-se da seguinte maneira^®:

Eu sou Mesá, filho de Quemós, rei de Moab^ o dibonita. Meu pai reinou sobre
Moabe por trinta anos, e eu reinei depois de meu pai. Eu fiz o lugar elevado
para Quemós [a deidade nacional moabita] em Qarhoh porque ele me libertou
de todos os reis e fez com que eu tritmfasse sobre todos os meus adversários.
Omri, rei de Israel, humilhou Moabe por muitos dias porque Quemós estava
irritado com sua terra. E seu filho [o rei israelita Ahab] sucedeu-o e também
ele disse: “Humilharei Moabe”. Em meus dias ele assim disse, mas eu triunfei
sobre ele e sua casa, e Israel pereceu para semprel Omri havia ocupado a terra
de Medebá, e (Israel) habitou ali em seu tempo e metade do tempo de seu filho,
quarenta anos; Quemós habitava ali em meu tempo. E eu construí Baal-Meon,
fazendo ali mn reservatório, e construí Qiriataim...

Muitas coisas tomam-se aparentes nessa inscrição.-Em primeiro lugar,


a despeito da reduzida dimensão desse novo reino — menor que Israel ou
Judá —, o novo “rei” incumbe um escriba real de fazer essa longa inscrição.
O fato de que o pequeno reino de Moabe efetivamente tivesse um escriba
foi fonte de certa consternação. Por que o rei precisaria erigir essa grande
esteia memorial? Como um reino tão pequeno podería ter um escriba?
Para explicar como o pequeno reino moabita pôde produzir um monu­
mento inscrito tão impressionante e por que a escrita era similar ao hebraico
israelita em sua ortografia e paleografia, um estudioso até mesmo sugeriu
que o rei moabita teria utilizado um escriba israelita capturado” . Mas tal
explicação é desnecessária. Quase ninguém podia ler esse monumento, que
tinha o propósito de projetar a estatura do rei recém-ascendido, que deter-

10. Uma tradução recente e acessível acompanhada de uma discussão foi reahzada
por K. A. D. Smelik em The Context of Scrípture, vol. 2: Mmumental Scriptures from the
Bíblical World (ed. W. W. Hallo e K. L.Younger Jr.j, Leiden, Brill, 2000,137-138. Ver tam­
bém A. Lemaire, “House of David” Restored in Moabite Inscription, Bihlical Archaeohgp
Review 20, n° 3 (1994) 30-37.
11. S. Segert, Die Sprache der Moabitischen Kõnigsinschrift, Archiv Orientalni 29
(1961) 197-269.

61
Como a Riblia tornou-se um livro

minou que seu escriba monumentalizasse as vitórias [exageradas) usando


a escrita. Está claro também, com base no conteúdo das inscrições, que o
escriba real moabita estava fazendo registros administrativos, descrevendo
projetos de edificações e fronteiras e registrando tributos e espólios.
Uma inscrição, hoje famosa, datada do final do século IX é a chamada
esteia da Casa de Davi [esteia de Tel Dan]. Seus fragmentos foram encon­
trados por arqueólogos em escavações na antiga cidade de Dan, no norte
de Israel, em 1993 e 1995. A esteia foi erigida por Hazael, um rei arameu de
Damasco, após conquistar a cidade. Aparentemente, ele situou o monu­
mento na porta da cidade, de modo que ficasse à vista de todos os que
ali entrassem. As portas das cidades, no antigo Oriente Médio, eram áreas
centrais de encontro. Era ali que o rei se sentaria ao julgar casos e que os
anciãos conduziríam os assuntos políticos, econômicos e sociais. Um san­
tuário religioso representaria a divindade padroeira. E os monumentos com
inscrições, como o encontrado na cidade de Dan, serviríam de símbolo da
autoridade e do poder reais para aqueles que entrassem na cidade. A inscri­
ção de Tel Dan está fragmentada [ver a figura 3.3), mas nas peças rema­
nescentes lê-se o seguinte'^:

[conspjira contra [...] è cortou [cortou/fez um acordo?) [...] [Baraqujel meu


pai subiu [contra ele quando] ele lutava em A[bel ?] e meu pai descansou;
ele foi pará [seus ancestrais]. O rei de Israel entrara anteriormente na terra
de meu pai; [mas] Hadad fez-me rei, e Hadad foi à minha frente; [e] eu me
separei d[os] sete [...] de meu reino; e eu matei set[enta re]is que apare­
lharam mi[lhares de car]ruagens e milhares de cavaleiros. [E eu matei Jo]ram,
filho de [Acab], rei de Israel, e matei [Acaz]ias, filho de [Joram, re]i da Casa
de Davi; e eu pus [suas cidades em minas [...) as ci]dades de sua terra em
de[solação] [...] outro e para sub[jugar todas as suas cidades [...) e Jeú gov]
emou Is[rael] [...] sítio a [...].

A inscrição aparentemaite comemora uma vitória desse rei arameu sobre


os dois outros reis do antigo Israel: o reino do norte, que era conhecido

12. Ver a publicação original de A. Biran e J. Naveh, An Aramaic Stele Fragment liromT
Dan, lEJ 43 [1993] 81-98. A tradução aqui, porém, baseia-se em meu artigo: W. M. Schnie-
dewind,Tel Dan Stela; New light on Aramaic and Jehus Revolt, BASOR 302 [1996] 75-90.

62
A e!-^rita e n lisiado

Figura 3.3. Inscrição emTel Dan ("Casa de Davi”)


(fotografia de Bruce Zuckerman e Marilyn Lundberg, West Semitic Research;
cortesia da Autoridade de Antiguidades de Israel e do professor Abraham Biram)

como Israel; e o reino de Judá ao sul, que era conhecido como “Casa de
Davi”. A conquista deve ter ocorrido por volta de 841 a.C. e deve ter sido
coordenada com um golpe no reino setentrional de Israel liderado pelo
general israelita Jeú [r. 841-814 a.C ). De acordo com a tradição bibhca, Jeú
esteve envolvido no assassinato desses dois reis. A apologética bíblica da re­
volta de Jeú indica que este tinha o apoio dos profetas Elias e Eliseu e que
essa revolta foi coordenada com o rei arameu Hazael [ver IRs 19,15-18}^^.
Nessa época, a cidade de Dan passou do controle israehta para o dos arameus.
O rei Hazael erigiu então essa inscrição à porta da cidade como mostra
da nova autoridade real arameia para todos os que ali entravam. Quando

13. Ver a discussão completa em meu artigo: W. M. Schniedewind, Tel Dan Stela
New Light on Aramaic and Jehu’s Revolt.

63
Como a Bíblia tornou-se um livro

a cidade voltou ao controle israelita, algumas décadas mais tarde, os is­


raelitas destruíram a inscrição e usaram seus fragmentos na fundação de
uma nova porta para a cidade.
Embora a inscrição de Tel Dan esteja num dialeto aramaico, sua lin­
guagem e seu registro literário são de fato muito similares aos da Pedra
Moabita, bem como aos das inscrições fenícias contemporâneas. Isso não
deve causar surpresa^"*. A língua escrita não tinha uma orientação local forte
na antiguidade. Em vez disso, as escolas de escribas criavam uma uniformi­
dade artificial, até mesmo entre idiomas e dialetos diferentes. A escrita
era uma demonstração de poder, mas era também um meio de comunica­
ção internacional. Isso significa que os escribas recebiam uma instrução
ampla numa tradição pancananeia'^. Somente mais tarde, no século VIII
a.C., a ascensão do nacionalismo linguístico começaria a resultar na emer­
gência de línguas e alfabetos separados. As inscrições do século IX de
Moabe, da Fenícia e de Aram têm similaridades porque os escribas eram
instruídos numa tradição cananeia comum.
O prestígio de um rei era parcialmente expresso pelo conjunto do apa­
rato de que a realeza estava equipada. A despeito da dimensão do antigo
reino israelita, a monarquia emergente e o santuário nacional recém-fun-
dado teriam lançado mão de escribas. Os reis do Oriente Médio coleciona­
vam animais exóticos como macacos e pavões. Supõe-se que o rei Salomão
tenha organizado uma frota naval com o propósito de comercializar “ouro
e prata, marfim, macacos e pavões” (IRs 10, 22)*®. Qual era o propósito dos
macacos e pavões? Os animais exóticos eram acessórios de um verdadeiro

14. Isso foi efetivamente reconhecido pelo estudioso italiano G. Garbini. É notável,
porém, que ele não veja isso como resultado das escolas escribais panlevantinas, sugerindo,
em vez disso, que a inscrição de Dan teria de ter sido forjadal O contexto arqueológico das
escavações de 1995, contudo, destruiu completamente a controvérsia de que essa inscrição
seria uma falsificação moderna.
15. Isso é especialmente evidente nas Cartas de Amarna; ver Rainey, C anaanite in the
A m am a Tahlets. Argumentarei, em meu próximo livro sobre a história social do hebraico,
que essa tradição escribal panlevantina prossegue até o século VIII a.C.
16. Ver Y. Ikeda, Solomon’s Trade in Horses and Chariots in Its International Setting,
in Studies in the Period o f D aind and Solomon and Other Essays (ed. T. Ishida), Winona
Lake, IN, Eisenbrauns, 1982, 219-220.

64
A O b L T Í lJ • ü L s l j J l l

rei, e não se podia ser um rei sem o aparato da realeza. Similarmente, os


indivíduos que almejavam ser reis empregavam escribas da corte e manti­
nham registros. Entre esses aspirantes sem dúvida incluíam-se os primeiros
líderes israelitas.
A importância do escriba real é ilustrada no relevo real do rei ara-
maico Bar-Rakib (figura 3.4]. Bar-Rakib era o “rei” — se é que podemos
chamá-lo assim — de um pequeno reino no norte da Síria. Ele produziu
uma impressionante esteia com uma pequena inscrição em que se nomeia
rei. Essa estátua era uma exibição de sua pretensão real. O relevo está
repleto de atavios da realeza: o rei sentado no trono com seus pés sobre
um banco, a flor de lótus (ou árvore da vida?) em sua mão esquerda, a
mão direita erguida. O trono tem uma altura elevada em relação ao escriba
que se aproxima. A inscrição ao alto identifica o patrono real: “Meu senhor,
Baal de Haran • Sou Bar-Rakib, filho de Panamu”'^. A inscrição é dedicada

Figura 3.4. Escriba real diante de Bar-Rakib em seu trono (fotografia do autor)

17. A inscrição está convenientemente publicada em H. Donner e W. Rõllig,


K an aan ãische und A ram ãische Inschriften, 3 vols., Wiesbaden, Harrassowitz, 1968, § 218.

65
Como a Bíblia tornou-se um livro

à divindade local da cidade-estado de Haran no norte da Síria. O relevo


ornamenta Bar-Rakib com o aparato de um monarca assírio, tomando
emprestados motivos artísticos assírios, como a flor de lótus (em sua mão
esquerda}, o adorno de cabeça e a barba estilizada. Mas o elemento mais
importante do relevo é o escriba, que se apresenta diante de seu senhor.
Ele tem em sua mão um pergaminho e traz outro documento sob seu
braço. Ele escreve para o rei.

A escrita como uma projeção do poder do Estado

O império assírio por fim adotaria um sistema de escrita estrangeiro,


o alfabeto, e uma língua estrangeira, o aramaico, para promover seus objeti­
vos políticos e administrativos'®. A ideologia imperial assíria tentou unificar
os povos de “idiomas divergentes” num único povo com uma “língua única”.
N a inscrição cilíndrica de Dur-Sharrukin, a tarefa da unificação linguística
é atribuída ao monarca assírio Sargão (r. 722-705 a.C.}:

Povos das quatro regiões do mundo, de língua estrangeira e idioma divergente,


habitantes da montanha e da planície, todos aqueles que eram governados pela
luz dos deuses, o senhor de tudo, eu conquistei em Assur, sob 0 comando de
meu senhor, pelo poder de meu cetro. Eu os tomei uma só boca e os estabelecí
ah. Enviei assírios, inteiramente capazes de ensiná-los a temer a deus e ao rei,
como escribas e supervisores. Os deuses que habitam o céu e a terra, e aquela
cidade, ouviram favoravelmente minhas palavras e concederam-me a dádiva
eterna de construir essa cidade e envelhecer nela (Luckenbill, ARAB 2.65-66).

Os assírios tinham uma atitude linguística ativista enraizada na ideolo­


gia política. Eles tinham consciência da relação entre língua e nacionahsmo.
O programa assírio usaria um sistema de escrita estrangeiro para auxiliar a
romper o vínculo entre povo, terra e língua. O brilhantismo dessa política foi
que os assírios decidiram não utilizar sua própria língua — o acádio — para

18. Ver H. Tadmor, The Aramaization of Assyria: Aspects of Western Impact, in Me


sopotamien und seine Nachbam. Teil 2 (ed. H.-J. Nissen e J. Renger}, Berhm, Dietrich
Reimer, 1982,449-470.

66
A e>i.Titu c o Estudo

unificar o império. Em vez disso, escolheram uma língua escrita pelo mé­
todo alfabético — o aramaico —, que era mais fácil de ser dominada pelos
escribas, a fim de facÜitar a administração de seu crescente império. O uso
imperial do alfabeto, junto com o crescimento de uma economia urbana e
global, ajudaria a disseminar a escrita no Ocidente.

A escrita e a antiga cidade de Ugarit

A antiga cidade de Ugarit, locaUzada sob um morro hoje conhecido


em árabe como R as (esh-) Shamra, é uma analogia instrutiva para se com­
preender a antiga monarquia israefita. Ugarit floresceu na metade do
segundo milênio até sua destruição por volta de 1.200 a.C. A cidade con­
trolava um pequeno reino na costa norte do Mediterrâneo oriental. Esse
reino era cercado por montanhas a norte, leste e sul. Um vale a nordeste da
cidade era a passagem para os reinos maiores na Mesopotâmia. A planície
imediatamente em tomo de Ugarit era fértil, produzindo trigo e cevada
em abundância; os contrafortes que cercavam Ugarit eram cultivados com
vinhas e oliveiras. As montanhas ofereciam uma fonte fácil dos famosos
‘‘cedros do Líbano” para a constmção e o comércio. Como porto interna­
cional, Ugarit tinha uma economia naturalmente orientada para a expor­
tação e a importação.
O caráter cosmopolita de Ugarit está refletido nas muitas línguas e
escritas descobertas nas escavações de Ras Shamra. Encontraram-se tábuas
de argila com diversas escritas (cimeiforme, cuneiforme alfabética, hiero­
glífica) e línguas (ugarítico, acádio, sumério, hurrita, hitita, egípcio, cipro-
minoico), embora os principais idiomas fossem o ugarítico e o acádio. O
uso das escritas cuneiforme e hieroglífica ressaltava as relações de Ugarit com
a Mesopotâmia e o Egito. A escrita cuneiforme alfabética era específica
de Ugarit e pode ter sido inventada pelos escribas dah. As trinta letras do
alfabeto cuneiforme combinavam os princípios gráficos do cuneiforme silá­
bico (marcas em forma de cunha inscritas em cerâmica) com o princípio
do alfabeto consonantal desenvolvido no Egito. Quase todos os resquícios do
ugarítico foram descobertos em escavações no local, embora tenham-se
encontrado alguns breves textos utihzando o alfabeto ugarítico em outros
locais da área mediterrânea ocidental, em Chipre, na Síria, no Líbano e em
Israel (Monte Tabor, Taanac, Bet-Sames). O corpus em Ugarit inclui textos

67
Como a Bíblia tornou-se um 1í\to

literários (mitos), documentos administrativos, textos econômicos, cartas


e textos escolares (por exemplo, exercícios, léxicos, silabários).
A vasta maioria dos textos de Ugarit são econômicos e administrativos.
Esses textos foram encontrados em áreas palacianas e mostram o trabalho
dos escribas reais. Além desses textos, longos contos míticos, como a lenda do
Rei Keret (ou Kirtu), a Lenda de Aqhat e o monumental Ciclo de Baal,
foram redigidos por escribas do templo. Os principais textos religiosos e mi­
tológicos provêm de duas bibliotecas sacerdotais, sendo que a casa do sumo
sacerdote provavelmente funcionava como uma escola de escribas.
Muitos dos mais importantes textos mitológicos foram redigidos ou
colacionados por um escriba chamado Ilimilku por volta da metade do
século XTV a.C. Tais textos tomaram-se parte da herança cultural de Ugarit
(e também de todo o Levante). Os escribas eram evidentemente pessoas
que possuíam uma instmção ampla e uma posição elevada na sociedade
ugaritica. Contudo, os escribas não eram autores no sentido convencional.
Eles eram os protetores, não os inventores, da tradição e da literatura.
A língua ugaritica apresenta importantes afinidades com a linguagem
e a literatura hebraica bíblica. No campo da lexicografía, as palavras ugari-
ticas com frequência lançam luz sobre o significado de palavras hebraicas
que, de outro modo, seriam obscuras. A literatura ugaritica foi especialmen­
te útil para o estudo da poesia bíblica (como ilustram os comentários ao
Livro dos Salmos). Aspectos da poesia bíblica como o uso de paralelismo
são exaustivamente empregados nos épicos ugariticos'®. Umberto Cassuto,
um dos pioneiros no estudo da literatura cananeia, observou que a poesia
épica da Bíblia dá testemunho “de uma tradição artística estabelecida, ainda
que tenha sido precedida por um processo que se estendeu por séculos”^®.

19. Às vezes, o uso do ugarítico pode ir longe demais, como no comentário brilhante
mas idiossincrático de M. Dahood sobre os Salmos [Bibha Anchor], em três volumes. Ver
também Dahood, Ugaritic-Hebrew Parallel Pairs, in Ras Shamra Paraüeb I (ed. L. Fisher;
ÀnOr, 49), Roma, 1972, 71-382; Ras Shamra Paralleb II (ed. L. Fisher; AnOr, 50), Roma,
1975, 1-39; Ras Shamra Paralleb III (ed. L. Fisher; AnOr, 51), Roma, Pontificai Bibhcal
Institute, 1981,1-206.
20. U. Cassuto, Bibhcal and Canaanite Literature, in Bihlical and Oriental Sütdies vol. 2:
Bible andAndent Oriental texts (trad. Israel Abrahams), Jerusalém, Magnes, 1975,16; ver tam­
bém Y. Avishur, Studies in Hehrew and Ugaritic Psahns, Jerusalém, Magnes, 1989 [hebraico].

68
A escrila e o tstado

Cassuto sugere que a literatura bíblica é a continuação dos antecedentes


cananeus. Isso implica que os antigos escribas israelitas, como seus corres­
pondentes da Idade do Bronze Tardia, faziam parte de uma tradição escri-
bal sírio-palestina mais ampla, e isso é visto não somente nas influências
literárias, mas também nas afinidades linguísticas e paleográficas. O emi­
nente paleógrafo Joseph Naveh ressaltou, por exemplo, que os alfabetos
semíticos ocidentais (fenício, aramaico e hebraico) são quase indistinguí­
veis no século X a.C.^b Os escribas de toda a região aprenderam as artes
escribais em escolas panlevantinas que mantinham alguma conexão. As
afinidades entre a poesia ugarítica e a poesia bíblica — especialmente a
poesia bíblica mais antiga — apontam para a tradição cananeia como a he­
rança dos antigos escribas israefitas.
O caso da antiga Ugarit ilustra dois importantes aspectos da escrita
que serão instrutivos ao considerarmos o desenvolvimento da escrita no
antigo Israel. Em primeiro lugar, o Estado e o desenvolvimento de uma eco­
nomia complexa foram fundamentais para o florescimento da escrita. Em
segxmdo lugar, as afinidades entre a poesia ugarítica e a poesia israelita in­
dicam que o antigo Israel fazia parte de um contexto cultural mais amplo
que continuou mesmo após a destruição das grandes cidades-estado da
Idade do Bronze Tardia, no final do segundo milênio antes de Cristo. Tanto
a tradição oral de Israel como sua tradição escribal valem-se do rico legado
da antiga Canaã.

21. J. Naveh, Earfy History qftheAlphabet: An Introduction to West Semitic Epigraph


and Palaeography, 89-112.

69
o, antigo Israel era uma sociedade oral. A literatura bíblica retrata os
antigos israelitas como errantes seminômades que por fim se estabelece­
ram em Canaã e adotaram um estilo de vida pastoril e, posteriormente,
cada vez mais agrário. Esse não é um cenário em que se esperaria que a
escrita florescesse. Antes, a “literatura” dos antigos israelitas era uma lite­
ratura oral — as canções e as histórias, os provérbios e os contos populares
de uma sociedade tradicional. A oralidade das antigas tribos israelitas se
reflete na literatura bíblica. D e acordo com o Deuteronômio, todo israelita
confessava a respeito de seus ancestrais: “meu pai era txm arameu errante”
(Dt 26,5). A pesquisa arqueológica também sugeriu que os antigos israe­
litas em Canaã eram pastores que por fim se estabeleceram num estilo de
vida agrárioh Isso sugere que as raízes do antigo Israel eram pastores semi-
Inômades que viviam à beira do deserto do Oriente Médio até por volta
de 1300 a.C. Consequentemente, as origens desses errantes no registro

1. Ver especialmente I. Finkelstein, The Archaeology ofthe Israelite Settlement, Jerusa


lém, Israel Exploration Sodety, 1988; I. Finkelstein e N. Na’aman (ed.], From Nomadism to
Monarchy: Archaeological and Historical Aspects of Early Israel, Jerusalém, Israel Exploration
Society, 1994.

71
Como a Rihlia tornou-v.' um lis

arqueológico é obscura. Quando os antigos israelitas começaram a aparecer


no registro arqueológico, eram pastores e fazendeiros. Mas será que esses
pastores e fazendeiros escreviam livros? Quem teria lido tais livros antes
de mais nada? Poucos eram capazes de ler, talvez ninguém. A infraestru-
tura social necessária para o uso generalizado da escrita em Israel só pas­
saria a existir no período tardio da monarquia. Os primórdios da Bíblia
serão encontrados na literatura oral — nas histórias e canções transmitidos
de geração em geração.
E significativo que, oiiginalmente, a língua hebraica sequer possuía
um termo específico que significasse “ler”. O verbo hebraico qara significa
“clamar, proclamar” e apenas raramente era usado no sentido de “ler em
voz alta” como uma extensão de seu significado primário. Na literatura bí­
blica posterior, no entanto, temos a leitura pública das Escrituras. O verbo
qara nesse sentido de clamar ou proclamar passou a denotar a leitura, como
em Neemias 8,3, em que Esdras lê a Torá para as pessoas na praça públi­
ca; “Ele leu {qara) o Livro, desde a manhã até o meio do dia, na praça que
está diante da Porta das Águas, em presença dos homens e das mulheres
e de todos os que compreendiam; todo o povo ouvia atentamente a leitura
da Torá". Estágios posteriores do idioma hebraico transformam essa palavra,
e seu significado principal passa a ser “ler”, refletindo assim a crescente
importância dos textos e da leitura da sociedade judaica.
Havia escribas nas principais cidades cananeias durante o segundo
milênio antes de Cristo, embora a vasta maioria do povo fosse não letrada.
O uso da escrita e a formação da literatura escrita no antigo Israel de­
pendiam das necessidades do antigo Estado israelita. Até mesmo ínfimos
reis cananeus tinham escribas reais na Idade do Bronze Tardia e no início
da Idade do Ferro [entre os séculos X V e IX a.C.]. A escrita não era des­
conhecida no antigo Israel, mas o nível e a sofisticação da antiga litera­
tura israelita estavam necessariamente vinculados ao desenvolvimento
do Estado.

O s antigos israelitas

De onde vieram os israelitas? Ainda mais importante: como ganharam


forma suas próprias histórias sobre suas origens? O primeiro aparecimento
do povo israelita em Canaã foi objeto de considerável debate entre os

72
A í?5crita no antigo Israol

estudiosos do assunto^. O problema é simples. Fora da Bíblia, não temos


menções ou registros de “israelitas” até o final do século XIII a.C. Não
que tivéssemos de esperar ouvir a respeito deles. Afinal, os relatos bíblicos
de Abraão e seus filhos indicam um líder patriarcal cuja famíUa é forçada
à escravidão no Egito devido a um período de fome em Canaã. As evidên­
cias arqueológicas sugerem que os antigos israelitas vieram de uma socie­
dade que era amplamente pastoril e agrária. As narrativas bíblicas que
retratam a emergência de Israel em Canaã, que provavelmente foram es­
critas séculos mais tarde, também apontam para pastores e fazendeiros.
Há poucas razões para acreditar que teríamos evidências escritas explícitas
relacionadas a um antigo povo agrário e pastoril.
A primeira menção aos israelitas num texto que não a Bíblia é um
exemplo típico de uma serendipidade histórica. Os israelitas aparecem na
esteia comemorativa de uma vitória do faraó Merneptá datada de aproxi­
madamente 1207 a.C. Embora a parte fundamental do texto trate das cam­
panhas do faraó contra os líbios, a parte de baixo da esteia contém algu­
mas linhas que recordam uma campanha para o norte empreendida por
Merneptá. A seção relevante aqui começa com um breve poema, e a esteia
termina com esta declaração geral da proeza militar do faraó^:

Os príncipes estão prostrados, dizendo: “Piedadel”


Nenhum ergue sua cabeça dentre os Nove Arcos.
Tehenu está desolada; Hatti está pacificada;
Canaã foi espoliada;
Ascalão foi conquistada; Guézer foi tomada;
Yanoam foi transformada em algo que não existe;
Israel foi devastado, e sua semente não perdura;
Hurm tomou-se uma viúva para o Egito!

2. Há volumosa literatura sobre o antigo Israel. Algumas das obras recentes mais
importantes incluem: I. Finkelstein e N. Na’aman (eds.), From Nomadism to Monarchy:
Archaeological and Historical Aspects of Early Israel; R. Hess, Early Israel in Canaan: A
Survey of Recent Evidence and Interpretations, PEQ 125 [1993) 125-42; G. Ahlstrõm,
}Vho Wère the Israelites?, Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1986; A. Frendo, Five Recent
Books on the Emergence ofAncient Israel: Review Artide, PEQ 124 [1992) 145-151.
3. Tradução de ANET, 376-378.

73
Como a Bíblia tornoii-sc um livro

Todas as terras estão pacificadas;


Todos aqueles que estavam em desassossego foram submetidos pelo Rei do
Alto e do Baixo Egito:
Ba-en-Rá meri-Amon; o FiUio de Rá: Mer-ne-Pta Hotep-hir-Maat, que
ganha vida como Rá todos os dias.

Israel parece apenas um acréscimo posterior à esteia da vitória do faraó,


e o fato de que Israel está “devastado” é apenas uma das várias afirmações
mencionadas nesse breve poema sobre a campanha do faraó no norte. A
campanha evidentemente estendeu-se muito para o norte, chegando a
Hatti (isto é, o império hitita] no norte da Síria. As cidades cananeias de
Ascalão, Guézer e Yanoam, da costa e da planície, foram conquistadas e
espohadas. Nenhuma dessas cidades teria sido israelita no final do século
XIII, quando os israelitas parecem ter estado confinados à região dos mon­
tes. O povo de Israel é indicado explicitamente pelo sinal determinativo na
língua egípcia da esteia. A língua egípcia utilizava tais sinais determinativos
para classificar nomes, incluindo povos, cidades, pessoas, terras e nações'*.
Uma tentativa de tradução literal que reflita esses sinais determinativos seria
a seguinte: “Yanoamf°‘**‘*^^foi transformada em algo que não existe; IsraelíP”™^
foi devastado”. Aparentemente, o povo israelita devia ser distinguido das
cidades-estado cananeias como Ascalão, Guézer e Yanoam, que possuem o
sinal determinativo de cidades. Estudiosos usualmente inferiram com base
nisso que o povo de Israel não estava organizado em cidades-estado como
os cananeus, e situaram os israehtas na região montanhosa, como sugere a
própria Bíblia. Em todo caso, a esteia de Memeptá é uma evidência externa
valiosa mas insuficiente para o conhecimento da história do antigo Israel.
Ao menos ela situa o povo de Israel em algum local de Canaã no final do
século XIII a.C. É desse ponto que retomaremos a história de como a Bíblia
tomou-se um hvro.
Os antigos israelitas estabeleceram-se em Canaã no século XIII em meio
a desordens generalizadas em todo o Mediterrâneo oriental, resultantes
de uma combinação de eventos econômicos, climáticos e militares. Eles eram
pastores e se tomaram fazendeiros. Seus primeiros assentamentos são teste-

4. Ver J. Allen, Middle Egyptian: An Introductíon to the Language and Ctdture o


Hieroglyphs, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, § 3.5.

74
A fbuita nu aniign Israol

munhos de sua herança pastoril. Esses assentamentos usualmente asseme­


lhavam-se ao modelo que os acampamentos beduínos mantêm ainda hoje.
Bersabé ilustra o estilo dos antigos assentamentos israelitas [figura 4.1).
Uma fileira circular de casas criava uma área central fechada onde os ani­
mais podiam ser mantidos quando não estavam pastando do lado de fora.
As construções maiores em Bersabé [e em outros locais), que serviam
como áreas de estocagem de produtos agrícolas, tornaram-se cada vez mais
importantes nesses assentamentos à medida que a sociedade passou lenta­
mente de uma economia pastoril para uma economia agrária. Essas povoa-
ções podiam acomodar de cinquenta a duzentas e cinquenta pessoas. Não
há evidências de que os antigos israehtas vivessem em cidades urbanas
maiores, como seus predecessores.

k '

Figura 4.1. Antiga aldeia israelita em Bersabé (adaptado de Z. Herzog [ed.],


Beer-sheba II [Tel Aviv, 1984], p. 80}

A cultura das aldeias dificilmente conduziría ao desenvolvimento da


escrita. A escrita floresce em culturas urbanas, nas quais, antes de tudo, tem
de suprir as necessidades administrativas do governo. A economia do antigo
Israel era, em grande medida, de subsistência, baseada no pastoreio e na
agricultura. Todavia, mesmo as pessoas dessas aldeias tão pequenas tinham
a capacidade de escrever que foi permitida pela invenção do alfabeto. Na

75
Como a Bililia tornoii-so um livro

Mesopotâmia e no Egito, a complexidade dos sistemas de escrita restringia


o acesso. Esse não era o caso de Israel. Um dos mais antigos exemplos de
escrita no antigo Israel provém de uma pequena aldeia israelita chamada
Ebenezer (hoje conhecida como as ruínas de Izbet Sartah]^, onde arqueó­
logos descobriram um fragmento de barro que, enquanto ainda úmido,
havia sido inscrito com o alfabeto hebraico (ver figura 4.2). No entanto,
embora o alfabeto houvesse tomado a escrita mais acessível, a escrita ainda
tinha uma utilidade limitada numa sociedade agrária e pastoril como era
o antigo Israel.

Figura 4.2. O alfabeto hebraico de Izbet Sartah


(fotografia cedida por cortesia de Israel Finkelstein)

As antigas aldeias israelitas contrastam nitidamente com as sociedades


urbanas dotadas de palácio e templo que caracterizaram a Idade do Bronze
Tardia (1550-1200 a.C.). As pequenas cidades-estado cananeias desenvol­
veram escolas escribais que deixaram amplas evidências de escrita, ainda que
em sua maioria sob a forma de textos administrativos. Mesmo uma cida-
de-estado diminuta como Jerusalém, que não contava mais de duas mil
pessoas na Idade do Bronze Tardia, tinha escribas reais. As duas maiores

5. M. Kochavi e A. Demsky, Na Israelite Village from the Days of the Judges, BAR
n°3 [1978] 19-21.

76
A c'SLTÍta no antigo Israol

coleções de escrita da região nesse período são as Cartas de Amam a (de


aproximadamente 1350 a.C.) e os arquivos da antiga Ugarit (de 1330 a
1200 a.C.}. As cartas de Amama incluem seis cartas (EA 286-290) do go­
vernante de Jerusalém ao faraó egípcio.

O s cânticos do povo

A literatura bíblica mais antiga incluía cânticos do povo. Esses cânticos


pertencem àquilo que é usualmente chamado de literatura oral. O povo is­
raelita transmitia suas tradições entoando cânticos e narrando contos. Os
cânticos sem dúvida eram entoados quando as pessoas se reuniam em gran­
des festividades, e alguns deles são entoados até hoje. Assim, por exemplo, o
capítulo 15 do Êxodo (ou o “Cântico de Moisés”) continua a ser recitado
diariamente como parte do serviço matutino na sinagoga e Hdo como parte
do lecionário no sétimo dia do Pessach. Esses cânticos são entoados mesmo
que suas palavras não sejam inteiramente compreendidas. De maneira simi­
lar aos épicos homéricos, que foi preservado por bardos que cantavam as
lendas dos gregos, as antigas tradições de Israel foram memoriadas em cân­
ticos. De acordo com a Bíblia, depois que Moisés e os israelitas cruzaram o
Mar Vermelho, “Moisés entoou um cântico” (Ex 15,1). Também Débora e
Barac cantaram após derrotar os cananeus: “Eis o que cantaram Débora e Barac,
filho de Abinoem, naquele dia” (Jz 5,1). Com base em tais declarações, os
cânticos orais foram integrados na prosa escrita.
Uma coletânea de cânticos israefitas arcaicos passou a ser conhecida
como “Livro de Jashar”®. Evidentemente, a tradução da palavra “livro”
aqui, do hebraico “sefer", é um anacronismo, se por livro entendemos o
códice moderno. No hebraico clássico, sefer significava “texto, documento,
carta ou pergaminho”, de modo genérico. Embora a maioria das traduções
para o inglês entenda Jashar como o nome próprio de uma pessoa, o uso
de um artigo definido no hebraico (ou seja, sefer ha-Jashar) normalmente
indica um nome comum. Assim, “sefer ha-JashaP’ poderia ser traduzido.

6. Aqui, o autor comenta a tradução adotada na língua inglesa, The Book of Jashar
[O Livro de Jashar]. Era português, as traduções mais usadas são “Livro do Justo" e "Livro
do Reto”. (N. da T.)

77
Como a Bíblia tomou-se um livro

literalmente, por “o livro do reto” ou “o livro do justo”. As duas citações


do Livro do Justo encontradas na Bíblia são poesias arcaicas. A primeira
menção desse livro segue-se ao breve poema, em Josué 10,12-13, que des­
creve o dia em que o sol parou;

Foi então que Josué falou a YHWH, nesse dia em que entregou os amorreus
aos israelitas, e disse em presença de Israel:
“Sol, para sobre Gabaon,
E tu, ó lua, sobre o vale de Ayalonl”
E o sol parou e a lua se quedou imóvel, até a nação se vingar dos seus inimigos.
Não está isso escrito no Livro do Justo? Parou pois o sol no meio do céu, e
não se apressou em pôr-se, pelo espaço de quase um dia.

A outra referência ao Livro do Justo aparece com o Cântico do Arco


em 2 Samuel 1,19-27. Uma nota entre parênteses sobre esse livro de cân­
ticos precede o salmo nos versículos 17 e 18:

Davi entoou esta lamentação sobre Saul e seu filho Jônatan. [Ele ordenou que
o Canto do Arco fosse ensinado ao povo de Judá; está escrito no Livro do Justo.)

Uma terceira provável referência ao Livro do Justo é conhecida pela an­


tiga tradução grega de 1Rs 8,12-13 [=L X X 3 Rs 8,53 a], em que um fragmento
poético arcaico é atiibuído ao “Livro do Canto” (jPipA,L(n Tf|ç (^qç].
A antiga tradução grega de s^er Jashar como “o Livro do Canto” apre­
senta um importante indício de seu significado^. A tradução grega nos ofe­
rece algum esclarecimento acerca da associação de várias palavras hebraicas
semanticamente relacionadas. A palavra “Jashar” (em hebraico, yashar),
embora de início pareça ser um nome próprio, é efetivamente uma forma
do verbo hebraico “cantar” (yashir). Ou a palavra podería refletir uma me-
tátese de letras que resultaria na palavra hebraica shir, “canto”. O nome desse
texto é na verdade uma alusão ao seu conteúdo, o pergaminho dos cantos.
Isso era evidentemente tuna coletânea de antigos cânticos nacionais. Sua

7. Conforme observado por H. Thackeray, New Light on the Book of Jashar (A Study
of 3 Regn.Vm 53b L X X ),/rS 11 (1910) 518-532.

78
A escrita no antigo Israel

antiguidade é sugerida pelos aspectos arcaicos na linguagem dos cânticos,


o que não é algo que possa ser perfeitamente forjado®. Escritos posteriores
do Mar Morto, por exemplo, tentam imitar o hebraico clássico, mas seus
autores não conseguem evitar o uso de elementos posteriores de sua própria
linguagem, revelando assim a data posterior dos textos. A referência ao
Livro do Justo pode ser a um repertório oral para cantores do templo que
encenavam mitos épicos de Israel em festividades e outras ocasiões relacio­
nadas ao culto. A coletânea provavelmente era muito mais extensa do que
mostram essas três citações. Isso fica claro quando vemos as introduções
a outros cânticos da Bíblia:

Então Moisés e os filhos de Israel entoaram a YHWH este cântico (Ex 15,1).
Moisés pronunciou aos ouvidos de toda a comunidade de Israel as palavras
deste cântico até o fim (Dt 31,30).

Então Israel cantou este cântico: “Sobe, poçol Aclamai-ol” [Nm 21,17).

Tais cânticos podem ter sido incluídos num antigo Livro do Justo. É
importante observar o conflito entre oralidade e textualidade implícito aqui.
Presumivelmente, esses cânticos orais portavam as tradições de Israel, mas
podiam ser escritos e ensinados aos israelitas.
O Cântico de Moisés no capítulo 15 do Êxodo, ou o "Cântico do Mar”,
como é também conhecido, é visto como um dos mais antigos exemplos
da literatura bíblica, remontando talvez ao século XIII a.C. O Cântico do
Mar tem seus paralelos estüísticos e fiterários mais próximos na literatura
ugarítica, um grupo de textos que data dos séculos X IV e XIII a.C. As ca­
racterísticas linguísticas do cântico certamente apoiam rxma data bastante
recuada, ainda que seja difícil datar precisamente um texto usando esse tipo
de metodologia®. O uso de desinências, a letra mem endítica e o uso rela-

8. Ver A. Hurvitz, Originais and Imitations in Biblical Poetry: A Comparatíve Examina-


tion of ISam 2:1-10 e Ps 113:5-9, in Biblical and Related Studies Presented to Samuel Iwry,
(ed. Ann Kort e Scott Morschauser), Winona Lake, IN, Eisenbraixns, 1986,115-121.
9. Uma análise clássica desse texto foi feita por F. M. Cross e D. N. Freedman; ver a
segunda edição de Studies inAndent Yahwistic Poetry, Grand Rapids, Eerdmans, 1997 (Biblical
Resources Series).

79
Como a Bíblia tornou-so um livro

tívo de zü estão entre as características que apontam para a data recuada'^.


As características arcaicas do cântico foram preservadas a despeito de seu
uso contínuo na liturgia israelita, particularmente na liturgia das festividades
do Pessach. O conteúdo do cântico sugere que também pode ter sido usado
na festividade do Ano Novo, bem como em cerimônias reais de coroação.
O Cântico do Mar fazia parte da liturgia sagrada do antigo Israel.
Os cânticos de Israel modificaram-se pouco ao longo dos séculos. Eles
eram circunscritos por sua métrica. Certamente, podiam se modificar,
mas a métrica determinava rigidez em sua forma. Mas o Cântico de Moisés
[Ex 15) efetivamente se tom a um texto escrito, passando a fazer parte do
Livro do Êxodo, uma obra literária. Nesse processo, o cântico é inserido
numa narrativa literária. O capítulo 14 do Êxodo, que precede o cântico,
oferece, essencialmente, um relato da travessia do Mar Vermelho em prosa
narrativa. O cântico que se segue é apresentado como “o cântico que Moisés
e os filhos de Israel entoaram” depois de cmzar o Mar Vermelho [Ex 15,1].
Desse modo, o texto ao mesmo tempo preserva a tradição oral do antigo
Israel e apresenta um tipo de relato inteiramente diferente — a narrativa
em prosa escrita. Outros antigos cânticos de Israel recebem o mesmo tra­
tamento. O cântico de Débora é também prefaciado por um relato em
prosa da batalha de Barac e Débora contra Sísara no capítulo precedente
[Jz 4-5). Assim, a narrativa histórica fornece um contexto literário para
a poesia oral do antigo Israel.
A inclusão da liturgia oral israelita em sua prosa escrita era crucial
para a formação dessa literatura como as Escrituras sagradas” . Com efeito,
as liturgias orais não são literatura em sentido estrito; ou seja, o gênero
autodescrito do texto, a saber, um cântico oral, não é literatura pura porque
não era ori^nalmente um texto escrito. As formas e os recursos da litera­
tura oral diferem consideravelmente dos da literatura escrita. A repetição
característica da poesia bíblica, por exemplo, é um recurso retórico típico
usado por bardos e contadores de histórias. Quando tal cântico é integrado
na narrativa em prosa da literatura bíblica, resulta numa repetição poética

10. Da discussão clássica dos aspectos arcaicos desse texto, ver F. M. Cross, Canaani-
te Myth and Hebrew Epic, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1974,121-144.
11. Ver S. Weitzman, Song and Story in Biblical Narrative, Bloomington, University of
Indiana Press, 1997.

80
A escrita no antigo Israel

da prosa. Assim, o Cântico de Débora em Juizes 5 é precedido por uma


narrativa em contrapartida. Embora fique objetivamente claro, pela análise
da linguagem, que os cânticos são anteriores às narrativas escritas nas quais
estão inseridos, tais narrativas estão apenas Ixouxamente relacionadas com
os relatos hinicos anteriores. As referências e alusões ao Livro do Justo na
literatura biblica sugerem que a redação de uma coletânea dos antigos cân­
ticos israelitas já havia ocorrido por volta do século X a.C. Novamente,
uma boa analogia para esse processo é a antiga Ugarit, onde vários textos
épicos orais foram redigidos pelo escriba Ilimilku. Embora a preponderân­
cia dos textos em Ugarit fosse administrativa, econômica ou diplomática, a
instrução dos escribas tomou possivel que estes redigissem também a litera­
tura oral. Isso teria ocorrido tanto no antigo Israel quanto na antiga Ugarit.

Dos escribas cananeus aos escribas israelitas

Qual é a relação entre os antigos sistemas eseribais cananeus e os


primeiros escribas israelitas? Caso houvesse continuidade na infraestru-
tura escribal, isso certamente sugeriría que a escrita prosseguiu, em grande
medida, do modo como era no segundo milênio antes de Cristo, antes que
os israelitas se estabelecessem em Canaã. Embora houvesse uma cultura
escribal limitada na Siría Palestina no final do segundo milênio, essa cultura
parece ter prosseguido no primeiro milênio e parece ter influenciado as
instituições eseribais do início do Estado israelita.
Alguns estudiosos sugeriram que as instituições eseribais da sociedade
cananeia terminaram com a conquista israelita. E, embora arqueólogos já
tenham reconhecido que as antigas tribos israelitas colonizaram uma Canaã
em grande medida despovoada, noções acerca de um fim catastrófico das
instituições eseribais persistiram na literatura sobre o tema. Num livro mui­
to influente, David Jamieson-Drake argumentou que as instituições escrí-
bais não foram transferidas de uma sociedade para a outra como ocorre
com a prataria de família’^. Apoiando-se nas teorias de George Mendenhall
e de Norman Gotttwald a respeito da transição da Idade do Bronze Tardia

12. Ver D. Jamieson-Drake, que se baseia no estudo antropológico de Price sobre a fo


mação do segundo Estado, Scribes and Schoob in Monarchic Judah, Sheffield, JSOT, 1991.

81
Cnmii a Bihlia tornou-sc nm livro

para a Idade do Ferro, Jamieson-Drake escreveu: “O estabelecimento de


Israel representa uma rejeição, por parte de uma cultura não urbana, do
controle administrativo característico do sistema urbano cananeu”^^. Essa
“rejeição”, porém, é na verdade uma idealização muito tardia daquilo que
reformadores religiosos da época de Josias acreditavam que deveria ter acon­
tecido. Em outras palavras, a rejeição da cultura cananeia é um aspecto da
reforma religiosa de Josias e de sua literatura. Em concordância com isso,
há crescentes evidências de continuidade entre a Idade do Bronze Tardia e
a Idade do Ferro, e isso implicaria uma continuidade também nas institui­
ções escribais. Até mesmo a literatura bíblica retrata Davi empregando os
hititas em sua adnainistração e Salomão valendo-se de artesãos fenícios. Além
disso, a milícia pessoal de Davi consistia de mercenários estrangeiros, se-
grnido a Bíblia. De fato, já destacamos a similaridade entre o épico ugarítico
e a antiga poesia bíblica, que sugere uma cultura literária comum na região
da Síria Palestina no final da Idade do Bronze e na Idade do Ferro.
Argumentos sugerindo uma rejeição israelita do sistema urbano cana-
neu baseiam-se numa leitura simplista da narrativa bíblica sobre o povoa­
mento do Livro de Josué. Foi, posteriormente, a narrativa da reforma de Josias
(no final do século VII a.C.) que enfatizou a necessidade de distinção
cultural. A interpretação que Josias faz da “conquista” reflete um típico
saudosismo humano em relação ao passado — “os bons e velhos tempos”
em que a vida era simples e pura. A reforma de Josias (ver o capítulo 6) foi
uma tentativa de expurgar o país das influências estrangeiras e de retomar
à época ideahzada em que Israel ingressara naquela terra. Em contraposi­
ção, a continuidade é evidente no registro arqueológico, que demonstra a
persistência da presença egípcia em Canaã desde a Idade do Bronze Tardia
(1550-1200 a.C.) até o início da Idade do Ferro (1220-1000 a.C.)^"*. Além
disso, as histórias contidas no Livro dos Juizes (ver, particularmente, Jz 1;
ver também Js 13) também testemunham uma continuidade substancial

13. Jamieson-Drake, Scríbes and Schools in Monarchic Judah, p. 45. As análises de


MendenhaU e Gottwald, que se fundavam na teoria social marxista (a saber, a teoria da re­
volta do campesinato], foram completamente solapadas por escavações recentes e dados
de pesquisas; ver Finkelstein, The Archaeobgy ofthe Israelite Settlement, 306-314.
14. Ver, por exemplo, A. Mazar, Archaeobgy of the Land of the Bible: 10,000-586
B.C.E., Garden City, NY, Doubleday, 1990, 296 ss.

82
A escrita no antigo Israel

entre a cultura urbana da Idade do Bronze Tardia e do início da Idade do


Ferro. Essas histórias são lendas populares — a literatura oral sobre os
heróis (ou “juizes”) dos tempos pré-monárquicos —, e, de uma perspectiva
crítica, sua historicidade tem de ser avaUada levando-se em consideração
que são lendas populares. Contudo, elas demonstram aspectos da continui­
dade real que existiu entre a cultura cananeia e a cultura israehta.
No registro arqueológico, a continuidade cultural foi particularmente
forte em regiões litorâneas e em áreas das planícies (por exemplo, Meguido,
Bet-San). Com efeito, alguns estudiosos sugerem renomear o Período do
Ferro I (isto é, o período da emergência dos israelitas) como Bronze Tardio
III (que foi o último período das grandes cidades-estado cananeias) para
refletir a continuidade entre a Idade do Bronze a Idade do Ferro. Em suma,
nenhuma evidência arqueológica atesta uma rejeição israehta das institui­
ções cxalturais cananeias, ainda que ocorra certa decaída, na Idade do Bronze
Tardia, da infraestrutura do palácio e do templo, especialmente nas terras
altas centrais nas quais as tribos israehtas se estabeleceram. Embora algumas
narrativas bíbhcas posteriores defendam uma ruptura cultural, as histórias
contidas no Livro dos Juizes e os relatos do princípio da monarquia apre­
sentados nos hvros de Samuel e dos Reis sugerem que os primeiros reis
israehtas recorreram intensamente à infraestrutura adrninistrativa cananeia.
Foi somente a ideologia deuteronômica proveniente das reformas rehgiosas
de Josias do final do século VII a.C. que propôs a noção de uma completa
ruptura cultural em relação às instituições sociais cananeias.

O princípio da monarquia israehta

O tamanho e a complexidade do Estado israehta em seu início fo­


ram tema de alguns acirrados debates entre estudiosos'^. Essencialmente,

15. Ver, por exemplo, 1. Fenkelstein, The Archaeology of the United Monarchy; A
Altemative View, Levant 28 [1996] 177-187; T. Thompson, Historiography of Ancient
Palestine and Early Jewish Historiography: W. G. Dever and the Not So New Biblical
Ardiaeology, in The Origins of theAncient Israelite States [ed. V. Fritz e P. R. Davies], Sheffidd,
JSOT, 1996, 26-43; W. Dever, Histories and Nonhistories of Ancient Israel, BASOR 316
[1999] 89-106.

83
Como a Bíblia tornou-se um livro

O debate se acalora a ponto de se discutirem minúcias acerca de quando


exatamente teve início o período da monarquia (no séctdo X ou IX a.C ]
e de quais seriam a dimensão e a complexidade do Estado. Acredito
que posso aqui evitar a acrimônia dos debates dos estudiosos sobre o
assunto.
Como ressaltei no último capítulo, ainda que uma atividade literária
florescente requeira um Estado complexo, a escrita em si mesma não.
Destaquei também que escribas haviam sido empregados por pequenos
e diminutos reinos como a Moabe da Idade do Ferro ou a Jerusalém da
Idade do Bronze Tardia. No caso do antigo Israel, qualquer que fosse a
dimensão do Estado (ou do reino), a escrita era meramente uma extensão
da realeza, uma ferramenta para a manutenção de registros ordinários e
um meio de comunicação diplomática. Há poucas evidências de que a
escrita fosse muito mais que uma projeção do poder real (concreto ou
almejado). Mesmo nos grandes reinos do Egito e da Mesopotâmia, a escrita
era, em grande medida, uma ferramenta administrativa. Os textos literários
eram usados primordialmente para a instrução dos escribas; eles certa­
mente não eram redigidos para o público em geral, que era essencialmente
não letrado. Trabalhando para o rei ou no templo, os escribas mantinham
listas e registros e eraih responsáveis pela correspondência diplomática.
Embora também se solicitasse que criassem inscrições para exibição pú­
blica, tais inscrições tinham o propósito de produzir um impacto visual,
e não de serem lidas.
O Calendário de Guézer, um antigo calendário poético das atividades
agrícolas, é o exemplo mais antigo da escrita em Israel durante os dias de
Davi e Salomão (ver a figura 4.3). O calendário data do século X a.C e foi
descoberto na antiga cidade bíblica de Guézer (situada entre Jerusalém
e a atual Tel-Aviv). Nele, lê-se:

dois meses de colheita [olivas],


dois meses de semeadura [grãos],
dois meses de semeadura tardia,
um mês para capinar o linho,
um mês para ceifar a cevada,
um mês para ceifar (o trigo) e mensurar a quantidade,
dois meses de colheita da uva,
um mês de colheita de fmtas de verão.

84
A c:'».rila no anti.yu brud

Figura 4.3. O Calendário de Guézer [século X a.C.]

Embora o Calendário de Guézer sej a uma evidência muito antiga da


escrita em Israel, sua linguagem não é o hebraico clássico da Biblia. Diversas
peculiaridades linguisticas sugerem uma classificação mais genérica, como
escrita cananeia’®. Evidentemente, é improvável, a priori, que a linguagem
clássica da Bíblia refletisse o início da monarquia israelita. Antes, o hebraico
bíblico clássico indica a emergência da cultura urbana da posterior monar­
quia judia''. Assim como as Cartas de Amarna e os escritos ugaríticos

16. Ver D. Sivan, The Gezer Calendar and Northwest Semitic Linguistics, lEJ 48
[1998] 101-105; W. F. Albright, The Gezer Calendar, BASOR 92 [1943] 16-26.
17. Contra C. Rabin, The Emergence of Classical Hebrew, in The Age ofthe Monarchies:
Culture and Society [ed. A. Malamat], Jerusalém, Massada, 1979, 71-78. Rabin é excessi­
vamente dependente da apresentação biblica de Davi e Salomão. Embora as suposições

85
Como a Bíblia tornou-se um livro

demonstram uma tradição de escrita mais ampla na região da Síria Pales­


tina, também há poucas evidências que sugiram que a monarquia israelita
em seu início tenha desenvolvido uma tradição de escrita própria e escolas
escribais independentes. Esse desenvolvimento só se daria em Israel após a
transição para um Estado mais urbano no século VIII (ver o capítulo 5).
Certamente, Davi e Salomão empregaram escribas na corte e no templo.
Um antigo texto do Livro de Samuel lista alguns dos funcionários de Davi:

Joab comandava todo o exército. Banaías, filho de Joiada, chefiava os cereteus


e feleteus. Adoram era chefe dos trabalhos forçados; Josafá, filho de Aiúd,
era arauto; Siva era escriba; Sadoc e Abiatar eram sacerdotes, e Ira, o Jairita, era
sacerdote de Davi (2Sm 20,23-26],

Além dos militares e dos funcionários do templo, a hsta inclui um fun­


cionário encarregado da força de trabalho compulsória, um arauto real e
um escriba. Uma hsta dos funcionários do rei Salomão também inclui um
escriba da corte:

O rei Salomão reinou sobre todo Israel. Eis os seus funcionários: Azarias, filho
de Sadoc, era sacerdote; Ehhoref e Aqtüas, filhos de Sisa, escribas; Josafá, filho de
Aquilud, arauto; Banaías, filho de Joiada, comandante do exército; Azarias,
filho de Natan, comandante dos prefeitos. Zabud, filho de Natan, era dignitário
régio; Aquisar era prefeito do palácio, e Adoniram, filho de Abdá, chefe dos
trabalhos compulsórios (IRs 4,1-6).

A hsta de Salomão é mais elaborada que a de Davi, o que sugere que a


administração havia se expandido. Agora já há dois escribas da corte além
do arauto real, do funcionário encarregado do trabalho compulsório e do

sociolinguísticas de Rabin sejam válidas, a posterior urbanização do Estado no século VIII


ajusta-se melhor aos dados. Além disso, as inscrições encontradas do período tardio da
monarquia também se ajustam bem à linguagem do hebraico bíblico clássico. S. Gogel
destaca que a gramática hebraica epigráfica é essendalmente a mesma do hebraico bíblico
clássico, mas deve-se notar que o corpus do hebraico epigráfíco é essencialmente do período
entre o final do século VIII e o início do século VI a.C; ver Gogel, A Grammar ofEpigraphic
Hebrew (SBL Resources for Biblical Study, 23), Atlanta, Scholars, 1998.

86
A escrita na antigo Israel

funcionário que supervisiona o palácio. Além disso, um dos funcionários,


Azarias, filho de Natan, estava a cargo dos funcionários acima dos doze
governadores regionais [cf 1Rs 4,7-19). Uma indicação da antiguidade da
lista são os nomes que nela constam. Com isso, notamos simplesmente que
o elemento teofórico (isto é, o sufixo ou prefixo que indica uma deidade
que é acrescentado ao nome) não usa o nome divino do Deus de Israel*®.
Os nomes pré-jeovistas nessas listas incluem Adoniram, AquÜud, Siva,
Abiatar, Sisa e Aquisar. Um nome como Adoram significa “que Hadad seja
exaltado”. O elemento teofórico jeovista é facilmente identificado pela
terminação (-ias-*®) em nomes como Ezequias, Isaías'ou Jeremias. Também
pode ser facilmente identificado pelos prefixos {Jeo-/Jo-) em nomes como
Josafá. Tais elementos estão visivelmente ausentes em nomes como Abraão,
Jacó, Moisés, Davi e Salomão. Com base em pesquisas sobre nomes pró­
prios usados no antigo Israel, a adição do elemento teofórico jeovista de­
senvolve-se lentamente e só passa a predominar a partir do século IX a.C.
Deste modo, tais listas dos funcionários de Davi e Salomão dão todas as
indicações de serem listas antigas e autênticas do início da monarquia
israebta, pois incluem muitos nomes não jeovistas. A inclinação geral da
transmissão escribal tendia a substituir esses nomes por nomes jeovistas.
Assim, por exemplo, o nome “Sisa” provém de uma palavra egípcia que
significa “escriba”. Em 2 Samuel 8,17, esse nome é “jeovizado” como
"Sasaías”. O nome “Adoram”, que na bsta dos administradores de Davi signi­
fica “Hadad é exaltado”, na lista de Salomão torna-se o nome mais neutro
“Adoniram”, “meu senhor é exaltado”. Essas mudanças são com frequência

18. Elementos teofóricos jeovistas (isto é, os elementos “-ias” ou “Jeo/Jo-”j começam


a aparecer em nomes pessoais no século X, mas não predominam até o século IX. O uso
desses elementos oferece algum parâmetro para a data relativa de um nome pessoal israelita,
com os elementos teofóricos surgindo no século X, tomando-se predominantes no final da
monarquia e depois começando a desaparecer novamente no período pós-exüico. Ver ainda
I Tigay, You Shall Have No Other Gods: IsraeHte Religion in the Light of Hebrew Inscriptions
(HSS, 31] Atlanta, Scholars, 1986; J. Fowler, Theophoric Personal Names in Ancient Hebrew:
A Comparative Study (JSTOSS, 49], Shefíield, JSOT, 1988; N. Cohen, Jewish Names as
Cultural Indicators inÂntiquity, JS J 7 [1976-77] 97-128,
19. O sufixo “-ias" provém do elemento “-yah” da palavra “Yahweh” (transposto para
0 português como “Jeová” ou “Javé"]. (N. daT]

87
Como a Bíblia lurnou-sf um livro

sutis e é provável que sejam, muitas vezes, variações efetuadas incons­


cientemente pelos escribas. As modificações provavelmente mascaram a
verdadeira dimensão da infraestrutura administrativa cananeia dos reinos
de Davi e Salomão.
O papel preciso de um dos funcionários, o “arauto” do termo hebraico
“mazkir”, foi objeto de algumas discussões. Embora às vezes o termo seja
traduzido por "cronista”, sugetindo-se uma função escribal, a etimologia do
termo aponta, em vez disso, para a função de arauto reaP°. A palavra é
formada pelo radical “ZKR”, que está relacionado a “recordação, memória”.
Esse verbo significa, quase invariavelmente, “falar”, muitas vezes no sentido
de uma proclamação ou de um discurso oficial, embora às vezes tenha o
sentido mais fraco de “mencionar”; mas nunca se refere a escrever^’ . Em
textos posteriores pós-exíhcos, há uma mudança nítida no significado do
termo. As traduções do termo hebraico bíbhco “mazkir^’ para o grego e o
aramaico refletem uma compreensão da função como “cronista”^^; entretan­
to, tais traduções demonstram o contexto social e político substancialmente
diferente do Império Romano, onde a escrita havia se tornado mais central
para o governo e a sociedade. Com efeito, o desenvolvimento semântico
dessa palavra de “arauto” para “cronista” corresponde ao desenvolvimento de
outra terminologia relacionada à escrita (como a palavra hebraica ‘‘qara’’,
cujo significado passa de “clamar” para “ler”] e reflete o processo de tex-
tualização da cultura judaica.
Todavia, havia escribas a serviço dos primeiros monarcas israelitas. A
principal tarefa desses escribas reais teria sido a manutenção de registros
administrativos. A escrita não teria sido uma ferramenta usada primor­
dialmente nem para a preservação nem para a disseminação da cultura.

20. Ver o resumo da pesquisa realizada por N. Fox, In the Service qfthe King: OíRcialdom in
Andent Israel and Judah, Cmdnnati, Hebrew Union CoUege Press, 2000,110-121 (monografias
do Hebrew Union CoUegej. Ver também T. Mettínger, Sohmonic State Offidah, Lund, CWK
Gleerups, 1971; Y. Avishur e M. Heltzer, Studies <mthe Royal Administratími in Andent Israel in
the Light of Epigraphic Sources, Jerusalém, Academon, 1996; E. W. Heaton, Solomon's New
Men: The Emergence of Andent Israel as a National State, Nova York, Pica Press, 1974,47-60.
21. KB4, ad loc.
22. Ver Y. Avishur, Administration, in World History of the Jewish People, vol. 4/2,
Jerusalém, Massada, 1979, 161.

88
A esv.rúu no anlii^o Israel

Provavelmente não é uma simples coincidência o fato de termos poucas


evidências escritas do século X em Israel. Certamente, inscrições como o
Calendário de Guézer ou o anterior Ostraco de Izbet Sartah provam que os
escribas eram ativos até mesmo nos estágios de formação do Estado israe­
lita^^. É pura sorte que tenhamos deparado com inscrições do século IX
razoavelmente bem preservadas na Transjordânia (a Pedra Moabita discuti­
da anteriormente] e na GaMeia (a inscrição de Tel Dan^"*). Há também duas
inscrições em monumentos muito fragmentadas (uma de Jerusalém e
uma de Samaria] que datam do século IX a.C.^^. Enquanto a descoberta de
inscrições em monumentos for uma questão de pura sorte, a relativa es­
cassez de escritos comuns no antigo Israel é um indicativo do limitado
papel desempenhado pela escrita entre os séculos XII e IX a.C.
Analisemos um exemplo das limitadas inscrições que obtivemos desse
período incipiente. O tipo mais comum de escrita administrativa são as im­
pressões de sinetes e os óstracos. Os sinetes eram usados para estampar jarros
e para timbrar documentos (usualmente feitos de papiro]; as impressões de
sinetes resultantes, encontradas em abundância, datam dos séculos VIII, VII
e VI a.C. em Israel. Os textos mais substanciais de escrita extrabíblica provêm
de óstracos. O termo “óstraco” se deriva do grego óstrakon, que significa
“concha, caco”. Refere-se a fi"agmentos de cerâmica quebrada. A maior parte
dos óstracos trazia inscrições nos cacos feitas a tinta, mas às vezes traziam
inscrições feitas na argüa fresca ou talhadas na argila cozida endurecida. Os
fragmentos de argila quebrada aparecem em todos os formatos e tamanhos
e contêm textos de extensão variada. Os óstracos eram um material prático
e barato para a escrita, se comparados ao couro ou ao papiro, e eram usados
principalmente para textos econômicos e administrativos, incluindo receitas.

23. Sobre o alfabeto de Izbet Sartah, ver A. Demsky, A Proto-Canaanite Abecedary,


TA 4 (1977] 14-27; M. Kochavi, An Ostracon of the Period of Judges from Izbet Sartah, TA 4
[1977] 1-13.
24. Ver A. Biran, The Tel Dan Inscription: A New Fragment, lEJ 45 (1995) 1-18; W.
M. Schniedewind, Tel Dan Stela: New Light on Aramaic and Jehu’s Revolt, BASOR 302
(1996) 75-90.
25. Há uma inscrição de tipo monumental muito fragmentária do século IX em Jerusalém;
ver M. Ben-Dov, A Fragmentary Hebrew First Temple Period Inscription from the Ophel, m
Ancient Jerusedem Reveeded (ed. H. Geva), Jerusalém, Israel Exploration Society, 1994, 73-75.

89
Como a Bíblia tornou-se ; liví

cartas e outros documentos efêmeros. Às vezes, os óstracos eram lavados


para remover a tinta, recobertos com uma capa e reutilizados. As principais
coleções de óstracos provêm de escavações nas cidades antigas de Samaria,
Arad e Laquis. Óstracos foram encontrados em quantidade relativamente
elevada do século VIII ao século VI a.C Descobriram-se alguns desses tipos
de escrita datados dos séculos XII ao IX a.C.
Em Tel Arad [que se situa a cerca de 50 quilômetros ao sul de Jeru­
salém, à margem do deserto], encontraram-se quatro óstracos que ofere­
cem evidências das antigas atividades administrativas dos escribas judeus.
Esses quatro óstracos miuto fragmentados foram encontrados em escava­
ções e datam do século X a.C. Arad era um forte, construído no final do
século X I ou no início do século X na fronteira sul do deserto para servir
de posto administrativo e militar. Há menção de que o posto foi destruído
na campanha militar do faraó Shishaq em 925 a.C.; assim, há poucas dú­
vidas de que o forte tenha sido edtficado na época dos primeiros monarcas
hebreus. No óstraco mais completo, lê-se:
Filho d e B [...] M [...]
Filho de H [...] hekat [cevada] 10
Filho de M N [...] 100 hekat [cevada]
[...] hekat [cevada] 2[0]

Embora essa inscrição seja excessivamente fragmentária, trata-se, cla­


ramente, de algum tipo de texto de contabilidade. “Hekat” é ixm termo
egípcio para mensurar a cevada. Os quatro textos de Arad usam sinais e
numerais hieráticos tomados dos sistemas de contagem egípcios que se
sabe pertenceram ao século X a.C. Desse modo, os escribas não apenas fa­
ziam a contabilidade do governo nesse posto remoto como também haviam
tomado emprestado um conceito de numerais e abreviações contábeis de
seus contemporâneos egípcios^®. Esse sistema egípcio de numerais hierá­
ticos continuou a ser usado até o final da monarquia judia.
Tão certamente quanto Abdi-Heba [prefeito da cidade de Jerusalém
no século X rV a.C.] ou Mesá [o governante do reino de Moabe no século
IX a.C.] tinham escribas, também tinham escribas os antigos reis de Judá

26. N. Fox, In the Service ofthe King, 250-268; O. Goldwasser, An Egyptian Scribe from
Lachish and the Hieratic Tradition of the Hebrew Kingdoms, TÜ4 18 [1991] 248-253.

90
A escrita no antigo Israol

e Israel. Tais escribas faziam a contabilidade, redigiam cartas e supervisio­


navam a escrita em monumentos públicos. Os escribas reais aparentemente
mantinham tipos de anais abreviados nos quais registravam acontecimen­
tos importantes como a campanha egípcia de Shishaq contra Jerusalém
(por exemplo, IRs 14,25-30). Há evidências desse tipo de atividade até
mesmo entre os menores governantes e funcionários. Contudo, moldada
por seu uso nos assuntos do rei, a escrita tinha um papel limitado na socie­
dade. É difícil presumir que os escribas da corte ou do templo se envolves­
sem na composição de grandes obras literárias.
Muitas vezes se argumenta que Davi e Salomão encomendaram grandes
obras literárias. Desde o século X IX , alguns estudiosos sugeriram que uma
das principais fontes do Pentateuco, um escritor do século X conhecido como
Javista (em razão da preferência do escritor pelo nome divino), compôs a
primeira grande obra em prosa do mundo^^. Outros apontaram partes do
Livro de Samuel que poderíam ser uma apologia escrita para Davfí®. Cer­
tamente, há elementos das histórias do Gênesis e do Êxodo, ou das lendas
do Livro dos Juizes, ou do relato do rei Davi, que parecem acuradas, e,
como já se observou, havia escribas reais que mantinham anais reais além
de textos administrativos e econômicos. No entanto, é difícil provar que
eram redigidas narrativas extensas em prosa na época de Davi e Salomão.
O contexto social e histórico sugere o oposto. A escrita tinha um papel
limitado em Israel nesse período remoto. A literatura de Israel era primor­
dialmente oral. Não há razão para insistir em que a suposta fonte “J ” do
Pentateuco teria de ser um documento, e não uma tradição oral. Tampouco
há qualquer razão para insistir em que as histórias de Sansão e Dalila ou
de Débora e Barac no Livro dos Juizes teriam de ter sido escritas nos dias de
Davi e Salomão. Em algum ponto, é evidente, essas histórias de fato assu­
miram um formato escrito, mas esse momento ainda não havia chegado.
A escrita não desempenhava um papel importante o suficiente no princí­
pio da sociedade israelita para justificar a redação de tais cânticos, histórias,
provérbios e parábolas. Esse momento, porém, chegaria no século VIII.

27. Mais recentemente, ver R. E. Friedman, 77te Hidden Book in the Bible, Nova York,
HarperCollins, 1998.
28. Recentemente, Baruch Halpem ofereceu um convincente argumento em defesa
da antiguidade de algumas das histórias de Davi; David's Secret Demons: Messiah, Murderer,
Traitor, King, Grand Rapids, Eerdmans, 2001.

91
Ezequias e o

início
da literatura bíblica

A Bíblia como conhecemos começou a tomar forma em Jerusalém no


final do século VIII a.C , nos tempos de Isaías, o profeta, e Ezequias, o rei de
Judá. Poderosas forças sociais e políticas convergiram naquela época, resul­
tando na compilação de tradições anteriores, principalmente orais, e na
redação de novos textos. Além disso, Jerusalém emergiu como um impor­
tante centro econômico. A pequena e isolada cidade de Jerusalém cresceu
rapidamente, transformando-se numa grande metrópole. A escrita tomou-se
parte da burocracia urbana, bem como uma extensão política do crescente
poder real. Essas mudanças seriam o catalisador para a compilação e a com­
posição da literatura bíblica. Isso foi o alvorecer da literatura bíblica.
Quais foram os catalisadores de uma transformação tão dramática da
sociedade judia? Por que a literatura bíblica começou a florescer no final
do século VIII? As respostas a essas questões começam com a ascensão do
Império Assírio e os desafios sociais, econômicos e políticos que isso apre­
sentaria. Em particular, o exílio do reino do norte por causa da Assíria e
a subsequente urbanização do sul rural foram os catalisadores da atividade
literária que resultou na composição de extensas partes da Bíblia hebraica.
O exílio do norte de Israel também deu origem às obras proféticas de Amós,
Oseias, Miqueias e Isaías de Jerusalém, as liturgias sacerdotais e os textos
rituais, bem como a uma obra histórica pré-deuteronômica. A idealização

93
Como 3 Riblia tnmnu-st’ um livro

de lima época de ouro de Davi e Salomão também inspirou a compilação da


sabedoria, das tradições e da poesia atribxúdas a esses veneráveis reis. Con­
sequentemente, para compreender melhor essa fase crítica na história da
Bíblia, temos primeiramente de compreender as últimas décadas do século
VIII, sob a sombra do Império Assírio em ascensão.

O Império Assírio

E difícil exagerar o impacto da ascensão do Império Assírio sobre Judá,


na região da Sitia Palestina — e, com efeito, mesmo sobre o curso da civiliza­
ção ocidental. A Assíria foi o primeiro numa sucessão de grandes impérios.
Com implacável eficiência, o monarca assírio Teglat Falasar III (r. 745-727
a.C.) unificou a Assíria e a Babdônia, conquistou o reino de Urartu ao norte
(na Ásia Menor) e expandiu o império rumo ao oeste até o Mar Mediter­
râneo. Reis assírios posteriores viríam a conquistar toda a região da Síria
Palestina e, por um breve período, até o Egito. Quando o sol se pôs no
Império Assírio no final do século VII a.C., o império, em vez de desapa­
recer, transferiu-se para ps babilônios, depois para os persas e, posterior­
mente, para Alexandre Magno. Desse modo, a Assíria construiu o prímeiro
de uma série de impérios mundiais em expansão.
A Assíria impeliu o Oriente Médio rumo à globalização: uma única
política, uma única economia, uma única língua. Assim o rei assírio Sargão
(r. 722-705 a.C.) expressou a ideologia imperial:
Povos das quatro regiões do mundo, de língua estrangeira e idioma divergente,
habitantes da montanha e da planície, todos aqueles que eram governados
pela luz dos deuses, o senhor de tudo, eu conquistei em Assur, sob o comando
de meu senhor, pelo poder de meu cetro. Eu os tomei uma só boca e os esta­
belecí ali. Enviei assírios, inteiramente capazes de ensiná-los a temer a deus
e ao rei, como escribas e supervisores [Cihndro de Dur Sharrukin).
Os assírios não apenas conquistaram um verdadeiro império que por
fim estendia-se da índia ao Egito, mas também implementaram uma admi­
nistração imperial para governar esse império. A escrita tomou-se uma ferra­
menta cada vez mais importante para isso. Sem dúvida, os assírios optaram
pelo uso do aramaico (em vez do acádio, sua língua nativa) ao enviar “es-
cribas e supervisores” para administrar as terras conquistadas pelo fato de
que o aramaico — com seu sistema de escrita alfabética — era mais fácil

94
l^/.ccjuiaíi c o inido da literatura hiblieu

de implementar na instrução desses burocratas do que o sistema süábico


cuneiforme, excessivamente complexo.
A difusão da escrita acompanha a ascensão do império. Aqui, não me
refiro simplesmente à disseminação de uma língua franca entre os escribas,
mas à habüidade de escrever, que começa a se difundir em diferentes
classes sociais. A escrita é cada vez mais usada nas atividades administrativas
e econômicas diárias em todo o Oriente Médio. N a Fenída, por exemplo, um
nítido aumento de remanescentes epigrállcos encontra paralelo no aumen­
to de remanescentes epigráficos em Israel. Alan Millard, professor de es­
tudos orientais na Universidade de Liverpool, observou que, do século VIII
em diante, há um perceptível aumento de grafitos em potes e em túmulos
na Fenícia. Ele conjetura: “Sua distribuição na Fenída, em outros pontos da
região do Levante e em áreas do interior é uma evidência de que a leitura
e a escrita não estavam confinadas no palácio e no templo”h A dissemina­
ção da escrita que tem inicio no século VIII não é, por conseguinte, um
fenômeno judeu isolado. Ela faz parte de uma tendênda mais ampla no
Oriente Médio, associada à expansão do Império Assírio. Em Judá, porém,
a difusão da escrita teria consequências sociais únicas.
O Império Assírio engoliu os Estados menores em sua marcha lumo
ao oeste. A região da Galileia sucumbiu a Teglat Falasar III em 734 a.C. O
reino setentrional de Israel foi reduzido a ixm vassalo direto do Império
Assirio. O pequeno Estado de Judá também passou a pagar tributo à Assíria.
Israel rebelou-se contra o Império em 722 a.C., e os exércitos assírios
chegaram em massa e liquidaram os rebeldes. Refugiados afluíram para o
sul rumo a Judá, fugindo do ataque assírio. O norte ficou então sob domí­
nio direto da Assiria. Somente Judá se manteve.

Urbanização

A ascensão da Assíria na metade do século VIII devastou Estados me­


nores e transformou a paisagem de todo o Oriente Médio. Um dos resultados
foi a urbanização. A ferocidade do Império Assírio pressionou as populações

1. A. Millard, The Uses of the Early Alphabets, in Phoinikeia Grammata: Lire et écrir
en Méditerranée (ed. C. Baurain, C. Bonnet e V. Krings), Namur, Sodété des Études Clas-
siques, 1991,105.

95
Como a Bíblia tornou-w- um livro

rurais a se estabelecer nas cidades, nas quais poderiam encontrar relativa


segurança^. As cidades concentravam os recursos econômicos e as habilida­
des técnicas para construir fortificações e, assim, obtinham proteção diante
dos exércitos invasores. Os povoamentos em aldeias não tinham como tirar
pleno proveito do poder militar da sociedade, que era mais eficientemente
aplicado em tomo das cidades. Judá, como o restante do Oriente Médio,
sofreu uma acentuada transição a partir do final do século VIII, tomando-se
uma sociedade mais urbana^.
Podem-se dtar muitos exemplos de conflito urbano-rural na Uteratura
bíblica, mas um caso particularmente nítido é suficiente aqui. No século DC,
a rainha Ataliá reivindicou o trono de Judá por meio de intrigas e assassi­
nato, segundo a narrativa bíblica fcf. 2Rs 11]. Seu reinado chegou ao fim
numa revolução orquestrada pelo “povo da terra” (Tiebraico, ‘am ha-aretz).
O narrador bíblico resume esse golpe de Estado observando; “Alegrou-se
todo o povo da terra, e a cidade se manteve calma. Ataliá, entretanto, fora
morta à espada no palácio real” (2Rs 11,20). O narrador contrapõe “o
povo da terra” — um Estado mral — à cidade, que, aparentemente, apoiou
a ascensão de Ataliá ao poder^. Em suma, os autores da Bíblia com certeza
parecem estar conscientes da dicotomia entre o urbano e o mral e do pro­
fundo impacto que a emergência da urbanização teve sobre Judá no último
período da monarquia.
O caráter específico da ixrbanização da sociedade judia entre os séculos
VIII e VII a.C. pode ser visto nas mudanças na cultura material de Judá.

2. Vale notar que Salmanassar III (r. 858-824 a.C.) frequentemente lutou em campo
aberto, o que sugere uma presumida paridade entre os oponentes. No final do século VIII,
em contraste com isso, os monarcas assirios mais usualmente realizavam cercos, o que sugere
sua superioridade irulitar; cf. I. Eph’al, On Warfare and Military Control in the Ancient
Near Eastem Empires: A Research Outline, in History, Historiography and Interpretation:
Studies in Biblical and Cuneiform Literatures (ed. H. Tadmor e M. Weinfeld], Jerusalém,
Magnes Press, 1983, 88-106.
3. Ver H. Kuhne, The Urbanization of the Assyrian Provinces, in Nuove Fondazioni nel
Vid.no Oriente Antico: Realtà e Ideologia [ed. S. Mazzoni], Pisa, Giardini, 1992, 55-83.
4. Ver a discussão sobre “o povo da terra" em meu hvro anterior, Society and the Promise
to David: A Reception History of 2 Samuel 7:1-17, Nova York, Oxford University Press,
1999, 77-80.

96
ri/A'(.)uiaí. <.• I.) iiiiu o tia litfriULira biblita

A cerâmica é em geral o tipo de remanescente mais abundante da cultura


material descoberto em escavações arqueológicas. Os arqueólogos a utili­
zam como um guia para conhecer a vida de um povo. Há uma uniformi­
dade quase surpreendente na cerâmica do final do século VTII, especial­
mente quando se compara com a variedade de influências encontradas
na cerâmica do final do século VIP. A uniformidade da cerâmica anterior
indica o isolamento de Judá até o século VIII a.C. A cultura material de
Judá exibe poucas influências externas e pouco comércio exterior. Em
contraste com isso, a cultura material do século VII oferece evidências de
diferentes influências culturais. Isso refletia a integração de Judá na eco­
nomia mundial promulgada pela Assíria.
Arqueólogos desenterraram outros aspectos da cultura material que
retratam tendências similares. N a arquitetura, a clássica casa israeUta de
quatro cômodos, por exemplo, ficou menor, ajustando-se a uma população
cada vez mais urbana e móvel. No âmbito doméstico, até mesmo o tama­
nho dos utensílios culinários de cerâmica diminuiu à medida que a socie­
dade evoluiu rumo a famílias nucleares menores®. Implícita nessas dife­
renças está a enorme transformação da sociedade judia, passando de uma
nação rural isolada a uma nação urbanizada cosmopolita. Especialmente
nos dias de Ezequias, Judá teve um crescimento significativo não só em sua
população, mas também na dimensão de suas cidades. Houve também um
nítido aumento no número de inscrições e monumentos públicos, bem
como na acessibilidade de artigos de luxo — sendo tudo isso sinal de
urbanização^.

5. O. Zimhoni, Two Ceramic Assemblages from Lachish Leveis III and II, 7>117 (1990)
49; ver também N. Na’aman, The Kingdom of Judah under Josiah, TA 18 (1991) 3-71. Uma
imagem similar reflete-se também em locais como Timnah (Tel Batash) e Acaron (Tel Miqne)
— todas elas cidades nos contrafortes a oeste de Jerusalém e a leste da planície litorânea.
6 . Ver B. Halpem, Jerusalem and the Lineages in the Seventh Century b c e : Kinship

and the Rise of Individual Moral Liability, in Law and Ideology in Monarchic Israel (ed. B.
Halpem e D. W. Hobson), Sheffleld, Sheffield Academic Press, 1991, 11-107.
7. Ver os ensaios de J. Holladay Jr., The Kingdoms of Israel and Judah; PoUtical and Eco-
nomic Centralization in the Iron IIA-B (ca. 1000-750 BCE), e W. Dever, Social Structure
in Palestine in the Iron II Period on the Eve of Destmction, in The Archaeology of Society in
the Holy Land (ed. T. Levy), Nova York, Facts on File, 1995, 368-398, 416-431.

97
Como a Bíblia tornou-sp um livro

A urbanização seria o catalisador necessário para uma atividade lite­


rária mais disseminada. Embora a atividade escribal tenha ocorrido no solo
menos fértil do princípio da monarquia (nos séculos XI-IX a.C.) e durante
os períodos babilônio e persa (séculos VI-IV a.C.], as condições sociais
favoreceram o florescimento da literatura hebraica nos séculos VIII e VII
a.C. Essas mudanças na vida social do povo judeu foram especialmente
perceptíveis na cidade de Jerusalém.

A urbanização de Jerusalém

Devemos presumir que a capital política e religiosa, Jerusalém, foi o


centro da compilação e da composição da literatura bíbhca. Com efeito, os
primeiros passos para a compilação das tradições literárias de Israel (e de
Judá] devem ter sido patrocinados pelas instituições da monarquia e do tem­
plo. Assim, é para Jerusalém que devemos voltar nossa atenção a fim de
compreender como a Bíblia tornou-se um livro. Antes das escavações em
Jerusalém durante a década de 1970, havia considerável polêmica acerca do
tamanho de Jerusalém no período da monarquia judia®. A discussão declinou
após a descoberta feita por Nahman Avigad de uma enorme muralha em
tomo da ddade (denominada “a grande muralha”), medindo mais de seis me­
tros de largura, situada nos montes a oeste de Jemsalém (ver a figura 5.1).

Jerusalém na época
de Ezequias
(c. 700 a.C.)

Cidade.
de Davi

Populaçéo: B.OOO População: 30.000 PopulaOo: 40.000 T


Dimensão: 32 acres Dimenséo: 130 acres Dimenséo: 150 acres

Figura 5.1. O crescimento de Jerusalém durante a monarquia judia

8. Ver N. Avigad, DiscoveringJerusaíem, Jerusalém, Israel Exploration Sodety, 1980,26-31.

98
i/.uquias e o iniLÍo da literatura bíblÍLU

A muralha data do final do século VIII e é atribuída a Ezequias como


parte dos preparativos por ele empreendidos contra um possível ataque
assírio. Agora está claro que Jerusalém teve sua dimensão ampliada em
mais de quatro vezes no final do século VIII e continuou a se expandir
até os últimos dias do Estado judeu.
O crescimento de Jerusalém foi um subproduto da ascensão do Im­
pério Assírio. Antes de mais nada, a Assíria destruiu o reino setentrional
de Israel, o que resultou na imigração de israelitas para Jerusalém e outras
cidades ao sul. Alguns anos mais tarde, um novo influxo de refugiados
destituídos chegou a Jerusalém vindos dos contrafortes de Judá após a
campanha de Senaquerib contra Judá em 701 a.C.®. Esses dois eventos
militares apenas intensificaram a predileção pela urbanização que se ma­
nifestava em todo o Império Assírio em resposta à realidade política e eco­
nômica. Desse modo, como veremos, tais eventos podem ser situados no
contexto mais amplo que formou a cidade de Jerusalém e determinou a
redação da Bíblia nesse local.
Em 722 a.C , Ezequias enfi-entava um afluxo de imigrantes vindos do
reino do norte derrotado. Em vez de entrincheirar suas fronteiras, Ezequias
procurou integrar esses refugiados em seu domínio, almejando assim restaurar
a épocà de ouro de Israel, o rei de Davi e Salomão. Portanto, as famosas pro­
fecias “messiânicas” de Isaías sobre Jerusalém devem ter sido entendidas pelos
cidadãos de Jerusalém como comentários relativos a esse tema e como proje­
to político. No capítulo 9 de Isaías (Is 8,22-23.9,1-6), por exemplo, lê-se:

Mas a escuridão será dissipada, pois não haverá mais escuridão lá onde havia
angústia. No passado ele humilhou o país de Zahulon e o país de Neftali,
mas no íuturo ele glorificará o caminho do mar, o Além-Jordão, e o distrito
das nações.
O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre os que habitam o país
na escuridão uma luz resplandeceu. [...] Porque o jugo que lhe pesava, a barra
sobre seus ombros, a vara de seu opressor, tu os quebraste como no dia de
Madian. [... ] Pois um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; ele rece­
beu o império sobre os ombros e foi-lhe dado como nome: “Conselheiro Admi-

9. M. Broshi, The Expansion of Jerusalem in the Reigns of Hezekiah and Manasseh


lEJ 24 (1974) 21.

99
Como a Bíblia tornoii-sp um livro

rável, Deus Fort^ Pai para sempre, Príncipe da Paz". Imenso é o império, e uma
paz sem fim para o trono de Davi e seu reino, desde agora e para sempre.

O próprio livro de Isaías situa essa profecia entre 730 e 715 a.C. —
apenas alguns anos após a conquista da Galüeia por Teglat Falasar III e
talvez vários anos depois da derrota final do norte. Contudo, a profecia
oferecia esperança àquele “povo que andava nas trevas”. Ou seja, estendeu
a Promessa Davídica ao reino do norte. Os israelitas andavam nas trevas não
só em virtude da escuridão e do desespero lançados sobre eles pela “vara
de seu opressor” (os assírios), mas também por terem rejeitado o legítimo
rei do norte e do sul unidos — o filho de Davi. Quem era essa criança que
havia nascido? Quem era esse filho que nos era dado? Uma profecia anterior
já falara desse filho de Davi. Em Isaías 7,14, nos dias de Acás, rei de Judá
(r. 735-715 a.C.), Deirs deu um sinal à Casa de Davi: “Eis que a jovem
mulher está grávida e dará à luz um filho, ao qual ela chamará de Emanuel”
(em hebraico, literalmente, “Deus está conosco”). Para a audiência de Isaías,
essa criança não poderia ser outra senão Ezequiasl Nostalgicamente, o
povo de Jerusalém esperava que Ezequias, o filho de Davi, restaurasse a
época de ouro de paz e prosperidade.
Ezequias tentou récriar o período idílico de Davi e Salomão, mas suas
tentativas terminaram em desastre. Quando o rei assírio Sargão morreu, em
705 a.C., Ezequias Uderou uma coalizão (imprudente) contra o Império
Assírio. O novo monarca assírio, Senaquerib (r. 705-681 a.C.), estava no
trono havia quatro anos até conseguir dissolver a rebelião de Ezequias na
remota parte ocidental do império. Quando os assírios finalmente desis­
tiram, em 701 a.C., as consequências foram devastadoras. Em seus anais,
Senaquerib registrou:

Quanto a Ezequias, o judeu, ele não se submeteu ao meu jugo. Sitiei 46 de


suas cidades fortes, fortificações muradas e incontáveis pequenas aldeias, e as
conquistei por meio de rampas de terra compactada e aríetes que nos puseram
perto das muralhas, juntamente com o ataque de soldados de infantaria,
usando túneis, brechas e também o trabalho de sapadores. Expulsei 200.150
pessoas, jovens e velhos, homens e mulheres, cavalos, mulas, jumentos, came­
los, gado grosso e miúdo sem conta, e a tudo considerei espólio de guerra. A
ele próprio fiz prisioneiro em Jerusalém, sua residência real, como um pássaro
numa gaiola. Cerquei-o de barreiras para obstar aqueles que estavam deixando

100
l'>.t'quias e n inicio da liieraUira biblua

o portão de sua cidade. Suas cidades, que eu havia saqueado, tomei-as de sua
nação e as entreguei a Mitínti, rei de Azoto, a Padi, rei de Acaron, e a SÜ-Bel,
rei de Gaza. Assim reduzi sua nação, mas elevei ainda mais o tributo e os pre-
sentes-katríi a mim devidos na condição de seu senhor, que impus a ele além
do tributo precedente, a serem pagos anualmente.'®

Uma segunda enxurrada de refugiados seguiu-se à incauta tentativa de


Ezequias de afirmar sua independência da Assíria. A invasão de Senaquerib
devastou os contrafortes judeus a oeste de Jerusalém. Segundo os cálculos
arqueológicos, houve um decréscimo de oitenta e cinco por cento no
número de grandes e pequenas cidades nos contrafortes a oeste de Jerusalém
no final do século VIII em resultado da invasão de Senaquerib. A população
diminuiu em cerca de setenta por cento, o que sugere que a despopulação
afetou especialmente as aldeias e cidades agrícolas menores, mais do que as
grandes cidades". Portanto, a invasão de Senaquerib resultou na despopu­
lação das áreas rurais e no aumento da urbanização.
Os escribas reais de Ezequias alegaram uma pequena vitória em meio à
devastação: Ezequias permaneceu no trono. Deus o salvara. O exército assírio
retirou-se misteriosamente. Um relato bíblico atribiriu isso ao anjo do Senhor
que chacinou o exército assírio. O historiador grego Heródoto, do século V
a.C , aparentemente conhecia uma lenda sobre essa libertação de Jerusalém.
Ele narra como o exército assírio foi forçado a se retirar porque uma legião
de ratos roeu as cordas dos arcos do exército enquanto os soldados dormiam.
A interpretação real permitiu que Ezequias afirmasse ter vencido, mas ele
não conseguiu realizar seu sonho de uma nova época de ouro.
Uma burocracia governamental floresceu jimto com a população de
Jerusalém. Muitos projetos públicos de construções espelharam o cresci­
mento do governo central. Esses projetos incluíram fortificações [como na
famosa “grande muralha”), grandes projetos hídricos [como o Túnel de
Ezequias) e um novo centro administrativo do governo [conhecido hoje
como Ramat Rahel), a cerca de três quilômetros de Jerusalém. O governo

10. Tradução de ANET, 287-288.


11.1. Finkelstein, The Archaeology of the Days of Manasseh, in Scripture and Other
Artifacts: Essays on the Bible and Archaeology in Honor of Philip J. King (ed. M. Coogan,
J. Cheryl Exum e L. Stagerj, Louisville, Westminster John Rnox, 1994, 173.

101
Como a BíHia torncui-se um livro

também instituiu um novo sistema de taxação e abastecimento. Os rema­


nescentes arqueológicos mais visíveis dessa administração são os jarros de
estocagem reais e as impressões de sinetes sobre eles (ver figura 5.2}’^.
O jarro de estocagem real mediano tinha capacidade para cerca de dez
litros e meio [ou dois batos — uma medida bíblica]. Centenas de impres­
sões de sinetes reais foram encontradas em escavações em todo reino de
Judá. Elas foram encontradas em escavações no norte de Israel, refletindo
as aspirações de Ezequias de incorporar o reino do norte depois que este
foi conquistado pelos assírios. Os sinetes eram estampados nas alças dos
jarros enquanto o barro ainda estava úmido. A insígnia real, provavelmente
mais bem compreendida como um disco solar pairante, ocupa o centro de
cada sinete. Abaixo da insígnia, o sinete exibe a inscrição hebraica “lemelek”,
“pertencente ao rei”, e o nome de uma das quatro cidades — Hebron, Soco,
Zif ou MMST. Esta última, a enigmática MMST, provavelmente se referia
ao novo centro administrativo local do governo em Ramat Rahel, que foi

Figura 5.2. Jarro de armazenamento real e sinete lemelek


[usado com permissão de David Ussishkin]

12. Um breve sumário e bibliografia sobre esses jarros e sinetes podem ser encontra
dos em D. Lance, Stamps, Royal Judean, in ABD, vol. 6, 184-185.

102
l'.zot|uias e o inicio da literatura biblicí

construído no final do século VIII. No século VII, as inscrições hnlk foram


substituídas por rosetas^^.
Uma das mais famosas inscrições do período final do século VIII é um
grafito monumental descoberto dentro do Túnel de Ezequias (às vezes
chamado de “Túnel de Siloé”). A inscrição celebra a façanha de engenharia
de construir um túnel talhado na rocha com quatrocentos metros de com­
primento para direcionar a água da Fonte de Giom, passando sob a cidade
de Davi, até os montes a oeste e ao reservatório chamado de Tanque de
Siloé. Embora esse projeto de engenharia deva ter sido patrocinado pelo
governo judeu, a inscrição foi evidentemente executada por trabalhadores dos
túneis^'*. Dois textos bíbficos independentes, Isaías 22,9-11 e 2 Reis 20,20,
aludem a esse projeto. Este último texto faz parte da fonte de citação do
reinado do rei Ezequias, em que se lê: “O resto da história de Ezequias, suas
proezas, e como fez o reservatório e o canal, conduzindo água para a cidade,
tudo não está consignado nos Anais dos Reis de Judá?”. O texto completo
da inscrição no túnel é o seguinte:

Essa é a história da perfuração. Enquanto [os minadores empunhavam] suas


picaretas, cada homem na direção de seu companheiro, e quando ainda havia
três côvados a serem [perfurados], a voz de um homem [foi ouvida] cha­
mando seu companheiro porque havia uma fissura na rocha indo do sul [para
0 nor]te. No dia em que se fez a perfuração, os minadores golpearam, cada
homem na direção de seu companheiro, batida após batida; e a água fluiu
da fonte para o tanque por uma distância de mil e duzentos côvados. Cem
côvados era a altura da rocha acima das cabeças dos minadores.

Talvez o espírito de celebração reflita o improvável êxito do túnel. Co­


mo descrito na inscrição e revelado na investigação arqueológica, o túnel
foi cavado a partir das duas extremidades ao mesmo tempo. O encontro

13. J. Cahill, Rosette Stamped Handles, in Excavations at the City ofDavid, vol, 6:
Inscriptions (ed. A. Belfer-Cohen etal.) QEDEM, 41), Jerusalém, Instituto de Arqueologia,
Universidade Hebraica de Jerusalém, 2000, 85-108.
14. Ver a discussão de Niditch e a literatura ali citada: S. Niditch, Oral World and
Written Word: Ancient IsraeÜte Literature, Philadelphia, Westminster John Knox Press,
1966, 54-55 (Library of Ancient Israel).

103
Como a Bíblia tomoii-se um livro

no ponto intermediário foi uma façanha de engenharia que ainda deixa


os estudiosos perplexos'^. A inscrição em si foi escrita num painel prepa­
rado, de cerca de cinco metros de altura e sessenta e seis centímetros de
largura, mas o texto ocupa apenas a metade inferior do painel. Esse curioso
fato conduziu a diversas teorias. Clermont-Ganneau sugeriu originalmente
que se pretendia inserir algum tipo de relevo na metade superior^®. Outros
sugeriram que a chegada das tropas assírias interrompeu o processo de
inscrição do painel, deixando-o incompleto. Essas explicações supõem
que a inscrição foi cuidadosamente planejada e que esteja de fato inacaba­
da. Tomada como está, porém, a parte em branco do painel pode sugerir
mau planejamento e má execução da inscrição. Se este for o caso, então
adotaríamos uma abordagem diferente na interpretação do texto. A hipótese
de que o painel e o texto demonstram planejamento e execução rudi­
mentares é apoiada pelo fato de a inscrição não mencionar nem o rei nem
os deuses — um lapso sem paralelo nas inscrições em construções régias.
Além disso, a inscrição foi feita seis metros para dentro do túnel a partir
da saída no Tanque de Siloé. Em outras palavras, somente aqueles que
trabalharam no túnel e entalharam a inscrição teriam conhecimento de
sua existência. Ao mesmo tempo, essa inscrição não é um simples grafito.
Embora não seja uma inscrição do rei, a parede em que aparece foi cuida­
dosamente preparada e suas letras foram elegantemente entalhadas na
dura rocha calcária. Aqui, fora do palácio real e do templo, a escrita está
sendo usada por engenheiros, artesãos e trabalhadores para memoriar suas
realizações. O fato de que essa escrita se dê fora do palácio ou do templo é
muito significativo. Isso prenuncia grandes mudanças no papel da escrita
na sociedade judia.
O crescimento de Jerusalém também teve correspondência no alas­
tramento urbano. Novas aldeias agrícolas surgiram como um interior rural

15. Ver S. Lancaster e G. Long, Where They Met: Separatíons in the Rock Mass Near
the Siloam Tunners Meeting Point, BASOR 315 [1999] 15-26; A. Faust, A Note on the
Location of the Siloam Inscription and the Excavation of Hezekiah’s Tunnel, in New Studies
on Jerusalem: Proceedings of the Second Conference November 28th 1996 [ed. A. Faust],
Ramat Gan, Ingeborg Rennert Center for Jerusalem Studies, 1996,21-24.
16. Ver C. Clermont-Ganneau, Les Tombeaux de David et des rois de Juda et le
tunnel-aqueduc de Süoe, Recueil d'archéolo^e orientale 2 [1898] 254-294.

104
h/.oquiaí e o inicio da literatura bíblica

para Jerusalém'^. Conforme já mencionamos, um novo centro administra­


tivo foi estabelecido em Ramat Rahel, a cerca de três quilômetros ao sul
de Jerusalém, como capital secundária para a cidade e para ajudar a aliviar
sua superpopulação’®.A cidade de Gabaon [oito quilômetros ao norte de
Jerusalém) emergiu como um importante centro industrial para produtos
agrícolas e vinho’®. O crescente alastramento de Jerusalém correspondeu
(1) à mudança demográfica dos contrafortes do oeste para a área monta­
nhosa, [2) à necessidade de produção agrícola para abastecer Jerusalém e
a administração de Ezequias e [3) à substituição da infraestrutura agrícola
devastada nos contrafortes judeus^°.
Em suma, o final do século VIII testemunhou um processo de rápida
centrahzação e urbanização. Judá deixou de ser um grande Estado rural,
transformando-se num Estado menor, porém mais centrahzado e urbani­
zado. A centrahdade de Jerusalém foi de fato resultado do aumento ex-
ponencial da população da cidade e da despopulação dos contrafortes a
oeste. Jerusalém, que tinha cerca de seis por cento da população total de
Judá na metade do século VIII a.C., alcançaria cercá de trinta por cento
quase em menos de duas gerações^’ . Esses processos foram coordenados

17. Pesquisas recentes na área de Jerusalém descobriram tima série de povoamentos dos
séculos VIII a VI; ver G. Eddstein e I. Milevski, The Rural Setdement of Jerusalem Re-evaluated;
Surveys and Excavations in the Reph’aim Valley and the Mevasseret Yerushalayim, PEQ
126 [1994] 2-11; S. Gibson e G. Edelstein, Investigating Jerusalem’s Rural Landscape,
Levant 17 (1985] 139-155.
18. Ramat Rahel foi um problema para a geografia histórica. É frequentemente identificada
como Bet-Acarem (Jr 6,1; Ne 3,14; Js 15,59a [LXX]]. G. Barkay oferece um argumento con­
vincente em defeSa de sua identificação com a enigmática “MMST", mencianada nas numerosas
impressões de sinetes "hnlk’' encontradas no local; c£ Ramat Rahel, in NEAEHL, 1261-1267.
19. Ver J. Pritchard, Industry and Tiade at Biblical Gibeon, BA 23 (1960] 23-29; S. Gitin,
Incense Altars from Ekron, Israel and Judah: Context and typology, EI 20 (1989] 52*-67*.
20. Houve também uma súbita expansão do povoamento nas regiões mais áridas do
vale de Bersabé e do deserto da Judeia; ver I. Finkelstein, The Archaeology of the Days of
Manasseh, 175-176.
21. As percentagens dependem do tamanho exato de Jerusalém depois de 701 a.C.
Finkelstein adota uma estimativa conservadora de 60 hectares. Mesmo isso se traduziria
num aumento de quase quatro vezes na dimensão de Jerusalém, tomando a população de

105
Como a Bíblia tornoii-sc vim livro

com uma ideologia política que pretendia a restauração de uma época


de ouro para Judá e a reunificação do reino do norte. Essa época de ouro
seria textualizada pela compilação, composição e edição da literatura por
parte dos escribas reais de Ezequias.

A criação de uma época de ouro por parte de Ezequias

A principal figura na formação da literatura bíblica foi o rei Ezequias.


Seu pai, Acás (r. 735-715 a.C.), sobreviveu às incursões de inimigos locais,
os reis de Samaria e Damasco, tornando-se um representante leal do
Império Assírio. Ezequias presidiu o crescimento exponencial de Jerusalém
e pôs em funcionamento um forte governo central para supervisionar sua
urbanização e sua organização militar. A emergência de uma burocracia
governamental é evidente pela súbita explosão de remanescentes epigrá-
ficos, incluindo sinetes reais e governamentais. Essa burocracia supervi­
sionou um novo sistema de taxação, cujos rendimentos forneciam fundos
para vigorosos projetos de edificações em toda a região de Judá. Tudo isso
conduziu à audaciosa tentativa de Ezequias de se libertar do jugo assírio
e criar um reino de Judá independente. Embora o sonho de Ezequias de um
reino amplo e independente tenha sido devastado pelos assírios, o legado
de sua visão sobreviveu na Uteratura bíblica.
Uma parte central do projeto político de Ezequias parece ter sido a
ideia de recriar a época de ouro de Israel, ou seja, a época de Davi e Salo­
mão. Ainda que a arqueologia tenha sugerido que o “império” davídico-
salomònico fosse, na verdade, algo modesto, os primeiros reis de Israel con­
seguiram criar um reino unificado a partir das diversas tribos e clãs que
caracterizaram o segundo mílênio^^. A brevidade do reino davídico-salo-

Jerusalém 23% da população total de Judá. Barkay argumenta, de modo persuasivo, em


defesa de uma Jerusalém muito maior, com 100 hectares, o que representa cerca de 34%
da população (G. Barkay, Northern and Western Jerusalem in the End of the Iron Age, Ph.
D. diss., Tel Aviv University 1985).
22. A despeito dos esforços para rejeitar completamente a monarquia unificada, a
evidências não sustentam tais tentativas. Ver B. Halpern, Erasing History, Bible Review 11
(1995) 27-35,47.

106
li/.equias c o inicio da literatura bihIÍL

mônico provavelmente contribuiu para sua idealização posterior. Assim


como foram necessários apenas alguns anos para imortalizar o presidente
assassinado John F. Kennedy, também a divisão do reino de Israel em norte
e sul certamente levou, pouco depois, à idealização de Davi e Salomão.
Na realidade, é provável que esse anseio pela época de ouro não tenha sido
iniciado por Ezequias. A nostalgia do passado e das raízes faz parte do pró­
prio tecido da condição humana. Ezequias, porém, conferiu a essa nostal­
gia uma forma política e literária. Ele e seus escribas reais codificaram a
época de ouro de Davi e Salomão por meio da hteratura.
No importante aparato de um rei estavam incluídos seu escriba e a
bibhoteca real. Até mesmo aspirantes a reis como Abdi-Heba, prefeito de
Jerusalém no século X IV a.C., ou Mesá, chefe de Moabe no século IX a.C ,
tinham escribas. Não é de surpreender que o florescimento da escrita e
das artes escribais não fosse um fenômeno exclusivamente judeu. Os reis
neoassírios da época também estavam criando arquivos e bibliotecas^^. O
número de arquivos e bibfiotecas no Oriente Médio elevou-se dramatica­
mente no início do séado VIII e atingiu seu ápice no-século VII a.C. Quase
todas as grandes cidades do império neoassírio ofereceram evidências de
bibliotecas e arquivos. Até Nabu, o deus babÜônico dos escribas, foi adotado
como um deus assírio no século VII a.C.^"*. A mais famosa dessas bibliote­
cas foi a grande bibhoteca de Nínive. Ela foi criada na época do monarca
assírio Senaquerib [contemporâneo e algoz de Ezequias), que fez de Nínive
a capital da Assíria. A construção de bibfiotecas foi uma paixão particular do
rei assírio Assurbanipal [r. 668-627 a.C.). Em certa carta, ele escreve:

Até a última tábua de seus estabelecimentos e todas as tábuas que houver


em Ezida [nome do santuário do deus dos escribas na cidade de Borsipa],
Reúnam todos os [...] [aqui é citada uma longa lista de tipos de textos) e

23. Ver J. Black e W. Tait, Archives and Libraries in the Andent Near East, in Cnrilizatkms
ofthe Andent Near East [ed. J. Sasson; Simon & Schuster, 1995), 2197-2209; O. Pedersén,
Archives and Libraries in theAndent Near east, 1500-300 B.C., Bethesda,MD, CDL Press, 1998,
158-164. De modo mais geral, ver L. Casson, Libraries in the Andent World, New Haven, Yale
University Press, 2001.
24. Ver “Nabu” in Gods, Demons and Symbols in Andent Mesopotamia: An lUustrated
Dictionary (ed. J. Black e A. Green), Austin, University of Texas Press, 1992,133-134.

107
Como a BiVilia tormni-so um livro

enviem-nos a mim [...]. Se encontrarem alguma tábua que eu não tenha


mencionado e que seja apropriada a meu palácio [...], enviem-na a miml

Um fenômeno similar parece ter ocorrido no Egito. Por exemplo, o


faraó Shabaqa (r. 716-702 a.C.) recupera “livros do t e m p l o E s s e con­
temporâneo egípcio de Ezequias encorajou o restabelecimento da antiga
teologia menfita dos deuses criadores que vigorava no segundo milênio.
Assim, a compilação e edição dos textos realizadas por Ezequias encon­
tram paralelos tanto entre os assírios como entre os egípcios.

O s homens de Ezequias

N a hteratura bíblica, o aumento da atividade dos escribas de Ezequias


é atestado por uma observação aparentemente casual em Provérbios 25,1.
Ali, lemos: “Eis ainda provérbios de Salomão, transmitidos pelos homens
[isto é, os escribas] de Ezequias, rei de Judá”. Podemos conjeturar se este
texto atribui corretamente esses provérbios a Salomão. Afinal, a maior parte
dos estudiosos concorda que esses textos foram redigidos muito depois de
sua época. Para o redator do livro, no entanto, a afirmação de que esses
provérbios derivavam-se originalmente do grande rei Salomão era algo de
suma importância. O ponto fundamental do comentário, no primeiro ver­
sículo do capítulo, de que os homens de Ezequias registraram alguns dos
provérbios de Salomão é que os provérbios são de Salomão. O fato de que
os homens de Ezequias os puseram por escrito parece ser meramente se­
cundário. Para nossos propósitos, esse comentário casual contém uma pista
para compreendermos quando teve início a escrita da Bíblia.
A declaração de que os homens de Ezequias compilaram esses provérbios
certamente não está imbuída das mesmas implicações ideológicas associadas
à atribuição dos provérbios a Salomão. O prestígio dos provérbios deriva-se
do fato de serem atribuídos a Salomão, e não de terem sido coligidos por
Ezequias. Ezequias viveu quase dois séculos após a morte de Salomão. Com

25. A. Loprieno, La pensêe et Vécriture: pour une analyse sémiotique de la cultur


égyptienne, Paris, Cybele, 2001, 127 (ver, de modo mais geral, as observações de Loprieno
nas páginas 124 a 128j.

108
Ezcquias e o inicio da literaiiira bihlii.a

efeito, Ezequias não desempenha nenhum papel nos temas literários do


Livro dos Provérbios, embora o venerável rei Salomão tenha um papel im­
plícito como o sábio pai e professor real [ver Pr 1,1.8; 2,1; 3,1.21; 4,1-11
etc.}. Ezequias, em contraposição, é secrmdário. É exatamente esse tipo de
observação desinteressada que pode ser a chave para a pesquisa histórica.
Não temos razões a priori para desprezar a afirmação de que os homens de
Ezequias tenham registrado por escrito os provérbios.
Embora esses provérbios sej am tradicionalmente atribuídos a Salomão,
encontram sua forma escrita na época de Ezequias. Que outras partes da
Bíblia podemos atribuir à época de Ezequias? As atividades literárias de
seus escribas, que procuravam recuperar a literatura de uma época de ouro
(e, ao fazê-lo, ajudaram a criar uma época de ouro), sem dúvida foram além
da mera compilação dos provérbios de Salomão. Com efeito, temos sorte de
ter esse comentário casual, mas ele é apenas um prenúndo que chama nossa
atenção para uma importante fase da redação da Bíblia. Por imphcação, o
Cântico dos Cânticos é também atribuído ao aclamado rei Salomão. O
Livro dos Reis narra lendas sobre a sabedoria de Salomão (por exemplo,
1Rs 3,10). E, embora a datação do Livro do Eclesiastes seja objeto de certa
polêmica^®, também está implícito que ele provém dos lábios do rei Salo­
mão. A compilação e a atribuição dessa literatura a uma época de ouro
coincidem com outras atividades durante o reinado de Ezequias.
Chegou o momento de avahar brevemente de que maneira esse con­
texto sociopolítico pode ter moldado a composição dos textos bíblicos.
A atividade literária do remado de Ezequias era txma projeção do poder e
da ideologia reais, particularmente na medida em que está relacionada à
queda do norte e à sobrevivência da Casa de Davi em Judá. Os projetos
literários de Ezequias aparentemente incluíam o trabalho histórico, a com­
pilação das tradições mosaica e sacerdotal e o registro escrito das tradições
proféticas, incluindo Isaías de Jerusalém, Amós e Oseias.
A escrita tomou-se também um meio para uma crítica do poder ur­
bano e real, como no Livro de Miqueias. O profeta Miqueias veio de uma
pequena aldeia judia chamada Moresheth, nos contrafortes de Jemsalém.

26. Ver, por exemplo, C. L. Seow, Linguistic Evidence and the Dating of Qohelet, JBL
115 (1996) 643-666; Avi Hurvitz, Review: Qohdeth’s Language: Re-evaluating its Nature
and Date, de Daniel C. Fredericks, Hebrew Stuãies 31 (1990) 144-154.

109
Como j Bililia tornoii-so um livro

Não surpreende que ele seja um defensor do povo e um crítico das eUtes
urbanas. Miqueias execra aqueles que “construíram Sião com o sangue e
Jerusalém com a injustiça” (Mq 3,10). Ele condena as injustiças sociais
que o povo do campo via como proveniente da iirbanização. Miqueias dá
voz ao “povo da terra”, que ainda apoiava fortemente a monarquia daví-
dica. Posteriormente, eles se sublevariam após o assassinato do rei Amon
[640 a.C.) para erguer ao trono o jovem Josias. A família de Josias também
era oriunda de um pequeno vilarejo [Bosqat) bem próximo do de Miqueias.
O próprio Miqueias sustenta o ideal do rei pastor da aldeia de Belém: “E
tu, Belém-Efrata, pequena entre os clãs de Judá, é de ti que sairá para mim
aquele que deve governar Israel, e cujas origens remontam aos tempos de
oufrora, aos dias antigos. [... ] Ele ficará de pé e apascentará, com o poder
de YHWH, seu Deus” [Mq 5,1-3). Previamente, no século IX a.C , nos
tempos da rainha Ataliá [r. 845-837 a.C.), o “povo da terra” apressara-se
em apoiar o restabelecimento da linhagem davídica quando esta foi amea­
çada “pela cidade”. O povo ajudou a dar fim à ameaça da rainha Ataliá,
e o narrador observa que “alegrou-se todo o povo da terra, e a cidade se
manteve calma” [2Rs 11,20).

Um trabalho histórico

A datação do Livro dos Reis foi tema de intensos debates entre estu­
diosos no século passado. Tentativas recentes de datar o Livro dos Reis to­
mam como ponto de partida a obra seminal de Martin Noth sobre a cha­
mada História Deuteronomista^^. Noth apresentou a hipótese de que um
único historiador exíHco tenha composto a narrativa desde o Deuteronômio
até o Segundo Livro dos Reis, usando fontes escritas precedentes. Essa
narrativa foi chamada de “História Deuteronomista”, enfatizando-se sua
dependência da ideologia religiosa do Livro do Deuteronômio, que moldou
sua interpretação da história de Israel. Na esteira da análise de Noth, os
estudiosos seguiram quatro linhas básicas^®. Alguns aderem à teoria de uma

27. Ver M. Noth, The Deuterorwmistic Histoty, Sheffield, JSOT, 1991.


28. Ver meu exame da literatura recente: W. M. Schniedewind, The Problem with
Kings: Recent Study of the Deuteronomistic History, RSR 22 (1995) 22-27.

110
Ezec(uias e o início da literatura bíblica

Única edição exílica, redigida após o exílio babÜônico em 586 a.C. e antes
do retorno do exílio que teve início com o decreto do rei persa Cito, em
539 a.C. Outros estudiosos isolam uma história exílica com mais duas
mãos redatoras (profética e nomista), embora divirjam acerca de se devem
caracterizar esse processo como edições ou adições escribais e, é claro,
polemizem sobre quais versículos exatamente devem-se atribuir a cada uma
das fontes. Uma terceira escola segue a teoria da redação dual, associada
a Frank Moore Cross, que argumentou que a edição original da História
Deuteronomista foi escrita no período pré-exílico para apoiar as reformas
de Josias (r. 640-609 a.C.) e foi depois atualizada por um editor exílico
(ca. 550 a.C.) que estava interessado em explicar o exílio babÜônico. A
quarta abordagem pode ser atribuída a estudiosos como Helga Weippert,
Andre Lemaire e Baruch Halpem. Estes estudiosos identificam duas edições
pré-exílicas escritas sob determinação dos reis judeus Ezequias e Josiais,
seguidas por uma redação exüica^®. A ideia de que houve uma composição
histórica pré-exílica na época de Ezequias parece estar ganhando força e é
a que mais me interessa por atribuir a primeira fase da redação ao período
do rei Ezequias.
A maior parte dos argumentos em favor da redação ezeqtnana baseia-se
na estrutura formal da narrativa histórica. Ela inclui fórmvdas de adição/
sucessão, fórmulas de julgamento, o tema de Davi e a atitude em relação
aos vários santuários de culto (ou “lugares altos”). Essas características são
consistentes na narrativa histórica até o relato do rei Ezequias e então
modificam-se abruptamente. Em razão da natureza formularizada desses
argumentos, eles são muito objetivos e difíceis de descartar. O que tom a
as evidências especialmente convincentes é a situação histórica, discutida
anteriormente, que induziu a composição ezequiana. É difícÜ não perceber
que a primeira “conclusão” do Livro dos Reis dá-se na queda do reino
setentrional de Israel e de sua capital Samaria (2Rs 17). Embora esse
texto tenha sido reelaborado, ele marca o final do reino do norte. Mais
tarde, os autores adotaram uma atitude quase inteiramente negativa em
relação ao norte, mas restam remanescentes que apontam para uma visão
positiva, quase nostálgica, do reino do norte. Tais remanescentes incluem

29. Sumarizo essa abordagem e a sustento, no longo artigo The Problem with Kings.
Ver esse artigo para outras referências bibliográficas.

111
Como a Bíblia tornou-sc um livro

as narrativas de Elias e Eliseu (IRs 17-2Rs 9), que são mistas no tocante
a sua atitude em relação ao reino do norte, alternando entre uma atitude
abertamente negativa (por exemplo, IRs 18,21] e uma atitude favorável
(por exemplo, IRs 22,2; 2Rs 6-7; 13,14-21). Ademais, os reis do norte
são geralmente honrados por sua força militar, enquanto os reis do sul o são
raramente (por exemplo, IRs 16,5.27; 22,45; 2Rs 10,34; 13,8.12; 14,28).
Essa visão às vezes positiva e nostálgica do norte pode ser facilmente atri­
buída aos escribas de Ezequias, que estavam trabalhando no contexto his­
tórico da incorporação de numerosos refugiados do norte e no contexto
ideológico de uma nova época de ouro.
Como essas fontes precedentes foram transmitidas? É provável que as
lendas de EUas e EHseu sejam uma compilação de histórias proféticas orais.
Contudo, os detalhes sobre campanhas militares, projetos de edificações e
as extensões dos reinos provavelmente foram extraídos dos arquivos reais.
Para explicar determinados detalhes históricos do texto bíblico, é preciso
supor que o autor estava utilizando arquivos reais do norte. Por exemplo,
nós temos duas inscrições históricas do século IX de reis estrangeiros: a
Esteia de Tel Dan (ca. 825 a.C.; ver figura 3.3) e a Pedra Moabita (ca.
840 a.C.). Embora essas inscrições contem a história das relações interna­
cionais de Israel de uma perspectiva histórica bem diferente, elas relatam
os mesmos acontecimentos relatados na narrativa bíblica preservada no Livro
dos Reis. Podemos discutir acerca de qual relato é mais acurado, mas é
indiscutível que as inscrições estrangeiras e a narrativa bíbhca estão falando
das mesmas pessoas e dos mesmos eventos históricos. Para que a narrativa
bíblica converse com inscrições antigas, a BíbHa teve de ter fontes que da­
tassem dos primeiros dias da monarquia. Dada a natureza das correspon­
dências, uma importante fonte da narrativa bíblica deve ter sido os arqui­
vos reais (tanto de Israel como de Judá).
O uso de uma fórmula padrão para exaltar os reis do norte parece
provir de uma composição ezequiana. Parece ter havido um relato pré-exí-
lico redigido durante o período de Ezequias que provavelmente refletia
sobre a queda de Samaria e a sobrevivência de Jerusalém. Essa obra histó­
rica serviría também como fonte para autores/redatores posteriores. Pode
ser que tal composição tenha sido tão completamente reescrita por autores
josianos e exílicos que não seja mais inteiramente recuperável. Para nossos
propósitos, no entanto, basta destacar a existência dessa obra histórica
ezequiana e a atividade literária que ela impHca.

112
lizcquias e o iniüo da literatura biblka

O Livro dos Reis preserva duas avaliações similares que devem ter se
originado no período ezequiano da divisão do reino davídico-salomônico.
A primeira delas resume a narrativa da divisão na qual Roboão tolamente
segue seus jovens conselheiros: “Assim Israel se rebelou contra a casa de Davi
até hoje” (IR s 12,19). A expressão “até hoje” implica algo acerca da pre­
sente relevância do reino dividido na época em que o autor escreveu essa
narrativa histórica^®. E também digno de nota que não há justificação pro­
fética nessa declaração sumária (em contraste com IR s 11,9-13). A trans­
gressão implicada pelo verbo “transgredir, rebelar” (no hebraico, pashà) é
contra a casa de Davi. A narrativa altamente editada sobre a queda de
Samaria em 2 Reis 17 também conserva um segundo fragmento com essa
perspectiva. Ali, lemos:

Rejeitou, pois, YHWH toda a descendência de Israel, humiUiou-a e entregou-a


às mãos dos saqueadores, até repudiá-la por completo, pois Israel separara-se
da casa de Dain. Eles tomaram rei a Jeroboão, filho de Nabat (2Rs 17,20-21).

Aqui, o exílio do reino do norte é resultado do rompimento de Israel


com Judá. Embora a sintaxe hebraica seja clara, as traduções às vezes per­
dem isso, traduzindo a ação como passiva. Por exemplo, a New Revised
Standard Version interpreta isso como uma oração dependente da afirmação
seguinte: “Quando ele separou Israel da casa de Davi, eles tomaram rei a
Jeroboão, filho de Nabat”. Mas, no texto hebraico, o nome “Israel” é o sujeito,
não o objeto^b Foi Israel que se separou de Judá. Foi Israel que se retirou da
casa de Davi. Era Israel que estava agora sendo punido por afastar-se do reino
de Davi. Os escribas reais em Jemsalém interpretaram a queda de Samaria
como uma justificação da dinastia davídica, especialmente nos anos ime­
diatamente seguintes ao exílio do norte. Essa perspectiva era fundamental­
mente política, embora houvesse também aspectos religiosos evidentes.
Essas duas passagens (IRs 12,19 e 2Rs 17,20) ecoam a perspectiva de
um trabalho histórico ezequiano mais longo que justificou a linhagem

30. Um estudo clássico desta fórmula na literatura bíblica foi realizado por B. Cbüds,
A Study of the Formula “Until This Day", JBL 82 (1963) 279-292.
31. M. Bretder oferece um argumento convincente e detalhado sobre isso em Ideology,
History andTheology in 2 Kings XVII 7-23, VT39 (1989) 268-282.

113
Como a BíWia tornou-se um livro

davídica como herdeira legítima de um reino unido. Ambas as partes do


reino eram importantes para essa narrativa histórica, pois Ezeqtiias preten­
dia reunir o reino dividido. A antiga divisão do reino, após Saul, foi crítica,
pois Davi reunira o reino e Ezequias seguia seus passos. Ezequias restabe­
leceu o reino davídico. Aqui, concordo com lan Provan e outros que argu­
mentaram que Ezequias é apresentado, no Livro dos Reis, como o “novo
Davi”^^. Ezequias é o único rei descrito dessa maneira: “Procedeu bem aos
olhos de YHWH, imitando tudo o que fizera seu pai, Davi” (2Rs 18,3]. A
conotação dessa singular comparação entre Ezequias e Davi parece ser
principalmente pobtica, não refigiosa. Ou seja, Ezequias começou a recons­
truir o reino de Davi na esteira da destruição de Samaria, como sugere o
profeta Isaías (Is 7,17; 9,1-6; 11,1-2]. Mas isso era mais que um ponto de
vista literário — refletia uma atitude política determinada pela situação no
final do século VIIP^. Os escribas de Ezequias procuraram criar uma nova
época de ouro, mas essa época de ouro era uma visão política.
A visão militar de Ezequias aparece no Livro de Josué. A narrativa de
Josué oferece uma interpretação utópica da conquista de toda a terra de Israel,
tanto do norte como do sul. A inclusão do norte — e, com efeito, a ênfase no
norte — é ela própria muito significativa. Em Josué, o norte é central para
a narrativa histórica. O'herói da história é alguém do norte — Josué, filho
de Nun, da tribo de Efraim, do norte. Deve-se notar também que a famosa
cerimônia da aliança no capítulo 24 do Livro de Josué, na qual este reúne
todas as tribos para prometer fidelidade a YHWH, ocorre em Siquém, a
primeira capital do reino do norte. O fato de que o Livro de Josué faz ques­
tão de registrar essa conquista do norte indica que o contexto da composição
do livro era uma época análoga aos tempos de Ezequias, uma época em
que Judá sonha em reclamar as tribos perdidas do norte e seus territórios.

3 2 .1. Provan, Hezekiah in the Book ofKings (BZAW, 172; Berlim, de Gryter, 1988),
116-117. Ver também R. E. Friedman, From Egypt to Egypt in Dtr 1 and Dtr 2, in Tradi-
tions in Transformations: Tuming Points in Biblical Faith (ed. B. Halpem e J. D. Levenson),
Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1981,171-173; E. Eynikel, The Reform ofKingJosiah and
the Composition of Deuteronomistic History (OTS, 33) Leiden, Brill, 1996,107-111.
33. Outro exemplo pode ser o Salmo 78; ver R. CMbrd, In Zion and David a New Begin
ning: An Interpretation of Psabn 78, in Traditions in Transformations: Tuming Points in Biblical
Faith [ed. B. Halpem e J. D. Levenson), Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1981,121-141.

114
lizoquias e o inicio da literatura biblica

A visão judia e posteriormente judaica do reino do norte modifica-se


dramaticamente nas gerações subsequentes. Na época das reformas de Josias,
um século havia se passado desde o exílio do norte. O mundo havia sido
transformado. O poder da Assíria estava decaindo rapidamente. Os temas
de Josias tinham seu foco em questões religiosas, e não políticas. O norte
havia se tomado o bode expiatório da infidelidade religiosa de Judá a
YHWH. Enquanto Ezequias tentara integrar o norte, Josias apenas castiga.
A identificação da compilação e da composição substantivas de narrativas his­
tóricas por Ezequias responde a uma questão persistente sobre os livros
históricos da Bíblia, ou seja, os Livros de Josué, dos Juizes, de Samuel e dos
Reis; quão relevante era, um século depois, dois séculos depois, um reino
extinto? No período de Josias, as reformas refigiosas foram uma violenta
reação contra o norte. O Livro das Crônicas nos informa sobre o papel do
norte na literatura do período persa tardio — é omitido. O norte toma-se
o arqui-inimigo do povo judeu ou é esquecido. Somente no século II a.C.,
com a ascensão do Reino Judaico Asmoniano, os asmonianos tentam reivin­
dicar o norte. Mas essa tentativa por fim fracassa. O povo judeu insulta os
samaritanos, como são conhecidos os do norte no Novo Testamento. O
relato histórico de Ezequias, em contraposição, preserva a história do reino
de Israel como parte integrante do povo judeu (ou “judaico”). (Observe-se que
a palavra hebraica yehudi é a origem etimológica tanto de “judeu” como de
“judaico”.) O destino do reino do norte pesa mais sobre a vida e a literatura
de Judá nos anos imediatamente seguintes à destruição de S amaria e ao
exílio, ou seja, durante o reinado de Ezequias. Essa obra histórica é revisada
por autores posteriores, mas traços do primeiro relato histórico ezequiano
permanecem e formam a estratura para a redação dos fivros bíbhcos de
Josué, dos Juizes, de Samuel e dos Reis.

A literatura do Pentateuco

Os estudiosos dataram a literatura do Pentateuco num arco de tempo


entre o século X a.C. e o século III a.C. A razão disso é muito simples: há
poucos critérios internos objetivos com os quais datar os primeiros cinco
livros da Biblia. Uma coisa está clara. A escrita e os textos escritos não
desempenham um papel significativo no Gênesis, no Êxodo, no Levítico
ou nos Números. Como veremos no capítulo 7, somente no Deuteronômio

115
Como a Bíblia tornou-se um livro

a escrita começará a passar para o primeiro plano. Essa observação sobre o


papel da escrita no Pentateuco é ainda mais impactante se comparamos
a literatura bíblica com a retomada das histórias do Pentateuco no helenís-
tico Livro do Jubileu. Ali, a escrita toma-se um tópico fundamental desde
o primeiro versículo! Esta observação possui implicações significativas.
Ela sugere que os primeiros quatro livros do Pentateuco foram escritos
quando a escrita ainda não se concebia como importante. A ênfase do
Deuteronômio na escrita remedeia essa falha; o Deuteronômio reconhece
a necessidade de tratar da escrita da lei e das histórias do antigo Israel.
Antes de abandonar a datação do Pentateuco, convém fazer alguns co­
mentários. Por duas razões, é dificil assumir que o Pentateuco foi essen­
cialmente composto numa data muito tardia (isto é, no período persa, ou
nos séculos V-IV a.C.]. A primeira razão é simplesmente porque a língua é
o hebraico clássico, e não o hebraico posterior. Embora estudiosos tenham
feito esta observação anteriormente^'*, ela não se consolidou suficientemen­
te. Se descrevermos o contexto social e político do período persa como
vieram à luz nas poucas últimas décadas da investigação arqueológica (ver
capítulo 9), essas observações hnguísticas podem se mostrar ainda mais
convincentes. Numa tendência similar, investigações linguísticas recentes
constataram características nítidas de um registro oral na linguagem das
narrativas patriarcais e de origens no Pentateuco. Em contraposição, o
hebraico posterior demonstra uma clara inclinação para um estilo que tende
mais ao estilo da chancelaria escribal^^. Evidentemente, essa mudança de um
estilo oral para um estilo chanceleresco teria sido gradual. Mas as mu­
danças linguísticas são perceptíveis. Elas fornecem critérios objetivos para
datar a maior parte da hteratura do Pentateuco no período pré-exílico.

34. Ver, por exemplo, Avi Hurvitz, The Evidence of Language in Dating the Priesüy
Code, RB 81 (1974) 24-57; A. Hurvitz, A Lir^isHc Study ofthe Relationship betiveen the Pristiy
Source and the Book ofEzekieL A New Approach to an Old Problem, Paris, Gabalda, 1982.
35. Por exemplo, Frank H. Polak, Epic Formulas in Biblical Narrativa — Frequency
and Distribution, in Acts du Second CoUoque International Bible et Informatique: Méthodes,
outils, resultants. Paris, Champion, 1989,437-489. É interessante que o gênero de literatura
não parece ter tido impacto sobre essa mudança do estilo oral para o estilo da chancelaria.
Desse modo, o Livro de Ester tem um estilo surpreendentemente mais escribal que as
narrativas patriarcais.

116
E/.equias f o irüao da litt-ratura lnhlKa

A segunda razão pela qual é improvável que o Pentateuco tenha sido


composto numa data muito tardia é o papel proeminente que atribui às
tribos do norte de Israel. O reino do norte desaparecera no século VIII a.C ,
e, ao final do século VII a.C , era o pária da ortodoxia religiosa e política.
Essa atitude não se modificou nem mesmo quando os reis asmonianos ten­
taram conquistar os territórios do norte, no século II a.C. Exemplos da
proeminência das tribos do norte são abundantes no Pentateuco. As histórias
do Gênesis, por exemplo, são as das doze tribos de Israel. Embora o Gênesis
privilegie a tribo de Judá como aquela da qual emergirão os reis de Israel,
o hvro é uma história sobre todos os doze irmãos. Deixe-me precisar melhor
essa observação. O Gênesis narra uma história das origens de Israel que é
consistente com a visão política de Ezequias. O Livro do Êxodo também
conta uma história de todas as doze tribos que se tomarão o povo de Israel.
A história tem início no Êxodo 1,1-4, com a nomeação das tribos:
Estes são os nomes dos filhos de Israel que entraram no Egito com Jacó, cada
um com a sua família: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zabulon, Benjamin,
Dan, Neftali, Gad e Aser.
Essas doze tribos são essencialmente um conceito pré-exílico. O con­
ceito não aparece, por exemplo, nos hvros persas de Esdras e Neemias.
Esses foram livros escritos no século V ou IV a.C., quando as tribos do
norte estavam não apenas perdidas — como resultado do exího assírio —,
mas também eram irrelevantes. No entanto, na época de Ezequias, as tribos
do norte ainda estavam nas mentes do povo em Judá. Com efeito, muitos
deles eram refugiados que vivam em Jerusalém. Ezequias sonhava em
reincorporar seu território. O Livro dos Números começa com um censo
de todo Israel, e assim por diante. Contudo, há diversas maneiras de lançar
um manto negativo sobre as tribos do norte. Assim, por exemplo, o peca­
do do Bezerro de Otuo (Ex 32-33] reflete-se direta e esparsamente no
reino do norte, que repete o pecado [IRs 12). Além disso, a história dos
espiões é pohticamente crítica para com os habitantes do norte, pois as
tribos não acreditam que Deus lhes dará a “terra prometida”.
O Livro do Deuteronômio, em particular, parece incorporar aspectos
da tradição do norte. Por exemplo, o Monte Sinai, nó Deuteronômio, é cha­
mado de Monte Horeb. Assim, o Monte Sinai, o próprio local onde se
supõe que Deus desceu e entregou a Moisés os Dez Mandamentos, tem um
nome especial. Quando procuramos onde e como o Monte Sinai é chamado

117
Como a Ribliü tornou-so i liví

de Monte Horeb, imediatamente notamos que o nome é também dado à


montanha de Deus onde o profeta Elias, do norte, vai encontrá-lo. Estu­
diosos, portanto, propuseram que “Horeb” seria o nome da montanha nas
tradições do norte, enquanto “Sinai” seria o nome da montanha nas tradi­
ções do sul. Vários estudiosos sugeriram que o Livro do Deuteronômio
teve suas origens nas reformas religiosas e politicas do rei Ezequias^®. Tais
tradições não se originam num único lugar e momento; elas refletem uma
longa história de transmissão oral antes de serem coligidas. O momento
crucial para o Livro do Deuteronômio chegará com as reformas de Josias
(como discutirei nos próximos dois capitulos).
Ao longo de todo este livro, tive em mente três questões: quem era
capaz de escrever? Quando se podia escrever? Por que escreveram? As his­
tórias no Pentateuco falam das origens do povo de Israel — tanto do norte
como do sul. Essas histórias certamente serviam ao propósito da ideologia
da corte real. A compilação dessas tradições também se ajusta ao desejo
geral dos reis de construir uma biblioteca como uma parte do aparato da
realeza. O templo também tinha seus escribas, mas a escrita do templo
ainda era uma atividade interna. Não havia biblioteca a ser construída
para o templo em si. Temos de presumir que os sacerdotes desejariam con­
servar para si os aspectos’ numinosos e rituais da escrita. Além disso, foram
apresentados argumentos convincentes sugerindo que os sacerdotes esta­
vam ocupados com a elaboração de algumas das antigas composições sa­
cerdotais. D e maneira mais notável, vários estudiosos sugeriram que os
sacerdotes do templo de Ezequias compuseram um “Código da Santidade”,
cujo cerne formou Levítico 17-26^^. Como demonstra Israel Knohl, pro­
fessor de estudos biblicos na Universidade Hebraica, em The Sanctuary of
Silence: The Priestly Torah and the Holiness School, havia duas escolas sacer­
dotais distintas no antigo Israel: uma escola da Santidade e uma escola
Sacerdotal. A ^co la da “Santidade” envolvia três aspectos básicos em Judá

36. Notavelmente, Moshe Weinfeld, Deuteronomy and the Deuteronomic School


(reedição, Eisenbrauns, 1992), Oxford, Clarendon Press, 1972; H. L. Ginsberg, The Israelian
Heritage ofJudaism, Nova York, Jervish Theological Serninary, 1982; M. Haran, Temples and
Trniple Service in Ancient Israel, Oxford, Clarendon Press, 1985.
37. Mais vigorosamente, Israel Knohl, The Sanctuary of Silence: The Priestly Torah and
the Holiness School, Phüadelphia, Fortress, 1995.

118
lí/i“quias e o miuu da literatura bíblica

no final do período monárqmco; a inctxrsão de práticas idólatras do norte,


a polarização econômica e social das elites urbanas e dos fazendeiros e a
separação entre moralidade e culto. Embora tais aspectos fossem preva-
lecentes no final do século VIII, continuaram a ser fatores de preocupação
até o final da monarquia. Knohl argumenta que essa escola da “Santidade”
perdura nos períodos exílico e pós-exílico e, por fim, é responsável pela
edição final do Pentateuco. A separação e a datação das camadas de litera­
tura sacerdotal são, porém, difíceis. É improvável que qualquer esquema
preciso seja convincente. Assim, limitar-me-ei às generalidades.

O s profetas “escritores” do século XVHI a.C .

Ironicamente, os chamados “profetas escritores” — ou seja, Isaías,


Miqueias, Amós e Oseias — não eram, na verdade, escritores. Sendo chama­
dos de “profetas escritores”, eles são contrastados com figuras como Natan
ou Elias, que não possuem livros independentes. Mas, nos hvros que lhes
são atribuídos, os profetas escritores raramente são retratados como tendo
escrito algo. Deus determinou que eles falassem, não que escrevessem. Não
há livros em seus livrosl Escrever é uma atividade marginal para os profetas
do século VIII a.C. Então, quem escreveu seus livros? Os livros proféticos
de Isaías, Miqueias, Amós e Oseias contêm sobrescritos que os situam na
segunda metade do século VIII a.C. Tais sobrescritos apontam a atividade
editorial de compilar oráculos proféticos. Embora os sobrescritos proféti­
cos sejam vistos por muitos como acréscimos posteriores à literatura pro­
fética, eles de fato parecem situar os profetas historicamente de maneira
acurada. Com efeito, provavelmente não é acidental que nenhum dos
sobrescritos contidos nesses livros mencione nenhum rei após Ezequias.
Como sugere David Noel Freedman, professor de estudos bíblicos da
Universidade da Califórnia, em San Diego: “a compilação dos hvros dos
quatro profetas foi reafizada durante o reinado de Ezequias para celebrar
e interpretar a extraordinária sequência de eventos associada à invasão de
Judá pelos assírios e ao cerco de Jerusalém, e também à partida do exér­
cito assírio e à libertação da cidade”^®. Por fim, todos esses livros apoiam

38. D. N. Freedman, Headings in Books of Eight-Century Prophets, Andrews University


Seminary Studies 25 [1987) 22.

119
Como a Bíblia tonnou-se um tiví

a monarquia davídica, e os escribas de Ezequias teriam tidos boas razões


para coligi-los.
Como seria de esperar, a escrita não era uma parte importante da
cultura popular no século VIII a.C. Pelo contrário, a escrita ainda estava
estreitamente vinculada ao palácio. Era uma atividade de escribas reais. O
templo também teria escribas, mas não há razão para supor que os escribas
do templo tenham tido um súbito interesse pela escrita para consximo pú­
blico. O Estado, no entanto, sempre teve interesse na escrita como uma
projeção do poder e da autoridade reais diante do público em geral. O papel
da escrita se tornaria muito mais central nos profetas posteriores, como
Jeremias, Ezequiel ou Zacarias, refletindo a crescente importância da escrita
na cultura de Israel. O ato de escrever é raramente mencionado nos pro­
fetas do século VIII, e, certamente, a leitura e a escrita não faziam parte do
chamado profético. Há escassas menções à escrita, a textos ou a escribas
nas demais obras proféticas de Oseias, Amós e Miqueias, e isso dificilmen­
te será uma mera coincidência.
As poucas referências à “escrita” (em hebraico, “katav”) em Isaías 1-39
refletem as atitudes antigas diante da escrita. A escrita é mágica; ou a escrita
é uma ferramenta do poder e da administração reais. Em Isaías 4,3, por
exemplo, a mecânica de escrever no Livro da Vida toma-se uma metáfora
para os sobreviventes da guerra “que são inscritos para a vida em Jerusalém”.
Isaías 10 disciplina os funcionários do governo que usam documentos es­
critos para subverter a justiça e roubar dos pobres, das viúvas e dos órfãos.
No livro de Isaías, a escrita também pode figurar em monumentos públicos
(Is 30,8). Não há indícios de que as profecias do próprio Isaías necessitassem
ser escritas. O mais famoso incidente relacionado à escrita em Isaías é quando
Deus ordena que Isaías escreva o estranho nome do filho do profeta, “Maher-
chalal-hach-baz”. A escrita do nome possui importância ritual e efeitos má­
gicos. O nome escrito sela o destino divinamente prescrito dos reinos rivais
de Samaria e Damasco, que ameaçavam Jemsalém (Is 8). Essa tarefa exigia
que Isaías, como um profeta da corte a serviço do rei, tivesse ao menos um
conhecimento rudimentar de como escrever. De modo geral, porém, a escrita
não desempenha um papel significativo na mensagem profética de Isaías. O
profeta é um orador e um ator, não \am leitor e escritor.
Por que esses textos proféticos vieram a ser redigidos? No final do
século VIII a.C., a escrita ainda parece estar restrita ao governo e, provavel­
mente, também ao templo. Não é de surpreender que todas essas obras

120
t.zcquias c o miciü da liu-ratura biblÍLa

proféticas desenvolvam temas que justificam a monarquia davídica. Nesse


período, a monarquia davídica era ameaçada por uma aliança siro-efrai-
mita que tentava substituir o rei davídico. A monarquia também reagia à
queda de Samaria, justificando-se na esteira dos refugiados israelitas. N a­
turalmente, a queda de Samaria era entendida como afirmação de Davi
como o único rei legítimo e eleito por Deus. Os interesses da corte real de
Judá podem ser vistos em todos os profetas do século VIII a.C.
O profeta Isaías, contemporâneo de Ezequias, deixa claro que a restau­
ração do reino de Davi e Salomão era um objetivo ideológico central no
final do século VIII. Isaías conta novamente, por exemplo, o ataque por
parte de uma coalizão de Aram e Israel, liderada pelo rei Resin e o rei Péqah,
contra o pai de Ezequias, Acaz. A “casa de Davi”, observa Isaías, foi ameaçada
por essa coalizão, e “o coração do povo tremeu como as árvores da floresta
tremem ao sopro do vento” (Is 7,2). Esses aspirantes ao trono ameaçaram
a C asa de Davi, uma expressão que recorda a eterna Promessa de Davi a
seus fiUios no oráculo fornecido pelo profeta Natan: “A tua casa e a tua
realeza durarão para sempre diante de mim” (2Sm 7,46)^®. Esse conceito, a
casa de Davi, tomou-se o ponto focal para um reino restaurado no reinado
de Ezequias precisamente porque ouve os ecos da época de ouro da mo­
narquia unificada.
As profecias de Isaías ressaltam que o fim desastroso para Israel resultou
da divisão do reino. A famosa profecia da criança, nascida de uma jovem, que
será chamada de Emanuel (Is 7,14} culmina numa visão do fim do reino do
norte. Isaías vê a destruição de Samaria como uma consequência apropriada
da divisão entre norte e sul após a morte de Salomão: “YHWH fará vir sobre
ti teu povo, e sobre a casa de teu pai dias tais que não vieram desde que
Efraim se separou de Judá — o rei da Assíria” (Is 7,17). A tentativa, por uma
coalizão arameia e israelita, de subjugar a casa de Davi recorda a primeira
vez em que o norte se separou ou se rebelou dos filhos de Davi (2Rs 17,21;
IRs 12,19). Dessa vez, a punição será final; os assírios destruirão a Samaria,
exilarão grande parte da população e recolonizarão o território.
A destmição de Samaria pela Assíria toma-se a oportunidade para que
Ezequias reconstrua o reinado de Davi. Isaías prediz a destruição final de

39. Ver a extensa discussão em meu livro precedente, Society and the Promise to David,
cap. 4.

121
Como a BiHia tomoLi-a Ii\TO

Samaria (Is 8,4), mas então retoma a uma mensagem mais auspiciosa do
reino restaurado: “Mas não haverá trevas para aqueles que viviam na an­
gústia. Em tempos passados, ele tomou desprezível a terra de Zebulom e
a terra de Naftali, mas, em tempos futuros, tomará glorioso o caminho do
mar, a terra além do Jordão, Galileia das nações” (Is 9,1 [Hb 8,23]). O
profeta sugere que as trevas desaparecerão nos últimos dias de Ezequias.
De acordo com essa interpretação dos acontecimentos. Deus reprovou a
divisão do reino e a rebeHão contra os reis davídicos legitimamente in­
dicados. Isaías, porém, vê os dias em que o filho da autoridade de Davi
“crescerá continuamente e haverá paz ilimitada para o trono e o reino de
Davi” (Is 9,7 [Hb 9,6]). Isaías fala do retorno de remanescentes do norte
(Is 10,20-22). O rebento de Davi (Is I I , I ) reunirá esses remanescentes e
os resgatará (Is I I , l I ) . O profeta Oseias é mais específico: “Depois disso,
os filhos de Israel voltarão e procurarão YHWH, seu Deus, e Davi, seu
rei; com temor, voltar-se-ão para YHWH e para sua bondade no futuro”
(Os 3,5). A visão desses dias era restabelecer o reino de Davi e Salomão,
revisitar a época de ouro de Israel. Foi essa visão que levou à incauta e
desastrosa tentativa de Ezequias de rebelar-se contra a Assíria. Sem dúvida
foi também essa visão que levou os escribas de Ezequias a coligir e copiar
“os provérbios de Salomão” e outras tradições que seriam atribuídas à
época de ouro de Israel.
Há razão mais que suficiente para acreditar que o Livro de Amós
também recebeu sua forma final no período ezequiano. Segundo este livro,
seu homônimo profético profetizou no reino do norte na metade do século
VIII a.C. Pode causar certa surpresa que o livro tenha sido preservado por
escribas do reino do sul. A composição do Livro de Amós foi tema de con­
siderável polêmica. Em comentários mais recentes, David Noel Freedman
e Sbalom Paul argumentam que o livro data essencialmente dos dias do
profeta (isto é, na metade do século VIII a.C.) e que sofreu pouca inter­
venção subsequente'*®. Para chegar a essa conclusão, no entanto, é preciso
recorrer a referências inequívocas que apontam para o final do século VIII
a.C. Certamente, a mais clara delas é a referência, em Amós 6,2, ao desa­
parecimento da Gat fibsteia, conhecida por ter sido destruída pela invasão

40. D. N. Freedman, ytmos, AB, Nova York, Doubleday, 1989; S. Paul, Amos, A commen-
tary on the Book of Amos, Hermeunia, Philadelpliia, Fortress, 1991.

122
Ezequias e o inicio da literatura biblica

de Sargão em 712 a.C.'*^ Sem dúvida, Amós foi preservado no sul porque
(1) entendia-se que o profeta previra corretamente o exílio de Samaria e
(2) isso era interpretado como legitimação da dinastia davídica. O versículo
em Amós 9,11 — “Naquele día, reerguerei a cabana de Davi que está
para cair, taparei as brechas, levantarei as ruínas, firmá-la-ei como nos dias
de outrora” — foi amplamente analisado como um acréscimo posterior
ao livro"*^. As ruínas aqui são da “cabana de Davi”, e não da cidade de
Jerusalém; em outras palavras, as ruínas estão hgadas à divisão da “Casa
de Davi”, não à destruição de Judá. Estudiosos com frequência supuseram
que essas palavras referem-se à destruição de Jerusalém, mas, na realidade,
trata-se de uma metáfora para a divisão do reino — “a cabana de Davi”.
Dado o contexto sócio-histórico descrito nesse capítulo, a corte de Ezequias
é, de fato, um cenário inteiramente favorável para a edição final do Livro
de Amós. Ezequias é quem é apresentado como aquele que restaurará a
Casa da Davi e a reconstruirá “como nos dias de outrora”.
O sobrescrito no Livro de Oseias também descreve a atividade do
profeta persistindo no período ezequiano. Esse profeta do norte também
foi preservado no sul por ser caracterizado como um crítico da legitimidade
do reino do norte. Muitos comentadores destacaram o retrato altamente
negativo da monarquia apresentado no Livro de Oseias. Talvez o exemplo
mais frequentemente citado seja o seguinte: “Sem mim instituíram reis, sem
mim nomearam chefes” (Os 8,4). Essa afirmação está de acordo com a
crítica que emergiu da obra histórica ezequiana, que culpava pela divisão do
reino a rejeição dos filhos de Davi por parte do norte (c£ 2Rs 17,21; IRs
12,19). Por fim, contudo, o significado dessa crítica no livro como um todo
tem de ser entendida pelas lentes do seguinte trecho de Oseias 3,4-5:

Assim ficarão durante muitos dias os filhos de Israel: sem rei, sem chefe, sem
sacrifício, sem esteia, sem efod e sem terafim. Depois disso, os filhos de Israel
procurarão de novo a YHWH, seu Deus, e Davi, seu rei; com temor, voltar-
se-ão para YHWH e para a sua bondade no futuro.

41. Vale notar também que Gat está ausente na lista de cidades filisteias menciona­
das em Amós 1,6-8. Seu destino está aparentemente sintetizado nas palavras do profeta
Miqueias, "Não divulgueis em Gat” [Mq l,10j.
42. Por exemplo, Harper, Amos, 195-196; Driver, Amos, 119-124.

123
Como a Bílilia tornou-si’ um livro

Um movimento temporal é marcado aqui pela expressão “depois disso”;


por certo período, o reino do norte não teve um rei, mas foi então incor­
porado no conjunto da dinastia davídica. Isso deve referir-se ao período
subsequente à queda de Samaria. O argumento de que Davi é “seu rei”
implica que o reino precedente do norte e seus reis eram üegítimos. A
ideia de que os israelitas seriam incorporados novamente ao reino faz senti­
do quando atentamos para o fato de que Ezequias teve de integrar milhares
de refugiados do norte após a destruição de Samaria. Os textos proféticos do
norte teriam de ter sido compilados na corte real de Ezequias — ou seja,
para que houvesse alguma possibilidade de preservação. Naturalmente, só
seriam preservados caso servissem aos interesses da biblioteca real.
O Livro de Oseias de fato profetiza a hbertação miraculosa de
Jerusalém: “Mas a Casa de Judá, eu a amarei, e os salvarei por YHWH, seu
Deus; não os salvarei nem pelo arco, nem pela espada, nem pela guerra,
nem pelos cavalos, nem pelos cavaleiros” (Os 1,7]''^. Este versículo pare­
ce fazer parte de uma estrutura editorial conferida às profecias de Oseias
ao serem redigidas e preservadas em Jerusalém após a queda de Samaria no
século VIII a.C. Em contraste com isto, o final do século VII a.C. carac­
terizou-se por uma acirrada polêmica contra as práticas religiosas do rei
Jeroboão, do norte, e dificilmente constituiríam um cenário apropriado
para a integração de tradições proféticas do norte. No período pós-exíhco,
o reino do norte era uma memória distante e era até mesmo ignorado pelo
autor do Livro das Crônicas. Se houve uma integração das tradições literá­
rias do norte em Jerusalém, faz mais sentido situar o processo no momen­
to imediatamente subsequente à queda de Samaria, com seu concomitante
afluxo de refugiados para o sul, do que situá-lo um século mais tarde, em
meio a reformas religiosas que visavam erradicar as influências culturais
do norte.
Em suma, o exílio do reino do norte e a urbanização do sul rural
— particularmente de Jerusalém — deram início à compilação e à edição
que resultaram na redação de extensas porções da Bíblia hebraica. Isso

43. Contra R. E. Clements, que — por razões que não estão claras — atribui esse
versículo a um editor do final do século VII. Ver Clements, Isaiah and the Deliverance of
Jemsalem: A Study of the Interpretation of Profecy in the OldTestament (JSOTSS, 13)
Sheffield, JSOT, 1980, 60.

124
Ezequias e o inicio da literatura hihlica

começou na corte do rei Ezequias no final do século VIII a.C , com a com­
pilação e edição de obras proféticas tais como os livros de Amós, Oseias,
Miqueias e Isaías de Jerusalém. Além disso, os escribas de Ezequias reuni­
ram as tradições de sabedoria que atribuíam ao velho rei Salomão. Os
escribas reais também produziram uma obra histórica pré-deuteronômica
que terminava com a queda do reino do norte. Os acontecimentos presen­
tes, o exílio do norte e a sobrevivência dos filhos de Davi constituíam o
pano de fundo dessa literatura. Os sacerdotes do templo provavelmente tam­
bém coligiram e editaram algumas tradições sacerdotais, como o Código
da Santidade (Lv 17-26). Provavelmente foram também coligidas histó­
rias tradicionais do antigo Israel, como aquelas encontradas no Livro do
Gênesis e do Êxodo. A história do Êxodo já servia como um poderoso
símbolo de exílio, redenção e poder real. Cada um desses escritos por fim
apontava para os filhos de Davi.
A urbanização, a centralização do poder político e a mudança social
em Jerusalém naturahnente atraíram intérpretes sociais, políticos e religio­
sos. O local onde tais interpretações podiam ser registradas em pergami­
nhos e papiros era a corte real. A situação política convidava, até mesmo
exigia, a compilação das tradições orais e a escrita da fiteratura. O proces­
so começou efetivamente no final do século VIII a.C., no reinado do rei
Ezequias, mas se alastraria e atingiria seu ápice nos últimos dias da monar­
quia de Judá. No tempo de Ezequias e Isaías, a escrita ainda estava estreita­
mente associada ao rei e ao Estado. Isso, entretanto, estava prestes a mudar.

125
om a emergência do letramento e o florescimento da literatura, origi­
nou-se uma revolução textual nos dias do rei Josias. Essa foi uma das mais
profundas revoluções culturais na história humana: a asserção da ortodoxia
dos textos. A medida que a escrita se difundiu em toda a sociedade judia,
o letramento deixou de se confinar às restritas escolas escribais, à corte
real e ã imponência dos templos. Começando pela florescente burocracia
governamental, o uso da escrita disseminou-se em toda a sociedade. O
letramento básico tornou-se um lugar-comum, a tal ponto que os iletrados
chegavam a ser socialmente estigmatizados. A difusão do letramento pos­
sibilitou um aspecto central da revolução religiosa de Josias: a autoridade
religiosa do texto escrito. Este foi o grande e duradouro legado das reformas
de Josias para o desenvolvimento da civilização ocidental.
E irônico que a disseminação do letramento não se traduza necessaria­
mente num nível de literatura superior'. Muito pelo contrário, sua demo-

1. Esse argumento apropriadamente formulado por A. Loprieno, Von der Stimme zur
Schrift, in Wàs ist derMensch? Zwischen Affe und Robot (ed. Andreas Münkel], München,
Beck, 2003. Ver também Loprieno, L a pensée et Vécriture: pour une sémiotique de la cul-
ture égyptienne, Paris, Cybele, 2001, 124-128.

127
Como ã Bíhlid toinou-se uin livro

cratização progressivamente a retira das mãos dos profissionais e a coloca


nas mãos do público em geral. A escrita nos dias de Ezequias havia sido
feita, em grande medida, por escribas da corte ou do templo. Nos dias de
Josias, a escrita difimdiu-se em toda a burocracia do governo e na economia.
Essa difusão do letramento significava que a escrita era mais ampla, mas
também mais banal. A quantidade de escrita tendia a reduzir a qualidade
da escrita. A importante inovação surgida com as reformas de Josias não foi
a difusão do letramento, mas o conceito da autoridade textual.
Grande parte dos debates entre estudiosos do tema girou em torno das
consequências do letramento. Em 1982, o linguista Walter Ong publicou sua
obra seminal de antropologia Unguística: Orality and Literacy: The Techno-
lo^zing of the Word [Oralidade e letramento: a tecnologízação da palavra].
O Hvro ajudou a desencadear uma controvérsia nos estudos clássicos. Eric
Havelock, um professor de estudos clássicos na Universidade de Yale, apoiou-se
na obra de Ong, bem como na do antropólogo social Jack Goody, da Univer­
sidade de Cambridge, argumentando que uma revolução do letramento teve
início primeiramente na Grécia, no século V a.C. Havelock começa seu
livro The Muse leams to Write [A M usa aprende a escrever] reconhecendo
que Ong formulou seu próprio modo de pensar acerca do problema orah-
dade-letramento na G féda Antiga^. Embora Havelock tenha posto o tema da
oralidade e do letramento no centro da discussão, sua obra foi criticada de
diversas maneiras^. Havelock argumenta em defesa de uma teoria específica
do letramento grego, sugerindo que somente o desenvolvimento das vogais
pelos gregos tomou possível a disseminação do letramento. Isso está comple­
tamente errado''. A importância das vogais para a leitura depende imensa-

2 .0 livro de E. Havelock, The Muse Leams to Write: ReflecHons on Orality and Literacy
from Antiquity to the Present, New Haven, Yale University Press, 1986, é uma popularização
e um resumo dessa pesquisa. A obra seminal de Havelock é Preface to Plato, Cambridge,
MA, Harvard University Press, 1963; ver também Havelock, The Literate Revolution in Greece
and Its Cultural Consequences, Princeton, Princeton University Press, 1982. Ver também W.
Ong, Orality and Literacy: The Technologizing of the Word, Londres, Routledge, 1982.
3. Ver O. Andersen, The Significance of Writing in early Greece— A Criticai Appraisal,
in Literacy and Society [ed. K. Schousboe e M. Trolle-Larsen), Copenhague, Akademisk
Forlag, 1989, 73-90.
4. Ver a critica de Harris em The Ori^n of Writing, Londres, 1986.

128
losias e a revolui^ãu U '\U ul

mente da estrutura morfológica de uma língua. Certamente, o alfabeto se-


mítico era difícil de utilizar para textos gregos antes do desenvolvimento
das vogais; no entanto, isso está relacionado às diferenças entre as línguas
semítica e grega. As vogais nunca se desenvolveram plenamente no hebraico
antigo porque não eram tão cruciais para a leitura dessa língua quanto eram
para o grego^. Um sistema simplificado de vogais útil para a leitura do he­
braico efetivamente foi desenvolvido e é usado no hebraico moderno.
A introdução e a disseminação das vogais no hebraico podem ser asso­
ciadas à explosão da escrita na monarquia tardia de Judá. Um sistema sim­
plificado de vogais começou a ser usado em Judá no século VII a.C , prova­
velmente sob a influência da difusão da escrita fora das escolas escribais. São
os hteratos — até mesmo hoje — que insistem obstinadamente na pronún­
cia e gramática "corretas”. Na Fenícia, durante o sécxilo VII a.C , por exemplo,
a escrita continuou confinada às escolas escribais, e não é surpreendente
que a pronúncia tenha continuado a ser muito conservadora. Em Judá, por
outro lado, as pronúncias tomaram-se inconsistentes nos óstracos hebraicos,
refletindo a ausência de treinamento escribal.
O letramento difundido, ainda que inteiramente básico, começou em
Judá no século VII a.C. Mas é preciso esclarecer o que quero dizer quando
digo letramento. Fatores tecnológicos, sociais, econômicos e culturais que
se desenvolveram ao longo dos últimos séculos modificaram fundamental­
mente o que significa ser ‘letrado”. A invenção do alfabeto foi a semente do
letramento, e com frequência se sugere que o alfabeto democratizou a
escrita. Mas o alfabeto foi inventado por volta de 2000 a.C , e o letramento
não se disseminou senão muitos séculos depois. É verdade que a invenção
do alfabeto tomou mais fácíl aprender a ler e escrever, mas a invenção do
alfabeto não foi capaz, isoladamente, de desenvolver o letramento. Foi
preciso fertilizá-la com mudanças no tecido social das sociedades antigas.
A escrita fora, por muito tempo, propriedade exclusiva do Estado ou do
templo, que guardavam os segredos da escrita em escolas escribais restritas.
O alfabeto poderia romper esse monopólio, sob as circunstâncias apro-

5. Em todo caso, as vogais já tinham uso limitado no hebraico no século VII. Elas
parecem refletir a disseminação da escrita fora dos círculos estreitos das escolas escribais;
ver meu artigo: W. M. Schniedewind, Sociolinguistic Reflections on the Letter of a “Literate"
Soldier [Lachish 3), ZAH13 (2000) 157-167.

129
Como a Bíblia tornou-se um livro

priadas. Contudo, foram necessários o desenvolvimento do poder político


centralizado em Jerusalém, o surgimento de uma extensa burocracia, uma
mudança rumo a uma sociedade tirbana e a globalização da economia para
preparar o terreno para a disseminação do letramento. Por fim, o letramento
teve de ser irrigado pela revolução política. A escrita esteve confinada às
classes escribais e mantida estritamente nos ambientes do palácio e do
templo. A revolução de Josias tentou retomar à antiga estmttxra social des­
centralizada da sociedade judia. Foi essa revolução política que também
permitiu que o conhecimento da escrita se difundisse fora dos gmpos de
escribas e das elites culturais. A palavra escrita teria sido ixma ferramenta
da revolução política, social e religiosa de Josias. Para melhor compreender
a natureza dessa revolução textual, é preciso que examinemos mais deti­
damente o contexto social mais amplo.

O contexto social do letramento

A escrita vem a florescer sob determinadas condições sociais, culturais


e políticas. As condições ideais refletem fatores demográficos [isto é, socie­
dade urbana versus sociedade mral), pofiticos [governo centrahzado versus
liderança tribal descentralizada), econômicos [prosperidade versus pobreza)
e inovações tecnológicas [incluindo a invenção do alfabeto, o desenvolvi­
mento do papiro e do pergaminho, a invenção do códice e, de modo mais
notável, a invenção da prensa). A difusão do letramento funda-se tanto em
mudanças tecnológicas como em mudanças sociais.

URBANIZAÇÃO

A urbanização desenvolveu-se na esteira das campanhas assírias no


Oriente Médio. Aldeias foram devastadas. As pessoas refugiaram-se nas
cidades. Os assírios encorajaram economias de escala para maximizar a
produção e a exportação da periferia para o centro. Um dos melhores
exemplos da política assíria foi a cidade de Acaron, depois de destruir sua
vizinha, a cidade de Gat, os assírios estabeleceram Acaron como um centro
para a produção de óleo de ohva. A cidade cresceu exponencialmente e
tinha uma enorme área industrial dedicada à produção de óleo de oliva

130
Josiab t‘ a re\'olu\.;io textual

para exportação para a Assíria®. Acaron é um excelente exemplo da es­


pecialização funcional que acompanhou a urbanização e tornou a escrita
uma ferramenta prática. Ela podia ser usada para manter registros, escrever
recibos, fazer listas. Assim como a escrita se desenvolveu em virtude de ser
útil ao comércio e à adrninistração rotineiros, também o letramento flores­
ceu em razão de sua utilidade. A urbanização e o desenvolvimento de eco­
nomias complexas estimulados pela globalização sob o domínio do império
assírio tomaram a escrita uma ferramenta prática.
Conforme observado previamente, a urbanização era particularmente
evidente em Jerusalém. Dois catalisadores do crescimento de Jerusalém
foram a imigração de israelitas provindos do norte para Judá após a queda
de Samaria em 721 a.C. e o afluxo de refugiados da invasão assíria de Sena-
querib em 701 a.C. Talvez o primeiro gmpo tenha sido o mais transforma­
dor. Ezequias tentou integrar politicamente os refugiados do norte em seu
reino. Como frequentemente ocorria no mixndo antigo, a religião seguiu a
política. Segundo a tradição bíbhca, o rei judeu Manassés [r. 687-642 a.C.]
adaptou as práticas religiosas do rei Acab, do norte. Com efeito, dificilmen­
te seria de surpreender que os emigrados deixassem sua marca na prática
rehgiosa de Jemsalém (2Rs 21,3; c£ Mq 3,9-10]^. O reino do norte, afor-
tunadamente, sempre foi muito mais próspero, populoso e cosmopohta
que Judá. Judá estava isolada na região montanhosa do std, enquanto seu
vizinho ao norte tinha um ecossistema mais fértil e fácÜ acesso aos portos
e às rotas de comércio internacionais.
A família real de Judá efetivamente tinha laços matrimoniais com o
norte. Mas Judá sempre ficou em segundo plano em relação a Israel, seu
vizinho mais rico e urbanizado. Entretanto, uma vez que Israel fora destruí­
do, refugiados afluíram para o sul e para Jerusalém. Nem todos ficaram
contentes com essa invasão provinda do norte. O profeta rural Miqueias,

6. Ver W. M. Schniedewind, The Geopohtical History of Philistine Gath, BASOR 309


(1998) 69-78; S. Gitin,The EflFects of Urbanization on a Philistine City-State: Tel Miqne-
Ekron in the Iron Age II Period, in Proceedings ofthe World Congress ofJewish Studies, Jeru-
sedem, August 16-24, 1989. Diinsion A: The Bihle and Its World, Jerusalém, World Union of
Jewish Studies, 1990, 277-284.
7. Ver W. M. Schniedewind, History and Interpretation: The Rehgion of Ahab and
Manasseh in the Book of Kings, CBQ 55 (1993) 657-660.

131
Como a Bíblia tornou-se um livro

contemporâneo de Isaías e Ezequias, criticava as mudanças sociais que


esses imigrantes do norte trouxeram a Jerusalém (Mq 3,9-10):
Escutai, portanto, chefes da casa de Jacó, líderes da casa de Israel, que tendes
horror ao direito e tornais tortuosa toda a retidão, edificando Sião no sangue
e Jerusalém, no crime.
O rei Ezequias, porém, parece ter tencionado incorporar o norte.
Talvez de modo mais significativo, Ezequias deu a seu filho o nome de
Manassés, conhecido como sendo também o nome de uma importante
tribo do reino do norte. O rei também ajustou um casamento entre seu
filho e a filha de uma família de lotbá, na Galileia. Essas ações teriam
encontrado favorecimento entre os refugiados do norte em sua capital®.
Ezequias sem dúvida via a destruição do reino do norte como uma confir­
mação da legitimidade dos filhos de Davi e também como uma oportuni­
dade de restaurar o glorioso reino do passado. Um episódio contido em
2 Crônicas, que relata novamente que “Ezequias convidou todo Israel e
Judá — escreveu cartas até a Efraim e Manassés — para que viessem à
Casa de YHWH, em Jerusalém, a fim de celebrar a Páscoa de YHWH,
Deus de Israel” (2Cr 30,1), corresponde à situação política.
Quem eram os refugiados do norte? Qual o seu impacto sobre a for­
mação da literatura bíblica? Esses novos imigrantes não eram os fazendeiros
ou pastores do norte, que haviam permanecido nas terras de seus ancestrais.
Um número desproporcional dos refugiados pertencería às ehtes sociais e
culturais: nobres, funcionários do governo, escribas, artesãos, sacerdotes.
Em outras palavras, um número significativo dos imigrantes que afluíram
rumo ao sul para Judá e Jerusalém seriam letrados. Isso faz lembrar um
exemplo moderno: os refugiados que afluíram para o moderno Estado de
Israel após a derrocada da União Soviética. Essa enorme afluência de imi­
grantes era em grande medida composta de elites culturais, mas, no momen­
to imediato, não havia espaço para o exercício de todas as suas habilidades.
Em resultado disso, pianistas concertistas trabalhavam como varredores de

8. Para uma interpretação similar, ver H. G. M. WiUiamson, 1 and 2, Chronicles, NCBC,


Grand Rapids, Eerdmans, 1982, 361; note-se também a interpretação de Ezequias no ensaio
de S. Taknon, The Cult and Calendar reform of Jeroboam I, in King, Cult, and Calendar in
Ancient Israeh Collected Studies, Jerusalém, Magnes, 1986,123-130.

132
(osias c a rcwilucãu Icxlual

rua. De maneira similar, o antigo Israel deve ter recebido um número muito
grande de refugiados habilidosos e letrados. Muitas dessas pessoas, no en­
tanto, podiam ser incorporadas à florescente burocracia governamental. A
demografia do letramento acrescentou um catalisador ao desenvolvimento
da literatura no final do século VIII a.C.
Conforme discutido no último capítulo, a segunda fase da urbanização
de Jerusalém seguiu-se à invasão de Senaquerib em 701 a.C. A invasão de­
vastou os contrafortes a oeste de Jerusalém. Segundo os cálculos do arqueó­
logo Israel Finkelstein, “cerca de oitenta e cinco por cento dos povoados
da Shefelá no século VIII não haviam sido reocupados na última fase da
Segunda Idade do Ferro. A área total construída diminuiu em cerca de
setenta por cento”®. A devastação dos contrafortes judeus, junto com o
crescimento de Jerusalém, resultou num correspondente aumento no nú­
mero de povoados menores em tomo de Jemsalém, estabelecidos no final
do século VIII ou no século VII a.C. Novas fazendas, vilarejos e aldeias agrí­
colas formaram um interior agrícola e industrial para Jemsalém. Como
observado anteriormente, o novo centro administrativo real cerca de três
quilômetros ao sul de Jemsalém (hoje conhecido como Ramat Rahel)
funcionava como uma capital secundária e um segundo centro administra­
tivo que aliviava a superlotação de Jemsalém. Esse crescimento adicional
pode ser considerado um desdobramento da campanha de Senaquerib,
em que este afirma ter sitiado “46 de suas cidades fortes, fortificações mu­
radas e incontáveis pequenas aldeias [vizinhas]”. O crescente subúrbio de
Jerusalém correspondia (1] à mudança demográfica dos contrafortes a oeste
para a região montanhosa central, (2) à necessidade de produção agrícola
para suprir Jemsalém e a administração de Ezequias e (3) à necessidade de
substituir a infraestmtura agrícola devastada da região dos contrafortes.

CENTRALIZAÇÃO

A urbanização, ou a centraUzação demográfica, também facifitou a


centralização política e religiosa. Obviamente, as mudanças demográficas

9 .1. Finkelstein, The Archaeology of the Days of Manasseh, in Scripture and Other
Artífacts: Essays on the Bible and Archaeology in Honor of Phüip J. King (ed. M. Coogan,
J. Cheryl Exum e L. Stager), Louisville, Westminster John Knox, 1994, 173.

133
C om o a RíMia tornou-se um livro

auxiliaram o processo de centralização do poder político em Jerusalém.


Elas também conduziram a uma centralização da autoridade religiosa. A
expressão disso foi a destruição de todos os locais de culto fora de Jerusalém,
um ato que tinha implicações políticas, econômicas e religiosas. O templo e
o palácio estavam estreitamente conectados nas economias do mundo an-
tigo'°. Embora essa centralização religiosa seja usualmente associada ao
rei Josias no final do século VII a.C , estudiosos há muito reconheceram que
ela teve início no reinado de Ezequias no século VIII a.C. (c£ 2Rs 18,4.22)“ .
Uma vez que o templo era uma peça central da economia e que estava essen-
ciaknente sob o controle do palácio no antigo Judá, qualquer centralização
religiosa seria provavelmente uma extensão de uma centralização política^.
A centralização do controle do Estado tendia a provocar fortes rea­
ções da região campestre. O antigo Judá era uma sociedade descentraliza­
da com uma economia agrária e pastoril. As estruturas políticas informais
do Estado judeu rural consistiam nos anciãos das tribos, na “casa do pai”,
ou no “povo da terra”. Esses grupos foram marginalizados quando o poder
se transferiu para o centro urbano em Jerusalém. De acordo com isso,
provavelmente compreenderemos o retrato negativo feito de Manassés
no Livro dos Reis como resultante da dinâmica social da centralização e
da urbanização. Ao mesmo tempo, a revolução que se seguiu ao assassi­
nato do rei Amon e colocou o jovem Josias no trono esteve certamente
ligada às tensões geradas pela urbanização e pela centralização. Embora
as mudanças na demografia do Estado judeu favorecessem a centralização,
sempre esteve presente a reação contrária a centralização por parte dos
elementos da sociedade judia pertencentes à antiga estrutura tradicional
agrária e pastoril. Isso está evidente na preocupação com a justiça social

10. Para um estudo dássico sobre o papd do templo na economia, ver J. Weinberg,
The Citízen-Temple Community (trad. D. Smith-Christopher), Sheffield, JSOT, 1992.
11. Esse tópico é desenvolvido especialmente por M. Haran, Temples and Temple
Service in Ancient Israel, Oxford, Clarendon Press, 1985.
12. Ver, por exemplo, W. Clabum, Tbe Fiscal Basis of Josiab’s Reforms, JBL 92 (1973)
11-22; N. Steinberg, The Deuteronomic Law Code and tbe Pohtics of Centralization, in
The Bible and the Politics ofEocegesis (ed. D. Jobling et all), Cleveland, Pilgrim, 1991, 161-
170; M. Heltzer, Some Questions Conceming the Economic Policy of Josiah, King of
Judah, lEJ 50 (2000) 105-108.

134
Jusias e a revoluLao le.xlual

manifesta no Deuteronômio; está evidente também na idealização das


regiões incultas presente no Livro de Jeremias (por exemplo, Jr 2,2-3).
Desse modo, o movimento rumo à centralização política e religiosa não
foi simples nem linear.
O desenvolvimento de um Estado centralizado requeria o emprego de
muitos burocratas. O governo tirou vantagem da simplicidade do alfabeto
para manter registros e recibos, enviar comunicados militares e governa­
mentais e supervisionar a distribuição de recursos. A maior parte dos oiten­
ta e oito óstracos escavados no forte administrativo em Arad (cerca de
oitenta quilômetros ao sul de Jerusalém, à beira do deserto), por exemplo,
refere-se à administração da monarquia tardia de Judá'^. Uma das cartas
ordena: “Envie cinquenta homens de Arad e de Qinah, e envie-os a Ramá,
governada por Malkiahu, filho de Qerbur”. Outra carta diz: “E, agora, dê
aos gregos [mercenários?] dois hatos de vinho para quatro dias, trezentos
pães e um hômer de vinho. Remeta-os amanhã; não espere. Se ainda houver
vinagre, dê a eles”. A escrita é usada pelo governo para a administração
rotineira. A associação aparentemente próxima do templo de Jerusalém com
o governo é sugerida em outro óstraco cujo conteúdo foi recentemente
publicado: “de acordo com o que <J>osias, o rei, ordenou, dar por meio de
[Zajkariahu 3 sidos de prata de Tarshish para a casa de Aqui,
o templo está recebendo algum tipo de tributo requerido pelo palácio.
Além desse recibo, há uma variedade de sinetes hebreus e impressões de
sinetes de indivíduos ocupando diversos cargos na administração de Judá,
incluindo “o encarregado da casa”, “o servo do rei”, “o filho do rei”, “o en­
carregado dos trabalhos forçados”, “o escriba”, “o administrador”, “o servo
de YHWH” e “o sacerdote”. Há também uma mulher mencionada, com o
título de “a filha do rei”, que pode ter sido uma simples referência linear,
mas que provavelmente pertencia a uma mulher com alguma posição

13. Y. Aharoni, Arad Inscriptions, Jerusalém, Israel Exploration Society, 1981.


14. P. Bordreuil, F. Israel e D. Pardee, King’s Command and Widow’s Plea: Two New
Hebrew Ostraca of the Biblical Period, NearEastemArchaeobgy 61 (1998) 2-13. O nome
do rei é um tanto problemático. O texto se refere a um rei judeu desconhecido chamado
“Ashiahu”; os editores originais [Bordreuil, Israel e Pardee) argumentam, de modo convincente,
que se trata de uma variação do nome Josias. O fato de que o óstraco não tenha proveniência
determinada torna a interpretação do artefato muito mais complexa e incerta.

135
C om o a Bihlia toinoii-<;e um livro

administrativa^^. Um nível funcional de letramento, particularmente a ha­


bilidade de ler o nome em um sinete e talvez alguns documentos adminis­
trativos básicos, é sugerido por essa evidência. Se for este o caso, então a
escrita já não é algo que só pode ser decifrado por escribas altamente trei­
nados. A escrita começa a perder sua exclusividade, bem como seu mistério.
A ascensão dos textos se ajusta ao processo de individualização e ao
colapso dos valores da comunidade. Os profetas Jeremias e Ezequiel recor­
dam o provérbio tradicional: “Os pais comeram uvas verdes e os dentes
dos filhos ficaram embotados" [Jr 31,29; Ez 18,2]. O provérbio reflete as
relações de parentesco de uma sociedade tradicional, mas a literatura pro­
fética questiona se tais valores tradicionais ainda eram válidos. A tradição
oral era a tradição mantida em comum por uma comunidade. As histórias e
a sabedoria da comunidade eram mantidas socialmente pelo grupo. A trans­
missão da tradição dependia dos grupos. A asserção do indivíduo, porém,
debilitava a comunidade. A vantagem da ortodoxia textual para a revolução
política é que ela não se apoia na tradição.
Os textos escritos tinham o poder de emancipar o indivíduo da auto­
ridade da tradição mantida pela comunidade. No caso da Reforma Protes­
tante, o lema “sola scriptura” (somente as Escrituras] era um grito de liber­
dade contra a suposta tirania da comunidade (ou seja, a Igreja Católica].
Em outra interpretação, contudo, o texto escrito — as Escrituras —, na
Reforma Protestante, era um pretexto que autorizava a revolução social,
política e rehgiosa*®. Como veremos, os textos não somente podiam eman­
cipar a religião, mas também podiam restringir o acesso a ela às elites sociais
e religiosas, cujos integrantes eram letrados e capazes de interpretar textos.
Os textos e o letramento tinham tanto o poder de libertar como de oprimir.

Evidências da escrita em Judá

Centenas de inscrições hebraicas de diversos tipos atestam o uso disse­


minado da escrita durante o período tardio da monarquia em Judá. Já há

15. Ver N. Avigad, Corpus ofWest Semitic Stamp Secds (revisado e complementado por
B. Sass [ed.]], Jerusalém, Israel Exploration Society, 1997, 49-61.
16. Ver H.-J. Martin, The History and Power ofWriting [trad. Lydia G. Cochrane)
Chicago, University of Chicago Press, 1994.

136
Josias e a revolução textual

ttm nítido atimento de remanescentes epigráficos do final do século VIII a.C.


Essa explosão epigráfica perdura até as invasões e os exílios babilônicos
no princípio do século VI a.C. Essa difusão da escrita foi um fator crucial
na formação da literatura bíblica'^.
As evidências da escrita no período tardio da monarquia em Judá são
tão vastas que não podemos enumerá-las completamente aqui. Citando
o levantamento de inscrições antigas feito pelo arqueólogo Ephraim Stern,
"levando em consideração o tamanho do reino judeu nesse período, o
enorme conjimto [de evidências] é simplesmente espantoso”’®.A primeira
coisa que impressiona o observador é o volume e a variedade dos rema­
nescentes epigráficos. Eles incluem sinetes e impressões de sinetes, óstracos,
inscrições para exibição e grafitos. Com exceção dos grafitos, os remanes­
centes epigráficos restringem-se, em sua maior parte, a textos administra­
tivos, econômicos ou burocráticos. Normalmente, um exame desse vasto
corpus de inscrições concentrar-se-ia em inscrições extensas e impressio­
nantes ou em inscrições religiosa e historicamente importantes. Para os pro­
pósitos presentes, todavia, adotarei outra rota. A ascensão do letramento
reflete-se tanto no corriqueiro como no monumental.
A evidência mais trivial, porém poderosa, é a massa de sinetes e im­
pressões de sinetes datados do século VII a.C. Uma compilação publicada
recentemente inclui aproximadamente setecentos sinetes hebreus, a maior
parte deles datados do século VII a.C.’®. Isso é apenas uma fração dos
sinetes pessoais e particulares usados no período tardio da monarquia em
Judá. Eles apontam para uma grande quantidade de documentos em papi­
ros e pergaminhos que não sobreviveram às vicissitudes das condições cli­
máticas e a conflitos militares. Foi descoberta apenas uma carta em papiro
datada de período anterior à conquista babilônica de Jerusalém em 586

17. Essa observação foi reconhedda por muitos estudiosos, espedalmente em anos recentes,
à luz de novos desenvolvimentos arqueológicos. Conferendd sobre esse tópico no encontro da
SBL em São Frandsco no ano de 1998. Ver também os argumentos recentes de M. Coogan,
Literacy and the Formation of Biblical Literature, in Recdia Dei: Essays inArchaeobgy and BibUcal
Interpretation (ed. P.Williams eT, Hiebert), Adanta, Sdiolars, 1999,47-61,bem como o popular
livro de 1. Finkelstein e N. Silberman, The Bible Unearthed, Nova York, Free Press, 2001.
18. E. Stem, Archaeology o/ the Land (rfthe Bible, vol. 2, Nova York, Doubleday, 2001,169.
19. Avigad, Corpus ofSemitic Stamp Seals.

137
C o m o a Bíhlia tnrnoii-<;o iim livro

a.C. Trata-se de rima carta extremamente fragmentada (papMur 17), datada


do século V n a.C , descoberta na árida região próxima à costa do Mar Morto.
A massa maior de documentos em papiros deteriorou-se, mas os sinetes
e as impressões de sinetes sugerem que foi perdida uma grande quantidade
de documentos escritos datados do período tardio da monarquia (ver, por
exemplo, a figura 6.1).

Figura 6.1. Uma reconstrução hipotética de um documento selado


com impressões de sinetes (segundo Avigad)

Os sinetes eram usados em diversas atividades econômicas e admi­


nistrativas no antigo Israel. No capítulo precedente, citei um exemplo das
impressões de sinetes reais [ver figura 5.2). As impressões de sinetes reais
trazem a insígnia do rei, junto com a inscrição “pertencente ao rei” [“leme-
fefe”) e o nome de uma dentre quatro cidades^”. Um arquivo ilustrativo
foi escavado em Jerusalém na Cidade de Davi no verão de 1982^b Essa
coleção incluía quarenta e cinco bulas (ou impressões de sinetes) numa
residência particular que os arqueólogos passaram a chamar de “a Casa
das Bulas”. Um dos aspectos mais interessantes desse arquivo é que ele
demonstra que muitos dos sinetes eram feitos toscamente. Em outras
palavras, eles representam a atividade tanto de cidadãos isolados como
de artesãos do governo. Algumas poucas impressões de sinetes, como a de

20. Esses sinetes foram tema de longas discussões. Ver, por exemplo, D. Ussishkin,
Royal Judean Storage Jars and Private Seal Impressions, BASOR 223 (1976) 1-13; A. F.
Rainey, Wine from the Royal Vineyards, BASOR 245 (1982) 57-62.
21. Yair Shoham, Hebrew Seals and Seal Impressions, in Excavations at the City of
David, vol. 6; Inscriptions (ed. A. Belfer-Cohen et al., QEDEM, 41], Jerusalém, Instituto de
Arqueologia, Universidade Hebraica de Jerusalém, 2000, 29-57.

138
Jobias c a revolui.ào Icxtual

um escriba do governo, Guemariahu, filho de Shafan (que conhecemos


pela Bíbha), são elegantemente produzidas. Muitas outras, no entanto, exi­
bem formas irregulares e imperfeitas das letras do alfabeto. Contudo, todas
essas bulas provêm de um mesmo arquivo, que foi queimado em 586 a.C.
na destruição de Jerusalém pelos babilônios.
O grande número de sinetes e impressões de sinetes descobertos
reflete todo o âmbito da sociedade judia, inclusive as classes mais baixas.
Nahman Avigad, que pubhcou uma compilação de impressões sinetes esca­
vados numa área residencial de Jerusalém, aponta ‘‘várias bulas executadas
sem esmero e a forma tosca de muitas das inscrições”^^. Ele sugere que esses
sinetes foram fabricados por seus proprietários. Tem-se a impressão de que
a propriedade de um sinete tomara-se de certo modo um símbolo de status
na época. Vale notar que Judá representa a primeira evidência do uso
difundido de sinetes anicônicos, ou seja, sinetes sem imagens. No antigo
Oriente Médio, os sinetes gerahnente usavam imagens gráficas para dizer
algo a respeito de seu proprietário. AUan Millard observa o contraste com
os sinetes fenícios do mesmo período; “quase todos os- sinetes fenícios pu­
blicados trazem algum tipo de desenho, seja um simples emblema divino
ou uma cena elaborada, e isso, por si só, era suficiente para expressar a iden­
tidade. Nesses sinetes, as letras do nome do proprietário são estritamente
supérfluas”^^. Esse fato é especialmente importante numa sociedade am­
plamente não letrada. O uso difundido de sinetes anicônicos, por outro
lado, presume que os sinetes poderíam ser prontamente identificados pela
escrita. Isso pode representar um letramento inteiramente trivial, mas im­
plica também que a escrita em si havia se tornado um aspecto comum da
cultura. O uso difundido de sinetes é também evidência de uma economia
cada vez mais complexa, que promoveu a difusão do letramento. O uso
de sinetes é representativo da difusão da escrita na sociedade de Judá.
O uso disseminado de sinetes e medidas de peso sugere um letramento
suficiente no mínimo para a assinatura ou o oficio, ou seja, indica a habili­
dade de ler e escrever o próprio nome, ler e escrever recibos e talvez ler

22. N. Avigad, Hebrew Bulhefrom the Time ofJeremiah, Jerusalém. Magnes, 1986,121.
23. A. Millard, The Uses of the Early Alphabets, in Phoinikeia Grammata: Lire et
écrire eti Méditerranée (ed. C. Baurain, C. Bonnet e V. Krings), Namur, Société des Etudes
Classiques, 1991, 106.

139
Como a Bíhlia tornou- SI’ um hvTO

i*t,^ :r ,
*3»>^

Figura 6.2. Um recibo de pagamento em prata com dezessete assinaturas


(fotografia e desenho de R. Deutsch e M. Heltzer}

cartas curtas. Esse nível inicial de letramento é apoiado por um óstraco


recém-descoberto que contém uma lista de dezessete assinaturas diferentes
de indivíduos que aparentemente assinavam um recibo de pagamento (fi­
gura G.ZY'^. Esse óstraco é um dos mais bem preservados e mais elaborados
representantes do uso da escrita na atividade econômica cotidiana do período
tardio do reino de Judá.
Outro elemento que figura cada vez mais nos itens inscritos são as
medidas de peso. Os sistemas de medidas de peso têm abreviações para
as diferentes palavras de mensuração, bem como numerais hieráticos (to­
mados emprestados dos egípcios}^^. Alguns dos termos inscritos, como a
palavra “sido” [shekel], continuaram a ser usados até o período romano e al­
guns são usados até hoje. Outros termos, como “pím”, que equivale a dois
terços de um sido, são conhecidos apenas pelas inscrições hebraicas da

24. R. Deutsch e M. Heltzer, New Epigraphic Evidence from the Biblical Period, Tel
Aviv, Archaeological Center, 1995, 92-103.
25. Ver R. Kletter, Economic Keystones: The Weight System of the Kingdom of Judah
(JSOTSS, 276] Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998.

140
Jo.sias e a rc\ olucão icvtiiaJ

Idade do Ferro ou pela Bíblia hebraica. Essas medidas de peso contidas nas
inscrições atestam o crescente uso administrativo da escrita no último pe­
ríodo da monarquia. Há ainda outras evidências da conexão entre o flores­
cimento da escrita e o desenvolvimento da atividade econômica.

A CARTA DE UM SO LD A D O LETRADO

Um importante óstraco descoberto em Laquis [a segunda maior cidade


de Judá, localizada nos contrafortes a sudoeste de Jerusalém) oferece um
notável testemunho da difusão do letramento no século VII a.C. Dentre
as Cartas de Laquis, a número III, chamada de “Carta de um soldado
letrado”, registra um debate entre um subordinado e um oficial superior
sobre o tema da habilidade de ler^®. O óstraco tem inscrições em ambos
os lados, e o texto é o seguinte:

Vosso servo Hosaiahu enviou para informar meu senhor laush: Que YHWH
faça com que meu senhor ouça notícias de paz e relatos de coisas boas. E,
agora, por favor, explique a vosso servo o significado da carta que enviastes
ontem à noite a vosso servo, pois o coração de vosso servo tem estado mor-
tificado desde vosso envio a vosso servo e porque meu senhor disse: “Tu não
sabes (como) ler uma carta". Pela vida de YHWH, nenhum homem jamais
precisou ler uma carta para mim. Ademais, eu certamente leio toda carta a
mim enviada, e, além disso, sou capaz de repeti-la perfeitamentel E, a vosso
servo, foi comunicado: “O comandante do exército, Koniahu ben-Efiiatan,
desceu para penetrar no Egito. E ele enviou que Hodaiahu ben-Ahiahu e
seus homens sejam retirados deste lugar”. E, quanto à carta de Tobiahu, servo
do rei, endereçada a Shalum ben-Iadua por meio do profeta, dizendo “Cui-
dadol", vosso servo a enviou ao meu senhor.

O asstmto da carta consiste, quase em sua totalidade, na asserção, por


parte do subordinado, de sua competência para ler. Seu comandante, laush,

26. A editio princeps foi frita por H. Torczyner, Lachish I. The Lachish Letters, Oxford,
Oxford University Press^ 1938. A presente discussão baseia-se em meu artigo:W. M. Schniedewind,
Sodolinguistic Reflections ontiie Letters of a “literate” Soldier (Lachish 3j, 157-167.

141
Como a Bíblia tornou-se liVT

obviamente a havia questionado. Hosaiahu, o subordinado, está ofendido


com a insinuação de que não sabe lerl Mesmo quando a carta sai do assunto
do letramento de Hosaiahu, parece estar apenas relatando o conteúdo de comu­
nicados prévios. Em outras palavras, o propósito das últimas poucas linhas era
demonstrar que o subordinado compreendera corretamente as cartas prece­
dentes! Em suma, toda a carta trata da questão do letramento numa classe
não esciibal dentro da sociedade. Podemos inferir, com base na exaltação dos
protestos do subordinado, que ser üetrado implicava um estigma social.
O tom da carta é mais instrutivo porque indica que o letramento era
a norma esperada tanto pelo oficial superior como pelo subordinado.
Algumas vezes se afirma — incorretamente — que essa carta faz parte de
um corpus das Cartas de Laquis que representam o “Hebraico Oficial”^^.
Essa ideia assume que o comandante militar tinha um escriba profissional, e,
consequentemente, que as Cartas de Laquis refletiriam o Hebraico Oficial
de um escriba treinado. No entanto, essas afirmações dissipam-se diante do
conteúdo do próprio texto. Afinal, a Carta III empenha-se principalmente
em reiterar que o subordinado não necessitava de um escriba profissional.
O conteúdo da carta elimina suposições de que tenha sido escrita por um
escriba treinado. Argumentei, num artigo, que as idiossincrasias linguísticas
da carta sugerem que fói escrita por um oficial militar subordinado com
habüidades linguísticas rudimentares^®. Esses problemas linguísticos in­
cluem erros ortográficos, gramaticais e o uso de fórmulas não padronizadas
na carta. Poderiamos até dizer que o subordinado deveria ter aceitado o
conselho de seu superior e adotado os serviços de um escriba. Ele sabia
ler, mas apenas num nível elementar. Dada a importância de uma escrita
clara e acurada nos comunicados militares, fazia sentido que o superior soli­
citasse que o subordinado empregasse um escriba. O mais extraordinário é
que ele tenha tido de solicitar isso, e ainda que o subordinado tenha ficado
tão ofendido com a soUcitaçãol

27. B. Isserlin, Epigraphicálly attested Judean Hebrew, and the questíon of upper class
(OffLcialI and popular speech variants in Judea during the eighth-sixth centuries B.C,
Austrahan Journal ofBihtíadArchaeoh^ 2 [1972) 197; I. Young, Diversify in Pre-Exãic Hebrew,
Tübingen, J. C. B. Mohr, 1993,110.
28. W. M. Schniedewind, Sodolinguistic Reflections on the Letter of a “Literate”
Soldier (Lachish 3), 157-167.

142
.kisias e a revoluk,ãu textual

A despeito do debate acerca do nível de letramento do oficial subor­


dinado, a carta ainda assim representa um movimento ao longo do conti-
nuum entre oralidade e letramento. Ela constitui uma poderosa evidência
que assinala mudanças seminais no tecido social do período tardio da mo­
narquia de Judá — ainda que o nível de letramento desse soldado fosse
básico e que fosse recomendável que empregasse os serviços de um escriba
para auxiliá-lo.

o O STR A C O DE MESAD HASHAVIAHU

Um outro óstraco, conhecido como a Carta de Mesad Hashaviahu,


também está ligado à difusão do letramento no último período da monar­
quia de Judá^®. O óstraco foi encontrado na sala da guarda de uma peque­
na fortaleza militar de Mesad Hashaviahu, que aparentemente na época
funcionava também como um centro administrativo agrícola. A carta pro­
vém de um trabalhador agrícola que se queixa de que sua vestimenta foi
injustamente confiscada:

Que meu senhor, o oficial, atenda ao apelo deste servo. Vosso servo estava
trabalhando na colheita. Vosso servo estava em Hasar Asam. Vosso servo
fez a sua ceifa, terminou e armazenou-a alguns dias atrás, antes do Sabá.
Quando vosso [sejrvo havia terminado e armazenado há alguns dias,
Hosaiahu, filho de Shobai, veio e tomou a vestimenta de vosso servo. Todos
os meus companheiros darão testemunho do que digo, todos os que esta­
vam ceifando comigo no calor do sol; meus irmãos o atestarão. Na verdade,
sou inocente de qualquer cul[pa]. [Por favor, devolvei] minha vestimenta.
Se o oficial não considerar como obrigação devolver a vestimenta de [vosso]
ser[vo, por favor tend]e pi[edade] dele [e devo]lvei [a vestimenta] de vosso
[se]rvo. Não deveis ficar em sÜêncio [quando vosso servo está sem sua
vestimenta].

29. A publicação original é de J. Naveh, A Hebrew Letter ífom the Seventh Century
B.C., lEJ 10 (1960) 129-139. Ver também J. Naveh, Some Notes on the Reading of the
Mesad Hashavyahu Letter, lEJ 14 [1964) 158-159; S. Talmon, The New Hebrew Letter
from the Seventh Century B.C. in Historie Perspective, BASOR 176 [1964) 29-38.

143
Como a Bilnlia tornnii-se um Iívto

Nesse carta bastante redundante, um trabalhador pede ao governante


que intervenha e providencie para que sua vestimenta lhe seja devolvida.
Essa carta é especialmente notável porque recorda a lei bíblica de uma
vestimenta tomada como garantia. Um trecho do Êxodo, por exemplo,
prescreve um credor [Ex 22,25-26; ver também D t 24,10-15 e 7\m 2,8]:
Se tomares o manto de teu próximo em penhor, devolvê-lo-ás ao pôr do sol,
pois o manto que lhe protege a pele é o seu único cobertor. Em que deitaria?
E se acontecer de ele clamar a mim, hei de ouvi-lo, pois eu sou compassivo.

A questão de uma vestimenta tomada como caução era, aparentemente,


uma questão legal conhecida. O trabalhador não precisaria ter nenhum
conhecimento direto da legislação escrita para apresentar sua queixa.
Usualmente, assume-se que esse trabalhador usou os serviços de um esciiba
para redigir sua queixa. Se for este o caso, a queixa teria de ter sido ditada
e redigida com edições rnínimas; essa é a única explicação para o estilo redun­
dante da carta. Evidentemente, a suposição de que um escriba esteve en­
volvido é apenas isso — uma suposição, que é apresentada diante da implau-
sibihdade de que um trabalhador agrícola fosse capaz de escrever. Isso pode
estar bem fundamentado ou não. A verdadeira questão, porém, é: por que
a queixa teve de ser escrita, dado o reduzido tamanho desse posto remoto?
Teria a escrita passado a desempenhar um papel tão importante na burocra­
cia do governo judeu que até mesmo a queixa de um trabalhador pobre de
um remoto e diminuto posto agrícola tinha de ser redigida?

GRAFITOS

Outro tipo de evidência reveladora acerca do letramento são os grafi­


tos. Enquanto a Carta de um Soldado Letrado trata da habihdade de ler,
os grafitos indicam a habilidade de escrever nas classes não escribais.
O mais famosos corpus de grafitos foi descoberto nas grutas funerárias
em Khirbet el-Qôm. As inscrições são notáveis pela falta de ortodoxia religio­
sa. Um dos grafitos, por exemplo, pede uma bênção de “YHWH e sua Aserá”^°.

30. Essa inscrição foi inidalmente publicada por W. Dever, Iron Age Epigraphic Materia
fromtheAreaofKhirbetel-Kôm, HUCA40-41 [1970] 139-204.

144
Josias e a re\olu>;àu textual

O trabalhador podería saber escrever, mas aparentemente não era muito


versado no monoteísmol Outro grafito, menos conhecido, é uma inscrição
recém-publicada garranchada pelo escavador da tumba, que pede uma
bênção para si próprio. Os grafitos não eram incomuns no mundo antigo,
mas o que é interessante aqui é a classe social da pessoa que faz a inscrição
do grafito. Os grafitos antigos usualmente podem ser atribuídos a escribas
ou burocratas rabiscando em circunstâncias variadas. No caso dos grafitos
de Khirbet el-Qôm, o autor se identifica como o escavador da tumba.
Outro grupo de grafitos foi descoberto nas tumbas em Khirbet Beit-Lei,
a cerca de oito quilômetros de Laquis. Várias das inscrições e imagens en­
talhadas nas paredes dessas tumbas datam do final da monarquia judia^b
Os grafitos estavam mal preservados, mas claros o bastante para ser Udos,
e oferecem uma vivida descrição de uma situação catastrófica. Os grafitos
provavelmente descrevem a invasão de Senaquerib (701 a.C.) ou, talvez,
a primeira campanha dos babÜônios (597 a.C.).

os AM U LETOS DE PRATA DE KETEF HINNO M '

Uma tumba no interior de um complexo de tumbas localizado no lado


oeste do vale Hinnom, na antiga estrada que levava de Jerusalém a Belém,
é o local de uma das mais notáveis inscrições recentemente descobertas,
datadas do final do período monárquico. O arqueólogo Gabriel Barkay
escavou dois pequenos amuletos ou talismãs de prata, com mais de vinte
linhas finamente buriladas (ver figura 6.3)^^. O contexto arqueológico
requer que esses amuletos sejam datados do final do século VII a.C.^^. O

31. As tumbas datam do final da monarquia judia, a despeito de algumas sugestões


de que poderiam ser posteriores; cf. J. Naveh, Old Hebrew Inscriptions in a Burial Cave,
lEJ 13 (1963) 74-92; A. Lemaire, Prières en temps de crise; Les inscriptions de Kbirbet
Beit Lei, RB 83 (1976) 558-568.
32. Originalmente publicado por G. Barkay, The Priestly Benediction on Silver Pla­
ques fiom Ketef Hinnom in Jerusalem, TA 19 (1992) 139-191.
33. A datação paleográfica dos amuletos foi tema de alguiiias discussões. Infelizmente,
grande parte das discussões precedentes baseava-se em antigas fotografias e, consequente­
mente, em desenhos não muito precisos; ver G. Barkay, M. Lundberg Vaughn e B. Zuckerman,
The Amulets from Ketef Hinnom: A New Edition and Evaluation, BASOR 334 (2CX)4) 41-71.

145
CnrTKi a BiVilia torm ni-s livro

9
10

11

Figura 6.3. O mais antigo texto bíblico; amuleto de prata II de Ketef Hinnom,
Jerusalém, datado do século VII a.C. [fotografia de Bmce Zuckerman
e Marilyn Lundberg, West Semitic Research; desenho de Bruce Zuckerman;
cortesia da Autoridade de Antiguidades de Israel e Gabriel Barkay]

texto dos amuletos parafraseia duas conhecidas passagens biblicas. A pri­


meira é a bênção sacerdotal de Números 6,24-26: “Que YHWH te abençoe
e te guardei Que YHWH volte para ti seu olhar e te dê a pazl Que ele te
seja benevolente! Que YHWH erga seu olhar para ti!” A segunda passagem
é do conhecido texto do Deuteronômio 7,9-10; “Conhecerá, portanto, que
somente YHWH, teu Deus, é Deus, o Deus imutável que mantém fiel­
mente Sua aliança por mil gerações daqueles que O amam e guarda Seus
mandamentos”. Esta última passagem continuou sendo um texto impor-

146
Josias. c a revolui^ãu texiuul

tante no período do Segundo Templo (cf. Dn 9,4; Ne 1,5)^'^. O uso desses


textos bíblicos em amuletos, ademais, parece ser uma tentativa de acarre­
tar a injunção do Shemá, a saber: “Tu farás deles um sinal amarrado à tua
mão, uma faixa entre teus olbos; tu os inscreverás sobre as ombreiras da
porta de tua casa e na entrada da tua cidade” (Dt 6,8-9}. Com efeito, a es­
crita nos umbrais das portas (as mezuzoi) tomou-se uma tradição judaica
praticada até hoje. O uso desses amuletos pode ser visto como uma primei­
ra expressão da prática posterior de usar filactérios (ou tefilim; c f Mt 23,3;
M. Shevuot 3.8, II). A literatura de sabedoria menciona o uso de palavras
de sabedoria em tomo do pescoço, nos dedos ou no peito (cf. Pr 1,9; 3,3;
6,21; 7,3}; contudo, isso é, em geral, entendido metaforicamente. O que é
digno de nota acerca do desenvolvimento dessa tradição é que é o texto de
um livro específico, a Torâ, que deve ser escrito nos umbrais, nos filac­
térios ou — no caso em questão — no amuleto.
Esses dois amuletos não devem ter sido únicos. Eles não eram objetos
excepcionais. Temos de presumir que esses achados casuais representam
um fenômeno muito mais amplo no período tardio da monarquia. As pessoas
usariam textos tradicionais como amuletos que eram usados ao redor do
pescoço. Embora esses textos não fossem para ser lidos, seu uso é indicativo
do poder religioso que os textos escritos passaram a ter no período.

A ortodoxia de um livro

A difusão do letramento e, com ela, a ortodoxia do livro seriam irrigadas


pela revolução política. A urbanização e a centralização política resultaram
em certo ressentimento entre as vilas e aldeias mais rurais. As estruturas
políticas mais antigas eram descartadas à medida que o governo central em
Jerusalém se tomava mais poderoso e próspero. Esse processo se reflete, por
exemplo, no profeta mral Miqueias, da vila interiorana de Moréshet-Gat,
como citamos anteriormente:
Escutai, portanto, chefes da casa de Jacó, líderes da casa de Israel, que tendes
horror ao direito e tomais tortuosa toda retidão, edificando Sião no sangue

34. Ver também M. Fishbane, Form and Reformtilation of the Biblical Priestly Blessing
JAOS102 (1983) 115-121.

147
Como a Biblia tornou-se um livro

e Jerasalém no crime. Seus chefes proferem sentenças por gorjeta, os sacer­


dotes ensinam por lucro, os profetas praticam a adivinhação por dinheiro. E
é sobre YHWH que se apoiam ao dizer: “Não está YHWH no meio de todos
nós? Não, a desgraça não cairá sobre nós” [Mq 3,9-11).

Os “chefes” e “líderes” são relacionados com as casas de Jacó e Israel


— ou seja, ao norte —, e esses refugiados da invasão assíria de Israel são
aqueles que “edificavam” Jerusalém. No contexto da enorme ampliação
de Jerusalém na época, o uso do verbo “edificar” (Vna) deve ser entendido
como tendo um referente concreto. Os novos habitantes de Jerusalém
— aparentemente, muitos deles provindos do norte — são acusados de
introduzir valores sociais deturpados. O reino do norte havia sido mais
urbano, economicamente próspero e culturahnente diferente de Judá. Sem
dúvida, muitos dos refugiados do norte pertenciam às elites, que eram os
grupos que mais refletiam a diversidade cultural e a prosperidade econômica
da região. Eles invadiram o sul rural, culturalmente isolado, e trouxeram
com eles os valores sociais da “cidade”. A crítica profética, como vimos
anteriormente em Miqueias (e que também pode ser encontrada em Amós
e Oseias), reflete essa tensão entre a cidade e o interior.
A crítica das novas mfluências culturais culminou no assassinato do neto
de Ezeqxáas, Amon. Amon governou apenas por dois anos (642-640 a.C.]
antes de ser assassinado. Na ocasião, um grupo, chamado em hebraico de 'Am
Ha-aretz, o que pode ser traduzido como “o povo da terra”, tomou conta da
situação para garantir uma sucessão favorável. Eles puseram o governo nas
mãos de um rei de oitenta anos chamado Josias (r. 640-609 a.C); obviamente,
Josias começou seu governo como uma marionete do A ‘ m Ha-aretz. O local
social alterado do poder talvez seja indicado pelo fato de que a família do novo
rei veio de Bascat, uma pequena aldeia situada nos contrafortes de Jerusalém^^.
O poder aparentemente saíra das mãos das elites urbanas, com vínculos
com o reino de Israel, do norte, retornando para os líderes tribais rurais.
O papel do enigmático A ‘ m Ha-aretz no golpe de Josias sugere que
o grupo representava os antigos Hderes tribais rurais^®. A tensão entre o

35. Não há consenso acerca da identificação exata de Bascat, embora aparentemente


estivesse situada nos contrafortes judeus perto de Laquis (c£ Js 15,39).
36. Para um resumo da literatura, ver J. Healy, Am Ha’aretz, in ABD, vol. 1,168-169.

148
Josias L' a ri-volucao textual

A
‘ m Ha-aretz e a elite urbana é muito explícita num golpe político anterior,
quando Joás (r. 835-796 a.C.) derruba a rainha Ataliá (r. 841-835 a.C.}.
Ataliá, filha do rei Omri, do norte, havia sido casada com o rei judeu Jorão,
numa união política que pretendia reunifícar o reino dividido. Quando seu
marido foi assassinado numa intriga palaciana em Samaria, Ataliá apode­
rou-se do trono. O relato do reinado de Ataliá termina com a significativa
afirmação: “alegrou-se todo o 'Am Ha-aretz, e a cidade se manteve calma”
(2Rs 11,20). Ambos os golpes ilustram a tensão existente entre as facções
urbana e rural no antigo Judá.
O golpe de Josias foi uma reação a mudanças na sociedade judia — uma
tentativa de recuperar os antigos valores e a antiga estrutura social. Mas não
havia como voltar atrás. A situação não podia ser desfeita. Embora algumas
mudanças acarretadas pela globalização sob o domínio assírio fossem irre­
versíveis, era possível fazer com que servissem aos propósitos da revolução.
A história da revolução josiânica é extensamente narrada por um autor
do Deuteronômio em 2 Reis 22-23. A reforma religiosa é acionada pela
descoberta de um pergaminho (ou “livro”, como com-írequência se traduz
erroneamente). Podemos seguir a narração, que começa em 2 Reis 22,8:

O sumo sacerdote Helcias disse ao secretário Safan: “Encontrei na casa de


YHWH o pergaminho da lei". E Helcias entregou o livro a Safan, que o leu.
O secretário Safan foi ter com o rei, a fim de lhe prestar contas de sua
missão, e disse: “Teus servos recolheram o dinheiro encontrado na casa e
o entregaram nas mãos dos empreiteiros das obras, responsáveis pela casa
de YHW H”. Depois o secretário Safan comunicou ao rei: “O sacerdote
Helcias entregou-me um pergaminho”. E Safan leu perante o rei. Este, ao
ouvir as palavras do pergaminho da lei, rasgou as vestes. [... ] O rei mandou
dizer a todos os anciãos de Judá e de Jerusalém que se reunissem em sua
presença. Em seguida, subiu à casa de YHWH, em companhia de todos os
homens de Judá e de todos os habitantes de Jerusalém: sacerdotes, profetas
e todo o povo, pequenos e grandes. Fez-lhes, então, a leitura de todas as
palavras do pergaminho da aliança encontrado na casa de YHWH. O rei
posicionou-se junto ao pilar e firmou diante de YHWH a aliança que
obriga a seguir YHWH, a guardar seus mandamentos, suas exigências e
decretos, de todo o coração e com todo o seu ser, observando as palavras
dessa aUança escritas neste pergaminho. Todo o povo aderiu a essa aliança”
(2Rs 22,8-11; 23,1-3).

149
C om o a Bíhlia tomou-se um livro

Josias usa a descoberta do pergaminho para justificar a ação de purgar


Jerusalém e Judá da influência corruptora do reino do norte^^. A centrali-
dade do “livro” no relato das reformas de Josias é crucial. A palavra escrita
se tom a a pedra de toque da ortodoxia religiosa. Na obra clássica de Jack
Goody sobre a antropologia da escrita, A Domesticação do pensamento
selvagem [The Domestication ofthe Savage Mind], o autor observa; “o letra-
mento encorajava, a um só tempo, a crítica e o comentário, por um lado,
e a ortodoxia do livro, por outro”^®. A observação de Goody recorda a des­
coberta do "pergaminho da afiança” que se tomou a base das reformas
josiânicas. Essas reformas sobrevêm a partir da descoberta de um pergaminho,
e sua realização segue a prescrição de um pergaminho. Dificilmente seria
coincidência que se alegue que essas reformas religiosas inspiradas num
texto tenham ocorrido precisamente numa época em que vemos as condi­
ções sociais necessárias para a emergência da escrita e na qual as evidências
arqueológicas nos dizem ter havido uma explosão na escrita.
O livro bíblico que constitui o rascunho das reformas josiânicas é o
Deuteronômio. Quando examinamos cuidadosamente elementos especí­
ficos das reformas — por exemplo, a centralização do culto fcf Dt 12], a
afiança com YHWH (c£ D t 26) ou a destruição dos cultos estrangeiros —,
constatamos que eles espelham a legislação deuteronômica. A cerimônia
da afiança que dá início à reforma — “O rei posicionou-se junto ao pilar
e firmou diante de YHWH a afiança que obriga a seguir YHWH, a guardar
seus mandamentos, suas exigências e decretos, de todo o coração e com
todo o seu ser, observando as palavras dessa afiança escritas neste perga­
minho” (2Rs 23,3) — é um eco da linguagem do Deuteronômio (por

37. Sobre as reformas de Josias, ver E. Eynikel, The Reform of King Josiah and the
Composition of the Deuteronomistic History (OTS, 330), Leiden, Brill, 1996; N. Lohfink,
The Cult Reform of Josiah of Judah: 2 Kings 22-23 as a Source for the History of Israelite
Religion, in Ancient Israelite Reli^on: Essays in Honor of Frank Moore Cross (ed. R D.
Miller, P. Hanson e S. D. McBride), Phüadelphia, Fortress, 1987, 459-476; M. Sweeney,
King Josiah of Judah: The Lost Messiah of Israel, Oxford, Oxford University Press, 2001;
W. M. Schniedewind, History and Interpretation: The Religion of Ahab and Manasseh
in the Book of Kings, CBQ 55 (1993] 649-661.
38. J. Goody, The Domestication ofthe Savage Mind, Cambridge, Cambridge University
Press, 1977, 37.

150
-losias c a ri;vului.ai.i ifxiuul

exemplo, D t 4,40; 6,17; 7,11; 26,17). A relação entre as reformas de Josias


e o Livro do Deuteronômio é muito clara. ^
A escrita é central para a revelação no Deuteronômio. Isso certamente
distingue este livro do restante do Pentateuco (como veremos no capítulo
7). Alguns exemplos salientarão a centralidade da escrita no Deuteronômio.
Em contraste com o Êxodo, o Deuteronômio reitera diversas vezes o fato
de que a revelação no Sinai foi escrita (Dt 4,13; 5,19; 9,10; 10,4; 27,3.8;
31,24). Não somente a Torá foi redigida, como também os ensinamentos
de Moisés tinham de ser escritos novamente: “escreverás todas as palavras
deste ensinamento/Torá, quando tiveres atravessado o Jordão” (Dt 27,3).
Até mesmo o rei tem de fazer uma cópia para que possa lê-la e consultá-la
(Dt 17,18). Além disso, devem-se ver partes da Torá em todas as casas. O
Deuteronômio repetidamente ordena às pessoas “tu os inscreverás [os man­
damentos] sobre as ombreiras da porta de tua casa e na entrada da tua
cidade” (Dt 6,9; 11,20). Dessa maneira, todo judeu se lembraria das in-
junções escritas dos ensinamentos, ou da Torá. Foram escritos nos umbrais
da casa. Este deve ter sido o meio de introduzir a ortodoxia desse texto
escrito na sociedade judaica. O mezuzá, como veio a ser conhecida a escrita
nos umbrais das portas, era um lembrete da ortodoxia da Torá escrita. Já
apontei dois exemplos externos à Bíblia — os amuletos de prata de Ketef
Hinnom que citam o Deuteronômio (Dt 7,9-10) e a bênção sacerdotal do
Livro dos Números (Nm 6,24-26) — que sugerem a autoridade religiosa
e a ortodoxia dos textos no último período da monarquia judia. Certamen­
te, nem todo judeu saberia ler, principalmente num nível que excedesse o
muito trivial, porém o texto escrito tornara-se a base da autoridade reli­
giosa na sociedade judia.
Qual era o propósito da escrita no Deuteronômio e nas reformas josiâ-
nicas? A palavra escrita autorizava as reformas religiosas dos líderes e
anciãos rurais que haviam sido desfavorecidos pela centralização do poder
na cidade de Jerusalém e pela pessoa do rei. O Deuteronômio impôs no­
táveis limites ao poder do rei por meio da palavra escrita e dos “sacerdotes
levíticos”:

E, tendo subido ao seu trono real, [o rei] escreverá para si mesmo uma cópia
desta Torá, que os sacerdotes e os levitas lhe transmitirão. Ela permanecerá
a seu lado, e ele a lerá todos os dias de sua vida, para que aprenda a temer
YHWH, seu Deus, guardando todas as palavras desta Lei e todas as suas

151
Como a Biblia tornou-se um livro

prescrições, a fim de pô-las em prática, sem se tornar orgulhoso perante os


seus irmãos, nem se desviar do mandamento, nem para a esquerda, nem para
a direita, a fim de prolongar, para ele e para seus filhos, os dias de sua realeza
no meio de Israel (D t 17,18-20].

Isso era uma inovação radical. O poder do rei estava sendo limitado.
Uma Torá escrita, resguardada pelos “sacerdotes levitas”, assegurava que o rei
não se tomasse demasiadamente poderoso, “tomando-se orgulhoso perante
os seus irmãos”. No Oriente Médio, a palavra do rei tendia a ser lei, mas
essa passagem coloca o rei num nível de obrigação igual perante a lei.
Quem estava limitando o poder do rei? De acordo com a lei do rei,
os “sacerdotes levitas” lhe deram a lei. A próxima seção do Deuteronômio
define esse gmpo: “Os sacerdotes levitas, toda a tribo de Levi, não terão
nem parte nem patrimônio com Israel” [Dt 18,1). Os sacerdotes levitas
localizavam-se em todo o território — não apenas em Jerusalém ou no
Templo. Na última cerimônia da aliança do Deuteronômio, os sacerdotes
levitas são postos lado a lado com Moisés: “E Moisés, com os sacerdotes le­
vitas, disse a todo Israel: ‘Silênciol Ouve, Israell Hoje, YHWH, teu Deus, fez
com que te tomasses povo para ele!’” [D t 27,9). Com certeza não é uma
coincidência que, nessa mesma cena, descreva-se toda a escrita do Deute­
ronômio! A narrativa é apresentada no capítulo 27:

Moisés, juntamente com os anciãos de Israel, deu ao povo esta ordem; “Guardai
todo o mandamento que hoje vos dou. No dia em que atravessardes o Jordão
para a terra que te dá YHWH, teu Deus, tomarás grandes pedras, que er­
guerás e pintarás com cal. Nelas escreverás todas as palavras desta Torâ, quando
tiveres atravessado o Jordão. Deste modo, poderás entrar na terra que te dá
YHWH, teu Deus, terra que mana leite e mel, como te prometeu YHWH,
o Deus de teus pais. [...] Escreverás sobre as pedras todas as palavras desta
Torá; expõe-nas bem. E Moisés, com os sacerdotes levitas, disse a todo Israel:
[..,] [Dt 27,1-3.8-9).

D e acordo com essa versão, “esta Torá” só é escrita depois que os israe­
litas tiverem cmzado o Jordão. O discurso de Moisés no Deuteronômio
foi então redigido posteiiormente, aparentemente pelos sacerdotes levitas.
Os antigos líderes tribais mencionados no capítulo 27, primeiramente como
“os anciãos de Israel” e, depois, como “os sacerdotes levitas”, haviam sido

152
Josidí' e a revolução texuuil

marginalizados pela centralização e pela urbanização do período final da


monarquia judia. Contudo, eles impunham ao rei a ortodoxia escrita do
texto que limita o poder real. Ironicamente, embora a escrita tenha se
difundido em Judá por meio da burocracia do governo, ela foi usada
contra o poder do governo na legislação deuteronômica. As reformas jo-
siânicas se tornaram um momento definidor para o papel da escrita nos
textos bíbhcos. Antes desse período, a escrita era um fenômeno marginal
no antigo Israel. Ela servia à corte real. Era empregada na manutenção
de registros. Aparecia na mágica e desempenhava um papel nos mitos da
criação. Durante o final da monarquia judia, a escrita se tom ou um ele­
mento corriqueiro no tecido social. O conhecimento era preservado e a
autoridade era conferida por meio de textos escritos. A importância da
palavra escrita seria sentida em toda a literatura pós-josiânica. Com efeito,
o papel da escrita na sociedade havia se modificado dramaticamente.
O impacto da cultura textual introduzido pelas reformas josiânicas é
evidente, por exemplo, em Jeremias. É evidente que o ministério do profeta
começou na mesma época em que o sacerdote Helcias encontrou o perga­
minho (2Rs 22,2-8). O profeta confessa: “Ao encontrar tuas palavras, eu
as devorava. Tua palavra tomou-se meu gozo, a alegria para o meu coração”
(Jr 15,16), aludindo à descoberta do pergaminho e ao seu próprio chama­
do [Jr 1,9). O profeta não era ele próprio um escriba, mas seu amigo ínti­
mo, Baruc, o era, e redigiu seus oráculos. Assim, por exemplo, quando YHWH
ordena a Jeremias que escreva uma mensagem profética (Jr 36,1-2), o
profeta chama Baruc para transcrever aquilo que ele lhe ditasse (Jr 36,4).
Essa descrição do processo da escrita das palavras de um profeta é o primei­
ro e único relato do processo de escrita.

Um novo lugar social para a escrita

A escrita não somente havia se difundido desde os dias de Ezequias,


mas agora tinha também um novo lugar social. Ela não era mais uma prer­
rogativa essencialmente do Estado, mas havia se disseminado para várias
classes não escribais, como se pode perceber nas inscrições discutidas
anteriormente. Para compreender de que maneira o lugar social da escrita
havia se modificado, retornemos à famosa descoberta do pergaminho; “O
sumo sacerdote Helcias disse ao secretário Safan; “Encontrei na casa de

153
Como a Bíblia lornou-si' um livro

YHWH o pergaminlio da lei”. O fato de que tenha sido o sumo sacerdote


quem encontrou o pergaminho no templo é crucial para compreender o
novo lugar social da escrita; os sacerdotes e o templo. Esse é um movi­
mento de afastamento do controle tradicional da escrita por parte do
Estado. É certo que a escrita sempre havia tido um papel no templo, mas
agora os sacerdotes utilizavam o texto escrito como uma ferramenta para
impor um programa de reforma religiosa. A escrita não era mais simples­
mente uma forma mágica de discernir, por exemplo, se uma mulher casada
havia tido uma relação adúltera [como em Nm 5); ela havia se tomado
uma ferramenta para impor um determinado tipo de visão religiosa ao
povo e à monarquia.
Por que o lugar social da escrita modifícou-se tão radicalmente nesse
momento específico da história? Em primeiro lugar, a disseminação do letra-
mento abriu a possibÜidade de que a escrita pudesse ter uma nova função
na sociedade. Como antropólogos argumentaram, o letramento tomou pos­
sível a ortodoxia do livro. Porém, mais do que isso, os acontecimentos
políticos permitiram que os sacerdotes e o templo — que normalmente
eram subordinados à monarquia — conquistassem ascendência. O pai de
Josias fora assassinado quando Josias tinha apenas oito anos, e o “povo da
terra” — o gmpo pofitico mral judeu — pôs o menino-rei no trono. Ao
fazê-lo, essa política mral contrariou a liderança política e religiosa estabe­
lecida. A palavra escrita foi invocada para validar essas reformas políticas
e religiosas. Quando um sacerdote descobriu a palavra escrita no templo,
os sacerdotes, junto com “o povo da terra”, usaram-na para conquistar uma
posição mais forte na pofitica do final da monarquia judia.
Embora o sacerdote Helcias descubra o “pergaminho da aliança”
— que é uma referência explícita à legislação de Êxodo 20-23, aludida em
Êxodo 24,7 [ver o capítulo 7 do presente livro) —, as reformas josiânicas
seguem o Deuteronômio. O Deuteronômio era a Magna Carta das reformas
pohticas e religiosas de Josias; ironicamente, o Deuteronômio defende ri­
gorosas restrições ao poder do rei. No trecho seguinte, por exemplo, o poder
real é restringido:

Ele [o rei], porém, não deverá possuir numerosos cavalos, ou levar de volta
o povo para o Egito a fim de conseguir um grande número de cavalos, porque
YHWH vos disse: “Não, não voltareis por essa estradai”. Ele não deverá tam­
bém ter um grande número de mulheres, desviando o seu coração. Também

154
.losias e a rt-voliHiio icxtu.il

não deverá dispor de muito dinheiro ou ouro. E tendo subido ao seu trono
real, escreverá para si mesmo uma cópia desta Torá, que os sacerdotes e os
levitas lhe transmitirão (Dt 17,16-18).

Essas restrições à realeza seriam efetivamente empregadas na crítica


ao venerável rei Salomão^^. O relato deuteronômico do reinado de Salomão
descreve o rei construindo grandes cidades-estábulos para seus cavalos,
casando-se com centenas de mulheres e juntando grandes quantidades de
ouro. Numa crítica sutil e dissimulada, um autor deuteronomista escreve:
“Todas as taças do rei Salomão eram de ouro, e de ouro fino eram todos
os objetos da casa da Floresta do Líbano; nenhum era de prata, pois não
se fazia caso dela no tempo de Salomão” [IRs 10,21). Consideremos como
Salomão havia decaído em seu status, passando de um rei sábio da época
de ouro da monarquia a um rei que violara a lei de Deus! Os deuterono-
mistas apresentam uma condenação de Salomão — um dos fundadores
da monarquia tmificada — sem criticar explicitamente o velho rei. Além
disso, a lei deuteronômica para o rei requer que sacerdotes levitas supervi­
sionem a escrita de uma cópia da Torá para o rei. Essa Torá escrita assume
então o papel de detentora de autoridade, fiscal do comportamento do rei.
O Deuteronômio não era o documento de uma monarquia forte; antes, o
assassinato do rei Amon (r. 642-640 a.C.) e o estabelecimento do menino
Josias como rei por parte do “povo da terra” proporcionaram a oportuni­
dade para que este último limitasse o poder do monarca. Quando Josias
ficou mais velho (no décimo oitavo ano de seu reinado, segundo 2Rs 22,3),
iniciou reformas religiosas de grande alcance que reclamariam o papel do
rei como o líder do Templo'**’.

39. Ver M. Bretder,The Structure of 1 Kings 1-11, JSOT49 (1991) 87-97. Para uma expo­
sição ampla sobre o conceito de realeza do antigo Israel e sua representação no Deuteronômio
e na história deuteronomista, ver B. Levinson, The ReconceptuaHzation of Kingship in Deute-
ronomy andthe Deuteronomistic History’s Transformation ofTorah, VT 51 (2001) 511-534.
40. Tanto Levinson (The Reconceptuahzation of Kingship) como Gary Knoppers
(Rethinking the Relationship between Deuteronomy and the Deuteronomistic History,
CBQ 63 [2001]: 393-415) reconhecem a tensão entre o Deuteronômio e a história deu­
teronomista, especialmente no que se refere ao papel do rei. Acredito que o Deuteronômio
deve ser visto como contendo as tradições do “povo da terra", enquanto a história deutero­
nomista é obra dos escribas do rei.

155
Como a Bíblia tornou-st' um Iívto

O que é vim problema central — ou, melhor, uma inovação — do


Deuteronômio? Toda a literatura bíblica até esse momento fora produzida
fundamentalmente sob os auspícios do poder real. No entanto, o livro não
é um texto produzido por escribas reais. Ele limita o poder do rei e fala em
defesa das pessoas comuns. O Deuteronômio serve para controlar o poder
do rei. É um livro de consciência social que promove o poder do Estado
rural, dos desfavorecidos e dos sacerdotes levitas. Assim, o Deuteronômio
é a literatura do “povo da terra” [em hebraico, 'Am Ha-aretz). Ele expressa
preocupação com os estrangeiros na terra e com aqueles que vivem em
todo o território de Israel. Uma das frases características do Deuteronômio
é “em todas as tuas cidades”, refletindo as amplas preocupações sociais do
livro. O Deuteronômio não é simplesmente a obra das elites em Jerusalém
ou dos escribas josiânicos da corte real. Antes, em suas preocupações so­
ciais mais amplas, o Deuteronômio entra em contraste com a literatura
real e com a legislação sacerdotal conhecida por meio do Levítico e do
Livro dos Números.
Por conseguinte, o lugar social da escrita se expande. Agora, a escrita
já não é feita somente por ordem da corte real. Se, como sugeri, um texto
escrito tomou-se a base da ortodoxia rehgiosa, como essa palavra escrita era
disseminada? Não podemos supor que centenas de cópias escritas foram
realizadas e mantidas em bibliotecas particulares. Não há evidências disso,
e teria sido impraticável. Embora eu tenha argumentado em defesa do
crescente letramento, tratava-se de um letramento mundano que surgiu
com a bvirocracia da economia judia. Com efeito, a escrita rehgiosa púbhca
também era mundana: a escrita que se ordenou que fosse posta nos umbrais
das portas de todas as famíhas israehtas (Dt 6,9; 11,20} ou que era posta
em amuletos para serem usados em volta do pescoço. Esses tipos de escrita
eram lembretes da Torá de Moisés conforme estipulado no Deuteronômio.
E, agora, os sacerdotes levitas, em todo o território, assumiam o papel ativo
de ensinar essa Torá escrita.

A crítica ao livro

A escrita não é necessariamente considerada um bem universal. Por


exemplo, num trecho hterário muito interessante, envolvendo o faraó e o
Deus Tot, Platão criticou o deus egípcio inventor da escrita: “Não inventaste

156
Josias e a rfvokii,ão icxtual

um elixir para a memória, e sim para a rememoração; e ofereces aos teus


alunos a aparência da sabedoria, não a sabedoria em si mesma, pois eles
lerão muitas coisas sem ter instrução, e, portanto, parecerão saber muitas
coisas, embora sejam ignorantes na maior parte delas e tenham dificul­
dade em fazer progresso, já que não são sábios, mas apenas parecem ser”
{Fedro, § 275a). O texto permite que a pessoa leia “sem ter instrução” e
pode também substituir o professor tradicional; porém, pode-se argumentar,
como faz Platão, que é a instrução recebida de um professor vivo, e não
o texto em si, que tom a alguém sábio. O texto debilita a comunidade e
não traz sabedoria.
A escrita situa a autoridade num texto e em seu leitor, em vez de
situá-la numa tradição e em sua comunidade. A escrita não requer a voz
viva. Desse modo, a escrita tem o poder de suplantar os modos tradicionais
de ensino e as estmturas sociais da educação. Numa sociedade pré-letrada,
a autoridade da sociedade era inteiramente dependente das tradições man­
tidas pelos pais e pelos anciãos e transmitidas oralmente de geração a gera­
ção. A comunidade mantinha as chaves da sabedoria e da autoridade. Os
textos escritos tinham a possibilidade de substituir a sabedoria tradicional
centrada na comunidade. A pessoa não tinha mais de depender da comuni­
dade para adquirir conhecimento e sabedoria, pois a própria palavra escrita
podia oferecer conhecimento. Dessa perspectiva, a ênfase num texto es­
crito nas reformas josiânicas e no Deuteronômio era não apenas um de­
senvolvimento novo, mas um desenvolvimento perigoso. Embora o texto
escrito se apoiasse na antiguidade da revelação mosaica e fosse original­
mente empregado pelos reformadores deuteronômicos para reafirmar a
ortodoxia tradicional, também tinha o poder de suplantá-la'” . A tensão
entre o texto e a tradição, entre o escrito e o oral, já é evidente no Livro de
Jeremias. Uma das passagens mais problemáticas na Uteratura bíblica tem
sido Jeremias 8,8, que lembra a crítica de Sócrates à sabedoria baseada
nos textos: “Como podeis dizer: ‘Temos a sabedoria, pois temos a Torá de
YHW H?’ Com efeito, a falsa pena dos escribas transformou-a numa men-
tiral”. Alguns comentadores concluíram — relutantemente — que essa
Torá de YHWH é o Deuteronômio ou alguma versão dela. É natural dirigir

41. Ver B. Levinson, Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovatíon, Nova
York, Oxford University Press, 1997.

157
Como a Bíblia tornou-st’ um 1í\ to

O olhar para as reformas josiânicas e a descoberta do pergaminho da aliança,


que é usualmente considerado uma versão pré-canônica do Deuteronô-
mio. Essa conclusão, porém, não é de modo algum óbvia. Certo comentador
escreve: “Essa breve passagem é uma das mais difíceis de compreender em
todo o livro”''^. Ele conjetura que não é possível que o profeta esteja se
referindo a algum código de leis forjado ou que esteja condenando o pró­
prio Livro do Deuteronômio.
Em sua popular obra Who Wrote the Bible? [Quem escreveu a Bíblia?],
Richard Elliot Friedman argumenta que o próprio profeta Jeremias foi o
deuteronomista. Por conseguinte. Jeremias 8,8 não poderia estar se refe­
rindo ao Deuteronômio. Em resultado disso, Friedman toma essa passagem
como uma crítica deuteronômica do documento Sacerdotal. [O documen­
to Sacerdotal, ou “P”, como é designado no jargão dos estudiosos, é encon­
trado piincipalmente no Levítico e no Livro dos Números, mas os estudio­
sos também atribuem passagens do Gênesis e do Êxodo a esse suposto do­
cumento'*^.) Contudo, isso supõe que as reformas josiânicas são primordial­
mente reformas sacerdotais, e negligencia também um aspecto crucial da
crítica de Jeremias — a saber, o fato de que é uma crítica de um texto es­
crito ou da própria escrita em si. Um aspecto interessante da escola sacer­
dotal é que o caráter escfito da tradição não está em questão [ver capítulo
7). Em nenhum momento, em P, há uma injunção para que seja redigido.
A escrita não é sequer mencionada como um componente importante do
chamado documento P. Embora P obviamente seja um texto em sua
forma presente (e na maior parte das descrições de estudiosos), isso não
é algo a respeito do que o texto pareça estar consciente. O Deuteronômio,
em contraposição, é inteiramente consciente de si como revelação regis­
trada por escrito. Assim, a crítica de Jeremias à escrita e ao texto escrito
aparentemente não seria aphcável à literatura sacerdotal.
A referência a uma “mentira” [sheqer] no trecho de Jeremias supra­
citado recorda um dos mais incisivos comentários de Jeremias a respeito
da época de Josias: “Apesar disso tudo, sua desleal irmã Judá não retomou
a mim de todo o seu coração, mas com uma mentira [sheqer)” (Jr 3,10;

42. E. Nicholson, Jeremiah 1-25, Cambridge, Cambridge University Press, 1973, 86.
43. Para uma exposição popular sobre P, ver R. E. Friedman, Who Wrote the Bible?,
São Francisco, Flarper & Row, 1987,188-206.

158
Josiiii c d revoluijCiK li-Mual

ver w. 6-10). Havia claramente alguma insatisfação com as reformas josiâ-


nicas. A alusão intertextual entre Jeremias 3,10 e 8,8 em relação ao pretenso
retomo de Judá durante as reformas josiânicas utiUza o mesmo vocabulá­
rio hebraico — era uma mentira, “sheqer”.
O contexto mais amplo da passagem de Jeremias, porém, põe isso em
perspectiva. Em Jeremias 8,7-9, essa Torá escrita de YHWH é justaposta
a diferentes tipos de tradições orais:

Até mesmo a cegonha no ar conhece o tempo de sua migração. A rola, a


andorinha e o tordo não deixam de voltar no momento oportuno. Entretanto,
meu povo não conhece a tradição [mishpai] de YHWH. Como podeis dizer:
"Temos a sabedoria, pois temos a Lei {Torah} de YHWH?” Com efeito, a falsa
pena dos escribas transformou-a numa mentira! Os sábios são confundidos,
desmoronam e são capturados; eles desprezam a palavra (davar) de YHWH:
em que sentido, pois, podem se dizer sábios?

Os termos hebraicos (entre parênteses na citação) “m ishpaf, “Torah"


e “davoT’ são cruciais para uma interpretação apropriada desta passagem
de Jeremias. Claramente, a Torah de YHWH remete a um texto escrito,
embora os estudiosos discutam qual possa ser. Alguns pensam que ela se
refere ao Deuteronômio; outros sugerem que se refere a interpretações
já escritas (e falsas) da lei deuteronõmica. Penso que a questão não é qual
texto, mas a autoridade de qualquer texto escrito enquanto oposto à tradi­
ção oral. O contexto esclarece a questão. O versículo 9 menciona a “pa­
lavra {davar) de YHWH”; este é um termo técnico na literatura da Bíblia
hebraica que se refere à palavra oral de Deus conferida aos profetas'*'*. A
sabedoria está associada à tradição oral da comunidade e às proclamações
dos mensageiros de Deus; então, como se poderia rejeitá-las e ser sábio
ainda assim?
O termo “m ishpaf, no versículo 7, é um pouco mais fluido em seu
significado; contudo, pode ser traduzido como “a tradição de YHWH” ou

44. Ver meu livro precedente; W. M. Schniedewind, The Word of God in Transitíon
From Prophet to Exegete in the Second Temple Period, Sheffield, JSOT, 1995, 130-138;
ver também S. Mowinckel, “The Spirit” in the Pre-exilic Reforming Prophets, JBL 53
C1934] 199-227.

159
Cnmn a Bíblia tomcni-si.' um livro

“o costume de “M ishpat” é frequentemente encontrado na litera­


tura bíblica em lugares nos quais não apela a nenhuma tradição escrita
conhecida, mas onde há, obviamente, um costume ou uma tradição estabe­
lecida em questão. Assim, por exemplo, um novo rei é instalado num proce­
dimento e num lugar tradicionais, “segundo o costume (isto é, 'mishpaf')
do rei” (2Rs 11,14], O profeta Samuel adverte Israel acerca “das práticas
[‘mishpat’) de um rei” (ISm 8,9.11]. O uso de “m ishpaf como termo legal
não está ligado a textos escritos, mas sim a julgamentos legais. Na maior
parte dos casos, não há texto escrito que possa sequer constituir a base do
julgamento (por exemplo, Gn 18,25; Lv 19,15]. O contexto social da época
de Jeremias e o contexto literário imediato sugerem que Jeremias 8,8 é
um protesto contra a autoridade dos textos escritos, que eram entendidos
como subversoreS da tradição oral e da autoridade dos profetas.
Há, a um só tempo, continuidade e contraste entre a tradição oral e o
texto. A maior parte dos estudiosos salientou um continuum entre a orali-
dade e o letramento. Em certo nível, há de fato um continuum, mas, em
outro, o oral e o escrito estão em nítido contraste. As sociedades tradicionais
apoiavam-se na tradição oral e na comunidade como as bases da autoridade.
Os textos escritos por fim contestariam e até suplantariam essas fontes
da sabedoria tradicionàl. O trecho ora analisado do Livro de Jeremias üus-
tra a clara distinção entre a autoridade oral e a escrita. Finalmente, o texto
escrito substituiu os profetas e a tradição oral. No período do Segundo
Templo, a “palavra de Deus” tomar-se-ia o texto escrito, e não mais a pro­
clamação oral dos profetas. Entretanto, o conflito entre oral e escrito não
foi resolvido de maneira fácil ou rápida. No judaísmo do Segundo Templo,
fariseus e saduceus (dentre outros] representariam a tensão entre a tradi­
ção oral e a escrita. Embora a tradição oral se afirmasse continuamente
(como na queixa de Jeremias], ela foi, no final, subvertida e suplantada.

45. Ver meu artigo: W. M. Sdiniedewind, The Chronicler as an Interpreter of Scripture,


in The Chronicler as Author: Studies inText andTexture (ed. M. P. Graham e S. L. McKenzie],
Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999,172-178.

160
C om o a

Torá
tornou-se um texto

1 V escrita dos cinco livros da Torá é um proeminente exemplo da tex-


tualização da antiga religião israelita. Por um lado, o Livro do Êxodo, e
particularmente a revelação no Monte Sinai em Êxodo 19-23, é uma
poderosa ilustração do desinteresse da Bíblia por sua própria teoctualidade.
Por outro lado, o Deuteronômio integra a textualidade da Torá como uma
parte central da revelação no Monte Horeb [não Monte Sinai, como no
Livro do Êxodo). Esses diferentes relatos da revelação refletem um processo
histórico da textualização da cultura e da religião israelitas. Embora os estu­
diosos tenham usualmente analisado a Torá da perspectiva de quem escre­
veu o quê [usando a crítica das fontes), este capítulo começa com uma abor­
dagem diferente, formulando a seguinte questão: de que maneira a Torá se
relaciona com sua própria textualidade?
A figura central da textualidade da Torá é Moisés. Há uma história
literária da textualização da Torá que segue o papel do próprio Moisés na
revelação. Moisés é, antes de mais nada, o libertador de Israel. Em segundo
lugar, ele recebe e proclama a revelação no Monte Sinai. Moisés recebe
as tábuas de pedra. De acordo com o Êxodo, essas tábuas parecem conter
o projeto do tabemáculo. Segundo o Deuteronômio, essas tábuas são os
Dez Mandamentos. Por fim, Moisés toma-se um autor e a autoridade da
religião judaica. Os escritos e as tradições atribuídos a ele continuaram a

161
Como a Bíblia tornou-se um livro

aumentar ainda muito depois de sua morte. Eles se expandiram a ponto


de incluir toda a Torá. Os judeus helenistas, entre 300 a.C. e 300 d.C., con­
tinuaram a escrever obras como o Livro do Jubileu, texto apócrifo em nome
de Moisés. Após a destruição do Segundo Templo, rabinos como Akiva e
Judá, o Príncipe, coligiram as tradições orais numa série de livros conhecidos
como a Mishná, o Tosefta e o Talmude. Todas essas obras por fim derivam
sua autoridade recorrendo a Moisés: “Moisés recebeu a Torá no Sinai e
transmitiu-a a Josué; Josué, aos anciãos; os anciãos, aos profetas, e os profe­
tas transmitiam-na aos homens da grande assembléia” [M. Avot 1,1).
Antes de voltar à textualização da Torá, devo advertir o leitor de que
o conteúdo a seguir contesta mais de um século de estudos bíblicos. Eu
discordo especialmente de grande parte das últimas poucas décadas dos
estudos do Pentateuco, em particular da Europa, que cada vez mais situou
a composição do Pentateuco no período persa. Estudiosos como Erhard
Blum, professor da Universidade de Tübingen, ou Rainer Albertz, profes­
sor da Universidade de Münster, continuamente transferiram a compo­
sição do Pentateuco para uma data cada vez mais tardia. Não posso sequer
começar a enumerar os estudiosos e os estudos com os quais este capítulo
terá pontos de contato (já que são infindáveis os livros sobre o Pentateuco),
mas, em algumas notas, 'detalharei algumas de minhas objeções a alguns
estudiosos específicos dentro do âmbito acadêmico. Por fim, contudo,
minhas conclusões são tão diferentes porque minha abordagem foi tão
diferente. Para tanto, teremos de discutir metodologia antes de entrar em
pormenores.
Minha abordagem da formação da literatura bíbhca começou com uma
avaliação dos aspectos práticos da escrita e dos contextos sociais da escrita
como se desenvolveram no antigo Israel e no antigo judaísmo. Por exemplo,
modelos muito complexos de composição, redação e edição da literatura
bíblica em múltiplas camadas por parte de muitas mãos diferentes pare­
cem-me não só injustificadamente subjetivos, mas também parecem reque­
rer sofisticados conceitos de textuahdade e escolas escribais hebraicas in­
teiramente desenvolvidas acerca dos quais não podemos ter certeza com
base nas evidências externas oriundas da arqueologia e de inscrições. Mesmo
que improváveis modelos com múltiplos autores, redatores e editores pu­
dessem ser justificados nos contextos sociais, econômicos e políticos do
antigo Israel, não dispomos das ferramentas necessárias para desemaranhar
os fios hipotéticos de forma convincente. Mais fundamentalmente, porém.

162
Como a Tora tornou-sf um texto

O papel da escrita e a história social apontam para modelos mixito mais


simples para a composição e o desenvolvimento da literatura bíbUca.

A palavra “Torah”

Vale notar que a própria palavra hebraica chodah (min) significava,


originalmente, "ensinamento”, “instrução”, implicando uma compilação
oral da tradição. A palavra se deriva da raiz hebraica “YRH”, que significa
“instruir”. A palavra “torah” é amplamente encontrada na literatura bíblica
com esse significado. Ao mesmo tempo, há um corpo central de ensinamen­
tos contido nos primeiros cinco livros da Bíblia que vieram a ser conheci­
dos como “a Torá”. Como ressaltou Moshe Weinfeld, “a transição da Torá
como uma instrução específica para o sagrado ‘Livro da Torá’ do período
josiânico assinalou uma mudança radical na vida espiritual de Israel”b Não
obstante, o significado original da palavra hebraica “torah" como “ensi­
namento” enfatiza sua oralidade. A palavra significava ensinar ou instruir
oralmente e não tinha qualquer relação com textos escritos. Parte de mi­
nha intenção neste capítulo é mostrar como o “ensinamento” toma-se um
texto sagrado.
O uso da palavra “torah" na própria Torá — ou seja, o uso do termo
“ensinamento” no Pentateuco — revela o significado original não técnico
de “torah". No Livro do Gênesis, por exemplo. Deus promete tomar Israel
uma grande nação: “porque Abraão me obedeceu e guardou meus precei­
tos: meus mandamentos, meus decretos e meus ensinamentos" (Gn 26,5].
A palavra “torah” faz parte de um trio frequentemente usado: mandamentos,
decretos e ensinamentos (isto é, “torah”). Além disso, “torah” não era neces­
sariamente o ensinamento de Deus. Como vemos no Livro dos Provérbios,
a “torah" podia ser o ensinamento de um pai a um filho: “Meu filho, não te
esqueças do meu ensinamento [torah], que o teu coração siga os meus
preceitos” (Pr 3,1), e “Meu filho, guarda os preceitos de teu pai e não
rejeites o ensinamento [torah] de sua mãe” (Pr 6,20). Poderiamos oferecer

1. M. Weinfeld, Deuteronomy, Book of, in ABD vol. 2, 175. Ver, ainda, M. Weinfeld
Deuteronomy and the Deuteronomic School, reedição, Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1992,
158-170.

163
Como a Bíblia tornnu-so um livro

numerosos exemplos, mas estes bastam para mostrar que a palavra “torah”
primeiramente fazia parte do mundo oral do antigo Israel. Então, como
a Torá tornou-se o texto escrito por excelência?
Antes de responder a questão de como a Torá se torna um texto, cabe
refletir sobre o uso da palavra no Pentateuco (ou a “Torá”) em si. Os estu­
diosos usualmente dividem o Pentateuco em ao menos quatro fontes; elas
incluem a fonte “Sacerdotal” e a fonte “Deuteronômica”. Para simplificar,
podemos dizer, de modo geral, que o Livro do Levítico e dos Números são
sacerdotais e que o Deuteronômio é, obviamente, deuteronômico. Segundo
a escola pós-welthausiana, os escritos sacerdotais são supostamente o último
dos quatro documentos. Portanto, não é de esperar que a palavra hebraica
“torah” refira-se exphcitamente a um texto no Levítico e no Livro dos
Números. Nestes livros, “torah” mantém seu significado de “instrução”,
“ensinamento”, indicando que os escritos sacerdotais do Pentateuco não
estão cientes de sua textualidade. Isso pode ser diretamente contrastado
com a literatura dos períodos persa ou helenístico, que é redigida, em sua
maior parte, por sacerdotes, na qual “torah” é um texto. Assim, por exemplo,
a “Torah” escrita (com ‘T ” maiúsculo) é central para o programa religioso do
período persa conforme se reflete em Esdras-Neemias. Em Neemias 8, por
exemplo, faz-se um grande espetáculo da apresentação do pergaminho da
Torá a Moisés, que é fido, estudado e obedecido. Essa textualização da Torá
é também evidente no Livro das Crônicas, no qual o termo “torah” pode
significar um texto sem qualificação (ver, por exemplo, ICr 16,40; 2Cr 15,3).
Esse sentido da “Torah" como um texto tem início com o Deuteronômio
e os escritores josiânicos.

A primeira revelação no Sinai

Nossas concepções modernas da história da revelação e da escrita da


Torá tendem a ser uma conjunção de diversos textos e tradições, incluindo
a famosa cena na montanha de Deus do filme Os Dez Mandamentos. Con­
tudo, uma imagem muito diferente surge quando nos concentramos na
primeira lenda da revelação de Deus no Monte Sinai estritamente como
aparece no capítulo 19 do Livro do Êxodo.
Quais são as palavras usadas para descrever a revelação inicial no Sinai?
Elas têm relação com falar, não com escrever. Elas têm relação com oraMade,

164
Como a Torá tornou-sc um ii. xli.1

não com textualidade. Isso era esperado, dada a natureza da sociedade tribal
do antigo Israel. Em primeiro lugar, o povo aparentemente ouve sons de
trovão na montanha. Uma maravilhosa ambiguidade do hebraico é favorável
à história. A palavra hebraica “QoZ" pode significar “voz”, “som” ou “trovão”^.
Quando o povo sobe a montanha, ouve “QoZ” e vê relâmpagos. Presumimos
que “QoZ” aqui significa trovão por causa dos relâmpagos. Todavia, em
Êxodo 19,19 a narrativa prossegue relatando que “Moisés falava e Deus lhe
respondia através do trovão/da voz”. Moisés, por sua vez, transmite ao povo
aquilo que Deus falou, oralmente. Então, por exemplo, os Dez Mandamentos
são assim prefaciados por Moisés; “Deus falou todas essas palavras” (20,1).
O povo pede que Moisés fale a eles, que lhes conte o que Deus fahu, pois
temem que Deus lhes fale diretamente (Ex 20,19). Deus instrui Moisés
a lembrar os israelitas daquilo que viram por si mesmos — que Deus falou
dos céus com o povo (Ex 20,22).
E realmente espantoso que a escrita não tenha nenhum papel na reve­
lação no Monte Sinai em Êxodo 19. A escrita também não tem nenhum
papel na descrição da entrega dos Dez Mandamentos no capítulo 20. Tam­
pouco tem algum papel no chamado Livro da Aliança, em Êxodo 21-23.
De algum modo, a história da revelação em Êxodo 19-23 não parece
estar ciente de que a Torá é um texto. Esse fato se tom a ainda mais no­
tável quando observamos em que medida as tradições posteriores serão
obcecadas com a narração da história da escrita da Torá^. O tema da escrita
das tábuas de pedra por Deus aparece pela primeira vez não em Êxodo
19 ou 20, mas depois que a cerimônia da afiança foi completada, no capí-

2. Ver B. Sommer, Revelation at Sinai in the Hebrew Bible and in Jewish Theology,
Journal ofReligion 79 (1999) 428-429.
3. Se os quatro componentes tradicionais da crítica do Pentateuco (JEDP) têm seus
próprios relatos individuais do ato da escrita da Torá dependerá de como atribuímos as
fontes. Há, evidentemente, um alto grau de divergência a esse respeito. Deve baver tam­
bém alguma questão acerca do papel da escrita em cada fonte, e isso deve ser correlacio­
nado, em certa medida, com a datação dos vários componentes, que é, em si mesma,
também objeto de divergências (por exemplo, comparem-se as obras recentes de Blum, de
van Seters e de Knohl). Eu, por exemplo, seguiría Haran, Hurvitz, Weinfeld, Knohl e ou­
tros, datando P num período anterior; portanto, não me surpreende que a chamada Fonte
Sacerdotal não tenha um relato substancial da escrita da Torá. Os sacerdotes só se interes-

165
Como a Bihlia tornou-se um livt

tulo 24. Quase como vima reflexão tardia em 24,4, o narrador observa
que o próprio Moisés registra isso por escrito. Moisés fez isso não porque
Deus lhe ordenara explicitamente, mas aparentemente porque lhe pareceu
que devia fazê-lo.
Assim, é Êxodo 24 que introduz a escrita no evento do Sinai. Este
capitulo, porém, é muito estranho. Ele tem sido um enigma para os críticos
de fontes bíblicas no último século e para os leitores devotos do último
milênio''. Como veremos, parte desse problema provém simplesmente do
fato de que o capítulo 24 trata de acontecimentos e idéias centrais. Para
facilitar a anáhse literária desse capítulo, formatei a tradução abaixo com
parágrafos, tabulação e notas entre parênteses que indicam algumas das
unidades literárias básicas e problemas no interior da história.

'Ele [não há sujeito indicado] disse a Moisés: “Subi a YHWH, tu, Aarão, Nadab
e Abihu, como também setenta anciãos de Israel, e vos prostemareis a distância.

sarão por uma Torá escrita na época pós-exíbca posterior, quando reivindicam parte de sua
autoridade do papel que desempenham como escribas, professores e guardiões da Torá.
Um problema importante na análise do papel da escrita nos vários componentes do
Pentateuco é a falta de concordância acerca da atribuição dos textos críticos. Assim, por
exemplo, a critica de fonte clássica poderia atribuir uma descrição da escrita de materiais
revelados no Sinai a cada um dos elementos no Êxodo (J: 34,27; E: 24,4; P: 31,18; 34,29],
mas ainda haveria discussão sobre a atribuição dessas fontes. Por exemplo, 24,4 foi com
frequência atribuído a D [em que tem paralelo em Dt 31,9]. O trecho Ex 31,18 é muitas
vezes dividido em partes, embora possa ser relacionado ao trecho precedente 24,12,
ao qual se refere explicitamente. A questão das diferentes visões sobre o que está escrito
e sobre quem escreveu não foi suficientemente explorada pelos estudiosos.
4. Mais recentemente, o trecho Ex 19-24 foi tema de uma dissertação de Wolfgang
Oswald, Israel am Gottesherg Eine Untersuchung zur Literargeschichte der vordem Sinaipe-
rikope Ex 19-24 und deren historischen Hintergrund (OBO, 159], Fribourg, Vandenhoek &
Ruprecht, 1998. Para um exame da literatura e de algumas abordagens representativas, ver
L. Perlitt, Bundestheolo^ inAiten Testament [WMANT, 36], Neukirchen-Vlyun, Neukirchen
Verlag, 1969,156-238; H.H. Schmid, Der Sogenanníe/afeunsí; Beobachtungen und Fragen
zur Pentateuchforschung, Zurique, Theologischer Verlag, 1976, 83-93; J. van Seters, The
Life ofMoses: The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers, Louisvílle, Westminster John
Knox Press, 1994, 247-360.

166
Como a Tora tornou-.se um Icxlu

^Só Moisés [modificação acerca de quem sobe a montanha] se aproximará de


YHWH. Eles não se aproximarão. E o povo não subirá com ele”. ^Moisés veio
transmitir ao povo todas as palavras de YHWH e todas as normas. Todo o povo
respondeu a uma só voz: “Todas as palawas que YHWH disse, nós as poremos
em prática’’. '^Moisés escreveu todas as palavras de YHWH. Levantou-se bem
cedo e construiu um altar no sopé da montanha, com doze esteias para as doze
tribos de Israel. ^Em seguida, enviou os jovens de Israel; eles ofereceram holo-
caustos e sacrificaram novilbos como oferendas de paz a YHWH. ®Moisés pegou
metade do sangue e o verteu em recipientes; com o resto do sangue, aspergiu
o altar. ^Tornou o pergaminho da aliança [aparentemente, encontramos este
mesmo pergaminho em 2Rs 23,2] e o leu ao povo, que declarou: “Tudo o que
YHWH disse, nós o poremos em prática, nós o ouviremos”. ®Moisés pegou o
sangue e com ele aspergiu o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que
YHWH firmou conosco de acordo com todas estas palavras”.

®Então Moisés subiu, com Aarão, Nadab e Abihu e setenta dentre os anciãos
de Israel [o mesmo grupo mencionado no versículo 1]. '°Viram o Deus de
Israel e, sob os seus pés, havia como que um pavimento de lazulita, de uma
hmpidez semelhante ao fundo do céu. '*Ele não ergueu a mão contra esses
privilegiados filhos de Israel. Contemplaram YHWH, comeram e beberam.

^WHWH disse a Moisés: “Sobe a mim na montanha e permanece lá, para


que te dê as tábuas de pedra: a Lei [torah] e o mandamento [mitzvah] que
escrevi para que possas ensiná-los”. ^^Moisés levantou-se com Josué, seu
auxiliar, e Moisés subiu para a montanha de Deus [...].

Tem havido uma concordância geral entre os estudiosos de que este


capítulo é uma composição de diferentes fontes e de que mostra evidências
de certa reelaboração. Não há muito acordo acerca de como se deve com­
preender o desenvolvimento da composição. Com efeito, eu argumentaria
que a centralidade dos eventos e das questões suscitados no capítulo 24
são precisamente a razão de sua complexidade. Aqui, subimos ao Monte
Sinai, Moisés redige a Torá, o povo faz uma aliança de sangue com Deus,
os anciãos efetivamente veem Deus e o próprio Deus promete escrever
em “tábuas de pedra” e entregá-las a Moisés. Como podería algum redator
sacerdotal, algum editor deuteronômico ou algum comentador moderno
resistir a esse capítulo? E justamente esse tipo de texto que atrai editores,
comentadores e intérpretes? Antes que a noção do texto como sagrado e

167
Como a Bihlia tornou-so um iivro

imutável tivesse se desenvolvido, editores ou comentadores simplesmente


inseriríam anotações no próprio texto. Alguns dos mais simples desses tipos
de comentários podem ser ilustrados por glosas explicativas como em
1 Samuel 9,9: “Outrora, em Israel tinha-se o costume de dizer quando al­
guém ia consultar a Deus: ‘Vinde, vamos procurar o vidente’. Porque o
‘profeta’ de hoje outrora era chamado ‘lAdente’”^. Os itálicos assinalam uma
glosa explicativa inserida por um escriba posterior que sentiu a necessidade
de esclarecer o significado do antigo termo hebraico “vidente”. Nesse exem­
plo, temos também um vislumbre do significado das camadas históricas de
um texto: um escriba posterior interpreta algo que é considerado obscuro
ou difícil, acrescentando uma sentença explicativa. Tópicos mais delicados
do ponto de vista teológico ou ideológico atrairíam ainda mais atenção à
medida que os textos bíblicos eram copiados e transmitidos.
A questão é: como podemos navegar nesse emaranhado? Não desejo
discutir a redação e a edição de Êxodo 24 com base nas mesmas antigas
metodologias críticas, na crítica das fontes, na crítica da redação ou na his­
tória da tradição. Fazer isso seria meramente acrescentar mais uma voz às
muitas que foram ouvidas no Sinai. Para ir mais longe na compreensão desse
capítulo, precisamos tentar uma nova abordagem. Minhas observações sobre
Êxodo 24 são guiadas peto desenvolvimento da própria textualidade. Minha
abordagem tem como pressuposto que o próprio desenvolvimento da noção
do escrito e, depois, do texto sagrado têm de ser centrais na análise da com­
posição e da edição dessa passagem.
Como texto literário. Êxodo 24 se destaca do restante. Ele começa
abruptamente sem sujeito no versículo 1, levando à conclusão de que o
capítulo é removido de seu contexto original ou mutilado. Há efetivamente
certa tensão com a suposição de que o orador do versículo 1 é YHWH, que
naturalmente tería dito a Moisés que subisse até ele na montanha. O
problema com essa interpretação é que na narrativa YHWH está na terceira
pessoa: “Ele disse a Moisés: ‘Subi a YHWH’”, e não: “YHWH disse a Moisés:
‘Subi até mim’”. Assim, quem foi que disse: “Subi a YHWH”? Além disso, o
versículo 1 não se vincula facdmente com Êxodo 23. Talvez ele deva ser Hdo
como derivando-se de Êxodo 20,22, em que têm início as leis do Livro

5. Sobre o fenômeno dos comentários escribais explicativos de maneira mais geral, ver
M. Fishbane, Bihlical Interpretation in Ancient Israel, Oxford, Clarendon Press, 1985,44-88.

168
Como aTorá tornou-sc um toxui

da Aliança (Ex 21-23]. Mesmo assim, isso não explicaria o assunto mis­
terioso e lacunar do primeiro versículo.
Ademais, a análise literária sugeriria que os versículos 2-8 representam
uma fonte diferente ou uma importante mudança na narrativa. Isso é evi­
dente pela alteração no grupo que deveria subir até YHWH. Nos versículos
1 e 9, um grupo muito grande — incluindo Moisés, Aarão, Nadab e Abihu
e mais setenta anciãos de Israel — é instruído a subir a montanha. O
versículo 2 modifica isso: Moisés deve subir sozinho. Isso alinha a história da
subida de Moisés à montanha e o relato precedente em Êxodo 19,3 (ver
também o versículo 20], no qual Moisés também sobe a montanha sozinho.
Para tomar as coisas ainda mais complicadas, nessa digressão nos ver-
siculos 2-8 parece haver duas camadas literárias. Elas são indicadas pela
repetição do juramento do povo nos versículos 3b e 7b: “Todas as palavras
que YHWH disse, nós as poremos em prática” (o versículo 7b começa com:
“Tudo o que YHWH disse [...]”]. Esse tipo de repetição é usualmente um
marcador editorial que indica que foram inseridos comentários ou acrésci­
mos, como ressaltei com um exemplo de 1 Reis 14,-25-28 e de 2 Crônicas
12,2-9 (exemplos discutidos no capítulo 1]. O primeiro juramento remonta
a Êxodo 19,5-8, em que Moisés expôs as “palavras de Deus” perante Israel
e o povo respondeu: “Tudo o que YHWH disse, nós o poremos em prática”.
Desse modo, os versículos 2-3 agora vincularam Êxodo 24 à história original
da revelação em Êxodo 19.
Os versículos 4-8 acrescentam uma cama interpretativa deuteronô-
mica à cerimônia da aliança; as duas partes de Êxodo 24,2-8 podem ser
divididas da seguinte forma:

[Alusão a Ex 19,5-8] ^Só Moisés se aproximará de YHWH. Eles não se apro­


ximarão. E o povo não subirá com ele. ^Moisés veio transmitir ao povo todas
as palavras de YHWH e todas as normas. Todo o povo respondeu a uma só voz:
"Todas as palavras que YHWH disse, nós as poremos em prática”.
[Acréscimo deuteronômico] ''Moisés escreveu todas as palavras de YHWH.
Levantou-se bem cedo e construiu um altar no sopé da montanha, com doze
esteias para as doze tribos de Israel. ®Em seguida, enviou os jovens de Israel;
eles ofereceram holocaustos e sacrificaram novilhos como oferendas de paz
a YHWH. "Moisés pegou metade do sangue e o verteu em recipientes; com
o resto do sangue, aspergiu o altar. Hbmou o pergaminho da ahança [aparen­
temente, encontramos esse mesmo pergaminho em 2Rs 23,2] e o leu ao povo,

169
Como a Bíblia tornou-se um livro

que declarou: “Tudo o que YHWH disse, nós o poremos em prática, nós o ouvi­
remos". ®Moisés pegou o sangue e com ele aspergiu o povo, dizendo: “Este
é o sangue da aliança que YHWH firmou conosco de acordo com todas estas
palavras”.

A repetição da cerimônia do juramento nos versículos 2-8 certamente


parece redrmdante. Enquanto o juramento no versículo 3 segue, essencial­
mente, o primeiro juramento feito pelo povo em Êxodo 19,5-8, o jura­
mento em 24,7 é inspirado pelo ato de Moisés de redigir a revelação e
depois ler “o pergaminho da aliança” para o povo. O versículo 4 observa
que “Moisés escreveu todas as palavras de YHWH”. Que afirmação lacô-
nical Moisés não recebe a ordem de redigir a revelação; ele apenas o faz.
Numa leitura simples, esse versículo sugeriría que Moisés teria redigido
o “Livro da Aliança” [Ex 21-23) e o Decálogo (Ex 20). Moisés faz então
uma aliança de sangue que atinge seu clímax com a leitixra do “pergaminho
da ahança” e a repetição do juramento do povo. É importante lembrar aqui
que o povo já havia ouvido aquelas palavras oralmente e jurado cumpri-las
fielmente (v. 3). Por essa razão, reconhecemos os versículos 4-8 como uma
digressão secundária dentro dos versículos 2-8, que textualizam uma ce­
rimônia oral.
Como devemos compreender essas duas seções no trecho entre os
versículos 2-8 no contexto da composição do pergaminho? A primeira
digressão vincula a história a Êxodo 19. Por conseguinte, os versículos 2-3
fazem parte do fio condutor da narrativa do Livro do Êxodo como um todo.
Os versículos 2-3 fazem parte do processo que cria uma prosa narrativa
com base nas distintas histórias, tradições orais e Uturgias que constituem
o Livro do Êxodo. A história original do Sinai, contudo, não está ciente de
sua textuahdade. Ou seja, ela não faz um relato de sua própria escrita.
Em vez disso, os versículos 4-8 narram que Moisés redigiu o “pergaminho
da aliança”. Esse pergaminho, no entanto, foi perdido, segundo o relato
contido em 2 Reis 22-23 sobre as reformas de Josias. O sumo sacerdote
Helcias encontra um pergaminho que se revela como sendo esse mesmo
“Livro da Aliança” — observe-se que Êxodo 24,7 e 2 Reis 23 são as únicas
passagens em toda a Bíbha hebraica em que se encontra a expressão exata
“pergaminho da ahança”.
Onde mais Moisés escreve na Bíbha? Afinal, usuahnente vemos Moisés
como aquele que recebe as tábuas escritas por Deus, não como um escritor

170
Comu aTorá tornou-sc uin ti'Xto

ele próprio. Não deve surpreender que o único outro lugar em que Moisés
é descrito como um escritor seja a conclusão do Livro do Deuteronômio.
Como parte da incumbência de Josué como sucessor de Moisés, lemos:
“Moisés escreveu esta lei e a deu aos sacerdotes, jEilhos de Levi, que con­
duzem a arca da aliança de YHWH, e a todos os anciãos de Israel” (Dt 31,9).
Esse capítulo faz parte da estrutura editorial do Livro do Deuteronômio
que o vincula ao Livro de Josué e a uma narrativa mais ampla que os estu­
diosos chamaram de história deuteronomista. Mesmo o leitor casual perce­
berá que, por exemplo, Deuteronômio 31 e Josué 1 repetem o relato da
incumbência de Josué, vinculando assim os dois pergaminhos — do Deu­
teronômio e o de Josué —, com a repetição servindo como elo de hgação
literário®. É importante notar que as passagens em Êxodo 24,4 e em Deu­
teronômio 31,9 usam o recurso editorial da repetição para emoldurar o
retrato de Moisés, o escritor da Torá. Podemos conjetura^r que é aqui, na
edição final da Bíblia, que Moisés se torna um escritor. De modo secundá­
rio, destacarei também que essa edição da Bíbha provavelmente ocorre no
final do período persa ou no período helenístico.
Êxodo 24,4 -8 incorpora uma importante conexão intertextual com
as reformas religiosas de Josias narradas em 2 Reis 22-23. O documento
escrito em Êxodo 24,7 recebe o título de “pergaminho da aliança” (sefer
ha-bríi). Esse é exatamente o título do livro que Helcias, o sacerdote de
Josias, encontra no templo. Isso é mais que uma coincidência. Com efeito,
a expressão “pergaminho da ahança” só é encontrada aqui, em Êxodo 24,7,
e no relato da descoberta de um pergaminho que desencadeia as reformas
josiânicas (2Rs 23,2.21). O uso dessa expressão única aponta para uma
conexão literária intencional entre a revelação no Sinai contida no Livro
do Êxodo e o pergaminho que é misteriosamente descoberto no templo de
Jerusalém durante as renovações empreendidas pelo rei Josias: “O sumo
sacerdote Helcias disse ao secretário Safan: ‘Encontrei na casa de YHWH
0 pergaminho da lei’. E Helcias entregou o hvro a Safan, que o leu” [2Rs
22,8). Em 2 Reis 23,2.21, o narrador identifica esse “pergaminho da Torá"
[sefer ha-torah] ao “livro da ahança” [sefer ha-brit). Evidentemente, teria sido
difícil identificar esse pergaminho à revelação no Sinai se Moisés não o

6. Sobre a repetição em Dt 31 e Js 1, ver M. Fishbane, Biblical Interpretation inAncient


Israel, 384-385.

171
Como a Bihlia tornou-si’ liv.

tivesse redigido como tomamos conhecimento em Êxodo 24,4. De fato,


porém, as reformas de Josias não estabelecem um paralelo estreito com
o “Código da Aliança” de Êxodo 21-23, mas podem ser comparadas ao
Deuteronômio (que poderia ser parcialmente caracterizado como uma
interpretação do Livro da Aliança).
Voltemos agora à descrição da narrativa em Êxodo 24. O versículo 9
resume o fio condutor da narrativa desde o versículo 1, que fora interrom­
pido pelos versículos 2-8. Observe-se, por exemplo, a explícita reafirmação
das pessoas que subirão a montanha — Moisés, “com Aarão, Nadab e
Abihu e setenta dentre os anciãos de Israel”. Com essa reiteração da mes­
ma lista de pessoas do versículo 1, a história retoma ao ponto em que estava
antes da longa digressão. A narrativa prossegue então com a notável decla­
ração de que, ao subir a montanha, o grupo “viu o Deus de Israel”. Depois
disso, Deus dá a Moisés as tábuas de pedra^.
A introdução das tábuas de pedra nesse ponto no capítulo suscita al­
gumas questões. Êxodo 24 tem dois relatos de escrita. O primeiro deles, em
24,4, observa casualmente que Moisés redigira as palavras de Deus. Isso
já foi discutido aqui. O segundo relato, em 24,12, retrata o próprio Deus
escrevendo nas tábuas que depois entrega a Moisés. De que maneira esses
dois relatos estão reladónados? Qual era o conteúdo das duas tábuas des­
critas no segundo relato? Essas são indagações que leitores argutos devem
formrxlar ao ler Êxodo 24.
Em sua atual forma literária. Êxodo 24 textualiza a Torá de formas
significativas. Essa textualização está mais estreitamente vinculada à lingua­
gem do Deuteronômio e da história deuteronomista. Em primeiro lugar,
ela acrescenta a afirmação “Moisés escreveu todas as palavras de YHWH”
(v. 4). Em segundo lugar, Moisés toma o “pergaminho da aliança” e o lê

7. Em Ex 24,12, as “tábuas de pedra” são descritas como “a Torah e os mandamento


conferidos por Deus para que instruas o povo”. Como muitos observaram, a sintaxe hebraica
de “a lei [torah] e os mandamentos [mitzvah]” no versículo 12 é particularmente difícil. B.
Childs, por exemplo, observa; “O vav [...] antes da palavra ‘torah’ pode ser traduzido” seja
como conjunção, seja como um explicativo; Childs, Exodus (OTL), Louisvdle, Westminster
John Knox Press, 1972, 499. Por essa razão, já há um século, S. R. Driver sugeriu que as
palavras “torah” e “mitzvah” deveríam ser um acréscimo de um editor do Deuteronômio;
S. R. Driver, Exodus, Cambridge, Cambridge University Press, 1918, 255.

172
Como a Tora lornou-se um texto

perante todo o povo (w. 7-8). Certamente não é coincidência que a ex­
pressão “pergaminho da aliança” (em hebraico, “sefer ha-brít") ocorra somen­
te aqui no versículo 7 e no relato das reformas religiosas de Josias (2Rs
23,2.21). Uma leitura ritual do texto em Êxodo 24,7-8 é então a base para
a confirmação da aliança entre Deus e Israel, como também encontramos
em 2 Reis 23.
Em suma, a revelação do Livro da Afiança no Livro do Êxodo foi ori­
ginalmente retratada como uma revelação oral. Não havia leitura de textos.
Não havia escrita de textos. Toda a revelação refletiu a orafidade do antigo
Israel. O Livro do Deuteronômio tomaria a textuafidade central para a
revelação. O Deuteronômio teria de resolver também a aparente tensão entre
esse texto recém-introduzido escrito por Moisés e as tábuas de pedra
“escritas pelo dedo de Deus”. Quando as tradições do Êxodo e do Sinai fo­
ram incorporadas no Pentateuco e vinculadas à história deuteronomista
(Deuteronômio-Livro dos Reis), um relato da escrita do “livro da afiança”
foi introduzido pela repetição interpretativa em Êxodo 24,4-8. Quando
se deu essa textualização da Torá? Uma vez que o “-pergaminho da aliança"
é central para a s reformas reli^osas josiânicas, a formação do Pentateuco
como o conhecemos tem de ter começado no final do século VII a. C.

As tábuas de pedra

As tábuas de pedra fazem-nos retroceder às origens divinas da escrita.


Essas tábuas, “escritas pelo dedo de Deus”, são centrais para um dos mais
provocativos textos da Bíblia hebraica. Moisés, Aarão e os anciãos de Israel
sobem noveimente ao Monte Sinai onde efetivamente veem o Deus de
Israel e onde Moisés recebe as tábuas de pedra. A história é novamente
relatada em Êxodo 24,9-18;

Então Moisés subiu, com Aarão, Nadab e Abihu e setenta dentre os anciãos
de Israel. Viram o Deus de Israel e, sob os seus pés, havia como que um pavi­
mento de lazulita, de uma limpidez semelhante ao fundo do céu. Ele não ergueu
a mão contra esses privilegiados filhos de Israel. Contemplaram YHWH, co­
meram e beberam. YHWH disse a Moisés; “Sobe a mim na montanha e per­
manece lá, para que te dê as tábuas de pedra: a Lei [isto é, torah] e o man­
damento que escrevi para que possas ensiná-los”. Moisés levantou-se com

173
Como a Bíblia tornou-so um livro

Josué, seu avixiliar, e Moisés subiu para a montanha de Deus, [...]. Moisés
subiu à montanha, então a nuvem cobriu a montanha. A glória de YHWH
permaneceu sobre o Monte Sinai e a nuvem o cobriu durante seis dias. No
sétimo dia, ele chamou Moisés do meio da nuvem. A glória de YHWH apare­
cia aos filhos de Israel como um fogo devorador, no cimo da montanha. Moisés
penetrou na nuvem e subiu ao alto da montanha. Moisés ficou na montanha
por quarenta dias e quarenta noites.

Um estranho grupo de israelitas — Moisés, Aarão, Nadab, Abihu e


setenta anciãos de Israel — aparentemente fez um banquete com Deus no
Monte Sinai. Essa ocasião está em contraste com a revelação contida em
Êxodo 19, no qual Israel não teve permissão para subir a montanha e viu
Deus na forma de estrondos. A dificuldade teológica que essa visão física
de Deus criou tomou-se clara pela ofuscação do texto ao ser traduzido para
o aramaico no século II d.C., no Targum Neophiti®: “eles viram a glória da
Shekinah de YHWH e regozijaram-se com seus sacrifícios, que foram rece­
bidos como se comessem e bebessem". Nessa antiga interpretação judaica, o
gmpo não vê Deus de fato, nem ceia com ele Apenas era como se isso tivesse
acontecido. Essa tentativa de expbcar o texto não apenas ressalta sua es­
tranheza diante da sensibüidade posterior, mas também sugere a antiguidade
da tradição. Após a estranha refeição descrita em Êxodo 24,11, Moisés sobe
novamente à montanha onde Deus Uie promete as tábuas de pedra.
O que continharri essas tábuas de pedra? Uma maneira de responder a
essa questão seria examinar a seguinte narrativa. Êxodo 25-31 constitui,
primordiaimente, uma descrição de como construir o tabemácrrlo que seria
habitado por YHWH. Em Êxodo 24,12, com a entrega das duas tábuas, tem
início uma unidade literária que chega a uma conclusão em Êxodo 31,18. O
fechamento dessa unidade literária é marcado por uma inclusio — ou seja,
por uma repetição literária que retoma a abertura da unidade literária e in-
tendonalmente conduz a uma conclusão. Assim, a narrativa que começa em
Êxodo 24,12 é concluída pela retomada deste versículo em Êxodo 31,18:

8. O Targum Neophlti foi pubHcado por A. Díez Macho, Neophyti I: Targum Palesti
nese Ms de la Biblioteca Vaticana (Madri, 1970). Sobre a datação do Targum Neophiti, ver
A. Díez Macho, The Recently Discovered Palestínian Targum: Its Antiquity and Rela-
tionship with the Other Targums, VTSup 7 (1959) 222-245.

174
Como a Torã tornou-se um texto

[Ex 24,12] YHWH disse a Moisés: “Sobe a mim na montanha e permanece


lá, para que te dê as tábuas de pedra: a Lei [torah] e o mandamento [mitzvah]
que escrevi para que possas ensiná-los”.
[planos para o tabemáculo e as ordens referentes ao Sabá]
[Ex 31,18] Quando Deus terminou de falar com Moisés no Monte Sinai,
entregou-lhe as duas tábuas da aliança, tábuas de pedra, escritas com o dedo
de Deus.

A narrativa é encerrada com uma das mais poderosas e inspiradoras


imagens antropomórficas das Escrituras. De acordo com Êxodo 31,18,
Deus literalmente escreveu nas tábuas com seu próprio dedo. Essa descrição
é confirmada em Êxodo 32,16: “As tábuas eram obra de Deus, e a escrita era
a escrita de Deus, gravada sobre as tábuas”. Mas o que estava escrito nes­
sas tábuas? Nós naturalmente assumimos que o conteúdo de Êxodo 25-30
— ou seja, a determinação referente ao Sabá e os planos para a construção
do tabemáculo — estaria nessas tábuas. Com efeito, pesquisas arqueológi­
cas e comparativas indicam que o plano e a concepção do tabemáculo são
muito antigas®. Assim, a narrativa bíblica aqui simplesmente emoldura e jus­
tifica um antigo artefato religioso. D e acordo com essa interpretação na­
tural do texto, nem o código legal do antigo Israel nem o Decálogo foram
escritos nas famosas duas tábuas de pedra; antes. Deus havia revelado os
planos para seu tabemáculo e suas instalações, bem como a determinação
do Sabá de prestar culto perante o tabemáculo.
E quanto ao fato de que a segunda revelação afirma que Deus escreveu
essas tábuas com seu próprio dedo? A melhor analogia antiga para tal afir­
mação seriam as Tábuas do Destino mesopotâmicas, discutidas no capí­
tulo 2. As Tábuas do Destino são uma escrita divina produzida na criação do
mundo. Pode ser que a poderosa imagem da escrita divina, o “dedo de Deus”,
usada em Êxodo 31,18, seja apropriada precisamente por ser também

9. Sobre a antiguidade do tabemáculo, ver F. M. Cross, TheTaberaacle, BA 10 [1947]


45-68. Isso pode ser suplementado por artigos mais recentes de Cross: The Early Priestly
Tabemacle in the Light of Recent Research, in Temples and High Places in Biblical Times
(ed. A. Biran), Jerasalém, Magnes Press, 1981, 169-180; K. A. Kitchen, The Tabemacle —•
A Bronze Age Artifact, EI 24 (1993) 119*-129*.

175
Como a Ríhlia lornon-se um 1í \ t o

uma metáfora da criação, como é sugerido pelo Salmo 8,4: “Quando vejo
teus céus, obra de teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste”. Com base
nisso, poder-se-ia inferir que a escrita divina teve sua origem na criação
do mundo. Afinal, nada em Êxodo 24,12 ou 31,18 requer que Deus tenha
escrito nas tábuas enquanto Moisés esperava na montanha. Poder-se-ia
facilmente assumir que as tábuas haviam sido escritas previamente. Não
seria de surpreender que a tradição judaica posterior afirmasse explicita­
mente que a Torá era preexistente (cf. Gênesis Rabbah, 1,1.4; b. Pesachim
54a) Tal afirmação dificilmente foi inventada ex nihilo pelos rabinos.
Com efeito, isso foi também sugerido pela associação da Torá com a
Sabedoria, que foi criada por Deus no princípio Cpor exemplo, Pr 8,22-30;
Sr 1,1-5). Assim, os rabinos seguiram um caminho de interpretação já
bastante trilhado.
Isso nos traz de volta à questão do que foi escrito pelo dedo de Deus.
Evidentemente, os planos para a morada de Deus na terra, não os códigos
legais nem o Decálogo do antigo Israel. Ao menos essa é a interpretação
simples do trecho entre Êxodo 24,9 e 31,18. Após a promessa da entrega
das tábuas a Moisés, a narrativa descreve os diversos aspectos da construção
do tabemáculo e conclui com a proscrição dos trabalhos no sábado. Após
uma digressão acerca dó Bezerro de Ouro. (Ex 32 -3 4 )'\ o restante do Êxodo
(capítulos 35-40) consiste numa descrição da construção do tabemáculo.
O acontecimento cidminante é a colocação das duas tábuas de pedra na
Arca da Aliança e a colocação da arca no tabemáculo (Ex 40,20-21).
Precisamente nesse ponto, a presente de Deus desce à terra e Deus assume
seu posto, entronado acima da arca nas asas do quembim no interior do ta-
bernáculo. Como Deus prometeu em Êxodo 25,22: “Ali me encontrarei
contigo, e — entre os dois quembins postos sobre a Arca da Aliança — eu
te comunicarei todas as ordens a respeito do povo de Israel”. De fato, isso
sugeriría que a torá foi recebida somente depois que a arca com as tábuas

10. Ver a discussão e as referências em: W. Harvey, Torah, in Encyclopaedia Judaica,


vol. 15, Jerusalém, Keter, 1972, cols. 1236-1238.
11. A história do Bezerro de Ouro (Ex 32-34) interrompe a revelação do tabemáculo e
sua construção (Ex 25-32; 35—40). A disjunção cronológica desse material é salientada
pelo fato de que a narrativa do Bezerro de Ouro supõe que o tabemáculo já havia sido
construído (cf Ex 33,7-11).

176
Como aTorá tornou-so um texto

estava terminada e instalada no tabemáculo^^. Depois que o tabemáculo


foi construído, Deus passa a habitá-lo (como se reflete em Ex 40). De sua
morada no tabemáculo, ele fala ao povo de Israel. Segundo esta interpre­
tação, a torá seria, literalmente, a fala de Deus, em sua morada, ensinando
o povo de Israel, e não um texto escrito (isto é, a Torá). Ora, pode parecer
curioso encerrar as tábuas no interior da arca, especialmente se o propó­
sito era que fossem lidas e usadas como um guia moral e legal. Por outro
lado, se as tábuas continham o projeto para a constmção do tabemáculo,
seu propósito estaria cumprido uma vez que a constmção estivesse con­
cluída*^. Nesse momento, as tábuas poderíam ser encerradas no interior da
arca como evidências, por assim dizer, de que a morada de Deus na terra
fora construída segundo planos divinamente revelados e inscritos.
Então, o que foi revelado a Moisés na montanha? Estrítamente no con­
texto de Êxodo 24,12—31,18, a resposta mais óbvia é que a inscrição feita nas
tábuas eram as instruções divinas para a constmção do tabemáculo de
Deus. Essa antiga história, no entanto, foi entrelaçada na narrativa corrente
de modo que há duas concepções da escrita em Êxodo 24. Contudo, quando
lemos este capítulo sem a interpretação do Deuteronômio e a posterior
tradição interpretativa, não fica claro o que exatamente foi escrito por
Moisés (Ex 24,4} e o que exatamente foi escrito por Deus (Ex 24,12).
Há duas coisas distintas que poderíam ter sido escritas. Em primeiro lu­
gar, Deus comunica os Dez Mandamentos (Ex 20,1-17) e, depois. Deus
fala novamente e revela o Código da Aliança (Ex 20,22-23,33). O Deute­
ronômio assume que os Dez Mandamentos é que foram escritos pelo
dedo de Deus, embora isto mmea seja explicitado em Êxodo 24. Poder-
se-ia pensar que isso está correto. O deuteronomista aparentemente pen­
sava assim.

12. B. Sckwartz argumenta que o relato de P não inclui as tábuas: The Piiesdy Account
of the Theophany and Lawgiving at Sinai, in Texts, Tetnples, and Traditions: A Tribute to
Menahem Haran (ed. M. V. Fox et aZ.), Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1996, 126-127. Eu
argumentaria que as narrativas sacerdotais consideram que as tábuas fornecem os planos
divinos para a construção do tabemáculo.
13. Tanto a arca como o tabemáculo recebem seus nomes com base nas tábuas da
‘edut (Ex 31,18; cf. Ex 25,16.21.22; 38,21; Nm 1,50 etc,). Em outras palavras, as tábuas
conferem definição à arca e ao tabemáculo.

177
Como a Bíblia tomou-sc um livro

Um projeto divino para o tabernáculo encontra paralelo na literatura


do Oriente Médio e em outros pontos da Biblia. O Livro das Crônicas, por
exemplo, aplica essa noção das instruções escritas de Deus também ao templo
de Salomão. Quando Davi determina a edificação do Templo, inclui planos
escritos inspirados. Davi determina a Salomão o seguinte;

Davi deu a seu filho Salomão o plano do pórtico e das suas edificações, dos
seus armazéns e de suas salas superiores e interiores e da sala do propiciatório;
e o plano de tudo quanto havia concebido pelo espírito: dos átrios da Casa de
YHWH e de todos os cômodos circundantes, e dos tesouros da Casa de Deus
e dos tesouros dos objetos sagrados (ICr 28,11-12].

De acordo com o Livro das Crônicas [um texto do período persa], o


projeto do Templo foi supostamente conferido a Davi ‘‘pelo espírito", o que,
sem dúvida, pretendia indicar a origem divina dos planos. Assim como era
crucial, para sua legitimidade, que o tabernáculo tivesse um projeto divi­
namente inspirado e escrito, também para o Templo de Jerusalém era crucial
ter um projeto inspirado e escrito. 1 Reis 8,4 [// 2Cr 5,5] observa que o
tabernáculo foi trazido ao Templo no momento de sua dedicação. Isso cer­
tamente sugere que a. morada divina foi transferida do tabernáculo para
o Templo. Com efeito, o lugar Santíssimo espelha algumas das características
do tabernáculo — especialmente o lugar central da Arca da Aliança. A tra­
dição posterior via o Templo incorporando o tabernáculo*''. Isso se reflete
particularmente nos Salmos (por exemplo, Sl 26,8; 27,4; 61,4).
O tabernáculo e o posterior Templo de Jerusalém careciam da autori­
dade da antiguidade quando comparados aos templos da mesma época no
mundo antigo. Eles não podiam reivindicar a veneração prestada ao templo
do deus Marduc na Babilônia, cujas origens podiam remontar à criação do
mundo. Contudo, o tabernáculo mosaico podia reivindicar autoridade e
antiguidade de outras maneiras. Embora o tabernáculo não houvesse “baixado

14. Ver R. E. Friedman, The Tabemade in the Temple, BA 43 (1980] 241-248. A


tradição judaica posterior continua a notar a conexão entre o tabernáculo e o Templo. Josefo
observa a similaridade entre os dois e diz que o tabernáculo foi conduzido ao Templo
{Antiguidade dos judeus 8.101-106], O Talmude babilônio relata que o tabernáculo foi
guardado nas criptas do Templo de Salomão {b. Sota 9a).

178
Como a Tora tornou-so um toKto

dos céus” na criação do mundo [como era o caso do templo babilônico no


Enuma Elisk], o ritual central do culto do tabemáculo — a saber, o Sabá —
também havia sido ordenado quando da criação do m undo'C ertam en te
não é apenas uma coincidência que o Sabá esteja incluído nas prescrições
para a construção do tabemáculo (Ex 31,12-17)'®. Desse modo. Deus con­
clui a descrição da constmção do tabemáculo lembrando a Israel: “Será um
sinal perpétuo entre mim e o povo de Israel. Pois em seis dias YHWH fez
o céu e a terra, e no sétimo dia cessou o trabalho e descansou” (Ex 31,7).
Incluindo-se a prescrição do Sabá nas tábuas mágicas escritas por Deus
que descrevem o projeto do local de repouso de Deus na terra, afirma-se
a antiguidade do tabemáculo através de sua associação com o Sabá'^.
A peça central do projeto do tabemáculo em Êxodo 25-31 eram as
especificações para a constmção da Arca da Afiança, que, dali em diante,
abrigariam as tábuas de pedra. É realmente digno de nota, então, que um
dos grandes mistérios da BíbUa seja o desaparecimento da Arca da Aliança'®.
Junto com a arca, desaparecem também as tábuas de pedra. Ainda mais
notável é a aparente ausência de preocupação com a desaparecimento da
arca e das tábuas. Propuseram-se muitas teorias para explicar o desapare­
cimento da arca, desde a invasão empreendida por Shishaq no século X
até a destmição ou apreensão da arca por Nabucodonosor. No entanto,

15. Ver as discussões sobre o tempo e o espaço sagrados de J. Z. Smith, To Take Flace:
Toward Tbeory in Ritual, Chicago, University of Chicago Press, 1987), bem como de M.
Ehade, The Sacred and the Profane (trad. WillardTrask), Nova York, Harcourt Brace, 1959.
B. Sommer discute esses estudos teóricos relacionados ao Templo e ao tabemáculo em
Conflicting Constructions of Divine Presence in the Priestly Tabernacle, Biblical Interpre-
tation 9 (2001) 41-63.
16. Vários textos bibhcos reconhecem essa associação entre o Sabá e o tabemáculo
(por exemplo, Lv 19,30; 26,2). Ver A. Toeg, Lawgiinngat Sinai, Jerusalém, Magnes, 1977,
146 [hebraico]; Toeg, Genesis 1 and the Sabbath, BethM 50 (1972) 288-296 [hebraico]).
17. Uma das mais notáveis transformações textuais deve ser a da Lei do Sabá em
Ex 20,8-11 e Dt 5,12-15. Como é possível que algo supostamente escrito pelo “dedo de
Deus" (na interpretação do Deuteronômio) seja tão radicalmente diferente no Êxodo e no
Deuteronômio? Ver ainda o artigo de G. Hasel, Sabbath, in ÂBD, vol. 5, 849-856, e a
bibhografia ah citada.
18. Ver M. Haran, The Disappearance of the Ark, lE J 13 (1963) 46-58.

179
Como a Biblia tornnu-se um livro

ficamos desconcertados diante do fato de que na Bíblia aparentemente


não há preocupação com esse desaparecimento] A busca pela arca perdida
é mais uma busca moderna, imortalizada por Hollywood, do que uma
preocupação dos antigos israelitas. Convenientemente, foi justamente esse
desaparecimento da arca que permitiu que, mais tarde, os escritores deute-
ronômicos argumentassem que as tábuas perdidas continham a inscrição
dos Dez Mandamentos.
O desaparecimento da Arca da Aliança não é apenas uma curiosida­
de histórica, é também um fenômeno hterário. Surpreendentemente, a Arca
da Aliança praticamente desaparece no Livro do Deuteronômio, no qual
aparece só em dois contextos (Dt 10,1-8; 31,9.25-26]. Isso contrasta com
o papel proeminente que a arca desempenha da descrição do tabernáculo
no Livro do Êxodo (em que o termo hebraico aron, traduzido como “arca”,
aparece vinte e seis vezes] e, depois, nas perambulações pelas regiões ermas,
nas narrativas da conquista e do povoamento e no princípio da monarquia.
A arca é central também na fundação do Templo de Jerusalém (2Sm 6,15;
IRs 2,26; 3 ,l5 ; 8,1-21]. Depois que Salomão dedica o Templo ao Senhor,
em 1 Reis 8, a arca não é mais mencionada na narrativa histórica do
Livro dos Reis. A arca parece obsoleta. Qualquer que fosse a importân­
cia que possuía (isto'é, a presença de Deus], aparentemente transferira-se
para o Templo.
A referência à arca no Livro de Jeremias suscita questões acerca de
seu conteúdo. Em Jeremias 3,16-17, lemos:

Quando tiverdes multiplicado e aumentado na terra, naqueles dias, diz


YHWH, não mais se falará na arca da aliança de YHWH. Ela não virá à
mente de ninguém, nem será lembrada, nem dela se sentirá falta; tampouco
será feita outra arca. Naquele tempo, Jerusalém será chamada de trono
de YHWH, e todas as nações se unirão a ela, à presença de YHWH em
Jerusalém.

Por que Judá não falará mais da arca? Por que não se construirá uma
nova arca? A arca era o símbolo da presença divina na terra — particular­
mente, da presença de Deus no tabernáculo e, depois, no Templo de Jeru­
salém. Esse texto sugere que a cidade de Jerusalém como um todo substi­
tuirá a arca (e o Templo] como o lugar da presença de Deus. Podemos re­
cordar o Sermão de Jeremias no Templo, em que adverte os cidadãos de

180
Como a Tora lornou-Sf um lexxo

Judá: “Não confieis nestas palavras enganosas: ‘Este é o templo de YHWH,


o templo de YHWH, o templo de YHWH’’’ (Jr 7,4). Jeremias adverte
que a natureza divina do Templo não salvará Judá. A arca era ao mesmo
tempo símbolo e promessa da proteção de Deus para o Templo. Jeremias
rejeita essa adoração do Templo, mas, ao fazê-lo, o profeta sugere que o
poder da arca era o de autorizar o Templo como a morada de Deus. Essa
passagem do Livro de Jeremias, evidentemente, não nos diz o que estava
escrito nas tábuas na arca, mas lança alguma dúvida sobre a ideia de que
o conteúdo fosse originaknente entendido como os Dez mandamentos e o
“livro da aliança”. Ao associar a lei mosaica com a arca, a Torá mosaica
escrita também poderia incluir-se no mito do tabemáculo e do Sabá. Uma
vez que o Sabá fazia parte da criação do mundo segundo o Livro do G ê­
nesis, tanto o tabemáculo como a Torá poderiam reivindicar a antiguidade
da criação por sua associação com o Sabá.
Em suma, o conteúdo original das tábuas de pedra escritas por Deus
parece ter sido o projeto divino para a construção do tabemáculo e do
Templo. Esse tipo de escrita é consistente com_ o papel da escrita nas so­
ciedades antigas, em sua maior parte não letradas. A revelação a Moisés
teria sido então uma revelação oral, como era apropriado no antigo Israel.
O próprio fato de que Êxodo 19-31 descreve os ensinamentos como orais
e o projeto do santuário de Deus como escrito de modo divino é antigo.
Em sua maior parte, esses capítulos refletem concepções antigas acerca do
papel da escrita na sociedade israelita. Em Êxodo 24, porém, um relato
da escrita da revelação teria sido inserido por editores posteriores, inte­
ressados na textualização da ortodoxia religiosa. Esse acréscimo observa
que Moisés redigiu sua revelação no “livro da aliança”. Este é identificado
com o mesmo “livro da aliança” que o sacerdote Helcias viria a descobrir
no templo e que conduziu às reformas religiosas de Josias. Esse acréscimo,
contudo, também tomou necessário esclarecer a relação entre o pergaminho
que Moisés redigiu e as duas tábuas de pedra escritas por Deus. O Livro
do Deuteronômio esclarecerá isso para nós.

A segunda lei escrita de Horeb

A visão cinematográfica de Moisés com os Dez Mandamentos inscritos


em duas tábuas de pedra é um produto do Livro do Deuteronômio. A

181
Como a Bíblia tornoii-se um livro

palavra “deuteronômio” significa “segunda lei”’®, e este título descreve bem o


livro. O Livro do Deuteronômio contém os discursos de Moisés a Israel logo
antes de fazer a travessia para Canaã. Esses discursos incluem uma longa re­
petição da revelação no Sinai que contém uma versão ligeiramente “melho­
rada” da lei — uma lei que agora está escrita. Vemos o aspecto da escrita
repetidamente mencionado no Deuteronômio, começando em 4,13: “Ele vos
declarou sua aliança, que vos incumbiu de observar, ou seja, os dez manda­
mentos; e os escreveu em duas tábuas de pedra”. Depois, em Deuteronômio
5,22: “YHWH proferiu essas palavras com voz forte para toda a comunidade
na montanha, em meio ao fogo, à nuvem e às trevas, e nada mais acrescentou.
Ele as escreveu em duas tábuas de pedra e as entregou a mim”. Deuteronômio
4-5 consiste numa explícita repetição [e também comentário) da narrativa
de Êxodo 19—20^®. Isso se torna uma premissa do Deuteronômio, que é
referida explicita ou implicitamente ao longo de todo o livro (ver D t 9,10;
10,2-4; 17,18; 27,8). A forma literária do Deuteronômio mescla o oral e o
escrito. Sua estrutura é o discurso de despedida de Moisés ao povo de Israel.
O discurso recorda a revelação divina como parte de um acordo que YHWH
fez com Israel. É essa forma posterior — o tratado — que força a revelação
a se tomar fundamentalmente um texto escrito.
O acordo é um tescto escrito quinta-essencial no Oriente Médio. São
conhecidos textos de tratados remontando ao terceiro milênio antes de Cristo
na Mesopotâmia. A evidência de tratados ilustra um aspecto da complexi­
dade da textualidade no antigo Oriente Médio. O gênero literário dos trata­
dos e sua autoridade impositiva precede em mrxito as reformas josiânicas^’ .
Em outras palavras, o conceito de autoridade textual não é inteiramente
novo. Contudo, o poder do tratado escrito parece estar na invocação dos

19. O título provém do título grego, to deuteronomion (em latim, Deuteronomium),


que se baseia na descrição hebraica, Mishneh Torah, “segunda lei”/“lei repetida” (com base
em Dt 17,18; Js 8,32]. O hebraico sem dúvida reflete o fato de que o Deuteronômio
repete seções da lei e da narrativa dos primeiros quatro livros do Pentateuco; cf. comentários
de Nachmânides a Dt 1,1 e de Ibn Ezra a Dt 1,5.
20. Sobre o Deuteronômio como um comentário ao Êxodo, ver Sommer, Revelation
at Sinai, 432-435.
21. Alguns estudiosos afirmaram que o Deuteronômio se baseia nos tratados hititas dos
séculos IV e ni a.C, mais que nos tratados neoassírios; ver, por exemplo, a articulação clás­
sica do assunto de G. MendenhaU, Covenant Forms in Isradite Tradition, fid 17 (1954] 50-76.

182
Como a Torá lotnou-si.' um texio

deuses como testemunhas; ou seja, há tim poder numinoso e perigoso no


tratado escrito. Neste aspecto, o poder do tratado escrito reside nas proprie­
dades mágicas que os textos escritos podiam ter^^. Estudiosos destacaram que
a forma literária do Livro do Deuteronômio tem paralelos com os tratados
de vassalagem de Asaradon, rei da Assíria, que governou de 681 a 669 a.C.
Enquanto o conteúdo da aliança mosaica é a lei divina e o voto refere-se
a Deus, o tratado de vassalagem contém estipulações poHticas e se refere a
um suserano humano. Entretanto, a cerimônia da ahança assemelha-se for­
malmente à situação encontrada no tratado de Asaradon. Um dos paralelos
mais impressionantes está no cenário da aliança, na qual todo o povo está
reunido (Dt 29,9-11 //Tratado de Vassalagem de Asaradon 4-5). Em ambos
os cenários, aqueles que estão reunidos fazem a promessa não só por si
mesmos, mas também pelas futuras gerações (Dt 29,14 // Tratado de
Vassalagem de Asaradon 6-7; ver também o tratado de Sefire, IA 1-5)^^.
Ora, podemos perguntar: por que a textualidade é tão proeminente
no Deuteronômio, enquanto está quase ausente do Gênesis ao Livro dos
Números? Fundamentalmente, é o Deuteronômio que faz da textualidade
da Torá uma peça central da rehgião judaica. É o Deuteronômio que faz
do judaísmo uma religião do hvro. No Êxodo, a torah é o ensinamento oral,
enquanto no Deuteronômio a Torah é a lei escrita. A importância de uma
lei escrita só se toma aparente em Êxodo 19-24 quando o lemos à luz da
interpretação do Deuteronômio. O Livro do Deuteronômio é usualmente
associado com as reformas religiosas do rei Josias mencionadas em 2 Reis
22-23. Central para essas reformas reHgiosas é a descoberta de um perga­
minho — “o livro da aliança” [cf 2Rs 23,2 e Ex 24,7) — que se torna sua
base. Uma vez que as reformas parecem corresponder estreitamente à

22. M. Weinfeld argumenta (corretamente, em minha opiniãoj que o Deuteronômio


assinala um ponto de virada na religião israelita, oferecendo vários exemplos disso. Um ponto
importante ê que o Deuteronômio separa a lei do âmbito da magia; verWeinfeld, Deutervnomy
1-11, AB, Nova York, Doubleday, 1991,44. Eu acrescentaria às observações de Weinfeld que
o Deuteronômio separa o tratado da esfera do mito e da magia. Isso é crucial para a afirmação
de uma autoridade textual que não se basearia no poder mágico da escrita em si.
23. Para a cerimônia assíria da aliança, ver R. Frankena,TheVassal-Treaties of Esarhaddon
and the Dating of Deuteronomy, OTS 14 (1965) 122-154; M. Weinfeld, The Loyalty Oath
in the Ancient Near East, UF 8 (1976) 392-393. Para o tratado de Sefire, ver J. Fitzmyer,
The Aramaic Inscriptions from Sefire, Roma, PBI, 1995.

183
Como a Bíblia tornou-se um livro

ortodoxia religiosa defendida no Deuteronômio, os estudiosos com frequên­


cia assumem que foi algum tipo de pergaminho do Deuteronômio que
foi descoberto no templo e que se tomou a base dessas reformas religiosas
baseadas na textualidade. Com base nos dois capítulos precedentes, temos
boas razões para acreditar que a textualidade da Torá efetivamente se tor­
nou importante no século VII a.C. Uma elevação do letramento seguiu-se
à urbanização de Jemsalém. Essa elevação modelou profundamente o
desenvolvimento da cultura judia no século VII e correspondeu a mudanças
seminais no caráter de sua prática religiosa, particularmente a emergência
da autoridade de textos escritos. Desse modo, a autoridade escrita pôde se
tomar a base da crítica religiosa.
Todo o Livro do Deuteronômio evidencia basear-se num modelo tex­
tual que pressupõe uma cultura textuaP'*. Em contraposição, a revelação
no Livro do Êxodo reflete uma oralidade fundamental na cultura israelita.
No Deuteronômio, a escrita é central para a revelação da Torá, enquanto no
Êxodo a fala é central para a revelação da Torá. O período josiânico efeti­
vamente assinalou um momento de mudança na vida espiritual israelita.
Embora o escriba Esdras tenha promovido a circulação e a divulgação do
Livro da Torá no período do Segundo Templo (Esd 7,6.11; Ne 8,1.4), isso
foi apenas “uma intensificação do processo Já iniciado no tempo de Josias”^^.

A contínua textualização da Torá

A textualização da Torá foi um processo contínuo. O Livro dos Jubileus,


por exemplo, escrito na metade do segundo milênio antes de Cristo, apre­
senta-se como um relato das palavras reveladas a Moisés no Monte Sinai. Ele
começa referindo-se às tábuas entregues a Moisés: “Dar-te-ei duas tábuas de
pedra da lei e do mandamento que eu inscreví para que possas ensiná-los”
(Jub 1,1)^®. A escrita é um elemento central do processo de revelação e

24. Ver, partícularmente, o estudo de B. Levinson, Deuteronomy and the Hermeneutics


of Legal Innovation, Nova York, Oxford University Press, 1997.
25. Weinfeld, Deuteronomy, Book of, in ABD, vol. 2,175.
26. Ver introdução e tradução do Livro dos Jubileus de O. S. Wintermute, in The Old Testa-
ment Pseudepigrapha, vol. 2 [ed. J. Charlesworth], Garden City, NY, Doubleday, 1985,35-142.

184
Como a Torà tomou-sr um texto

é repetidamente mencionada. Deus diz a Moisés: “Inclina teu coração a todas


as palavras que eu te disser neste monte, e escreve-as num livro” (Jub 1,5],
Concede-se a Moisés até mesmo um ajudante angélico que auxilia na tex-
tualização da revelação: “Escreve todas as coisas que te digo nesta monta­
nha: o que [era] no princípio e o que [será] no fim [...]. E ele disse ao anjo
da presença: ‘Escreve para Moisés desde a primeira criação até que meu
santuário esteja construído entre eles por toda a eternidade’” [Jub 1,26-27).
O anjo toma as tábuas divinas [Jub 1,29) e se tom a o intermediário di­
reto: “o anjo da presença falou a Moisés pela palavra do Senhor, dizendo;
‘Escreve todo o relato da criação’” [Jub 2,1). Moisés está copiando coisas que
foram escritas primeiramente no céu: “E tu, Moisés, escreve estas palavras
porque assim está escrito e registrado nas tábuas celestiais como um teste­
munho para eternas gerações” [Jub 23,32). O conteúdo do Livro dos Jubileus
segue, de maneira solta, a narrativa que vai de Gênesis 1 a Êxodo 20. A
narrativa do Livro dos Jubileus se encerra justificando tanto a escrita divina
como a escrita de Moisés. Exortando o povo a guardar o Sabá, o hvro termi­
na: “assim como foi escrito nas tábuas que ele pôs em minhas mãos para que
eu pudesse escrever para vós a lei de cada tempo e de acordo com cada
divisão de seus dias” [Jub 50,13). A lei do Sabá foi escrita nas tábuas celestiais
originais, e Moisés redigiu a expansão e a aplicação dessa lei divina. Dessa
maneira, o Livro dos Jubiletis explica tanto as tábuas divinamente escritas
como a composição mosaica de uma forma muito mais elegante e preme­
ditada do que o Livro do Êxodo ou até o Deuteronômio.
Outro exemplo de textualização da Torá é o chamado Pergaminho do
Templo, que foi encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto^^. Esse texto
aparentemente foi escrito pelos sectários religiosos que passaram a viver na
região de Khirbet Qumran na metade do século II a.C. O texto é, aparente­
mente, uma antiga composição dessa comunidade. O conteúdo do texto é,
em grande medida, paralelo ao livro canônico do Deuteronômio, embora haja
uma siupreendente mudança na voz. O Livro do Deuteronômio é moldado

27. Uma nova edição crítica do Pergaminho do Templo (substituindo a edição origina
de Y. Yadin) foi feita por E. Qiraron, The Temple Scroü: A Criticai Edition with Extensive
Reconstructions, Bersabé, Ben-Gurion; Jerusalém, Israel Exploration Society, 1996. Uma
tradução boa e acessível, com uma breve introdução, pode ser encontrada em G. Vermes,
The Complete Dead Sea Scroüs in En^ish, Nova York, Penguin, 1997.

185
Com o a BíKlia tornrni-si;- iim li\ ro

como um discurso de Moisés escrito na terceira pessoa. Assim, o Livro do


Deuteronômio é um relato do discurso de despedida em que Moisés resiime
a experiência do Êxodo e o conteúdo da revelação de Deus no Monte Sinai.
O Deuteronômio tem apenas o relato de Moisés da revelação feita por Deus
no Monte Sinai. Mas o que Deus disse literaknente a Moisés? O Pergaminho do
Templo preenche esta lacuna. Como o Livro dos Jubileus, o Pergaminho
do Templo textualiza uma importante lacuna da revelação no Monte Sinai.
A redação da Mishná, ou seja, a Torá oral, no século III d.C , é, para­
doxalmente, outro exemplo da textuahzação da revelação no Monte Sinai.
De acordo com a Ética dos Pais, “Moisés recebeu a Torá no Sinai e transmi­
tiu-a a Josué, Josué, aos anciãos, e os anciãos, aos profetas, e os profetas
transmitiram-na aos homens da grande assembléia” (M. Avot 1,1]. Essa é
a Torá oral, mas agora é um texto. O texto da Ética poderia ter prosseguido
dizendo que a redação da Torá oral estava a cargo do rabino Judá, o prínci­
pe, no século III a.C. A ideologia da oralidade implícita na Torá oral impediu
que ela fosse textualizada até o século III d .C , mas, no final, até mesmo ela
foi textualizada (ver capítulo 10]. A ironia é que essa textuahzação posterior
da Torá oral no judaísmo rabínico recorda a antiga textuahzação da revelação
que vai do Livro do Êxodo ao Deuteronômio. Talvez esta seja a tirania
da escrita, a saber, que continuamente se impõe sobre a tradição oral.
O processo de textuahzação (como eu o descreví] é certamente mais
comphcado que um simples desenvolvimento diacrônico. Ele não é um
processo histórico linear simples. Os papéis do texto e da tradição oral no
antigo Israel e no judaísmo formativo são complexos. Há também uma re­
lação e uma tensão contínuas entre a tradição oral (por fim, a Torá oral] e
a Torá escrita. Essa tensão reflete as diferentes comunidades sociais do antigo
Israel e do judaísmo formativo. Como sugeri no capítulo precedente, a re­
forma josiânica (e deuteronômica] foi um recuo em oposição às ehtes urba­
nas e sacerdotais por parte do “povo da terra”. A Torá era criticada por
derivar-se da “falsa pena dos escribas” (Jr 8,8]. Por outro lado, a tradição oral
(isto é, o “costume”, “m ishpaf, Jr 8,7] e o mundo profético oral {^‘davar”)
eram aclamados como a verdadeira sabedoria (Jr 8,9]. Em outras palavras,
o profeta Jeremias já era sensível à crescente importância da Torá escrita, que
era usada pelas ehtes rehgiosas (os escribas mentirosos] para controlar a or­
todoxia. Os textos escritos naturalmente completaram e, por fim, substi­
tuíram a tradição oral. Embora a tradição oral continuamente se reafirmasse,
seria sempre suplantada pelo processo de textuahzação.

186
A

escrita
no exílio

' exílio babilônico é o divisor de águas na história de Israel. Ntrtna série


de campanhas militares, os exércitos babdônicos dizimaram Judá, incendia­
ram a cidade de Jerusalém e arruinaram a economia da região. A primeira
campanha ocorreu em 597 a.C. Nesse momento, os babüônios deportaram
um grande número de judeus (2Rs 24,14), incluindo a família real de
Joiaquin (2Rs 24,12). Uma segunda campanha resultou no incêndio de
Jerusalém e da região interiorana em 586 a.C. (2Rs 25,8-12). Os babilônios
estabeleceram um governo provisório e, em 581 a.C., retomaram e levaram
outro grupo de judeus para o exílio (Jr 52,30). Ao longo de todo o exílio,
porém, os integrantes da famíUa real viveram com conforto na cidadela
real da BabÜônia. O governo babilônio lhes fornecia generoso suprimento
alimentar, e eles permaneceram sustentando-se como os governantes legí­
timos de Judá. Embora as conquistas e os exílios babilônios tenham dizi­
mado o povo judeu, a infraestmtura escribal da família real ficou intacta
durante o período babilônico e no início do período persa. Nos tumul­
tuosos dias que se seguiram às invasões babilônias, a escrita voltou ao con­
trole do Estado sob o governo da famíha real exüada na Babilônia.
O "exílio” divide a história. Até mesmo a terminologia — estamos
falando dos períodos pré-exílico e pós-exílico — reflete essa divisão. Em­
bora com frequência se pense no exílio babdônico como um único evento.

187
Como a Bíblia tnrnou-se um livro

foi um processo longo e devastador. De acordo com a tradição judaica, a


profecia termina logo após a destruição do Templo e o final do reino he­
braico. O exílio também será um divisor de águas para a compilação e a
edição da antiga literatura israelita num livro que chamamos de Bíblia.
Deu-se excessiva importância ao exíUo? É possível dar demasiada impor­
tância ao exího? O exíUo foi um período formativo para a composição
da Bíblia ou um período negro? A crise do exílio resultou na compüação e
na edição da Uteratura bíblica?
Um dos mais influentes críticos de alto nível do século X IX , Juhus
Wellhausen, usou o exílio como um evento definidor em sua análise da
religião israehta e da composição da Bíblia. As análises históricas e literá­
rias de Wellhausen ajudaram a elevar o exílio ao seu papel dominante na
crítica bíblica. Um estudioso da Bíblia chegou até mesmo a sugerir que
seria justo dizer que Wellhausen descobriu o exíliob O exílio representou
também uma guinada para a língua hebraica. Os textos bíblicos escritos antes
do exílio são descritos como “hebreu clássico”, ou “hebraico bíblico padrão”,
enquanto textos bíblicos posteriores (como Esdras-Neemias, Daniel e Ester)
são categorizados como “hebraico bíblico tardio”^. O exílio alterou radical­
mente as instituições políticas, religiosas e culturais do antigo Israel.
No último século, õs estudiosos tenderam a ver o exílio como um pe­
ríodo formador para a escrita, a compilação e a edição da hteratura bíbUca.
Em sua obra clássica. Exile and Restoratvon [Exílio e restauração], Peter
Ackroyd argumentou que o período exíhco foi marcado por uma atividade
literária intensa e criativa^. Supostamente, o exího provocou uma erupção

1. J. Barton, Wellhausen’s Prolegomena to the History of Israel: Influences and Effects,


in Text and Experience: Toward a Cultural Exegesis of the Bible (ed. D. Smith-Christo-
pher), Sheffield, Sheffield Academic Press, 1995, 328. Ver também o ensaio de D. Smith-
Christopher que dta Barton com aprovação: Reassessing the Historical and Sociological
Impact of the Babylonian Exile (597/587-539 BCE], in Exile: Old testament, Jewish, and
Christian Conceptions (ed. J. M. Scott), Leiden, Brill, 1997, 7-36.
2. Ver, por exemplo, A. Hurvitz, The Transition Period in Biblical Hebrew, Jerusalém,
BiaUk, 1972 [hebraico]; E. Y. Kutscher, A History ofthe Hebrew Language, Jerusalém, Magnes
Press, 1982; A. Sáenz-Badillos, A History ofthe Hebrew Language (ET), Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1993.
3. P. Ackroid, Exile and RestoratUm: A Study of Hebrew Thought in the Sixth Century,
LouisviUe, Westminster John Knox Press, 1968.

188
A escrita no exilii

criativa de energia literária, parte da qual constituiu uma reação ao páthos


da destruição de Jerusalém. Mas a catástrofe também levou os judeus a
preservar as tradições da sociedade por meio da escrita. Contudo, isso
parece uma construção exagerada. Seria de esperar que o exílio convidasse
ao recolhimento mais do que a uma intensa atividade literária. Além disso,
a sugestão de que a escrita foi uma resposta natural à tentativa de pre­
servar a cultura é, claramente, uma perspectiva moderna, a reação de uma
cultura que presume a textualidade. O antigo Israel, contudo, era uma so­
ciedade de textualidade emergente no final da monarquia judia. A escrita
não era necessariamente a resposta cultural natural à catástrofe como viria
a se tornar num mundo pós-gutenberguiano.
Antes de tratar diretamente do papel da escrita após o exílio, é preciso
dedicar algum tempo para esboçar uma imagem do período exílico em Judá.
Como eram Jerusalém e Judá no período babdônico? Fora da Bíblia em si
mesma, teriamos alguma evidência que sugira ter existido o cenário social
para um florescimento literário intenso e criativo? O século VI em Judá
— ou seja, o período exílico — foi associado com o que tem sido chama­
do de era axial das civilizações antigas"*. Estudiosos há muito consideram o
século VI como um dos períodos mais criativos da história mundial^. É
também a época em que os filósofos gregos e figuras bíblicas como Jeremias
e Ezequiel estavam ativos. O exíUo babüônico foi certamente um catalisador
para mudanças dramáticas na história do povo judeu, mas teria isso pro­
movido um período de intensa atividade literária? Provavelmente não.
Ainda que os estudos tradicionais tenham enfatizado a importância do
exílio, alguns estudiosos sempre questionaram se não se haveria atribuído
excessiva importância ao período. Nenhum critico do exílio e de seu lugar
nos estudos bíblicos foi mais incisivo que C. C. Torrey, especialmente em
sua obra Ezra Studies, pubhcada. em 1910. Torrey argumentou que o exílio
era essencialmente uma ficção criada por escribas judeus do período persa
tardio. Ele escreveu: “os termos ‘exílico’, ‘pré-exílico’ e ‘pós-exíhco’ deve­
ríam ser banidos para sempre, pois apenas conduzem a equívocos e não
correspondem a nada real na fiteratura e na vida hebraicas”®. A interpre-

4. Ver S. N. Eisenstadt [ed.j, The Ori^ns and Diversity ofAocialAge Civilizations, Nova
York, State University of New York Press, 1986.
5. P. Ackroid, Exile and Restoration, 7.
6. C. C. Torrey, Ezra Studies, Chicago, University of Chicago Press, 1910, 289.

189
Como a Bíblia tomou-se um livro

tação de Torrey foi ressuscitada em diversas obras recentes. Hans Barstad,


por exemplo, em The Myth ofthe Empty Land, invoca cautelosamente as
conclusões de Torrey, embora com frequência considere-as extremas^.
Torrey também ressurge no volume de ensaios do Seminário Europeu de
Metodologia Histórica intitulado Leading Captivity Captive: “The Exile"
as Ideology and History. Talvez o mais explícito apoiador de Torrey nesse
volume seja o estudioso da Bíblia Robert Carroll, que escreve que gostaria
que a sentença supracitada de Torrey fosse “brasonada em todos os livros
de história da Bíblia”®. Carroll — um inflamado estudioso irlandês — era
particularmente sensível à possibilidade de que abordagens da história
centradas na Bíblia marginalizassem política e socialmente certos grupos.
Ele tinha a preocupação de que tal abordagem deixasse de fora grande
parte da história social e cultural da Palestina, bem como do povo judeu.
Com efeito, embora a nomenclatura das disciphnas acadêmicas tenha sido
moldada pela Bíblia, há na história da Palestina muito mais do que aquilo
que pode ser encontrado nas páginas da Bíblia. Esta é uma das contribui­
ções que essa abordagem pode oferecer. Contudo, considerando cuidado­
samente as crescentes evidências arqueológicas, é imprudente subestimar
o enorme impacto da conquista e dos exílios babilônicos sobre a vida em
Judá e sobre a escrita.da literatura bíblica.

A fóría da Babilônia

Investigações arqueológicas recentes cada vez mais revelam a fúria da


Babilônia ao destruir Jerusalém, Judá e todo o Levante. As evidências lite­
rárias também apontam para o impacto devastador dos babilônios sobre a
região do Levante. O arqueólogo Ephraim Stern, professor da Universidade
Hebraica de Jerusalém, contrasta a presença babüônica com a presença
assíria na Palestina:
Os babilônios empreenderam muito menos campanhas militares para a do­
minação da Palestina que os assírios, e o número de fontes escritas disponíveis

7. H. Barstad, The Myth ofthe Empty land: A Study in the History and Archaeology
of Judah during the “Exilic” Period, Oslo, Scandinavian University Press, 1996.
8. R. Carroll, Exilei What Exile?, in Leading Captivity Captive: “The Exile” as Ideology
and History (ed. L. Grabbe) Shefíield, Sheffield Academic Press, 1998, 77.

190
A escrita no cxilin

que as descrevem é também muito menor. Contudo, os resultados da conquista


babÜônica foram, em todos os sentidos, muito mais destrutivos e levaram o país
antes florescente a um dos maiores declínios de sua longa história®.

Da perspectiva de Jerusalém, “a fúria da Babilônia” poderia renomear


apropriadamente a obra clássica do assüiologista H. Sagg, The Greatness that
Was Babylon [A grandeza da Ba^tónia]. A despeito das recentes tendências
de reduzir a importância do exílio'^’, o alcance e a ferocidade da conquis­
ta babilônica estão se tomando mais claros com cada nova investigação
arqueológica.
Houve certa continuidade após os exílios babilônicos. Sabemos, por
exemplo, que os babilônios nomearam um governante interino para a pro­
víncia em 586 a.C. Estabeleceu-se um centro provisório na cidade de Mispá,
ao norte de Jemsalém, que — diferentemente do restante de Judá — saiu
em grande medida üesa das campanhas rrulitares babdônicas; Mispá aparen­
temente funcionou durante todo o breve período de domínio babüônico'*.
De acordo com 2 Reis 25,12, os babÜônios deixaram ficar “os mais pobres
da terra para trabalhar como vinheiros e lavradores”. Nabucodonosor no­
meou um certo Godohas, filho de Aicam, como governante da região após
a destmição de Jemsalém e o exího babilônio (ver 2Rs 25,22; Jr 40,7)*^.

9. E. Stem, Archaeology ofthe Land ofthe Bible, vol. 2: The Assyrían, Babyhnian, and
Persian Periods [732-332 b.c.e.), (Anchor Bible Reference Library], Nova York, Doubleday,
2001,303.
10. Tendências recentes de reduzir a importância do exiUo foram convenientemente
discutidas por D. Smith-Christopher, in A Biblical Theology of Exile, MinneapoUs, Augsburg
Fortress, 2002, 30-34, 45-74. Ver também I. Finkelstein e N. A. Silberman (The Bible
Unearthed), Nova York, Free Press, 2001, 306, que sugerem que setenta e cinco por cento
da população permaneceu no território após os exilios; entretanto, como indagam Stager
e King, “onde estão os remanescentes arqueológicos?” (Life in Biblical Israel, 257]. Ver a
pesquisa completa em O. Lipschitz e J. Blenkinsopp (eds.), Judah and Judeans in the
Neo-Babylonian Periqd, Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 2003.
11. J. Zom, Mizpah: Newiy Discovered Stratum Reveals Judah’s Ofber Capital, BAR 23,
n°5 (1997) 28-38,66; H.J. Stipp, GedaljaunddieKolonievonMizpa,ZAR6 (2000) 155-171.
12. Sobre a administração babilônia de Judá, ver D. Vanderhooft, The Neo-Babylonian
Empire and Babylon in the Latter Prophets (HSM, 59), Atlanta, Scholars Press, 1999,104-110.

191
C om o a Bíbba tornou-se um I í \ to

Godolias, porém, foi assassinado pouco depois de ter-se instalado (2Rs 25,25;
Jr 41,1-3). Temendo represálias babilônias, os conspiradores por fim fugi­
ram para o Egito. Mispá aparentemente continuou a funcionar como capital
regional, e, quando os persas derrubaram o Império Babilônico, muitos dos
que regressavam estabeleceram-se nessa região ao norte de Jerusalém (ver,
por exemplo, Esd 2,21-28; e Ne 3,7).
O estudioso da Bíblia Hans Barstad tinha em mente essa continuidade
ao compor sua importante e largamente citada monografia, com o provoca­
tivo título The Myth of the Empty Land [O mito da terra vazia\. Barstad en­
fatiza a continuidade da cultura material de Judá durante o período babilô­
nico (ca. 586-538 a.C ). Ele sugere que a maior parte da população perma­
neceu na região após as campanhas de Nabucodonosor^^. Robert CarroU
adota uma posição ainda mais extrema: “Nessa conjuntura histórica, a terra
perdeu algumas pessoas; uma minoria da população, mesmo uma minoria
das pessoas importantes, foi deportada. A maioria das pessoas permaneceu
no território como se nada houvesse acontecido, a não ser o incêndio de Jerusalém”
[itálicos acrescentados]^'*. Se assim fosse, então seguir-se-ia que uma produ­
ção substantiva da literatura bíblica poderia ter ocorrido em Judá durante
o período babilônico*®. O problema é que esse não foi realmente o caso.
Depois de 586 a.C.', a vida efetivamente prossegue em Judá da mesma
maneira que antes? É verdade que as conquistas e os exílios babilônios
tiveram apenas um impacto mínimo sobre o povo de Judá? Duas suposi­
ções subjazem às críticas do exílio. A primeira suposição é de que a maioria
das pessoas foi deixada no território no final do período babilônico — em
outras palavras, de que o panorama demográfico modificou-se muito pouco.
A segtmda suposição é de que a vida do povo judeu conservou-se, em
grande medida, como de costume. Nenhuma das duas suposições resiste
a um exame minucioso. Com efeito, as mudanças demográficas em Judá
foram muito profundas, refletindo um intenso despovoamento'®. A terra

13. Barstad, Myth ofthe Empty Land, 18-19.


14. R. CarroU, Israel, History of. Post-Monarchic Period, in ABD, vol. 3, 567-576.
15. H. Barstad, On the History and Archaeology of Judah during the Exihc Period: A
Reminder, OLP 19 [1988) 25-36.
16. Ver, por exemplo, D. Jamieson-Drake, Scríbes and Schools in Monarchic Judah, She-
ffield, SheffieldAcademicPress, 1991,60;Stem,An:haeoIogyqfdieLcmdoftheBible,421-426.

192
A lio

não foi esvaziada, mas teve sua população reduzida. Ademais, todas as
instituições da vida judia modificaram-se. Não havia mais um rei davídico.
Não havia Templo. De acordo com a tradição bíblica (Dn 1,3-4), a inífaes-
trutura escribal foi também exilada. Até mesmo a língua falada pelo povo
mudou do hebraico para o aramaico. Naturalmente, a vida cotidiana do
camponês de lehud talvez não fosse, sob o domínio babilônio ou persa,
muito diferente de como era sob o governo dos reis davídicos — ou seja,
a vida daqueles poucos camponeses que não foram mortos na guerra, nem
exilados para a Babilônia, nem forçados a fugir da ruína econômica e do
caos social.
O trauma da conquista e do exílio babüônicos foi profundo em Judá.
Embora a cultura material tenha persistido definidamente após 586 a.C.,
o fim da monarquia davídica e a destruição e a pilhagem do Templo su­
gerem que as organizações sociais básicas não permaneceram as mesmas.
As instituições governamentais e religiosas foram transformadas. Em seus
estudos sociológicos comparativos sobre o exílio, Daniel Smith-Christopher
mostra quão profunda foi a experiência do exílio para o antigo Israel’^.
Profetas como Ezeqtiiel e literatura como o Livro das Lamentações expres­
sam o profiindo impacto psicológico do trauma do exílio. Além disso, a obra
de Barstad ressalta a maneira como a memória coletiva do povo judeu cria
o evento do exílio e enfatiza a totalidade dessa catástrofe. Essa condensa­
ção do exílio num evento único reflete fatores psicológicos e ideológicos
na literatura posterior; contudo, o trauma psicológico agudo, o desloca­
mento social e a devastação social foram profundos e duradouros.
No final do período babüônico, a terra estava muito mais vazia do que
supunham os críticos recentes do exílio. Como resultado disso, é dificil ima­
ginar que, na antiguidade, haveria condições sociais que pudessem encora­
jar um grande florescimento literário. As invasões babilônias foram selvagens
e impiedosas'®. Os babilônios, então, em grande medida abandonaram a

17. Ver D. Smith, The Reli^on of the Landless: The Social Context of the Babylonian
Exile, Bloomington, IN, Meyer-Stone Book, 1989; Smith-Christopher, Reassessing the
Historical and Sociological Impact of the Babylonian Exile, 7-36, e Smith-Christopher, A
Bihlical Theology of Exile.
18. Para um relato popular, ver L. Stager, The Fury of Babylon, BAR 22 (1996)
56-69, 76-77.

193
Como d Biblia tornou-se um 1í \ t o

terra devastada, em contraste com os assírios, que repovoaram as regiões


de exílio’®. Passaram-se séculos até que houvesse uma recuperação.
Arqueólogos realizaram extensos levantamentos de padrões de povoa-
ção nesse período. Com base nisso, pode-se fazer uma avaliação demográfica
relativa. Por exemplo, no século VII a.C. (no final da monarquia], havia pelo
menos 116 locais povoados (cidades, vilas e aldeias) em Judá. No século
VI a.C. (o período babilônico), o número caiu para 41 locais. Ainda mais
impressionante é o fato de que, dos 116 locais do período monárquico
tardio, 92 foram abandonados no período babilônico^®. Oito por cento das
cidades, vilas e aldeias foram abandonadas ou destruídas no século VI. Mui­
tas das vilas e aldeias do período persa (42%, isto é, 17 de 41) foram assen­
tadas em locais prevLamente virgens, refletindo uma disjunção profunda
na população. Ademais, a dimensão média das locafidades diminuiu de 4,4
hectares para 1,4 hectares — uma redução de setenta por cento. Não apenas
Jerusalém foi queimada, como também a maior parte das grandes cidades
desapareceu de Judá propriamente dito. De modo geral, houve uma trans­
ferência da população das cidades para aldeias.
Escavações de cidades como Jerusalém, Laquis, Guézer e Meguido
atestam grandes conflagrações iniciadas pelos babilônios na Palestina^’ . E a
tendência de decréscimo populacional persistiu ao longo de todo o período
babilônico^^. Além disso, as aglomerações de cerâmicas e seus padrões de
distribuição mudam dramaticamente no início do período babílônico^^.
Somente alguns locais ao norte de Jerusalém exibem uma continuidade

19. Ver Vanderhooft, The Neo-Babykmian Empire, 61-114.


20. Essas estatísticas seguem Jamieson-Drake, Scríhes and Schools in Monarchk Judah,
p. 62. Embora esses dados estejam agora um tanto ultrapassados, os dados mais recentes
compilados por C. Carter seguem tendências similares; ver C. Carter, The Emergence ofYehud
in the Persian Period (JSOTSS, 294] Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999,114-213.
21. Ver o resirmo de A. Mazar, Archaeobgy ofthe Land oftheBible, 1000-586 B.C.E.,
Garden City, NY, Doubleday, 1990, 458-460.
22. Ver C. Carter, The Emergence ofYehud in the Persian Period, 119-134.
23. G. Lehmann, Trends in the Local Pottery Development of the Late Iron Age and
Persian Period in Syria and Lebanon, ca. 700 to 300 B. C., BASOR 311 (1998), 21-32. A
obra de Lehmann utüiza os novos dados arqueológicos para atuaUzar a obra clássica de
Ephraim Stern, que apontou certa continuidade na cultura material entre a Idade do Ferro

194
A tísi-rita no •

significativa, particularmente Mispá, o centro do governo provincial ba-


bilônico. Em suma, no final do período babilônico, poucas pessoas viviam
em Judá. Aqueles que permaneceram eram “os mais pobres da terra” e
viviam em pequenas vilas e aldeias. A economia era essencialmente de
agricultura e pastoreio de subsistência.
A política babilônica em suas campanhas rumo ao oeste era brutaP'*.
Em lugar de tentar implementar uma política que explorasse a região como
província^^, os babilônios pilhavam sistematicamente a região. As evidên­
cias da destruição causada pelos babilônios em Judá e áreas vizinhas são
abundantes. Nos últimos dias de sua monarquia, Judá era um Estado ur­
bano economicamente próspero e com uma população relativamente densa.
A região não tinha muitos recursos que a tomassem economicamente
viável a não ser o pastoreio e a agricultura marginal^®. A região tampouco
poderia sustentar sua população do século VII, então as deportações cons­
tituíam-se de evasão econômica, principalmente para o Egito, onde grandes
comunidades judaicas aparecem repentinamente. A vida continuou, em
grande medida, como de costume? Acho que não. .
O período babilônico em Judá teria sido realmente o contexto social
para uma atividade literária intensa e criativa? Isso não parece provável.
Outra medida das mudanças ocasionadas pelos babilônios foi o abrupto
declínio das obras públicas. Do mesmo modo, há também um declínio
nos itens de luxo, indicativos de prosperidade econômica^^. Esse é precisa-

e o período persa; cf. E. Stem, Material Cukure ofthe Land oftke Bible in the Persian Period,
538-332 B.C.E., Warminster, Aris & Phillips, 1982, 229.
24. Vanderhooft, The Neo-Babylonian Empire, 61-114.
25. Os argumentos de Barstad (e, antes, de J. N. Graham) sugerem que investigações ar­
queológicas e históricas recentes demonstraram que o desenvolvimento econômico babilônico
dessa região é completamente infundado; ver Vanderhooft, The Neo-Babyloman Empire, 104-112.
26. Se examinarmos as fronteiras da província de lehud, veremos um território confinado
ao interior montanhoso. Cf. C. Carter, The Province of Yehud in the Post-Exilic Period; Soun-
dings in Site Distribution and Demography in Second Temple Studies, vol. 2; Temple and Com-
munity in the Persian Period (ed. T. C Eskenazi e K. H. Richards; JSOTS, 175), Sheffield, She-
ffield Academic Press, 1994,106-145; C. Carter, The Emergence (rfYekud in the Persian Period.
27. Em apêndices do livro de D. Jamieson-Drake, Scrihes and Schools in Monarchic
Judah, mapas quantificam o declínio dramático.

195
Como a RiWia tornou-se um livr

mente o tipo de evidência arqueológica que indicaria a existência da in-


fraestrutura social necessária à escrita. N a antiguidade, a escrita requeria
uma economia urbana próspera para se desenvolver. Não há evidências
dessa economia urbana florescente nos montes de Judá antes do século III
a.C. Por conseguinte, temos muito poucas evidências escritas (jparticular-
mente de escrita hebraica) durante o período babüônico^®. Isso é de esperar,
já que a maior parte dos povoamentos em Judá não passava de pequenas
aldeias agrárias ou pastoris.
A possibilidade de uma atividade Hterária mais significativa durante o
período exílico toma-se menos promissora à medida que nos aprofunda­
mos. As abordagens convencionais da história da Síria e da Palestina deixam
de fora uma grande parcela da história social e cultural. Em particular, a
nomenclatura convencional do “exílio” deixou de contemplar todas as
facetas do processo de destruição e despovoamento ocorrido no século
VI a.C. após as invasões babilônicas. Temos de formar uma imagem do
“exílio” muito mais ampla que a dos autores bíblicos. A arqueologia deve
assumir um papel de hderança na ampUação desse retrato. Certamente,
a arqueologia do período babilônico é espinhosa, especialmente porque
dura menos de cinquenta anos. Com frequência, a arqueologia não é
muito adequada pará o isolamento de períodos tão curtos ou a identificação
de acontecimentos; ela é mais apropriada para a descrição de processos.
A literatura tende a preservar eventos, como a queda do muro de Berlim
simbolizando o fim da Guerra Fria, enquanto a arqueologia nos auxilia a
descobrir os processos subjacentes e mais complexos.
Que tipo de infraestrutura governamental os babilônios implantaram
em Judá? Ela podería ter proporcionado o contexto para uma atividade
literária substancial? Sabemos muito pouco sobre esse período em Israel.
Foi o início de uma época sombria na história da região; No presente con­
texto, a ausência de evidências indica a falta de interesse geral da Babilônia
em desenvolver economicamente a região. De acordo com o Livro dos
Reis, os babilônios estabeleceram um governo provisório sob o comando
de Godohas em 586 a.C. (2Rs 25,22-26; Jr 4 0 ,5 ^ 1 ,1 8 ). De acordo com o

28. Notem-se os quatro sinetes supostamente babilônicos discutidos por C. Carter


The Emergence ofYehud in the Persian Period, 125-169. É igualmente provável que datem
do período persa.

196
A tr.s(.riv.i no t''Cilio

Livro de Jeremias, Godolias estava entre os apoiadores do profeta Jeremias


(Jr 39,14), e Jeremias defendera a submissão aos babilônios. O governo
provisório de Godolias foi em Mispá porque Jerusalém havia sido com­
pletamente destruída. Mas o apoio de Godolias aos babilônios logo acarre­
tou a sua morte; um grupo de rebeldes judeus assassinou Godolias e matou
as tropas babilônias instaladas em Mispá (Jr 41,1-2). Esses eventos pare­
cem ter ocorrido no mesmo ano em que Godolias foi nomeado. Alguns
anos depois, por volta de 581 a.C., os babilônios aparentemente ordenaram
a terceira deportação (Jr 52,30). A não ser por essas compilações a partir
da literatura bíblica, temos pouco conhecimento direto sobre os aconteci­
mentos em Judá durante o século VI até o início do domínio persa. Há
alguma evidência da escrita em hebraico no período exílico em Judá? Fora
os alegados textos bíblicos, não. Não há inscrições hebraicas que tenham
sido datadas de modo conclusivo como pertencentes ao período babilônico
(586-539 a.C.)^^. Quaisquer judeus pobres que tenham permanecido no
território teriam sorte de granjear uma subsistência mínima. Eles certa­
mente não faziam parte de nenhum grande florescimento literário.
Os sinetes de “Mosa” indicam mudanças no idioma administrativo da
região. Eles são um corpus significativo de impressões da palavra “Mosa” es­
tampadas em potes de argila úmida, antes do cozimento. Mosa, uma peque­
na cidade a noroeste de Jerusalém, era conhecida por sua argila e, provavel­
mente, era um centro de produção de cerâmica. Os sinetes de “Mosa” são às
vezes datados do período neobabüônico em Judá; contudo, estudiosos com­
petentes atribuíram datas que vão do século VI ao século IV a.C.^°. O prin-

29. Certamente, houve debates entre estudiosos acerca de se algumas inscrições he­
braicas poderíam datar do período babilônico. Por exemplo, várias inscrições foram encon­
tradas numa gruta funerária em Khirbet Beit Lei, nos montes a oeste de Jerusalém. As
inscrições foram aparentemente rabiscadas nas paredes da gruta por refugiados que se es­
condiam dos assírios ou dos babilônios. Elas recebem datas variadas, do final do século VIII
à metade do século VI. Mesmo que a datação posterior esteja correta, ainda assim as ins­
crições seriam um legado do período tardio da monarquia judia. Ver a discussão geral de
A. Lemaire, Palestinian Funerary Inscriptions, ABD, vol. 5, 126-135; ver também F. M.
Cross, The Cave Inscriptions from Khirbet Bei Lei, in Near Eastem Archaeology in the
Twentieth Century (ed. J. A. Sanders], Garden City, NY, Doubleday, 1970, 299-306.
30. Naveh data os sinetes no século IV {The DevelopmentoftheAramaic Script, 61-62].
Cross afirma que eles pertencem ao final do século VI e início do século V, e Stern os atribui

197
Como a Bíblia tornou-se um livro

dpal argumento em favor de uma data neobabilônica é simplesmente o fato


de que os sinetes foram encontrados principalmente em escavações na cidade
de Mispá, que foi o centro do governo no período babüônico. Todavia, Mispá
continuou a ser um centro adrninistrativo no período persa, então esse não
é um argumento decisivo. É mais provável que os sinetes datem do final do
século VI e do início do século V. Mais interessante para este estudo é o fato
de que os sinetes usam a escrita aramaica (e não hebraica), embora tenham
sido produzidos no local. Isso aponta para a transição do hebraico para o
aramaico como idioma administrativo, que já começara no período neobabi-
lônico. Em outras palavras, as escolas escribais, entre os séculos VI e IV a.C ,
estariam ensinando os aprendizes a escrever e ler o aramaico.

Às margens dos rios da Babilônia

A situação de Judá era sombria, mas a condição no exílio seria muito


melhor? O exílio babüônico podería ter sido o cenário para um florescimen­
to literário? Talvez não, mas certamente parece haver alguma atividade
literária durante o período exúico.
Em seu hvro recente sobre o exüio, Daniel Smith-Christopher identifica
uma tendência entre os estudiosos de “presximir uma existência submissa, se
não inteiramente confortável”^b O grande estudioso alemão da Biblia Martin
North, por exemplo, destaca que os exüados não erarn prisioneiros, mas ape­
nas uma popiüação compulsoríamente transferida que podia se movimentar
livremente em sua vida cotidiana^^. Argumentou-se também que os exÜados
não eram escravos — ao menos da perspectiva da jurisprudência babüônia^^.

ao período neobabilônico {Archaeology ofthe Land of the Bible, 336), como também J. Zom
(cf. J. Zom et a l, The m(w)sh Stamp bnpressions and the Neo-Babylonian Period, lEJ 44
[1994]: 161-183). Carter os atríbui ao período persa (The Emergence ofYehud in the Persian
Period, 266-267).
31. Ver a discussão de Smith-Christopher, A Bihlical Theology of Exile, 66.
32. Apud Smith-Christopher; ver M. Noth, History of Israel (TET), Londres, SCM,
1958, 296.
33. Dandamaev, Social Stratifícation in Babylonia, Seventh to Fourth Centuries BC,
Acta Antiqua 22 (1974) 437; Free Hired Labor in Babylonia duríng the Sixth through

198
A cicrita nu exílio

A respeito do período exílico, uma fonte muito citada, porém em grande me­
dida irrelevante, é o Arquivo Murasu^^. Este arquivo é um importante corpus
do final do século V a.Q, composto de documentos legais da cidade de Nipur,
na região central da Mesopotâmia. O arquivo contém registros de transações
comerciais da família Murasu ou de seus empregados. Esses textos, escritos
em aramaico e acádio, mencionam cerca de oitenta nomes pessoais distinta­
mente judeus (Sabetai, Minyamin, Hagai). Supõe-se que essas pessoas eram
descendentes dos exdados judeus que ainda viviam na Babilônia no final do
século V a.C. (isto é, na época de Esdras e Neemias). Pouca coisa parece dis-
tingui-los das demais pessoas mencionadas no arquivo^^, mas esses textos são
tão posteriores ao exílio que são relevantes somente para a compreensão
do domínio persa na região do médio Eufrates no final do séctdo V.
O império neobabilônico exigiu a deportação em massa da população
para seus programas de construções. A pesquisa arqueológica de Robert
McCormick Adam na região central da Mesopotâmia descobriu pronuncia­
dos aumentos populacionais na área. Ele concluiu que tais aumentos eram
devidos a transferências involuntárias em massa resultantes das conquistas
babilônicas. Aparentemente, essas transferências incluíram três deportações
separadas de judeus para a Babüônia (Jr 52,28-30]. Os babilônios parecem
ter tentado reabilitar essa região desolada povoando-a com seus cativos.
Agora, temos textos babilônicos que confirmam que pelo menos alguns
dos exilados judeus foram deportados para a região central do Eufrates^®.

Fourth Centuries BC, in Labor in the Ancient Near East (ed. M. PoweU, AOS, 68j, New
Haven, American Oriental Society, 1987, 271-279.
34. Apud, por exemplo, B. Oded, Judah and the Exile, in Israelite and Judean History
(ed. J. Hayes e M. Miller), Londres, SCM, 1977,483. Ver a discussão em Smith-Christopher,
A Bihlical Theology of Exile, 69-71.
35. Stolper, Murashú, the Archive of, in ABD, vol. 4,927-928. Ver ainda, M. D. Coogan,
West Semitic Persorud Nomes in The Murashú Documents (HSM 7), Missoula, Scholars,
1976; Stolper, Entepreneurs and Emptre. The Murashú Archive, the Murashú Firm, and Persian
Rule in Babylonia (Uitgaven van het Nederlands Historisch-Archaeologisch Instituut te
Istanbul 54), Leiden, Brill, 1985.
36. Ver F. Joannes e A. Lemaire, Trois tablettes cunéiformes a onomastique ouest-
sémitique (coUection Sh. Moussaiefí) (Pis. I-IQ, Transeuphrates 17 (1996) 27; ver a discussão
de Smith-Christopher, A Bihlical Theology of Exile, 68.

199
C o m o a BíSlia tornou-so um livro

As fontes babilônicas sugerem que esses exilados viviam juntos numa


“aldeia judia”. Eles não eram cidadãos do império; eles foram isolados num
tipo de campo de trabalho.
As descrições bíblicas do exílio dificilmente sugerem que a experiên­
cia foi benéfica. Smith-Chiistopher compüou o que ele chama de “lexi-
cografia do trauma” da literatura bíblica. Nela, ele aponta o uso frequente
de palavras como “grilhões” {mosera; N a 1,13; Is 52,2; Sl 107,14] e “cor­
rentes” (aziqqiym; N a 3,10; Is 45,14; Sl 149,8; Jr 40,1) para descrever o
exílio. Os termos correspondentes a aprisionamento e cativeiro torna­
ram-se metáforas para ele. Além disso, a escravidão no Egito tornou-se uma
metáfora histórica cada vez mais importante para a experiência dos exi­
lados da Babilônia^^. O desespero dos exilados é captado pelos salmistas.
No Salmo 137,1-4, por exemplo, lemos:

Às margens dos rios da Babilônia nós nos sentamos e ali choramos ao lembrar
de Sião. Nos salgueiros que ali havia dependuramos nossas citaras. Lá, nossos
captores nos pediam canções, e nossos opressores pediam alegria: “Cantai-
nos um canto de Siãol”. Como poderiamos entoar um canto de YHWH
numa terra estrangeira?

É dificil imaginar que a situação dos exilados não fosse melancólica.


Os salmos retratam os exüados como prisioneiros e escravos, atormenta­
dos por seus senhores. O Sahno 79 oferece uma imagem gráfica emotiva
acerca da experiência:

1 Ô Deus, as nações invadiram tua herança,


profanaram teu santo templo,
reduziram Jerusalém a ruínas.
2 Entregaram os cadáveres dos teus servos como alimento aos pássaros do céu,
a came dos teus fiéis, aos animais da terra.
3 Eles derramaram seu sangue como se fosse água em tomo de Jerusalém,
e ninguém os sepultou.

37. Ver, por exemplo, Y. Zakovitch, “And You Shaü Tell Your Son...": The Concept o
the Exodus in the Bible, Jerusalém, Magnes, 1991; S. Loewenstamm, The Evolutíon ofthe
Exodus Tradition [trad. do hebraico e ed.j, Jerusalém, Magnes, 1992.

200
A éscrita iio e\ilk'

4 Tomamo-nos um opróbrio para nossos vizinhos,


escarnecidos e aviltados por aqueles que nos rodeiam.
[...]
11 Que o gemido dos prisioneiros chegue a ti;
que teu grande poder salve os condenados à morte.

Do mesmo modo, todo o Livro das lamentações retrata a destruição


de Jerusalém e o trauma do exílio. Os exilados são descritos como estando
completamente desmoralizados:

Judá foi para o exilio em sofrimento e sob dura servidão;


ela habita entre as nações, e não encontra descanso.
Todos os seus perseguidores a alcançaram em meio ao seu desespero.
(Lm 1,3)

Meus olhos estão gastos de tanto chorar; reviram-se minhas entranhas;


Minha bÜe está derramada no chão ante a destruição de meu povo,
Pois crianças e bebês desfalecem nas ruas da cidade.
(Lm 2,11)

Por que nos esquecestes inteiramente?


Por que nos abandonastes por tanto tempo?
(Lm 5,20)

Os cinco capítulos do Livro das Lamentações são uma extensa nênia


litúrgica lastimando o destino de Jerusalém e de seu povo após a destrui­
ção pela Babilônia^®. Essa literatura deve ser entendida como um reflexo
do páthos do povo traumatizado pelo exílio e pela destruição. Muitos
desses cânticos sobre o desespero de um povo foram provavelmente com­
postos durante o exílio. Mas cânticos não requerem escribas. Em que mo­
mento essa nênia e outros salmos foram efetivamente registrados por
escrito é outra questão. É impossível dizer. Eles não exigiam necessaria­
mente uma pena e um pergaminho. Esses cânticos requeriam apenas o
páthos de um povo.

38. Ver D. Hillers, Lamentations, Book of, ABD, vol. 4,137-141.

201
Como a Riblia tornou-so um li^To

A família real e os arquivos reais no exílio

A poesia bíblica capta muitas expressões genuínas do período exílico.


O que está faltando, no entanto, é um relato sistemático em prosa do pe­
ríodo exílico^®. A condição social dos exüados simplesmente não encoraja
narrativas sistemáticas em prosa. Em vez disso, temos a literatura oral. Temos
a poesia dos salmos e os profetas que descrevem a situação dos exilados
— “Se eu te esquecer, Jerusalém, que a minha mão direita seque” (SI 137,5).
Há três relatos sucintos em prosa que tratam de aspectos do exílio e indi-
viduos no exílio. O primeiro deles, anteriormente mencionado, é a breve
história de Godolias, que foi nomeado pelos babilônios como governante
da região após a destruição de Jerusalém e assassinado poucos meses depois.
O segundo é o relato sumário do rei Joiaquin no final do Livro dos Reis
(com um relato paralelo quase exato no final do Livro de Jeremias). Por
fim, há a história dos profetas Jeremias e Ezequiel, ligada ao destino do rei
Joiaquin na Babilônia. D e onde provém essa hteratura? Como e por que
foi preservada?
A figura crucial para responder a perguntas sobre o que, como e por
que a respeito da escrita durante o exílio é o rei Joiaquin. O Livro dos Reis
termina com um curto relato em prosa sobre o destino dos últimos reis de
Judá. O destino do rei Joiaquin na Babilônia é central para essa narrativa.
Com efeito, o Livro dos Reis termina com a libertação do rei da prisão. A
questões é: por quê? Por que o destino do rei Joiaquin, prisioneiro na Babi­
lônia por trinta e sete anos antes de ser libertado em 550 a.C., é tão impor­
tante para essa narrativa do exílio? A resposta óbvia é que esse mesmo rei
Joiaquin estava por trás da redação da Bíblia durante o exílio.
Quem é esse Joiaquin, e como ele figura na escrita da Bíblia? As res­
postas a essas questões começam com uma compreensão de algumas das

39. Essa ausência não passou despercebida em todos os estudiosos. Thomas Thompson
por exemplo, observa: “Não temos, de fato, nenhuma narrativa sobre o exílio na Bíblia” (The
Exile in History and Myth, in Leading Captivity Captive, 111]. Ele observa o contraste com
períodos anteriores e posteriores. Temos narrativas da história precedente de Israel (nos li­
vros de Josué, dos Juizes, de Samuel e dos Reis] e do período pós-exíUco (nos livros de Esdras
e Neemias). Entretanto, Thompson chega à estranha conclusão de que não houve exílio. Essa
conclusão pode ser descartada diante das substanciais evidências arqueológicas e literárias.

202
A escrita no exílio

intrigas políticas do final da monarquia judia que perduraram no exílio.


A oposição de Josias ao faraó Necao, quando este marcha para a bata­
lha contra os babüônios em Carquemis em 609 a.C., alia Josias ao rei
Nabucodonosor (11) da BabÜônia. Depois que o faraó Necao mata o rei Josias
em Meguido em 609 a.C., o “povo da terra” coloca Joacaz no trono de
Jerusalém (2Rs 23,30). Joacaz, filho de Josias, que foi ele próprio posto
no trono por aclamação popular, aparentemente partilhava os sentimen­
tos antiegípcios de seu pai. Como resultado disso, os egípcios substituem
Joacaz por Joaquim. Joacaz é levado ao Egito, onde morre, aparentemente
sob prisão domiciliar (2Rs 23,33-34). Joaquim permanece vassalo leal do
Egito, estabelecendo uma rivalidade entre o Egito e a Babilônia pelo con­
trole do trono judeu.
Joaquim reinou por onze anos em Jerusalém, de 608 a 597 a.C. Sua
lealdade altemou-se entre o Egito e a Babilônia. Ele começou como um
vassalo leal dos egípcios, que o puseram no trono. Depois que os egípcios
perderam uma batalha em Carquemis contra os babilônios em 605 a.C.,
Joaquim transferiu sua lealdade aos babilônios. Mais tarde, durante seu
reinado, Joaquim rebelou-se contra os babilônios com o apoio dos egípcios.
Mas Joaquim morreu pouco antes do cerco babilônico a Jerusalém, em 597
a.C., deix;ando seu filho, Joiaquin, como rei de Judá enquanto o exército ba­
bilônico aproximava-se das portas de Jerusalém. De acordo com o Livro dos
Reis, “o rei Joiaquin de Judá rendeu-se ao rei da Babilônia, juntamente com
sua mãe, seus servos, seus oficiais e as autoridades do palácio” (2Rs 24,12).
Os babilônios puseram no trono de Jerusalém o tio de Joiaquin, Sedecias,
enquanto o rei, a família real, seus servos e suas autoridades acompanha­
ram Joiaquin no cativeiro na Babhônia. [Lembremos que o avô de Joiaquin,
Joacaz, aparentemente ainda era prisioneiro no Egito.) O Livro dos Reis
termina relatando ao leitor a libertação de Joiaquin [2Rs 25,27-30);

No ano trinta e sete do exílio de Joiaquin, rei de Judá, no dia vinte e sete
do décimo segundo mês, Evil-Merodac, rei da Babilônia, no ano em que
subiu ao trono, libertou do cárcere Joiaquin, rei de Judá. Falou-lhe com
amabilidade e conferiu-lhe \xm trono acima dos tronos dos demais reis que
estavam com ele na Babilônia. Assim, Joiaquin despiu as vestes de prisioneiro.
Por todos os dias de sua vida, ele passou a fazer as refeições na presença do
rei. Um sustento regular era-lhe concedido pelo rei todos os dias, por toda
a sua vida.

203
Como a Bíblia tornoii-so um

Figura 8.1. Tábua em escrita cuneiforme (Babylon 28178)


listando quotas para Joiaquin (seguindo Weidner)

O Livro dos Reis, claramente, considerava Joiaquin o verdadeiro rei de


Judá. Mas, aparentemente, havia três reis vivosl Joiaquin estava exilado
na Babilônia, Joacaz estava exilado no Egito e Sedecias era rei no trono
de Jerusalém. A situação ofuscaria a preservação e a redação da literatura
bíblica durante o século VI a.C , pois a família real de Joiaquin e os escribas
do palácio moldariam a compilação, a edição, a redação e a preservação da
literatura bíblica.
O relato bíblico do destino de Joiaquin e da família real foi essencial­
mente corroborado por um arquivo composto de 290 tábuas de cerâmicas
escavado na década de 1930 (ver a figura 8.1)'*°. Esses textos, inscritos em

40. E. Weider, Jojachin, Kõnig von Judah, in Mélanges Syríens Offerts a Aí. René Dussaud
vol. 2, Paris, Geuthner, 1939, 923-928; W. F. Albrigbt, King Jeboiachin in Exile, BA 5
(1942) 49-55. Os arquivos neobabilônicos, incluindo esse arquivo em particular, são dis­
cutidos por O. Pedersén, Archives and Lihraries in the Ancient Near east, 1500-300 B.C.,
Bethesda, MD, CDL Press, 1998,183-184.

204
A escrita no i \ilio

caracteres cuneiformes, foram encontrados nas covas sob um dos prédios


públicos próximos da famosa Porta de Istar, que conduzia à cidade da Ba­
bilônia. Eles datam dos anos de 595 a 570 a.C. e listam pagamentos de
rações em óleo e cevada a prisioneiros políticos proeminentes das campanhas
militares de Nabucodonosor. Mais importante para nós é o registro de pa­
gamentos para “Joiaquin, rei de Judá” (ou, como se transcreve da escrita
cuneiforme acádia, ana 'ya’ukinu sarri sa ‘^"yahudu). Esses textos conti­
nuam a qualificar Joiaquin como “o rei de Judá”. Ele era tratado como realeza,
ainda que estivesse sob prisão domiciliar dos babilônios. As rações são for­
necidas a Joiaquin, aos príncipes de Judá e ao séquito judeu. Uma lista
representativa [figura 8.1} pode ser traduzida da seguinte maneira;

6 litros'" [de óleo) para Joiaquin, rei da terra de Judá


2 Vi litros para os 5 príncipes de Judá
4 litros para os 8 homens de Judá

Esses indivíduos recebem rações mensais em óleo, que era uma merca­
doria de troca que podia ser intercambiada. Ela detinha a mesma função do
dinheiro. O mais importante é que o rei de Judá recebe uma quantidade de
óleo substancialmente maior que a quota-padrão, que provavelmente re­
flete tanto sua posição relativa como o tamanho de sua casa. Além disso,
os príncipes judeus e o séquito real recebem a quota-padrão, que, em todas
as listas, parece ser de meio litro de óleo por mês. De acordo com as listas
babilônicas, os cinco jovens príncipes judeus têm um criado chamado
Keniah, que recebia os suprimentos por eles. O séquito real inclui “8 homens
de Judá”. Presumivelmente, alguns deles eram os servos, oficiais e autori­
dades que se renderam a Nabucodonosor e foram postos em prisão do­
miciliar junto com Joiaquin. Esse séquito real pode ter vivido na cidadela

41. A quantia exata da ração recebida por Joiaquin é traduzida de maneiras diversas
Weidner originalmente transcreveu o texto como Vi PI {baii), o que representaria 3 sila
(= 3 litros) de acordo com o sistema de medidas neobabdonico. Oppenheim (ANET, p. 205)
corretamente lê o texto como 1 PI, mas usa o padrão babilônico antigo (1 ban = 1 0 silo).
Baseando-me na obra de PoweU sobre as medidas babilônicas, assumo que 1 ban = 6 sila
(cf. Powell, Masse und Gewichte, in Realexikon der AssyriologLe und Vorderasiatischen
Archãolo^e, vol. 7, Berlim, 1987-1990,494).

205
Como a BíWía tornou-sc iim livro

Figura 8.2. A casa da família real judia [seta) na Babilônia


[adaptado do desenho original por Vic MitcheU e publicado por A. Millard,
Treasures Jrotn Bihle Times, Herts, Inglaterra, Lion PubUsbing, 1985, 135)

meridional da Babilônia (ver a figura 8.2}''^. Joiaquin provavelmente atuou


também como conselheiro do rei Nabucodonosor, fornecendo, quando so­
licitado, informações sobre essa região remota do Império Babilônico. É
a partir dessa fariiília real, e do apoio que lhe é proporcionado na corte
babilônica, que a preservação e a redação da literatura bíblica prossegui­
ram, ainda que de maneira fimitada, no período exílico.
O destino de Joiaquin é o tema central do final do Livro dos Reis. Os
capítulos 24 e 25 do Segundo Livro dos Reis são, essencialmente, um apên­
dice do Livro dos Reis. Essa conclusão concentra-se no destino dos dois
últimos reis judeus — Joiaquin e Sedecias. Ela começa com o exílio de
Joiaquin na Babilônia. Sedecias, tio de Joiaquin, é então entronado pelos
babilônios como um rei fantoche, mas se rebela contra os babilônios e tem
um destino sangrento. Os babilônios “mataram os filhos de Sedecias diante

42. Conforme sugerido por J. Berridge, Jehoiachin, in ABD, vol. 3, 661-663; ve


também Albright, King Joiachin in Exile, 49-55.

206
A ehcrita no cxiliii

dele, depois vazaram-lhe os oUios; acorrentaram-no e levaram-no para a


Babilônia” (2Rs 25,7). Joiaquin, em contraposição, havia se rendido aos ba-
büônios. Como resultado disso, segundo o último versíctolo do Livro dos Reis,
esse rei de Judá divide a mesa dos reis da Babilônia. Quem está contando
essa história? Por que está sendo contada? Esse apêndice ao Livro dos Reis
justifica a aparente covardia de Joiaquin. Em vez de fazer frente aos babi­
lônios, como seu pai e seu tio, ele se rende e recebe o tratamento real na
Babilônia. Por fim, sua liberdade é restituída.
A narrativa histórica no Livro dos Reis concluía-se, originalmente,
com o relato do rei Josias. Estudiosos determinaram isto com base em vá­
rias considerações. Em primeiro lugar, a estrutura narrativa rígida do livro,
com fórmulas de ascensão e de mortes/funerais, modifica-se antes da morte
de Josias. Aparentemente, a morte de Josias não fazia parte da narrativa
original. Quando o apêndice foi acrescentado, completando a narrativa da
monarquia e relatando o destino de Joiaquin, o novo redator usa uma es­
trutura narrativa diferente. Isso é adicionalmente corroborado pelo fato
de que a profetisa Hulda, uma figura central que apoia as reformas de
Josias no Livro dos Reis, havia profetizado que Josias morrería pacifica­
mente (2Rs 22,19-20). Josias, porém, morre em batalha (2Rs 23,29). Dò
ponto de vista da narrativa, a morte de Josias perturba a estrutura rígida
da inserção das notícias de morte e sepultamento que caracterizavam o
Livro dos Reis até esse ponto da narrativa. Qual é a contribuição do apên­
dice? O novo encerramento do Livro dos Reis, essencialmente, absolve
Joiaquin de ter feito algo errado, justifica sua rendição aos babilônios e
confirma sua posição de rei legítimo de Judá, mesmo ao jantar no palácio
da Babilônia.
Um aspecto curioso do final do Livro dos Reis é sua relação com o
Livro de Jeremias. A passagem 2Rs 24,18-25,21 é em grande medida para­
lela a Jeremias 52. No comentário de Modechai Cogan e Hayim Tadmor
sobre o Livro dos Reis, os autores observam que “a avaliação deuteronômi-
ca de Joaquim (Jr 52,2) e a maneira como é apresentada a punição pelo
exílio [Jr 52,3.7) são típicas do Livro dos Reis, e não do Livro de Jeremias’"*^.
Isso ainda não responde à questão do porquê. Por que Jeremias 52 copia
em grande medida o final do Livro dos Reis?

43. M. Cogan e H. Tadmor, II Kings, Nova York, Doubleday, 1988, 320.

207
Como a Bihliii tornou-Sf um livr

Uma das histórias mais estranhas na composição da literatura bibHca é


o Livro de Jeremias. Temos, essencialmente, dois "Livros de Jeremias” dife­
rentes. Um Livro de Jeremias [não o Livro de Jeremias canônico] estava
terminado antes do terceiro exílio babilônico dos judeus em 582 a.C. Este
livro é efetivamente mencionado no próprio livro canônico de Jeremias:
“Farei cair sobre esta terra todas as palavras que falei contra ela, tudo o
que está escrito neste pergaminho, o que Jeremias profetizou contra todas
as nações” [Jr 25,13). Esse pergaminho de Jeremias teve então dois destinos
diferentes. Um livro [mais curto, não canônico] de Jeremias foi aparente­
mente editado no Egito e posteriormente tomou-se a base da tradução
grega do Livro de Jeremias [conhecido como a “Septuaginta”, ou LX X ].
Não trataremos aqui dessa versão não canônica. O livro mais longo de
Jeremias, canônico, foi editado na Babilônia sob os auspícios da corte real
judia no exílio.
A edição do Livro de Jeremias pode ser instmtiva para a compreensão
da composição da literatura bíblica durante o exílio'*''. Por essa razão, convém
que nos aprofundemos em algumas observações técnicas. Comecemos exa­
minando a conformação do Livro de Jeremias representada na maior parte
das traduções da Bíblia para a língua inglesa. Essa versão é cerca de um sexto
mais longa que a versão'de Jeremias. Os versículos apresentados nesse tex­
to massorético hebraico — porém ausentes na Septuaginta grega — in­
cluem: Jr 2,1; 7,1; 8,11-12; 10,6-8; 11,7; 17,1-4; 25,13b-14; 27,1.7.13.17.21;
29,6.16-20; 30,10-11.22; 33,14-26; 39,4-13 [//Jr 52,4-16]; 46,1; 49,6.
A ordenação do texto hebraico [TM] e do texto grego [LX X ] é em grande
parte a mesma, até o capítulo 25. Nesse ponto, o texto grego é organizado
de maneira significativamente diferente. A tabela 8.1 resume as diferenças de
organização entre os dois textos.
O fato de que, em ambas as versões, os capítulos 1-25 são idênticos
em sua ordem sugere que essa organização da composição já estava esta­
belecida quando a segunda metade do livro começou a ser editada após o
exílio. Já na segunda metade do livro, a ordenação é dramaticamente dife­
rente, embora o conteúdo dos oráculos seja, em grande medida, idêntico.

44. Ver E. Tov, The Literary History of the Book of Jeremiah in Light of Its Textua
History, in Empirical Models for Biblical Criticism (ed. I Tigay), Philadelphia, University of
Pennsylvania Press, 1985, 211-238.

208
A f S i^ m a iio L x íi in

Tabela 8.1. Difa"enças entre o texto massorético hebraico (TM] e a Septuaginta grega
(L X X ) de Jeremias

Hebraico (TM) Grego (LX X )

1-25,13a 1-25,13a
25,13b-38 32,13b-38
26-45 33-51
46 26
47 29
48 31
49,1-6 30,17-21/22
49,7-22 30,1-16
49,23-27 30,29-33
49,28-33 , 30,23-28
49,34-39 25,14-20
50-51 Babilônia 27-28
52 - 52

Um a vez que o texto dos oráculos é praticamente o mesmo tanto no texto


hebraico como no grego, ele já devia ter sido redigido, mas não organizado
numa composição literária completa quando os dois “livros” de Jeremias
assumiram seus dois caminhos separados. O s acréscimos na versão mais
longa [e canônica) de Jeremias, portanto, seriam instrutivos a respeito do
contexto da composição.
Na conclusão do Livro dos Reis, retrata-se Joiaquin acatando, em essên­
cia, o conselho de Jeremias. D e acordo com o Livro de Jeremias, o profeta
havia previsto a destruição final de Jerusalém e de Judá pelos babilônios
(Jr 21). Ele alertou que a destruição era inevitável devido aos pecados do
rei Manassés:

Disse-me YHWH: “Mesmo que Moisés e Samuel se postassem diante de


mim, nem assim eu seria favorável a esse povo. Retira-os de minha presença;
que vão emboral [... ] farei deles um exemplo aterrador para todos os reinos
da terra por causa do que Manassés, rei de Judá, filho de Ezequias, fez em
Jerusalém (Jr 15,1.4).

209
Como a Bíblia tornou-st' um 1í \ t o

Essa explicação para o exílio de Judá é partilhada pelo Livro de Jeremias


e pelo apêndice do Livro dos Reis. Ela é esclarecida logo no início do apên­
dice do Livro dos Reis: “Isso sucedeu a Judá por ordem de YHWH, para
eliminá-los de sua vista, por causa dos pecados de Manasses e de tudo o
que ele cometera” (2Rs 24,3)“'^. Além disso, apresenta-se uma explanação
dos pecados de Manassés na conclusão da narrativa em prosa do reinado de
Josias para explicar por que as maravilhosas reformas de Josias não foram
capazes de evitar o desastre do exílio babilônico (2Rs 23,26)'*®. Alguém,
aparentemente, estava interessado em negar a ciüpabílidade dos últimos reis
de Judá pelo exího. Quem poderia ser? A única resposta lógica é: a corte
real de Joiaquin na Babilônia. Eles não somente tinham interesse nisso
como também tinham os meios para redigir e preservar essa Üteratura.
O profeta Jeremias aparentemente apoiava a família real no exílio mes­
mo antes da queda de Jerusalém. De acordo com Jeremias 29, durante o
reinado de Sedecias (antes da destruição final de Jerusalém), o profeta es­
creveu uma carta aos exilados na Babilônia encorajando-os: “Buscai o bem da
cidade à qual vos en\4ei em exílio, e orai a YHWH por ela, pois em seu bem
encontrareis o vosso bem” (Jr 29,7). Jeremias é apresentando apoiando a fa-
míha real exilada: “Sei bem os planos que reservo a vós — diz YHWH —,
planos para o vosso bem e não para sofrimento: dar-vos um futuro de es­
perança” (Jr 29,11). Em Jeremias 29, ao comparar-se o texto hebraico com
o texto grego, torna-se evidente um acréscimo interpretativo babilônico
(w. 16-20) à profecia de Jeremias. Os versículos 16-20 estão ausentes no
texto grego antigo, refletindo um texto hebraico anterior e mais curto.
Esses versículos devem ter sido acrescentados quando o pergaminho de
Jeremias foi editado na BabÜônia para a famíha real exilada. Eles refletem
um acréscimo interpretativo que contextualizava a profecia de Jeremias
para a famíha real na Babilônia, criticando seus rivais que permaneceram
em Jerusalém.

45. Naturalmente, essa explanação é também incorporada na descrição do remado de


Manassés por meio de uma interpolação posterior [2Rs 21,11-17). Ver artigo de minha
autoria: Schniedewind, History and Interpretation: The Religion of Ahab and Manasseh in
the Book of Kings, CBQ 55 [1993) 649-661.
46. Sobre o tema dos pecados de Manassés na redação exílica do Livro dos Reis, ver
Schniedewind, History and Interpretation, 649-661.

210
A escrita jio e.xiliu

[Acréscimo babilônico] '^Assim diz YHWH a respeito do rei que ocupa o trono
de Davi e a respeito do povo que vive nesta cidade, vossos irmãos que não
foram convosco para o exílio; '^assim diz YHWH dos exércitos; Enviarei contra
eles a espada, a fome e a peste, e farei com eles o que se faz com figos estra­
gados, tão ruins que não podem ser comidos. *®Persegui-los-ei com a espada,
a fome e a peste, e farei deles um exemplo aterrador para todos os reinos
da terra — serão alvo de maldição, de horror e de vaia, e de desprezo em
todas as nações para onde os conduzi, *®pois não acataram minhas palavras,
diz YHWH, quando eu incessantemente vos enviei meus servos, os profetas,
mas eles não ouviam, diz YHWH. ^°Mas, agora, todos vós, exilados que eu
expulsei de Jerusalém para a Babilônia, escutai a palavra de YHWH:

[Oráculo original] ^^Assim diz YHWH dos exércitos, Deus de Israel, a respeito
de Acab, filho de Colias, e de Sedecias, filho Maasias, que vos profetizam uma
mentira em meu nome; entregá-los-ei nas mãos do rei Nabucodonosor da
Babilônia, e ele os matará diante de vossos olhos.

O acréscimo não só está claro quando se compara o texto grego antigo


com o texto massorético hebraico, como também é marcado pela repetição
da expressão "assim diz YHWH a respeito de” [em itálico na citação), uma
técnica editorial comum dos escritores bíblicosd^. O ataque desse acréscimo
pretende condenar o aspirante real [isto é, Sedecias) que permanecera no
trono de Davi em Jerusalém. A narrativa básica original [v. 21) era uma
crítica aos adversários políticos pessoais de Jeremias. Nesse momento
particular no texto, com efeito. Jeremias vinculou o exílio do povo judeu
às atividades desses falsos profetas [e não aos reis Manassés ou Sedecias).
Por essa razão, parece provável que o Livro de Jeremias [como agora o co­
nhecemos por meio da maioria das traduções baseadas no texto massoré­
tico) tenha recebido sua forma final durante o exílio e sob os auspícios
gerais da corte real exilada de Joiaquin.
Aparentemente, o profeta Ezequiel estava, junto com Joiaquin, entre os
que foram exilados em 597 a.C. [c£ Ez 1,2; 2Rs 24,15). Para infelicidade
de Ezequiel, ele não foi levado para a Babilônia para viver no palácio real

47. Sobre o uso da repetição como ferramenta editorial, ver M. Fishbane, Bihlical
Interpretation inAncientIsrael, Oxford, Oxford University Press, 1985,44-65, e a discussão
relacionada no capítulo 1.

211
Como a Bíblia tornnu-si- um livro

como Joiaquin e a família real. Ezequiel foi posto, jxintamente com os outros
exilados, num campo de trabalho às margens do canal de Cobar, ao norte da
Babilônia. O Livro de Ezequiel partilha muitas coisas com o Livro de Jeremias.
De modo mais importante, Ezequiel reconhece a legitimidade de Joiaquin
como o rei de Judá. Ahnhando-se com isso, desde o princípio seu livro é
datado de acordo com os anos de remado de Joiaquin, e não de Sedecias
[Ez 1,2). Alguns sugeriram que Ezequiel pode ter tido a esperança de que o
rei aprisionado um dia voltasse a reinar^®. Mas tais fórmulas de datação fa­
zem parte da estrutura editorial; por conseguinte, refletem as visões dos
editores, ou seja, a família real judia exilada na Babilônia — visões de sua
própria legitimidade No Livro de Ezequiel, o ministério do profeta é datado
principalmente entre 593 e 585 a.C. — ou seja, depois do primeiro exílio
(em 597 a.C ), mas antes do terceiro exílio (em 581 a.C ). Como seu con­
temporâneo Jeremias, Ezequiel aconselha a submissão aos babÜônios (Ez
12,1-15; 17,1-22; 21,18-32). O exílio era inevitável. Ademais, o regente real
em Jerusalém, Sedecias, é insultado por Ezequiel como “infame e perverso
príncipe de Israel” (Ez 21,30). Ezequiel, aparentemente, também atribui o
exílio aos pecados de Manassés (como vimos em Jeremias e na conclusão
dos Livro dos Reis), embora isso não seja dito de maneira tão direta'*^. Tudo
isso aponta, novamente, p'ara o papel da família real judia exilada na edição
e na preservação da literatura que (1) apoiava suas reivindicações de legi­
timidade real, (2) absolvia Joiaquin de qualquer responsabilidade direta
pelos exílios babüônicos e (3) aconselhava a submissão aos babilônios.

A contínua influência da famüia de Joiaquin

Nas listas de rações babÜônicas, são proeminentes cinco príncipes de Judá,


os filhos de Joiaquin. As linhagens da família real judia na estirpe de Joiaquin
são repetidamente enumeradas nos textos biblicos (por exemplo, Esd 3,2.8;
5,2; N e 12,1; Ag 1,1.12; IC r 3,17)^°. De acordo com essas genealogias

48. Ver, por exemplo, L. Boadt, Ezekiel, Book of, in ABD, vol. 2, 711-722.
49. Morton Smith destacou que Ezequiel 8 parece referir-se aos pecados de Manassés;
Smith,TheVeracityofEzekiel, theSinsofManasseh, andJeremiah, Zí41V87 [1975] 11-16.
50. Essas genealogias não são destituidas de discrepâncias; ver M. Ben-Yashar, On the
Problem of Sheshbazzar and Zerubbabel, BethM 88 [1981] 46-56 [hebraico].

212
A escrita no rxilju

bíblicas, Joiaquin teve ao todo sete filhos, incluindo certo Salatiel, pai de
Zorobabel. Zorobabel veio a tomar-se uma figura importante no inicio
da restauração judia após a conquista persa do Império Babilônico em 539
a.C A contínua centrahdade da família real davídica de Joiaquin nos força a
reorganizar fundamentalmente o exílio. A centralidade e a influência da fa­
mília real continua desde o período exíhco propriamente dito até os primei­
ros anos de domínio persa no final do século VI a.C.
Pouco depois da conquista do Império Babilônico, Zorobabel promul­
gou um decreto para que os povos deportados retornassem às suas terras
de origem. Num texto persa conhecido como o Cilindro de Ciro, lê-se; “Eu
retmi todos os seus habitantes [exilados] e os devolvi às suas moradas.
[...] Que todos os deuses que estabelecí em seus centros sagrados roguem
diariamente a Bel e Nabu que minha vida seja longa e que intercedam por
mim”^b Ciro conquistou a estima dos exilados ao restituir seus templos
e suas terras ancestrais. Estudiosos há muito reconheceram que a última
parte do Livro de Isaías, capítulos 40-66, constitui um acréscimo ao corpus
original do livro. Esse acréscimo acata o pedido de Ciro, que é qualifica­
do, efetivamente, de “messias (‘ungido’), cuja mão direita eu tomei para
submeter as nações perante ele’’ (Is 45,1). Estudiosos debatem qual seria a
época precisa e os autores desses capítulos. No âmbito dos estudos críticos,
os capítulos são separados em “Segundo” Isaías (capítulos 40-55) e “Ter­
ceiro” Isaías (capítulos 56-66). O Segundo Isaías supostamente reflete
um contexto babilônico, enquanto o terceiro Isaías foi escrito em Jerusalém
após o retomo. Essa divisão está provavelmente ultrapassada. Tanto o “Se­
gundo” como o “Terceiro” Isaías devem ter sido redigidos com o apoio da
família real de Joiaquin, seja de fato na Babilônia seja depois que a família
enviou Zorobabel para restabelecer suas posições em Jerusalém.
Uma das maiores questões no debate entre estudiosos a respeito do
Livro de Isaías é a “autoria”. Entretanto, não há autores no Livro de Isaías.
A autoria nem sequer é um conceito suscitado no Uvro em si. A autoria é
um tema helenístico ou moderno; ela nunca foi importante na edição do
livro. Em vez de um autor, o Livro de Isaías tem o caráter do profeta Isaías
do século VTII. Embora o Livro de Isaías tenha tomado forma por meio da
edição na corte real durante o exílio, a edição inicial dos oráculos de Isaías

51. Tradução de Coogan, The Context of Scripture, vol. 2, 314-315.

213
Como a Btblia tornou-se um livro

começou no tempo de Ezequias, no final do século VIII a .C A força da


poesia de Isaías, combinado com seu apoio visionário à família real judia,
conferiu ao profeta uma voz duradoura que foi preservada e desenvolvida
na corte real judia ao longo dos séculos.
Com frequência entende-se que Isaías 61 reflete a voz de um discípulo
profético, o ‘Terceiro” Isaías. Isso parece consistir numa interpretação equi­
vocada do texto. Encontramos, nos versiculos 1-4, as famosas palavras:

O espírito de YHWH Deus está sobre mim,


pois YHWH me ungiu;
ele me enviou para trazer a boa nova aos oprimidos,
para restaurar os de coração alquebrado,
para antmciar a liberdade aos cativos
e para libertar os prisioneiros;
para anunciar o ano da graça de YHWH,
e o dia da vingança de nosso Deus;
para confortar todos os que pranteiam;
para consolar os aflitos de Sião -
dar-lhes uma grinalda em vez de cinzas,
a imtura da alegria ein vez de luto,
o manto da exaltação em vez de um espírito abatido.
Eles serão chamados de carvalhos da justiça,
o cultivo de YHWH, mostra de sua glória.
Eles reedificarão as antigas ruínas,
reerguerão o que foi derrubado;
reconstruirão as cidades destruídas,
as devastações de muitas gerações.

Essas palavras, porém, não se referem a um profeta. Em outros pontos


da Bíblia hebraica, o espírito recai sobre líderes (usualmente, não sobre
profetas), especialmente quando estão prestes a assumir suas funções de
liderança (por exemplo, D t 34,9; Jz 3,10; 6,34; 11,29; 13,25; ISm 11,6).
A unção faz parte do ritual que marcava a investidura de um rei ou de um
sumo sacerdote. Os profetas, em contraposição, não têm uma função ins­
titucional na qual sejam empossados. O espirito recai sobre o rei “ungido”
(em hebraico, messiaK), de modo que o líder indicado possa desempenhar
os deveres reais, incluindo tratar de maneira humana os oprimidos, hbertar

214
A escriia no exílio

prisioneiros e reconstruir as antigas ruínas de Jerusalém. Tais seriam os


deveres de um rei justo. Essa descrição, portanto, era provavelmente enten­
dida como uma referência a \im dos príncipes exilados na Babilônia que
estava sendo chamado a restabelecer Jerusalém.
O Livro de Isaías termina defendendo a universalidade de Deus e
tentando marginalizar o templo (e, portanto, também os sacerdotes). O
último capítulo do “terceiro” Isaías começa da seguinte maneira:
Assim diz YHWH:

O céu é o meu trono e a terra é o apoio para os meus pés;


qual é a casa que construirieis para mim,
e qual seria meu lugar de repouso?
Minha mão fez tudo isso,
e tudo isso é meu, diz YHWH (Is 66,1-2).

O texto justifica uma relutância, por parte da família real, em destinar


todo o seu patrimônio à reconstrução do Templo de Jerusalém. Afinal, YHWH
era o Deus de todo o universo. O universo todo referia-se especificamente
à Babdônia, onde vivia a maior parte da família real judia (mesmo após o
decreto de retomo do rei persa, Cko)? Essa profecia universalista continuaria
a justificar a família real judia na Babilônia, ainda que a família real aparente­
mente houvesse estabelecido uma base novamente em Jerusalém. É notável
que o texto alude a um conhecido texto no antigo Israel — a promessa a
Davi em 2 SamueJ 7. Ali, num oráculo do profeta Natã, Deus questionou o
desejo de Davi de construir o Templo: “Tu construirás uma casa para eu
morar?” (2Sm 7,5). Isaías 66 desenvolve essa ideia sugerindo que não se
podería construir uma casa para YHWH, uma vez que ele habitava no céu.
E importante aqui reconhecer que essa alusão a 2 Samuel 7 reconhece uma
história central na cultura israelita. Não se trata simplesmente de uma refe­
rência emdita a um texto obscuro feita por um escriba instruído®^. Antes,
representa um diálogo vigente a respeito do Templo no interior da família
real judia, que começou com a alusão à conhecida história em 2 Samuel 7.

52. Em meu livro Society and the Promise to David, mostro que 2Sm 7 era um texto
“constitucional” no Antigo Israel. Ou seja, é um dos textos mais conhecidos e interpreta­
dos no corpus bíblico.

215
Como a Riblia tornou-se um livro

Outra alusão a 2 Samuel 7 encontra-se no livro atribuído ao profeta


Ageu. Em contraposição com Isaías 66,1-2, a referência permitiu uma críti­
ca velada à relutância da família real em reconstruir o Templo. O Livro de
Ageu começa da seguinte maneira: "Assim diz YHWH dos exércitos: Esta
gente diz que ainda não chegou o momento de reconstruir a Casa de YHWH.
Então, a palavra de YHWH veio por intermédio de Ageu, o profeta: ‘Será
este o momento para habitardes em vossas casas revestidas de lambris, en­
quanto esta casa está em ruínas?’” (Ag 1,2-4). Embora a profecia, superfi-
cialmente, dirija-se à “gente”, quem morava numa casa revestida de lambris
seria 0 governador Zorobabel, e não o povo. Zorobabel era um descendente
de Joiaquin e da dinastia real davídica. Sua relutância em construir o templo
contrasta-se diretamente com o desejo do rei Davi de fazê-lo. A narrativa
sobre a construção do templo em 2 Samuel 7 começa com Davi dizendo ao
profeta Natã: “Vê: eu resido num palácio de cedro, enquanto a arca de Deus
está alojada numa tendal”. O próprio Davi se vê residindo numa casa luxuosa
e é impehdo a construir o Templo. Zorobabel está vivendo numa casa refi­
nada, enquanto o Templo está em ruínas; todavia, ele aparentemente não
pensa que tenha chegado o momento de construir o templo.
A narrativa em Esdras 1-6 conta a história do momento inicial do
retomo da família real jiídia^^. Essa narrativa em prosa do princípio do pe­
ríodo pós-exílico dá prosseguimento à história da família real judia, mas
atribui um papel cada vez mais importante aos sacerdotes. Os sacerdotes
ficaram ao lado de Zorobabel na construção do Templo. Por fim, o Templo
reconstmído marginalizará a família real na pohtica de Jemsalém nos pe­
ríodo pós-exílico, quando os sacerdotes se tornarem os líderes da comuni­
dade judia do Segundo Templo. O édito de retomo de Ciro é personali­
zado para os judeus em Esdras 1,1-4:

53. Embora haja consenso acerca de ser uma narrativa em prosa no início do período
pós-exilico, Esdras 1-6 foi incorporado numa composição em narrativa inteiramente dife­
rente e posterior. Os estudiosos dividiram-se acerca da relação de Esdras 1-6 com a com­
posição do Livro das Crônicas, com Esd 1-2 grego e com o livro canônico de Esdras e
Neemias; para algumas concepções, ver D. N. Freedman,The Chronicler’s Purpose, CBQ 23
(1961] 436-442; F. M. Cross, A Reconstruction of the Judean Restoration, JBL 94 (1975)
4-18; T. Eskenazi,The Chronicler and the Composition of 1 Esdras, JBL 48 (1986) 39-61;
R; Klein, Chronicles, the Book of, in ÁBD, vol. 1, 992-1.002.

216
A escrita no cxiho

No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra de


YHWH pronunciada pela boca de Jeremias, YHWH moveu o espírito de Ciro,
rei da Pérsia, para que enviasse um arauto por todo o seu reino, e também
que declarasse por escrito em um decreto: "Assim fala Ciro, rei da Pérsia;
YHWH, Deus do céu, concedeu-me todos os reinos da terra e encarregou-me
de construir para ele uma casa em Jerusalém, na terra de Judá. Quem dentre
vós fizer parte desse povo — Deus esteja convoscol — tem permissão para
subir a Jerusalém e reconstruir a casa de YHWH, Deus de Israel — ele é o
Deus que está em Jerusalém. E que todos os sobreviventes, onde quer que
residam, recebam do povo do lugar prata e ouro, bens e animais, além de
donativos voluntários para a casa de Deus em Jerusalém”.

A promessa de restauração é descrita ctimprindo a profecia de Jeremias


— o profeta favorito da família real.
O regente real Zorobabel lidera um contingente de exilados de volta
à província persa de lehud (Esd 2,1-2]. Vale observar que Zorobabel é um
nome muito comum na Bíblia, que significa “semente da Babilônia”. Outro
membro proeminente da família real, Sasabassar, também tem um nome
babilônico; ele é listado como o primeiro governador de lehud no Livro
de Esdras [Esd 1,8; 5,14; c£ IC r 3,18]^"*. Esses nomes babilônicos prova­
velmente refletem o vínculo íntimo e talvez até afetivo da família real Judia
com a cidade da BabÜônia. Zorobabel, indicado governador por Ciro, o novo
rei da Pérsia, começa a reconstruir a cidade de Jerusalém, seu Templo, e
a vida judia na terra:

Josué, filho de Josedec, com seus irmãos sacerdotes e Zorobabel, filho de


Salatiel, com seus irmãos, começaram a construir o altar do Deus de Israel,
nele oferecer holocaustos, conforme prescrito na lei de Moisés, o homem de
Deus. [...] Celebraram a festa das tendas, conforme está prescrito, e ofere­
ceram os holocaustos diários conforme o número determinado para cada dia.
Além disso, ofereceram o holocausto perpétuo, apresentaram as oferendas
da lua nova e de todas as festas sagradas de YHWH, e as de todos os que
faziam oferendas voluntárias a YHWH. Desde o primeiro dia do sétimo mês.

54. Ver a discussão de C. Meyers e E. Meyers, Haggai, Zechariah 1-8 (Anchor Bible
Garden City, NY, Doubleday, 1987, 9-15.

217
Como a Bíblia tornou-se um livro

começaram a oferecer holocaustos a YHWH. Mas as fundações do templo


de YHWH ainda não estavam assentadas. [... ] No segundo ano depois de sua
chegada na casa de Deus em Jerusalém, no segundo mês, Zorobabel, filho
de Salatiel, e Josué, filho de Josedec, deram início aos trabalhos, junto com
o resto de seu povo, os sacerdotes e os levitas e todos os que retornaram do
cativeiro para Jerusalém (Esd 3,2-8].

Zorobabel, representando a família real judia exilada, regressa a Jerusalém.


É interessante, contudo, que o único membro da família real judia mencio­
nado como retomando da Babilônia seja Zorobabel. Há extensas listas de
pessoas que regressam no Livro de Esdras, mas não há indicação, depois
de Zorobabel, de que a família real judia tenha retomado a Jemsalém.
A situação em Jerusalém no início do período persa (final do século VI
a.C ] era sombria. Não havia grandes cidades na região montanhosa central.
A população nas vüas e aldeias havia decrescido em até oitenta e cinco por
cento durante o século VI. Os persas definiram fronteiras muito estreitas
para a província que denominavam “lehud” (ou Judá]^^. A província estava
inteiramente confinada a montes acidentados e era mais adequada à agri­
cultura de subsistência e ao pastoreio. O acesso a rotas de comércio era
dificil. A população da área havia diminuído em razão das invasões babilô-
nicas e do subsequente declínio econômico. Zorobabel deixara o luxo da
Babilônia, onde vivera no complexo da cidadela real, para retomar a uma
região atrasada às margens do império. Embora ele aparentemente tenha
conseguido construir para si uma “casa revestida com lambris”, a situação
econômica não se recuperaria facilmente. O profeta Ageu (ca. 520 a.C ] fala
sobre a situação: “Semeastes tanto, e colhestes pouco; comeis, mas nunca
ficais saciados; bebeis, mas nunca ficais cheios; vestis vossos trajes, mas
ninguém está aquecido, e vós que recebeis salários, recebei-os para pô-los
numa sacola furada (Ag 1,6]. Ageu atribui a tais condições a falta de leal­
dade dos que retomaram, mas, na verdade, a situação econômica não pro­
movia a prosperidade. Tanto as investigações arqueológicas como as fontes
hterárias sugerem que a crise econômica estendeu-se consideravelmente
no século V a.C.^®.

55. Ver Carter, The Emergence ofYehiid in the Persian Perios, 75-113.
56. Ver, por exemplo, Ne 1,3; 2,3; 5,2-5.

218
A eicrita no cxilio

Com o apoio e, às vezes, as aguilhoadas dos sacerdotes e profetas,


Zorobabel ajuda a reconstruir o Templo de Jerusalém. O Livro de Ageu
justifica a posição de Zorobabel como o líder real legítimo, ao mesmo
tempo em que o impele a completar o Templo. Recordei, anteriormente,
que o Livro se abre encorajando a construção do Templo:

No segundo ano do rei Dario, no primeiro dia do sexto mês, a palavra de


YHWH chegou, por meio do profeta Ageu, a Zorobabel, filho de Salatiel,
governador de Judá, e a Josué, o sumo sacerdote, filho de Josedec: “Assim diz
YHWH dos exércitos: Esta gente diz que ainda não chegou o momento de
reconstruir a Casa de YHWH. Então, a palavra de YHWH veio por intermédio
de Ageu, o profeta: ‘Será este o momento para habitardes em vossas casas
revestidas de lambris, enquanto esta casa está em ruínas?”' (Ag 1,1-4).

Embora as palavras do profeta estejam expressas como uma mensagem


a Zorobabel e ao sacerdote Josué, reconstruir o Templo é, essencialmente,
responsabilidade do rei. A menção ao profeta atenua a crítica a Zorobabel,
tomando-a menos direta, junto com a afimiação de que "esta gente diz que
ainda não chegou o momento de reconstruir a Casa de YHWH”. Todavia,
não é esta gente que está vivendo em casas revestidas de lambris, e sim o
governador Zorobabel e talvez o sumo sacerdote. O contraste com o de­
sejo do venerável rei Davi de construir o Templo de YHWH é dramático.
Zorobabel, é claro, reconstrói o Templo, legitimando assim sua posição de
liderança sobre a comunidade judaica.
O breve hvro profético de Ageu termina reiterando a esperança de
restauração da linhagem da família de Joiaquin por meio de Zorobabel:

A palavra de YHWH chegou a Ageu pela segunda vez no dia vinte e quatro do
mês: “Fala a Zorobabel, governador de Judá, dizendo que abalarei o céu e a terra,
e derrubarei o trono dos reis; destruirei o poder dos reinos e das nações, e
tombarei os carros e seus condutores; e os cavalos e os cavaleiros cairão, todos
feridos pela espada de um companheiro. Nesse dia, diz YHWH dos exércitos,
eu o tomarei, Zorobabel, meu servo, filho de Salatiel, e tomar-te-ei como um
sinete, pois eu te escolhi, diz YHWH dos exércitos” (Ag 2,20-23).

Nesse ponto do registro histórico, porém, Zorobabel desaparece. Al­


guns estudiosos sugeriram que os persas o tenham aprisionado ou matado.

219
Comn a Biblia tornou-se um livro

Segundo uma tradição judaica muito posterior, do século VI d.C. [Seder


‘Olam Zutd), Zorobabel retomou à sua posição proeminente na Babilônia,
onde morreu e foi sepultado. Não há evidências sólidas para dizer ao certo
o que Ibe sucedeu. Sabemos apenas que Zorobabel desapareceu. Toda a
família real judia também desaparecerá do registro histórico nesse mo­
mento. Com base em evidências arqueológicas e literárias, a catástrofe eco­
nômica ocasionada pelos babilônios em Jerasalém aparentemente prolon­
gou-se. Evidentemente, é possível que Zorobabel simplesmente tenha
preferido retornar à posição privilegiada que detinha na famíha real na
Babilônia, em vez de permanecer na depauperada lehud persa.
Fundamentalmente, a escrita do período exíhco era uma extensão da
escrita do Estado. Era a escrita feita pela família real judia e para a família
real judia. A família real é o único contexto social apropriado para a reda­
ção de uma literatura substantiva durante o exíUo. A literatura de períodos
pré-exílicos foi provavelmente preservada pela famíUa real na Babilônia e,
depois, restituída a Jerusalém quando o herdeiro real, Zorobabel, regressou
e reconstruiu o Templo. A literatura bíblica produzida durante o século
VI a.C. reflete os interesses da família real judia. Em grande medida, por­
tanto, a escrita durante o exílio e o período pós-exíHco não era uma res­
posta à destruição babilônica e ao exílio no sentido tradicional. Antes, era
um retomo ao mais tradicional cenário da escrita na antiguidade — uma
produção do governo, até de um governo exilado. A grande literatura do
exüio era a literatura oral, os salmos e as lamentações do povo. Mas é difícil
dizer quando e como essa hteratura oral foi finalmente registrada por
escrito em pergaminho. Não há razão para supor que tenha sido redigida
até muito tempo depois.

220
. I
V _ •' período persa encerra a literatura bíblica centrada na realeza. Os reis
davídicos desaparecem do cenário, e a liderança da comunidade judaica em
Jerusalém passa aos sacerdotes. A identidade do povo judaico estará cada vez
mais centrada no Templo de Jerusalém. A composição e a edição da litera­
tura bíblica estarão localizadas no Templo de Jerusalém. A produção da lite­
ratura escrita será controlada pelos sacerdotes. Os filhos de Davi não são
esquecidos, mas são desapossados. Os sacerdotes não estão mais interessados
nos filhos de Davi como príncipes de Israel. Antes, Davi e seus filhos tor­
nam-se patronos do templo, de seus sacerdotes e seus serviços. No lugar de
Davi, surge o sacerdote e escriba Esdras. Com a mão de Deus sobre ele, como
uma segunda vinda de Moisés, Esdras lidera a comunidade pós-exílica. No
centro da liderança sacerdotal estará o Livro de Moisés. Os sacerdotes tor­
nam-se os guardiães daTorá Mosaica e dos escritos sagrados do antigo Israel.
A palavra oral de Deus dita por me^o dos profetas chega ao fim quando
os sacerdotes e escribas do templo textualizam a palavra de Deus.
Este capítulo tratará da escrita entre os séculos V e III a.C., ou seja,
do período persa interrnediário ao período helenístico. Embora o período
persa comece propriamente com a conquista da Babüônia pelo rei persa
Ciro, em 539 a.C., o papel contínuo da famíha real davídica manteve-se nos
primeiros anos de domínio persa em Jerusalém perto do fim do século VI a.C.

221
Como a Bíblia tornou-se um livro

A família real davídica desaparece por volta do final do século VI a.C , e a


liderança aparentemente se transfere para os sacerdotes. Esses são tempos
sombrios para Jerusalém e para a província persa de lehud. Em gerações
passadas, eram “sombrios” simplesmente porque sabíamos tão pouco sobre
esse período histórico. Progressivamente, a arqueologia preencheu as lacunas,
mas retratou uma imagem muito lúgubre de uma região despovoada e de­
pauperada. Contudo, esse período há muito tem sido considerado por estu­
diosos como um período de formação para a escrita da Bíbha. Supostamente,
uma grande erupção de atividade literária inspirada pela catástrofe do exího
babilônico continuou no período da “restauração”. Giovanni Garbini escreve:
“sob o domínio dos aquemênidas, o hebraísmo conheceu seu momento má­
gico e a hteratura hebraica conheceu sua época de ouro”h Mais que uma
época de ouro, porém, o registro arqueológico aponta para a privação econô­
mica de Jerusalém e suas cercanias. Mais que o florescimento da hteratura
bíblica, esse seria um tempo de entrincheiramento. No presente capítulo,
argumentarei que os sacerdotes e os escribas estavam preservando a hteratura
de Israel, e não criando esta hteratura. A escrita era muito limitada e refletia
o mundo linguístico aramaico do Império Persa^.
Nesse período pode-se situar com segxrrança a composição de escassa
— ou nenhuma — hteratura bíblica. Os livros com maior probabilidade
de terem sido compostos no período persa seriam o Livro das Crônicas
e o Livro de Esdras e Neemias^. Outros livros, como o de Ester e talvez o
Eclesiastes, podem ter sido compostos no século IV ou III a.C. A compo­
sição final do Livro de Daniel é usualmente situada na metade do século

1. G. Garbini, Hebrew Litarature in the Persian Period, in Second Temple Studies, vol. 2:
Temple and Community in the Persian Period (ed. T. C. Eskenazi e K. H. Richards JSOTSS,
175), Sbeffield, Sbeffield Academic Press, 1994, 188.
2. Ver, por exemplo, 1. Eph’al, Cbanges in Palestine during the Persian Period, lEJ 48
(1998) 106-119 (notar especialmente os comentários na p. 116).
3. Alguns (inclusive eu mesmo) argumentaram que a primeira edição do Livro das
Crônicas foi originalmente composta no final do século VI a.C.; ver, especialmente, F. M.
Cross, A Reconstruction of the Judean Restoration, JBL 94 (1975) 4-18. Outros dataram
o Uvro do século IV a.C., como, por exemplo, S. Japhet, I S£ II Chronicles: A Commentary
(OTL), Louisvüle, Westminster John Knox Press, 1993, 23-28. O Livro das Crônicas em
sua forma canônica é certamente um produto do final do período persa.

222
As. Escrituras à som bra J u Toniplo

II a-C."*. Toda essa literatura mostra a marcada influência linguística do


mundo aramaico imposta pelo Império Persa. Embora a maior parte dos
salmos bíblicos tenham sido compostos anteriormente, o Livro dos Salmos
em si ainda não havia sido completado. Os cantores levíticos sacerdotais
ajudaram a dar forma ao Livro dos Salmos, mas esse Hvro de cânticos do an­
tigo Israel talvez seja o hvro mais fluido em todo o cânone^. Parte do pro­
cesso de entrincheiramento consistia na compÜação e edição da literatura
bíblica. Assim, por exemplo, um conto em prosa é acrescentado à poesia
arcaica do Livro de Jó para conferir-lhe sua forma final®. As atividades edi­
toriais dos sacerdotes incluem acrescentar sobrescritos, produzir glosas
editoriais e dar forma à hteratura bíbhca em livros e grupos^. Uma compi­
lação dos pergaminhos proféticos mais curtos, dos profetas “menores”
[Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias,
Ageu, Zacarias, Malaquias), foi editada num pergaminho maior “dos doze”®.

4. A datação do Edesiastes e do Cântico dos Cânticos é'controversa; ver, por exemplo,


A. Hurvitz, Review; Qohdeth’s Language: Re-evaluating Its Nature and Date, by Daniel
C. Fredericks, Hebrew Studies 31 [1990} 144-154; C. L. Seow, Linguistic Evidence and the
Dating of Qohelet, JBL 115 [1996} 643-666; M. Pope, Song of Songs [Anchor Bible},
Garden City, NY, Doubleday, 2000, 27. Tanto o Edesiastes como o Cântico dos Cânticos
têm vários aramaicismos. Embora os aramaicismos não tomem o livro posterior de modo
definitivo [cf. A. Hurvitz, The Chronological Significance of “Aramaisms” in Biblical
Hebrew, EJ 18 [1968]: 234-240}, é predso oferecer uma explicação específica para isso
[por exemplo, dialeto, gênero} para Justificar as peculiaridades.
5. Mark S. Smith,The Levitical Compílation of the Psalter, ZdVElOd [1991} 258-263.
Ver também a pesquisa de J. Limburg, Psalms, Book of, in ABD, vol. 5, 522-536. O pro­
blema do desenvolvimento canônico dos Salmos foi susdtado de maneira mais nítida pelo
pergaminho dos Salmos dos Manuscritos do Mar Morto; ver J. Sanders, The Psalms Scroll
ofQumran Cave II {DJD, IV} Oxford, Clarendon Press, 1965.
6. Ver A. Hurvitz, The Date of the Prose-Tale of Job Linguistically reconsidered, fíTR
67 [1975} 17-34.
7. Ver M. Haran, Book Scrolls atthe Beginning of the SecondTemple Period, EI \6 [1982}
86-92; Haran, More Concerning Book-ScroUs in Pre-Exilic Times, JJS 35 [1984} 84-85.
8. Esses “livros” proféticos menores vieram a ser copiados em um pergaminho entre
os manuscritos hebraicos. A ordem era daramente consistente em hebraico, mas as traduções
e listas gregas tiveram variações entre os Doze. Os códices B [Vaticanus} e A [Alexandrinus}
puseram Amós e Miqueias depois de Oseias e antes de Joel.

223
Como a Bíblia tornou-se um üvto

Embora o Pentateuco tenha sido essencialmente composto no período


pré-exílico, sua forma editorial final foi dada no Templo de Jerusalém. É
difícil ter certeza de que toda essa edição e configuração do cânone bíblico
tenha realmente ocorrido no período persa, especiahnente dado o contexto
social. E plenamente razoável que alguns desses processos sejam datados do
século III a.C., durante o período helenístico. O século III foi um período
de relativa estabilidade, de apoio real egípcio a escribas e textos e de re­
cuperação da prosperidade econômica.

A tendência recente

Aqui minha tese contesta a tendência recente de datar a composição


de todos os textos bíblicos em épocas cada vez mais tardias. Desde o surgi­
mento da crítica histórica no século X IX , assumiu-se que o período persa
foi uma época de produção hterária. A voga recente modifica apenas um
elemento, argumentando que quase toda fse não toda) a literatura bíblica é
produto dos períodos persa e helenístico. Essa tendência recente revisita outra
tendência do início do sécirlo X X , quando alguns estudiosos argumentaram
que a Bíblia era essencialmente um produto das eras persa, helenística e
asmoniana?. A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto pôs um terminus
ad quem nessa teoria, pois alguns dos manuscritos bíblicos encontrados
entre eles datam já do século III a.C. No entanto, pode-se ainda indagar se
a Bíblia é um “hvro” helenístico*”. Ou seja, a Bíblia como um “hvro” é bem
tardia. Como um “hvro”, a Bíbha efetivamente aguarda a inovação tecno­
lógica do códice, que Uie conferiu a forma física de um hvro.
Uma corrente mais desacreditada dessa tendência chama a Bíblia de
uma “invenção” dos escribas persas e helenísticos, afirmando que os na-

9 .0 mais forte defensor foi C. C.Torrey, Ezra Studies, Chicago, University of Chicago
Press, 1910.
10. Ver, por exemplo, N. P. Lemche, The Old Testament — A Hellenistic Book?
SJOT 7 (1993] 163-193; isso inspirou uma coleção de ensaios editada por L. Grabbe; Did
Moses Speak Attic? Jewish Historiography and Scripture in the Hellenistic Period (JSOTSS,
317], Sheffield, Sheffield Academic Press, 2001 .Ver a mordaz resenha da obra de Lemche
feita por E. Gruen, JBL 121 (2002] 359-361.

224
As Escrituras ã sombra do 'lemplí

cionalistas judaicos estariam criando uma identidade e uma conexão com


a terra através de uma invenção literária” . Afirma-se não apenas que Davi
e Salomão seriam ficções literárias, mas até que Esdras e Neemias foram
inventados gerações mais tarde, para justificar reivindicações religiosas e
ideológicas de judeus helenistas. Tais afirmações supostamente originam-se
da observação de que não há evidências explícitas fora da Bíblia a respei­
to de figuras como Davi e Salomão, ou mesmo de Esdras e Neemias” .
Em sua ponderada crítica, James Barr observa que “uma vez que se sabe tão
pouco sobre o período persa, temos de nos apoiar no período grego”” .
Mas Barr prossegue, comentando que “se esse tipo de argumento fosse
aplicado de maneira consistente a todas as coisas, não podería haver conhe­
cimento de nada”” . Esse é um caso clássico de redução ao absurdo. Con­
tudo, a sugestão de que Esdras e Neemias são meras ficções inventadas por
escritores posteriores é instrutiva. Ela indica quão pouco sabemos sobre o
período persa. Na ausência de evidências, tudo se evapora. Essas são as ver­
dadeiras épocas sombrias na história do povo judeu. Todavia, há luz sufi­
ciente para encontremos nosso caminho em meio à escuridão.

A escura sombra do Império Persa

Então, que tipo de contexto histórico o período persa representou para


a literatura bíbhca? A destruição babilônica do reino judeu lançou uma
duradoura e escura sombra por sobre o período pós-exíHco. Talvez a des­
coberta arqueológica mais impressionante tenha sido a amphtude da despo-
pulação da região durante os períodos babilônico e persa. Essa descoberta

11. Para uma pesquisa dessas afirmações sobre a “invenção” do antigo Israel, ver J.
Barr, History and Ideology in the Old Testament: Biblical Studies at the End of a Mdlennium
[Hensley Henson Lectures for 1997 delivered to the University of Oxford), Oxford,
Oxford University Press, 2000, 59-101.
12. Ver B. Halpem, Erasing History, Bible Review 11 (1995) 27-35,47.
13. Barr, History and Ideology, 99.
14. Barr, History and Ideology, 134. Para uma crítica mais polêmica, ver I. Provan,
Ideologies, Literary and Criticai: Reflections on Recent Writing on the History of Israel,
JBL 114 (1995) 585-606.

225
Como a Bíblia tornou-se um 1í \ t o

foi atribuída ao período pela primeira vez num estudo de Kenneth Hoglund,
Achaemenid Imperial Administration in Syria-Palestine and the Missions of
Ezra and Nehemiah (1992). Ele foi depois atualizado no importante e
completo estudo arqueológico realizado por Charles Carter^ The Emergence
of Yehud: A Social and Demographic Study (1999). Carter avalia que a
população de toda a província de lehud era de apenas cerca de 13.350
pessoas no final do período babilônico, perto do fim do século VI a.C.^^.
Embora essa população aumentasse para cerca de 20.650 até o término
do domínio persa, na metade do século IV a.C., esses são números espan­
tosamente baixos. Segundo os arqueólogos, a própria cidade de Jerusalém
nunca teve uma população maior que 1.500 pessoas durante o período
persaE® Deve-se enfatizar que se trata de meras estimativas, e que é noto­
riamente difícil estimar a população na antiguidade. Mas o cenário básico
está claro. A terra era esparsamente povoada. Jerusalém era uma vila pe­
quena. Esses números devem suscitar nosso questionamento ao reavaliar­
mos a visão de que o período persa e belenístico foi marcado pelo grande
florescimento literário que resultou na criação completa do vasto corpus
da literatura bíblica.
A despopulação de lehud é de fato sugerida nas notas de um viajante
grego, Hecateu de Abdera, que viveu por volta do ano de 300 a.C. Hecateu
sugere que os judeus vieram originalmente do Egito, mas que foram expul­
sos de lá e estabeleceram-se na Judeia, “que não é longe do Egito e estava,
na época, completamente desabitada”’^. O comentário de Hecateu não
pode ser levado a sério aqui, pois reflete as descrições gregas míticas típi­
cas de povoamento de novas regiões numa terra vazia. Contudo, Hecateu
depois reforça essa descrição com a observação de que os judeus foram
proibidos de vender suas terras a fim de que, ao fazê-lo, não “causassem
uma escassez de força de trabalho”’®. Nessa observação está implícito, nova­
mente, o problema da despopulação de lehud. Aparentemente, o número
de pessoas era muito pequeno para o pleno cultivo da terra.

15. Carter, The Emergence of Yehud in the Persian Period, 226.


16.1d.,ibid., 201.
17. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism, vol. 1: From Herodotus to Plutarch
(ed. M. Stem), Jerusalém, Israel Academy of Sdences and Humanities, 1974, 27-28.
18. Ibid., 28.

226
yVs EbcrÍLuras á bumbra Jo Templo

A literatura bíblica apresenta um retrato similar d.e uma lehud econo­


micamente empobrecida. Quando Neemias, uma autoridade persa menor
e um dos líderes da comunidade judaica pós-exílica, cbegou a Jerusalém
na metade do século V a.C., a economia ainda estava arruinada, como fora
deixada pelos babilônios. Embora Zorobabel tenha terminado de recons­
truir o templo em 515 a.C., a família real judia parece ter desaparecido
nessa época. Neemias encontrou os muros de Jerusalém ainda em ruínas
(Ne 1-2). Carter observa que “as taxas e os tributos impostos à popula­
ção de lehud pela política imperial contribuíram para suas dificuldades
econômicas”^®. O povo era onerado pela taxação imperial e pelos abusos
administrativos locais (Ne 5,1-19). Os sacerdotes levíticos aparentemente
haviam abandonado a cidade de Jerusalém pelo fato de que ela não era
economicamente viável (cf. Ne 13,10-13)^®. Assim, o retrato bíblico da
situação econômica geral está bem de acordo com a situação reconstituída
pelos arqueólogos.
Neemias também alude ao despovoamento de Jerusalém. Em suas me­
mórias, ele escreve: “a cidade era ampla e grande, mas havia poucas pessoas
e não haviam-se construído casas” (Ne 7,4). É importante perceber que a
cidade que Neemias chama de “ampla e grande” tinha somente cerca de
doze hectares (em contraste com os cerca de sessenta hectares no século
VII a.C. e, depois, no século II a.C.). Em termos relativos, Jerusalém estava
não apenas pequena, mas também despopulada.
A situação melhorou gradualmente, mas não dramaticamente, ao longo
dos três séculos de domínio persa. Entre os séculos VI e IV a.C., lehud teve
três fases distintas. Na primeira fase do domínio persa, a região careceu da
inffaestrutura apropriada para construir qualquer tipo de estrutura adminis­
trativa ou econômica coerente. A população era insuficiente. O arqueó­
logo israelense Ephraim Stem observa que “mesmo que houvesse uma
intenção formal de criá-la, não havia as condições apropriadas para isso”^b
Em 488 a.C. e, novamente, em 459 a.C., o Egito revoltou-se contra o

19. Carter, The Emergence ofYehud in the Persian Period, 259.


20. Id., ibid,, 288-289.
21. E. Stern, Archaeology ofthe Land ofthe Bihle, vol. 2; TheAssyrian, Babylonian, and
Persian Periods (732-332 B.C.E.) (Anchor Bible Reference Library), Nova York, Double-
day, 2001, 581.

227
Como a Bíblia tornou-se um livro

império. Isso assinalou o início de uma segunda fase do domínio persa na


Síria-Palestina. O império começou a adotar um papel mais ativo em sua
administração no oeste, inclusive na pequena província de lehud. As mis­
sões das figuras bíblicas Esdras e Neemias parecem seguir a esteira dessas
revoltas egípcias^^. Os persas construíram uma série de fortes e portes ao
longo da costa da Síria-Palestina para fazer frente às ameaças do Egito e da
Grécia. A despeito disso, lehud permanece relativamente isolada na região
montanhosa central, e a recuperação econômica e demográfica ocorre mui­
to lentamente. A última fase começou com as revoltas egípcias em 400
a.C., quando o Egito teve êxito em reconquistar sua independência. No
início do século IV a.C , a Palestina tomou-se o campo de batalha para con­
flitos entre um Egito ressurgente e o Império Persa. Escavações arqueoló­
gicas descobriram evidências de uma onda de destmição na costa judia e
nos contrafortes a este de Jemsalém durante o começo do século IV a.C.
Os persas eram pressionados não somente pelo Egito ao sul, mas também
pelos gregos a oeste e pelas revoltas babilônicas internas. Por fim, o Im­
pério Persa desmoronou, na esteira de Alexandre Magno e de um novo
Império Macedônico. Jemsalém foi poupada da conquista, rendendo-se a
Alexandre em 333 a.C. Porém, Alexandre morreu apenas uma década
mais tarde, e seus generais disputaram as partes de seu reino. A estabilidade
e a prosperidade só começariam a retornar a Jerusalém no princípio do
século III a.C., sob o domínio ptolemaico do Egito.
Este é um breve esboço do que sabemos sobre a cena histórica da
Palestina entre os séculos VI e IV a.C. No final do século IV, a população
de Jerusalém ainda era de menos de mil e quinhentas pessoas. Nessa época,
a parte norte da cidade [ou o Monte do Templo) era dedicada ao Templo, e
o povoamento restringia-se à pequena Cidade de Davi. Isso contrasta ra­
dicalmente com a Jemsalém do período final da monarquia, ou dos reis
asmonianos [ver figura 9.1). A economia continuava a ser obstmída pela
posição geográfica desvantajosa da cidade nos montes remotos da região
central da Palestina. A economia de lehud permanecia dependente da

22. Isso é discutido especialmente por K. Hoglund, Achaemenid Imperial Administra


tion in Syria-Palestine and the Missions ofEzra and Nehemiah (SBLDS, 125), Atlanta, Scho-
lars, 1992, e J. Berquist, Judaism in Pérsia's Shadow: A Social and Historical Approacb,
Minneapolis, Augsburg, 1995.

228
As Escrituras à sombra do ‘J cmplo

agricultura de subsistência e do pastoreio. Exceto pela reduzida elite sa­


cerdotal e pelas poucas autoridades administrativas persas em Jerusalém,
é improvável que houvesse letramento substantivo. A escrita, como vere­
mos, efetivamente possui um papel importante na administração imperial
persa, mas essa escrita era feita em aramaico. Esse cenário dificilmente
nos encoraja a vislumbrar o momento mágico da literatura bíblica.

600 a.G. 400 a.C. 150 a.C,

Monte do
Templo

Cidade
de Davi

População: - 40.000 População: -1 .5 0 0 População: - 35.000

Figura 9.1. As dimensões de Jerusalém entre 600 a.C. e 150 a.C.

Os registros arqueológicos e literários dos séculos VI ao IV a.C. apre­


sentam um problema para a visão tradicional de que esse foi um período
criativo da literatura hebraica bíblica. O arqueólogo Charles Carter está ciente
desse problema: “Se lehud era assim tão pequena e pobre, como podería
a elite social e religiosa sustentar a atividade literária atribuída ao período
persa?”^^. Ele indaga como a cidade de Jerusalém, que havia encolhido para
proporções muito reduzidas, com uma população de menos de mil e qui­
nhentas pessoas, podería suportar uma produção literária tão prolífica. Não
só uma produção literária prolífica, mas uma produção prolífica no idioma
hebraico clássico. Outra questão é por que os habitantes de Jerusalém de­
sejariam apoiar tal produção literária. Aquele não era o mundo moderno.
Quando procuramos possíveis analogias antropológicas, devemos perceber
que as contínuas modificações nas tecnologias de escrita tomam tais ana­
logias inadequadas. Uma garota judia, Anne Frank, pôde escrever seu diário
dentro de um pequeno cômodo em Amsterdã durante a II Guerra Mundial,

23. Carter, The Emergence ofYehud in the Persian Period, 285.

229
Como a Bíblia tomon-sc um li\ ro

mas ela teve a seu favor mais de dois milênios de grandes avanços tecno­
lógicos e culturais na escrita.
Uma das soluções favoritas das gerações passadas, a saber, a atribuição
de grande parte da literatura bíblica ao período asmoniano (167-63 a.C ),
não é mais uma opção. Como mencionei antes, os Manuscritos do Mar Morto
nos oferecem manuscritos bíblicos datados da metade do século III a.C.
Além disso, a língua hebraica do século II a.C. é tão distintamente diferente
da literatura bíblica que essa não é uma solução plausível. Seria como dizer
que Shakespeare redigiu suas obras na década de 19901 Desse modo, isso
restringe a janela para a data de redação do vasto, diverso e complexo com­
pêndio de escritos que compôs a Bíblia hebraica.
Outra solução para a questão é simplesmente reescrever a história persa.
O estudioso britânico Phihp Davies, por exemplo, sugere: “a visão de Judá,
no período persa, como um lugar culturalmente atrasado e economicamente
pobre precisa ser reconsiderada”^''. Por que essa visão precisa ser reconside­
rada? Porque a grande atividade escribal que muitos assumem que tenha
florescido no período persa é claramente inconsistente com o retrato da
província persa de lehud acerca do qual arqueólogos, historiadores e estudio­
sos bíblicos concordaram. Como se estivesse ciente desse problema, Davies
prossegue e comenta que “quanto mais adiantada a data, mais fácíl é concluir
que o templo podería sustentar numerosas escolas de escríbas com luna
atividade escribal vigorosa”. Davies acertadamente insiste em não apenas
uma escola escribal, mas em várias escolas, o que evidentemente seria neces­
sário para gerar a quantidade e a variedade que encontramos na literatura
bíbhca. N a rngsma linha, Anthony Saldaríni, o recém-falecido professor de
Cristianismo Antigo no Boston CoUege, sugere que “a atividade escribal de vá­
rios grupos (sacerdotes, profetas, visionários, escríbas e outros líderes da comu­
nidade) deve ser postulada para que se explique a composição e a edição da
compilação bíbhca durante o período exíhco e os períodos pós-exíUcos”^^.
Temos de assumir uma variedade de grupos ou escolas para exphcar a com­
posição da hteratura bíbhca nesses períodos somente se assumirmos também
que a literatura bíblica tem de ter sido composta principalmente no período

24. P. Davies, Scribes and Schools: The Canonization of the Hebrew Scriptures,
Louisville, Westminster John Knox, 1998, 79.
25. A. Saldaríni, Scríbes, in ABD, vol. 5,103.

230
As Escrituras ã sombra do Templo

persa. Essa é uma suposição que requer a postulação de uma vigorosa


atividade escribal na época em que tais atividades escribais na língua he­
braica parecem implausíveis.
Essas atividades tomam-se mais plausíveis à medida que avançamos
no período helenístico, partícularmente nos séculos III e II a.C. Natural-
mente^ à medida que se avança mais, incorre-se no problema dos manus­
critos bíblicos de Qumran, que datam de um momento anterior, o século III
a.C. E o que devemos fazer a respeito da literatura judaica como o Livro
dos Jubileus ou o Sirácida? Eles foram escritos em hebraico, mas num
estdo literário e num strata linguístico da língua hebraica muito posteriores.
Essas são composições hterárias judaicas amplamente consideradas como
datadas dos séculos III e II a.C., mas que diferem grandemente da Bíblia
em sua linguagem e em seu espírito. Por um lado, tudo o que sabemos
sobre a província persa de lehud toma-a uma candidata improvável para
tão vasto florescimento de numerosas escolas escribais — como os estudio­
sos corretamente aceitaram nas ocasiões necessárias, a fim de exphcar a
espantosa diversidade literária da Bíbha hebraica. Por outro lado, é difícil
atribuir essa atividade escribal vigorosa aos períodos posteriores em virtude
dos textos bíblicos de Qumran, da Septuaginta, dos apócrifos e pseudepí-
grafes. Para onde podemos ir? De volta ao período tardio da monarqma
judia. De volta ao tempo dos reis Ezequias e Josias. De volta à época dos
profetas Isaías e Jeremias. Nesse tempo, as condições sociais e econômicas
favoreciam o florescimento da literatura. Lá, descobriu-se, em escavações
arqueológicas, uma abundância da escrita em hebraico durante o período
tardio da monarquia judia. Foi lá que a literatura hebraica bíblica encon­
trou seu momento mágico.

Liderança sacerdotal

Quem eram os líderes da comunidade judaica depois do exílio? Os


filhos de Davi desaparecem no período persa. Como resultado disso, o
período persa assinala o fim da literatura bíbUca orientada com base na
realeza. O Livros de Esdras e Neemias são um dos poucos exemplos de
hteratura da comunidade judaica em Jerusalém durante esse período e têm
somente reis babilônios e persas. Notavelmente, o livro reduz o venerável
rei Davi a uma pessoa que estabelece o Templo e o conjunto de pessoas

231
Como a Bíblia tornou-se um livro

em seu serviço (Esd 3,10; 8,20; Ne 12,24.36.45-46], Com o desapareci­


mento da família real davídica de lehud, a liderança da comunidade foi
deixada nas mãos dos sacerdotes. O Templo reconstruído forneceu um
ponto focal para sua liderança.
Os governantes de lehud no período persa passaram a ser sacerdotes.
Embora a reconstituição do cenário histórico seja fragmentada, os arqueó­
logos Carol e Eric Meyers, da Duke University, conseguiram construir uma
lista de governadores de lehud valendo-se de inscrições, fontes arqueoló­
gicas e hterárias (ver a tabela 9.1)^^.

Tabela 9.1. Governadores de lehud

Governador Data
Sassabasar 538 a.C.
Zorobabel 520 a.C.
Elnatã final do século VI a.C.
Neemias 445-433 a.C.
Beguai 408 a.C.
Jezequias século rV a.C.
Jezer (incerto]
Azai (incerto]

Um dos aspectos mais impressionantes dessa hsta é que somente os


dois primeiros governadores, Sasabassar e Zorobabel, são claramente daví-
dicos. Esses dois últimos filhos de Davi, junto com (talvez] Elnatã, são a
extensão final da família real exilada de Joiaquin (discutida no capítulo pre­
cedente], Com eles, termina a liderança da família real do povo judaico em
lehud. O poder transfere-se para o templo que a famífia real construiu e
para aqueles que o administram. A política do Império Persa empregava
uma economia vinculada aos templos, utilizando os templos do Oriente
Médio como meios para arrecadar e coletar taxas e tributos. Os templos,
naturalmente, ganharam proeminência e, com eles, os sacerdotes. O templo

26. C. Meyers e E. Meyers, Haggai, Zechariah 1-8 [Anchor Biblej, Garden City, NY
Doubleday, 1987, 9-15.

232
As Escrituras a sombra do Templo

e seu pessoal — os sacerdotes — eram a instituição central e definidora do


judaísmo como este emergiu no período.
No século IV a.C , a saída da família real davídica havia sido completa.
É sugestivo que arqueólogos tenham encontrado moedas cunhadas com a
inscrição de certo “Joanã, o sacerdote”, datadas da metade do século IV a.C.
A evidência mais fascinante é o relato do viajante Hecateu de Abdera, por
volta de 300 a.C. Em seu tratado sobre o Egito, ele escreve:

Moisés selecionou os homens de maior refinamento e com a maior habilidade


para liderar toda a nação, e nomeou-os sacerdotes.[...] Ele nomeou esses
mesmos homens para serem juizes em todas as disputas importantes, e
incumbiu-os de guardar as leis e os costumes. Por essa razão, os judeus nunca
tiveram um rei, e a autoridade sobre o povo é regularmente atribuída ao
sacerdote considerado superior^^ [itálicos acrescentados].

Hecateu menciona também um velho sacerdote com o nome de Ezequias,


aparentemente com uma posição importante na comunidade judaica, que
foi forçado a fugir para o Egito em 312 a.C. Esse nome pode ser hipoteti­
camente identificado como uma forma grega do nome hebraico Jezequias,
que foi um governador de lehud no período persa tardio^®. Várias moedas
da metade do século IV a.C. trazem a inscrição “Jezequias, o governador”.
Essas moedas sugerem, novamente, que os papéis do sacerdote e do gover­
nador, da liderança sacra e secular, sobrepuseram-se cada vez mais no pe­
ríodo. Elas podem também sugerir que a liderança sacerdotal judia parti­
cipou de uma de uma série de revoltas contra a hegemonia persa que irrom­
peram entre 366 e 343 a.C. Esse líder judeu está estampando moedas
não apenas com sua própria imagem, mas também com inscrições usando
a escrita nacional arcaica dos judeus [isto é, em páleo-hebraico, em vez
do aramaico imperial). Como observaram antropólogos linguísticos, a lín-

27. Greek and LatinAuthors on Jews and Judaism, 28.


28. Ver P. Machinist,The First Coins of Judah and Samaria: Numismatics and History
in the Achaemenid and Early Hellenistic Periods, in Achaemenid History, vol. 8: Continuity
and Change [ed. H. Sancisi-Weerdenbur et ai'), Leiden, Nederlands Instituut Voor Het
Nabije Oosten, 1994, 375-376; J. Betylon, The Provincial Government of Persian Period
Judea andthe Yehud Coins, JBL 105 [1986] 633-642.

233
Como a Bihlia tornou-so um livTO

gua e, especialmente, a escrita estão com frequência imbuídas de ideologia


política e étnica. Essas moedas apontam para um movimento nacionalista
judeu liderado pelos sacerdotes.

O hebraico num mundo aramaico

A língua hebraica esteve sitiada no período persa. Sua própria existência


foi ameaçada pela abrangente disseminação do aramaico, que foi fomentado
pela administração imperial do Império Persa. As centenas de inscrições em
aramaico já escavadas datando do período persa “atestam o grau de penetra­
ção do aramaico na Palestina — chegando até a população rural local”^^.
Entre as evidências encontradas do período persa, quase não há inscri­
ções em hebraico. O pouco que era escrito em hebraico consistia em uma
afirmação ideológica que tentava preservar a identidade étnica e cultural do
povo judeu. Em contraste com as centenas de óstracos, sinetes, papiros e
outros artefatos inscritos em aramaico, temos muito pouco que indique que
se estava escrevendo em hebraico no período persa. As evidências encon­
tradas podem ser contadas nos dedos da mão. Há, por exemplo, poucas
moedas datadas do sécijlo IV a .C que exibem a palavra “sacerdote” ou
“governador” escritas com letras do hebraico antigo. Todavia, o fato de que
tenhamos essas poucas moedas revivificando a escrita nacional hebraica
indica que a língua hebraica não estava completamente perdida nos perío­
dos persa e helenístico. Isso aponta também para o papel ideológico do he­
braico na comunidade judaica do período persa tardio. Pouco mais de um
século depois das moedas de Jezequias, os asmonianos também usariam o
hebraico em moedas cunhadas com sua própria imagem. A revolta de Bar
Kochba, no século II d.C., também empregou o páleo-hebraico em suas
moedas, embora nessa época isso fosse primordialmente simbóHco e a escri­
ta hebraica estivesse cheia de erros^'’. Certamente, a língua hebraica con­
tinuou a ser falada e lida, e havia inclusive alguma hteratura bíbHca escrita

29. Eph’al, Changes in Palestine during the Persian Period, 116.


30. Para uma análise das moedas judaicas, ver Ya’akov Meshorer, Andent Jewish Coinage,
2 vols., Dix Hills, NY, Amphora Books, 1982. É também digno de nota um óstraco datado de
cerca de 300 a.C., proveniente das escavações na Cidade de Davi, que traz inscrições em letras

234
As IZscrituras á suinhra Ai Ts^mpln

em hebraico. As cópias dos manuscritos bíblicos datadas do século III (in­


cluindo os bvros de Jeremias e Samuel) atestam uma tradição vigente de
copiar e preservar a bteratura bíblica hebraica. Não, o hebraico não deixou
de existir após o exibo, mas seria obscurecido pela influência disseminada de
um mundo de fala aramaica.
O aramaico tomou-se a bngua nativa da maior parte dos judeus que
viviam na palestina durante o período do Segundo Templo. Por exemplo,
supõe-se comumente que o aramaico era a língua nativa de Jesus de Nazaré.
Os judeus certamente continuaram a falar o hebraico. O hebraico era a lín­
gua de maior parte das escrituras sagradas judaicas. Era a língua das orações.
Era a língua do ensino, das discussões e dos debates rebgiosos. Os sectários
religiosos de Khirbet Qumran efetivamente tentaram evitar qualquer in­
fluência do aramaico em seus escritos sectários — embora não tenham
tido nisso sucesso completo^ f O aramaico tomou-se o vernáculo. Ele foi
usado na adrninistração do vasto Império Persa e era a língua de uma vasta
rede de escolas escribais estendendo-se do Irã à Turquia e ao Egito.
Há abundantes inscrições do período persa — ou seja, abundantes ins­
crições em aramaico. A escrita aramaica está preservada em cerâmica, metal,
pedra e papiro. Temos todos os tipos possíveis de literatura, de contratos
matrimoniais a bteratura de sabedoria como as palavras de Aicar. Há cartas
escritas em aramaico provenientes de uma comunidade egípcia da diáspo-
ra judia pedindo permissão para construir um templo em Elefantina. Há
textos econômicos e diplomáticos, tratados e sinetes. Há inscrições admi­
nistrativas. Todas elas refletem a administração local, e não a imposição da
autoridade imperial. Charles Carter sugere que “nenhuma das impressões
de sinetes de lehud que datam dos períodos neobabilônico ou persa indicam
nada senão uma estrutura administrativa local, emanando deTel en-Nasbeh
[Mispá] no período neobabilônico e no início do período persa, e de Jeru­
salém no final do século VI ou no início do séciilo V ”^^.

aramaicas e usa a terminação do plural aramaico, mas emprega vocabulário hebraico {City
ofDaviã, vol. 6: Inscriptions [ed. D. Ariel; QEDEM, 41] Jerusalém, lES, 2000, 9-10).
31. Ver, por exemplo, E. Y. Kutscher, A History of the Hebrew Language, Jerusalém,
Magnes, 1982,105-106; S.Weitzman,WhyDid the Qumran CommunityWritein Hebrew?,
JAOS 119 (1999) 35-45.
32. Carter, The Emergence ofYehud in the Persian Period, 279-280.

235
Como a Bíblia tornou-se um livro

Foram descobertos todos os tipos concebíveis de documentos escritos,


numa grande variedade de materiais, datados do período persa. Com o
uso do aramaico como idioma burocrático do império, não causa espanto
o fato de que tenhamos descoberto tantas inscrições em aramaico. Na
verdade, a abundância da escrita em aramaico é encontrada prindpalmente
fora das fronteiras de lehud. Mas lehud também tem sua quota de ins­
crições em aramaico, especialmente textos administrativos, econômicos e
legais. Desse modo, é inteiramente razoável que grandes partes dos livros
de Esdras e Neemias sejam compostas em aramaico. Além disso, não é sur­
preendente que essa língua aramaica deixe suas marcas no hebraico bíbhco
tardio e no hebraico rabínico.
O mundo aramaico teve uma influência insidiosa sobre o desenvolvi­
mento da língua hebraica. Mesmo o que é hoje conhecido como o alfabeto
“hebraico” é na realidade um alfabeto aramaico (ver a figura 9.2]^^. A ciência
da paleografia (isto é, o estudo do desenvolvimento do formato das letras)
demonstrou que os judeus adotaram a escrita aramaica durante o período
persa. Em The Eady History oftheAlphabet, fivro clássico de Joseph Naveh,
o autor chama essa escrita aramaica de “escrita judaica” para distingui-la da
escrita hebraica de períodos precedentes. Os paleógrafos usualmente re­
ferem-se ao alfabeto hebraico antigo como páleo-hebraico. Notavelmente,

Latim A B D E 1 K L M

Páleo-hebraico £
Á

Aramaico ¥ P n <
1 C n

Figura 9.2. Algumas diferenças entre a escrita hebraica antiga e a escrita aramaica

3 3 .0 páleo-hebraico é estilizado com base nos óstracos de Laquis (de cerca de 600
a.C.j, e o aramaico, com base nos papiros elefantinos (do final do século V a.C.). Sobre
esses escritos, ver J. Naveh, The Early History of the Alphabet: An Introduction to West
Semitic Epigraphy and Paleography, 2“ ed., Jerusalém, Magnes, 1987.

236
As Escrituras á sumlrra i.lu Templo

OS antigos manuscritos bíblicos encontrados entre os Manuscritos do Mar


Morto estão redigidos em escrita aramaica (não hebraica). Essa mudança
foi tão abrangente que quase todos os textos bíblicos copiados em períodos
posteriores foram escritos com letras aramaicas, e não na escrita do hebrai­
co antigo. Quando as inscrições em língua hebraica começam a aparecer
em maior quantidade, durante os períodos asmoniano e romano (come­
çando no século II a.C.), trata-se, usualmente, da língua hebraica escrita
com letras aramaicas.
Claramente, não havia uma ideologia forte, na cultura do período persa,
que evitasse a adoção das letras, da gramática e do vocabulário aramaicos.
É importante lembrar que a escrita frequentemente possui carga ideoló­
gica e teológica. Mais tarde, viría a se desenvolver uma ideologia forte que
reafirmaria a importância da escrita páleo-hebraica. Com efeito, estudiosos
do século X IX argumentaram que a chamada língua hebraica da literatura
rabínica (usualmente chamada de hebraico "mishnaico” ou “rabínico”], cujos
aspectos básicos começam a emergir no período persa, era na verdade “me­
ramente um aramaico hebraicizado, artificialmente criado por homens eru­
ditos”^'*. Em sua conhecida gramática do hebraico mishnaico (ou rabínico),
escrita no início do século passado, Moshe Segai teve êxito em defender
o hebraico rabínico como um dialeto hebraico coloquial genuíno, e não
meramente como um aramaico hebraicizado. Contudo, em sua gramática
Segai teve de reconhecer a penetrante influência que o aramaico teve sobre
o hebraico.
Há uma ausência quase completa de inscrições hebraicas da província
persa de lehud. Até a metade do século III a.C , praticamente não há evi­
dências de escrita em hebraico (a não ser a Bíbha). Ironicamente, essa é
exatamente a época em que a literatura hebraica bíblica supostamente
eclodiu, quando a literatura hebraica bíblica teve seu momento mágico.
Alguns estudiosos chegaram a sugerir que toda a Bíblia hebraica tenha sido
escrita nos períodos persa e helenístico. No entanto, além de algumas con­
troversas inscrições hebraicas dos primórdios do período babilônico (586­
539 a.C ), não temos inscrições significativas até o século II a.C Essa au­
sência deveria ser esperada. As condições sociais e econômicas da lehud
persa não favoreciam um grande florescimento literário.

34. M. H. Segai, A Grammar ofMisknaic Hebrew, Oxford, Clarendon Press, 1927, 6.

237
Como a Bíblia tornou-se um livro

A língua aramaica precede a ascensão do Império Persa. O aramaico


é a língua dos Estados aramaicos que surgiram na Síria no século X a.C O
Império Assírio já havia adotado o aramaico como idioma administrativo
em suas relações com a região oeste no século VIII a.C.^^. O aramaico é a
língua do vizinho e rival setentrional de Israel. Segvmdo a tradição bíblica,
é também a língua dos ancestrais de Israel: "Meu pai era um arameu errante”
(Dt 26,5). O aramaico é também uma hngua estreitamente vinculada ao
hebraico, e, portanto, muitas vezes é difícil diferenciar a influência aramai­
ca sobre o hebraico e a herança hnguística partilhada pelas duas línguas
aparentadas.
No fim do século IV, o mundo de fala aramaica transformou-se num
mundo helenístico de fala grega. No século III a.C., a Bíblia hebraica co­
meçou a ser traduzida para o grego pela comunidade judaica de Alexandria.
A tradução grega, conhecida como a Septuaginta em virtude de uma lenda
a respeito de seus setenta tradutores originais, passou a ser usada na Diás-
pora e, mais tarde, na liturgia cristã. De acordo com a lenda narrada na
Carta de Aristeas, a tradução foi feita por determinação de Ptolomeu II
FÜadelfo (285-247 a.C.), que estava coletando livros para a famosa bibho-
teca real de Alexandria. Embora a lenda pretenda que os setenta tradutores
tenham chegado, independentemente, à mesma tradução exatamente (suge­
rindo-se assim o caráter divino da tradução), estudiosos questionaram quão
bem os tradutores entendiam a Bíblia hebraica. O eminente estudioso da
Bíbha James Barr, da Universidade de Oxford, é cético a respeito de quão
bem os tradutores compreendiam o texto hebraico^®. Jan Joosten, professor
de hebraico na Universidade de Estrasburgo, destaca que os tradutores da

35. H.Tadmor,The Aramaizatíon of Assyria: Aspects ofWestern Jmpact, in Mesopotamien


und seine Nachbam. Teil 2 (ed. H.-J. Nissen e J. Renger) Berlim, Dietrich Reimer, 1982,
449-470. Como resultado disso, aramaicismos isolados não podem ser usados para argu­
mentar que um texto bíblico é tardio; cf. A Hurvitz, Hebrew and Aramaic in the Bible: The
Problem of "Aramaicisms” in the Research of Bibhcal Hebrew, in Studies in the Hebrew
Language and in Languages ofthe Jews (ed. M. Bar-Asher), Jerusalém, Biahk, 1996, 79-94.
36. J. Barr, Comparative Phiblogy and the Text ofthe Old testament, Oxford, Clarendon
Press, 1968, 328-372. Emanuel Tov concorda (Did the Septuagint Translators Always
Understand Their Hebrew Text?, in De Septuaginta: FS J. Wevers [ed. A. Pietersma e
C. Cox], Mississauga, Ontario, Benben Pubhcations, 1984, 53-70).

238
As Escrituras á sunibra du Templo

Septuaginta demonstram ter conhecimento do hebraico de sua própria


época, que é diferente do hebraico da literatura bíblica. Joosten aponta várias
anomabas na tradução da Septuaginta, observando que “o mecanismo que
leva à tradução da Septuaginta parece ser a assimilação inconsciente ao
hebraico contemporâneo”^^. Um exemplo interessante é a palavra hebraica
“ger”, que significa “residente estrangeiro” em todos os textos bíblicos. No
entanto, como resultado dos desenvolvimentos rebgiosos no período tardio
do Segundo Templo, a palavra passou a significar “convertido reUgioso”,
como atestam os textos hebraicos de Qumran e a literatura rabínica. A
Septuaginta reflete o significado da palavra no hebraico contemporâneo
[isto é, “tardio”), traduzindo “ger" por “convertido”. A questão é que, no
século III a.C., a própria língua hebraica modificou-se tanto que veio a
representar uma fase completamente diferente na história do hebraico.
Por esta razão, é impossível conciliar o desenvolvimento histórico da língua
hebraica com uma datação persa tardia ou helenística para a composição
da literatura bíbfica.

A escrita e a literatura bíblica no período persa

Enquanto o hebraico tomou-se uma língua marginal no período persa,


o papel da escrita em si tornou-se cada vez mais importante. O Império
Persa empregava um aramaico-padrão como língua franca em todo o Oriente
Médio. O aramaico oficial, como é chamado pelos estudiosos, era usado
desde o Irã até o Egito com variações insignificantes. A uniformidade do
aramaico atesta a força da administração imperial e da chancelaria escri-
bal do império. Naturalmente, a influência foi sentida, em particular na fi-
teratura bíblica composta dentro das fronteiras do Império Persa. Mais
notavelmente, o Livro de Esdras inclui seções substanciais compostas em
aramaico. Mesmo nos locais onde se escrevia o hebraico, a influência da
língua franca aramaica impôs-se sobre ele.

37. J. Joosten, The Knowledge and Use of Hebrew in the Hellenistic Period Qumran
and Septuagint, in Diggers at the Weü: Proceedings of a Third International Symposium on
the Hebrew of the Dead Sea Scrolls and Ben Sira (ed. T. Muraoka e J. F. Elwolde), Leiden,
Brill, 2000,122.

239
Como a Bíblia tornou-se um livro

Conforme observado previamente neste capítulo, o aramaico teve uma


influência especial sobre os últimos livros da Bíblia, em virtude do mundo
aramaico no qual foram redigidos^®. A datação de muitos dos livros da
Bíblia não pode ser precisa®®, uma vez que dependemos tanto das suposi­
ções que fazemos acerca da composição de sua literatura. Contudo, os
livros de Esdras e Neemias e das Crônicas são obras literárias do período
persa'*®. O Livro de Daniel data do período helenístico, embora as histórias
aramaicas no livro pareçam datar do período persa'**. É difícil datar com
precisão o Livro de Ester, embora deva datar de algum momento entre os
séculos V e II a.C. Esses são os textos acerca dos quais sempre se concordou
amplamente, tanto por causa da língua como pelo conteúdo, que tenham
sido escritos nos períodos persa e helenístico. O Livro de Jó possui uma
introdução em prosa narrativa (capítulos 1 e 2) que foi acrescentada no
período persa ou helenístico, ou seja, ele foi editado num período posterior,
embora a grande seção poética (capítulos 3 a 41) seja anterior. A datação do
Cântico dos Cânticos e do Eclesiastes é controversa porque as anomalias
linguísticas dessas obras vão muito além do uso de aramaísmos; muitos es­
tudiosos sugeriram, de modo plausível, que elas podem refletir um dialeto
do hebraico diferente e situam sua origem no norte de Israefí®. Aqui — e em

38. A. Sáenz-BadíUos, A Histoiy of the Hehrew Language QET), Cambridge, Cambiidge


University Press, 1993, 115.
39. Ver, por exempló, G. Landes, A Case for the Sixth-Century BCE Dating for the
Book of Jonah, in Realia Dei: Essays in Archaeology and Bibhcal Interpretation (ed. P.
Wilhams eT. Hiebert), Atlanta, Scholars Press, 1999, 100-116.
40. A localização exata desses hvros dentro do período persa é tema de debate entre os
estudiosos. Argumentei, seguindo Frank Moore Cross, que o Livro das Crônicas foi composto
em pelo menos dois estágios. O primeiro estágio teria ocorrido no final do século VI, mas a
forma final do fivro é do século IV a.C.; Schniedewind, Socieíy and the Promise to david: A Re-
ception History of 2 Samuel 7:1-17, Nova York, Oxford University Press, 1999,125-128. Usual­
mente considera-se também que os Livros de Esdras e Neemias desenvolveram-se juntos em
estágios durante o período persa, com sua forma canônica estruturando-se no século fV a.C; ver
J. Blenkinsopp, Ezra-Nehemíah [OTL), Louisville, Westminster John Knox Press, 1988,41-47.
41. Ver, por exemplo, J. G. Gammie, The Classification, Stages of Growth and Chan-
ging Intentions in the Book of Daniel, JBL 93 (1976) 356-385.
42. Ver a extensa resenha do fivro de Daniel Frederick feita por A. Hurvitz’s,
Qoheleth’s language: Re-evaluating Its Nature and Date, in Hehrew Studies 31 (1990)

240
As Escrituras à sombra do Templo

outros casos — a avaliação das evidências depende muito das suposições


que derivamos dos dados linguísticos. Em última anáHse, porém, a questão
é que a listagem da literatura bíbUca que exibe a influência entranhada do
aramaico é bem curta. Dado que toda a infraestrutura escribal do Império
Persa era aramaica e que os dialetos vernáculos da Síria-Palestina também
eram aparentados ao aramaico, qualquer literatura composta nesse período
tardio naturalmente refletiría a entranhada influência de seu mundo ara­
maico. Mas uma parcela muito pequena da literatura bíblica revela tal
influência. Por quê? Simplesmente porque esse foi um período de supressão,
compilação e edição, mais que de produção literária criativa.
A instrução dos escribas durante o período persa teria sido em aramaico.
Isso está evidente nos livros de Esdras e Neemias. Em Neemias 8, por exem­
plo, lemos: “Então eles leram o livro, a Lei de Deus, interpretando-o [ou, tra­
duzindo-o], Explicaram seu sentido, de maneira que as pessoas pudessem
compreender a leitura”. Esse texto assume que luna audiência na Jerusalém
do século V a.C. não compreendia o hebraico daTorá"*^. Ela teve de ser inter­
pretada ou traduzida, como sugere a palavra grega “meforash” (ver também
Esd 4,18). Com efeito, a própria palavra grega empregada, “meforash”, é em­
prestada do aramaico, no qual era um termo técnico usado na chancelaria
persa. Em outras palavras, a expressão usada — “interpretando-o'' — indica
que o autor recebeu instrução por parte da administração persa em aramai­
co. Não somente a elite urbana e sacerdotal em Jerusalém usou o aramaico
diariamente, como também parte dela teria recebido instrução escribal for­
mal em aramaico. Essa instrução utilizava os recursos do Império Persa.
Em contraste com isso, havia poucos recursos e pouca infraestrutura
para a instrução escribal especificamente em hebraico. Ainda se falava um
hebraico coloquial, porém com significativa influência do aramaico. Neemias
de fato lamenta a completa perda do hebraico decorrente do matrimônio
interétnico: “naquela época vi também judeus que se tinham casado com
mulheres de Azoto, de Amon e de Moabe. Metade de seus filhos falava
a língua de Azoto e não sabia falar a fingua de Judá, mas falava a língua de

144-154. Hurvitz nota a dificuldade de chegar a uma decisão inequívoca acerca da data­
ção do Livro do Eclesiastes.
43. Ver J. Schaper, Hebrew and Its Study in the Persian Period, in Hebrew Studyfrom
Ezra to Ben-Yehuda (ed. W. Horburyj, Edunburgh, T &T Clark, 1999, 15.

241
Como a BiWia tomun-sc um IhTo

vários povos” (Ne 13,23-24]. A “língua de Azoto” e “a língua de vários


povos” eram variações do aramaico. Essa passagem implica certa continui­
dade no hebraico, bem como uma significativa penetração do aramaico. É
importante lembrar, porém, que o próprio texto de Neemias é escrito em
hebraico bíblico tardio. O bvro não é escrito no idioma bterário clássico.
Quando Neemias lamenta a perda do hebraico, não está propondo que isso
represente a perda do idioma literário clássico — Neemias está lastimando
a perda da compreensão da literatura hebraica e a perda da capacidade de
falar no dialeto coloquial do hebraico tardio'*''.
A bteratura bíblica e, de modo mais geral, a bteratura judaica apre­
sentam lacunas históricas. A maior delas é do século VI ao século II a.C.
A Bíblia, no Pentateuco, contém histórias sobre as origens do povo judeu.
Contém narrativas em prosa que detalham a monarquia até os exílios
babilônicos. Depois disso, as coisas tornam-se lacônicas. A parte o relato de
Esdras e Neemias, não há relatos literários judaicos sobre o período men­
cionado. Não há uma narrativa posterior ao desaparecimento de Zorobabel
e de sua corte e ao término da construção do templo em 515 a.C. até o
aparecimento de Esdras, tradicionalmente {^embora não universalmente)
datado de cerca de 458 a.C. Supõe-se que Neemias seja contemporâneo
de Esdras. Deixando momentaneamente de lado as disputas acerca de quão
históricas seriam tais figuras bíbhcas, é surpreendente o fato de que não te­
nhamos relatos bíblicos sobre a história dos períodos persa e helenístico
a não ser com base nesses vislumbres biográficos. Essas lacunas não são
apenas um aspecto da bteratura bíblica. Não temos relatos históricos do
período em lugar algum. Como resultado disso, o historiador posterior
Flávio Josefo fdo século I d.C.) é pressionado a escrever a história desse
período em seu abrangente bvro Antiguidade dos judeus, que começa com
Moisés e conta a história do povo judeu até a época do próprio autor.
Após o período antes mencionado, a bteratura judaica só aparece nova­
mente na história no século II a.C , no Livro dos Macabeus. Como expb-

44. A polêmica de C. Rabin (Tlie Historical Backgroimd of Qumran Hebrew, ScrHier 4


[1958]; 144-161) segundo a qual os judeus do período persa seriam trilingues, conhecendo
o aramaico, bem como um dialeto hebraico coloquial tardio e o idioma literário bíblico
clássico, é insustentável [conforme destacado por Schaper, Hebrew and Its Study in the
Persian Períod, 16-18).

242
As F.sciitiiras ã somhrj JuTom plo

car essa lacuna? As fontes arqueológicas e literárias oferecem uma ex­


plicação. Simplesmente esse não foi um período que favoreceu um grande
florescimento da literatura hebraica em Jerusalém.
Quando chegamos ao século II a.C., a literatura hebraica experimenta
ixma revivificação. O Primeiro Livro dos Macabeus, o Sirácida, o Livro dos
Jubileus e o Livro de Daniel (entre outros] são todos compostos no século
II a.C. Essa revivificação é certamente estimulada pela ascensão do Estado
asraoniano, que adota o hebraico como parte de sua agenda nacionalista.
Os asmonianos tentam revivificar a antiga escrita hebraica, que utilizam
em suas moedas. A seita religiosa de Qumran faz do uso do hebraico um
importante aspecto ideológico de sua identidade. Seus sectários compõem
muitas obras novas encontradas entre os famosos Manuscritos do Mar
Morto. Entretanto, esse hebraico é nitidamente diferente do hebraico clás­
sico conhecido por meio da Bíbha e das inscrições datadas do século VII
a .C Esse é o precursor do que passou a ser chamado de hebraico rabínico
(às vezes, de hebraico mishnaico]. O idioma aramaico continua a influen­
ciar todas as facetas do hebraico. Com efeito, uma vez que o aramaico
tenha se tomado a língua franca do Oriente Médio durante o domínio do
Império Persa, sua sobreposição ao hebraico é irrefreável.
Um problema básico no estudo moderno do hebraico bíblico pode ser
localizado na mptura da tradição escribal hebraica no período entre a mo­
narquia e o período persa. Como indiquei no capítulo precedente, essa
tradição continuava, de maneira Umitada, durante o exílio babilônico e até
o final do século VI a.C. Nesse ponto, porém, a infraestratura escribal
retraiu-se na empobrecida e despopulada província de lehud. Ocorreu uma
ruptura decisiva na língua hebraica e em suas instituições escribais. Jon
Berquist, em sua pesquisa sobre a história persa, intitulada Judaism in Pérsia’s
Shadow, argumenta que “os índices de letramento eram tão baixos que a lei
escrita não era compreensível para a maior parte da população. As leis eram
costumes, e não asserções escritas que requeriam adesão à letra’"*^. Parti­
cularmente na lehud persa, cuja economia consistia, em grande medida, na
agricultura e no pastoreio de subsistência, e cuja população vivia em peque­
nas aldeias, o índice de letramento devia ser muito baixo. No entanto, a
escrita era um aspecto central da administração imperial persa.

45. Berquist, Judaism in Persia's Shadow, 137.

243
Cam o a Bíblia tornou-se um lit ro

A biblioteca do Templo

De acordo com tima tradição judaica helenística tardia, Neemias fundou


uma biblioteca em Jerusalém. Em 2 Macabeus 2,13-14, lemos:

O mesmo é relatado nos documentos e nas memórias de Neemias, e também


que ele fundou uma biblioteca e reuniu os Hvros sobre os reis e os profetas, e
os escritos de Davi, e as cartas dos reis sobre as oferendas votivas. Da mes­
ma forma, Judá recolheu todos os livros que haviam sido perdidos devido à
guerra que sobreveio, e isso está em nossas mãos.

Segundo a tradição, Neemias funda uma biblioteca e reúne livros. Evi­


dentemente, essa passagem é bem posterior e atribui a Neemias atividades
que são tipicamente helenísticas. Essas são atividades que poderiam tam­
bém ser associadas à edição de obras literárias, como ocorre, em certa
medida, na fundação e na construção da grande biblioteca helenística em
Alexandria, no Egito. Deste modo, é difícil ter certeza acerca da histori-
cidade dessa atribuição tradicional da criação de uma bibUoteca a Neemias.
Mas uma biblioteca de literatura bíblica foi criada em Jerusalém. A litera­
tura bíblica do antigo Israel foi preservada.
As origens da biblioteca do Templo provavelmente remontam à
reconstrução do templo pelos últimos da linhagem de Davi, no final do
século VI a.C. A literatura da família real provavelmente foi depositada
nos arquivos do Templo naquela época. A biblioteca do Templo, apa­
rentemente, limitava-se aos “livros sagrados”. O historiador judeu Josefo,
do século I d.C. fala dos livros sagrados “guardados no Templo”''®. É in­
teressante que Josefo tenha enfatizado o Templo como repositório dos
livros sagrados, e não das obras profanas mais amplamente distribuídas.
Um dos temas do Livro de Esdras é a busca dos arquivos. As autoridades
persas são repetidamente solicitadas a “buscar nos arquivos” a história
da cidade de Jerusalém, a permissão para construir o templo, as cartas
e os documentos. Essas menções indicam o interesse geral pelas biblio­
tecas e arquivos, que havia começado no Império Assírio e continuara
no Império Persa.

46. Ver 3.1.7; 5.1.17; 10.4.2.

244
As F.strituras ã soml-Tii Ji' Templo

A textualização da religião judaica

A palavra escrita é apresentada como txm conceito central no programa


religioso de Esdras e Neemias"*^. De acordo com os relatos bíblicos desses
personagens, a literatura do antigo Israel passa a ter um papel especial no
estabelecimento da autoridade e na promulgação das reformas de Esdras
e Neemias. Vale citar a detalhada narrativa da leitura da Lei de Moisés,
repetida em Neemias 8,1-5;

Todo o povo se reuniu na praça diante da Porta das Águas. Eles pediram ao
escriba Esdras que trouxesse o pergaminho da Lei/Torah de Moisés, que
YHWH entregara a Israel. O sacerdote Esdras apresentou a lei diante da
assembléia de homens, de mulheres e de todos os que eram capazes de ouvir
e compreender. Era o primeiro dia do sétimo mês. Assim, na praça que fica
diante da Porta das Águas, Esdras fez a leitura do hvro, desde o amanhecer
até ao meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e de todos os que
eram capazes de compreender. E todo o povo prestava atenção à leitura do
pergaminho da Lei/Torah. O escriba Esdras postou-se sobre um estrado de
madeira construído com esse propósito [...]. E Esdras abriu o pergaminho
perante todo o povo, pois estava mais alto que todos. Quando ele abriu o
pergaminho, todo o povo ficou de pé.

A narrativa se retarda para nos dar os detalhes. Aparentemente, um tablado


especial de madeira, um leitoril, é fabricado exclusivamente para a leitura da
Torah. Há um grande floreio no momento em que Esdras abre o pergaminho.
O povo se levanta em respeito à palavra de Deus. Que cenal Sem dúvida,
pretende-se que essa cena sirva de padrão para a leitura da Torah na comuni­
dade judaica. A história é, portanto, programática e parece ter alcançado o
efeito almejado. A leitura da Torah convida também à ação. Na continuação
da narrativa, a Torah fornece a base explícita do desempenho religioso:

47. Isso foi precisamente exposto por T. Eskenazi, Ezra-Nehemiah: From Text to
Actuality, in Signs and Wonders: Biblical Texts in Literary Focus (ed. J. C. Exum), Atlanta,
Scholars Press, 1989, 165-198. Agradeço que a professora Eskenazi me tenha indicado
esse artigo e também sua incisiva leitura de um esboço do manuscrito deste Uvro, aprimo­
rando minhas próprias percepções sobre a textualização no período persa.

245
Como a Biblia tornnu-se um livro

O governador Neemias, o sacerdote e escriba Esdras e os levitas que instruíam


o povo disseram a todos: “Este é um dia consagrado a YHWH, vosso Deusl
Não lamenteis nem choreis” — pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras
da Torah. [...] No segundo dia, os chefes das casas ancestrais de todo o povo,
os sacerdotes e os levitas reuniram-se com o escriba Esdras a fim de estudar
as palavras da Torah. E encontraram escrito na Torah, que YHWH promulgara
por meio de Moisés, que o povo de Israel devia morar em cabanas (sukkot)
na festa do sétimo mês, e devia fazer publicar e proclamar em todas as suas
cidades e em Jerusalém [...]. Todos os dias, desde o primeiro até o último,
era lido o pergaminho da Lei/Torah de Deus. Celebraram a festa durante
sete dias, e no oitavo dia realizaram uma assembléia solene, segundo a norma
(Ne 8,9-18).

Não só Esdras lê a Torah em voz alta para o povo, mas também o


povo se reúne para estudar a Torá. Esse é um novo estágio na centralida-
de do texto. Além disso, a narrativa tem o cuidado de salientar o autor
da Torá, que chegou por meio de Moisés. Em obediência ao que estuda­
ram na Torá escrita, o povo cumpre o que é conhecido hoje como a
festa judaica do Sukot (ou “festa dos tabernáculos”).
O Livro das Crônicas- é a mais extensa obra Uterária do período persa.
Embora represente uma das poucas obras literárias do período, não re­
presenta um bom motivo para se compor Uteratura. O Livro é, em grande
medida, uma repetição da história de Judá e toma emprestados inúmeros
elementos do Livro de Samuel e do Livro dos Reis. O Livro das Crônicas
começa com nove capítulos de genealogias, com ênfase nas genealogias
sacerdotais de seus autores. Em seguida, seleciona a história dos antigos
reis davídicos, começando com a morte de Saul. Uma rápida comparação
entre o Livro de Samuel e o Livro das Crônicas mostra em que medida
este último faz empréstimos das mesmas fontes:
A única mudança substancial na história é a adição de um comentário
editorial no final. Algumas das pequenas discrepâncias provavelmente
refletem um texto ligeiramente diferente na fonte das Crônicas. Muitas das
pequenas mudanças que são especialmente evidentes no original hebraico
refletem a contínua atualização da linguagem do idioma clássico para o
idioma hebraico tardio do próprio redator das Crônicas. Algumas vezes,
a atualização da Linguagem para um hebraico mais contemporâneo também
acarretou pequenas mudanças interpretativas.

246
As U.so'iiuras j st>mbra Ji.> Tumplu

1 Samuel 31 1 Crônicas 10
'Então os filisteus investiram contra 'Então os filisteus investiram contra
Israel, e os israelitas fugiram diante Israel, e todos os israelitas fugiram
dos filisteus e muitos caíram feridos diante dos filisteus, e muitos caíram
no monte Gelboé. feridos no monte Gelboé.

^Os filisteus alcançaram Saul e seus ^Os fihsteus alcançaram Saul e seus
filhos, e mataram Jônatas, Abinadab e filhos, e mataram Jônatas, Abinadab
Melquisua, filhos de Saul. e Melquisua, filhos de Saul.

cerco da batalha cerrou-se sobre cerco da batalha cerrou-se sobre


Saul; os arqueiros descobriram-no e Saul; os arqueiros descobriram-no
ele foi ferido por suas flechas. e ele foi ferido por eles.

'‘Então Saul disse a seu escudeiro: '‘Então Satil disse a seu escudeiro:
“Desembainha tua espada e “Desembainha tua espada e
trespassa-me com ela, para que esses trespassa-me com ela, para que esses
incircuncisos não o façam, divertindo-se incircuncisos não venham e divirtam-se
comigo”. Mas o escudeiro não o quis comigo”. Mas o escudeiro não o quis
fazer, pois estava tomado de grande fazer, pois estava aterrorizado. Então
terror. Então Saul tomou a espada e Saul tomou a espada e atirou-se
atirou-se sobre ela. sobre ela.

escudeiro, vendo que Saul estava escudeiro, vendo que Saul estava
morto, lançou-se também sobre sua morto, lançou-se também sobre sua
espada e morreu com ele. espada e morreu.

®Assim, Saul, seus três filhos, seu ®Assim morreu Saul, e morreram
escudeiro e todos os seus homens também seiis três filhos e toda a sua
morreram juntos no mesmo dia. casa.

''Quando os homens de Israel que ^Quando todos os homens de Israel


estavam do outro lado do vale e que estavam no vale viram que os
aqueles que estavam além do Jordão soldados haviam fugido e que Saul
viram que os homens de Israel e seus filhos estavam mortos,
haviam fugido e que Saul e seus abandonaram suas cidades e fugiram,
filhos estavam mortos, abandonaram e os fihsteus vieram e instalaram-se
suas cidades e fugiram, e os filisteus nelas.
vieram e instalaram-se nelas.

247
Como a BiWia tornou-so um livro

®No dia seguinte, quando os filisteus ®No dia seguinte, quando os filisteus
foram despojar os mortos, foram despojar os mortos,
encontraram Saul e seus três filhos encontraram Saul e seus três filhos
caídos no monte Gelboé. caídos no monte Gelboé.

®Cortaram-lhe a cabeça, despojaram-no “Eles o despojaram, cortaram sua


de sua armadura, e enviaram cabeça e tomaram sua armadura,
mensageiros por toda a terra dos e enviaram mensageiros por toda
filisteus para anunciar a notícia nas a terra dos filisteus para anunciar a
casas de seus ídolos e ao povo. notícia a seus ídolos e ao povo.

'“Depositaram a armadura no templo '“Depositaram a armadura no templo


de Astarte e suspenderam de seus deuses e suspenderam sua
seu cadáver na muralha de Betsã. cabeça no templo de Dagon.

"M as quando os habitantes de "M as toda Jabes-de-Galaad soube


Jabes-de-Galaad souberam do que de tudo o que os filisteus tinham
os filisteus tinham feito a Saul, feito a Saul,

'^todos os homens valentes puseram-se '“todos os valentes guerreiros


a caminho, andando durante toda a ergueram-se e foram buscar o corpo
noite, e retiraram o corpo de Saul e de Saul e os corpos de seus filhos,
os corpos de seus filhos da muralha e os levaram para Jabes. Então
de Betsã. Eles retomaram a Jabes enterraram seus ossos sob o carvalho
e ah os queimaram. de Jabes e jejuaram durante sete dias.

'“Tomaram seus ossos e enterraram-nos '“Saul morrera por causa de sua


sob a tamareira de Jabes, e depois infidehdade ao SENHOR, pois não
jejuaram por sete dias. observara o mandamento do
SENHOR. Além disso, ele havia
consultado alguém que evocava
espíritos, ''‘em vez de buscar a
orientação do SENHOR.
Por isso, o SENHOR o fizera morrer,
transferindo o reino
para Davi, filho de Jessé.

Em alguns casos, o Livro das Crônicas reorganizará os capítulos de


sua fonte. Por exemplo, a história do rei Davi contada em 2 Samuel 5-24
é completamente reorganizada em 1 Crônicas 11-21. Os aspectos nega­
tivos da vida de Davi — o adultério com Betsabé e o assassinato de seu

248
As Escrituras a sumisra tki Tesnplo

marido, Urias — são completamente omitidos. A reorganização serve para


enfatizar o papel de Davi como construtor do templo"’*. Um longo acrés­
cimo em 1 Crônicas 22-29 destaca o estabelecimento dos vários adminis­
tradores, cantores e sacerdotes do templo. Nos pontos em que podemos
perceber que o Livro das Crônicas teve uma fonte (dos livros canônicos de
Samuel e dos Reis), o texto usualmente a segue de maneira muito próxi­
ma, mesmo quando modifica a ordem dos capítulos. O Livro das Crônicas
faz acréscimos em poucos lugares, conforme convém aos propósitos dos
sacerdotes de Jerusalém do período persa. Os sacerdotes acrescentam,
especíalmente, genealogias e também uma longa digressão sobre a cons­
trução e a administração do templo. Eles com frequência incluem comen­
tários teológicos, como em 1 Crônicas 10,12-13, citado anteriormente. Eles
também omitem o que parece irrelevante ou aquilo que não serve aos seus
interesses. Estão muito preocupados em transformar Davi e Salomão em
reis devotos dignos de seu papel como construtores do templo. Por con­
seguinte, a maior parte dos aspectos negativos dessas figuras idealizadas é
excluída. O que mais impressiona é que os sacerdotes excluem também
todo o relato do reino setentrional de Israel conforme narrado no Livro dos
Reis. Algumas vezes, essa excisão é grosseira, sendo que vestígios da fonte
literária anterior transparecem. Em sua maior parte, porém, nessa história
revisada produzida pelos sacerdotes de Jerusalém, o reino do norte está
ausente da história do povo judeu.
No Livro das Crônicas, revela-se uma nítida consciência da ideia de tradi­
ções sagradas escritas. Quanto a isso, pode-se caracterizar aquele que redigiu
o Livro como um intérprete das Escrituras. A crescente proeminência de
textos escritos detentores de autoridade é aparente em todo o Livro das
Crônicas. Quando, por exemplo, o espírito de Deus recai sobre Azarias,
em 2 Crônicas 15, este profere uma injunção um tanto enigmática para
o povo de Judá. Mais interessante para o tema ora tratado é a declaração:

48. Ver R. Braun, The Message of Chronicles: Rally ‘Rotincl the Temple, CTM 42
(1971] 502-514; Braun, Solomon, The Chosen Temple Builder: The Significance of
1 Chronicles 22, 28, and 29 for theTheology of Chronicles, JBL 95 (1976) 581-590. Pode
haver uma obra literária mais antiga datada da época de Zorobabel (ca. 515 a.C.) subjacente
ao Livro das Crônicas canônico, mas é difícil recuperá-la com algum grau de segurança;
ver F. M. Cross, A Reconstruction of the Judean Restoration, JBL 94 (1975) 4-18.

249
Como a Bíblia tomou-so um livro

"Durante muito tempo Israel esteve sem o Deus verdadeiro, sem sacerdote
que desse instrução, sem Torah” [2Cr 15,3}. Aqui, a ideia de um “sacer­
dote que desse instrução” — sem dúvida um sacerdote como Esdras — apa­
rentemente resulta da ausência da Torah, ou seja, de uma tradição escrita.
Embora o termo torah originariamente significasse “ensinamento”, e, por
conseguinte, tivesse um contexto oral, essa torah oral, ou “ensinamento”,
é transformada na Torah escrita e textual na literatura do Segundo Templo.
A transformação é implícita, como, por exemplo, em 1 Crônicas 16,40:
“em conformidade com o que está escrito na Torah que YHWH ordenou
a Israel”'^®. Em primeiro lugar, os ensinamentos foram oralmente ordenados,
mas essas ordens foram posteriormente redigidas. Por conseguinte, a Torah
que o sacerdote ensina foi transformada nos mandamentos escritos num
documento, como vimos em 2 Crônicas 17,9: “E os sacerdotes ensinaram
em Judá, utilizando o pergaminho da Torah de YHWH, e percorreram todas
as cidades de Judá e instruiram o povo”. Vemos, no Livro das Crônicas, tanto
o texto escrito sagrado como o sacerdote que instrui o povo com base na
autoridade desse texto sagrado.
D e maneira mais geral, testemunhamos, na literatura judaica escrita
nos períodos persa e helenístico, a ascensão das Escrituras. A própria ideia
de “Escritura” depende de uma cultura textual. Numa cultura oral, as ativi­
dades de compor, aprender e transmitir se misturam, A tradição está cons­
tantemente se reinventando. A escrita, em contrapartida, congela a tradição.
Como Platão perspicazmente observa no discurso de Sócrates a Fedro, “as
palavras escritas continuam dizendo exatamente a mesma coisa para sem­
pre”. Henri-Jean Martin, em sua monumental obra Histoire et pouvoirs de
Vécrit, observa que a escrita "não é revolucionária, mas, a cada momento,
uma revolução nas comunicações parece impelir a uma fusão num todo
maior. Isso, quando ocorre, acelera as mudanças em movimento no interior
daquela sociedade”®®. O Império Persa constitui uma revolução na tecno-

49. Note-se também: 2Cr 23,18, "conforme está escrito na Torah de Moisés” (ncía
m in n e 2Cr 25,4, “conforme está escrito na Torah no livro de Moisés" [ruoa
nsD3 m in n m nsD ), 2Cr 31,3, “conforme está escrito na Torah de YHWH” (mrP
rmra mnDí)].
50. H. J. Martin, The History and Power ofWriting (trad. Lydia G. Cochranej, Chicago,
University of Chicago Press, 1994, 86-87.

250
As hssrituriis j sombra du Templo

logia da escrita. Ao padronizar irma língua e uma escrita por todo um


império que se estendia da índia à Ásia Menor e à África, os persas difun­
diram uma língua oficial por todo o Oriente Médio. A escrita não estava
mais restrita aos assuntos do governo; a escrita agora fazia parte do sistema
ctJtural disseminado por eles em todo o mundo conhecido.

Textualizando a “palavra de YHWH” — o eclipse da profecia

O aspecto mais revelador da mudança na cultura religiosa defendida


pelos sacerdotes é a transformação do significado do termo técnico “a
palavra de YHWH”. Em toda a literatura bíblica e particularmente nos
Antigos Profetas, a “palavra de YHWH” refere-se às palavras dos profetas.
Até que cheguemos ao tardio Livro das Crônicas, não há indicação, na
hteratura bíblica, de que essa “palavra de YHWH” seja algo diferente da fala
divinamente comandada dos profetas. Essa expressão é crucial para a mu­
dança do conceito da palavra de Deus entre os escribas e os sacerdotes
do templo durante o período persa.
Vale a pena expor mais detalhadamente essa questão®’ . A expressão “a
palavra de YHWH” aparece cerca de duzentas e quarenta vezes na Bíblia
hebraica. Surpreendentemente, “a palavra de YHWH” não é usada para des­
crever a revelação mosaica no Pentateuco®^. No Pentateuco, Deus “fala” a
Moisés, mas as fórmulas usadas são completamente diferentes. A expressão
“a palavra de YHWH” usualmente aparece em fórmulas estereotipadas
relacionadas à palavra oracular e profética. Aparece principalmente nos
livros proféticos anteriores e posteriores. Há, por exemplo, uma variedade
de expressões que começam da seguinte maneira: “e a palavra de YHWH

51. Isso é discutido mais pormenorizadamente em meu livro: Scliniedewind, The


Word ofGod in Transitíon: From Prophet to Exegete in the SecondTemple Period (JSOTSS,
197), Sheffield, JSOT, 1995,130-138.
52. O único caso no qual se poderia encontrar a expressão usada dessa maneira é
Dt 5,5. Contudo, é evidente nos manuscritos uma considerável variação textual entre as
expressões “palavras de YHWH” e “palavra de YHWH”. Isso provavelmente reflete uma con­
fusão posterior que mesclou a revelação mosaica com o discurso profético; ver Schniedewind,
The Word of God in Transition, 131-132.

251
Como a Bíblia tornou-se um livr

veio ao profeta X ”. Há também frequentes resumos de eventos que têm em


sua conclusão: “tais e tais coisas sucederam segundo a palavra de YHWH
pelo profeta X ”. Assim, “a palavra de YHWH” é um termo técnico para a
revelação profética.
Isso foi sucintamente comentado no capítulo 6 deste Uvro, ao discutir-
se a crítica da palavra escrita pelo profeta Jeremias. Jeremias queixava-se
de que os escribas e os homens instruídos haviam rejeitado “a palavra de
YHWH”, favorecendo, em vez disso, a Torah escrita [Jr 8,7-9). Fundamen­
talmente, Jeremias reclamava de que “os escribas e os homens instruídos”
haviam substituído os lod tradicionais da autoridade — a tradição oral e
a palavra profética — por um novo tipo de autoridade, a palavra escrita. A
Torah, que antes era “instrução oral”, foi transformada numa autoridade
textual pela “falsa pena dos escribas”. Os sacerdotes e os escribas de Jeru­
salém no período persa promoverão essa transformação. O profeta Jeremias
queixara-se de que o significado da torah havia sido transformado de
tradição oral em texto. Agora, no Livro das Crônicas, “a palavra de YHWH”,
que antes era a palavra oral de Deus transmitida pelos profetas, fora
transformada na palavra escrita de Deus.
Pode parecer estranho que a palavra hebraica “profecia” — nevü’ah —
tenha sido cunhada nó período persa tardio. A palavra aparece somente
no Livro das Crônicas e nos Livros de Esdras e Neemias (2Cr 9,29; 15,8;
Esd 6,14; Ne 6,12), que foram redigidos no período persa. Qual é a razão
disto? Dizendo de maneira simples, a expressão normal para profecia an­
teriormente era “a palavra de YHWH de Deus”, mas o processo de textua-
lização das tradições hterárias apropriou-se da expressão. Uma vez que a
“palavra de YHWH” passou a referir-se à Torá de Moisés, tornou-se neces­
sário um novo modo de referir-se especificamente à palavra profética. Esse
neologismo, naturalmente, continua a exercer uma enomae influência sobre
a expressão rehgiosa moderna — usualmente, hoje, pensa-se na “palavra
de Deus” como um texto.
A profecia bíbhca em si mesma desaparece [ao menos formalmente)
na esteira dessa transformação^^. A expressão “a palavra de YHWH” fora

53. Sobre o problema do final da profecia, ver Frederick Greenspahn, Why Prophec
Ceased, JBL 108 [1989] 37-49; Benjamin Sommer, Did Prophecy Cease? Evaluatíng a
Reevaluatíon, 7BL 115 [1996] 31-47.

252
As Escrituras ã sombra duTomplo

central na descrição da recepção profética da palavra de Deus. Com a


apropriação dessa expressão, a profecia em si mesma será subsumida na
palavra escrita e desaparecerá. Há uma forte tradição judaica segundo a qual
a profecia terminou com a destruição do Templo em 586 a.C. Zacarias,
Ageu e Malaquias são considerados os últimos grandes profetas e são
substituídos pelos sábios. Outra terminologia também reflete essa nova
ênfase na palavra escrita como base de autoridade religiosa. A palavra
darash, “inquirir”, e a palavra Midrash, o substantivo a ela relacionado, não
mais significavam simplesmente “inquirir”, mas começaram a ser usadas
como a interpretação de um texto escrito^'*. Assim, por exemplo, Esdras
“aplicara-se de todo o coração ao estudo \darask\ da Torah de YHWH”
(Esd 7,10). A profecia se tomará, cada vez mais, um fenômeno escribal. O
“profeta” será aquele capaz de compreender os mistérios de Deus codifi­
cados na palavra escrita. Um exemplo explícito desse processo encontra-se
entre os Manuscritos do Mar Morto, no comentário sobre o livro profético
de Habacuc. O verdadeiro intérprete era “o Mestre de Justiça”, a quem Deus
tom ou conhecidos todos os mistérios de seus servos, os profetas” (1 QpHab
7,4-5), Os próprios profetas não compreendiam suas revelações, mas
Deus mostrava ao líder da comunidade, o Mestre de Justiça, o significado
dos escritos proféticos. Ironicamente, a seita não considera o Mestre de
Justiça um profeta. Antes, ele era considerado o intérprete inspirado da
palavra divina.
O Livro das Crônicas usa quatro fórmulas para suas citações formais
da lei mosaica conhecida por meio do Pentateuco. A maneira mais comum
de citar a lei mosaica começa com “conforme está escrito”, uma expressão
frequentemente usada nos livros de Esdras e Neemias, bem como no Livro
das Crônicas^^. As outras fórmulas incluem “segundo as prescrições de
Moisés” (por exemplo, em 2Cr 8,13), “segundo a Torah de Moisés” (por
exemplo, em 2 Cr 30,16) e “segundo a palavra de YHWH” (por exemplo,
em IC r 15,15; 2Cr 35,6). No Livro das Crônicas e nos Livros de Esdras
e Neemias, a referência à legislação mosaica escrita aparece como um
aspecto regular da apresentação do historiador. As duas últimas expressões.

54. M. Fishbane, Torah, in Encyclopaedia Miqra'it, vol. 8, Jerusalém, Bialik, 1982, col.
469-483 (hebraico).
55. Ver, por exemplo, Esd 3,2.4; 6,18; Ne 8,15; 10,34.36; 2Cr 23,18; 25,4; 30,5.18.

253
Lomn a Ríhlia tornou-so um livrei

"a Torah de Moisés” e “a palavra de YHWH”, apontam para uma mudança


semântica crucial da tradição oral para a tradição escrita.
No período persa e no período helenístico, o processo de escrita da
literatura bíblica chega ao fim. Nos últimos escritos bíblicos, já vemos o
desenvolvimento do conceito do texto escrito sagrado. Mas teria sido com­
pleta a textuahzação do antigo Israel? Alguns teriam rejeitado a substituição
da autoridade oral tradicional pela palavra escrita. Embora a profecia tenha
sido marginaUzada pela nova ortodoxia, ela ressurgiría mais tarde sob novas
formas, como Hteratura apocahptica. Mas, fundamentalmente, a dissensão
foi silenciada na história. Em primeiro lugar, foi silenciada pelo próprio locus
oral. A tradição oral não é preservada para as futuras gerações após o desa­
parecimento daqueles que a transmitiam oralmente. Ironicamente, para
que a crítica à palavra escrita — como vemos em Jeremias — fosse preser­
vada, ela tinha de ser escrita! Desse modo, há uma propensão institucional
que limita nosso conhecimento da real extensão da crítica à palavra escrita
no judaísmo do Segundo Templo. Em segundo lugar, o controle da escrita re­
sidia entre as elites rehgiosa e pohtica. Aqueles que tinham interesses na
transferência da autoridade da tradição oral para o texto escrito eram tam­
bém aqueles que controlavam os meios de produção da palavra escrita.
Quanto mais limitados os recursos econômicos e mais restrita a Uderança
política, mais difícil se tomaria produzir textos hterários subversivos. Isso
era ainda mais marcado na Antiguidade, antes que mpturas na tecnologia
da escrita tomassem mais viável a disseminação do letramento. O süêncio da
crítica à autoridade dos textos escritos é um reflexo dos anos sombrios do
período persa. Mas o silêncio seria rompido pelas vozes do judaísmo forma-
tivo e do cristianismo.

A sinopse

Chegou o momento de revisar alguns dos principais argumentos deste


livro e examinar como respondí a algumas das questões que formulei.
Quando a Bíblia foi escrita? Por que foi escrita? Como a Bíblia se tornou
um livro? Abordei estas questões a partir da perspectiva do papel que os
textos escritos representaram no antigo Israel. Destaquei que a escrita tinha
um papel restrito na Antiguidade. A escrita era, antes de mais nada, contro­
lada pelo Estado. Era tanto uma exibição do poder do Estado como uma

254
A >i I; , » : n t u r i i i a s o m h r u lU i K m v ij i I u

ferramenta da administração estatal. Em segundo lugar, a escrita era consi­


derada uma dádiva dos deuses. Como tal, fazia parte de rituais mágicos
como os textos de Execração ou o ritual da água amarga (Nm 5). A escrita
era também algo feito no céu, como no Livro da Vida ou nas tábuas di­
vinas que traziam originalmente os planos para a morada terrena de Deus.
A tradição oral, em contraposição, era o meio da continuidade cultural. O
antigo Israel entoava cânticos de seus ancestrais e contava histórias de seus
antepassados. Por meio de provérbios, contos populares e cânticos, cada
geração recebia e transmitia o legado cultural do antigo Israel.
Uma grande transição começou no antigo Israel no final do século VIII
a.C. A escrita tornou-se mais centralizada e mais disseminada em Judá; à
medida que a sociedade se urbanizou, a economia tornou-se mais com­
plexa e o governo, mais substancial. A escrita sempre fora uma projeção
do poder real, e agora esse poder estendia-se à compilação de uma grande
biblioteca em Jerusalém (assim como os assírios e os egípcios faziam nesse
mesmo período). O rei Ezequias almejava criar um reino similar ao legen­
dário (em sua época) reino de Davi e Salomão. As tradições orais do antigo
Israel foram compiladas em textos escritos. Os arquivos do palácio con­
tendo os textos do antigo reino de Judá eram usados na composição de
histórias sobre seus reis. Um catalisador da restauração da época de ouro
de Israel — ou seja, a monarquia unida de Davi e Salomão — foi a queda
do reino setentrional de Israel. Essa destruição final corroborava a casa de
Davi, que durante séculos estivera em conflito com seu vizinho do norte.
Independentemente do número de refugiados do norte que afluíam para
Jerusalém, Judá acomodava não só esses novos cidadãos, mas também
suas tradições. Algumas de suas tradições proféticas, como as do Livro de
Oseias, foram editadas na corte real judia. Considerava-se que isso tam­
bém corroborava Judá. Redigiu-se uma história de Israel como se Judá e
Israel formassem um único reino, embora mesmo esse relato reconheça
que o Israel “unido” era apenas um momento histórico efêmero. No en­
tanto, essa ideologia de um único reino das doze tribos de Israel foi in­
corporada na literatura do final do século VIII. Essa literatura preservava
e criava a época de ouro de Davi e Salomão. Esse grande florescimento
literário, embora breve, foi o início da literatura bíbhca como a conhece­
mos. A visão política de Ezequias assumiu sua expressão militar numa
revolta contra a Assíria em 705 a.C. O rei assírio Senaquerib aniquilou
essa revolta em 701 a.C. e, com ela, todos os sonhos de uma nova época

255
Como a Bíblia lornou-se um livro

de ouro sob o governo dos jEilhos de Ezequias. Judá então sofreu como
um vassalo da Assíria até o fim do Império Assírio nos dias do reis Josias
(r. 640-609 a.C ].
A segunda maior fase de formação da literatura da Bíblia ocorreu no
tempo do rei Josias, no final do século VII a.C. O uso da escrita para pro­
pósitos econômicos e administrativos continuou incessantemente desde os
dias de Ezequias. O letramento disseminara-se por todo o tecido da socie­
dade judia. Os soldados sabiam ler e escrever. Os artesãos eram letrados.
Enquanto a escrita havia tido previamente um papel restrito na sociedade,
a disseminação da escrita na vida cotidiana significava que agora a escrita
podia se tomar uma ferramenta para a subversão do poder centralizado
do governo. Os textos não eram mais apenas produtos do palácio ou dos
sacerdotes. Um ponto de virada na literatura bíblica foi o assassinato do rei
Amon (r. 642-640 a.C.); o “povo da terra” estabeleceu no trono de Jemsalém
o rei menino, Josias, na tenra idade de oito anos. Influenciado pelo “povo
da terra” e pelas conexões de sua família nos contrafortes de Judá, Josias
instituiu reformas políticas e religiosas que visavam diretamente a in­
fluência cultural que a urbanização e a afluência dos refugiados do norte
haviam tido nos tempos de Ezequias. A escrita tomou-se uma ferramenta,
como no Livro do Deuteronômio, para criticar a visão de Ezequias. De
acordo com os deuteronomistas, Salomão não era um grande rei, mas um
rei que violara a lei divina conforme registrado no “livro da aliança” (com­
parar IRs 11 com D t 17,14-20). Os deuteronomistas defendiam um re­
torno à rehgião tradicional de seus antepassados. Evidentemente, essa
tensão entre o urbano e o rural, entre o palácio central e os anciãos mrais,
sempre deve ter existido. Contudo, a revolução deuteronômica conferiu
aos anciãos rurais uma voz escrita. Os escritos antigos, que haviam sido
elevados a propaganda literária no tempo de Ezequias, foram revertidos.
A escrita se tomou um modo típico de expressão nos últimos dias da mo­
narquia em Judá. A literatura bíblica teve seu ápice nas últimas décadas
dessa monarquia.
O fim do grande florescimento literário independente chegou rapida­
mente. A tranquilidade entre a queda do Império Assírio e a ascensão do
Império Babilônico teve apenas a duração do reinado de Josias (r. 640­
609 a.C.). Quando Josias morreu numa batalha em Meguido, pelas mãos
do faraó egípcio Necao, morreu também a esperança de um reino judeu
independente.

256
F.v.riuiras a Jti Ii.-mplu

Os babilônios rapidamente assumiram o controle da região; três cam­


panhas militares, em 597, 586 e 581 a.C., foram pontuadas pela destruição
e pelo exílio. A família real, liderada pelo rei Joiaquin, submeteu-se aos
babilônios em 597 a.C. e foi levada para o exílio, onde, ao que parece, era
relativamente bem tratada. Aqueles que permaneceram e resistiram aos
babilônios não tiveram a mesma sorte. Os babilônios pilharam a região, e
Judá foi despopulada pela destruição, pelo exíHo e pela fuga até que a terra
estivesse quase desabitada. Os cativos judeus trabalhavam como escravos
nos projetos de canais da Babilônia, enquanto a família real de Judá e sua
corte vivia com relativo conforto na cidadela ao sul na cidade da Babilônia.
Por causa de tudo isso, o período exílico foi um período de retração para a
literatura bíblica. A escrita e a preservação da literatura bíbUca retornaram
às mãos da família real. A continuidade na famíUa real de Joiaquin che­
gou até o final do século VI a.C., perdurando mesmo após a queda da Babüônia
até o rei persa Ciro, em 539 a.C. Sob o domínio persa, um descendente
de Joiaquin, Zorobabel, assumiu a liderança daqueles que regressavam a
Jerusalém no final do século VI a.C. Contudo, Jerusalém e Judá eram me­
ras sombras do que haviam sido. A terra estava devastada pela guerra e
despopulada. Como parte da afirmação da liderança na restauração por
parte da família real, Zorobabel ajudou a reconstruir o Templo (concluído
em 515 a.C.). Pouco depois, porém, Zorobabel e a famíha real desapare­
ceram misteríosamente. A literatura bíblica do período exílico e do início do
pós-exílico, em sua maior parte, completa e atualiza obras anteriores. A
grande mudança da oralidade para a textualidade, que teve início no período
tardio da monarquia judia, sofreu um enorme revés com a devastação de
Jerusalém e de Judá. As condições nas quais o letramento e a textualidade
puderam florescer desapareceram.
O período persa foi uma época sombria para a literatura bíblica. A
província persa de lehud estava despopulada, empobrecida e geografica­
mente isolada. A outrora grande cidade de Jerusalém permaneceu, em sua
maior parte, em ruínas. Até mesmo a língua hebraica experimentou um
declínio, à medida que a língua e as letras aramaicas começaram a substi­
tuir o hebraico como a língua dos judeus. À sombra do Império Persa, sa­
cerdotes fiéis do Templo de Jerusalém preservaram a literatura bíblica. Em
sua maior parte, o trabalho dos sacerdotes não foi a composição da litera­
tura, mas sua preservação. Isso significa que eles acrescentaram a estrutura
editorial à parte da literatura bíblica. Os grandiosos poemas do Livro de Jó,

257
Como a Ríblia tornou-sc um livro

por exemplo, ganharam um prólogo e uma conclusão. Os sacerdotes mol­


daram os Salmos num hvro composto de cinco partes, em paralelo com os
Cinco Livros de Moisés [ou o Pentateuco). O sacerdote Esdras era um
exemplar ideal do novo sacerdócio. Esdras era um líder religioso e secular
que recebera instrução nas cortes dos reis persas e servira em Jerusalém com
seu apoio. Com base nos livros de Esdras e Neemias, que estão entre os
poucos livros bíblicos efetivamente compostos durante o período persa, fica
claro que Esdras recebeu instrução na chancelaria escribal em aramaico.
Esdras e a liderança sacerdotal eram os guardiões e os professores dos textos
sagrados. Como tais, controlavam os textos detentores de autoridade. Essa
liderança sacerdotal secular persistiu até o final do período do Segundo
Templo e a destruição de Jemsalém pelos romanos em 70 d.C. Está claro que,
no final do período do Segundo Templo, a liderança sacerdotal rejeitou ex­
plicitamente a autoridade da tradição oral. Indubitavelmente, fizeram isso
porque a tradição oral solapava a autoridade escriturai que podiam reivindi­
car como professores de Israel. A liderança rabínica que se seguiu à destrui­
ção do Segundo Templo assinalaria uma ruptura decisiva com esse modelo
de liderança seciilar pelos sacerdotes e sua rejeição da tradição oral.
Isso nos conduz ao epílogo de nossa história. No século III a.C , a lite­
ratura judaica viria a florescer novamente, sob o renascimento cultural do
helenismo. O governo egípcio helenístico trouxe a paz e uma relativa pros­
peridade a Jerusalém. A cidade começou a crescer outra vez. Mas o cânone
da literatura bíblica estava, em grande medida, já conclmdo. A maior parte
da Bíblia não estava mais sendo escrita. Em vez disso, estava sendo copiada,
traduzida, parafraseada, comentada e embelezada de todas as maneiras pos­
síveis. Os literatos eram, em grande medida, os sacerdotes e os levitas. No
final do século III a.C , os estudantes de escolas judaicas em Jerusalém esta­
vam estudando as Escrituras conforme exemplificadas nos provérbios do
professor sacerdotal Sirac. N a metade do século III, as escrituras estavam
sendo traduzidas para o grego pelos sacerdotes na diáspora egípcia. Os Ma­
nuscritos do Mar Morto incluem manuscritos hebraicos datados do século
III a.C , apontando para uma atividade de cópia e transmissão das escrituras
hebraicas. Nem o judaísmo rabínico nem os primórdios do cristianismo, em
contraposição, teriam os escribas entre seus primeiros adeptos. Nenhum dos
dois era dominado pelas ehtes sociais ou por sacerdotes instruídos. Em vez
disso, foram movimentos laicos e emergiram dentre os não instruídos. Como
resultado disso, viriam a refletir a autoridade da tradição oral e do professor.

258
uai seria o papel da palavra escrita quando o judaísmo e o cristianismo
surgiram nos primeiros séculos? Como forma de concluir, gostaria de refletir
sobre a relação entre a tradição oral e o texto escrito na formação do judaísmo
e do cristianismo. Embora o âmago deste livro seja sua visão do início do de­
senvolvimento da escrita e dos textos no antigo Israel e sua relação com a
formação da Bíblia hebraica, parece válido sugerir de que maneira essa textua-
lização chegou ao fim no período formativo do judaísmo e do cristianismo.
A textualização está entre os grandes desenvolvimentos culturais do
primeiro milênio da Era Cristã. Por exemplo, a textualização é certamente
um dos mais fascinantes aspectos da ascensão do Islã. Com efeito, a expres­
são “povo do livro” originou-se no Islã, referindo-se ao próprio Islã, ao ju ­
daísmo e ap cristianismo. Além disso, em Veda and Torah: Transcending the
Textuality of Scripture [1996], Barbara Holdrege refletiu sobre a textuali-
dade nas tradições hindu e judaica durante o primeiro milênio da Era Cristã.
Os Vedas foram transmitidos oralmente por muitos séculos. Eles eram
transmitidos oralmente não porque a escrita fosse desconhecida entre os
hindus, mas em razão da primazia da oralidade.
Com efeito, o conceito da palavra escrita sagrada e detentora de auto­
ridade já é atestado nos últimos livros da Bíblia hebraica redigidos no
período persa. Esse conceito está muito claro no livro sacerdotal de Sirac,

259
Como a Rihlia tornou-se um '

que foi composto no início do século II a.C. e já citava uma divisão canô­
nica da Bíblia judaica em: Lei, Profetas e Escritos (aos quais Ben Sirac re­
feria-se como “os outros livros”) ’. Do mesmo modo, os Manuscritos do Mar
Morto também reconhecem o cânone tripartite, embora a forma final desse
cânone ainda não estivesse determinada^. Enquanto a literatura bíblica
fosse copiada em pergaminhos, a ordem canônica exata dos livros bíbhcos
não estaria definida. Conhecia-se a divisão básica tripartite da Bíblia hebraica,
mas não se sabia necessariamente quais fivros inseriam-se em qual parte.
Assim, por exemplo, o Livro de Rute era às vezes incluído como parte do
Livro dos Juizes, na seção que incluía os Profetas; mais usualmente, era
situado na terceira divisão dos Escritos. Assim, a ordem dos livros variou
um pouco nos primeiros séculos da Era Cristã. Mais que isso, uma ordem
canônica inteiramente diferente foi também tomando forma entre os
judeus na diáspora, especialmente em Alexandria. Essa organização mais
historicamente orientada dos livros individuais tomou-se, por fim, a base dos
cânones cristãos. Mas a invenção do códice forçou a tomada de decisões
acerca da ordem estabelecida dos fivros bíblicos. Os cristãos adotaram o
códice para seus manuscritos a partir do século II d.C.^, e essa preferência
ajudou a moldar o cânone da literatura cristã. Os judeus, em contraposição,
continuaram a favorecer, o pergaminho como material de escrita ainda
por muitos séculos após a invenção do códice.
Embora os escritos sagrados tenham adquirido um papel importante
tanto para os primeiros cristãos como para os judeus, a substituição da
tradição oral não foi rápida nem simples entre as massas. A palavra escrita
havia sido a esfera das elites sociais. Ela protegia a ortodoxia religiosa da
aristocracia sacerdotal. Ela foi uma ferramenta do governo e do império.
A tradição oral, em contraposição, situava-se na família e nas relações de

1. Para uma pesquisa sobre o desenvolvimento do cânone, ver D. Carr, Canonization in


the Context of the Community: An Outline of the Formation of Tanakh and the Christian
Canon, in A Gift of God in Season: Essays on Scripture and Community in Honor of James
A. Sanders (ed. R. Weis e D. Carr), Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996, 22-64.
2. VerMMTC10 [4Q397 fragg. 14-21,linha 10). Para uma crítica do cânone tripartite
em MMT, ver E. Ubrich, The Non-attestation of a Tripartite Canon in 4QMMT, CBQ 65
(2003) 202-214.
3. Ver a discussão geral em L. Casson, Libraries in theAncient World, New Haven, Yale
University Press, 2001,124-135.

260
línrli)t;n.

parentesco. A tradição oral tinha prosseguimento por meio de provérbios,


histórias e cânticos transmitidos de geração a geração. Além disso, como
argumenta WiUiam Graham em seu livro Beyond the Written Word: Oral
Aspects of Scripture in the History of R eli^n , mesmo a palavra escrita é re­
lacionai. Ou seja, “um texto se toma ‘escritura’ numa relação ativa e subje­
tiva com as pessoas e como parte de uma tradição comum cumulativa.
Nenhum texto, seja ele escrito ou oral, ou ambos, é sagrado isoladamente
de uma comunidade’”'. Do mesmo modo, mesmo após a textualização da
tradição oral, ela nunca escapa completamente de uma orahdade fundamen­
tal. Assim, estudiosos falam da escrita de maneira oral ou da oralidade escri-
bal. Muitas das formas hterárias da escrita são efetivamente provenientes
de um cenário oral, incluindo, por exemplo, a antiga fórmula israelita usada
na escrita de cartas. Essa derivação impele ao uso de um oximoro como a
oralidade escribal ou a escrita oral. Há uma área cinzenta entre a oraUdade
e o letramento. Por conseguinte, o termo “letrado” precisa ser cuidadosa­
mente definido. O letramento pode existir em muitos níveis diferentes
— desde o letramento mundano de artesãos e burocratas de baixo escalão
até o alto letramento de escribas e estudiosos da corte. A oralidade continua
a exercer influência sobre a escrita e os textos mesmo depois que as pes­
soas tenham ultrapassado a fronteira do letramento.
Embora haja altos e baixos entre a oralidade e o letramento, a orali­
dade e a textuahdade situam-se em lados opostos e, às vezes, contrapostos
da autoridade cultural. Podemos tomar como exemplo das tensões entre
a tradição oral e a palavra escrita que fizeram parte do inicio do judaísmo e
do cristianismo uma discussão haláchica entre o rabino Elazar ben Azaria
e o rabino Akiba. Elazar rejeita a interpretação de Akiba das Escrituras,
favorecendo a tradição oral. Elazar diz: “Mesmo que você explique o ver­
sículo o dia todo, eu não o aceitarei; é preferível a Torah oral transmitida
a Moisés no Sinai” (cf. Sifra Tzav, Parashah he, Pereq Yod Alef, 34b-35a;
B. Menahot, 89a). Essa é uma questão referente ao lugar onde reside a
autoridade cultural. Ela não reside na citação e na expficação das Escrituras.
De acordo com Elazar, ela está na tradição oral, transmitida desde Moisés
no interior da comunidade. Embora também possa haver simbiose entre a

4. W. Graham, Beyond the Written Word: Oral Aspects of Scripture in the History o
Religion, Camhridge, Cambridge University Press, 1987, 5.

261
Como ii Bihlia tcinviii-si? um li\ro

oralidade e a textualidade, não há continttidade. Há uma escolha a ser feita


aqui. A autoridade está no texto ou no professor? Se a autoridade reside
no texto, o professor pode ser dispensado (ainda que isso nem sempre acon­
teça). Não é uma coincidência que o refrão de Martim Lutero ‘‘sola scriptura”
(“somente a Escritura”) tenha criado raízes no solo fértil da G aláxia de
Gutenberg (tomando emprestado o título da obra seminal de Marshall
McLuhan). É também instrutivo que as reivindicações concorrentes da
oralidade e da textualidade tenham uma longa história. Essa história foi
influenciada pela inovação tecnológica e pela mudança sociopolítica.
O apelo ao texto não elimina a necessidade do professor, mas toma o
letramento um pré-requisito. Nas reformas de Josias, por exemplo, o sacer­
dote Helcias encontra o pergaminho e o escriba Safan o lê para o rei. Nas
reformas do período persa, o sacerdote e escriba Esdras lê a Torah para o
povo. Os levitas — “os guardiões do tabernáculo do Senhor” (segundo
Nm 31,30.47) — também participavam da leitura e da interpretação da
Torá (Ne 8,8-9). A ortodoxia do texto, nesses cenários, restringia a auto­
ridade religiosa àqueles que tinham os textos e podiam lê-los. Na prática,
isso tendia a concentrar a autoridade rehgiosa no templo, onde eram man­
tidos os antigos pergaminhos, e a centralizá-la nos escribas sacerdotais que
podiam ler os textos sagrados.
À medida que a tradição oral se textuahzava no judaísmo e no cristianis­
mo, a distinção entre a autoridade cultural do texto e da tradição oral tomava-
se indefinida. A partir do século III a.C , ser o santuário da Torá, que abrigava
a arca contendo o perganoinho da Torá, tomou-se um aspecto central da antiga
sinagoga. Essa tradição continua na sinagoga moderna. Esse antigo aspecto
arquitetônico provavelmente encorajou a retenção do pergarninho como um
meio preferível para a escrita. Mas o pergaminho também refletia uma re­
jeição fundamental, talvez ideológica, do conceito do códice. E interessante
que a Torá está ausente nas mais antigas sinagogas. Até sua destruição em 70
d.C., o Templo de Jerusalém era o centro da comunidade judaica na Judeia,
bem como da diáspora. O ensino da Torá era feito diariamente no Templo
e suas cortes, pelos sacerdotes, pelos levitas e pelos escribas. A sinagoga, em
contraposição, era acima de tudo um centro religioso no qual o culto era
conduzido provavelmente nos Sabás e nos dias de festas^.

5. Para uma discussão exaustiva sobre a antiga sinagoga, ver L. Levine, The Ancien
Synagogue:'The FirstThousandYears, New Haven, Yale University Press, 2000. Uma discussão

262
hpíkiU>.‘

A Bíblia já estava escrita. Mas a disputa pela Bíblia ainda não chegara
ao fim. Nos primeiros séculos da Era Cristã, o texto ainda tinha de se afir­
mar como única autoridade religiosa no judaísmo e no cristianismo, que
estavam em seus estágios formativos. O papel da literatura bíbhca como
Escritura detentora de autoridade seria uma das questões essenciais no
esforço dessas tradições refigiosas por se definir. Tanto o cristianismo como
o judaísmo rabínico originaram-se da cultura popular. Eles não foram pa­
trocinados pelo Estado, nem emergiram da rehgião institucionalizada. Em
virtude disso, a palavra escrita desempenhou um papel complexo nos pri-
mórdios do cristianismo e no judaísmo formativo.

O lugar social da palavra escrita

A ascensão do helenismo e a revolução cultural por ele gerada no


Oriente Médio foram cruciais para o surgimento das Escrituras Sagradas.
Após os distúrbios que caracterizaram o século IV a.C. na Palestina, a
situação política se estabilizou no século III a.C. A Palestina estava sob o
controle dos governantes helenísticos do Egito, conhecidos como Ptolo-
meus. O Egito começou a prosperar. O vale do rio Nilo produzia grãos em
abundância, que eram comercializados em todo o mundo mediterrâneo.
Os governantes helenísticos começaram a construir novamente, tentando,
com seus grandes templos e palácios, recapturar a glória do passado egípcio.
O Egito experimentou um renascimento.
Os governantes ptolemaicos consideravam-se intelectuais. Estabele­
ceram a capital em Alexandria, a cidade que Alexandre Magno fundara em
331 a.C., após conquistar o Egito. Ptolomeu I (também conhecido como
Ptolomeu Sóter, r. 305-282 a.C.) instituiu a grande biblioteca em Alexan­
dria® e construiu também um museu como local de reunião de escritores,
poetas, cientistas e estudiosos. Os membros recebiam um salário, bem como
acomodação e alimentação gratuitas. O próprio Ptolomeu Sóter escreveu

crítica sobre a origem e o desenvolvimento da sinagoga na Antiguidade pode ser encontrada


em Ancient Synagogues: Historical Analysis and Archaeological Discovery (ed. P. Flesher e
D. Urman), Leiden, Brill, 1995.
6. Ver Casson, Lihraries in the Ancient World, 32-33.

263
Como a Bíblia tornou-se um livro

uma reconhecida história sobre Alexandre Magno. A biblioteca de Alexandria


íundada por ele cresceu sob o generoso patrocínio de Ptolomeu II [Ptolomeu
Filadelfo, r. 282-246 a.C ). De modo conveniente para a grande biblioteca
de Alexandria, o Egito tinha o monopólio do principal material de escrita do
mundo antigo — o papiro. Segundo a Carta de Aristeas, Ptolomeu II, rei
do Egito, pediu que sua bibUoteca recolhesse livros de todo o mundo. Su­
põe-se que a biblioteca contivesse mais de 490 mil pergaminhos.
Ptolomeu Filadelfo é lembrado por sua generosidade para com a ciência
e as artes. De acordo com uma tradição popular judaica, Filadelfo chegou a
encomendar a tradução da Torá para o grego. De maneira geral, procurou
por todos os meios adquirir livros para sua biblioteca. Ele construiu Alexandria
na capital cultural do mundo hdenístico. Ele também difundiu o helenismo na
Palestina, criando cidades helenísticas como Fdadélfia (que hoje está dentro
da cidade de Amã, na Jordânia], FÜotéria (no mar da Galileia) e Ptolemaida
(ao norte da atual cidade de Haifa na costa do Mediterrâneo]. Ptolomeu III
(Ptolomeu Evergeta I, r. 246-222 a.C ] era também um patrono da literatura,
e Ptolomeu IV (Ptolomeu Fdopator, r. 222-204 a.C ] era um escritor.
Os judeus foram também alcançados pela revolução cultural do Egito
ptolemaico. Embora a Carta de Aristeas sugira que Ptolomeu tenha enco­
mendado a tradução da Torá, a maioria dos estudiosos acredita que a
tradução era feita pela comunidade judaica para a própria comunidade
judaica no Egito que não compreendia mais o hebraico. Aparentemente,
a maior parte da Bíblia hebraica foi traduzida no século III a.C. no Egito.
Provavelmente, não é coincidência que os mais antigos manuscritos bíbli­
cos remanescentes encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto datem
da metade do século III. Ou seja, a primeira evidência não bíblica do es­
tudo, da cópia e da tradução da literatura bíblica data precisamente do
século III a.C. Tais manuscritos atestam a existência de uma tradição
escribal vigorosa que se desenvolveu no período helenístico.

O s sacerdotes como professores

Os sacerdotes eram os guardiães e os professores do texto escrito


sagrado no período do Segundo Templo^. Eles eram os professores da lei.

7. Steven Fraade, em vários artigos, argumenta de maneira convincente em favor disso


The Early Rabbinic Sage, in The Sage in Israel and the Ancient Near East (ed. J. Gammie e

264
FpiUijio

Ainda que, durante o período da monarquia, a escrita estivesse relacio­


nada principalmente ao governo e aos escribas reais, após a reconstrução
do Templo de Jerusalém, em 515 a.C., a liderança secular de Israel havia
sido transferida para os sacerdotes. Além de terem assumido a liderança
secular, os sacerdotes também herdaram o papel administrativo da escrita
no Império Persa. Ao mesmo tempo, ficaram a cargo dos escritos sagrados,
depositados no Templo, e sacerdotes e levitas estavam incumbidos de en­
sinar e interpretar as Escrituras. A primeira declaração explícita sobre essa
função dos sacerdotes está numa composição do período persa, o Livro das
Crônicas, que relata que o rei Josafá designou sacerdotes e levitas para
“ensinar em Judá, com o livro da Torah de YHWH; eles percorriam todas
as cidades de Judá e ensinavam o povo” (2Cr 17,9).
Um livro apócrifo, o Sirácida, reflete uma escola sacerdotal aristocrática
que estava estudando intensamente as Escrituras em hebraico no fim do
século III a.C. No século II, um sacerdote conhecido como Yeshua Ben
Ehezer Ben Sirac traduziu o livro hebraico de seu avô para o grego, no Hvro
hoje conhecido como Sirácida^. O avô, Ben Sirac, viveu em Jerusalém, onde
tinha sua escola (c£ Sr 50,27). Essa é a primeira menção a uma escola na
literatura hebraica, e é às vezes usada (de modo inteiramente inapropriado)
para remeter a instituição de escolas ao antigo Israel. O mundo de Ben Sirac,
contudo, era um mundo completamente helenístico. A instituição de escolas
e o estudo descritos no Sirácida são reflexos da cultura helenístico, e não
remanescentes de um sistema escolar do antigo Israel. D e acordo com o
prefácio da tradução grega:

Muitos ensinamentos importantes nos foram transmitidos pela Lei e pelos


Profetas e por aqueles que os seguiram [...]. Mas aqueles que leem as escri­
turas devem não apenas compreendê-las eles próprios, mas devem também,
como amigos do saber, ser capazes de ajudar os que estão de fora, tanto pela

L. Perduej, Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1990, 417-436. Gostaria também de agradecer ao
professor Fraade por me ceder uma cópia de seu artigo ainda não publicado, Piiests, Sciibes
and Sages in SecondTemple Umes, que desenvolve esse argumento de maneira mais detalhada.
8. Fragmentos da obra original em hebraico foram descobertos entre os manuscrito
da Guenizá do Cairo; ver H. Rüger, Text und Textform im hehrãischen Sirach (BZAW, 112),
Berlim, de Gruyer, 1970.

265
Como a Bihlia tonimi-se um livn

palavra falada como pela palavra escrita. Eis por que meu avô Yeshua, que
se dedicara especialmente à leitura da Lei e dos Profetas e dos demais livros
de nossos ancestrais, e adquirira neles considerável proficiência, foi também
levado a escrever a respeito da instrução e da sabedoria, para que, familiari­
zando-se também com seu livro, aqueles que amam o saber possam progredir
ainda mais na vida em conformidade com a lei.

No Sirácida, os filhos de Aarão são exaltados como professores de Israel:


“Deus conferiu-lhe autoridade sobre seus mandamentos, preceitos e julga­
mentos, para ensinar os testemunhos a Jacó e iluminar Israel com sua Lei”
(Sr 45,17]. Embora o prólogo exalte a erudição de Ben Sirac em relação às
Escrituras hebraicas, a língua hebraica do Sirácida é muito distinta da usada
na literatura bíblica®. Quase trezentos anos depois de Sirac, o historiador
judeu Josefo (que era um sacerdote], do século I d.C., descreve um papel
similar para os sacerdotes como professores de Israel. Segundo Josefo, o povo
judeu confiava a escrita “a seus sumos sacerdotes e aos profetas [...] e esses
registros têm sido escritos até o nosso próprio tempo com a máxima precisão”
{Contra Apion 1.6]. Em outro livro, Josefo observa que Moisés “confiou esses
livros aos sacerdotes, com a arca, na qual depositou também os Dez Man­
damentos, escritos em duas tábuas” {Antiguidade dos judeus 4.8.44]. De
acordo com Josefo, os sacerdotes continuam a ser responsáveis pela lei­
tura das escrituras em público (como fez Ezra] durante a septenial cele­
bração da Festa dos Tabernáculos {Antiguidade dos judeus 4.8.12]'°.
Estudiosos com frequência presumem que, na esteira do helenismo, de­
senvolveu-se um grupo de escribas não sacerdotais. Esses escribas laicos
teriam sido os precursores dos fariseus e dos sábios rabínicos". Como des-

9. Sobre o hebraico de Ben Sirac, ver A. Hurvitz, The Linguistic Status of Ben Sira as a
Link Between Bibhcal and Mishnaic Hebrew: Lexicographical Aspects, in The Hebrew of the
Dead Sea SavUs and Ben Sira (ed. T. Muraoka e J. E Elwode], Leiden, Brill, 1997,72-86; Further
Comments on the Linguistic Profile of Ben Sira: Syntactic AJílnities with Late Biblical Hebrew,
in Sirach, SavUs, and Sages [ed.T. Muraoka e J. F. Elwode], Leiden, Brill, 1999,132-145.
10. Steven Fraade destaca que a Mishná combina essa prática com a lei do rei em
Dt 17,20 [Priests, Scribes and Sages in SecondTempleTimes]. Em Sota 7,8 (também Sifre
Dt T60], segue-se não apenas Dt 17,20, como também o exemplo de 2Rs 22,16, onde se
sugere que o rei Josias havia lido o Uvro da Torá.
11. Ver Fraade, The Early Rabbinic Sage, 420-421.

266
Lpilum'

taca Steven Fraade, professor de estudos rabínicos na Universidade de Yale,


não há evidências do período do Segundo Templo que sustentem ter havido
o desenvolvimento de professores laicos naquela época. Fraade escreve:

Em primeiro lugar, há poucas evidências da existência de uma grande classe ou


de um grande movimento de sábios e escribas não sacerdotais [e certamente
não antíssacerdotais) nesse período. Em segundo lugar, as fontes remanes­
centes, até a destmição do templo e na fase subsequente, continuam a associar
a autoridade geral de preservar, interpretar, ensinar e aplicar legaknente as
Escrituras sagradas com os sacerdotes’^.

Os escribas provinham em grande parte da classe dos sacerdotes, co­


meçando com Esdras, o modelo de professor e escriba sacerdotal. O judaís­
mo rabínico, em contraposição, rejeitava a centralidade dos sacerdotes
como as autoridades da ortodoxia religiosa. Com efeito, uma das mais sur­
preendentes omissões na cadeia da tradição oral apresentada na Ética dos
pais é a classe dos sacerdotes. Não havia sacerdotes no encadeamento da
tradição oral! N a Etica, a tradição oral começa com Moisés e se transfere
aos rabinos sem que se mencione um único sacerdote. Os profetas que
receberam a palavra oracular (e oral] de Deus têm um lugar privilegiado
nessa linha da Torá oral, mas não os sacerdotes. A tradição oral não de­
pendia dos sacerdotes.
No final do período do Segundo Templo [séculos 1 a.C. e I d.C.), o
grupo mais intimamente associado com os sacerdotes e o templo eram
os saduceus. Com efeito, essa denominação refere-se à alegação, por parte
do grupo, de ser descendente de Sadoc, um sumo sacerdote quando da
primeira construção do Templo pelo rei Salomão. De acordo com o histo­
riador judeu Flávio Josefo, os saduceus rejeitaram a tradição oral em favor
apenas da Torá escrita:

Os fariseus transmitiram ao povo muitas práticas herdadas de seus pais que


não estão escritas na lei de Moisés; e é por esta razão que os saduceus as
rejeitam e dizem que devemos ter como obrigatórias as práticas registradas na
palavra escrita, mas que não devemos obedecer àquelas práticas derivadas da
tradição de nossos antepassados [Josefo, Antiguidade dos judeus 13.10.6].

12. Fraade, The Early Rabhinic Sage, 421.

267
Como a Bíblia tornou-sc um livm

Como sacerdotes do templo, eles tinham acesso especial aos escritos


sagrados. Os saduceus eram a aristocracia sacerdotal do periodo do Se­
gundo Templo, e eram também os líderes seculares da comunidade judaica.
Os escribas dependiam, para seu sustento, das autoridades do governo, tanto
romanas como saduceias'^. Os próprios escribas provavelmente provinham,
em sua maioria, de linhagens sacerdotais e levíticas. Josefo argumenta também
que os saduceus eram em grande parte oriundos da aristocracia, que os
apoiava: “Os saduceus não são capazes de persuadir senão os ricos e não têm
o povo a ser favor, mas os fariseus têm a multidão a seu lado” (Antiguidade
dos judeus 13.10.6). Com base nisso, podemos supor — o que não é sur­
preendente, devo acrescentar — que a autoridade da tradição oral [em opo­
sição à dos textos escritos) tinha sua maior prevalência entre as multidões.

O oral e o escrito na seita do Mar Morto

Entre as mais famosas descobertas arqueológicas do século X X estão


os Manuscritos do Mar Morto. Segundo a história tradicional, os manus­
critos foram primeiramente “descobertos” por um jovem pastor que havia
perdido sua ovelha. Procurando-a, ele por acaso deparou com uma caver­
na de tesouros — os Manuscritos do Mar Morto. O que são eles? Consistem
num grupo de cerca de novecentos manuscritos montados a partir de
milhares de fragmentos. Cerca de vinte e cinco por cento desses manus­
critos são manuscritos bíblicos. Antes dessa descoberta, os mais antigos
manuscritos hebraicos datavam de por volta do século X d.C. Os mais
antigos manuscritos bíbhcos dentre os Manuscritos do Mar Morto datam
do século III a.C. Dos setenta e cinco por cento dos manuscritos não bí­
blicos, cerca de metade é constituída de literatura já previamente conhecida
[como o Livro dos Jubileus) e a outra metade se constitui de literatura
judaica sectária até então desconhecida. Os pergaminhos são associados
a uma seita judaica que vivia na costa setentrional do Mar Morto por volta
de 135 a.C. a 68 d.C. A literatura dessa seita reflete uma cultura religiosa
altamente letrada. O grande número de manuscritos na biblioteca dessa

13. Ver A. Saldarini, Pharisees, Scribes and Sadducees in Palestinian Soríety, Wilming
ton, DE, Michael Glazier, 1988, 39-43.

268
comunidade sectária sugere a centralidade do texto bíblico para a seita e
corrobora a existência da leitura e do estudo ativos das Escrituras. Tanto
os textos internos que descrevem as atividades da comunidade como obser­
vadores externos como Flávio Josefo testemunham a centralidade da pa­
lavra escrita para a seita*'*.
Que grupo religioso era esse? O grupo desenvolveu sua identidade
em oposição à aristocracia sacerdotal de Jerusalém. Um de seus principais
inimigos era “o Sacerdote ímpio”, que parece ser uma referência ao sumo
sacerdote de Jerusalém. O grupo rejeitava o Templo de Jerusalém e ansiava
por uma época escatológica em que o próprio Deus construiría um novo
templo em Jerusalém’^. Eles liam como uma referência literal a si próprios
a passagem de Isaías 40,3: “No ermo abri caminho para o SEN H O R!”.
Sua tarefa no ermo era estudar "a Torá, que foi decretada por Deus por meio
de Moisés para ser obedecida” (IQSviii, 14-15). Como resultado disso,
estabeleceram um povoamento remoto na costa norte do Mar Morto, onde
mais tarde seriam encontrados os famosos Manuscritos do Mar Morto.
Os pergaminhos pertenciam à biblioteca da seita, mas nem todos foram
compostos por ela, nem representavam necessariamente, todos eles, a visão
adotada pela seita. A julgar pelas referências nos pergaminhos, a seita
aparentemente apartara-se da liderança sacerdotal de Jerusalém.
O grupo é usualmente identificado com uma seita religiosa conhecida,
com base nos escritos do historiador judeu Flávio Josefo, como os essênios’®.
A seita, porém, parece ter sido uma ramificação ultrarreligiosa ou talvez
até uma dissidência dos essênios. O professor Lawrence Schiffinan, da Uni­
versidade de Nova York, sugeriu que essa seita fosse uma dissidência dos
saduceus*''. Pode ser que a seita fosse um antigo grupo de sacerdotes dis­
sidentes de Jerusalém, que poderíam ser chamados de protossaduceus (já
que os “saduceus” são conhecidos principalmente por meio de fontes do
século I d.C. ou posteriores). Com efeito, esse grupo parece ter se desenvol­
vido numa nova seita sacerdotal que Josefo chama de essênios. Mas sua

14. Ver Josefo, Guerra dos judeus § 2.8.6.136,142,159; Regra da Comunidade vi, 6-7.
15. 4QFlorilegium.
16. Ver a discussão geral de J. VanderKam, The Dead Sea Scrolls Today, Grand Rapids,
Eerdmans, 1994, 71-120.
17. L. Schifítnan, Reclaimingthe Dead Sea Scrolls, Nova York, Doubleday, 1994.

269
Corno a Bíblia tornou-so nm lix o'

denominação exata é menos importante que sua atitude para com os textos.
Eu os chamarei de essênios, como aparentemente fez Josefo.
Os essênios compartilhavam com os saduceus a rejeição da tradição oral.
Por exemplo, no Manuscrito do Mar Morto conhecido com Documento
de Damasco o grupo critica a apUcação da tradição oral à interpretação da
prática religiosa, concluindo que seus oponentes “corromperam seu espí­
rito sagrado e ofenderam, còm linguagem blasfema, os mandamentos da
aliança de Deus, dizendo: ‘eles não estão determinados’” (CD v, 11-12). As
práticas religiosas do grupo baseavam-se no texto escrito’®. Uma das pas­
sagens na literatura da comunidade ilustra isso: “A respeito do Líder está
escrito: ‘ele não deve ter numerosas mulheres’ [uma citação de Dt 17,17];
mas Davi não leu o hvro da Lei guardado na Arca, pois o livro não foi aber­
to em Israel desde o dia da morte de Eleazar e Josué e dos anciãos que
serviam à deusa Astarte. Ele permaneceu enterrado <e não foi> revelado
até o aparecimento de Sadoc” (CD v, 1-5). O problema para a comunidade
era que o rei Davi tinha várias mulheres. Isso pode ser explicado simples­
mente observando que os escritos sagrados estavam escondidos. O livro
oculto e posteriormente encontrado traz à memória a descoberta do “per­
gaminho da aliança” na época do rei Josias. O importante aqui é a centra-
lidade do texto para a definição e a crítica da prática religiosa.
Os essênios também escolheram os sacerdotes para serem professores
e hderes da comunidade. A organização da comunidade é abordada em
vários locais. No Documento de Damasco, por exemplo, lemos:

O governo daqueles que vivem em todos os acampamentos [em toda a terra


de Israel]. Todos devem ser reunidos por seus nomes: primeiramente, os

18. Adiei Schremer aplica uma analogia moderna do judaísmo ortodoxo à tendência d
Qumran de basear a prática religiosa em textos escritos, em vez de viver com base na tradição;
ver ‘[T]he[y] Did Not Read in the Sealed Book’: Qumran Halakhic Revolution and the Emer-
gence of Torah Study in Second Temple Judaism, in Historiad Perspectives: From the Hasmo-
neans to Bar Kokhba in the Light of the Dead Sea ScroUs (Proceedings of the Fourth Interna­
tional Symposium of the Orion Center, 27-31 January 1999) (ed. D. Goodblatt, A. Pinnick e
D. Schwartz; STDJ, 37), Leiden, Brill, 2001,105-126. AzzanYadin mostra como a dependên­
cia da autoridade escriturai em Qumran persiste na escola do rabino Ismael, contra o rabino
Akiva; 4QMMT, Rabbi Ishmael, and the Origins of Legal Midrash, DSD 10 [2003) 130-149.

270
i-.píl

sacerdotes, depois, os levitas, em terceiro lugar, os filhos de Israel, em quarto, os


prosélitos [...]. O sacerdote que preside a Congregação deve ter entre 30 e
60 anos de idade, e deve conhecer o Livro da Meditação e todos os regulamentos
da Torá, e falar sobre eles de maneira apropriada [CD xiv, 3-8).

Os sacerdotes sempre estavam em primeiro lugar. A seita aceitava não


sacerdotes como membros, mas os sacerdotes eram os líderes e professores.
Embora excluídos da aristocracia religiosa de Jerusalém, eles constituíam
um grupo sacerdotal e letrado e eram, de diversas maneiras, similares aos
saduceus quanto a sua orientação em relação ao texto sagrado e sua rejei­
ção da oralidade. Esse povoamento em Qumran, no entanto, foi destruído
pelos romanos na Grande Revolta ocorrida por volta de 68 d.C. Como os
saduceus, a seita não sobreviveu a essa conflagração.

Dos fariseus aos rabinos

Os fariseus há muito tempo têm sido um problema para os estudiosos.


Todas as fontes que temos a respeito dos fariseus consistem naquilo que
outros dizem sobre eles. Não dispomos de textos escritos pelos próprios
fariseus. Para compreender quão mal compreendidos são os fariseus, é pre­
ciso apenas consultar a literatura especializada^®. Os estudiosos descreveram
os fariseus como líderes religiosos e políticos, tomando-os um grupo ins­
truído e um movimento laico que concorria com o sacerdócio. É certamen­
te uma simplificação excessiva situar os fariseus numa única categoria.
Em geral, porém, os fariseus parecem derivar sua identidade de sua oposição
à aristocracia sacerdotal saduceia. Como já foi observado, nossa compreen­
são dos fariseus provém daquilo que outros escreveram sobre eles. Martin
Jaffe, professor de estudos rabínicos na Universidade de Washington, em
seu importante livro Torah in the Mouth, observa: “não há um único texto
do período do Segundo Templo que possa sustentar por muito tempo o
argumento de que foi composto por um fariseu com o propósito de esta-

19. Para um resumo da literatura sobre os fariseus, ver Saldarini, Pharisees, Scribes an
Sadducees in Palestinian Society: A Sociological Approach, ou, de forma mais acessível, o
artigo de Saldarini, Pharisees, inABD, vol. 5, 289-303.

271
Como a Bihha tornou-se um li\

belecer um ponto de vista farisaico”^°. Esta é uma constatação notável.


Não há textos fariseus. Por quê?
A lacuna na literatura farisaica não se limita ao período do Segundo
Templo. Os fariseus eram, aparentemente, um grupo judeu do Segundo Tem­
plo fracamente associado que, por fim, proporcionou a base para os rabinos
do judaísmo formativo do século I ao século VI d.C. Fraade observa que,
após a destruição do Templo pelos romanos em 70 d.C., durante “um pe­
ríodo historicamente crucial de mais de um século, durante o qual o movi­
mento rabínico sábio criou raízes e experimentou um crescimento e um
desenvolvimento significativos, não há uma única fonte rabínica claramen­
te datáveT^b Com base no que podemos inferir de nossas fontes, os rabinos
não escrevem até o século III d.C., quando uma série contínua de documen­
tos rabínicos começa a surgir. A partir do século III d.C., com a escrita da
Torá oral num livro conhecido como a Mishná, os rabinos começam a re­
gistrar a tradição oral com a caneta e o pergaminho.
Essa ausência de textos fariseus não se deve à ausência de textos do
Segundo Templo. Nós temos essa literatura, apenas não temos uma litera­
tura que expresse o ponto de vista farisaico^^. Começando no período he-
lenístico no século III a.C., redige-se uma grande variedade de literatura
judaica. Os fariseus são dignos de nota no relato histórico da dinastia asmo-
niana no Primeiro Livro dos Macabeus. Eles são mencionados nos escritos
históricos de Flávio Josefo e nos escritos do Novo Testamento datados do
século I d. C. Alude-se também aos fariseus, nos escritos da seita dos essênios
do Mar Morto, como “aqueles que explanam as coisas de maneira fluente”.
Presume-se que esses fariseus sejam os ancestrais do judaísmo rabínico.
O judaísmo farisaico e o judaísmo rabínico compartilham uma ênfase
na tradição oral. A primazia da oralidade no judaísmo rabínico é vista num
de seus mais conhecidos textos da Ética dos País:

20. M, Jaffee, Torah in the Mouth, 30.


21. Fraade, The Early Rabhinic Sage, 417.
22. Como destaca M. Jaffee {Torah in the MoutK), esse é um estado de coisas inteiramente
diferente que se reflete na monumental tradução de Charles de TheApocrypha and Pseudepi-
grapha of the Old testament (1913), puhhcada há quase um século. Na época, muitas obras
eram rotineiramente atribuidas aos fariseus, incluindo os fragmentos sadocitas da Guenizá
do Cairo, conhecidos como o “Documento de Damasco” dos Manuscritos do Mar Morto.

272
Epílogo

Moisés recebeu a torá [oral] no Sinai e transmitiu-a a Josué, Josué transmitiu-a


aos anciãos, e os anciãos, aos profetas, e os profetas transmitiram-na aos
homens da grande assembléia. Eles disseram três coisas: “Sejam prudentes
nos julgamentos, granjeiem muitos discípulos, ergam uma cerca em tomo
da Torá”. Simeão, o Justo, foi um dos últimos sobreviventes da grande assem­
bléia. Ele costumava dizer: “O mundo se apoia sobre três coisas: na Torá,
no serviço do Templo e nos atos de bondade”. Antígono de Soco recebeu [a
torah oral] de Simeão, o Justo. Ele costumava dizer: “não sejam como servos
que servem a seu mestre apenas com a condição de receber recompensa,
mas sim como servos que servem a seu mestre sem a condição de serem
recompensados, e que o temor do Céu esteja sobre vocês. Yossi ben Yoezer
de Tseredá e Yossi ben Yohanan de Jemsalém receberam-na deles... (M.
Avot 1, 1 ss.].

Esse texto defende a continuidade entre o judaismo fariseu e o judaís­


mo rabínico. Ele faz também uma distinção clara entre a tradição oral e
o texto escrito que se reflete em sua descrição das-oiigens e da autoridade
da torá oral. Em minha tradução, procurei enfatizar essa distinção tradu­
zindo a torá oral com letra minúscula e a Torá escrita com maiuscula
(sendo a diferença, em hebraico, o uso do artigo definido para se referir
à Torá escrita). N a descrição da transmissão da torá oral, o papel do pro­
fessor é central. A torah oral extraiu sua autoridade do primeiro e maior
professor de Israel: Moisés. De acordo com essa passagem, “Moisés recebeu
a torá [oral] no Sinai e transmitiu-a a Josué, Josué transmitiu-a aos anciãos,
e os anciãos, aos profetas, e os profetas transmitiram-na aos homens da
grande assembléia”. Os sábios rabínicos posteriores também "recebem” a
torá oral.
Não pode haver dúvida de que a torah à qual se refere a Ética dos
Pais deva ser especificamente a tradição oral. Como observa Jaffee, “o uso
particular do termo torah feito por M. Abot — sem o artigo definido que
denotaria a Escritura — para indicar o ensino que os Sábios recebem de
Moisés não é acidental nem inconsiderado”^^. Ele vê uma conexão implí­
cita entre torah como “tradição oral” e ha-Torah como “Escritura”. Isso se
reflete nos dizeres rabínicos que se referem à ha-Tórah (ou à Escritura).

23. M. Jaffee, Torah in the Mouth, 85.

273
Como a Ríblia tomnii-st- um livro

Essa inter-relação dos dois significados de torah como ensinamento


oral e texto escrito foi pressagiada pelo profeta Jeremias. Como foi discuti­
do no capítulo 6, Jeremias fala sobre a transformação da torah oral na
Torah escrita quando escreve; “Como podeis dizer: ‘Temos a sabedoria,
pois temos a torah de YHWH7 Com efeito, a falsa pena dos escribas trans­
formou-a (isto é, o ensinamento, a torah) numa mentira (isto é, num texto
escrito, na Torah)" (Jr 8,8). Foi a pena dos escribas que modificou a própria
essência da torah (“ensinamento”), transformando-a na Torah (“texto”).
Essa transição, porém, não tem as duas torás espelhando-se; antes, elas
estão competindo uma com a outra. A nova Torah escrita situa a autori­
dade num grupo social diferente, daqueles que se autodenominam “sábios”
(em hebraico, chakham) — estes eram os escribas do antigo Israel, que se
apoderavam da autoridade dos grupos tradicionais, como os anciãos e os
profetas. Os “sábios” eram identificados com a fiderança política da época
de Jeremias. A tradição rabínica produziría uma inversão no que se refere
à definição dos “sábios”.
No judaísmo rabínico, de onde se derivaria, em última análise, a
autoridade religiosa? Das Escrituras ou da tradição oral dos escribas?
E importante lembrar que há uma diferença significativa entre a cul­
tura do antigo Israel'e do judaísmo rabínico em suas respectivas ati­
tudes em relação ao texto. A cultura rabínica tinha de pressupor alguma
autoridade para a Torá escrita, uma vez que ela já existia, enquanto a
antiga cultura israelita introduziu a autoridade da palavra escrita e de­
pois teve de lidar com suas implicações. Desse modo, o judaísmo rabí­
nico, que dependia da tradição oral, teve de arcar com sua relação com
a antiga autoridade textual que havia sido introduzida em Israel du­
rante as reformas de Josias (no século VII a.C.) e de Esdras (no século
V a .C ). Essa questão era debatida no antigo judaísmo, mas o judaísmo
rabínico posteriormente dissolvería a distinção entre a Torá oral e es­
crita. Num a tradição talmúdica posterior da Babilônia, por exemplo,
lemos; “As palavras da Torá e as palavras dos escribas são as mesmas”
(b Yoma 28b). Evidentemente, essa fusão do oral e do escrito ocorreu,
ironicamente, quando a tradição oral já havia sido codificada. O comen­
tário ao Talmude babilônio era um comentário sobre aquilo que já
havia se tornado um texto escrito, ainda que, ideologicamente, conti­
nuasse sendo a torah oral. Esse foi um novo estágio na textualização da
religião judaica.

274
A escrita nos primórdios do cristianismo

Não é de surpreender que o cristianismo antigo, com suas raízes entre


as pessoas comuns, apresente certa distância da escrita. Em sua atitude
diante dela, o cristianismo, em seu início, é um parente próximo do judaís­
mo fariseu.
Os escritores do Novo Testamento tinham perspectivas diversas sobre
a importância da palavra escrita. Isso pode ser depreendido pelas diferentes
táticas adotadas pelo Evangelho em sua própria textuaUdade. O Evangelho
de João, por exemplo, conclui: “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se todas
elas fossem escritas, penso que o mundo não seria capaz de conter todos
os hvros que seriam escritos” [Jo 21,25). Essa é uma crítica implícita à
própria obra escrita de João, que começou por definir a verdadeira Palavra
como ixma pessoa, não como um texto: “No princípio era a Palavra [...]. E
a Palavra se fez carne e veio morar entre nós. Nós vimos sua glória, glória
como a de um filho único do pai, cheio de graça e de verdade (Jo 1,1.14).
É importante contextualizar essa caracterização de Jesus como “a Palavra
de Deus” em relação à precedente textualização da “palavra de Deus” no
Livro das Crônicas (discutido no capítulo 9). Na literatura bíblica, a “pala­
vra de Deus” era, invariavelmente, a palavra profética. No período persa,
entretanto, o Livro das Crônicas textualiza essa expressão referindo-se à
Torá escrita de Moisés. Nesse contexto, a afirmação do Evangelho de João
de que a “Palavra de Deus” é uma pessoa, e não um texto, parece extrema­
mente radical. Em contraposição, o Evangelho de Lucas e o Livro dos Atos
dos Apóstolos, em suas linhas introdutórias, parecem atribuir uma impor­
tância muito maior à palavra escrita:

Muitos já tentaram estabelecer um relato ordenado dos acontecimentos que


se passaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde
o principio, foram testemunhas oculares e servidores da palavra. Assim, após
fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, tam­
bém eu decidi escrever um relato bem ordenado, excelentíssimo Teófilo,
para que, deste modo, possas conhecer a verdade acerca dos ensinamentos que
recebeste (Lc 1,1-4).

Aqui, a palavra escrita serviria para Teófilo como um guia para a


verdade sobre as coisas que ouvira oralmente. O Evangelho de Lucas, o

275
Como a Bíblia tornou-^e um Hvro

Evangelho de João e o Livro dos Atos dos Apóstolos são, portanto, inteira­
mente conscientes de sua própria textualidade e da criação da autoridade
textual. Os Evangelhos de Mateus e de Marcos, no entanto, não tratam dire­
tamente da questão de sua própria textuaUdade. O Evangelho de Mateus,
por exemplo, parece limitar o conceito de texto à genealogia de Jesus;
“Livro [pípÃoç) da genealogia de Jesus, o Messias, filho de David, filho de
Abraão” (Mt 1,1], Em vez da autoridade do texto, Mateus adota o modelo
fariseu e rabínico da autoridade do professor, concluindo: “Então Jesus
aproximou-se e disse: ‘Toda a autoridade no céu e na terra me foi dada.
Portanto, ide e angariai discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo
o que vos ordenei. Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tem­
pos”’ (Mt 28,18-20). Jesus é o professor detentor de autoridade que trans­
mite sua autoridade a seus discípulos. A observação de Martin Jaffee
talvez não seja uma mera coincidência: “Os Sábios galileus de nosso período
[sécxdos III-IV d.C.] alegavam ter acesso a um conhecimento revelado que
só poderia ser aprendido por meio do discipulado”^’*. Jaffee fala de rabinos
galileus posteriores a Jesus, mas isso ressalta certa similaridade entre a
cristianismo em seus primórdios e o judaísmo rabínico no que se refere
ao tratamento dispensado à tradição oral e ao papel do discipulado.
A vantagem dos livros, no entanto, é o fato de sobreviverem após o
falecimento do professor. O Evangelho de Mateus trata disso narrando que
Jesus transfere sua autoridade a seus discípulos. O Evangelho de João tam­
bém trata da questão, introduzindo o Espírito Santo, que se toma um pro­
fessor substituto. Devemos ser cuidadosos para não sugerir que havia uma
rejeição das Escrituras no princípio do cristianismo ou no judaísmo. No
Evangelho de Mateus, por exemplo, Jesus é citado: “Em verdade vos digo;
até que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou traço serão
retirados da lei sem que tudo se tenha cumprido” (Mt 5,18). Similarmente,
o Evangelho de Lucas registra; “É mais fácil desaparecer o céu e a terra
do que cair um traço de uma letra da lei” (Lc 16,17). Assim, não se trata

24. M. Jaffee, Oral-Cultural Context of the Yehushalmi: Greco-Roman Rhetorical


Paideia, Discipleship, and the Concept of Oral Torah, in Transmitting Jewish Tradition:
Orality, Texttiality, and Cultural Diffusion (ed. Y. Elman e I. Gersoni], New Haven, Yale
University Press, 2000, 53.

276
Epiliif>u

de uma rejeição da autoridade das Escrituras, mas da relação da palavra


escrita com o ensinamento oral. Do mesmo modo, o judaísmo fariseu (e,
posteriormente, o judaísmo rabínico) não rejeitava as Escrituras; apenas
não admitia a palavra escrita como a única autoridade cultural.
O Evangelho de Lucas e o Livro dos Atos parecem defender uma alta
cultura letrada. É no Evangelho de Lucas, por exemplo, que encontramos
a clássica expressão de Jesus abrindo as Escrituras na estrada para Emaús
(Lc 24,13-27). Vale notar também que Lucas 4,16-30 descreve Jesus
lendo o Livro de Isaías no dia do sabá. Em contraposição, as passagens pa­
ralelas em Marcos 6,1-6 e Mateus 13,53-58 descrevem Jestos apenas "en­
sinando" na sinagoga. Jesus é geralmente descrito no Evangelho ensinando,
não explicando as Escrituras (c£ Mc 1,21-28.39; Mt 4,23-25; 7,28-29).
Ao mesmo tempo, Jesus frequentemente recrimina seus detratores, inqui­
rindo: “Não lestes o que está nas Escrituras?” (por exemplo, Mt 12,3.5;
19,4; 21,16.42; 22,31; Mc 2,25; 12,10.26; Lc 10,26). Isso, porém, em vez
de ser um apelo às Escrituras, parece servir a um propósito retórico. Os de­
tratores de Jesus são aqueles que encontram sua autoridade nas Escrituras
— Jesus usa sua autoridade contra eles próprios. Em Mateus 22,29, Jesus
responde aos saduceus, que o interrogam sobre a ressurreição, que, segundo
argumentam, não se encontra nas Escrituras hebraicas: “Estais enganados,
porque não conheceis nem as Escrituras nem o poder de Deus”. O argumen­
to dos saduceus deriva-se das Escrituras, mas a resposta de Jesus insinua
que eles erraram, tanto com base em sua própria perspectiva, que tem como
única fonte de autoridade os textos escritos, como com base na perspec­
tiva que atribui maior autoridade à tradição oral.
O poder de Deus seria encontrado no professor detentor de autori­
dade e na tradição oral. Um dos textos mais interessantes é Lucas 11,52,
que fala da “chave do conhecimento”. Nessa passagem, Jesus condena os
doutores da lei ( v o |j,l k o ç ) , o u seja, aqueles que estão recebendo instrução
na leitura e na interpretação da lei judaica: “porque vós possuís a chave do
conhecimento” ( ó t l T Ípaxe rfiv K Ã e iõ a xíjí; y i^ w o e ca ç). Pode-se também tra­
duzir essa expressão por “vos apoderastes da chave do conhecimento”, ou
seja, eles se apossaram daqudo por meio do qual outros poderíam alcançar
o conhecimento. O fato de que, de acordo com esse relato, os especialistas
em lei possuam a chave do conhecimento pode ser interpretado de duas
maneiras. Por um lado, pode-se reconhecer que as Escrituras detêm a chave
do conhecimento. Essa pode ser uma forte afirmação da autoridade textual.

277
Como a Bíblia tornou-se um livn

Por outro lado, pode-se entender que a chave do conhecimento está em


poder de um determinado grupo social. O antigo movimento cristão não
é proveniente dos literatos. Os primeiros cristãos não eram sacerdotes nem
doutores da lei, e sim pescadores e similares. Essa declaração sugere que a
divisão entre a autoridade textual e a tradição oral era também uma divisão
entre as classes sociais do mundo mediterrâneo nos primeiros séoxlos, com
seu respectivo acesso aos textos e ao letramento.
Paulo era instruído, porém ele também manifestava reservas em re­
lação à palavra escrita. Paulo sabia escrever, embora sua escrita aparente­
mente deixasse a desejar: “Vede com que grandes letras vos escrevo de meu
próprio punho” (Gl 6,11). Em outra passagem, Paulo pede que seu amigo
Timóteo lhe traga seus Hvros e seu material de escrita: “Quando vieres, traz-
me o manto que deixei em Tróade, em casa de Carpo, e também os livros,
principalmente os pergaminhos” (2Tm 4,13)’®. As reservas de Paulo em
relação à escrita talvez remontem ao seu treinamento como fariseu. Se­
gundo o Livro dos Atos, Paulo declara: “Eu sou um judeu, nascido em Tarso
da Cilícia, mas criado aqui nesta cidade como discípulo de Gamaliel, e fui
instruído em todo o rigor da lei de nossos antepassados, sendo zeloso da causa
de Deus, como vós o sois hoje” (At 22,3). Paulo afirma ter sido instruído
pela voz viva de Gamaliel (ou seja, não que tenha estudado) e ter sido
“instruído em todo o rigor da lei de nossos antepassados” (ireTraiôeuiiévoç
Karà àKpípeLOcv irarpcpou vópo-u) — isto é, na torah oral. Por uma boa
razão Patilo se considera um fariseu filho de fariseus (At 23,6; Fl 3,5); a
saber, Paulo herda a ênfase fariseia da tradição oral e seu foco no profes­
sor ou rabino como o portador da tradição.
Werner Kelber, em seu livro The O ral and the Written Gospel (1983),
observa que, nos primórdios do cristianismo, a transição da tradição oral
para a tradição escrita não foi um movimento de continuidade (como os
críticos da forma supõem), mas de descontinuidade. A comunicação oral
é diferente da comunicação escrita, pois a fala envolve a presença e a ime-
diatidade. A comunicação escrita é externa, abstrata, objetiva. Vale notar
que Jesus ensinava oralmente e era ouvido por uma audiência rural e

25. Aceitei os argumentos de J. Murphy-0’Connor relativos à autoria pauHna da


Segunda Epístola a Timóteo; cf. Murphy-0’Connor, Paul: A Criticai Life, Nova York,
Oxford University Press, 1997, 358-359.

278
tpiiuf;o

amplamente não letrada. Quando essa tradição oral foi registrada por
escrito na forma dos Evangelhos, uma transição fundamental resultou
disso. Como diz Paulo: “A letra mata” (2Cor 3,6). A ironia de Paulo é que
ele escreveu tanto para tantos. Como a crítica de Platão à escrita, também
a crítica de Paulo teve de ser escrita. Talvez não seja uma coincidência
que Paulo tenha redigido cartas, e não livros. Paulo defendia a voz viva
do professor em suas cartas. Ele afirmava constantemente que havia sido
chamado para pregar o evangelho; o “evangelho” [em grego, eixxyYé^i-ov)
era, acima de tudo, uma proclamação oraP®. Paulo nunca afirmou que
havia sido convocado para escrever.
Birger Gerhardsson, em seu importante hvro intitulado Memory and
Manuscript [1961), observou que Jesus, segundo um dos Evangelhos [Jo
7,15), não recebeu qualquer instrução, e que os Apóstolos são descritos
como homens comuns não instruídos [At 4,13)^^. Como reconheceu
Gerhardsson, essas são declarações claramente dogmáticas, que refletem
uma atitude positiva adiante da falta de instrução dos discípulos. Jesus
não era um escriba, nem pertencia à elite social. Os discípulos não estavam
entre os literatos. O dogmatismo é instrutivo; é um reflexo da ideologia dos
redatores dos Evangelhos e dos primórdios da igreja. Essa ideologia é par­
ticularmente crítica dos escribas e do aprendizado por meio de livros. Em
João 7, por exemplo, Jesus está ensinando no Templo. Esse contexto o situa
entre os escribas e os literatos da elite religiosa judaica. Apropriadamente,
Jesus é retratado criticando a ordem religiosa estabelecida, citando a Lei:
“Moisés não vos deu a lei? No entanto, nenhum de vós cumpre a lei” [Jo
7,19). Jesus, contudo, evita a autoridade textual e reivindica sua própria
autoridade como proveniente “daquele que o enviou”. Dito de outro modo,
o professor é mais importante que o texto. A despeito do uso do texto

26. W. Kelber, The Oral and the Written Gospel: The Hermeneutics ofWriting and
Speaking in the Synoptic Tradition, Mark, Paul, and Q, Bloomington, University of Indiana
Press, 1977. Para "evangelho", ver W. Bauer e W. Gingrich, A Greek-English Lexicon ofthe
New Testament and Other Early Christian Literature, 3" ed. (rev. e ed. por F. W. Danker),
Chicago, University of Chicago Press, 2000, ad loa
27. B. Gerhardson, Memory and Manuscript: Oral Tradition and Written Transmission
in Rabbinic Judaism and Early Chrisüanity, Lund, CWK Gleerup, 1961; reed. Grand Rapids,
Eerdmans, 1998,12-13.

279
Como a Bíhlia tornou-se um livro

feito por Jesus, para criticar a ordem religiosa estabelecida, ele alega ter
uma autoridade superior que não tem sua base no texto.
Formulei uma questão trivial sobre como os primeiros cristãos me­
diavam a autoridade oral e escrita. Uma questão ainda mais ousada foi
formulada por John Dominic Crossan e Jonathon Reed: Jesus era sequer
letrado? Em seu popular livro Eoccavating Jesus: Beneath the Stones, Behind
the Texts, os autores sugerem que Jesus era, na realidade, um camponês
iletrado^®. Este é, no entanto, um argumento difícil de se sustentar. Afinal,
Jesus é retratado como sendo capaz de ler e escrever. Em Lucas 4,16-18,
por exemplo, lemos:

Quando Jesus foi à cidade de Nazaré, onde havia sido criado, foi à sinagoga
no dia do sabá, conforme seu costume. Levantou-se para fazer a leitura, e
o pergaminho do profeta Isaías lhe foi entregue. Ele desenrolou o pergami­
nho e encontrou a passagem onde está escrito: “O Espirito do Senhor está
sobre mim”.

As habihdades do letramento provavelmente estavam associadas à


instrução rehgiosa dos jovens judeus do sexo masctdino. Ou seja, eles eram
capazes de ler as Escrituras. Isso, porém, é na verdade um letramento h-
mitado. Mas a sugestão de que Jesus fosse iletrado é realmente apenas um
tropo retórico, que sahenta a limitação do letramento do mundo mediter­
râneo de Jesus e seus discipulos^®. A ideologia da oralidade também pode
ter limitado a aquisição de um letramento de alto nível. A importância da
voz viva do professor assumia prioridade sobre o conhecimento que po­
dería ser adquirido por meio dos livros.

28. J. D. Crossan e J. Reed, Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts,
São Francisco, Harper, 2001, 30-31.
29. Ver C. Hezser, Jewish Literacy in Roman Palestine (TSAJ, 81), Tübingen, Mohr-
Siebeck, 2001, que critica estudos precedentes que argumentavam em favor de um letra­
mento extensivo entre homens adultos judeus na Palestina romana. É importante observar
que a própria ideologia da oralidade limitava a difusão do letramento de alto nível. Alan
MiUard, em contraposição, argumenta em defesa de um letramento extensivo entre os
judeus no mundo romano na época de Jesus; ver Millard, Reading and Writing in the Time
of Jesus, Sheffield, Sheffield Academic Press, 2001.

280
lipiloj^o

Como a Bíblia tomou-se um livro

Ao longo de todo este livro, argumentei que a produção de livros e


o apelo à autoridade da escrita derivavam-se, em grande medida, das ins­
tituições do Estado e do templo. A escrita era o domínio da corte real e,
depois, da aristocracia sacerdotal. Ela era usada como uma ferramenta do
governo e, posteriormente, foi apropriada como uma ferramenta da auto­
ridade e da ortodoxia religiosas.
Não ofereci uma datação precisa para cada versículo da Bíblia, nem
procurei atribuir a cada livro bíblico sua posição histórica precisa. Essas
questões estão destinadas a ser, para sempre, objeto de debate entre os
estudiosos. O que fiz aqui foi oferecer algumas observações acerca do
papel da escrita na literatura bíblica, bem como na antiga sociedade israe­
lita. Demonstrei que a escrita se toma um aspecto cultural importante do
antigo Judá a partir do final do século V lll a.C. Argumentei que esse fato
é arqueologicamente atestado pelos dados referentes ao desenvolvimento
da antiga sociedade israelita e ao papel da escrita. Isso é sugerido também
pela própria literatura bíblica, intemamente, pelo desenvolvimento de uma
autoconsciência acerca da importância da palavra escrita na narrativa bí­
blica durante as Reformas de Josias no final do sécixlo VII a.C.
Há um movimento de pendular em relação à tradição oral e aos textos
sagrados, começando com as Reformas de Josias. A palavra escrita percorreu
um caminho pedregoso até o seu lugar derradeiro como texto sagrado e mo­
delo da ortodoxia religiosa. Duas questões delinearam esse trajeto. A primei­
ra delas foi o intercâmbio entre a orahdade e o letramento. À medida que o
letramento tomava-se mais prevalecente, a textualidade se tomava mais
viável. Ou seja, quanto melhor as pessoas eram capazes de ler, tanto mais a
palavra escrita podia servir como guia da ortodoxia religiosa. A segunda ques­
tão foi a competição entre a oralidade e a textualidade como formas de
autoridade. A oralidade e o letramento foram estágios num mesmo percurso,
enquanto a oralidade e a textualidade constituíram uma bifurcação no ca­
minho. O caminho mais percorrido era o da tradição oral, em que a comu­
nidade e o professor forneciam educação e definiam a autoridade da ma­
neira habitual há muitas gerações. A nova via era a autoridade textual. Essa
via foi constmída pelo governo com o apoio das elites social e religiosa.
A Grande Guerra com Roma destruiu o poder dos sacerdotes e das
elites sociais. Em 66 d.C., as massas judaicas lideradas pelos zelotes messiâ-

281
Como a Bíblia tornou-se um livro

nicos revoltaram-se contra o Império Romano, Em quatro anos, a revolta


foi subjugada, a cidade de Jerusalém foi destruída e o Templo foi queima­
do numa grande conflagração. O mais importante talvez seja que a lide­
rança aristocrática do Templo foi também destruída. Embora os saduceus
não apoiassem a revolta, a destruição do Templo e de Jerusalém destruiu
sua base de poder. A propósito, a seita religiosa de Qumran foi também
destruída nessa época pelos romanos. Esses dois grupos que representavam
primordialmente a autoridade religiosa do texto foram aniquilados pelos
romanos jrmtamente com o Templo. Com seu desaparecimento, a oralidade
tradicional viria a se reafirmar.
Tanto o cristianismo como o judaísmo rabínico, que surgiram das classes
laicas, enfrentaram a tensão entre o texto sagrado e a autoridade da tradição
oral no período subsequente à destruição do Templo. Embora reconheces­
sem a autoridade das Escrituras, afirmavam também a autoridade da tradi­
ção oral e da voz viva do professor. O cristianismo, no entanto, rapidamente
adotou o códice. Com efeito, o antigo cristianismo foi inteiramente ino­
vador nessa atitude. Esse fato provavelmente encorajou a autoridade das
Escrituras nos primórdios da Igreja. O judaísmo, em contraposição, foi
extremamente lento em adotar o códice e, até hoje, é um pergaminho da
Torá que encontramos na arca de uma sinagoga. Por fim, também o judaís­
mo daria à sua tradição oral a vestimenta da escrita. Contudo, uma obsti­
nada ideologia de oralidade persistiria no judaísmo rabínico, ainda que a Torá
oral e as tábuas escritas estivessem fundidas numa mesma Torá preexis­
tente que estava com Deus na própria criação do mundo.

282
Sugestões de leituras

CASSON, Lionel. Libraries in the Ancient World. New Haven, Yale University
Press, 2001.
CRENSHAW, James L. Education in Ancient Israel: Across the Deadening Silence.
New York, Doubleday, 1998.
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283
Conid a Bíblia tornou-se um livro

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284
índice de citações bíblicas

Ageu 216, 218, 219, 223, 3,6 30 3,27 44


253 5,5 178 4,13 151, 182
1,1 219 8,13 253 4,40 151
1,1.12 212 9,29 252 4-5 182
1,6 218 12,2-9 37 5,5 251
Amós, livro de 122,123,125 12.15 38
Apocalipse 52 5,12-15 179
15.3 164,250 5,19 151
20.15 52 15.8 252
21,27 52 5,22 182
17.9 250, 265 6,6-7 21
Atos, livro dos 275-278 23-18 250,253
Cântico de Moisés 77,79,80 6.8- 9 147
25.4 250, 253 6.9 151, 156
Crônicas, Livro das 37-39,
30.1 132
49, 115, 124, 164, 178, 6.17 151
30.5 253
216,222,240,246,248­ 7.9- 10 146, 151
253, 265, 275 30.16 253
7,11 151
Crônicas, Primeiro Livro das 30,18 253
31,3 250 9.10 151, 182
3.17 212 10,1-8 180
3.18 217 35.6 253
Daniel, Livro de 222, 240, 10,2-4 182
10 247
243 10,4 151
10,12-13 249
11-21 248 1,3-4 193 11,20 151, 156
15.15 253 7,10 51 12 150
16,40 250 9.4 147 17,14 22
22-29 249 12.1 51 17,14-20 256
28,11-12 178 Deuteronômio, Livro do 17,16-18 155
Crônicas, Segundo Livro 21,26 17.17 32,270
das 37 1.1 21,182 17.18 151, 182
3,3 30 1.5 182 17,18-20 152

285
Como a Bíhlia tomou- livri

17.20 266 Ester, Livro de 116,240 24,9 50


18.1 152 Êxodo, Livro do 21, 80, 24.9- 18 173
24,10-15 144 117, 161, 164, 170, 24.9- 31,18 176
26 150 171, 173, 180, 184-186 24.11 174
26,5 71,238 1.1- 4 117 24.12 50, 166, 172,
26,17 151 2 47 174-177
27.1- 3 152 14 80 24,12-31,18 177
27.1- 9 152 25.16 177
27,3 151 15 77, 79,80
15.1 77, 79,80 25,21-22 51
27.8 182
27.8- 9 152 19 26, 164, 165, 169, 25.21.22 177
27.9 152 170, 174 25.22 176
29.9- 11 183 19.2- 3 169, 170 25-30 175
29.14 183 19.2- 8 169 ■ 25-31 174, 179
31 171 19.3 169 25-32 176 -
31.9 166, 171 19.3- 24,4 50 30.11- 16 48
31,9.25-26 180 19.4- 8 169 31,7 179
31,24 151 19.5- 8 169, 170 31.12- 17 179
31,30 79 19.7 169 31.18 50, 166,174-177
32,49 44 19.19 165 32.16 175
34.1 44 19.20 169 32,32 51
34.9 214 19-20 182 32-33 117
Eclesiastes 7,109,222,223, 19-23 161, 165 32-34 176
240, 241 19-24 166, 183 33,7-11 176
Esdras 23,32,72,117,164, 34,27 166
19- 31 181
184,188,199,202,216, 34.29 166
221,225,228,231,236, 20 26, 165, 170, 185
20.1- 17 177 35-40 176
240-242, 245,246, 250, 38,21 177
252,253,258,262,267, 20.2- 8 170
40 177
274 20.3 169
40,20 51
Esdras 1-2 (grego] 216 20.4-8 170
40,20-21 50, 176
Esdras, Livro de 217, 218, 20,8-11 179
40,34-35 50
222, 239, 244 20,19 165
Ezequiel, Livro de 212
1.1- 4 216 20,22 165, 168 1,2 211,212
1-6 216 20,22-23,33 177
1.8 217 12.1- 15 212
20- 23 154 17.1- 22 212
2.1-2 217 21- 23 165, 169, 170, 18,2 136
2,21-28 192 172
3,2.4 253 21,18-32 212
22,25-26 144 21.30 212
3.2- 8 218
23 168 Filipenses, Epístola aos 278
3.2.8 212
3.10 232 24 166, 168, 169, 172, Gálatas 278
4.18 241 177, 181 Gênesis, Livro do 27, 125,
5,2 212 24.1 168 163, 181
5.14 217 24.2- 8 169, 172 1 185
6.14 252 24.3 170 17.5 46
6.18 252 24.4 166,171,172,177 18,25 160
7,6.11 184 24.4- 8 171, 173 26.5 163
7.10 253 24.7 154, 170,171,183 32,25-29 47
8.20 232 24,7-8 173 35.18 46

286
índiiwC dk LÍtayOci> bíblica;»

Habacuc, Livro de 253 8.8 157-160, 186, 274 7.19 279


Isaías, Livro de 23, 27,100, 8.9 186 21.25 275
120, 213, 215, 277 8,11-12 208 Josué, livro de 82,114,171
1.1 23 10,6-8 208 1 171
1-39 120 11.7 208 7 20
4.3 120 15.1.4 209 7,11-12 20
7.2 121 15,16 153 7,24 20
7.14 121 17.1- 4 208 8.32 182 ,
7,17 114, 121 21 209 10,12-13 78
8 120 25 208 13 82
8.4 122 25.13 208 15,39 148
8,16 24 25,13b-14 208 15,59 105
8,22-23 99 27.1 208 24 114
9.1 122 29 210 Jubileus, Livro dos 2 3 ,184­
9.1- 6 99, 114 29.6.16- 20 208 186, 231, 243, 268
9.7 122 29.7 210 1.1 184
10 120 29,11 210 1,5 185
10,20-22 122 29.16- 20 210 1,26-27 185
11.1 122 29,21 211 1.29 185
11.1- 2 114 30,10-11 208 2.1 185
11,11 122 31.29 136 23.32 185
22,9-11 103 33,14-26 208 50,13 185
30,8 120 36.1- 2 153 Juizes, Livro dos 82,83,91,
36.4 153 260
40-55 213
36,32 24 1 82
40-66 213
39.4- 13 208 3.10 214
45.1 213
39.14 197 4-5 80
45.14 200 40.1 200 5 81
52.2 200
40.5- 41,18 196 5.1 77
56-66 213 40.7 191 6,34 214
61 214 41.1- 2 197 11.29 214
61.1- 4 214 41.1- 3 192 13.25 214
66.1- 2 215 46.1 208 Lamentações, Livro das 193,
Jeremias, Livro de 24,135, 49,6208 201
157,160,180,181,197, 52 207 1,3 201
202, 207-212 52.2 207 2.11 201
1.9 153 52.3.7 207 5.20 201
1-25 208 52,4-16 208 Levítico 17, 21, 115, 118,
2,1 208 52,28-30 199 156, 158, 164
2,2-3 135 52.30 187, 197 17-26 118, 125
3.6- 10 159 Jó, Livro de 223, 240, 257 19,15 160
3.10 158, 159 1-2 240 19.30 179
3,16-17 180 3 ^ 1 240 26,2 179
6.1 105 João, Evangelho de 275, 276 Lucas, Evangelho de 275-277
7.1 208 1,1 275 1,1-4 275
7.4 181 1.14 275 4.16- 18 280
8.7 186 7 279 4.16-30 277
8.7- 9 159,252 7.15 279 10.26 277

287
C om o a Bíblia tornou-se um livro

11,52 277 8,1.4 184 7.3 147


16,17 276 8.1- 5 245 25.1 108
24,13-27 277 8.1- 8 32 Reis, Livro dos 36-39, 109­
Macabeus, Livro dos 242, 8.3 72 114,134,173,180,196,
243, 272 8,8-9 262 202-204, 206, 207, 209,
Marcos, EvangeUio de 276 8,15 253 210, 212, 246, 249
1,21-28 277 10,28-38 32 Reis, Primeiro Livro dos 36
1,39 277 10,34 253 2,26 180
2,25 277 10.36 253 3,10 109
6.1- 6 277 12,1 212 3,15 180
12.10 277 12,24 232 4.1-6 86
12,26 277 12.36 232 4,7-19 87
Mateus, Evangelho de 276 8 180
12,45-46 232
1,1 276 8.1- 21 180
13,10-13 227 8.4 178
4,23-25 277 13,23-24 242
5,18 276 8,6-11 50
Números, Livro dos 48,117, 8,12-13 78
7,28-29 277 151,156,158, 164,183
12.3 277 10.21 155
1.2 48 10.22 64
12.5 277
1,46 48 10,34 112
13,53-58 277
1,47-51 48 11 256
19.4 277
21,16 277 1,50 177 11,9-13 113
21,42 277 5 154,255 11,36 19
22,29 277 5,15-30 46 12 117
22,31 277 6,24-26 151 12.19 113, 121, 123
23.3 147 21,17 79 13,8 112
28,18-20 276 ■ 31,30 262 13,12 112
Miqueias, Livro de 109 31,47 262 14.25- 28 36, 169
1.10 123 Oseias, Livro de 123, 124, 14.25- 30 91
255 14,28 112
3.9- 10 131, 132
3.9- 11 148 ^ 1.7 124 15.4 19
3,4-5 123 16.5 112
3.10 110 16,27 112
5.1- 3 110 3,5 122
8.4 123 18,21 112
Naum, Livro de 223 19,15-18 63
1.13 200 Pentateuco 24, 27, 9 1 ,115­
119, 151, 162-166, 173, 22.2 112
3.10 200 22,45 112
Neemias, Livro de 117,202, 182, 224, 242, 251, 253,
Reis, Segundo Livro dos 110,
216,222,231,236,240, 258
206
241, 252, 253, 258 Provérbios, Livro dos 26, 8.19 19
1.3 218 109, 163 11 96
1.5 147 1.1 109 11,14 160
1-2 227 1.8 26, 109 11.20 96, 110, 149
2.3 218 1.9 147 13,14-21 112
3,7 192 2.1 109 17 111
3.14 105 3.1 109, 163 17.20 113
5.1- 19 227 3.3 147 17.21 121, 123
5.2-5 218 4.1- 11 109 18.3 114
6,12 252 6.20 163 18.4 134
7.4 227 6.21 147 18.22 134

288
Índice de citaeões bíblicas

20,20 103 24,14 187 Samuel, Primeiro


21,3 131 24,15 211 8,9 160
22,2-8 153 24,18-25,21 207 9,9 168
22,3 155 25,7 207 11,6 214
22,8 171 25,8-12 187 31 247
22,8-11 149 25,12 191 Samuel, Segundo
22,11 32 25,22 191 1,19-27 78
22,16 266 25,22-26 196 5-24 248
22,19-20 207 25,25 192 6 51
22-23 150, 183 25,27-30 203 6,6-7 50
23 173 Salmos, Livro dos 68, 223 6,15 180
23,1-3 149 8,4 176 7 215
23,2 167,169,171,173, 26,8 178 7,5 215
183 27,4 178 7,16 121
23,2-3 32 61,4 178 8,17 87
23,3 150 79 200 20,23-26 86
23,21 171,173 105,1-2 26 24 49
23,26 210 107,14 200 Sirácida 21,231,
23,29 207 137,1-4 200 266
23,30 203 137,5 202 45,17 266
23,33-34 203 149 200 50,27 265
24,3 210 Samuel, Livro de 49, 86, .Timóteo, Segundí
24,12 187,203 91, 246 a 278

289
índice de nomes

Abdi-Heba 90, 107 Baal e Mot 21 ' Cahill,J. 103


Abraão 46, 73, 87,163, 276 Baines, J. 56 Carroll, Robert 190, 192
Acab 62,131,211 Barkay, Gabriel 105, 106, Carter, Charles 194-196,198,
Ackroyd, Peter 188 145, 146 218, 226, 227, 229, 235
Aharoni, Y. 135 Bar-Rakib 65, 66 Casson, Lionel 107, 260,
Ahlstrõm, G. 73 Barr, James 225, 238 263, 283
Albright, WiUiam F. 85,204, Barstad, Hans 190,192,193, Cassuto, Umberto 68, 69
206 195 Castelhno, G. R. 55
Alexander, L. 29, 30 Barton, J. 188 Childs, B. 113,172
Alexandre Magno 21, 94, Baruc, o escriba 24, 153 Ciro 213,215-217,221,257
228, 263, 264 Bauer,W. 279 Clabum, W. 134
Allen,J. 74 Ben-Dov, M, 89 Clemente de Alexandria 30
Amon 110,134,148,155, BenSirac 21,260,265,266 Clements, R. E. 124
241, 256 Ben-Yashar, M. 212 Clermont-Ganneau, C. 104
Amós 93, 109, 119, 120, Bernstein, Richard B. 18 Clifford,R. 114
122, 123, 148, 223 Berquist, J. 228, 243 Cogan, Modechai 207
Andersen, O. 128 Betylon, J. 233 Cohen, N. 87
Ariel, D. 235 Biran, A. 62, 89, 175 Coogan, M. D. 101, 133,
Asaradon 183 Black, J. 43, 107 137, 199, 213
Assurbanipal 56, 107 Blenkinsopp, J. 191, 240 Crenshaw, James 26, 283
Astruc, Jean 24 Blum, Erhard 162,165 Crosman, 1. 18
AtaUá, rainha de Judá 96, Boadt, L. 212 Crossan, John Dominic 280
110, 149 Bordreuil, P. 135 Cross, F. M. 79, 80, 111,
Avigad, Nahman 98, 136, Braun, R. 249 150,175,197,216,222,
137, 139 Brettler, M. 9,113,155 240, 249
Avishur, Y. 68, 88 Broshi, M. 99 CuUey, Robert 27, 28

291
Com o a Rihlia tornou-se um livt

Dandamaev, I. 198 Galeno 29, 30 HiUers, D. 201


Davi 19,32,34,35,49,78, Gammie, J. G. 240, 264 Hoglund, Kenneth 226,228
82, 84-88, 91, 94, 98­ Garbini, Giovanni 64, 222 Holbek, Bengt 42
100,106,107,111,114, Gerhardsson, Birger 279 Holdrege, Barbara 259
121-125, 132, 178,211, Gershoni, Israel 20, 283 Holladay,! 97
215,216,219,221,225, Gibson, S. 105 Homero 25, 27
229,231,232, 244, 248,Gingrich, W. 279 Hornung, E. 45
249, 255, 270 Ginsberg, H. L. 118 Hulda, profetisa 207
Davies, Philip 34, 83, 230 Gitin, S. 105, 131 Hurvitz, A. 16,36, 79,109,
Demsly, Aaron 76, 89, 283 Godolias 191,192,196,197, 116,165,188,223,238,
Derrida, J. 57 202 240, 241, 266
Dever, W. 83, 97, 144 Gogel, S. 86
Donner, H. 65 Goldwasser, O. 90 Ibn Ezra 182
Driver, S. R. 123, 172 GoodyJack 14,28,29,54, Ikeda, Y. 64
57, 128, 150, 283 Üimilku, o escriba 68, 81
Edelstein, G. 105 Gottvrald, Norman 82 Isaías 23,33,35,44,87,93,
Eichhom, Johaim Gottfried Grabbe, L. 34, 190, 224 99, 100, 103, 109, 114,
24 119-122,125,132,213­
Graham, I N . 195
Eisenstadt, S. 20, 189 Graham,W. 13,261 216, 231,269, 280
Elman,Y. 20,276,283 Green, A. 43, 107 Israel, F. 135
Eph’al, 1. 96,222,234 Isserlin, B. 142
Greenspahn, Frederick 252
Eskenazi, T. 9, 195, 216,
Gruen, E. 224
222, 245 Jacó 46, 47, 87, 117, 132,
Guemariahu, filho de Shafan
Eynikel, E. 114,150 147, 148, 266
139
Ezequias 34,87,93,97-103, Jaffee, Martin 31,272,273,
105-109, 111, 112, 114, Gunkel, Hermann 27
276
115, 117-125, 128, 131­ Jamieson-Drake, David 81,
134,148, 153, 209, 214, Hallo, WiUiam 283
82, 192, 194, 195
231, 233, 255, 256 Halpem, Baruch 91,97,106,
Japhet, S. 34,222
111, 114, 225, 283
Jesus de Nazaré 19, 235
Faust, A. 104 Haran,M. 16,118,134,177, Jeú 62,63
Finkelstein, Israel 71,73,76, 179, 223 Jezequias 232-234
82, 101, 105, 133, 137, Harper, W. 123 Joacaz 203, 204
191, 283 Harris, R. 128 Joanã, o sacerdote 233
Fishbane, Michael 9,38,147, Havelock, Eric 15, 57, 128, Joannes, F. 199
168,171,211,253, 283 284 Joaquim 203, 207
Fish, Stanley 17, 18 Hazael 62, 63 Joiaquin 187,202-207,209­
Fowler, J. 87 Healy,I 148 213, 216, 219, 232, 257
Fox, N. 88,90 Heaton, E. W. 88 Joosten, Jan 238, 239
Fraade, Steven 264-267, Hecateu de Abdera 226, Josafá 86, 87, 265
272 233 Josefo, Flávio 178, 242, 244,
Frankena, R. 183 Helcias, o sacerdote 149, 266-270, 272
Frederick, Daniel 240 153, 154, 170, 171, Antiguidade dos judeus
Freedman, Daniel Noel 79, 181, 262 4.8.12 266
119, 122, 216 Heltzer, M. 88, 134, 140 4.8.44 266
Frendo, A. 73 Heródoto 101 8.101-106 178
Etiedman, Ridiard EUiot 17, Herzog, Z. 75 13.10.6 267
24,59,91,114,158,178, Hess, R. 73 Guerra dos judeus
283 Hezser, C. 280 2.8.6.136 269

292
Índice de nomei

Josias 24, 32, 34, 82, 83, Mazar, A. 82, 194 Oded, B. 199
110,115,127,128,130, Mazar, B. 37 Olaf, Pedersén 284
134,135,148-150, 154, McCormick, Robert 199 0 ’Nem,J. C. 24
155,158,171,173,181, McLuhan, Marshall 14, 33, Ong,WalterJ. 15,128,284
183,184,203,207,210, 262 Oppenheim 205
231, 256, 266, 270 Mendenhall, George 81,82, Oseias 93, 109, 119, 120,
Josué 20,32,78,114,115, 182 122-125, 148, 223
162,167,171,174,186, Memeptá 73, 74 Oswald, Wolfgang 166
202, 217-219, 270, 273 Mesá 61, 90, 107
Meshorer, Ya'akov 234 Pardee, D. 135
Kelber,Wemer 278,279 Mettinger, T. 88 Parker, Simon 28
Keniali 205 Meyers, C. 217, 232 Parpola, S. 56
King, Philip J. 91,101,133, Meyers, Eric 217, 232 Paul, Shalom 122
191, 284 Paulo de Tarso 30
Michalowski, P. 54
Kingu 43 Pedersén, Olaf 107, 204
Milevski, I. 105 Perlitt, L. 166
Kitchen, K.A. 175 Mülard, Allan 33, 95, 139,
Kletter, R. 140 Platão 15,29,156,157,250,
206, 280, 284 279
Knohl, Israel 118,119,165
Moisés 21-26, 32, 41, 44, Plínio, o velho 30
Knoppers, Gary 155
Kochavi, M. 76, 89 47, 48, 50, 51, 77, 79, Polak, Frank H. 116
Kugel, James 284 80, 87, 117, 151, 152, Pope, M. 223
Kuhne, H. 96 15b, 161,162,164-177, Powell,M. 199,205
Kutscher, E. Y. 188,235 181,182,184-186,209, Pritchard, J. 105
217,221,233,242,245, Provan, lan 114, 225
Lancaster, S. 104 246,250-254,258, 261, Ptolomeu 1 263
Lance, D. 102 266,267,269,273,275, Ptolomeu II Filadelfo 238,
Landes, G. 240 279 264
Larsen, M. 54 Moran, W. 60 Ptolomeu IV 264
Lehmann, G. 194 Mowinckel, S. 159 Ptolomeu Sóter 263
Lemaire, André 61, 111, Murphy-0'Connor, J. 278
145, 197, 199 Qimron, E. 185
Lemche, N. P. 34,224 Na’aman, N. 71, 73, 97
Levine, L. 262 Nabu (deus dos escribas) Rabin, C. 85, 86, 242
Levinson,B. 9,155,157,184 43, 44, 107, 213 Rabino Akiva 270
Levy, Thomas 97, 284 Nabucodonosor 179, 191, Rabino Elazarben Azaria 261
Limburg, J. 223 Rabino Judá, 0 principe 186
192, 203, 205, 206, 211
Loewenstamm, S. 200 Rainer, Albertz 162
Nachmânides 182 Rainey, A. F. 60, 64, 138
Lohfink, N. 150
Long, G. 104 Naveh, Joseph 57, 62, 69, Ramsés 47
Loprieno, A. 9, 108, 127 143,145, 197, 236, 284 Reed, Jonathon 280
Lutero, Martin 33, 262 Nebo 43,44 Ritner, R, 44, 45
Necao 203, 256 Roberts, C. H. 16
Machinist, P. 20, 233 Nicholson, E. 158 Roboão 36-38, 113
Macho, A. Díez 174 Niditch, Susan 25, 27, 28, RõUig,W. 65
Manassés 131, 132, 134, 103, 284 Ross, J. 28
209-212 Nisaba [deusa dos escribas) Rüger, H. 265
Marduc 43, 178 43
Martin, Henri-Jean 15, 16, Nissen, H. 54,66,238 Sáenz-Badillos, A. 188,240
33, 136, 250, 284 Noth, Martin 110, 198 Sagg,H. 191

293
Como a Bíblia tornoii-se um li-

Salatiel 213,217-219 Silberman, N.A. 137,191, Tot (deus egípcio da escrita]


Saldarini,An^ony 230,268, 283 44, 47, 156
271 Sivan, D. 85 Tov, Emanuel 208, 238
Salmanassar III 96 Sjõberg, A. W. 55 Troíle-Larsen, M. 29, 42,
Salomão 35-37,64, 82, 84­ Skeat,T.C. 16 54, 128
88,91,94,99,100,106­ Smelik, K. A. D. 61 Tutmosis 47
109,121,122,125,155, Smith-Christopher, Daniel
178,180,225,249,255, 9, 134, 188, 191, 193, Ussishkin, D. 102, 138
256, 267 198-200
funcionários de 87 Smith, J. Z. 179 van Seters, J. 165, 166
Samuel 19,23,49,78,79,83, Smith, Mark S. 223 Vanderhooft, D. 191, 194,
86, 87, 91, 96, 115, 160, Smith, Morton 212 195
168, 202, 209, 215, 216, Sócrates 29, 157, 250 VanderKam, J. 269
235, 240, 246-249, 284 Soloveitchik, Haym 31 Vaughn, A. 145
Sanders, J. 197,223,260 Sommer, Benjamin 8, 165, Vermes, G. 185
Sargão, reidaAssiria 66,94, 179, 182, 252, 284
100, 123 Stager, Lawrence E. 101, Watt, I. 29
Sassabasar 232 133, 191, 193, 284 Weidner, E. 204, 205
Schaper,;. 9,241,242 Steinberg, N. 134 Weinberg, J. 134
Schiffrnan, Lawrence 269 Stern, Ephraim 137, 190, Weinfeld, Moshe 96, 118,
Schmid, H. H. 166 191, 194, 195, 227 163, 165, 183, 184
Schniedewind, WiUiam M. Stern, M. 226 Weippert, Helga 111
19, 28, 62, 63, 89, 110, Stipp, H. J. 191 Weitzman, S. 80, 235
Wellhausen, Julius 24, 188
129,131,141,142,150, Stolper, M. 199
Suleiman, S. 18 Wette, W. M. L. de 24
159,160,210,240,251,
Williamson, H. G. M. 132
284 Sweeney, M. 9, 150
Wintermute, O. S. 184
Schousboe, K. 29,42,54,128
Schremer, Adiei 270 Tadmor, Hayim 66,96, 207,
Yeshua Ben Eliezer Ben
Schwartz, B. 177 238 Sirac 265
Sedecias 203, 204, 206, Tait,W. 107 Young, I. 142
210-212 Talmon, S. 132, 143 Younger, K. Lawson Jr. 61,
Segai, M.H. 237 Tannen, Deborah 27, 29 283
Segert, S. 61 Teglat Falasar BI 94, 95,100
"Segundo” Isaias 213 “Terceiro” Isaias 213-215 Zacarias 120, 223, 253
Senaqueiib 99, 100, 101, Thackeray, H. 78 Zakovitch, Y. 200
107, 131, 133,145, 255 Thompson, T. 83, 202 Zimhoni, O. 97
Seow, C. L. 109,223 TigayJ. 87,208 Zorn, J. 191,198
Shabaqa 108 Toeg, A. 179 Zorobabel 213, 216-220,
Shishaq 36-38, 90, 91, 179 Torczyner, H. 141 227,232, 242, 249, 257,
Shoham, Y. 138 TorreyC C. 189,190,224 299

294
índice de assuntos

Acádio, idioma 60, 66, 67, Aramaico 64-67,69, 88,94, Bet-San 83


94, 199 174,193,198,199,222, Bibliotecas 40, 56, 68,107,
Acaron 97, 101, 130, 131 223, 229, 233-243, 258 156, 244
Aicar 235 aramaico oficial 239 biblioteca de
Alexandria, biblioteca de escrita aramaica 198, Assurbanipal 56
238, 263, 264 235-237 biblioteca do Templo 244
Alfabeto 15,33,41,53, Arameus 63 biblioteca helenística 244
54, 57-59, 66, 67, 75, Arca da aliança 171, 180 Bibliotecas assírias 56
76, 89, 129, 130, 135, Arquitetura 97
139, 236 Arquivo Murasu 199 Calendário de Guézer 84,
alfabeto consonantal, Arquivos 77, 107, 112, 85, 89
Egito 67 202, 244, 255 Canaã 58-60, 69, 71-74,
alfabeto hebraico 41, Ascalão 73, 74 81, 82, 182
76, 236 Asmonianos 115, 117, 228, Cananeu 21, 60, 82
alfabeto semítico 129 234, 243 Cânone 16, 33, 40, 223,
cuneiforme 59, 67 Avot 1,1 162, 186 224, 258, 260
prindpio acrofônico 59 A2 oto 101,241,242 Cântico de Débora 80, 81
Sinai 58 Cântico de Moisés 77,79,80
Amama, Cartas de 60,64,77 Baal, Ciclo de 68 Cântico do Arco 78
EA 286-290 77 BabÜônia 19, 43, 44, 94, Cântico dos Cânticos 109,
Amuletos 145-147, 151, 178, 187, 190, 191, 193, 223, 240
156 196, 198-213, 215, 217, Carquemis 203
Anais reais ou do templo 39 218, 220, 221, 257, 274 Carta de Aristeas 238, 264
AN "céu” 54,55 Bar Kochba 234 Carta de Mesad Hashaviahu
Apocalipse de Moisés 22 Bersabé 75, 105, 185 143
Arad 90, 135 Bet-Sames 67 Casa das Bulas 138

295
Como a Bíblia tornou-se um livro

Casa de Davi 62, 63, 100, 195,196,227,228,232, 24, 26, 33, 35, 38,
109, 113, 121, 123,255 243, 255 125, 137, 171, 223,
Casa do pai 134 Egito 26,36-38,41,42,45, 260, 262, 264, 268,
Centralização 105, 125, 47, 53, 55, 56, 58, 60, 269, 278
133-135, 147, 150, 67, 73, 74, 76, 84, 94, poder numinoso da
151, 153 108,117,141,154,192, 39, 41, 45, 49, 183
Cidade de Davi 98, 103, 195,200,203,204, 208, projetos literários de
138, 228, 234 226-228,233,235, 239, Ezequias 109
Ciro, Cilindro de 213 244, 263, 264 umbrais das portas
Códice 16,17,33,77,130, Elias e Eliseu, narrativas de 147, 151, 156
224, 260, 262, 282 112 Especialização funcional 131
Código da Aliança 172,177 Enoque 22 Essênios 269, 270, 272
Código da Santidade 118, EnumaElish 21,41,43,179 Estado israehta 72, 81, 83,
125 Escribas 89
Código de Hamurabi 56 do governo 60 Esteia de Merneptá 74
Composição da Bíblia 36, do palácio 59, 204 Ética dos Pais 186, 272, 273
188 do templo 15, 60, 68, Exího babilônico 40, 111,
Constituição dos Estados 120, 221
187,189,198,208,210,
Unidos 18 escolas escribais 64,
222, 243
Contra Apion 178,266-268 76, 86, 127, 129,
Cristianismo 31, 230, 254, 162, 198, 231, 235
Faraó 36,47,60,73,74,77,
258, 259, 261-263, 275, judeus 90, 189
276, 278, 282 90, 108, 156, 203, 256
língua franca entre os 95
Cuneiforme 54-57, 59, 67, Fariseus 31, 160, 266-268,
oralidade escribal 261
95, 204, 205 271, 272, 278
* reais 53, 60, 68,72, 76,
Fedro 29, 157, 250 •
88,91,101,106,107,
Dan 64, 117 113, 120, 125, 156, Fenícia 64, 95, 129
Davi, funcionários de 86, 87 265 Filisteia 122
Demografia 133, 134 Escrita
Despopulaçâo de lehud 226 administrativa 89 Gabaon 78, 105
Deuteronomista, história e o Estado 53 Gat 122, 123, 130, 147
110, 111, 155, 171-173 filactérios 147 Gênesis Rabbah 176
Diáspora 235,258,260,262 grafitos 57, 59,95,137, Gilgamesh, Epopéia de 21
Dinastia davidica 113,123, 144,145 Globahzação 94, 130, 131,
124 judaica 236 149
Documental, hipótese 24 legislação Grécia 15,29,128,228
Documento E [Eloísta] 24 deuteronômica 150, Greco-romano, mundo 29
Documento J (Javista) 24 153 • Grego
Documento P (Sacerdotal) mundana 41, 156 alfabeto 15
24, 158 na antiguidade 54, 220 óstrakon 89
Dur-Sharmkin, inscrição na Mesopotâmia 56 pseudônimo 23
cilíndrica de 66 na sociedade israelita 181 to deuteronomion 182
nacional hebraica 234 Grupos tribais 152
Economia 34, 49, 50, 54, ortodoxia 151, 153 rurais 148
67, 69, 75, 94, 97, 128, óstracos 89 Guenizá do Cairo 265, 272
130,134,139,156,187, pergaminhos 16, 22, Guézer 59, 73, 74, 84,194

296
índice dc assuntos

Hebraica, epigrafía 137 pim [“2/3 de um sido”] Império Babílônico 192


Hebraica, língua 140 Império Macedônico 228
grafitos em hebraico 137 qara 72, 88 Império Persa 222,223,225,
hebraico bíblico qol 165 228, 232, 234, 235, 238,
clássico 85, 86 sefer 16, 17, 77 239, 241, 243, 244, 250,
hebraico bíblico padrão sefer ha-brít (“livro da 257, 265
188 aliança”] 171, 173 Império Romano 88, 282
hebraico bíblico tardio sefer ha-Jashar 77 lotbá 132
188, 236, 242 shekel 140 Islã 259
hebraico mishnaico sheqer [“mentira”] 158,
237, 243 159 Jarro de armazenamento 102
Hebraico Oficial 142 shir (“canto”] 78 interior agrícola e
hebraico rabínico 236, sofer (“escriba”] 21 industrial 133
237, 243 sukkot 32, 246 Jerusalém 23, 31, 34, 36­
idioma semítico tefilim 147 38, 50, 57, 68, 71, 76,
ocidental 58 torah 31, 118, 155, 159, 77, 84, 85, 88-91, 93,
inscrições em hebraico 163, 164, 167,171­ 96-101, 103-107, 109,
234 173, 175, 176, 183, 110,112,113,117,119,
sinetes hebraicos 135­ 245, 246, 250, 252­ 120, 123-125, 130-139,
137 254, 259-262, 265, 141,145-152, 156, 171,
óstracos hebraicos 129 270-274, 276, 278- 175, 176, 178-180, 184,
yehudi 115 185, 187-192, 194, 197,
vogais hebraicas 128,
129 Hebraico bíblico dássico 85, 200-204, 209-213, 215­
86 222, 224, 226-229, 231,
Hebraico
Hekat egípcio (mensuração 235,236,238,241,243,
'am ha-aretz ["povo da
da cevada] 90 244,246,252,253,255­
terra”] 96, 148, 149,
Helenístico, período 34,49, 258,262,265,269,271,
156
164,171,221,224,226, 273, 282, 284
aron (“arca”] 180 231,234,237,240, 242, Josias, reformas de 111,115,
chakham 274 250, 254, 264, 272 118, 127,128, 150,151,
darash 253 Hieróglifos egípcios 57 170, 172, 207, 210, 262,
davar 159, 186 Hindu 259 274, 281
‘edut 177 Hititas 67, 74, 82 Judá 23, 37,49, 61, 63, 78,
ger 239 Hititas, tratados 182 90, 93-100, 102, 103,
“grilhões” 200 105,106,108-110,112­
katav 120 Idade do Bronze Tardia, 115,117-119,121,123­
kavod 51 Cannaã 82 125,129,131,132,134­
Imlk 103, 105 lehud(Judá] 193,195,217, 137,139-141,143,148­
mayim (“água”] 59 218, 220, 222, 226-233, 150,153,158,159,162,
mazkir ["arauto”] 88 235-237, 243, 257 180,181,186,187,189­
meforash 241 11/El 55 198, 201-205, 207, 209,
fnishpat 159, 160, 186 Iletrados 42, 127 210,212,217-219, 230,
moshed 47 Ilíada 27 241,244,246,249,250,
neim'ah (“profecia’'] 252 Iluminismo 24 255-257, 265, 281
pasha [“transgredir, Império Assírio 19,93-95,99, Judaísmo 13,31,33,39,40,
rebelar”] 113 100, 106, 238, 244, 256 49, 160, 162, 183, 186,

297
Como a Bíblia tornou-se um livr

233.254, 259, 261-263, 200,204,206,208,220­ Marinheiro naufragado, O


270, 272-277, 282 227, 229-231, 234, 235, 21
Judaísmo rabínico 30, 31, 239,241,242,244,251, Meguido 83,194,203,256
186,258,263,267,272­ 254-258, 260, 263, 264, Mesopotâmia 21,41-43,53­
274, 276, 277, 282 266, 275, 281 56, 67, 76, 84, 182, 199
Judeus helenistas 162, 225 Liturgia cristã 238 Messias 213
Livro da Aliança 32, 165, Midrash 253
Ketef Hinnom, amuleto de 168, 170-173, 181, Mishná 31, 162, 186, 266,
183, 256 272
prata de 145, 146, 151
Livro da Vida 51, 52, 120, M.Abot 273
Khirbet Beit-Lei 145
255
Khirbet el-Qôm 144, 145 M.Avotl 162,186,273
Livro de Davi 123
M.Shevuot 147
Livro de Jashar 77
Laquis 59,90,141,145,148, Livro de Rute 260 Mishneh Torah 182
194 Luxo, artigos de 97 Mispá 191, 192, 195, 197,
Laquis, Cartas de 141, 142 198, 235
Laquis, óstracos de 236 Mágica 44,46,51,120,153, Moabe 44, 60, 61, 64, 84,
Lei do rei 152,266 154 90, 107, 241
Lenda de Aqhat 68 Mandamentos, Dez 26, Monarquia judia 85,90,98,
Lenda do Rei Keret 68 117, 161, 164, 165, 145,151,153,154,189,
Letramento 8, 14, 15, 25, 177, 180-182, 266 197, 203, 231, 257
27-30, 33, 34, 40, 42, Manuscrito de Marzeah 59 Monte do Templo 98, 228
54-57,127-131,133,136, Manuscritos do Mar Morto Monte Horeb 117,118,161
21, 35, 36, 49, 50, 185, Monte Sinai 41, 50, 51,117,
137, 139-144, 147, 150,
223,224, 230, 237,243, 161,164,165,167,173­
154,156,160,184,-229,
253,258,260,264,268, 175, 184, 186
243.254, 256, 257,261, 269, 272 Monte Tabor 67
262, 278, 280, 281 IQpHab 7,4-5 253
assinatura 139 IQSviii, 14-15 269 Nacionalismo 64, 66
disseminado 27, 42 4QFlorilegium 269 Narrativas em prosa 242
iletrado 42, 56,142,280 Documento de Damasco N arrativas patriarcais 116
mundano 156, 261 (CD) 270,272 Neoassírios, tratados 182
Levitas 48, 49, 151, 155, 5,2-5 32 Neobabüônicos, arquivos 204
218, 246, 258, 262, V , 1-5 270
Nipur 199
265, 271 11-12 270
Nomes jeovistas 87
Levitas, sacerdotes 152,155, xiv, 3-8 271
Macabeus, Primeiro Novo Testamento 31, 115,
156 272, 275
Línguas antigas do Oriente Livro dos 243, 272
Macabeus, Segundo Numerais hieráticos
Médio 67,68 egípcios 44
Livro dos 244
Literatura apocalíptica 254
MMTCIO 260
Literatura bíblica 8,13,14, papMur 138 Obras públicas 195
17,18,23,26-28,33-36, Pergaminho do Templo Odisséia 27
39-41,44,51,69,71,72, 22, 185, 186 Orahdade 13-15,26-30,71,
77, 79-82, 93, 96, 98, Pergaminho do Templo 79, 128, 143, 160, 163,
106, 108,113,116,132, (IIQT] 56,12 22 164,173,184,186, 257,
137,156,157,160,162, Salmos dos Manuscritos 259, 261, 262, 271, 272,
163,188,190,192,197, 223 280-282 .

298
índice de asiuntos

Ortodoxia 22, 127, 136, Reino setentrional de Israel Sola scriptura 33, 136, 262
147,150,151,153,154, 63, 95, 99, 111,249, Stromateis (de Clemente
157,186, 254, 262, 281 255 de Alexandria) 30
Ortodoxia religiosa 117,144, Sumério 54, 67
150, 156, 181, 184, 260, Sabá 143,175,179,181,185,
267, 281 277, 280 Taanac 67
Ôstraco de Izbet Sartali 89 Sabedoria, das tradições 94 Tabemáculo 48-50,161,174­
Sabedoria tradicional 157, 181,262
Palavra de YHWH 211,216, 160 Tabernáculos, festa dos
217, 219, 251-254 Sacerdotes 42, 49, 51, 86, 32, 246
118,125,132,148,149, Tábuas de argila 54, 67
Palestina 190,194,196,228,
151,152,154-156,164, Tábuas de pedra 23, 30,
234, 235, 263, 264, 280
165,171,215-219,221­ 41, 50, 51,161, 165,
Papiros elefantinos 236
223, 227, 230, 232-234, 167, 172-176, 179,
Pedra Moabita 64, 89, 112 181, 182, 184
Período persa 34,37,43,115, 246, 249-252, 256-258,
262,264-271,278, 281, Tábuas do Destino 41, 43,
116,162,164,171,178, 175
293
187, 189, 194-196, 198, Talmude 20, 31, 162
Sacerdotes de Jerusalém 249
218, 221, 222, 224-226, Taknude babilônio 178,274
Saduceus 31,160,267-271,
229-237, 239-243, 245, B. Menabot 261
277, 282
246,249, 251,252,254, B. Sota 178,266
Samaria 89, 90, 106, 111—
257-259, 262, 265, 275 B.Yoma 274
115,120-124,131,149,
Período pós-exüico 24, 87, Tanak 35
233, 288
124, 202, 216, 220, 225 Seder ‘Olam Zuta 220 Tanque de Siloé 103, 104
Persas 43, 94, 117, 192, Targum Neophiti 174
Segundo Templo, comunidade
218,219,224,228,229, TelArad 90
judia do 216
231, 244, 251, 258 Tel Dan, inscrições de 62-64,
Septuaginta 208,209,231,
Peso, medidas de 139-141 89, 112
238, 239
Pisga 44 Templo 19,22,31,36,38,
Serabit el-Khadim 58 50, 98, 147, 152, 155,
Poesia 68, 69, 80, 94, 202, Shemá 147
214, 223 160,162,178-181,184­
Sinetes 89, 102, 105, 106, 186,188,193,215-217,
Poesia bíblica 68,69,80, 82, 135, 137-139, 196-198,
202
219-221, 224, 228, 229,
234, 235, 290, 295 231,232,235,239,244,
Povo do livro 26, 259 anicônicos 139 250,253,254,257,258,
Prensa tipográfica 14 aramaicos 237, 238 262, 264, 265, 267-269,
Profecia 100,121,188,210, babílônicos 137,187,190, 271-273, 279, 282, 286,
215-217, 251-254 191, 193, 196, 199, 294, 295, 298
Promessa a Davi 19, 20 212, 217, 242 Templo de Jerusalém 50,
fenícios 139 178, 180,215,219, 221,
Qumran 12,31,32,185,223, impressões de 89, 102, 224, 257, 262, 265, 269
231,235,239,242,243, 105, 135, 137-139, Textos das Pirâmides do Egito
270, 271, 282 235 45
Sinetes de Mosa 197 Textos de Execração (Egito)
RamatRahel 101,102,105, Sinetes reais lemelek 102, 45
133 106, 138 Textos dos Sarcófagos (Egito)
Reforma Protestante 33,136 Siquém 59, 114 44

299
Como a Biblia tornou-sc um ivrn

Textualidade, textualização Tradição judaica 21, 41, 4-5 183


8, 13-15, 23, 28, 29,31, 147,176, 178,188, 220, 6-7 183
33,42, 79, 88, 161,162, 244, 253 Túnel de Siloé 103
164,165,168,170,172, Tradição oral 13, 14, 20,
173,181-186,189,245, 28, 29, 31, 40, 69, 80, Ugarit 12,59,67-69,77,81
252,254,257,259,261, 91, 136, 159, 160, 186, Urbanização 34,39,86,93,
262, 274-276, 281 252, 254, 255,258-262, 95-99, 101, 105, 106,
Timnah 97 267, 268, 270,272-274, 110,124,125,130,131,
133,134,147,153,184,
Torah/Torá 9, 21, 22, 26, 276-279, 281, 282
256, 288
31, 35, 40, 52, 72, 118, cultura 28
147,151,152,155-157, literatura 28, 40 Vedas 259
159,161-166,167,171­ o escrito e o oral 157 Vida de Adão e Eva 23
173, 175-177, 181-186, Torá 31 Vidente 38, 168
221,241,245,246,250, Tratado de Sefire 183
252-254, 259, 261,262, Tratados 59, 182,183,235, Wadiel-Hol 58,59
264-267, 269-276, 278, 291, 295 Wiederaufnahme 38
282, 291, 294 Tratados de vassalagem de
Tosefta 162 Asaradon 183 Yanoam 73, 74

300

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