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A BEIRA DA FALéSIA

À BEIRA DA FALéSIA
O nome de Roger Chartier
dispensa apresenta ções.
O autor coloca -se entre os mais
conhecidos, lidos, debatidos
e citados historiadores
da atualidade. Tem suas obras
publicadas em vá rios pa íses
do mundo e por eles viaja
sem cessar, a dar conferências,
a expor suas id éias, a partilhar
suas reflex ões, de maneira clara ,
segura, sempre atraente.
Frente a este perfil, que dizer,
pois, de algu ém sobre o qual
já se disse tanto?

Seu nome é associado,


de maneira definitiva , a esta
Nova História Cultural
que renovou os dom ínios de Clio
e abriu novos campos
aos pesquisadores, que passaram
també m a descobrir novas
fontes, ou entã o descobriram
ser possível retornar aos mesmos
documentos, mas com o olhar
iluminado por outras questões.
Nesta medida , Chartier associa
ao seu perfil de pesquisador
atento uma reflexã o teó rica
inovadora , nã o muito freq ü ente
entre os historiadores.

W
Q0 UNIVERSIDADE À BEIRA DA FALéSIA
FEDERAL DO RIO
GRANDE IX) SUI .
A HISTóIUA
Reitora ENTRE CERTEZAS
Wrana Mana Panizzi E INQUIETUDE
Vice Ki'ifor
c * Prô Reitor de Ensino
José Carlos Ferraz Hennemann
Pr6 Reitor tie LxtensJo
*
ROGER CHARTIER
Fernando Sctembrino
Cruz Meirelles

EDITORA DA UNIVERSIDADE
Tradução
Diretor
.
Geraldo F Huff PATR ÍCIA CIIITTOM RAMOS

CONSELHO EDITORIAL
Ant ónio Carlos Guimar ães
Aron Taitelbaun
Célia Ferraz de Souza
Clovis M. D. Wannmather
Geraldo Valente Canali
José Augusto Avantini
lose l u i / Rodrigues
Lovois de Andrade Miguel
Luiza Helena Malta Moll
Maria Cristina Leandro Ferreira
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Geraldo F Huff , presidente

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nio da Silveira (coordenador ), Carla M. Luzzatio, Maria da Glória Almeida dos Santos,
Rosangela de Mello; suporte editoriat Fernando Piccinini Schmitt , Gabriel Bolognesi
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Ferronatto ( bolsista ) , Luciane Leipniiz e Sílvia Aline Otharan Nunes ( bolsista ) • Ad minis
trarão: Najára Machado (coordenadora) , José Pereira Brito Filho, Laerte Balhinot Dias
Mary Cime Lima e Norival Hermeto Nunes Sauccdo: suporte administrât hfo: Ana Maria Editora
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D'Andrea clos Santos Erica Fedatto, Jean Paulo da Silva Carvalho, João Batista de Souza da Universidade
Dias e Marcelo Wagner Scheleck •Apoio: hialina Lou /ada e Laércio Fontoura. UntarvuMde Fedmf do Ho Grande do SU
© de Roger Chartier
1* edição: 2002
Sumário
Título original em fran çês: Au bord de la falaise: L’ histoire entre certitudes et inquié tude.

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e projeto gráfico: Carla M. Luzzatto


Ilustração da capa: Diego Velasquez, “ Las hilanderas” , óleo sobre tela, Museo de
Prado, Madrid ; manipulado eletronicamente.
Tradução: Patrícia Chittoni Ramos
Revisão: Rosangela de Mello
Editoraçã o eletrónica: Fernando Piccinini Schmitt

Roger Chartier é historiador. Diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Introdução geral / 7
Sociales - EHESS. Conhecido por seus trabalhos de história cultural e especialista em
histó rias do livro e da leitura, publicou e dirigiu in ú meras obras.
PRIMEIRA PARTE
Percurso

Introdu ção / 21
1. Histó ria intelectual e histó ria das mentalidades / 23
2. O mundo como representa ção / 61
3. A histó ria entre narrativa e conhecimento / 81
4. Figuras retó ricas e representações históricas / 101

C486b Chartier, Roger SEGUNDA PARTE


Á beira da falésia: a história entre incertezas e inquie-
ícia Chittoni Ramos. - Porto
tude / Roger Chartier, trad . Patr
Leituras
Alegre : Ed. Universidade / UFRGS, 2002.
Introdu ção / 119
1. História - Filosofia. 2. História - Sociologia. I. Título. 5. “ A quimera da origem ” .
CDU 930.23:101
Foucault, o Iluminismo e a Revolu ção Francesa / 123
930.23:304 6. Estratégias e tá ticas. De Certeau e as “ artes de fazer” / 151
7. Poderes e limites da representação.
Marin , o discurso e a imagem / 163
Catalogação na publicação: Mô nica Ballejo Canto - CRB 10 / 1023
8. O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de Foucault / 181
ISBN - 85-7025-623-X
TERCEIRA PARTE
Afinidades Introdução
Introdu ção / 201
9. A história entre geografia e sociologia / 203
10. Filosofia e história / 223
11. Bibliografia e histó ria cultural / 243
12. História e literatura / 255

Fontes / 273

4

Indice de autores citados / 275

“ A beira da falésia” . Era com essa imagem que Michel de Certeau


caracterizava o trabalho de Michel Foucault.1 Ela me parece designar
lucidamente todas as tentativas intelectuais que, como a nossa , colo-
cam no centro de seu m é todo as relações que mantê m os discursos e
* . as prá ticas sociais. O empreendimento é difícil , instável , situado à beira
do vazio. É sempre ameaçado pela tentação de apagar toda diferen ça
entre l ógicas heterô nomas mas, no entanto, articuladas: as que orga-
nizam os enunciados e as que comandam os gestos e as condutas.
Seguir assim “ à beira da falésia ” també m permite formular mais
seguramente a constatação de crise ou , no m ínimo, de incerteza fre-
q üentemente enunciada hoje em dia acerca da história.2 Aos elãs oti-
mistas e conquistadores da “ nova histó ria ” sucedeu , com efeito, um
1
Michel de Certeau , “ Microtechniques et discours panoptique : un quiproquo” , in Michel
de Certeau, Histoire et psychanalyse entre science et fiction, Paris, Gallimard , 1987, p.37-50.
2
Em l íngua francesa, três publicações coletivas situam a disciplina histó rica: Histoire socia-
le, histoire globale ? Actes du colloque des 27-28 janvier 1989, Christophe Charle (ed. ) , Paris,
Editions de la Maison des sciences de l’ homme, 1993, Passés recomposés. Champs et chantiers
de l'histoire, Jean Bouder e Dominique Julia ( ed . ) , Paris, Editions Autrement, 1994, e
L’Histoire et le métier dhistorien en France 1945- 1995 , Fran çois Bédarida ( ed. ) , com a colabo-
raçã o de Maurice Aymard , Yves-Marie Bercé eJean -Fran çois Sirinelli , Paris, Editions de la
Maison des sciences de l’ homme, 1995. Cf., també m , Gérad Noiriel, Sur la “ crise ” de l ’histoire,
Paris, Belin , 1996. Em l íngua inglesa, ver Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob,
Telling the Truth about History , New York e Londres, WAV. Norton and Company, 1994.

í íl an .
isiiiii:T ; - . ;
tempo de d úvidas e de interrogações. Para esse humor inquieto e , mento por detrás das palavras, dadas a 1er em sua pró pria literalida-
às vezes, impertinente, vá rias razões: a perda de confian ça nas cer- de, pode parecer paradoxal em um momento em que, bem ao con-
tezas da quantificação, o abandono dos recortes clássicos, primeira- trá rio, a histó ria é habitada por uma reivindicação, por vezes alta-
mente geográficos, dos objetos históricos, ou ainda , o questionamen- mente proclamada, da subjetividade do historiador, da afirmação dos
to das noções ( “ mentalidades” , “ cultura popular ” , etc.) , das catego- direitos do eu no discurso histó rico e das tentações da ego-história4 .
rias ( classes sociais, classificações socioprofissionais, etc. ) , dos mo- No entanto, a contradiçã o é apenas aparente. De fato, dar a 1er tex-
delos de interpretaçã o ( estruturalista , marxista , demográfico, etc. ) tos antigos n ão é, de acordo com as palavras de Arlette Farge , “ reco-
que eram os da historiografia triunfante. piar o real ” . Pelas escolhas que faz e pelas relações que estabelece, o
A crise da inteligibilidade histó rica foi mais rudemente senti- historiador atribui um sentido in édito às palavras que arranca do
da porque sobreveio em uma conjuntura de forte crescimento do silê ncio dos arquivos: “ A apreensão da palavra responde à preocu-
n ú mero de historiadores profissionais e de suas publicações. Ela pação de reintroduzir existê ncias e singularidades no discurso his-
teve um duplo efeito. De in ício, fez a histó ria perder sua posição tó rico, de desenhar a golpes de palavras cenas que são igualmente
de disciplina federalista no seio das ciê ncias sociais. Na Fran ça , mas acontecimentos” .5 A presen ça da citação no texto histó rico muda
també m fora dela , fora em torno dos dois programas sucessivos dos assim totalmente de sentido. Ela n ã o é mais ilustração de uma regu-
Annales ( aquele comandado pelo primado da histó ria econ ó mica laridade, estabelecida graças à sé rie e à medida ; indica agora a irrup-
e social dos anos 1930, aquele identificado à antropologia histó ri- ção de uma diferen ça e de uma variação.
ca dos anos 1970 ) que se realizara, sen ão a unificaçã o da ciê ncia O retorno ao arquivo levanta um segundo problema: o das re-
social com que sonhavam no in ício desse século a sociologia dur- lações entre as categorias manipuladas pelos atores e as noções em-
kheimiana e o projeto de sí ntese histó rica de Henri Berr, pelo pregadas no trabalho de análise. Por longo tempo, a ruptura entre
menos uma interdisciplinaridade, cuja pedra angular era dada pela ambas pareceu a pró pria condiçã o de um discurso científico sobre
histó ria. Hoje nã o ocorre mais o mesmo. Em segundo lugar, o tem- o mundo social. Essa certeza n ão existe mais. Por um lado, os crité-
po dos questionamentos foi també m o da dispersão: todas as gran- rios e os recortes clássicos que por muito tempo fundamentaram a
des tradi ções historiográficas perderam sua unidade , todas se frag- histó ria social ( por exemplo, a classificação socioprofissional ou a
mentaram em propostas diversas, freq ú entemente contraditó rias, posição nas relações de produ ção ) perderam sua força de evid ê n-
que multiplicaram os objetos, os m é todos, as “ histó rias ” . cia. Os historiadores tomaram consciê ncia de que as categorias que
Diante do refluxo dos grandes modelos explicativos, uma pri-
meira e forte tentação foi a volta ao arquivo, ao documento bruto
que registra o surgimento das palavras singulares, sempre mais ri- 4
Maurice Agulhon , Pierre Chaunu , Georges Duby, Raoul Girardet , Jacques Le Goff ,
cas e mais complexas do que pode delas dizer o historiador. Desa- Michelle Perrot , Ren é Ré mond , Essais d ’ego-histoire, Pierre Nora ( ed . ) , Paris, Gallimard ,
parecendo por detrás das palavras do outro, o historiador esforça- 1987. Para um exemplo americano , Pensar la Argentina . Los historiadores hablan de histo-
ria y pol ítica , Roy Hora e Javier Trimboli ( ed. ) , Buenos Aires, Ediciones El Cielo por
se para escapar à postura que lhe viria de Michelet e que , segundo Asalto , 1994.
Jacques Ranciè re, consistiria na “ arte de fazer os pobres falarem ca- r>
Arlette Farge , Le Cours ordinaire des choses dans la cit é du XVIIIe siècle, Paris, Editions du
lando-os, de fazê-los falarem como mudos” .3 Tal vontade de apaga- Seuil , p.9. Ver també m Arlette Farge , Le Goût de l ’archive, Paris, Editions du Seuil , 1989,
e o texto fundador de Michel Foucault , “ La vie des hommes inf â mes” , Les Cahiers du che-
min, 29, 1977, p.12-29, reeeditado em Michel Foucault, Dits et écrits , 1954- 1988, edição
^Jacques Ranciè re, Les Mots de l ’histoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Editions du Seu- estabelecida sob a direçã o de Daniel Defert e Fran çois Ewald , com a colaboração de
il , 1992, p.96. Jacques Lagrange, Paris, Gallimard , 1994, t. III, p.237-253.

8
elas pr ó prias uma hist ó ria, e que a histó ria so- seu ser social. O porqu ê da importâ ncia da noção de representação,
manejavam tinham
neces sariam ente a hist ó ria das raz õ es e dos usos destas.6
Por que permite articular três registros de realidade: por um lado, as
cial era
quiza çõ es habitu ais , fundadas sobre uma con- representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões
outro lado , as hierar
da ativid ade profi ssion al ou dos interesses so- do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos
cep çã o fixa e un í voca
conta da labilidade das relações quais eles classificam , julgam e agem ; por outro, as formas de exibi-
ciais, pareceram n ão dar totalmente
. ção e de estilização da identidade que pretendem ver reconhecida ;
e das trajetórias que definem as identidades enfim, a delegação a representantes ( indivíduos particulares, insti-
ao l éxico dos ato-
Por isso, a aten ção atribu ída às categorias e tui ções, instâ ncias abstratas ) da coerê ncia e da estabilidade da iden-
delineiam solidarie-
res, e a ê nfase dada às interações e às redes que tidade assim afirmada. A histó ria da constru ção das identidades so-
, nas formulações radicais
dades e antagonismos. Por isso , també m ciais encontra-se assim transformada em uma história das relações
ção do mundo social
do linguistic turn à americana , a perigosa redu simbólicas de força. Essa história define a constru çã o do mundo so-
de linguagem. O
a uma pura constru ção discursiva, a meros jogos cial como o êxito ( ou o fracasso ) do trabalho que os grupos efetu-
por uma nova hist ó ria das socie dades , da qual a mi-
desaf io lan ç ado
crostoria italiana pode ser considerada como uma
modalidade exem- -
am sobre si mesmos e sobre os outros - para transformar as pro-
, nto , na neces s á ria articu lação entre, de um lado, priedades objetivas que são comuns a seus membros em uma per-
plar , consi ste porta
ções e das racionalidades ten ça percebida, mostrada, reconhecida ( ou negada ) . Conseq úen-
a descrição das percepções, das representa temente, ela compreende a dominação simbólica como o processo
dos atores e , de outro, a identificação das interd
epend ê ncias desco-
estratégias. Dessa pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impos-
nhecidas que , juntas, delimitam e informam suas l ;es que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento. Ela inscre-
ção clássica entre
articulação depende a possível superação da oposi vi , assim , no processo de longa duração de redução da violê ncia e
ções coletivas. Por essa *

as singularidades subjetivas e as determina de conten ção dos afetos, tal como descrito por Elias, a importâ ncia
ao conjunto das noções
razão, uma atenção particular deve ser dada crescente assumida , na Idade Moderna , pelos confrontos que tê m
çã o” , “ habitu s socia l ” , “ socie dade dos indivíduos” ) que,
( “ configura
Elias , perm item pensa r de uma maneira nova, libera- por questões e instrumentos as formas simbólicas.
para Norb ert
filoso fia clá ssica , as rela çõ es entre o indivíduo e o O retorno dos historiadores ao arquivo situa-se, sem d úvida al-
da da heran ç a da
guma, em um movimento mais vasto: o interesse renovado pelo tex-
mundo social. to. Os historiadores perderam muito de sua timidez ou de sua inge-
A articula ção entre as propriedades sociais objeti
vas e sua inte-
s social que coman- nuidade diante dos textos can ó nicos de seus vizinhos - historiadores
riorização nos indivíduos, sob forma de um habitu da literatura, das ciê ncias ou da filosofia - e isso, no pró prio momen-
da pensamentos e ações, leva a considerar
os conflitos ou as negocia-
sua capacidade para fazer com que to em que, nessas outras histórias, as abordagens sociohistó ricas ou
ções, cujo desafio continua sendo
concedido ( ou recusa- contextualistas encontravam uma nova vivacidade após a dominação
se reconheça sua identidade. E do crédito
7

de si mesma, portanto sem reservas dos procedimentos estruturalistas e formalistas.


do ) à imagem que uma comunidade produz Para citar apenas um exemplo, os postulados clássicos e domi-
“ ser perce bido ” , que depen de a afirma ção (ou a negação ) de
de seu nantes da histó ria da filosofia ( ou seja , a definição da legitimidade das
s. Histoire de la raison statistique, Paris
,
6 Alain Desros iè res , La Politiq ue des grands nombre questões e dos autores a partir de sua atualidade na atividade filosófi-
Mesure de l’Etat. Administrateurs et géomètres
Editions La Découverte, ] 993, e Eric Brian La
,
ca contemporâ nea, a existê ncia de um fundo comum de problemas
au XVIIF siècle, Paris, Albin Michel, 1994.
du jugement , Paris, Editions de Minuit, e de respostas independente de qualquer formula ção espec ífica , a
7
Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique sociale
1979.

11
10
autonomia dessa philosophia perennis em relação a toda inscrição his- Entre os historiadores, um dos efeitos da aten ção renovada pe-
tó rica ) são hoje em dia fustigados por outros modos, igualmente le- los textos foi atribuir novamente um papel central às disciplinas de
gí timos, de pensar a relação da filosofia com a história. Em uma tipo- erudição. Por muito tempo relegados à posição ancilar de ciências
logia que se tornou clássica, Richard Rorty coloca assim , ao lado das auxiliares, esses saberes técnicos, que propõem descrições rigorosas
reconstruções racionais da filosofia analítica, voluntariamente anacró- v formalizadas dos objetos e das formas, tornam-se ( ou tornam-se
nicas e a-históricas, três outros modos de escrever a história da filoso- novamente ) essenciais, já que os documentos n ão são mais conside-
fia, todos três plenamente históricos e todos três tidos por pertinen- rados somente pelas informações que fornecem , mas são també m es-
tes: a Geistesgeschichte, definida como a histó ria das questões propria- tudados em si mesmos, em sua organização discursiva e material , suas
mente “ filosóficas” e da constituição do câ none dos “ filósofos” que as condições de produção, suas utilizações estratégicas. A paleografia e
formularam , a “ história intelectual” , entendida no sentido de uma a diplom á tica transformaram-se , assim , em uma história dos usos so-
#

história das condições mesmas da atividade filosófica, enfim, as recons- ciais da escrita, brilhantemente ilustrada pelos trabalhos de Arman-
tru ções histó ricas, que atribuem o sentido dos textos a seu contexto do Pé trucci e de seus alunos.10Já a analytical bibliography, tal como pra-
de elaboração e a suas condições de possibilidade. Esta última pers- ticada sobretudo, mas n ão exclusivamente, no mundo anglo-saxão,
8

pectiva é evidentemente a mais próxima das prá ticas históricas clássi- ampliou-se em uma ambiciosa “ sociologia dos textos” , segundo a ex-
cas, na medida em que acentua a descontinuidade das prá ticas filosó- pressão de D. F. McKenzie , 11 que lembra, contra a tirania das aborda-
ficas, diferenciadas pelo lugar social ou pela instituição de saber onde gens estritamente lingü isticas, que as determinações em curso no pro-
são exercidas, pelas mutações das questões e dos estilos de investiga- cesso de constru ção do sentido são plurais. Elas dependem das estra-
ção legítimos, pelos gê neros e formas do discurso, pelas configurações t égias de escritura e de edição, mas também das possibilidades e im-
intelectuais que dão aos mesmos conceitos significações diversas. posições próprias a cada uma das formas materiais que sustentam os
9

Essas três vias têm seus equivalentes na história das ciê ncias, na discursos, e das competências, das prá ticas e das expectativas de cada
história da arte ou na histó ria da literatura. Ilustram uma forma de comunidade de leitores ( ou de espectadores ) ,12 A “ sociologia dos tex-
retorno aos textos ( ou , mais geralmente, às obras ) que as inscreve tos” assim compreendida n ão se afasta da reflexão feita sobre a noção
nos lugares e meios de sua elabora ção, que as situa no repertó rio de representação, já que, seguindo a distin ção proposta por Louis
específico dos gê neros, das questões , das convenções próprias a um Marin , as próprias formas dadas aos textos ( tanto na oralidade quan-
dado tempo, e que focaliza sua aten ção nas formas de sua circula-
çã o e de sua apropriaçã o. Nisso , elas marcam claramente que , no 1 ,1
Armando Pé trucci, La scrittura : Ideologia e reppresentazione, Piccola Biblioteca Einaudi,
momento em que certas d úvidas assaltaram a disciplina , as aborda- Turim , Einaudi, 1986 ( tradução f rancesa Jeux de lettres . Formes et usages de l’inscription en
gens históricas reencontram todos seus direitos em outro lugar: na Italie XI' - XX' siècles, Paris, Editions de l’ Ecole des hautes études en sciences sociales, 1993) ,
e Le scritlure ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere nella tradizione occidentale,
filosofia, na crítica literá ria , na esté tica. Turim , Giuilio Einaudi editore, 1995.
11
D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts, The Panizzi Lectures 1985, Lon-
8
Richard Rorty, “ The Historiography of Philosophy : Four Genres” , in Philosophy in His- dres, The British Library, 1986 ( tradução francesa La Bibliographie et la sociologie des tex-
tes, Paris, Editions du Cercle de la Librairie, 1991 ).
tory. Essays on the Historiography of Philosophy , Richard Rorty, J.B. Schneewind e Quentin
Skinner (ed.) , Cambridge, Cambridge University Press, 1984, p.49 75 ( tradução fran-
- 12 A t ítulo de
tentativa para relacionar em uma mesma história uma obra , suas formas e
“ performances” , seus p ú blicos e suas significações, ver Roger Chartier, “ George Dan-
cesa “ Quatre maniè res d ’écrire l ’ histoire de la philosophie” , in Que peut faire la philoso
-

phie de son histoire ?, Gianni Vattimo ( ed. ) , Paris, Editions du Seuil , 1989, p.58-94 ) . din , ou le social en représentation ” , Annales, Histoires, Sciences Sociales, 2, março-abril 1994,
9
Alasdair McIntyre , “ The Relationship of Philosophy to its Past” , in Philosophy in History , p.277-309, reeditado em Roger Chartier, Culture écrite et société. L’ordre des livres ( XIV - XVIIIe
op. cit ., p.31-48. siècle ), Paris, Albin Michel , 1996, p.155-204.

12 13
à dimensão to verdadeiro. Somente com a contestação dessa epistemologia da
to na escrita , no manuscrito e no impresso pertencem
)
um dispositivo coincidê ncia e com a tomada de consciê ncia da distâ ncia existente
“ reflexiva ” de toda representação, aquela pela qual
, um texto. entre o passado e sua representação ( ou , para dizer como Ricoeur,
material apresenta-se como representando algo - no caso ( Mitre “ o que, um
é m são pro- dia, foi ” , e que n ão é mais, e as constru ções discur-
Os historiadores sabem bem hoje em dia que tamb
a mais quantitati- sivas que pretendem assegurar a représentance ou a lieutenance * desse
dutores de textos. A escritura da histó ria, mesmo passado ) 10 podia desenvolver-se uma reflexão sobre as modalidades,
narrativa , com
va, mesmo a mais estrutural, pertence ao gê nero da ao mesmo tempo comuns e singulares, da narrativa de história.
o qual compartilha as categorias fundamentais.
Narrativas de ficção
maneira de fa- Essa consciê ncia aguda da dimensão narrativa da história lançou
e narrativas de história tê m em comum uma mesma
construir a tem- um sé rio desafio a todos aqueles que recusam uma posição relativista
zer agir seus “ personagens” , uma mesma maneira de
poralidade, uma mesma concepção da causalidade.
Essas constata- à Hayden White, que n ão vê no discurso de história senão um livre
obras de Michel de Certeau 11
e de jogo de figuras retóricas, senão uma expressão dentre outras da in-
çóes tornaram-se clássicas pelas
a depen - ven ção ficcional. Contra essa dissolu ção do estatuto de conhecimen-
Paul Ricoeur.14 Eles lembram , de in ício, que considerando lo da histó ria, freq ú entemente considerada nos Estados
, em relação
dência fundamental de toda história, qualquer que seja Unidos como
factual n ão sig- uma figura do pós-modernismo, deve-se sustentar com força que a
às técnicas da mise en intrigue , o rep ú dio da história
*

é uma boa história é comandada por uma inten ção e por um princípio de ver-
nificou absolutamente o abandono da narrativa. O que dade, que o passado que ela estabelece como objeto é uma realidade
os outros, nem
maneira de dizer que os historiadores, assim como
- exterior ao discurso, e que seu conhecimento pode ser controlado.
sempre fazem o que pensam fazer e que as rupturas orgulhosamen. A lembran ça é mais do que ú til em uma época em que as fortes
te reivindicadas mascaram com freq úência continuidades
ignoradas
assim for- lentações da histó ria identitá ria correm o risco de embaralhar toda
Poré m , o problema mais essencial é outro e pode ser
sua perten- distin ção entre um saber controlado, universalmente aceitável, e as
mulado: por que, duradouramente, a história ignorou
ocultada em reconstru ções m íticas que vê m confirmar mem órias e aspirações
ça aà classe das narrativas? Esta era necessariamente
15

uma coincid ê n- particulares. Como escreve Eric Hobsbawn: “ A projeção no passado


todos os regimes de historicidade que postulavam de desejos do tempo presente ou , em termos técnicos, o anacronis-
cia sem distâ ncia entre os fatos hist
óricos e os discursos que tinham
à maneira mo, é a técnica mais corrente e mais cô moda para criar uma histó-
o encargo de justificá-los. Quer seja coleta de exemplos
na tradição his- ria própria a sa úsfazer as necessidades de coletivos ou de ‘comuni-
antiga , quer se dê como conhecimento de si mesma dades imagin á rias’ - conforme a expressão de Benedict Anderson -
” , a histó ria só
toricista e rom â ntica alem ã , quer se queira “ cient ífica que estão longe de serem exclusivamente nacionais” .17
podia recusar-se a se pensar como uma narrativa.
A narração n ão
o caso, es- Mas pode-se resistir a essa deriva, mortal para a fun ção refe-
podia ter nenhum estatuto próprio, visto que, conforme,
tava submetida às disposi ções e às figuras da arte
retórica era consi- rencial da história, somente pela reafirmação, por mais necessá ria
derada como o lugar do desenvolvimento dos pró prios
acontecimen-
tos, ou era percebida como um obstáculo maior
a um conhecimen- * Représentance, o que tern a função de representar; lieutenance, o que substitui. ( N . de T. )
"17’ Paul Ricoeur, Temps et récit , op. cil ., 1.1, p. 203-205.
Eric J . Hobsbawm , “ L’ historien entre la quête d’ universalité et la quête d ’ identité” ,
, 1975.
13 Michel de Certeau , IÆcriture de l'histoire, Paris, Gallimard Diogène, 168 , outubro-dezembro 1994, n úmero especial “ La responsabilité sociale de
, 1983- 1985.
14
Paul Ricoeur, Temps et récit , 3 vol . , Paris , Editions du Seuil
)
l ’ historien ” , p. 52-86 ( citação p.6 I ) . Eric Hobsbawm faz referência ao livro de Benedict
* Composi ção de uma trama , de uma intriga”. ( N . de Tés recomposés. Champs et chantiers de
.
Anderson , Imagined Communities. Rejections on the Origin and Spread of Nationalism, ( 1983 ) ,
13
François Hartog, “ L’ art du récit historique , in Pass edição revista , Londres e New York , 1991 .
l ’histoire, op. rit ., p. 184-193.

14 15
do exercício noção de heran ça pressupõe que, de um certo modo, o passado se
que seja , das exigê ncias, das disciplinas e das virtudes , histó rico
cr ítico? Não se deveria antes, considerando que o saber perpetua no presente e assim o afeta ” .19
d ê ncia ou Sem d ú vida, é paradoxal que um historiador como eu , que en-
ou n ão, n ão pode mais ser pensado como a pura coinci
so, empreen- contra inspiração nos pensamentos da ruptura e da diferen ça, evo-
a siimpies equivalê ncia de um objeto e de um discur
tendem Joyce que deste modo o procedimento hermen ê utico e fenomenológico
der uma refundação mais essencial ? E para isso que
uma new de Paul Ricoeur. Mas é dessa tensão que depende hoje a compreen-
Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob quando pleiteiam
relationship sã o do passado, ou do outro , para alé m das descontinuidades que
theory of objectivity ( entendida como an interactive
[ uma rela ção rec í- separam as configurações histó ricas.
between an inquiring subject and an external object
r ] e pensa- Todavia , a constatação n ão basta para dotar a histó ria do estatu-
proca entre um sujeito conhecedor e um objeto exterio çõ es) e quan - to de conhecimento verdadeiro. Resta uma questão que, parece-me,
da como n ão exclusiva da pluralidade das interpreta
de practical n ão responde completamente nem às tentativas para fundar uma new
do adotam uma posi çã o epistemol ógica , qualificada
have some cor- theory of objectivity, nem às propostas que visam a assegurar o “ realismo
realism, segundo a qual people's perceptions of the world
they are his- crítico do conhecimento histó rico” : ou seja , quais são os crité rios gra-
respondance with that world and that standards, even tough
valid and invalid ças aos quais um discurso histó rico, que é sempre um conhecimento
torical products, can be made to discriminate between
a cor- sobre traços e ind ícios, pode ser considerado como uma reconstru-
assertions18 [as percepções do mundo dos atores tê m algumsejam
, mesmo que ção vá lida e explicativa ( em todo caso, mais válida e explicativa do que
respond ê ncia com esse mundo e onde crité rios
historicamente constru ídos, podem ser estabelecidos
para distin- outras) da realidade passada que ele constituiu como seu objeto? A
o são] . resposta n ão é simples - e hoje menos ainda do que no tempo em que
guir entre as afirmações admissíveis e as que n ão
Paul Ricoeur, por sua vez , indica as condições de possib
ilidade as ce rtezas bem ancoradas da objetividade crítica e de uma epistemo-
” . Para ele , elas logia da coincidência entre o real e seu conhecimento protegiam a
de um “ realismo crítico do conhecimento histó rico
ador e do obje- história de qualquer inquietude quanto a seu regime de verdade.
se devem , por um lado, à inscrição do sujeito histori
“ o mesmo e ú nico siste- Isso não ocorre mais. Fundar a disciplina em sua dimensão de
to histórico no mesmo campo temporal: E
ma de datação que inclui os três acontecimentos que
constituem o conhecimento, e de um conhecimento que é diferente daquele for-
são, e o pre- necido pelas obras de ficção, é de uma certa maneira seguir ao lon-
começo do período considerado, seu fim ou sua conclu
ação histórica ) ” . go da falésia. Os historiadores perderam muito de sua ingenuidade
sente do historiador ( mais precisamente , da enunci
e dos ato- e de suas ilusões. Agora sabem que o respeito às regras e às opera-
Elas remetem , por outro lado, à perten ça do historiador
e de experiê n- ções próprias à sua disciplina é uma condição necessá ria, mas não
res, cuja histó ria ele escreve a um campo de prá ticas
fundar a “ depen- suficiente , para estabelecer a histó ria como um saber específico.
cias suficientemente comum e compartilhado para
ção ao ‘fazer’ dos Talvez seja seguindo o percurso que leva do arquivo ao texto, do texto
d ê ncia mesma do ‘fazer’ do historiador em rela
s
herdeiros que os histo- à escritura , e da escritura ao conhecimento, que eles poderão acei-
agentes histó ricos” : “ E primeiramente como
de se colocarem tar o desafio que lhes é hoje lan çado.
riadores se colocam em relação ao passado antes
do passado. Essa Uma ú ltima consideração. Sempre me pareceu que o trabalho
como mestres artesãos das narrativas que fazem
de todo historiador está dividido entre duas exigê ncias. A primeira,

the Truth about History, op. cit . , p. 259


Joyce Appleby, Lynn Hunte Margaretjacob, Telling
18
IM
Paul Ricoeur, “ Histoire et rh é torique” , Diogène, p . 9-26 ( citações p. 24 e 25 ) .
e 283.

17
16
clássica e essencial, consiste em propor a inteligibilidade mais adequa-
da possível de um objeto, de um corpus, de um problema. E por essa
razão que a identidade de cada historiador lhe é dada por seu traba-
lho em um territó rio particular, que define sua competê ncia pró pria. PRIMEIRA PARTE
Em meu caso, esse campo de pesquisa é o da história das formas, usos
e efeitos da cultura escrita nas sociedades da primeira modernidade, Percurso
entre o século XVI e o século XVIII. Mas há també m uma segunda
exigência: aquela que obriga a história a travar um diálogo com ou-
tros questionamentos - filosóficos, sociológicos, literá rios, etc. Somen-
te através desses encontros a disciplina pode inventar questões novas
e foijar instrumentos de compreensão mais rigorosos.
Por isso, a organização deste livro. Sua primeira parte demar-
ca , por meio de uma sé rie de reflexões historiográficas e metodoló-
gicas, os deslocamentos que transformaram os modos de pensar e
de escrever a histó ria nestes ú ltimos vinte anos. A segunda segue em
companhia de pensamentos fortes, de obras densas, que foram pre-
ciosos pontos de apoio para o trabalho dos historiadores. Nestes ú l-
timos anos, três noções sustentaram a reflexão das ciê ncias huma-
nas e sociais: discurso, prá tica, representação. Resgatar a obra de
Michel Foucault, a de Michel de Certeau e a de Louis Marin permi-
te precisar melhor seus contornos e definir com mais acuidade sua
pertinência. Enfim , a última parte da obra é consagrada às relações
que a história manteve e manté m com vá rias disciplinas que são suas
vizinhas próximas. Trata-se de compreender como os historiadores
preferiram certos corporativismos e , conseq úentemente, negligen-
ciaram as propostas ou as questões vindas de outros horizontes.
Acompanhando a histó ria dessas alian ças e ignorâ ncias, nosso obje-
tivo é duplo: retornar às escolhas que marcaram duradouramente a
prá tica da histó ria na Fran ça, mas mostrar igualmente ( a partir do
exemplo dos laços entre crítica textual e história cultural ) que se
inventam hoje em dia novos espaços intelectuais.

18

ítt»
Introdução

Os quatro textos que compõem a primeira parte deste livro


foram redigidos e publicados em datas e em contextos muito diferen-
tes. Reuni-los hoje responde a uma dupla inten ção. Por um lado, tra-
ta-se de indicar meu percurso a partir da tradição historiográfica à qual
perten ço - a da histó ria sociocultural à maneira dos Annales. Entre o
texto crítico apresentado em Cornell em 1979 e publicado em 1983,
que pretendia submeter a exame as divisões e noções demasiado sim-
ples sobre as quais tinha vivido a história das mentalidades, e o publi-
cado em 1994, que tenta fazer o levantamento das principais razões
que abalaram as certezas dos historiadores, tanto na Fran ça como fora
dela, um caminho foi traçado. Ele é marcado pela ampliação dos ho-
rizontes historiográficos, pelo apagamento das fronteiras entre tradi-
ções nacionais, pelo desencravamento da história, agora mais ampla-
mente aberta às interrogações das disciplinas que são suas vizinhas.
Situando em um campo de estudo particular, aquele que une textos,
livros e leituras, os novos questionamentos definidos, o ensaio intitu-
lado “ O mundo como representação” queria mostrar os ganhos que
se pode esperar tanto da manipulação dos conceitos que não perten-
ciam ao repertório clássico da história das mentalidades - por exem-
plo, os de representação ou de apropriação - quanto do cruzamento
de abordagens e de técnicas por muito tempo disjuntas.

21

:• r

SP * • » . ..
\

Por outro lado - e esta é uma segunda inten ção -, os quatro


ensaios aqui reunidos permitem , pelo menos espero, determinar
nestes úl-
os 1. História intelectual
principais debates que atravessaram a disciplina histó rica
timos vinte ou trinta anos. Os desafios foram numerosos
e diversos, e história das mentalidades
tico, cris-
da “ reviravolta lingü istica” à americana ao retorno ao pol í
, da “ re-
talizado na ocasião do Bicenten ário da Revolução Francesa
viravolta cr ítica” pleiteada pela redação dos Annales ao questiona
-
mento do estatuto de conhecimento da história. As
discussões tra-
, transfor-
vadas em torno dessas propostas, às vezes perturbadoras
de es-
maram profundamente os modos de pensar, de trabalhar e
crever dos historiadores. Elas fizeram surgir novos objetos obriga
; -
ram a reformular questões clássicas ( por exemplo, a da objetivida
-
iné-
de do discurso histórico) ; levaram a correlacionar de maneira
sociais e
dita as formas da dominação, a construção das identidades
certezas,
as prá ticas culturais. Com o desaparecimento das antigas Definir a história intelectual n ão á tarefa fácil, e isso por vá rias
tais como organizadas pelos paradigmas dominantes dos
anos 1960, razoes. A primeira manifesta-se no pró prio vocabulá rio. Em nenhum
óstico n ão é
a história pareceu entrar em crise. Penso que o diagn outro campo da histó ria, de fato, existe uma tal especificidade nacio-
mais
totalmente exato. Questionando as evidê ncias que pareciam
nova
nal das designações u úlizadas e uma tal dificuldade para aclimatá las, -
solidamente estabelecidas, o trabalho histórico encontrou uma até mesmo simplesmente para traduzi-las para outra língua e outro
ricas ou
vitalidade e articulou de modo inventivo as reflexões teó contexto intelectual.1 A historiografia americana conhece duas cate-
metodológicas com a produção de novos saberes. gorias, cujas relações são, aliás, pouco específicas e sempre problemá-
licas: a de intellectual history , surgida com a New History do in ício do
século e constitu ída como designação de um campo pardcular de
pesquisa com Perry Miller; a de history of ideas, constru ída por Arthur
Lovejoy para definir uma disciplina tendo seu objeto próprio, seu
programa e seus mé todos de pesquisa, seu lugar institucional ( em
pardcular, graças aoJournal of the History of Ideas, fundado em 1940 por
Lovejoy ) . Ora, nos diferentes países europeus, nenhuma dessas duas
designações passa: na Alemanha, Geistesgeschichtepermanece dominan-
t e; na Itália, Storia intellectuale não aparece, nem mesmo em Cantimo-
ri. Na França, história das ideias quase n ão existe, nem como noção,
nem como disciplina ( e foram de fato historiadores da literatura, tal

1
Ver as primeiras páginas do artigo de Felix Gilbert, “ Intellectual History: its Aims and
Methods ” , Daedalus, Historical Studies Today, winter 1971 , p. 80-97.

23
22

P» » :
Ehrar d , que reivin dicara m , aliás, com d úvidas e prudên- dos pensamentos sistemá ticos, geralmente em tratados filosóficos ) ,
como Jean ter chegado tarde demais para a histó ria intelectual propriamente dita (o estudo dos pensamen -
e hist ó ria intele ctual parec e
( história da filosofia, história lite-
cia, o termo ) , tos informais, das correntes de opinião e das tendências literá rias ) ,
substituir as design a çõ es tradic ionais
) e n ã o teve for ç a contra um novo vocabulá- a histó ria social das idéias ( o estudo das ideologias e da difusão das
rária, história da arte, etc .
dos Annales, história das idéias ) , e a histó ria cultural ( o estudo da cultura no sentido antro-
pelos histor iadore s
rio forjado essencialmente das ideias, história sociocul- pológico, incluindo as visões do mundo e as mentalidades coletivas ) ] .
mentalidades, psicologia hist ó rica , hist ó ria social
desse fecham ento é , ali ás, verdadeira, já que Em um vocabulá rio diferente, essas definições dizem , no fundo,
tural, etc. A recíproca parec e mal assegurada em uma mesma coisa: que o campo da história dita intelectual reco-
história das mentalidade s expor ta - se mal ,
n ã o o franc ê s e parec e ser a origem de in ú meras bre, na verdade, o conjunto das formas de pensamento e que seu
outras línguas que ão e a reconhecer assim objeto n ão tem mais precisão a priori do que aquele da histó ria so-
a n ão traduz ir a expre ss
confusões, o que leva
ra nacional de pensar as cial ou econ ó mica.
espec ificid ade de uma manei
a irredutível hist ó rias ( econ ómica , social , Para al é m das designações e das defini ções, importam portan-
das outras
questões. As certezas lexicais e, portanto, uma dupla incerteza to, antes de tudo, a ou as maneiras como, em um determinado mo-
) , a hist ó ria intele ctual op õ
política histor iograf ia nacio nal possui sua mento, os historiadores recortam este territó rio imenso e indeci-
do vocabulá rio que a design a : cada
çã o e , em cada uma delas , diferentes noções, so e tratam as unidades de observa ção assim constitu ídas. Toma-
própria conceitualiza , entram em competi ção. das no centro de oposi ções intelectuais ao mesmo tempo que ins-
s umas das outras
dificilmente distinguida difere m , as coisas são se- titucionais, essas maneiras diversas determinam cada uma seu ob-
Mas, por detr á s dessas palav ras que • •

, o objeto que design am tão diversamente é jeto, suas ferramentas conceituais, sua metodologia. No entanto,
melhantes? Ou ainda
é neo ? Nada parec e meno s certo. A título de exem- cada uma delas sustenta, explicitamente ou n ão, uma representa-
ú nico e homog Ehrard , a história das ção da totalidade do campo histó rico, do lugar que ela pretende
plo, duas tentat ivas taxin ô micas : para Jean
ê s hist ó rias - “ hist ó ria indiv iduali sta dos grandes nele ocupar e daquele deixado aos outros ou recusado , A incerte-
idéias recobre tr
coletiva e difusa que za e a 'compartimentação do vocabulá rio de designação remetem
mund o , hist ó ria dessa realid ade
sistemas do de pensamento e de sen- sem d úvida alguma a estas lutas interdisciplinares cujas configura-
, hist ó ria estrut ural das forma s
, a história intelectual ( intellectu-
é a opiniã o ções são pró prias a cada campo de forças intelectuais e cujo obje-
Rober t Darnto n
para of systematic thou-
” ;2
sibilidade ( the study tivo é uma posição de hegemonia, que é primeiramente hegemo-
the history of ideas
al history ) compreende history proper ( the stu- nia de um léxico.
treati ses ), intelle ctual
ght usually in philosophical and literac y movements ), the Queremos então expor aqui algumas das oposições que mode-
, climat es of opini on
dy of informal thought and idea diffusion ) and cul- laram e dividiram de maneira original a história intelectual france-
ideas ( the study of ideolo gies
social history of anthropological sense, including sa, e isso, estando consciente de um duplo limite: por um lado, na
( the study of cultur e in the
tural history
and collec tive men tali té s3 [a história das id éias ( o estudo falta de investigações precisas, n ão poderemos restituir plenamen-
world-views te as questões institucionais ou pol íticas subjacentes aos confrontos
de m é todo; por outro, devido à nossa posição pessoal, privilegiare-
” , in Problèmes et méthodes de l histoire
'
idé es et histoire litté raire mos por força alguns debates, em particular, aqueles travados em
* Jean Ehrard , “ Histoire des 1972, Publications de la Socié té d’ histoire littéraire de la
littéraire. Colloque 18 novemb re torno dos Annales, de 1930 até hoje, desequilibrando talvez assim o
, p. 68-80 .
France , Paris, Armand Colin , 1974 al History ” , in The Past Before Us: Conlnnporary His
-
quadro de conjunto.
3 Robert Damton , Intellectual
“ and Cultur , 1980, p. 337.
Stales , M Kamm er ( ed . ) , Cornell University Press
torical Writing in the United .

25
24
HISTÓRIA INTELECTUAL psicológica e intelectual antiga: “ Assim , por exemplo, designando
OS PRIMEIROS “ANNALES” E A com o próprio nome de reforma, no in ício desse século [o século
ó ria da hist ó ria intele ctual na Fran ça ( no XVI ] , o esforço de renovação religiosa , de renascimento cristão de
No século XX , a tra ijet
de suas muta çõ es tem á ticas ou metodológicas e do um Lefèvre e de seus disc ípulos, já n ã o deformamos, interpretan-
duplo sentido disciplinar da história) foi do-a, a realidade psicológica de então? ” 5 Livrando-se dos ró tulos que,
de suas posi çõ es no camp o
que lhe era externo: aque-
deslocamento
coma ndad a por um discu rso pretendendo identificar os pensamentos antigos, na verdade os tra-
amplamente ,
histo riado res que , entre as duas Guerras Mundiais vestem , a tarefa dos “ historiadores do movimento intelectual ” ( como
le mantido pelos a histó ria. Deve-se,
distin ta de escre ver escreve Lefèvre) é, antes de tudo, reencontrar a originalidade, irre-
formularam uma maneira como a histó ria dos An- dutível a toda definição a priori, de cada sistema de pensamento, em
partir da í e tentar comp reend er
portanto ,
e , em prime iro plano , Lucie n Febvre e Marc Bloch , pensaram sua complexidade e seus deslocamentos.
nales
O fato importa, n ão para uma
*

o que devia ser a hist ó ria intele ctual . O esforço para pensar a rela ção entre as idéias ( ou as ideologi-
qualq uer , mas porq ue essa abordagem da as ) e a realidade social através de categorias distintas daquelas da
celebração retrospecti va
progr essiv amen te comu m entre os his- influ ência ou do determinismo é a segunda preocupa ção expressa
história das idéias tornou -se
da em que a comu nidad e histórica de- por Febvre antes mesmo de 1914. Testemunha disso é este texto de
toriadores, na pr ó pria medi
abusi vame nte sem d ú vida , tornava-se dominante , 1909 acerca do proudhonismo:
signada, muito , em seguida institucional-
ctual ment e nos anos 1930
de in ício intele Não há, no sentido próprio, teorias “ criadoras” - porque assim que uma
mente após 1945.4 é primeiramente rea- idéia, por mais fragmentá ria que seja, foi realizada no dom ínio dos fatos e
Para Febvr e , pens ar a hist ó ria intele ctual de maneira tão imperfeita quanto possível - n ão é a idéia que conta con-
é poca. Desse ponto de vista, a con-
gir àquela que se escreve em sua os publicados na Revue
seq üentemente e que age, é a instituição situada em seu lugar, em seu tem-
é grand e entre os prime iros resum po, incorporando-se uma rede complicada e móvel de fatos sociais, pro-
tinuidade
èse histor ique de Henri Berr , antes de 1914, e aqueles que ele duzindo e sofrendo alternadamente mil ações diversas e mil reações.6
de synth
aos Anna les duran te e ap ó s a Segunda Guerra Mundial. Por
concede consa gra , na revista de Berr, Mesmo que os procedimentos de “ encarnação” das idéias sejam sem
exemplo, as duas longa s recen sõ es que
de L . Delar uelle sobre Bud é e, em 1909, ao de E. d úvida mais complexos do que Febvre deixa supor aqui, resta que
em 1907, ao livro s duas interroga- ele afirma claramente sua vontade de romper com toda uma tradi-
hon . A í se encon tram form ulada
Droz sobre Proud de seus grandes livros, ção de histó ria intelectual (figura invertida de um marxismo simpli-
ã o os pr ó prios funda mento s
ções que fornecer -
1929 e o Rabe lais em 1942 . Prime iramente, pode se re- ficado) que deduzia de alguns pensamentos voluntaristas a totalidade
o Luther cm dos processos de transformação social. Para ele, o social não pode-
categ orias tradic ionai s de que se serve a história das idéias
duzir às ria de modo algum se dissolver nas ideologias que visam a modelá-
ça , Hum anism o , Refor ma , etc.) os pensamentos às vezes
( Renascen , em todo caso , sem- lo. Estabelecendo assim , nesses textos de juventude, uma dupla dis-
ü entem ente comp ó sitos e
contraditórios, freq
m ó veis de um home m ou de um meio? As designações retros-
pre -senso s e traem a vivê ncia Lucien Febvre , Guillaume Budé et les origines de l ’ humanisme français. À propos
pectivas e classificat ó rias ence rram contra
d ouvrages récentes” , Revue de synthèse historique, 1907, retomado em Pour une histoire à

part entière, Paris , SEVPEN , 1962, p. 708 .


” , Reviexo, vol . I , n . 3/ ' • Lucien Febvre, “ Une question d ’ influence: Proudhon et les syndicalismes des années
Revel , “ The Annal es :. Continuities and Discontinuities des
4
Cf . Jacques “ Histoire et sciences sociales: les paradigmes 1900-1914” , Revue de synthèse historique, 1909 , retomado em Pour une histoire à part entière,
1978 p 9- 18 e
4 , inverno-primavera , .
op. rit ., p . 785.
Annales" , A nnales E. S .C. , 1979, p . 1360-
1376.

27
26

BxPfr. Trffi iL. . r


,
'
tâ ncia , de um lado , entre as maneiras de pensar
antigas e as noções, sas grandes catedrais de idéias como as que Etienne Gilson nos des-
na maioria das vezes muito pobres, com as quais
os historiadores pre- —
creve em seu livro são as filhas de um mesmo tempo. Irmãs que cres-
antigos e o ceram em um mesmo lar” .8 Sem explicitá-la ou teorizá-la, Febvre su-
tendiam catalogá-las; de outro, entre esses pensamentos
Febvre indicava o ca- gere aqui uma leitura que postula, para uma dada época, a existê ncia
terreno social onde eles se inscrevem Lucien
,
minho a seguir para uma an álise histó rica que
tomaria por modelo de “ estruturas de pensamento” ( a expressão n ão aparece em Febvre ) ,
os constru íam en- elas próprias comandadas pelas evolu ções socioecon ômicas, que or-
as descri ções dos fatos de mentalidade tais como
ólogos que seguiam a tri- ganizam tanto as construções intelectuais quanto as produ ções artís-
tão os sociólogos durkheimianos ou os etn
ticas, tanto as prá ticas coletivas como os pensamentos filosóficos.
-
lha de Lévy Bruhl.
ria das idéias que Arquitetura e escolástica: a letra mesma da observação de Feb-
Quarenta anos mais tarde, contra uma histó
ções, o tom tornou- vre convida a aproxim á-la do livro muito contemporâ neo de Erwin
Febvre percebe como imobilizada em suas abstra
a assim os histo- Panofsky, Gothic Architecture and Scolasticism ( objeto de uma sé rie de
se mais crítico e mais mordaz. Em 1938, ele maltrat
conferências em 1948 e publicado em 1951 ) .9 Com efeito, ambos,
riadores da filosofia:
de maneira paralela, e muito provavelmente sem influência recípro-
ou n ão por algum epí-
De todos os trabalhadores que retê m , precisado ca, tentam na mesma é poca criar os meios intelectuais que permi-
, n ã o existe quem o justifi-
teto, o qualificativo gen é rico de historiadores tam pensar este “ esp írito da é poca ” , este Zeitgeist que, por exemplo,
- , com bastante freq üência ,
que de alguma maneira ao nosso ver salvo sistemas às vezes com fundamenta todo o m é todo de Burckhardt mas que, para Panofsky
aqueles que, aplicando-se a repensar por sua conta o de estabelecer sua e para Febvre, é, bem mais do que o que explica, justamente o que
vá rios séculos de idade, sem a menor preocupaçãos viu nascer - acham-
relação com as outras manifestações da é poca que deve ser explicado. Fazendo isso, cada um à sua maneira, distancia-
á rio do que reclama um
se assim fazendo, muito exatamente , o contr se das noções que até entã o subentendiam implicitamente os traba-
ções de conceitos oriun-
mé todo de historiadores. E que, diante dessas cria lhos de histó ria intelectual , ou seja:
vivendo sua própria vida
dos de inteligê ncias desencarnadas - e depois
fora do tempo e do espaço , urdem estranhas cadeias, de anéis ao mes-
mo tempo irreais e fechados •••
7 1. o postulado de uma relação consciente e transparente entre
as inten ções dos produtores intelectuais e seus produtos;
é, portanto, dupla.
Contra a história intelectual do tempo, a crítica 2. a atribuição da criação intelectual (ou esté tica ) apenas à in-
das condições que
Por isolar as idéias ou os sistemas de pensamento ventividade individual, portanto, sua liberdade - idéia que funda o
das formas da
autorizaram sua produ ção, por separá-los radicalmente motivo mesmo, tão caro a uma certa história das idéias, do precursor;
vida social, essa histó ria desencarnada institui
um universo de abstra- 3. a explicação das concord â ncias determinadas entre as dife-
ções onde o pensamento parece não ter limites já
que não tem de- rentes produ ções intelectuais (ou artísticas ) de um tempo, seja pelo
de Etienne Gilson ,
pendências. Explicando - com admiração - o livro , esta idéia cen- jogo dos empréstimos e das influ ê ncias ( outras palavras mestras da
1948
La Philosophie au Moyen Age, Febvre retoma, em histó ria intelectual ) , seja pela refer ê ncia a um “ espírito da é poca” ,
das idéias na histó-
tral para ele: “ Não se trata de subestimar o papel conjunto compósito de traços filosóficos, psicol ógicos e esté ticos.
interesses. Trata-se de
ria. Menos ainda de subordin á-lo à ação dos
mostrar que uma catedral gó tica , os mercados
de Ypres... e uma des- M
Lucien Febvre, “ Doctrines et sociétés. Etienne Gilson et la philosophie du XIV ' siècle” ,
1

Annales E.S.C., 1948, retomado em Combats pour l’Histoire, op. cit ., p. 288.
d’histoire économique et sociale, 1928, '' Erwin Panofsky, Architecture gothique et pensée scolastique, precedido por L’Abbé Suger de
7
Lucien Febvre, “ Leur histoire et la nôtre” , Annales
Colin , 1953, p.278. Saint-Denis, tradu ção e posfácio de Pierre Bourdieu , Paris, Editions de Minuit, 1967.
retomado em Combats pour l'Histoire, Paris, Armand

29
28

«fil!
Pensar de outro modo essas diferentes relações ( entre a obra e gage, manthématique, por outro, o segundo livro da segunda parte de
seu criador, entre a obra e sua é poca , entre as diferentes obras de j Rabelais. O que define nessas páginas a aparelhagem mental é o estado
uma mesma é poca ) exigia forjar conceitos novos: em Panofsky, os * da l íngua, em seu léxico e sua sintaxe, as ferramentas e a linguagem cien-
de h á bitos mentais ( ou habitus ) e de forças formadoras de h á bitos tífica dispon íveis, e também este “ suporte sensível do pensamento” que
{ habit-formingforces )’, em Febvre , o de aparelhagem mental. Em am- é o sistema das percepções, cuja economia variável comanda a estrutu-
bos os casos, graças a essas novas noções, tomava-se uma distâ ncia ra da afetividade: “ Aparentemente tão próximos de n ós, os contempo-
dos procedimentos habituais da histó ria intelectual e , por essa ra- râ neos de Rabelais já estão muito longe por todas suas perten ças inte-
zão, seu pró prio objeto se encontrava deslocado. lectuais. E sua própria estrutura n ão era a nossa” 11 ( o grifo é nosso ) . Em
Em seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre n ão define a apa- uma determinada é poca, o cruzamento desses diferentes suportes ( lin-
relhagem mental , mas carateriza-a assim: gu ísticos, conceituais, afetivos ) comanda “ modos de pensar e de sen-
tir” que recortam configurações intelectuais específicas ( por exemplo,
A cada civilização sua aparelhagem mental; mais do que isso, a cada é poca sobre os limites entre o possível e o impossível ou sobre as fronteiras
de uma mesma civiliza çã o, a cada progresso , seja das técnicas, seja das entre o natural e o sobrenatural ) .
ciê ncias que a carateriza - uma aparelhagem renovada, um pouco mais
desenvolvida para certos empregos, um pouco menos para outros. Uma
A tarefa primeira do historiador, assim como do etn ólogo, é
aparelhagem mental que essa civiliza ção, que essa é poca n ão está garan- então resgatar essas representações, em sua irredut ível especificida-
tida de poder transmitir, integralmente, às civilizações, às é pocas que vão j de, sem recobri-las com categorias anacró nicas, nem medi-las pela
lhe suceder; ela poderá conhecer mutila ções, retrocessos, deforma ções j aparelhagem mental do século XX , posto implicitamente como o
significativas. Ou, ao contrá rio, progressos, enriquecimentos, complica- j resultado necessá rio de um progresso contínuo. També m aqui ,
ções novas. Ela vale para a civiliza ção que soube forjá-la; vale para a é po-
ca que a utiliza ; não vale para a eternidade, nem para a humanidade: nem i Febvre reencontra Lévy-Bruhl para alertar contra uma leitura erró-
mesmo para o curso restrito de uma evolu ção interna de civilização.
10
nea dos pensamentos antigos. Prova disso é a similitude entre a in-
trodução de La Mentalité primitive.
O que queria dizer três coisas: primeiramente, seguindo o Lévy-Bruhl
de La Mentalité primitive (1922 ) , que as categorias do pensamento n ão Ao invés de substituirmos em imaginação os primitivos que estudamos,
e de fazê-los pensar como n ós pensaríamos se estivéssemos em seu lu-
sao nem universais nem redutíveis àquelas operacionalizadas pelos
gar, o que só pode levar a hipó teses no m á ximo prováveis e quase sem -
homens do século XX; em seguida, que as maneiras de pensar depen- pre falsas, esforcemo-nos, ao contrá rio, para nos prevenir contra nossos
dem , antes de mais nada, dos instrumentos materiais ( as técnicas) ou pró prios h á bitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos por
conceituais (as ciências) que as tornam possíveis; enfim contra um — meio da aná lise de suas representações coletivas e das liga ções entre es-
evolucionismo ingé nuo - que n ão há progresso contínuo e necessá rio sas representa ções12
( definido como uma passagem do simples ao complexo ) na sucessão
e as primeiras páginas de um livro publicado por Febvre em 1944,
das diferentes aparelhagens mentais. Para compreender o que, para
Amour sacré, amour profane. Autour de VHeptaméron:
Febvre, designa a própria noção de aparelhagem mental , dois textos
podem ser evocados: por um lado, o tomo primeiro de LEncycbpédie A esses ancestrais, atribuir candidamente conhecimentos de fato - e por-
française, publicado em 1937, sob o título L’Outillage mental. Pensée, lan- tanto materiais de idéias - que possuímos todos, mas que eram impossí-

10
Lucien Febvre , Le Problème de l'incroyance au XVIe siècle. La religion de Rabelais, 1942 , tee-
11
Ibid., p. 394.
di çâo , Paris , Albin Michel , col . L’ Évolution de l ’ Humanité , 1968 , p . 141- 142. Lucien Lévy- Bruhl , La Mentalité primitive, 1922, reedição, Paris , Retz , 1976, p . 41 .

30 31

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.
dentre eles; imitar tantos bons tos existentes, os mais desfavorecidos n ão utilizarão sen ão uma par-
vois de adquirir mesmo pelos mais sábios
s das “ ilhas” : pois todos os
mission á rios que outrora voltavam maravilhado em Deus; um pequeno te ínfima da aparelhagem mental de sua é poca , limitando assim , em
selvagens que tinham encontrado acreditavam
verdad eiros cristãos; dotar també m n ós, os con-
relação a seus pró prios contemporâ neos, o que lhes é possível pen -
eles seriam
passo
tempo
a
r
mais
â neos
, e
do papa Le ã o, com uma gener osidade sem limite, das con - sar. A ênfase em Panofsky é distinta ( e paradoxalmente mais social ) .
ência nos foijou e que são tais Com efeito, para ele, os h á bitos mentais remetem a suas condições
cepções do universo e da vida que nossa ci , jamais habitou o espírito de
que nenhum de seus elementos, ou quase de inculcação, portanto, a estas “ forças formadoras de h á bitos” ( habit-
-
um homem da Renascen ça , podem-se contar
infelizmente os historia - forming forces ) - por exemplo, a instituição escolar em suas diferen-
diante de uma tal deforma-
dores - falo dos mais influentes, que recuam humana em sua evolução. E tes modalidades - pró prias a cada grupo. Ele pode então compre-
ção do passado, uma tal mutila ção da pessoa ender, na unidade de sua produ ção, as homologias de estrutura exis-
por n ã o se ter levant ado a questão acima, a questão da
isso , sem d ú vida ,
inteligibilidade. Na verdade, um homem do
século XVI deve ser intelig
13
-
í tentes entre diferentes “ produtos” intelectuais de determinado meio,
ção a seus contemporâ neos. e també m pensar as variações entre os grupos como diferen ças en-
vel não em relação a nós, mas em rela
tre sistemas de percepção e de apreciação, eles pró prios remetendo
empregada por Feb-
A noção de aparelhagem mental tal como a diferen ças nos modos de formação. E dessa concepção que se apro-
de diferen ças em relação
vre apresenta, todavia , um certo n ú mero xima Marc Bloch quando, no capí tulo de La Société féodale intitula-
çados na mesma é poca por
aos conceitos, no entanto próximos, avan do “ Maneiras de sentir e de pensar ” , hierarquiza n íveis de l í ngua e
aparelhagem ( ou a
Panofsky. Em primeiro lugar, a própria palavra universos culturais em fun ção das condições de formação intelec-
por Febvre ) , que
expressão “ aparelhos mentais” , às vezes empregada ó plia de instrumen-
tual.14 No entanto, aqui falta, como em Febvre, a an álise (central em
sugere a exist ê ncia quase objet ivada de uma pan Panofsky ) dos mecanismos através dos quais categorias de pensamen-
palav ras , s ímbol os , conce itos , etc.) à disposição do
tos intelectuais ( to fundamentais tornam-se, em um determinado grupo de agentes
sta com a mane ira como Panofsky define o h á-
pensamento , contra sociais, esquemas interiorizados e inconscientes, estruturando todos
de esqu emas incon scien tes , de princípios in-
bito ment al , conju nto os pensamentos ou ações particulares.
que d ã o sua unida de à s mane iras de pensar de uma
teriorizado s Apesar dessa limitação, de natureza teórica, fica bem claro q ue
qual for o objeto pensa do . Nos séculos XII e XIII , por a posição dos historiadores da primeira gera çã o dos Annales pesou
é poca seja
escla recim ento e de concilia ção dos
exem plo , sã o os princ í pios de muito na evolução da histó ria intelectual francesa. De fato, ela des-
contrá rios que constituem um modus opera
ndi escolástico, cujo cam- locou o pró prio questionamento: o que é importante compreen-
ção teológica . Dessa primei- der n ão é mais as aud á cias do pensamento , mas bem mais os limi-
po de aplicação n ão se limita à constru
e , a aparelhagem inte-
ra decalagem resulta uma segunda. Em Febvr tes do concebível . A uma hist ó ria intelectual das inteligê ncias sem
homens de uma é poca
lectual que os homens podem manipular os limites e das id é ias sem suporte, é oposta uma histó ria das repre-
um estoqu e dado de “ materiais de id éias” ( para re-
é pensada como senta ções coletivas , das aparelhagens e das categorias intelectuais
ã o ) . Cons eq ü entem ente , o que diferencia as men-
tomar sua expre ss dispon íveis e compartilhadas em uma é poca dada . Em Lucien
grupo s sociai s é , antes de mais nada , a utilização mais
talidades dos Febvre , é um tal projeto que funda o primado concedido ao estu-
s a que fazem dos “ instrumentos” dispon íveis: os mais do biográfico. Luther em 1928, Rabelais e Des Periers em 1942,
ou meno extens
empr egar ã o a quase totali dade das palavras ou dos concei- Marguerite de Navarre em 1944: casos onde determinar como, para
erudi tos

, Amour sacré, amour profan e. Autour de l’Heptaméron, 1944, reedição, Pa- Marc Bloch , La Société féodale, 1939, reediçã o, Paris, Albin Michel, col. L’ É volution de
13
Lucien Febvre l Humanité, 1968, p. l 15-128.

ris, Gallimard , col. Idées, 1971, p.10.

33
32

u r;- !
os homens do século XVI , se organizam a percepção e a represen - mentalidades é aquele do cotidiano e do autom á tico, é o que esca-
tação do mundo , como se definem os limites do que é então possí- pa aos sujeitos individuais da história porque revelador do conte ú-
vel pensar, como se constroem relações pró prias à é poca entre re- do impessoal de seu pensamento” ( as duas definições são de Jacques
ligiâo, ciê ncia e moral. Assim , o indivíduo é devolvido à sua é po- Le Goff ) . E assim constitu ído como objeto histó rico fundamental
ca , já que , seja ele qual for, n ão pode se subtrair às determina ções um objeto que é o contrá rio mesmo daquele da história intelectual
que regulam as maneiras de pensar e de agir de seus contemporâ- cl ássica: à id é ia, construçã o consciente de uma mente
neos. A biografia intelectual à Febvre é , portanto , na verdade , his- individuada,
opoe-se termo a termo a mentalidade sempre coletiva que regula,
tó ria social , visto que situa seus heróis como testemunhas e , ao sem que eles o saibam , as representações e julgamentos dos
mesmo tempo , como produtos das imposições que limitam a livre atores
sociais. A relação entre a consciência e o pensamento é, portanto,
inven ção individual. O caminho estava assim aberto ( uma vez aban- estabelecida de uma nova maneira, próxima daquela dos sociólogos
donado o gosto particular de Febvre pela biografia ) para uma his- da tradição durkheimiana, enfatizando os esquemas ou os conteú
tó ria dos sistemas de cren ças, de valores e de representações pró- dos de pensamento que, mesmo que sejam enunciados sobre o modo
-
prios a uma é poca ou grupo, designada na historiografia francesa individual , dependem , na verdade , dos condicionamentos incons-
pela expressã o , tanto mais globalizante quanto seu conte ú do no- cientes e interiorizados que fazem com que um grupo ou sociedade
cional permanece vago , de “ história das mentalidades” . E ela que compartilhe, sem que seja preciso explicitá-los, um sistema de repre-
devemos examinar agora. sentações e um sistema de valores.
Outro ponto de acordo: uma concepção muito ampla do cam
po recoberto pela noção de mentalidade que engloba, como escre
-
HISTÓRIA DAS MENTALIDADES/HISTÓRIA DAS IDÉ IAS
ve Robert Mandrou , “ o que é concebido e sentido , o campo da inte
-
ligência e do afetivo” . Por isso, a aten ção dedicada tanto às catego-
-
A partir dos anos 1960, a noção de mentalidade impõe-se na
historiografia francesa para qualificar uma histó ria que nã o estabe- rias psicológicas (e provavelmente ) quanto às categorias intelectuais,
lece como objeto nem as id é ias nem os fundamentos socioecon ô- portanto, mais uma decalagem entre uma histó ria das mentalidades
micos das sociedades. Mais exercida do que teorizada, essa histó ria identificada à psicologia histó rica e a história intelectual em sua de-
das mentalidades “ à francesa ” repousa sobre um certo n ú mero de fini ção tradicional. Muito presente em Febvre , leitor atento de
concepções mais ou menos comuns a seus prá ticos.15 Primeiramen- Charles Blondel ( Introduction à la psychologie historique, 1929 ) e de
te , a defini ção da palavra: “ a mentalidade de um indivíduo , mesmo Henri Wallon ( Principes de psychologie appliquée, 1930 ) , 16 e em seus su
cessores (o livro de Mandrou , Introduction à la France moderne, 1500
-
sendo um grande homem , é justamente o que ele tem de comum -
com outros homens de seu tempo” , ou ainda “ o n ível da histó ria das 1640, publicado em 1961, n ã o tem o subt ítulo Essai de psychologie his
torique} ) , essa identificação funda a pró pria obra de Ignace Meyer-
-
Ver Georges Duby, “ L’ histoire des mentalités” , in L’Histoire et ses méthodes, Paris, Galli- son , cuja importâ ncia foi central para a transformação do campo dos
mard , Bibliothèque de la Pléiade, 1961, p.937-966; Robert Mandrou , “ L’ histoire des
mentalit és” , in Encyclopedia Universalis, vol. VIII, 1968, p. 436-438; Georges Duby, “ His-
toire sociale et histoire des mentalités. Le Moyen Age” , 1970, in Aujourd'hui l’Histoire, Cf. seus três artigos: “ Mé thodes et solutions pratiques. Henri Wallon
Paris, Editions Sociales, 1974, p. 201-217; Jacques Le Goff , “ Les mentalités. Une histoire gie appliqu ée” , Annales d ’histoire économique et sociale, 1931 , “ Une
et la psycholo-
ambigu ë ” , in Faire de l’histoire, Paris, Gallimard , 1974, t. III , p.76-94 ; Philippe Ariès, toire et psychologie ” , Encyclopédie Française, 1938, e “ Comment
vue d’ensemble. His-
“ L’ histoire des mentalités” , e Roger Chartier, “ Outillage mental” , in La Nouvelle Histoire, reconstituer la vie affec-
tive d ’autrefois? Lit sensibilité et l ’ histoire ” , Annales d ’histoire
Paris , Retz, 1978, p.402-423 e p.448-452. Combats pour l ’histoire, op. cil . , p. 201-238.
sociale, 1941, retomado em

34
35

SOS
estudos gregos.17 Para al é m mesmo do projeto de reconstitui çã o dos tual , tornam-se assim , exatamente como os mitos ou os valores, uma
sentimentos e das sensibilidades pró prios aos homens de uma é po- destas “ forças coletivas através das quais os homens vivem seu tempo ” ,
ca ( que é , grosso modo, o projeto de Febvre ) , são as categorias psico- portanto, um dos componentes da “ psique coletiva ” de uma civiliza-
l ógicas essenciais , aquelas em ação na construção do tempo e do ção. Aqui , h á como que uma conclusão da tradição dos Annales, tan-
espaço, na produ ção do imagin á rio, na percepção coletiva das ati- to na caracterização fundamentalmente psicológica da mentalidade
vidades humanas, que são postas no centro da observação e apreen- coletiva quanto na redefinição do que deve ser a hist ó ria das id éias,
didas no que tê m de diferente de acordo com as é pocas hist ó ricas. ressituada em uma explora ção global do mental coletivo.
Por exemplo, a noção de pessoa tal como abordada por Jean-Pierre É claro, enfim , que como a histó ria das mentalidades ( conside-
Vernant, seguindo Meyerson : rada como uma parte da histó ria sociocultural ) tem por objeto o co-
letivo , o autom á tico, o repetitivo pode e deve fazer-se contável: “ A his-
Nã o h á , n ã o pode haver pessoa-modelo, exterior ao curso da histó ria tó ria da psicologia coletiva necessita de sé ries, senão exaustivas, pelo
humana , com suas vicissitudes, suas variedades conforme os lugares, suas menos o mais amplas poss ível ” . Vê-se, deste modo, o que ela deve à
20
transformações conforme o tempo. A investiga çã o n ão tem , pois, de es-
tabelecer se a pessoa , na Grécia , é ou n ão é , mas buscar o que é a pessoa hist ó ria das economias e das sociedades que , no horizonte da grande
grega antiga, em que ela difere, na multiplicidade de seus traços, da pes- crise dos anos 1930, depois naquele do imediato pós-guerra , consti-
soa de hoje.18 tuiu o setor “ pesado” ( pela quantidade de investigações e pelos êxi-
tos de alguns empreendimentos ) da pesquisa histó rica na Fran ça.
A partir de uma posi çã o intelectual semelhante , Alphonse Dupront Quando, nos anos 1960, a histó ria cultural emerge como o dom ínio
propunha em 1960, no Congresso Internacional das Ciê ncias His- mais freq üentado e mais inovador da histó ria, ela o faz retomando,
t ó ricas, em Estocolmo , constituir a histó ria da psicologia coletiva para transpô-las, as problem á ticas e as metodologias que garantiram
como disciplina particular no campo das ciê ncias humanas, e isso, o sucesso da história socioeconômica. O projeto é simples, claramen-
dando-lhe uma extensão m áxima já que recobrindo “ a histó ria dos te enunciado a posteriori por Pierre Chaunu:
valores, das mentalidades, das formas, das simbólicas, dos mitos” .
19

Na verdade, através de uma tal definição da psicologia coletiva , era O problema consiste em usar realmente o terceiro n ível [ ou seja , o afe-
uma reformulação total da histó ria das id éias que era sugerida. Um tivo e o mental ( R. C.) ] em benef ício das técnicas de uma estatística re-
gressiva , em benef ício, pois, da an á lise matem á tica das sé ries e da dupla
dos objetos maiores da histó ria da psicologia coletiva é, com efeito, interrogaçã o do documento, primeiramente em si, depois em rela ção à
constitu ído pelas idéias-forças e pelos conceitos essenciais que habi- sua posi çã o no seio da sé rie homogé nea na qual a informação de base
tam o “ mental coletivo ” (a expressão é de Dupront ) dos homens de está integrada e posta. Trata-se de uma adaptação tã o completa quanto
uma é poca. As idé ias, apreendidas através da circulação das palavras poss ível dos m é todos aperfeiçoados h á vá rios anos pelos1 historiadores
da economia , e depois por aqueles da quantidade social.
*

que as designam , situadas em seus enraizamentos sociais, pensadas em


sua carga afetiva e emocional tanto quanto em seu conte údo intelec-
Dessa primazia concedida à sé rie e , portanto , à coleta e ao tra-
tamento de dados homogé neos , repetidos e compar áveis a interva-
17
Ignace Meyerson , l^s Fonctions psychologiques et les oeuvres, Paris, Vrin , 1948, reedição,
Paris, Albin Michel , 1995.
iH
Jean-Pierre Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique, Paris, " Ibid ., p.8.
2

Maspero, 1965, p.13-14.


21
Pierre Chaunu , “ Un nouveau champ pour l ’ histoire sé rielle: le quantitatif au
,
troisi è me niveau ” , in M é langes en l'honneur de Fernand Braudel , Toulouse , Privâ t 1973
,
19
Alphonse Dupront , “ Probl è mes et m é thodes d ’ une histoire de la psychologie collec-
tive” , Annales E. S.C . , 1961, p.3-11. t. II, p.105 125.
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37
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los regulares, dependem vá rios corolá rios , e primeiramente o privi- mente varia ções culturais que em seguida se trata apenas de carac-
l égio dado a conjuntos documentais maciços, amplamente represen- terizar, é o traço mais n ítido dessa depend ê ncia da história cultural
tai ivos socialmente e que autorizam sobre um longo per íodo a cole- em rela ção à histó ria social que marca a historiografia francesa do
ta de dados m ú ltiplos. Da í, a releitura e a reutilização de fontes clas- pós-guerra ( pode-se aliás observar que essa depend ê ncia n ão existe
sicamente utilizadas em histó ria social ( por exemplo, os arquivos em Febvre ou Bloch , mais sensíveis seja às categorias compartilha-
notariais ) ; da í, també m , a inven ção de novas fontes pró prias a res- das por todos os homens de uma é poca, seja aos usos diferenciados
gatar os modos de pensar ou de sentir. Para alé m da similitude me- do equipamento intelectual dispon ível ) .
todológica , essa “ histó ria serial do terceiro n ível ” ( para retomar a Foi sobre esses fundamentos metodológicos , manifestos ou in-
expressão , que discutiremos posteriormente , de Pierre Chaunu ) conscientes, que a histó ria das mentalidades desenvolveu-se na his-
compartilha com aquela das economias e das sociedades uma du- toriografia francesa nos ú ltimos quinze anos. Ela respondia , com
pla problemá tica. A primeira é a das durações: como articular, com efeito, bem mais do que a histó ria intelectual , às novas tomadas de
efeito, o tempo longo de mentalidades que, no n ível do maior n ú- consci ê ncia dos historiadores franceses. Dentre estas, três antes de
mero, são pouco m óveis e pouco pl ásticas, com o tempo curto de tudo são mais importantes. Em primeiro lugar, a consciê ncia de um
bruscos abandonos ou de transferê ncias coletivas de cren ça e de sen- novo equil íbrio entre a hist ória e as ci ê ncias sociais. Contestada em
sibilidade? A questã o ( levantada , por exemplo, acerca da descristia- seu primado intelectual e institucional , a histó ria francesa reagiu
nizaçã o da Fran ça entre 1760 e 1800 ) reproduz a interroga çã o cen- anexando os terrenos e os questionamentos das disciplinas vizinhas
tral de La Méditerranée, como pensar a hierarquizaçã o, a articulação (antropologia , sociologia ) que questionavam sua dominação. A aten-
e a complexidade das diferentes durações ( tempo curto, conjuntu- ção deslocou-se então para os objetos ( os pensamentos e gestos co-
ra e longa duração ) dos fen ômenos histó ricos?22 letivos diante da vida e da morte , as cren ças e rituais, os modelos
A segunda heran ça problem á tica da histó ria cultural reside na educativos, etc. ) até então pró prios à investigação etnológica e para
maneira de conceber as relações entre os grupos sociais e os n íveis novas questões, amplamente estrangeiras à histó ria social , dedica-
culturais. Fi éis à obra de Ernest Labrousse e à “ escola ” francesa de da antes de tudo a hierarquizar os grupos constitutivos de uma socie-
histó ria social, os recortes feitos para classificar os fatos de mentali- dade. Tomada de consciê ncia , també m , de que as diferenciações
dade resultam sempre de uma an álise social que hierarquiza os n í- sociais n ão podem ser pensadas somente em termos de fortuna ou
veis de fortuna , distingue os tipos de rendas, classifica as profissões. de dignidade, mas que são ou produzidas, ou traduzidas por varia-
E , portanto, a partir dessa grade social e profissional , dada de ante- ções culturais. A distribuiçã o desigual das competê ncias culturais
m ão, que pode ser operada a reconstituição dos diferentes sistemas ( por exemplo , 1er e escrever ) , dos bens culturais ( os livros ou os
de pensamento e de comportamentos culturais. De onde , uma ade- quadros) , das prá ticas culturais ( das atitudes diante da vida à quelas
quação necessá ria entre as divisões intelectuais ou culturais e as fron- diante da morte ) tornou-se assim o objeto central de m ú ltiplas in-
teiras sociais, quer sejam aquelas que separam o povo e os notáveis, vestigações, conduzidas de acordo com m é todos quantitativos e vi-
os dominados e os dominadores ou aquelas que fragmentam a esca- sando, sem question á-la , a dar um conte ú do outro à hierarquização
la social. Essa primazia quase tirâ nica do social , que define previa- social . Enfim , uma outra tomada de consciê ncia coletiva reconhe-
ceu que , para abordar esses novos dom ínios, as metodologias clássi-
" Fernand Braudel , La M éditerranée et le monde méditerranéen à l'époque de Philippe II , 2. ed ., cas n ã o bastavam : eis a razão, como já vimos, do recurso à an álise
Paris, Armand Colin , 1966, 1.1, p. 16-17, e “ Histoire et sciences sociales. La longue du- serial onde as disposi ções testamentá rias, os motivos iconográficos
rée” , 1959, in Ecrits sur 1'Histoire, Paris, Flammarion , 1969, p.41-83.

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e os conte ú dos impressos substitu íram os preços do trigo; razão tam- Febvre e , simultaneamente, do habitus em Panofsky ( e Bourdieu ) . O
bé m do trabalho sobre a ou as linguagens, da lexicometria à sem â n- i Dieu Caché dava uma aplicação, discutível mas exemplar, dessas pro-
tica histórica, da descrição dos campos sem â nticos à análise dos enun- postas, construindo os Pensées de Pascal e nove tragédias de Racine ,
ciados.23 Por transpor procedimentos e problemas que eram os da de Andromaque até Athalie, como o corpus expressando com a maior
história socioecon ô mica , ao mesmo tempo que operava um deslo- coerência “ uma visã o trágica do mundo ” , identificada aojansenismo,
camento do questionamento histó rico , a histó ria das mentalidades e relacionando essa consciê ncia coletiva a um grupo particular, o dos
( parte ou totalidade da histó ria sociocultural ) pôde ocupar a dian- oficiais de toga privados de seu poder, portanto, de seu poder social ,
teira do palco intelectual e parecer ( como sugeria implicitamente pela construção do Estado absolutista.
Alphonse Ducront ) reformular - e, portanto , desqualificar - a ma- Seja qual for a validade histórica dessa an álise , ela trazia uma
neira antiga de fazer a histó ria das ideias. id éia essencial , totalmente oposta a um dos postulados da histó ria
Mas essa reformulação també m foi feita no interior do campo das mentalidades, ou seja , que são os “ grandes” escritores e filóso-
da histó ria intelectual e chegou a posições totalmente contraditórias fos que exprimem com mais coerê ncia , através de suas obras essen-
com aquelas dos historiadores das mentalidades. Aqui, a obra funda- ciais, a consciê ncia do grupo social ao qual pertencem; são elas que
mental , aliás, bem acolhida pelos Annales, é a de Lucien Goldmann .24 atingem “ o m áximo de consciê ncia poss ível do grupo social que ex-
No ponto de partida , seu projeto subentende uma mesma distâ ncia pressam ” . De onde a primazia concedida aos textos maiores ( defi-
em relação às modalidades tradicionais, biográfica e positivista , da nidos , de maneira nova , por sua adequa ção a uma visã o do mundo )
histó ria das id éias. Como em Febvre, como na história das mentalida- e seu corolá rio: a desconfian ça , sen ã o a rejeiçã o, das abordagens
des, trata-se antes de tudo de construir a articulação entre os pensa- quantitativas no campo da histó ria cultural . Bem antes das reservas
mentos e o social . Extraído de Lukács, o conceito de “ visão do mun- atuais, baseadas em uma concepção antropológica da cultura , foi na
do” é o instrumento que autoriza essa apreensão. Definido como “ o tradi ção da histó ria intelectual à Goldmann que surgiram os primei-
conjunto de aspirações, de sentimentos e de id éias que reú ne os mem- ros alertas contra as ilusões da quantificaçã o. “ Uma histó ria sociol ó-
bros de um mesmo grupo ( na maioria das vezes, de uma classe social ) gica da literatura deve privilegiar o estudo dos grandes textos” , es-
e os opõe aos outros grupos” ,25 ele permite uma tripla operação: atri- creveu Jean Ehrard, 2h o que queria dizer, por um lado, que é na sin-
buir uma significação e uma posição sociais definidas aos textos lite- gularidade desses textos que se mostram mais claramente , mais com-
rá rios e filosóficos, compreender os parentescos que existem entre mí ; pletamente , as id é ias compartilhadas; por outro , que as contagens
obras de forma e de natureza opostas, discriminar no interior de uma &- .
, . ,1 das palavras, dos títulos, dos motivos, dos temas são, no sentido pró-
obra individual os textos “ essenciais” ( o adjetivo é de Goldmann ) , cons- prio, “ insignificantes ” , isto é, incapazes de restituir as significações
titu ídos como um todo coerente, ao qual cada obra singular deve ser complexas, conflituais e contraditó rias, dos pensamentos coletivos.
relacionada. Em Goldmann , o conceito de visão do mundo tem , pois, A coleta contável do superficial , do banal , do rotineiro n ã o é repre-
o encargo das fun ções que são aquelas da aparelhagem mental em sentativa, e a consciê ncia coletiva do grupo ( que é “ inconsci ê ncia ”
coletiva para a maioria ) se d á a 1er unicamente no trabalho , imagi-
nativo ou conceituai , dos poucos autores que a elevam a seu mais
T
' Cf. R. Robin , Histoire et Linguistique, Paris, Armand Colin , 1973. alto grau de coerê ncia e de transparê ncia .
Lucien Goldmann , Le Dieu caché. Etude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et
dans le théâtre de Racine, Paris, Gallimard , 1955, e o artigo de Robert Manch ou , "Tragi-
que au XVII' siècle. A propos de travaux récents ” , AnnalesE.S.C., 1957, p.305-313.
*
’ Lucien Goldmann , op. cit ., p.26.
*
-"Jean Eluard , op. cit. , p.79.

40 41

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'- '
O debate que se trava aqui tange à definição mesma da histó- dirigida contra os empreendimentos de sociologia cultural , n ão co-
ria intelectual, portanto, à constituição de seu objeto pró prio. Em i * loca em questão a perspectiva de Goldmann , mas situa-se na verda-
l í )( >0, Dupront pleiteia assim contra a histó ria das id é ias: de em sua heran ça . Com efeito, a noção de visão do mundo permi-
te articular, sem reduzi-las uma à outra , de um lado , a significação
A histó ria das id éias, de resto mal distinta e capaz de receber, mais ou de um sistema ideol ógico, descrito em si mesmo, de outro , as con -
menos como um depósito generoso, tudo aquilo de que a histó ria tradi- dições sociopol íticas, que fazem com que um grupo ou uma classe
cional se ocupava tã o pouco , pende demais para a intelectualidade pura ,
a vida abstrata da id é ia , isolada freq ü entemente al é m da medida dos determinados, em um dado momento histó rico, compartilhe , mais
meios sociais onde ela se enra íza e que diversamente a exprimem [ ... ] . ou menos, conscientemente ou n ã o , esse sistema ideol ógico. Esta-
O que importa , tanto quanto a id é ia e talvez mais, é a encarna ção da id éia, mos, portanto, longe das caracter ísticas sum á rias que esmagam o
suas significações, o uso que se faz dela.2 ' ideológico sobre o social e levam , por exemplo, a designar as Luzes
é

como uniformemente burguesas, sob o pretexto de que a maioria


De onde a proposta de uma histó ria social das id éias, tendo por ob- dos fil ósofos ou seus leitores o são. Diante das id é ias, ou melhor, dian-
jeto seu enraizamento e circula çã o. Em um texto dez anos depois, te dos conceitos de que se servem os homens de uma é poca lhes dan-
Franco Venturi recusa a pertin ê ncia de um tal projeto que, para ele, do um conte ú do pró prio a essa é poca , a tarefa do historiador das
carece do essencial: id éias é, pois, “ substituir a busca de uma determinação pela de uma
II rischio delia storia sociale delVllluminismo, quale la vediamo oggi soprattuto in função” , fun ção que n ão pode aliás ser apreendida sen ão pela consi-
Francia, è di studiare le idee quando son diventate orrnai strutture mentali, senza deração global do sistema ideológico da é poca considerada.30
cogliere mai il momento creativo e altivo, di esaminare lutto la struttura geologica Mais recentemente , a cr í tica dirigida à histó ria social das
dei passato, salvo precisamen te Vkumus sulla quale crescono le piante e i fruttP id é ias visou um outro alvo e denunciou uma outra forma de reducio-
[ O risco da hist ó ria social das Luzes, tal como a vemos sobretudo hoje
nismo , ou seja , n ão mais a redu ção de uma id é ia ou de uma ideolo-
em dia na Fran ça , é estudar as id éias quando elas se tornaram estruturas
mentais, sem apreender o momento criativo e ativo , examinar toda a es- gia às suas condições de produ ção ou de recepção, mas a assimila-
trutura geológica do passado, salvo precisamente o h ú mus sobre o qual çã o, que é uma reificação, dos conte ú dos de pensamento a objetos
crescem as plantas e os frutos] . culturais. A “ histó ria serial do terceiro n ível ” carrega em seu pró prio
projeto uma tal redução, já que seu empreendimento contável su-
Id éias contra estruturas mentais: a oposição indica bem o lugar das põe ou que os fatos culturais e intelectuais analisados sejam de saí-
divergê ncias e a recusa do reducionismo suposto da história social da conjuntos de objetos ( por exemplo, livros cujos t ítulos podem ser
( portanto quantitativa ) da produ ção intelectual. Ali ás , esse reducio- tratados estatisticamente, ou imagens cujos motivos podem ser in-
nismo tem uma dupla face. A primeira é sociológica, reduzindo a ventariados ) , ou então que os pensamentos coletivos, tomados em
significação das idéias à sua qualificação social , quer seja dada pela suas expressões mais repetitivas e menos pessoais, sejam “ objetiva-
posiçã o dos indivíduos ou dos meios que as produzem , quer o seja dos” , isto é, reduzidos a um conjunto reduzido de fó rmulas das quais
pelo campo social de sua recepção.21' Deve-se notar que essa cr í tica , se trata apenas de estudar a freq üê ncia diferencial no interior dos
diferentes grupos de uma população. A tentação sociológica consiste,
27
Alphonse Dupront, op. cit . portanto, em considerar as palavras, as id éias, os pensamentos, as
2H
Franco Venturi, Utopia e informa nelVIlluminismo, Turim , Einaudi, 1970, p.24.
2;
'Jean Ehrard , “ Histoire des id ées et histoire sociale en France au XVIIIe siècle: réflexions
de mé thode” , in Niveaux de culture et groupes sociaux, Anais do colóquio reunido de 7 a 9 de
maio de 1966 na Ecole normale supérieure, Paris / La Haye, Mouton , 1967, p.171-178.
m Ibid . , p. l 75 e a intervenção dejacques Proust, p. 181 183.
-

42 43
representações como meros objetos que se deve contar a fim de res- batizar de diversas maneiras ( histó ria sociocultural , histó ria das
lituir sua distribuiçã o desigual. O que equivale a eliminar o sujeito mentalidades, histó ria da psicologia coletiva , histó ria social das
( individual ou coletivo ) da an álise e , ao mesmo tempo, denegar toda ideias, etc.) . Pode-se ver hoje em dia que , neste caso , tratava-se de
importâ ncia à relação ( pessoal ou social ) que mantêm os atores so- acreditar que no dom ínio da histó ria intelectual nada mudara des-
ciais com os objetos culturais ou os conte ú dos de pensamento. Ora , de os anos 1930. Ora , o desconhecimento era duplo. Desconhecimen-
todo uso ou toda apropria ção de um produto ou de uma id éia é um to , primeiro, do modelo proposto a qualquer m é todo de histó ria in -
“ trabalho” intelectual que faz falta certamente ao estudo apenas dis- telectual pela epistemologia, a de Bachelard , de Koyré ou Canguilhem.
tribucional: Nel caso delia storia quantitativa delle idee, soltanto la consa- E sintom á tico encontrar nos Annales apenas um artigo consagrado a
jtcvollezza della variability, storica e sociale, della figura del lettore, potrà porre Bachelard (duas páginas de Lucien Febvre, em 1939, sobre Psychanalyse
davvero le premesse di una storia delle idee anche qualitativamente diver- du feu ) e nenhum sobre as obras de Canguilhem ou Koyré ( o ú nico
sa 11 [ No caso da histó ria quantitativa das id é ias, somente a clara cons- artigo publicado por Koyré na revista o será somente em 1960 ) . Essa
ci ê ncia do cará ter histórica e socialmente variável da figura do lei- extraordin á ria cegueira tem muitas conseqii ê ncias: ela privou os
tor poderá estabelecer as verdadeiras premissas de uma hist ó ria das historiadores franceses de todo um conjunto de conceitos que os
idéias que seja diferente mesmo no plano qualitativo] . Por exemplo, teria alertado contra as certezas demasiado grosseiras advindas da
e para seguir Carlo Ginzburg em seu terreno , o que os leitores fa- investigação estat ística e que lhes teria permitido substituir a descri-
zem de suas leituras é uma questão decisiva diante da qual tanto as ção n ão articulada das produ ções culturais ou dos conte ú dos de
an álises tem á ticas da produção impressa quanto aquelas da difusão pensamento de uma é poca ( aquela estabelecida pelo estudo quan-
social das diferentes categorias de obras permanecem impotentes. titativo ) pela compreensão das rela ções que existem , em um dado
Assim como as modalidades das prá ticas, dos gostos e das opiniões momento, entre os diferentes campos intelectuais. Através disso, teria
sã o mais distintivas que estes,32 os modos como um indivíduo ou um sido conceb ível o que falta ao inventá rio contá vel: primeiramente ,
grupo apropria-se de um motivo intelectual ou de uma forma cul- os laços de depend ê ncia rec íproca que unem as representa ções do
tural sã o mais importantes do que a distribui çã o estatística desse mundo, as tecnologias e o estado de desenvolvimento dos diferen-
motivo ou dessa forma. tes saberes; a seguir, através de uma noção como a de obstáculo epis-
Seguros de sua metodologia quantitativa , reunidos em uma temológico ( que encontra de outra maneira o que h á de mais agu-
defini ção da histó ria das mentalidades menos vaga do que se disse,33 do na de aparelhagem mental ) , a articula ção entre as representa-
os historiadores franceses ficaram por muito tempo surdos a essas ções comuns ( estoque de sensações, de imagens , de teorias ) e os
interpelações. Implicitamente , sua representação do campo da his- progressos dos conhecimentos designados como científicos.34 A es-
t ó ria intelectual constitu ía essas cr íticas como sendo combates de cuta da epistemologia hist ó rica poderia ter permitido igualmente
retaguarda de uma tradição esgotada e postulava, a termo, a absor- colocar diferentemente o problema com o qual se choca toda his-
ção da histó ria das id é ias em um recorte mais vasto , que se podia tó ria das mentalidades, ou seja , as razões e as modalidades da passa-
gem de um sistema a outro. Ainda aqui , a constataçã o das mutações
11
Carlo Ginzburg , Ilfonnaggio et i vermi . Il cosmo di un mugnaio del '500, Turim , Einaudi , através da enumeração dos objetos ou dos motivos permanece im-
1976 , p . XXI -XXII ( trad . fr. Le fromage et les Vers . L'univers d ’un meunier- du XVI siècle, 2 . potente para apreender os processos de transforma çã o que nao
cd„Paris, Aubier, 1993, p. 18 ) .
Pierre Bourdieu , La Distinction. Critique sociale du jugement , Paris, Editions de Minuit,
31
1979 , p . 70-87 . Gaston Bachelard , La Formation de l'esprit scientifique. Contribution à une psychanalyse de
:,:l
Por exemplo , Robert Darnton , op. cil . la connaissance objective, Paris , Vrin , 1939.

44 45
podem ser compreendidos a n ão ser pensando, à maneira de Koyré, du ção determinista , as relações entre sistemas de cren ças, de valo-
a depend ê ncia ea autonomia dos diferentes campos do saber. A pas- res e de representações de um lado, e perten ças sociais de outro. Os
sagem de um sistema de representaçõ es a outro pode entã o ser vis- procedimentos de an á lise, no á pice , pró prios à histó ria dos pensa-
ta ao mesmo tempo como uma ruptura radical ( nos saberes, mas mentos são assim mobilizados sobre um outro terreno, para apre-
també m nas pró prias estruturas do pensamento ) e como um pro- ender como um grupo ou um homem “ comum ” apropria-se à sua
cesso feito de hesitações, de retrocessos, de bloqueios.
35 maneira, que pode ser deformadora , das id éias ou das cren ças de
A esse desconhecimento da epistemologia , que os privou dos seu tempo. Longe de estar esgotada , a história intelectual ( entendi-
instrumentos intelectuais capazes de articular o que a histó ria social da como a an á lise do “ trabalho ” , cada vez específico , feito sobre um
das id éias lhes permitia apenas constatar, os historiadores acrescen- material ideológico dado ) anexa assim o terreno dos pensamentos
taram por muito tempo um outro: aquele da maneira nova de pen- populares, que parecia por excelê ncia o dom ínio reservado da his-
sar as rela ções entre as obras ( no sentido mais amplo ) e a socieda- tó ria quantificada . Entre histó ria das mentalidades e histó ria das
de, tal como a formulavam , sendo fi é is mas també m se distancian- id é ias, as rela ções devem ser concebidas de uma maneira infinita-
do de Lucien Goldmann , historiadores da literatura e das id é ias. A mente mais complexa do que aquela comum aos historiadores fran-
problem á tica comum à histó ria era a í deslocada de uma dupla ma- ceses dos anos 1960.
neira: de um lado , dando uma acepção da representatividade que
n ão era fundada sobre a quantidade; de outro, desarticulando os
RECORTES EM QUESTÃ O
sistemas ideol ógicos da sociedade cujos conflitos supostamente re-
fletiam ou prolongavam ou traduziam - o que, contudo, n ão signi- Al é m dos m é todos de an álise ou das defini ções disciplinares,
fica afirmar sua absoluta independ ê ncia face ao social , mas estabe- as questões fundamentais dos debates de hoje concernem aos recor-
lecer essa relação em termos de homologias estruturais ou de cor- tes essenciais que até então eram admitidos por todos. Essas distin -
respond ê ncias globais. Hoje em dia, os historiadores das mentalida- ções primordiais, expressas mais geralmente através dos pares de
des resgatam a validade desses questionamentos, outrora negligen- oposi ções ( erudito / popular, criação / consumo, realidade / ficção ,
ciados, sem d úvida porque , renunciando ao projeto de uma histó- etc. ) , eram como que a base comum e n ão problem á tica sobre a qual
ria total, levantam agora o problema das articulações entre escolhas se podiam apoiar maneiras de tratar os objetos da histó ria intelec-
intelectuais e posição social em escala de segmentos sociais bem tual ou cultural , as quais divergiam . Ora , de alguns anos para cá , são
delimitados, até mesmo naquela do indivíduo. * Nessa escala redu-
3 1

esses pró prios recortes que se tornaram objeto de questionamentos,


zida , e sem duvida somente nela , podem-se compreender, sem re- convergentes , sen ão id ê nticos. Pouco a pouco, os historiadores to-
maram de fato consci ê ncia de que as categorias que estruturavam o
Alexandre Koyré, From the Closed World to lhe Infinite Universe, Baltimore, I he Johns
3r> campo de sua an á lise ( com tal evid ê ncia que freq ú entemente n ão
Hopkins University Press, 1957 ( trad . fr. Du monde clos à l’univers infini , Paris, P. U . F, era percebida ) també m eram , exatamente como aquelas cuja histó-
1962, p.1-6 ) . ria faziam , o produto de divisões m óveis e temporá rias. Por essa ra-
A título de exemplos, ver o livro já citado na nota 31, de Carlo Ginzburg, consagrado
à cosmologia de um moleiro de do Friiili, Domenico Scanuella, dito Menocchio , e os zã o, a aten ção deslocou-se agora ( neste texto , mas sem d ú vida tam-
ensaios de Natalie Zemon Davis , que levantam , a partir de alguns “ case studies , o pro- bé m no seio da disciplina histó rica ) para uma reavalia ção cr í tica das
"

blema das relações entre escolha religiosa e perten ça social , reunidos em Society and distin ções consideradas evidentes e que são, na verdade , o que deve
Culture in Early Modem France, Stanford University Press, 1975 ( trad. fr. IJ>S Cultures du
peuple. Rituels , savoirs et résistances au XVI siècle, Paris, Aubier-Montaigne , 1979 ) . ser questionado.

47
46
Primeira divisão tradicional: aquela que opõe erudito e popu- tuai ” ou “ cultural ” ) tem diante de si um corpus bem recortado do
lar, high culture e popular culture. Estabelecida como evidente , essa qual deve inventariar os motivos.
divisão encerra em si mesma toda uma sé rie de corol á rios metodo- Ora , é justamente esse recorte que causa problema. Por um
l ógicos cujo princ í pio John Higham estabelecia em 1954: The lado, a atribuição social das prá ticas culturais até entã o designadas
internal analysis of the humanist applies chiefly to the intellectual elite, it como populares é agora pensada de maneira mais complexa. A reli-
has not reached very far into the broad field, of popular thought. The blunter, gião “ popular” seria a dos camponeses, do conjunto dos dominados
external approach of the social scientist leads us closer to collective loyalties ( em oposição às elites ) , da totalidade dos leigos ( em oposição aos
and aspirations of the bulk of humanity' [ A an á lise internalista do es-
1
clé rigos ) ? A literatura “ popular ” alimenta as leituras ( ou a escuta )
pecialista das humanidades aplica-se principalmente à elite intelec- da sociedade camponesa , ou de um p ú blico mediano situado entre
tual , n ã o tendo penetrado muito no vasto campo do pensamento o povo analfabeto e a magra minoria dos letrados, ou então consti-
popular. A abordagem dogm á tica e externalista do especialista de tui uma leitura compartilhada por toda uma sociedade , que cada
ci ê ncias sociais é mais próxima das lealdades coletivas e das aspira- grupo decifra à sua maneira , da mera determinação dos signos à lei-
ções da maior parte da humanidade ]. tura corrente? Questões dif íceis, mas que em todo caso indicam que
Encontra-se em in ú meros textos, na Fran ça e nos Estados Uni- não é simples identificar um n ível cultural ou intelectual , que per-
dos, essa mesma oposi ção entre, de um lado, a cultura da maioria, que tenceria ao popular, a partir de um conjunto de objetos ou de prá ti-
diria respeito a uma abordagem externa , coletiva e quantitativa e, de cas. Por outro lado, todas as formas culturais onde os historiadores
outro, a intelectualidade dos pensamentos no á pice, suscet ível ape- reconheciam a cultura do povo revelam-se , atualmente , sempre
nas de uma an á lise interna , individualizando a irredutível originali- como conjuntos mistos que re ú nem , em uma imbricação dif ícil de
dade das idéias. Claramente ou n ão, foi sobre essa distin ção que se desatar, elementos de origens muito diversas. O repertó rio da Biblio-
basearam os historiadores desejosos de explorar o vasto território da thèque bleue foi produzido por profissionais da escrita , mas os proce-
cultura popular, objeto não ú nico, mas em todo caso privilegiado da dimentos de reescritura que submetem os textos eruditos a adapta-
histó ria das mentalidades na Fran ça e de uma história cultural ampla- ções e revisões visam a torn á-los “ populares” . E por meio da compra ,
mente inspirada pela antropologia nos Estados Unidos. mais ou menos maciça , os leitores revelam suas preferê ncias; assim ,
Vejamos o exemplo francês. A cultura popular ( que poderia seus gostos estão em posiçã o de mudar o rumo da pró pria publica-
ser designada també m como o que é considerado como popular ção dos textos. Em um movimento inverso, a cultura folclórica , que
no campo da histó ria intelectual ) foi duplamente identificada na d á sua base à religião da maioria , foi profundamente “ trabalhada ”
Fran ça: a um conjunto de textos - aquele dos livretos vendidos de em cada é poca pelas normas ou pelos interditos da instituição ecle-
porta em porta e conhecidos sob o nome gen é rico de “ Biblioth è- siástica. Saber se deve ser chamado de popular o que é criado pelo
que bleue ” [ Biblioteca azul ] ; a um conjunto de cren ças e de ges- povo ou então o que lhe é destinado é, pois, um falso problema.
tos considerados como sendo constitutivos de uma religião popu- Importa, antes de tudo, a identifica ção da maneira como, nas prá ti-
lar. Em ambos os casos, o popular é definido por sua diferen ç a de cas, nas representações ou nas produ ções, cruzam-se e imbricam-se
algo que n ã o é ele ( a literatura erudita e letrada , o catolicismo diferentes figuras culturais.
normativo da Igreja ) ; em ambos os casos, o historiador ( “ intelec- Essas constatações só afastam aparentemente da história cultu-
ral, e por duas razões. Primeiramente , é claro que a pró pria cultura
37
John Higham , Intellectual History and its Neighbours” , TheJournal of the History of
“ de elite é constitu ída, em grande parte, por um trabalho operado so-
Ideas, vol . XV, n . 3, 1954 , p . 346 .

48 49
bre materiais que n ão lhe são pró prios. E um mesmo jogo sutil de
quando os documentos o autorizam , é plenamente l ícito examinar,
apropriaçã o, de reempregos, de desvios que funda, por exemplo, as minuciosamente , como um homem do povo pode pensar e utilizar
relações entre Rabelais e a “ cultura popular do lugar” 88 ou entre os os elementos intelectuais esparsos que, através de seus livros e da lei-
irm ãos Perrault e a literatura oral.39 A relação assim instaurada entre tura que faz deles, lhe vêm da cultura letrada. Bakhtin é aqui inverti-
a cultura de elite e o que ela n ão é concerne tanto às formas quanto do, já que é a partir de fragmentos tomados da cultura erudita e li-
aos conte ú dos, tanto aos códigos de expressão quanto aos sistemas de vresca que se constrói um sistema de representações que lhes d á um
representa ções , portanto, à totalidade do campo reconhecido à his- outro sentido porque, em seu fundamento, h á uma outra cultura:
tó ria intelectual . Esses cruzamentos não devem ser entendidos como Dietro i libri rimuginati da Menocchio avenamo individuato un codice di lei-
rela ções de exterioridade entre dois conjuntos dados de antem ão e tura; dietro questo codice, uno strato solido di cultura oral# 1 [ Descobrimos,
justapostos ( um erudito, outro popular ) , mas como produtores de por trás dos livros ruminados por Menocchio, um código de leitura;
“ aliagens” culturais ou intelectuais, cujos elementos estão tão solida-
por trás desse código, uma camada sólida de cultura oral ] . Não se
mente incorporados uns aos outros quanto nas aliagens metálicas. Se
pode, portanto, colocar como necessá rio o vínculo estabelecido, por
seguirmos Bakhtin , para certas é pocas ( como a Renascen ça ) , até mes- exemplo por Felix Gilbert, entre a ampliação social do campo de pes-
mo em obras da cultura letrada ou erudita a cultura popular se mani-
quisas da história intelectual e o apelo aos procedimentos estatísticos.42
festaria com o má ximo de coerê ncia e revelaria da forma mais com- Com efeito, se sob certas condições, a abordagem quantitativa ( inter-
pleta possível seu pró prio princípio. Para ele, a obra de Rabelais é “ in- na e externa ) dos textos mais elaborados pode ser aceita como legíti-
substitu ível quando se trata de penetrar a essê ncia mais profunda da ma, inversamente, quando o arquivo o permite, o trabalho intelectual
cultura cómica popular. No mundo que ele criou , a unidade interna do mais an ó nimo dos leitores pode requerer os m é todos de an álise
de todos seus elementos heterogé neos revela-se com uma excepcio- normalmente reservados aos “ maiores” pensadores.
nal clareza , tanto é verdade que sua ohra constitui toda uma enciclo-
pédia da cultura popular” .40 “ Enciclopédia” : isto significa que, alé m O questionamento do par erudito/ popular leva a uma segunda
da utilização de palavras, de imagens ou de formas da “ cultura cómi- interrogação, que tem por objeto uma outra destas distinções conside-
ca popular” , todo o texto funciona sobre uma concepção da vida e radas como fundamentais pelos historiadores, quer sejam historiado-
do mundo que é aquela mesma da cultura carnavalesca , estabelecida res das idéias ou das mentalidades: a oposição entre criação e consu-
como o “ seio materno” de toda expressão popular. mo, entre produ ção e recepção. Também aqui, dessa distin ção primor-
Por outro lado, tornar problem á tica a divisão popular / erudito dial decorre toda uma série de corolá rios impl ícitos. Em primeiro lu-
é , ao mesmo tempo, anular as diferen ças metodológicas postuladas gar, ela funda uma representação do consumo cultural que se opõe ter-
como necessá rias para o tratamento contrastado de um e de outro mo a termo àquela da criação intelectual: passividade contra inven ção,
dom ínio. O “ popular” n ão é por natureza destinado à análise quanti- depend ê ncia contra liberdade, alienação contra consciê ncia. A inteli-
tativa e externa dos social scientists e, como mostra Carlo Ginzburg, gê ncia do “ consumidor” ( retomando uma metáfora da antiga pedago-
gia ) é como uma cera mole onde se inscreveriam com toda legibilida-
w Cf . Mikha ï l
Bakthine , L'Oeuvre de François Rabelais el la culture populaire au Moyen Age et de as id éias e as imagens forjadas pelos criadores intelectuais. Disso,
sous la Rennaissance, trad . fr. Paris, Gallimard , 1970. outro corol á rio, uma necessá ria divisão disciplinar entre o estudo da
** Marc Soriano, Ixs Contes de Perrault . Culture savante et traditions populaires. Paris, Galli-
mard , 1968.
40
Mikha ï l Bakthine, op. cit . , p.67.
41
Carlo Ginzburg, op. cil ., p.80.
42
Felix Gilbert, op. cit ., p.92.

50
51
manente , da obra. Através disso, pode ser restitu ído um justo lugar
difusão intelectual , que diria respeito a uma sociologia cultural retros-
ao criador, cuja inten ção ( clara ou inconsciente ) n ã o conté m mais
pectiva, e aquele da produção intelectual, que seria o apan ágio de uma
toda a compreensão possível de sua criação, mas cuja relação com a
abordagem estética das formas ou de uma compreensão filosófica das
obra n ão é , no entanto, eliminada.
id éias. Essa radical separação entre produção e consumo leva, pois, a
Definido como uma “ outra produção” , o consumo cultural, por
postular que as idéias ou as formas têm um sentido intrínseco, totalmen-
te independente de sua apropriação por um sujeito ou por um grupo
exemplo, a leitura de um texto, pode assim escapar à passividade que
íciamente, o historiador reintroduz tradicionalmente lhe é atribuída. Ler, olhar ou escutar são, de fato,
de sujeitos. Através disto, sub-rept
- atitudes intelectuais que , longe de submeter o consumidor à onipo-
na maioria das vezes seu próprio “ consumo” e o erige, sem ter bem cons
tê ncia da mensagem ideol ógica e / ou esté tica que supostamente o
ciê ncia disso, em categoria universal de interpretação. Fazer como se
modela , autorizam na verdade reapropriação, desvio, desconfiança
os textos ( ou as imagens ) tivessem significações dadas por si mesmas,
ou resistê ncia. Essa constatação leva a repensar totalmente a relação
independentemente das leituras que os constroem , leva na verdade,
entre um pú blico designado como popular e os produtos historica-
quer se queira ou não, a relacioná-los ao campo intelectual (e senso-
mente diversos ( livros e imagens, serm ões e discursos, can ções, ro-
rial ) do historiador que os analisa, portanto, a decifrá-los através de ca-
mances-fotográficos ou programas de televisã o ) propostos para seu
tegorias de pensamento cuja historicidade não é percebida e que se dão
consumo. A “ aten ção obl íqua” que, para Richard Hoggart, caracte-
implicitamente por permanentes.
riza a decifração popular contemporâ nea desses materiais,44 é uma
Restituir essa historicidade exige que o “ consumo” cultural ou
das chaves que autorizam a elucidar como a cultura da maioria pode ,
intelectual seja ele mesmo tomado como uma produção, que certa-
em qualquer é poca , graças a um distanciamento, encontrar um es-
mente n ão fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que
pa ço ou instaurar uma coerê ncia pró pria nos modelos que lhe são
nunca são idê nticas àquelas que o produtor, o autor ou o artista in-
vestiram em sua obra. É por essa razão que se deve, sem d úvida, dar
impostos, contra sua vontade ou n ão, pelos grupos ou poderes do-
minantes. Tal perspectiva leva a dar um contrapeso àquela que en-
um alcance geral à definição que dá Michel de Certeau do consumo
fatiza os dispositivos, discursivos ou institucionais , que em uma so-
cultural de massa que carateriza atualmente as sociedades ocidentais:
ciedade visam a enquadrar o tempo e os lugares, a disciplinar os
A uma produ ção racionalizada, expansionista , do mesmo modo que cen- corpos e as prá ticas, a modelar, pela ordenação regrada dos espaços,
tralizada, ruidosa e espetacular, corresponde uma outra produ ção quali- as condutas e os pensamentos. Essas tecnologias da vigil â ncia e da
ficada de “ consumo” . Ela é astuciosa, dispersa , mas insinua-se por toda %
inculcação devem sempre compor com as tá ticas de consumo e de
parte, silenciosa e quase invisível, já que não se distingue com produtos
í
uso daqueles que elas tê m por fun ção modelar. Longe de terem a
próprios, mas em maneiras de empregar os produtos impostos por uma or-
dem econ ómica dominante.43 absoluta eficácia aculturante que lhes é atribu ída com demasiada
freq úê ncia, esses dispositivos de toda ordem ( dos quais fazem parte
Anular o recorte entre produzir e consumir é , primeiramente, afir- grande n ú mero dos materiais que são habitualmente objeto da his-
mar que a obra só adquire sentido através das estratégias de inter- tó ria cultural ) deixam necessariamente um lugar, no momento em
pretação que constroem suas significações. A do autor é uma den- que são recebidos, à variação, ao desvio, à reinterpretação.
tre outras, que n ã o encerra em si a “ verdade ” , suposta ú nica e per-
44
Richard Hoggart, The Uses of Literacy, 1957 ( trad . fr. La Culture du pauvre. Etude sur le
style de vie des classes populaires en Angleterre, Paris, Editions de Minuit, 1970, p.263-298, e a
43
Michel de Certeau , L’invention du quotidien, 1.1, Arts dé faire, Paris, U.G.E., col. 10 / 18, apresentação de Jean-Claude Passeron , p. 20-24 ) .
1980, p. ll .

53
52
Essas observações, que questionam todo um conjunto de postula- ra fechados na medida em que a mudan ça de motivos no interior de
dos implícitos na história sociocultural francesa de hoje ( presentes, em um gê nero dado ( por exemplo, os livretos de boas maneiras ou as pre-
particular, na interpretação da Reforma católica , cujos efeitos suposta- parações para a morte ) situa-se no cruzamento de uma intenção - a dos
mente destru íram uma antiga cultura folcló rica ) , distanciam-nos da produtores de textos - e de uma leitura - a de seu pú blico. Sem reduzi-
história intelectual, mesmo estritamente definida? Parece que n ão, na la a uma história da difusão social das idéias, a história intelectual deve
medida em que elas incitam a situar todo texto em relação com leitu- então estabelecer como central a relação do texto com as leituras indi-
ras. Contra a concepção, cara aos historiadores da literatura ou da filo- viduais ou coletivas que, cada vez, o constroem ( isto é, decompõem-no
sofia, segundo a qual o sentido de um texto estaria nele escondido como para uma recomposição ) .
um mineral em sua ganga ( a crítica sendo conseq üentemente a opera- Mas qual é o estatuto desses textos m últ í plos que a história inte-
ção que traz à tona esse sentido oculto) , deve-se lembrar que a signifi- lectual èstabelecé como objeto de análise? Tradicionalmente, é sua
cação é o produto de uma leitura, de uma construção de seu leitor: “ este pró pria fun ção que supostamente lhes dá uma unidade: todos, de fato,
n ão assume nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Ele inventa constituiriam representações de um real que se esforçariam para apre-
nos textos algo diferente do que era sua ‘inten ção’. Ele os separa de sua ender sob modalidades diversas, filosóficas ou literá rias. A oposição
origem ( perdida ou acessória ) . Combina seus fragmentos e cria signifi- entre realidade e representação é assim estabelecida como primordial
cações inéditas no espaço organizado pela capacidade dos textos para para distinguir tipos de histó rias e , simultaneamente, discriminar ti-
45
permitir uma pluralidade indefinida de significações” . Concebidos pos de textos. Opor-se-ia ao historiador das economias e das socieda-
como um espaço aberto às leituras m últiplas, os textos ( mas també m des que restitui o que era aquele das mentalidades ou das id éias, cujo
todas as categorias de imagens) não podem então ser apreendidos nem objeto n ão é o real mas as maneiras como os homens o pensam e o
como objetos, cuja distribuição bastaria determinar, nem como entida- transpõem. A essa divisão do trabalho histó rico corresponde uma di-
des, cuja significação seria universal. Devem ser relacionados à rede con- visão dos materiais próprios a cada campo. Aos textos “ documentais”
traditória das utilizações que os constituíram historicamente. O que que , submetidos a uma justa crí tica, revelam o que era a realidade
levanta, evidentemente, duas questões: o que significa 1er? Como res- antiga, opor-se-iam os textos “ literá rios” , cujo estatuto é aquele da fic-
gatar as leituras antigas? As respostas não são muito garantidas, mas é ção e que n ão podem , pois, ser considerados como testemunhas de
claro que a história intelectual n ão poderá evitá-las por muito tempo. realidade. Essa divisão fundamental n ão foi alterada nem pela cons-
A título provisório, sem d úvida é um bom mé todo n ão recusar nenhu- trução em forma de séries estatísticas dos “ documentos” antigos, o que
ma das apreensões que autorizam a reconstituir, pelo menos parcial- n ã o faz sen ão acentuar seu valor de verdade, nem pela recente utili-
mente , o que os leitores faziam de suas leituras: a apreensão direta , nos zação de textos literá rios pelos historiadores, visto que, neste caso, eles
meandros de uma confissão, escrita ou oral , voluntá ria ou extorquida; perdem sua natureza literá ria para serem reduzidos ao estatuto de
o exame dos fatos de reescritura e de intertextualidade onde se anula documentos, cabíveis porque dizendo, de um outro modo, o que a
o recorte clássico entre escritura e leitura, já que aqui a escritura é ela an álise social estabeleceu por meio de seus pró prios procedimentos.
própria leitura de uma outra escritura;4*’ enfim , a an álise serial de corpo- O texto individual torna-se ilustração “ vivida ” da leis da quantidade.
São essas divisões demasiado simples que, hoje em dia , os histo-
43
Michel de Certeau , op. cit., p. 285-286 , e cap . XII , “ Lire: Un braconnage” p. 279-296 .
, riadores à escuta da crítica literária contemporâ nea47 ou da sociolo-
1
'
Em uma bibliografia já imensa , citemos apenasJulia Kristeva , Recherches pour une séma-
(1

nalyse ( Semeiotik è ), Paris, Editions du Seuil , 1969, e Hans Robert Jauss , Pour une esthétique
delà réception, Paris , Gallimard , 1978. 17
Cf . Jean Marie Goulemot , “ Histoire litt é raire ” , La Nouvelle Histoire, op. cit., p . 308-313.

54 55

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gia questionam. E claro que nenhum texto, mesmo o mais aparente-
*
of cultural activity ( paintings, politics, etc. ). The other is horizontal, ou synchro-
nic; by it he assesses the relation of the content of the intellectual object to whtat is
mente documental , mesmo o mais “ objetivo” ( por exemplo, um qua-
appearing in other branches or aspects of a cult ure at the same time48
dro estat ístico estabelecido por uma administração ) , manté m uma [ O historiador busca situar e interpretar a obra no tempo e inscrevê-la
relação transparente com a realidade que ele apreende.Jamais o tex- no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical , diacrônica, pela qual
to, literário ou documental, pode anular-se como texto , isto é, como ele relaciona um texto ou um sistema de pensamento a tudo o que os
um sistema constru ído segundo categorias, esquemas de percepção precedeu em um mesmo ramo de atividade cultural ( pintura, pol ítica ,
etc. ) ; a outra , horizontal , sincrô nica, pela qual o historiador estabelece
e de apreciação, regras de funcionamento, que remetem às suas pró- uma rela çã o entre o conte ú do do objeto intelectual e o que se faz em
prias condições de produ ção. A relação do texto com o real constrói- outras á reas na mesma é poca ] .
se de acordo com modelos discursivos e recortes intelectuais pró prios
a cada situação de escritura. O que leva a n ão tratar as ficções como E evidentemente uma mesma concepção da tarefa do historiador inte-
meros documentos, supostos reflexos da realidade histó rica , mas a lectual que compartilha Hayden White, propondo-lhe um duplo mo-
estabelecer sua especificidade enquanto texto situado em relação a delo e um duplo question ário: Gombrich and Kuhn have given ns models
outros textos e cuja organização e forma visam a produzir algo dife- of how to write the histories of genres, styles and disciplines; Goldman shows as
rente de uma descrição. O que conduz, a seguir, a considerar que os how to unite them on the broader canvases provided by social, political, and eco-
“ materiais-documentos” obedecem , eles també m , a procedimentos de nomic historians49 [ Gombrich e Kuhn forneceram-nos os modelos para
construção onde se investem os conceitos e as obsessões de seus pro- escrever a história dos gêneros, dos estilos e das disciplinas; Goldman
dutores e onde se marcam regras de escritura particulares ao gê nero mostra-nos como reuni-los nos quadros mais amplos fornecidos pelos
de que fazem parte. São essas categorias de pensamento e esses prin- historiadores da sociedade, da pol ítica e da economia]. Sem forçosa-
cípios de escritura que se deve, portanto, fazer sobressair previamen- mente dizê-lo, aqueles que na Fran ça tentam compreender os “ objetos
te a toda leitura “ positiva ” do documento. O real assume assim um intelectuais” ( retomando a expressão de Schorske ) concordam com essa
novo sentido: o que é real , de fato, n ão é somente a realidade visada definição do espaço cultural ( e, portanto, de seu pró prio campo de
pelo texto, mas a própria maneira como ele a visa, na historicidade estudo) como um espaço de duas dimensões, o que permite pensar uma
de sua produção e na estratégia de sua escritura. produção intelectual ou artística na especificidade da história de seu
gênero ou de sua disciplina, e també m em sua relação com as outras
produções culturais que lhe são contemporâneas e em suas relações com
CONCLUIR ? diferentes referentes situados em outros campos da totalidade social (so-
cioeconômica ou política ) . Ler um texto ou decifrar um sistema de pen-
A ú nica definição atualmente aceitável da histó ria intelectual samento consiste, pois, em manter juntas essas diferentes questões que
ou cultural parece , entã o , ser aquela dada por Cari Schorske , na constituem , em sua articulação, o que se pode considerar como o obje-
medida em que ele n ão lhe atribui nem metodologia particular to mesmo da histó ria intelectual.
nem conceitos obrigató rios, indicando apenas a dupla dimensão
de um trabalho:
4* Cari Schorske , Fin-de-siècle Vienna. Politics and Culture, New York , Cambridge Universi-
The historian seeks to locate and interpret the artifact temporally in afield where ty Press, 1979, p. XXI-XXIl ( trad . fr. VienneJin de siècle. Politique et culture, Paris, Seuil , 19S 1,
two lines intersect. One line is vertical, or diachronic, by which he establishes the p.13 [ tradu çãorevisada ] ) .
relation of a text or a system of thought to previous expression in the sa me branch
49
Hayden White , “ The Tasks of Intellectual History” , The Monist , vol. 53, n . 4, outubro
1969 , p.606-630 ( citaçã o p. 626 ) .

56 57
No entanto, por detrás de sua força de evid ê ncia , essa defini- pensá-lo sem reduzi-lo a apenas uma figura circunstanciada de uma
çã o encerra ainda muitas armadilhas. De fato, dois conceitos cau- categoria supostamente universal.
sam problema e podem induzir ao erro: o de objeto intelectual ( in- Tão arriscado quanto o de objeto intelectual, o conceito de cultu-
tellectual object ) e o de cultura. Após Foucault , é bastante claro, com ra. Sua discussão n ão é aceitável aqui. No máximo, pode-se observar que
efeito, que n ão se pode considerar esses “ objetos intelectuais” como uma representação comum , particularmente sensível na afirmação de
“ objetos naturais” , cujas modalidades histó ricas de existê ncia seriam uma “ história serial do terceiro n ível ” , constrói a cultura como uma ins-
as ú nicas a mudar. A loucura , a medicina , o Estado n ão sã o catego- tâ ncia da totalidade social, situada “ acima” da economia e do social que
rias pensáveis sobre o modo do universal e cujo conte ú do cada é po- supostamente constituem os dois primeiros n íveis do arcabouço. Essa
ca particularizaria. Por detrás da perman ê ncia enganosa de nosso tripartição, utilizada como uma comodidade entre os historiadores
vocabulá rio, deye-se reconhecer n ão objetos, mas objetiva ç pes que quantitativistas para delimitar diferentes campos de aplicação do trata-
constroem a cada vez uma figura original. Como escreve muito bem mento serial, reproduz na verdade o recorte marxista tal como sistema-
Paul Veyne, cujo comentá rio seguimos aqui: “ neste mundo, n ã o se tizado por Louis Althusser. Essa divisão que postula, de um lado, que
joga xadrez com figuras eternas, o rei, o louco: as figuras são o que uma das instâ ncias - a econ ómica - é determinante e, de outro, que o
as configurações sucessivas sobre o tabuleiro fazem delas” . São,
00 cultural ou o ideol ógico forma um n ível à parte ( claramente identifi-
portanto, as relações com os objetos que os constituem , de um modo cável e confinado em limites reconhecíveis) da totalidade social, n ão
espec ífico e de acordo com agrupamentos e distribuições sempre parece mais concebível. Na verdade, o que se deve pensar é como to-
singulares. A histó ria intelectual n ã o deve cair na armadilha das pa- das as relações, inclusive aquelas que designamos como relações eco-
lavras que podem dar a ilusão de que os diferentes campos de dis- n ómicas ou sociais, organizam-se segundo lógicas que colocam em jogo,
cursos ou de prá ticas estã o constitu ídos de uma vez por todas, re- em ação, os esquemas de percepção e de apreciação dos diferentes su-
cortando objetos, cujos contornos, sen ão os conte ú dos, n ão variam ; jeitos sociais, portanto, as representações constitutivas do que se pode
bem ao contrá rio, ela deve estabelecer como centrais as descontinui- chamar de uma “ cultura” , quer seja comum a toda uma sociedade, quer
dades que fazem com que se designem , se agreguem e se dispersem , seja própria a um grupo determinado. O mais grave na acepção habi-
de maneiras diferentes ou contraditórias conforme as é pocas, os sa- tual da palavra cultura n ão é tanto o fato de que recobre geralmente
beres e os atos. Este é seu objeto, ou seja, “ relacionar os pretensos apenas as produções intelectuais ou artísticas de uma elite, mas que leva
objetos naturais às prá ticas datadas e raras que os objetivam e expli- a supor que o “ cultural” n ão se investe sen ão em um campo particular
car essas prá ticas, n ã o a partir de um motor ú nico, mas a partir de de prá ticas ou de produções. Pensar diferentemente a cultura e, por-
todas as prá ticas vizinhas sobre as quais elas se ancoram ” . O que é
51 tanto, o pró prio campo da histó ria intelectual , exige concebê-la como
resgatar, sob as prá ticas visíveis ou os discursos conscientes, a gram á- um conjunto de significações que se enunciam nos discursos ou nas
tica “ oculta ” ou “ imersa ” ( como escreve Veyne ) que os justifica. E condutas aparentemente menos “ culturais” , como faz Clifford Geertz:
identificando as divisões e as relações que constitu íram o objeto que The culture concept to which I adhere [...] denotes an historically transmitted
quer apreender que a histó ria ( das id éias, das formações ideológi- pattern of meanings embodied in symbols, a system of inherited conceptions ex-
cas , das prá ticas discursivas - pouco importa a designação ) poderá pressed in symbolic forms try means of which men communicate, perpetuate, and,
develoj) their knowledge about and attitudes towards life' 2 [O conceito de cul-
, Paul Veyne, “ Foucault révolutionne l’ histoire” , Comment on écrit l'histoire, seguido de
51

Foucault révolutionne l 'histoire, Paris, Editions du Seuil, 1978, p. 236.


51
Ibid . , p.241. Clifford Geertz, The Interpretation of Culture, New York , Basic Books Inc., 1973, p.89.

58 59
tara ao qual adiro [...] designa um conjunto de significações historica-
mente transmitido e inscrito em símbolos, um sistema de concepções
herdadas expressas nestas formas simbólicas por meio das quais os ho- 2 . O mundo como representação
mens comunicam , perpetuam e desenvolvem seu saber sobre a vida e
suas atitudes diante dela ] . Portanto, é uma nova articulação entre cul-
tural structure e social structure que se deve construir sem nela projetar
nem a imagem do espelho, que faz de uma o reflexo da outra, nem a
da engrenagem, onde cada uma das engrenagens repercute o movimen-
to primordial que afeta o primeiro elo da cadeia.

O editorial da primavera de 1988 da revista Annalçs conclama-


va os historiadores a uma reflexã o a partir de uma dupla constata-
ção. Por um lado, ele afirmava a existê ncia de uma “ crise geral das
ciê ncias sociais” , percebida no abandono dos sistemas globais de
interpretação, destes paradigmas dominantes que haviam sido, uma
época , o estruturalismo ou o marxismo, assim como na rejeiçã o pro-
clamada das ideologias que haviam sustentado seu sucesso ( enten-
damos a adesão a um modelo de transformação socialista das socie-
dades ocidentais capitalistas e liberais ) . Por outro lado, o texto n ão
aplicava à história a integralidade de um tal diagn óstico, já que con-
clu ía: “ Não nos parece chegado o momento de uma crise da histó-
ria, cuja hipó tese, com demasiada comodidade , alguns aceitam ” .
A histó ria era entã o vista como uma disciplina ainda sadia e vigo-
rosa, atravessada , no entanto, por incertezas devido ao esgotamento
de suas aliadas tradicionais ( com a geografia , a etnologia, a socio-
logia ) e ao apagamento das técnicas de tratamento como modos
de inteligibilidade que davam unidade a seus objetos e a seus pro-
cedimentos. O estado de indecisão que a caracterizava seria , por-
tanto, como que o pró prio inverso de uma vitalidade que , de ma-
neira livre e desordenada , multiplicou os campos de trabalho, as
experi ê ncias, os encontros.

60
61

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UM DIAGNÓSTICO REVOGADO EM D Ú VIDA A resposta dos historiadores foi dupla. Eles puseram em ação
uma estratégia de captação lan çando-se nas frentes abertas por ou-
Por que esse ponto de partida que postula simultaneamente a tros. De onde o aparecimento de novos objetos em seu questiona-
crise geral das ciê ncias sociais e a vitalidade mantida , mesmo que seja mento: as atitudes diante da vida e da morte, os rituais e as cren ças,
ao preço de um ecletismo um tanto an á rquico, da história? A estraté- as estruturas de parentesco , as formas de sociabilidade, os funcio-
gia em ação no texto ( o termo é aqui tomado n ão no sentido de um namentos escolares, etc. - o que significava constituir os novos ter-
cálculo racional e consciente, mas designando um ajuste mais ou ritó rios do historiador por meio da anexa çã o dos territó rios dos
menos automá tico a uma situação dada ) parece-me comandada pela outros ( etn ólogos, sociólogos, dem ógrafos ) . Razão, corolariamen-
preocupação de preservar a disciplina em uma conjuntura percebi- te, do retorno maciço a uma das inspirações fundadoras dos primei-
da como marcada pelo decl ínio radical das teorias e dos saberes so- ros Annales, aqueles dos anos 1930: o estudo das aparelhagens men-
bre os quais ela sustentara seus progressos nas décadas de 1960 e 1970. tais que a dominação da história das sociedades havia relegado um
O desafio fora então lan çado pelas disciplinas mais recentemente ins- pouco ao segundo plano. Sob o termo hist ória das mentalidades ou ,
titucionalizadas e mais dominadoras intelectualmente: a lingii ística , às vezes, psicologia hist órica, era delimitado um campo de pesquisa ,
a sociologia ou a etnologia. O assalto contra a histó ria pôde assumir distinto tanto da velha histó ria das id éias quanto daquela das con-
formas diversas, algumas estruturalistas e outras n ão, mas todas elas junturas e das estruturas. Sobre esses objetos novos ( ou reencontra-
questionavam a disciplina em seus objetos - ou seja , o primado dado dos ) podiam ser postos à prova modos in éditos de tratamento, ex-
ao estudo das conjunturas, económicas ou demográficas, e das estru- tra ídos das disciplinas vizinhas: as técnicas da an á lise lingii ística e
turas sociais - e em suas certezas metodológicas, considerados como semântica, as ferramentas estatísticas da sociologia ou certos mode-
mal assegurados em relação às novas exigê ncias teóricas. los da antropologia.
Propondo objetos de estudo que haviam permanecido até en- Poré m , essa capta ção ( dos territó rios, das técnicas, das marcas
tão largamente estrangeiros a uma história destinada maciçamente de cientificidade ) só podia ser plenamente aproveitada com a con -
à exploração do econ ómico e do social, propondo normas de cien- dição de que n ão se abandonasse nada do que fundara a força da
tificidade e modos de trabalho demarcados das ci ências exatas ( por disciplina , dada pelo tratamento quantitativo de fontes maciças e
exemplo, a formalização e a modelizaçã o, a explicitação das hipó te- seriais ( registros paroquiais, tabelas semanais de preços, certidões
ses, a pesquisa em equipe ) , as ciê ncias sociais solapavam a posição de tabelionatos, etc. ) . Em suas formas majoritárias, a história das
dominante mantida pela histó ria no campo universitá rio. A impor- mentalidades construiu-se, pois, aplicando a novos objetos os prin-
tação de novos princípios de legitimação no dom ínio das discipli- cípios de inteligibilidade previamente testados na histó ria das eco-
nas “ literá rias” desqualificava o empirismo histórico ao mesmo tem- nomias e das sociedades. De onde suas caracter ísticas espec íficas: a
po que visava a converter a fragilidade institucional das novas disci- preferê ncia dada à maioria, portanto à investigação da cultura con-
plinas em hegemonia intelectual.1 siderada popular, a confian ça na cifra e na sé rie, o gosto pela longa
duração, a primazia concedida ao recorte socioprofissional. Os tra-
1
Os dados que dizem respeito às transformações morfológicas ( peso num é rico, capital ços pró prios da histó ria cultural assim definida, que articula a cons
escolar e capital social dos professores ) das disciplinares universitá rias durante a d éca - -
titui çã o de novos campos de pesquisa com a fidelidade aos postula-
da de 1960 foram reunidos por Pierre Bourdieu , Luc Boltanski e P. Maldidier, “ La d é-
fense du corps” , Information sur les sciences sociales, X , 4, 1971, p.45-86. Eles constituem a
dos da histó ria social , são a tradu ção da estratégia da disciplina que
base estat ística do livro de Pierre Bourdieu , Homo academicus, Paris , Editions de Minuit, estabelecia para si uma legitimidade científica renovada - garantia
col. Le sens commun , 1984.
<\ .
62 63

T' - irrïi- i-
'
para outros, que as ciê ncias sociais estão em crise n ão basta para estabe-
da manutenção de sua centralidade institucional - recuperando lecê-lo. O refluxo do marxismo e do estruturalismo n ão significa por
ção foi,
seu benef ício as armas que deveriam tê-la vencido. A opera
ça estrei- si mesmo a crise da sociologia e da etnologia, já que, no campo in-
como se sabe , um franco sucesso, estabelecendo uma alian telectual francês, foi justamente à distâ ncia das representações ob-
, haviam pareci-
ta entre a histó ria e as disciplinas que, numa época
jetivistas propostas por essas duas teorias referenciais que se cons-
do suas mais perigosas concorrentes.
que o tru íram as pesquisas mais fundamentais, lembrando contra as deter-
O desafio lan çado à histó ria nestes ú ltimos anos é como
tica dos h á- minações imediatas das estruturas as capacidades inventivas dos agen-
m verso do anterior. Ele n ão se ancora mais em uma crí tes, e contra a submissão mecâ nica à regra as estratégias pró prias da
sociais mas
bitos da disciplina em nome das inova ções das ci ê ncias
. Os fun- prá tica. A mesma observa ção vale a fortiori para a histó ria que per-
em uma crí tica dos postulados das pró prias ciê ncias sociais
lado, o retorno maneceu muito recalcitrante (exceto algumas grandes exceções ) ao
damentos - intelectuais da ofensiva são claros: de um A

ções co- emprego dos modelos de compreensão forjados pelo marxismo ou


a uma filosofia do sujeito que recusa a força das determina
4

reabilitar “ a pelo estruturalismo. Do mesmo modo, n ão parece que o efeito “ re-


letivas e dos condicionamentos sociais e que pretende
concedida torno de China ” , evocado para designar os desencantos e os aban-
parte expl ícita e refletida da ação ” ; de outro, a primazia donos ideológicos da d écada de 1980, tenha contribu ído muito para
ao pol ítico , que supostamente constitui o “ n ível mais globaliza
nte”
“ nova cha- inquietar e modificar a prá tica dos historiadores, pois bem poucos
da organização das sociedades, e, para isso fornece uma
ão chamada a foram os que fizeram a viagem de Pequim . Sem d úvida , a situação
ve para a arquitetura da totalidade. A histó ria é ent
2

ção era bem distinta nos anos 1960 para a geração de historiadores q ue,
reformular seus objetos ( recompostos a partir de uma interroga i
( sendo privi- retornando de Moscou , opunha à abordagem dogm á tica de um
sobre a pró pria natureza do pol ítico ) , suas referê ncias
do direi- marxismo ortodoxo o projeto novo - hoje em dia recusado - de uma
legiado o diá logo travado com a ciê ncia política e a teoria
to ) e, mais fundamentalmente ainda , seu princípio
de inteligibili- história social quantitativa.
uma filo-
dade , destacado do “ paradigma cr ítico” e redefinido por
é então se-
sofia da consciência. Em tal perspectiva , o mais urgente TRÊS MUDANÇAS EiM FORMA DE REN Ú NCIA
órica (salvá-
parar tão nitidamente quanto possível a disciplina hist
outrora
vel ao preço de “ lancinantes revisões” ) das ciê ncias sociais Eu gostaria então de sugerir que as verdadeiras mutações do
seu apego
dominantes ( a sociologia e a etnologia ) , condenadas por trabalho histó rico nestes ú ltimos anos n ão foram produzidas por
majoritário a um paradigma obsoleto. uma “ crise geral das ciê ncias sociais” ( que deveria ser mais demons-
edito-
De maneira discreta e euf ê mica, o diagn óstico feito pelo trada do que proclamada ) ou por uma “ mudan ça de paradigma ”
da histó ria ,
rial dos Annales, através de seu tratamento diferenciado í ( que n ão se tornou realidade só por ser ardentemente desejada por
ncias sociais,
que se encontraria em uma “ reviravolta críú ca” , e das ciê alguns ) , mas que elas estão ligadas à distâ ncia tomada, nas próprias
algo
que passariam por uma “ crise geral” , parece-me compartilhar o í prá ticas de pesquisa , em relação aos princípios de inteligibilidade
: constata çã
dessa posi ção. O porqu ê de uma questão preliminar a que haviam governado o mé todo histórico nos ú ltimos vinte ou trinta
de muitos
proposta pode ser aceita sem reservas? Proclamar depois
,
anos. Três eram essenciais: o projeto de uma histó ria global , capaz
de articular em uma mesma apreensã o os diferentes n íveis da totali
ções, em forma de constata-
2
Para uma formulação coerente e radical dessas proposi dade social ; a defini ção territorial dos objetos de pesquisa, geralmen-
çao, ver Marcel Gauchet, “ Changement de paradigme
en sciences sociales?", Is. Débal,
* te identificados à descri ção de uma sociedade instalada em um es-
-
50, maio-agosto 1988, p.165 170.

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paço particular ( uma cidade , um “ país” , uma região ) - o que era a que permanecem fiéis a uma determinação estatística das correlações
condição para que fossem possíveis a coleta e o tratamento dos da- e das constantes até aquelas que pleiteiam pela exemplaridade da va-
dos exigidos pela histó ria total; a primazia dada ao recorte social l
riação e que, manipulando a noção paradoxal de “ excepcional nor-
considerado apto a organizar a compreensão das diferencia ções e mal ” , buscam o mais comum no menos ordin á rio.4
das divisões culturais. Ora, esse conjunto de certezas esboroou-se Enfim , renunciando ao primado tirâ nico do recorte social
progressivamente , deixando o campo livre a uma pluralidade de para dar conta das variações culturais, a histó ria em seus ú ltimos
abordagens e de compreensões. avan ç os mostrou , conjuntamente , que é impossível qualificar os
Renunciando , de fato , à descri çã o da totalidade social e ao motivos, os objetos ou as prá ticas culturais em termos imediatamen-
modelo braudeliano, que se tornou intimidante , os historiadores te sociol ógicos e que sua distribui çã o e seus usos em uma socieda-
tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma divisão ri- de dada n ão se organizam necessariamente de acordo com divisões
gidamente hierarquizada das prá ticas e das temporalidades ( econ ó- sociais prévias, identificadas a partir das diferen ças de estado e de
micas, sociais, culturais, pol íticas ) e sem que primado fosse dado a fortuna. As novas perspectivas abertas para pensar outros modos
um conjunto particular de determina ções ( quer fossem técnicas, de articula çã o entre as obras ou as prá ticas e o mundo social sã o ,
econ ómicas ou demográficas ) . Daí, as tentativas feitas para decifrar pois, sensíveis ao mesmo tempo à pluralidade das clivagens que
diferentemente as sociedades, penetrando o dédalo das relações e atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de mate-
das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada par- riais ou de códigos partilhados.
ticular ( um acontecimento, obscuro ou maior, o relato de uma vida ,
uma rede de prá ticas específicas ) e considerando que n ã o h á prá ti-
ca ou estrutura que n ão seja produzida pelas representações, con- DE HISTÓ RIA SOCIAL DA CULTURA
traditó rias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão A UMA HISTÓ RIA CULTURAL DO SOCIAL
sentido a seu mundo.
Renunciando a considerar as diferenciações territoriais como os Em concord â ncia com essas três mudan ças, liberadoras em re-
â mbitos obrigató rios de sua pesquisa, os historiadores franceses tira- lação à tradição institu ída , mas també m produtoras de incertezas
ram de sua disciplina o procedimento de inventá rio que ela havia re- pelo fato de n ão constitu írem por si mesmas um sistema unificado
cebido da escola de geografia humana. A cartografia das particulari- de compreensão, eu gostaria agora de formular algumas proposições
dades, cuja razão devia ser encontrada na diversidade das condições organizadas em torno de uma histó ria das apropriações.
geográficas, foi substitu ída pela busca das regularidades - o que sig- Essa noção parece central para a história cultural com a condi-
nifica reatar com a tradição, recusada pelos Annales dos anos 1930, ção, todavia, de ser reformulada. Essa reformulação, que enfatiza a
da sociologia durkheimiana e preferir o estabelecimento de leis ge- pluralidade dos empregos e das compreensõçs e a liberdade criado-
rais, como queria a morfologia social , à descrição das singularidades — —
ra mesmo que seja regrada dos agentes que nem os textos nem as
normas impõem , distancia-se, em primeiro lugar, do sentido que Mi-
regionais.3 Mas como pensar o acesso do geral quando ele n ão é mais
considerado como a soma acumulada das constatações particulares? chel Foucault dá ao conceito, considerando a “ apropriação social dos
Conhece-se a extrema diversidade das respostas dadas, desde aquelas discursos” como um dos procedimentos maiores pelos quais os dis-
cursos são assujeitados e confiscados pelos indivíduos ou pelas insti-
3
Roger Chartier, “ Science sociale et découpage régional . Note sur deux débats 1820-
1920” , Actes delà recherche en sciences sociales, 35 , novembro , 1980 , p. 27-36. 4
E . Grendi , “ Micro-analisi e storia sociale ” , Quaderni Slorici , 35, 1972, p. 506-520.

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tuições que se arrogam seu controle exclusivo. Ela também
5 se distan- pus de textos, uma classe de impressos, uma produção ou uma nor-
cia do sentido que a hermen ê utica dá à apropriação, pensada
como ma cultural. Partir assim dos objetos , das formas, dos códigos, e n ão
o momento em que a “ aplicação” de uma configuração narrati
va par- dos grupos, leva a considerar que a história sociocultural viveu por
ticular à situação do leitor refigura sua compreensão de si e
do mun- tempo demais sobre uma concepção mutilada do social. Privilegian-
do, portanto sua experiê ncia fenomenológica.' A apropria
ção tal
1
do apenas a classificação socioprofissional , ela esqueceu que outros
como a entendemos visa uma história social dos usos e das interpre
- princípios de diferenciação, també m plenamente sociais , podiamjus-
ta ções, relacionados às suas determinações fundamentais
e inscritos tificar, com mais pertin ência, as variações culturais. E o caso das per-
7 ção às con- ten ças sexuais ou geracionais, as adesões religiosas, as tradições edu-
nas prá ticas específicas que os produzem . Dar assim aten
di ções e aos processos que, muito concretamente, sustentam
as ope- cativas, as solidariedades territoriais, os h á bitos profissionais.
rações de constru ção do sentido ( na relação de leitura mas
também Por outro lado, a opera ção que visa a caraterizar as configura-
tual , ções culturais a partir de materiais que supostamente lhes são espe-
cm muitas outras ) é reconhecer, contra a antiga histó ria intelec
c íficos ( exemplo cl ássico , a identificação feita entre literatura de
que nem as inteligê ncias nem as idéias são desencarnadas e,
contra
os pensamentos do universal , que as categorias dadas como
invarian- vulgariza ção e cultura popular ) parece hoje em dia duplamente re-
tes, quer sejam filosóficas ou fenomenológicas, devem
ser constru í- dutora. De um lado, ela assimila o reconhecimento das diferen ças
das na descontinuidade das trajetórias histó ricas. apenas às desigualdades de distribuição; de outro, ignora o proces-
O procedimento supõe que distância seja tomada em relação
aos so pelo qual um texto, uma fó rmula , uma norma fazem sentido para
i
princ ípios que fundavam a histó ria social da cultura em sua
acepção aqueles que deles se apropriam ou os recebem .
clássica. Uma primeira variação foi marcada ante uma concep
ção es- Vejamos o exemplo da circulação dos textos impressos nas so-
são ciedades do Antigo Regime. Compreendê-la exige um duplo deslo-
treitamente sociográfica que postula que as clivagens culturais
cons- camento em rela çã o às abordagens iniciais. O primeiro situa o re-
organizadas necessariamente de acordo com um recorte social
tru ído previamente. É necessá rio, creio, recusar essa depend
ência que conhecimento das variações mais socialmente enraizadas nos usos
relaciona as diferen ças nos h á bitos culturais a oposições sociais
dadas contrastados de materiais compartilhados. Mais do que se escreveu
a priori, seja na escala de contrastes macroscópicos ( entre as elites
eo por muito tempo, os textos sã o os mesmos para os leitores popula-
dife- res e para aqueles que n ã o o são. Ou leitores de condição humilde
povo, entre os dominadores e os dominados) , seja na escala de
- são postos em posse de livros que n ão lhes eram especificamente
renciações menores ( por exemplo, entre os grupos sociais hierarqui
zados pelos n íveis de fortuna e as atividades profissionais ) .
destinados ( é o caso de Menocchio , o moleiro de Fri ú li, leitor das
Com efeito, as divisões culturais não se ordenam obrigatoriamen
- Voyages de Mandeville, do Decameron ou do Fioretto delia Bibbia, ou de8
co- Mé n é tra , o vidreiro parisiense , fervoroso admirador de Rousseau ) ,
te segundo uma grade ú nica do recorte social , que supostamente
con- ou então livreiros-editores inventivos e experientes colocam ao al-
manda a desigual presen ça dos objetos como as diferenças nas
dutas. A perspectiva deve então ser invertida e delinear, primeiramen
- cance de uma ampla clientela textos que só circulavam no mundo
te , a á rea social (freq ü entemente compósita ) onde circula
m um cor- estrito dos letrados ( é o caso da fó rmula editorial conhecida sob o

- Carlo Ginzburg, Ilformaggio ei vermi. Il cosmo di un mugnaio del’500, Turim , Giulio Ei-
Michel Foucault, L'Ordre du discours, Paris, Gallimard , p. 45 .
H
5 47
, .229.
et récit , t. III , l^e Temps raconté, Paris, Editions du Seuil , 1985 p
naudi Fditore , 1976 ( tradu ção francesa Le Formage et les Vers. L'univers d 'un meunier du
‘7’ Paul Ricoeur, Temps , em particular, a seu XAT siècle, Paris, Flammarion , 1980) . Journal de ma vie. Jacques-Louis Ménétra, compagnon
Essa perspectiva deve muito ao trabalho de Michel de Certeau vitrier au XVllL siècle, apresentado por Daniel Roche, Paris, Montalba , 1982.
livro L'Invention du quotidien, 1.1, Arts dé faire, Paris, U.G.E., col
. 10 /18, 1980.

69
68
(ermo gen é rico de Bibliothèque bleue, proposta aos mais humildes dos que quer que façam , os autores n ão escrevem os livros. Os livros n ão
leitores desde o final do século XVI pelos editores de Troyes ) . O es- sã o absolutamente escritos. Sã o produzidos por copistas e outros
sencial é, portanto, compreender como os mesmos textos - em for- artesãos, por operá rios e outros técnicos, pelas m áquinas de impri-
mas impressas possivelmente diferentes - podem ser diversamente mir e outras máquinas]. A observação pode levar a uma outra revi-
apreendidos, manipulados, compreendidos. são. Contra a representação, elaborada pela pró pria literatura , se-
Razão da necessidade de um segundo deslocamento sobre as gundo a qual o texto existe em si mesmo, independente de qualquer
redes de prá ticas que organizam os modos, histó rica e socialmen- materialidade, deve-se lembrar que n ão há texto fora do suporte que
te diferenciados , da relação com os textos. A leitura n ão é somen- o d á a 1er ( ou a ouvir ) e que n ão há compreensão de um escrito, seja
te uma operação abstrata de intelecção: ela é uso do corpo, inscri- qual for, que não dependa das formas nas quais ele chega ao seu lei-
çã o em um espaço, relaçã o consigo ou com o outro. E por essa ra- tor. Por isso, a distin ção indispensável entre dois conjuntos de dis-
zão que devem ser reconstru ídas as maneiras de 1er próprias a cada positivos: aqueles que dizem respeito às estratégias de escritura e às
comunidade de leitores, a cada uma dessas interpretive communities inten ções do autor, aqueles que resultam de uma decisã o de editor
de que fala Stanley Fish .9 Uma histó ria da leitura n ão pode limi- ou de uma imposição de oficina.11
tar-se apenas à genealogia de nossas maneiras de 1er, em sil ê ncio e Os autores não escrevem livros: n ão, eles escrevem textos que
com os olhos; ela tem a tarefa de resgatar os gestos esquecidos, os outros transformam em objetos impressos. A distâ ncia, que é justa-
h á bitos desaparecidos. O empreendimento é capital , já que revela mente o espa ço no qual se constrói o sentido - ou os sentidos -, foi
n ão somente a distante estranheza de prá ticas outrora comuns, mas esquecida com demasiada freq úê ncia , n ão somente pela histó ria li-
també m as ordenações específicas de textos compostos para os usos terá ria clássica, que pensa a obra em si mesma como um texto abs-
que n ão são aqueles de seus leitores atuais. Assim , nos séculos XVI trato, cujas formas tipográficas n ão importam , mas també m pela
e XVII , freq ü entemente ainda , a leitura impl ícita do texto, literá- Rezeptionsàsthetik que postula, apesar de seu desejo de historicizar a
rio ou n ão, é construída como uma oralização, e seu leitor, como experi ê ncia que os leitores tê m das obras, uma relação pura e ime-
um leitor em voz alta que se dirige a um p ú blico de ouvintes. Des- diata entre os “ sinais” emitidos pelo texto - que jogam com as con-
tinada tanto aos ouvidos quando aos olhos, a obra joga com for- ven ções literá rias aceitas - e o “ horizonte de expectativa ” do p ú bli-
mas e com procedimentos aptos a submeter o texto escrito às exi- co ao qual são endereçadas. Em tal perspectiva, o “ efeito produzi-
gê ncias pr ó prias da performance oral . Dos motivos manipulados por do ” n ão depende absolutamente das formas materiais que susten-
Dom Quixote às estruturas dos livros que constituem a Bibliothèque tam o texto.12 No entanto, elas também contribuem plenamente para
bleue, in ú meros são os exemplos do vínculo tardiamente mantido modelar as antecipações do leitor face ao texto e para atrair novos
entre o texto e a voz. p ú blicos ou usos in éditos.
Whatever they may do, authors do not write books. Books are not writ- í
ten at all. They are manufactured by scribes and other artisans, by mecha-
nics and other engineers, and by printing presses and other machines10 [O
1
11
Roger Chartier, “ Texts, Printing, Readings” , The New Cultural History , editado com uma
° Stanley Fish , Is There a Text in This Class ? The Autority of Interpretive Communities. Cam- introdução de Lynn Hunt, Berkeley, University of California Press , 1989 , p. 154-175.
bridge ( Mass. ) , Harvard University Press , 1980, p. 1 -17 . ‘- Hans RobertJauss, lAteraturgeschichtealsProvokation, Francfort-sur-le-Main , Suhrkamp
10 . Stoddard , “
R Morphology and the Book from an American Perspective ” , Printing His- Verlag, 1970, p. 144-207 ( tradução francesa Pour une esthétique de la réception, Paris , Galli-
tory , \7 , 1987 , p . 2- 14 . mard , 1978. p . 21-80 ) .

70 71
REPRESENTAÇÕ ES COLETIVAS E IDENTIDADES SOCIAIS Esse retomo a Marcel Mauss e Emile Durkheim e à noção de “ re-
presentação coletiva” autoriza a articular, sem d úvida melhor do que o
A partir desse exemplo onde se enodam o texto, o livro e a leitu- conceito de mentalidade, três modalidades da relação com o mundo
ra , vá rias proposições podem ser formuladas, articulando de manei- social: primeiro, o trabalho de classificação e de recorte que produz as
ra nova os recortes sociais e as prá ticas culturais. A primeira delas es- configurações intelectuais m ú ltiplas pelas quais a realidade é contradi-
pera eliminar os falsos debates engajados em torno da divisão, dada toriamente construída pelos diferentes grupos que compõem uma so-
como universal, entre a objetividade das estruturas ( que seria o terri- ciedade; em seguida, as prá ticas que visam a fazer reconhecer uma iden-
t ó rio da histó ria mais segura, aquela que, manipulando documentos údade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a signi-
maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as sociedades tal como eram ficar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim , as formas ins-
verdadeiramente ) e a subjetividade das representações ( à qual se li- titucionalizadas e objetivadas graças às quais “ representantes” ( instâ n-
garia uma outra história , destinada aos discursos e situada à distâ ncia cias coletivas ou indivíduos singulares ) marcam de modo visível e per-
do real ) . Tal clivagem atravessou profundamente a histó ria, mas tam- petuado a existência do grupo, da comunidade ou da classe.
bé m outras ciê ncias sociais como a sociologia ou a etnologia , opon- Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a constru ção das
do abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenológicos, identidades sociais como resultando sempre de uma relação de for-
aquelas trabalhando em grande escala sobre as posi ções e as relações ça entre as representações impostas por aqueles que tê m poder de
dos diferentes grupos, freq ú entemente identificados a classes, estas classificar e de nomear e a definição , submetida ou resistente, que
privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comu- cada comunidade produz de si mesma ; 16 a outra que considera o
13
nidades mais restritas, muitas vezes consideradas homogé neas. recorte social objetivado como a tradu çã o do cr édito concedido à
Tentar superá-la exige, primeiramente, considerar os esquemas representação que cada grupo faz de si mesmo, portanto, à sua ca-
geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadei- pacidade de fazer com que se reconheça sua existê ncia a partir de
ras “ instituições sociais” , incorporando sob a forma de representações uma exibição de unidade.17 Trabalhando sobre as lutas de represen-
coletivas as divisões da organização social - “ As primeiras categorias ló- tações , cujo objetivo é a ordenação da pró pria estrutura social , a his-
gicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram clas- tó ria cultural afasta-se sem d ú vida de uma dependência demasiado
ses de homens nas quais essas coisas foram integradas” -, mas també m
14
estrita em rela çã o a uma histó ria social fadada apenas ao estudo das
considerar, corolariamente, essas representações coletivas como as lutas econ ómicas, mas també m faz retorno ú til sobre o social, já que
matrizes de prá ticas que constroem o pró prio mundo social - “ Mesmo dedica aten çã o às estratégias simbólicas que determinam posi ções
as representações coletivas mais elevadas n ão têm existência , não são e rela ções e que constroem , para cada classe , grupo ou meio, um
realmente tais sen ão na medida em que comandam atos” .
15
“ ser-percebido” constitutivo de sua identidade.
Para o historiador das sociedades do Antigo Regime, construir a
,s Pierre Bourdieu , Choses dites, Paris, Editions de Minuit, 1987, p.47-71. noção de representação como o instrumento essencial da an álise cul-
" Emile Durkheim e Marcel Mauss, “ De quelques formes primitives de classification .
, 1903, retomado
Contribudon à l ’ é tude des représentations collecdves , Année sociologique

em Marcel Mauss, Oeuvres complètes, 2, Représentations collectives et diversit é des civilisations , “’ A t ítulo de exemplo , cf . Carlo Ginzburg, / Benandanti . Stregoneria e culti agrari Ira Cin-
, Editions de Minuit, 1969, p.13-89 ( citação p.83) . quecento e Seicento, Turim . Giulio Einaudi Editore, 1966 ( tradu çã o francesa les Batailles
,Paris
s Marcel Mauss, “ Divisions et proportions de la sociologie ” , Année sociologique , 1927, re- nocturnes . Sorcellerie et rituels agraires en Frioul, XVF - XVLLF siècle, Lagrasse, Verdier, 1980 ) .
tomado em Marcel Mauss, Oeuvres complètes, 3, Cohésion sociale et divisions de la sociologie, 17 At ítulo de exemplo , cf . Luc Boltanski , Les Cadres . La formation d ’un groupe social , Paris,
Paris, Editions de Minuit , 1969, p.178-245 ( citação p. 210 ) . Les Editions de Minuit, 1982.

72 73
itos cen- inteligível ( ou seja, o conhecimento do signo como signo, em sua dis-
lurai é investir de uma pertin ência operatória um dos conce
conheci- tâ ncia da coisa significada, e a existê ncia de conven ções regulando a
trais manipulados nessas pró prias sociedades. A operação de
relação do signo com a coisa ) , a Logique de Port-Royal estabelece os
«

mento é assim relacionada à aparelhagem nocional que


os contempo-
a a seu termos de uma questão fundamental: aquela das possíveis incompre-
râ neos utilizavam para tornar sua própria sociedade menos opac ensões da representação, seja por falta de “ preparo” do leitor ( o que
do
entendimento. Nas defini ções antigas ( por exemplo18 aquela
,
entradas remete às formas e aos modos de inculca ção das conven ções) , seja
Dictionnaire universelde Furetière em sua edição de 1727 ) as
,
nte- devido à “ extravagâ ncia” de uma relação arbitrá ria entre o signo e o
da palavra “ representação” atestam duas fam ílias de sentido apare ições de pro-
festa uma au- significado ( o que levanta a questão das pró prias cond
mente contraditórias: de um lado, a representação mani
du ção das equivalê ncias admitidas e compartilhadas ) .
21
e o que
sê ncia, o que supõe uma clara distin ção entre o que representa
uma presen- De uma perversã o da relação de representação, as formas de
é representado; de outro, a representação é a exibição de teatralização da vida social na sociedade do Antigo Regime d ão o
ça, a apresentação p ú blica de uma coisa ou de uma pessoa
.
um exemplo mais manifesto. Todas visam , com efeito, a fazer com que
Na primeira acepção, a representação é o instrumento de
ituindo- a coisa n ão tenha existê ncia sen ão na imagem que a exibe , com qtie
conhecimento mediato que revela um objeto ausente , subst
-lo” tal como a representação mascare ao invés de designar adequadamente o que
o por uma “ imagem ” capaz de trazê-lo à mem ória e pintá

lação de é seu referente. A relação de representação é assim turvada pela fra-
é. A relação de representação, assim entendida como corre
do pelo gilidade da imaginação, que faz com que se tome o engodo pela ver-
uma imagem presente e de um objeto ausente, uma valen
clássico, elabo- dade , que considera os sinais vis íveis como ind ícios seguros de uma
outro, sustenta toda a teoria do signo do pensamento
lexid ade pelos l ógicos de Port - Roya l .10
Por realidade que n ão existe. Assim desviada, a representa ção transfor-
rada em sua maio r comp
discriminar ma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, em um instru-
um lado, são suas modalidades variáveis que permitem mento que produz uma imposiçã o interiorizada , necessá ria l á onde
ou insti-
diferentes categorias de signos ( certos ou prováveis, naturais
, etc. ) e ca- falta o possível recurso à força bruta.
tu ídos, aderentes a ou separados do que é representado Toda reflexã o sobre as sociedades do Antigo Regime só pode
racterizar o s ímbol o por sua difere n ça de outro s signo s . 20
Por outro,
ção seja inscrever-se na perspectiva assim traç ada , duplamente pertinen-
identificando as duas condições necessá rias para que tal rela te: pelo fato de considerar a posi çã o “ objetiva ” de cada indiv íduo
mots français tant vieux que como dependente do cr é dito que concedem à representa ção que
18
Furetière , Dictionnaire universel, contenant généralement tous les
modernes et les termes des sciences et des arts, corrigido por M Basna
. ge de Bauval e revisto ele faz de si mesmo aqueles de quem espera reconhecimento; pelo
ésentation [ representação] .
por M . Brutel de la Rivière , Haia , 1727 , verbete Repr F. , 1965. Sobre a fato de compreender as formas de domina çã o simbólica como o
19 Antoine Amauld e Pierre Nicole , Ixi Logique ou l ’Art de penser, Paris , P. U .

teoria do signo em Port-Royal , ver o estudo fundamental de Louis


Marin , IM Critique du dis- corol á rio da ausê ncia ou do apagamento da viol ê ncia imediata .
cours. Etude sur la Logique de Port -Royal et les Pensées de Pascal, Paris-
, Editions de Minuit , 1975. É, portanto, no processo de longa dura ção de erradica çã22o da vio-
20 Antoine Amauld e Pierre Nicole , op . cil , livro I , cap. IV, p . 52 54. Para uma
discussão so-
em Journal ofModem History l ê ncia , que se tornou monopólio do Estado absolutista , que se
bre a definição do simbó lico , ver a série de artigos publicados
Cat Massacre and Ollier Episodes
depois da publicação do livro de Robert Darn ton , The Great
ção francesa Le Grand Massa-
in French Cultural HisUrry , New York , Basic Books, 1984 ( tradu
cre des chats . Attitudes et croyances dans l ’ancien ne France, Paris , Robert Laffont, 1985 ) : Roger 21 Antoine Arnaud e Pierre Nicole , op. cit . , livro II , cap ítulo XIV, p. 156- 160 .
u-
Chartier, “ Texts , Symbols and Frenchness , Journal of” Modem Histor
” . y , 57 , 1985, p. 682-685, 22
Norbert Elias , Liber den Prozess der Zivilisation. Soziogenetische urul psychogenelische Unters
, 1979 , vol .
Robert Darnton , “ The Symbolic Element in History , Journal of
Modem History , 58, 1986 , chungen , Berna , Verlag Fran eke AG, 1969 , e Franc” fort-sur-Ie-Main , Suhrkamp
Great Symbol Massacre” , Journal of II , “ Entwurt zur einer Theorie der Zivilisation ( tradução francesa La Dynam ique de
p. 218-234, D. La Capra , “ Chartier, Darnton and the
l ’Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975 , “ Esquisse d’ une théorie de la civilisation , p 187
Tell Tales: of Cartesian Cats ” . -324) .
Modern History, 60 , 1988 , p.95-112, ej. Fernandez, Historians

13- 127.
and Gallic Cockfights” , Journalof Modern History , 60, 1988, p. l
75
74
deve inscrever a import â ncia crescente assumida pelas lutas de re- partilha dos mesmos bens culturais pelos diferentes grupos que
presenta çõ es cujo desafio é a hierarquiza çã o da pr ó pria estrutu-
compõem uma sociedade suscita a busca de novas distin ções, ap-
tas a marcar as distâ ncias mantidas. A trajetó ria do livro no Antigo
ra social .
Regime francês testemunha isso. Tudo se passa como se as diferen-
cia ções entre as maneiras de 1er se tivessem multiplicado e afina-
O SENTIDO DAS FORMAS do à medida que o escrito impresso se tornava menos raro, menos
confiscado, mais comum . Embora , por muito tempo , só a posse do
A constatação pode levar a uma segunda proposta que visa a livro já significasse uma superioridade cultural , sã o os usos do li-
determinar as distâ ncias mais socialmente enraizadas nas diferen- vro , leg í timos ou selvagens, e a. qualidade dos objetos tipográficos,
ças mais formais. E isso , por duas razões possivelmente contradi- cuidados ou vulgares , que se acham progressivamente investidos
tó rias. De um lado, os dispositivos formais - textuais ou materiais de uma tal fun ção.
- inscrevem em suas pró prias estruturas as expectativas e as com - Foi sem d úvida essa aten ção atribu ída às “ formalidades das prá-
petê ncias do p ú blico que visam , portanto, organizam -se a partir de ticas” ( segundo a expressã o de Michel de Certeau ) , quer se refe-
uma representaçã o da diferenciação social. De outro , as obras e os rissem à produ çã o ou à recepçã o, que mais alterou uma maneira
objetos produzem sua á rea social de recepção bem mais do que são cl á ssica de escrever a hist ó ria das mentalidades. Primeiramente ,
produzidos por divisões cristalizadas e pr évias. Recentemente , obrigando-a a considerar os discursos em seus pró prios dispositi-
Lawrence W. Levine fez uma demonstração disso, mostrando que vos , suas articula ções ret ó ricas ou narrativas, suas estrat égias per-
a maneira como eram representadas as pe ç as de Shakespeare na suasivas ou demonstrativas. As organizações discursivas e as cate-
Am é rica do sé culo XIX ( isto é , mescladas a m ú ltiplas outras for- gorias que as fundam - sistemas de classifica çã o, crité rios de recor-
mas de espetáculo como a farsa , o melodrama , o bal é , o circo ) ti- te , modos de representa ções - n ã o sã o redut íveis às id éias que elas
nha criado um p ú blico muito amplo, ruidoso e turbulento, que enunciam ou aos temas que sustentam . Elas tê m sua lógica pró pria
excedia em muito a elite burguesa e letrada. Esses dispositivos de - e uma l ógica que pode muito bem ser contraditó ria em seus efei-
23

representaçã o do drama shakespeariano sã o da mesma ordem que tos com a letra da mensagem. Segunda exigê ncia: tratar os discur-
as transformaçõ es “ tipográficas” operadas pelos editores da Biblio- sos em sua descontinuidade e sua discord â ncia. Por muito tempo,
thèque bleue sobre as obras que colocam em seu cat á logo: ambos vi- pareceu fácil o caminho que fazia concluir da an á lise tem á tica de
sam , com efeito, a inscrever o texto em uma matriz cultural que :i
um conjunto de textos à caracterização de uma “ mentalidade ” ( ou
n ã o é aquela de seus destinatá rios primeiros e a permitir assim uma de uma “ visão do mundo” ou de uma “ ideologia ” ) , e depois fazia
pluralidade de apropria çõ es. passar desta a uma atribuição social un ívoca . A tarefa parece me-
Os dois exemplos levam a considerar as diferenciações cultu- nos simples quando cada sé rie de discursos deve ser compreendi-
rais, n ã o como a tradu ção de divisões est á ticas e im óveis, mas como da em sua especificidade , isto é, inscrita em seus lugares ( e meios )
o efeito de processos din â micos. De um lado, a transforma ção das de produ ção e em suas condições de possibilidade, relacionada aos
formas através das quais um texto é proposto autoriza recepções princípios de regulação que a ordenam e a controlam , e interro-
in éditas, portanto, cria novos p ú blicos e novos usos. De outro, a gada em seus modos de abonação e de veracidade. Reintroduzir
assim no cora ção da cr ítica histó rica o questionamento estabeleci-
Lawrence W. Levine, Highbrow-Lowbrow. The Emergence of Cultural Hierarchy in America
23 , do por Foucault para o tratamento das “ sé ries de discursos ” é cer-
Cambridge ( Mass.) , Harvard University Press, 1988, p. l 1-81.

77
76
lamente mutilar a ambiçã o totalizadora da histó ria cultural , preo- Estado captara em um período para seu proveito - ou que nasceram
cupada com reconstru ções globais. Mas é també m a condiçã o para em reação à sua influ ê ncia, na esfera do privado.
que os textos, quaisquer que sejam , que o historiador constitui em Em um momento em que, freq üentemente, encontra-se recusa-
arquivos sejam subtra ídos às redu ções ideol ógicas e documentais da a pertin ê ncia da interpretação social , que n ão se tome essas pou-
que os destru íam enquanto “ prá ticas descontínuas” .24 cas reflexões e proposi ções como o ind ício de uma afiliação a essa
posição. Bem ao contrá rio, na fidelidade crítica à tradição dos Anna-
les, elas desejariam ajudar a reformular a maneira de apoiar a com-
FIGURAS DO PODER E PRÁTICAS CULTURAIS preensão das obras, das representações e das prá ticas nas divisões do
mundo social que, conjuntamente, elas significam e constroem .
Nossa ú ltima proposta visa a compreender a partir das muta-
ções no modo de exerc ício do poder ( geradoras de formações so-
ciais inéditas ) tanto as transformações das estruturas da personali-
dade quanto aquelas das instituições e das regras que governam a
produ ção das obras e a organização das prá ticas. O vínculo estabe-
lecido por Elias entre, de um lado, a racionalidade de corte - en-
tendida como uma economia psíquica espec ífica , produzida pelas
exigê ncias de uma nova forma social, necessá ria ao absolutismo - e,
de outro, os traços pró prios à literatura clássica - em termos de hie-
rarquia dos gê neros, de caracter ísticas estil ísticas, de conven ções es-
té ticas - designa com acuidade o lugar de um trabalho possível.25 Mas
é també m a partir das divisões instauradas pelo poder ( por exem-
plo, entre os séculos XVI e XVIII , entre razão de Estado e consciê n-
cia moral, entre patronato estatal e liberdade do foro íntimo ) que
devem ser apreciadas a emergê ncia de uma esfera literá ria autó no-
ma e a constituição de um mercado dos bens simbólicos e dosjulga-
mentos intelectuais ou esté ticos.26 Estabelece-se , deste modo, um
espaço de crí tica livre, onde se opera uma progressiva politiza ção,
contra a monarquia do Antigo Regime , de prá ticas culturais que o

24 Michel Foucault, L’Ordre du discours, op. cit., p.54.


25
Norbert Elias, Die hofische Gesellschafl. Untersuchungen zur Soziologie des Kdnigtums und der
hojischen A ristokratie mit einer Einleitung: Soziologie und Geschichtswissenchafl, Darmstadt-Neu-
wied , Luchterhand, 1969 ( tradução francesa La société de cour, Paris, Flammarion,1985,
p.108-110 ) .
2
” Reinhart Koselleck , Krilik und Krise: eine Sludie zur Pathogenese der bü rgerlichen Well, Fri-
burgo, Verlag Karl Albert, 1959, e Frankfurt , Suhrkamp, 1976. ( tradução francesa Le
Règne de la critique, Paris, Editions de Minuit, 1979) .

78 79
3. A história entre narrativa
e conhecimento

“ Tempo de incerteza ” , “ crise epistemológica” , “ reviravolta cr íti-


ca ” : esses são os diagn ósticos, geralmente inquietos, feitos nos ú ltimos
anos sobre a história . Basta lembrar duas constatações que abriram o
caminho a uma ampla reflexão coletiva. De um lado, aquela propos-
ta pelo editorial de março-abril de 1988 dos Annales, que afirmava:

Hoje em dia , parece chegado o tempo das incertezas. A redistribuiçã o


das disciplinas transforma a paisagem científica , questiona primados es-
tabelecidos, atinge as vias tradicionais pelas quais circulava a inova ção.
Os paradigmas dominantes, que se iam buscar nos marxismos ou nos
estruturalismos, bem como nos usos confiantes da quantificação, perdem
suas capacidades estruturantes [ ...] A histó ria , que estabelecera uma boa
parte de seu dinamismo sobre uma ambi çã o federalista , n ã o é poupada
por essa crise geral das ciê ncias sociais.1

Segunda constatação, muito diferente em suas razões, mas semelhante


em suas conclusões: aquela feita em 1989 por David Harlan em um
artigo da American Historical Reviera, que suscitou uma discussão que
perdura at é hoje: The return of literature has plunged historical studies into

I “ Histoire et sciences sociales. Un tournant critique ? ” , AnnalesE . S .C ., 1988, p. 291-293


( citaçã o p. 291-292 ) .

81
an extended epistemological crisis. It has questioned our belief in a fixed and como “ galileano ” . Tratava-se então, graças à quantificação dos fen ô-
determinable past, compromised the possibility of historical representation, and menos, à constru ção de sé ries e aos tratamentos estatísticos, de for-
undermined, our ability to locate ourselves in time2 [O retorno à literatura mular rigorosamente as relações estruturais que eram o objeto mes-
mergulhou a história em uma grave crise epistemológica. Ele questio- mo da histó ria. Deslocando a fórmula de Galileu em II Saggiatore, o
nou nossa cren ça em um passado fixado e determin ável , comprome- historiador supunha que o mundo social “ é escrito em linguagem
teu a possibilidade da pró pria representa ção histó rica , e minou nos- matem á tica ” e dedicava-se a estabelecer suas leis.
sa capacidade de nos situarmos no tempo] . Os efeitos dessa dupla revolu ção da histó ria, estruturalista e “ ga-
O que indicam tais diagn ósticos, que parecem ter algo de pa- lileana ” , não foram poucos. Graças a ela, a disciplina pôde assim rea-
radoxal em uma é poca em que a edi ção de história demonstra uma tar com a ambi ção que fundara no in ício deste século a ciência social,
bela vitalidade e uma inventividade mantida , traduzidas na continu-
« em particular em sua versão sociológica e durkheimiana: ou seja, iden-
ação das grandes obras coletivas, no lan çamento de coleções euro- tificar estruturas e regularidades, portanto, formular relações gerais.
peias, no aumento do n ú mero das tradu ções, no eco intelectual Ao mesmo tempo, a histó ria liberava-se da “ bem magra id éia do real ”
encontrado por alguns livros maiores? Eles designam , creio, esta - expressão de Michel Foucault - que a habitara por muito tempo, já
mutação maior que é o apagamento dos modelos de compreensão, que considerava que os sistemas de relações que organizam o mundo
dos princípios de inteligibilidade que tinham sido aceitos de comum social são tão “ reais” quanto os dados materiais, físicos, corporais, apre-
acordo pelos historiadores ( ou , pelo menos, pela maioria deles ) a endidos no imediato da experi ê ncia sensível. Essa “ nova história” es-
partir dos anos 60. tava então fortemente apoiada , alé m da diversidade dos objetos, dos
A histó ria conquistadora repousava entã o sobre dois projetos. territórios e das maneiras, sobre os princípios mesmos que sustenta-
Em primeiro lugar, a aplicação aos estudos das sociedades antigas vam as ambições e as conquistas das outras ciê ncias sociais.
ou contemporâ neas do paradigma estruturalista , abertamente rei-
vindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se , antes de mais
nada , de identificar as estruturas e as relações que, independente- AS CERTEZAS ABALADAS
mente das percepções e das inten ções dos indivíduos, comandam
os mecanismos econ ómicos, organizam as relações sociais, engen- Nos dez primeiros anos, foram essas certezas, por muito tem-
dram as formas do discurso. Conseq ü entemente, a afirmação de uma po amplamente compartilhadas, que vacilaram . Inicialmente sensí-
radical separação entre o objeto do conhecimento histórico e a cons- veis a novas abordagens antropológicas ou sociol ógicas, os historia-
ci ê ncia subjetiva dos atores. dores quiseram restaurar o papel dos indivíduos na constru ção dos
laços sociais. De onde vá rios deslocamentos fundamentais: das es-
Segunda exigê ncia: submeter a histó ria aos procedimentos do
truturas às redes, dos sistemas de posições às situa ções vividas, das
n ú mero e da sé rie ou , melhor dizendo, inscrevê-la em um paradig-
ma do saber que Carlo Ginzburg, em um artigo célebre , designou
3 normas coletivas às estratégias singulares. A “ microhistó ria ” , italia-
na e depois espanhola , 4 ofereceu a tradução mais viva da transfor-
- David Harlan , “ Intellectual History and the Return of Literature” , American Historical
Review, 94, junho 1989, p.879-907 (citação p.881 ) . Giovanni Levi , L’eredilà immaleriale, Carriera di un esorcista net Piemonte del seicenlo, Turim ,
4

' Carlo Ginzburg, “ Spie. Radici di un paradigma indiziario” , in Mill , emblemi, spie. Morfo- Einaudi , 1985 ( tradu çã o francesa 1^ Pouvoir au village, Histoire d ’un exorciste dans le Pié-
logia e sloria, Turim , Einaudi, 1986, p.158-209 ( tradu ção francesa “ Traces. Racines d ’ un mont du XVII' siècle, Paris, Gallimard , 1989) ;Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes . Regi-
pa rad i time indiciaire” , in Mythes, emblèmes, traces, Morphologie el histoire, Paris, Flammarion , dores, inquisidores y criptojudios, Madri , Anaya / Mario Muchnik , 1992 ( tradu çã o francesa
1989, p.139-180 ) . Pouvoir et Inquisition en Espagne au XVIe siècle, Paris, Aubier, 1997 ) .

82 83
ma çã o desse procedimento histó rico inspirado pelo recurso a mo- com os espaços abertos às estratégias individuais. Jaime Contreras
delos interacionistas ou etnometodológicos. Radicalmente diferen- diz isso muito bem em seu livro recente Sotos contra Riquelmes:
ciada da monografia tradicional, cada microstoria pretende recons-
truir, a partir de uma situação particular, normal porque excepcio- Los grupos no anulaban a los indiví duos y la objetividad de las fuerrzas de aqué-
lios no impedia ejercer une trayectoria personal. Las famí lias [...] desplegaron
nal, a maneira como os indivíduos produzem o mundo social , por sus estrat égias para ampliar sus esferas de solidaridady de influencia, pero sus
meio de suas alian ças e confrontos, através das depend ê ncias que hombres, individualmente, también jugaron su papel. Si la llamada de la san-
os ligam ou dos conflitos que os opõem . O objeto da histó ria n ão gre y elpeso de los linajes eran intensos, también lo eran el deseoy las posibilida-
sã o, portanto, ou n ã o sã o mais, as estruturas e os mecanismos que des de arear espacios personates. En aquel drama que creó el fantasma de la he-
regulam , independentemente de qualquer influ ê ncia objetiva , as rejía - una “ creación” personal de un inquisidor ambicioso - se jugaron, en duro
envite, intereses colectivosy aun concepciones diferentes delpropio mundo, pero
rela ções sociais, mas as racionalidades e as estratégias executadas también cada indiví duo pudo reaccionarpersonalmente desde supropia trama-
pelas comunidades, parentelas, fam ílias, indivíduos. z ó n original 6
Uma forma in édita de histó ria social e cultural afirmou-se , as- [ Os grupos n ã o anulavam os indivíduos, e a objetividade das forças de
sim , centrada nas variações e discord â ncias existentes , de um lado, que dispunham n ã o impedia as trajetórias pessoais. As fam ílias [...] em -
pregaram suas estratégias a fim de aumentar suas esferas de solidarieda-
entre os diferentes sistemas de normas de uma sociedade e, de ou- de e de influê ncia, mas os homens que as compunham desempenharam ,
tro, no interior de cada um deles. O olhar deslocou-se das regras eles também , seu papel. Se o apelo do sangue e o peso das linhagens eram
impostas a seus usos inventivos , das condutas obrigató rias às deci- poderosos, també m o eram o desejo e as possibilidades de criar espa ços
sões permitidas pelos recursos pró prios de cada um: seu poder so- pessoais. Nesse drama que o fantasma da heresia criou - uma “ cria ção”
cial, seu poder econ ó mico, seu acesso à informação. Habituada a es- pessoal de um inquisidor ambicioso - estavam em jogo, em um duro con-
fronto, interesses coletivos e mesmo concepções diferentes do mundo,
tabelecer hierarquias e a construir coletivos ( categorias socioprofis- mas cada indivíduo podia també m reagir pessoalmente a partir da tra-
sionais, classes, grupos ) , a histó ria das sociedades estabeleceu novos ma de sua pró pria história ] .
objetos para si , estudados em pequena escala. Como, por exemplo,
a biografia comum , já que, como escreveu Giovanni Levi: Uma segunda razão, mais profunda, abalou as antigas certezas:
a tomada de consciê ncia dos historiadores de que seu discurso , seja
Nenhum sistema normativo é, de fato, suficientemente estruturado para qual for sua forma , é sempre uma narrativa. As reflexões pioneiras de
eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de manipula çã o ou Michel de Certeau ,7 depois o grande livro de Paul Ricoeur8 e, mais
de interpretação das regras, de negocia ção. Parece-me que a biografia
constitui , por essa razão, o lugar ideal para verificar o cará ter intersticial recentemente, a aplicação à histó ria de uma “ poé tica do saber” , que
- contudo importante - da liberdade de que dispõem os agentes, assim tem por objeto, conforme a definição de Jacques Ranciè re, “ o con-
como para observar a maneira como funcionam concretamente sistemas junto dos procedimentos literá rios pelos quais um discurso subtrai-se
normativos que n ão são jamais isentos de contradições.3 à literatura, estabelece para si um estatuto de ciê ncia e o significa ” ,9
obrigaram-nos, quer quisessem ou n ão, a reconhecer a perten ça da
Assim , a reconstituição dos processos din â micos ( negociações , tran -
sa ções, intercâ mbios, conflitos , etc. ) que desenham de maneira
móvel , instá vel , as relações sociais ao mesmo tempo que coincidem '’Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes, op. cit., p.30.
' Michel de Certeau, L'Ecriture de l’histoire, Paris, Gallimard , 1975.
8
Paul Ricoeur, Temps et récit , Paris, Editions du Seuil, 1983-1985.
sGiovanni .
Levi , “ Les usages de la biographie ” , AnnalesE.S.C , 1989, p.1325-1336 ( cita- Jacques Ranciè re , Les Mots de l’histoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Editions du Seuil ,
çã o p. 1333-1334 ) . 1992, p.21.

84 85
histó ria ao gênero da narrativa - entendido no sentido aristotélico da teria caracterizado a história nestes últimos anos. Como, de fato, po-
“ mise en intrigue de ações representadas” . A constatação não era evi- deria haver “ retorno” ou reencontro se n ão houve nem partida nem
dente para aqueles que, rejeitando a história factual em proveito de abandono? A mutação existe, mas é de outra ordem. Deve-se à prefe-
uma história estrutural e quantificada, pensavam ter acabado com os rê ncia recentemente dada a certas formas de narrativa em detrimen-
simulacros da narração e com a demasiado longa e muito duvidosa to de outras, mais clássicas. Por exemplo, as narrativas biográficas en-
proximidade entre a história e a fá bula. Entre uma e outra , a ruptura trecruzadas da microhistó ria n ão colocam em ação nem as mesmas
parecera sem apelo: no lugar ocupado pelos personagens e pelos he- figuras nem as mesmas construções das grandes “ narrativas” estrutu-
róis das antigas narrativas, a “ nova história ” instalava entidades an ó- rais da histó ria global ou das “ narradvas” estatísticas da história serial.
nimas e abstratas; ao tempo espontâ neo da consciê ncia, ela substitu ía A partir da í, uma segunda proposta: a necessidade de determi-
uma temporalidade constru ída , hierarquizada, articulada; ao cará ter nar as propriedades específicas da narrativa de história em relação a
auto-explicativo da narração, ela opunha a capacidade explicativa de todas as outras. Elas dizem respeito, primeiramente, à organização
um conhecimento controlável e verificável. “ clivada ” ou “ folheada ” ( como escrevia Michel de Certeau ) de um
Em Temps et récit, Paul Ricoeur mostrou o quanto era ilusó ria discurso que compreende em si mesmo, sob forma de citações que
essa cesura proclamada. Com efeito, toda histó ria, mesmo a me- são igualmente efeitos de realidade, os materiais que o fundam e cuja
nos narrativa , mesmo a mais estrutural , é sempre constru ída a par- compreensão ele pretende produzir. Concernem , també m , aos pro-
tir das fó rmulas que governam a produ çã o das narrativas. As enti- cedimentos específicos de abonação graças aos quais a histó ria mos-
dades que os historiadores manipulam ( sociedade , classes , menta- tra e garante seu estatuto de conhecimento verdadeiro. Todo um con-
lidades , etc.) sã o “ quase-personagens” , dotados implicitamente das junto de trabalhos consagrou-se assim a determinar as formas através
propriedades que sã o aquelas dos heróis singulares e dos indivíduos das quais se d á o discurso de histó ria. O empreendimento encerrou
comuns que compõem as coletividades designadas por essas cate- diferentes projetos , alguns estabelecendo taxinomias e tipologias
gorias abstratas. De um lado, as temporalidades histó ricas mantê m universais, outros reconhecendo diferen ças localizadas e individuais.
uma forte depend ê ncia em relaçã o ao tempo subjetivo: em pági- Dentre os primeiros, encontra-se a tentativa de Hayden White
nas soberbas, Ricoeur mostra como La M éditerranée au temps de Phi- que visa a identificar as figuras retó ricas que comandam e restrin-
lippe II de Braudel repousa , no fundo , sobre uma analogia entre o gem todos os modos possíveis de narração - ou seja , os quatro tro-
tempo do mar e o do rei e como a longa dura ção é aí uma modali- pos cl ássicos: metáfora , meton ímia, sin édoque e , com um estatuto
dade particular, derivada , da mise en intrigue do acontecimento. particular, “ metatropol ógico” , ironia.10 É uma mesma busca de cons-
Enfim , os procedimentos explicativos da histó ria permanecem so- tantes - constantes antropol ógicas ( aquelas que constituem as estru-
lidamente apoiados na l ógica da imputaçã o causal singular, isto é , turas temporais da experiê ncia ) e constantes formais ( aquelas que
ao modelo de compreensã o que , no cotidiano ou na ficção, per- governam os modos de representação e de narração das experiê n-
mite dar conta das decisões e das ações dos indiv íduos. cias histó ricas ) - que conduz Reinhart Koselleck a distinguir três ti-
Tal análise, que inscreve a história na classe das narrativas e que
identifica os parentescos fundamentais que unem todas as narrativas, “ ’ Hayden White , Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Bal-
quer sejam de histó ria ou de ficção, tem vá rias conseq üê ncias. A pri- timore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1973; Tropics ojDiscourse. Essays
meira permite considerar como uma questão mal colocada o debate in Cultural Criticism, Baltimore e Londres , The Johns Hopkins University Press , 1978 , e
The Content of the Form . Narrative Discourse and Historical Imagination , Baltimore e Londres,
criado em torno do suposto “ retorno da narrativa ” que , para alguns, The Johns Hopkins University Press , 1987 .

87
86
pos de histó ria: a histó ria-notação { Aufschreiben ) , a histó ria cumula- determined by their relations to each other, rather than by their relation to some
tiva ( Fortschreiben ) , a histó ria-reescrita ( Umschreiben ) J
1
“ transcendental” or extralinguistic object or subject [ a linguagem é con-
Dentre os segundos, de uma poé tica do saber sensível às variações cebida como um sistema de “ signos” auto-suficiente cujas significa-
e às diferen ças, estã o os trabalhos que - como o livro recente de ções sã o mais determinadas por suas relações rec í procas do que por
Philippe Carrard Poetics of the New History' 2 - determinam como diferen- sua relação com um objeto ou sujeito “ transcendental ” ou extralin-
tes historiadores, membros de uma mesma “ escola” ou de um mesmo gü istico ] - uma posi çã o que considera que the creation of meaning is
grupo, mobilizam muito diversamente as figuras da enunciação, a pro- impersonal, operating “ behind the backs” of language users whose linguistic
jeção ou o apagamento do eu no discurso de saber, os sistema de tem- actions can merely exemplify the rules and procedures of languages they inhabit
pos verbais, a personificação das entidades abstratas, as modalidades da but do not control1' [a criação do sentido é impessoal , operando “ nas
prova: citações, quadros, gráficos, séries quantitativas, etc. costas ” dos usu á rios da linguagem , cujos atos ling úísticos podem
somente exemplificar as regras e os procedimentos de linguagens
que eles habitam mas n ã o controlam ] . As opera ções históricas mais
DESAFIOS INVERTIDOS habituais encontram-se, conseq ü entemente , sem objeto, a começar
pelas distin ções fundadoras entre texto e contexto , entre realidades
Assim abalada em suas certezas mais profundas, a histó ria en- sociais e expressões simbólicas, entre discursos e prá ticas n ão discur-
controu-se igualmente confrontada com vá rios desafios. O primei- sivas. De onde , por exemplo, o duplo postulado de Keith Baker, que
ro, lan çado em modalidades diferentes, até mesmo contraditó rias, aplica o linguistic turn aos problemas das origens da Revolu çã o Fran-
de ambos os lados do Atlâ ntico, pretende romper toda ligação en- cesa: de um lado, os interesses sociais n ã o tê m nenhuma exteriori-
tre a histó ria e as ciê ncias sociais. Nos Estados Unidos, o assalto to- dade em rela çã o aos discursos, pois constituem a symbolic and
mou a forma do linguistic turn que , em estrita ortodoxia saussurea- political construction e n ão a preexisting reality, de outro, todas as prá ti-
na , considera a linguagem como um sistema fechado de signos , cas devem ser compreendidas na ordem do discurso , pois claims to
cujas rela ções produzem por si mesmas a significaçã o. A constru çã o delimit the field of discourse in relation to nondiscursive social realities that
do sentido é assim separada de qualquer inten ção e de qualquer con- lie beyond it invariably point to a domain of action that is itself discursively
trole subjetivos, já que se encontra atribu ída a um funcionamento constituted, they distinguish, in effect , betxueen different discursive practices
lingü istico autom á tico e impessoal. A realidade n ão deve mais ser - different languages games - rather than betxueen discursive and non dis-
pensada como uma referê ncia objetiva , externa ao discurso , mas cursive phenomena} 4 [as pretensões a delimitar o campo discursivo em
como constitu ída pela e na linguagem . John Toews designou clara- rela ção a realidades sociais n ã o discursivas que existiriam al é m dele
mente (sem aceitá-la ) essa posição radical para a qual the language is
designam indiscutivelmente um dom ínio de a ção que é ele pró prio
conceived of a self-contained system of “ signs ” xuhose meanings are discursivamente constitu ído; com efeito, elas distinguem mais en-

11
Reinhart Koselleck, “ Erfahrungswandel und Methodenwechsel. Eine historisch-anthro- “ John E. Toews, “ Intellectual History al ter the Linguistic Turn: The Autonomy of Mea-
pologische Skizze” , in Historische Melhode, sob a direçã o de C. Meier e J . Riisen , Muni- ning and the Irreductibility of Experience” , American Historical Review, 92 outubro 1987
, ,
que, 1988, p.13-61 ( tradução francesa “ Mutation de l ’ expé rience et changement de m é- p. 879-907 ( citaçã o p.882 ) .
thode. Esquisse historico-anthropologique ” , in Reinhart Koselleck , l 'Expérience de 11
Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution : Essays on French Political Culture in
l ’histoire, Paris, Gallimard-Le Seuil , 1997, p. 201-247. the Eighteenth Century , Cambridge, Cambridge University Press, 1990, p.9 e 5 ( tradu ção
12
Philippe Carrard , Poetics oj the New History . French Historical Discoursefrom Braudel to Char- francesa parcial Au tribunal de l ’opinion . Essais sur l ’imaginaire politique au XVIIIF siècle, Pa-
tier, Baltimore e Londres, Thejohns Hopkins University Press, 1992. ris, Payot, 1993) .

88 89
ire diferentes prá ticas discursivas - diferentes jogos de linguagem - diam organizá-la , submetê-la ou representá-la n ã o é postular, con-
do que entre fen ômenos discursivos e n ão discursivos] . tudo, a identidade entre duas lógicas: de um lado, a l ógica logocê n-
Do lado francês, o desafio, tal como se cristalizou nos debates trica e hermen ê utica que governa a produ ção dos discursos; de ou-
em torno da interpretaçã o da Revolu çã o Francesa , assumiu uma fi- tro, a lógica prá tica que regula as condutas e as a ções. Dessa irredu-
gura inversa. Longe de postular a automaticidade da produ ção do tibilidade da experiê ncia ao discurso toda histó ria deve dar conta ,
sentido, alé m ou aqu é m das vontades individuais, ele enfatiza, bem precavendo-se de um uso descontrolado da categoria de “ texto ” ,
ao contrário, a liberdade do sujeito, a parte refletida da ação, as cons- demasiadas vezes indevidamente aplicada a prá ticas ( ordin á rias ou
tru ções conceituais. Por conseguinte, vêem-se recusados os proce- ritualizadas) , cujas tá ticas e procedimentos não são em nada seme-
dimentos cl ássicos da histó ria social que visavam a identificar as de- lhantes às estratégias discursivas. Manter a distin ção entre ambas é
terminações inconscientes que comandam os pensamentos e as con - o ú nico meio de evitar de “ dar para o princ ípio da prá dca dos agen-
dutas. Conseq ü entemente , encontra-se afirmado o primado do po- tes a teoria que se deve construir para justificá-la ” , segundo a fó rmula
l í tico, compreendido como o n ível mais globalizante e mais revela- de Pierre Bourdieu.17
dor de toda sociedade. E esse vínculo que Marcel Gauchet coloca Por outro lado, deve-se constatar que a constru çã o dos interes-
no centro da recente mudan ça de paradigma que crê discernir nas ses pelos discursos é ela pró pria socialmente determinada, limitada
ci ê ncias sociais: pelos recursos desiguais ( ling úísticos, conceituais, materiais, etc. ) de
que dispõem aqueles que a produzem . Essa constru ção discursiva
it que parece delinear-se ao final da problemadza çã o da originalidade
remete, pois, necessariamente às posições e às propriedades sociais
ocidental moderna é uma recomposiçã o do desenho de uma histó ria
total. De acordo com dois eixos: por acessão , através do pol í tico, a uma objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes gru-
nova chave para a arquitetura da totalidade, e por absorção, em fun ção pos, comunidades ou classes que constituem o mundo social.
dessa abertura , da parte refletida da a ção humana , das filosofias mais ela- Em conseqiiê ncia , o objeto fundamental de uma história que
boradas aos sistemas de representações mais difusos.15 visa a reconhecer a maneira como os atores sociais d ão sentido a suas
prá ticas e a seus discursos parece residir na tensã o entre as capaci-
Os historiadores ( dentre os quais me encontro ) para quem
dades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, de outro lado,
permanece essencial a perten ça da histó ria às ciê ncias sociais tenta- as restrições, as normas, as conven ções que limitam - mais ou me-
ram responder a essa dupla e , às vezes, rude interpelação. Contra as
nos fortemente de acordo com sua posição nas relações de domina-
formula ções do linguistic turn ou do semiotic challenge, conforme a
ção - o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer. A constataçã o
expressão de Gabrielle Spiegel , 16 eles consideram ilegítima a redu- vale para uma histó ria das obras letradas e das produ ções esté ticas,
çã o das prá ticas constitutivas do mundo social aos princ í pios que
sempre inscritas no campo das possibilidades que as tornam imagi-
comandam os discursos. Reconhecer que a realidade passada n ão é
n áveis, comunicáveis e compreens íveis - e só se pode concordar com
acessível ( na maioria das vezes ) sen ão através dos textos que preten-
Stephen Greenblatt quando afirma que “ the work of art is the product
of a negotiation between a creator or a class of creators, and the institutions
and practices of society [a obra de arte é o produto de uma n égocia-
15
Mareei Gauchet, “ Changement de paradigme en sciences sociales? ” , Le Débal , 50, 1988,
p.165-170 ( citaçã o p.169) .
"‘Gabrielle M. Spiegel , “ History, Historicism , and the Social Logic of the Text in the 17
Pierre Bourdieu , Choses dites , Paris, Editions de Minuit, 1987, p.76.
Middle Ages ” , Speculum. A Journal of Medieval Studies, 65, janeiro 1990, p. 59-86 ( citaçã o 18
Stephen Greenblatt, “ Towards a Poetics of Culture ” , in The New Historicism, sob a dire-
p.60 ) . çã o de H. A. Veeser, New York e Londres, Routledge, 1989, p . 1-14 ( citaçã o p.12 ) .
’ i

90 91
ção entre um criador ou uma classe de criadores e as instituições e O trabalho de Elias permite , em particular, articular as duas sig-
prá ticas da sociedade ] . Mas a constatação vale igualmente para uma nificações que sempre se confundem no uso do termo cultura tal
história das prá ticas, que também são inven ções de sentido limita- como manipulado pelos historiadores. A primeira designa as obras
das pelas determina ções m ú ltiplas que definem , para cada comuni- e os gestos que , em uma sociedade , tangem ao julgamento esté tico
dade, os comportamentos legí timos e as normas incorporadas. ou intelectual. A segunda visa as prá ticas ordin á rias, “ sem qualida-
Contra o “ retorno ao pol ítico” , pensado em uma radical auto- des ” , que tecem a trama das relações cotidianas e exprimem a ma-
nomia , é preciso , parece-me , colocar no centro do trabalho hist ó ri- neira como uma comunidade vive e reflete sua relaçã o com o mun-
co as relações, complexas e vari áveis, estabelecidas entre os modos do e com o passado. Pensar historicamente as formas e as prá ticas
da organizaçã o e do exercício do poder em uma dada sociedade e , culturais é, portanto, elucidar necessariamente as relações mantidas
de outro lado , as configurações sociais que tornam possíveis essas por essas duas definições.
formas pol íticas e sã o por elas engendradas. Assim , a constru ção do As obras n ã o tê m sentido estável , universal , im óvel. São investi-
Estado absolutista supõe uma forte e prévia diferenciação das fun- das de significações plurais e m óveis, constru ídas na negociação
çõ es sociais ao mesmo tempo que exige a perpetuação ( graças a di- entre uma proposi çã o e uma recepção , no encontro entre as formas
versos dispositivos, dentre os quais o mais importante é a sociedade e os motivos que lhes d ão sua estrutura e as competê ncias ou as ex-
de corte ) do equil í brio das tensões existentes entre os grupos sociais pectativas dos p ú blicos que delas se apropriam . E certo que os cria-
dominantes e rivais. dores, ou as autoridades, ou os “ clé rigos” ( quer perten çam ou nao
Contra o retorno à filosofia do sujeito que acompanha ou fun- à Igreja ) , sempre aspiram a fixar o sentido e a enunciar a correta
da o retorno ao pol ítico , a histó ria compreendida como uma ciê n- interpretação que deve restringir a leitura ( ou o olhar ) . Mas sem-
cia social lembra que os indivíduos estão sempre ligados por depen- pre, també m , a recepção inventa, desloca , distorce. Produzidas em
d ê ncias rec í procas , percebidas ou invisíveis, que modelam e estru- uma esfera específica , em um campo que tem suas regras, suas con-
turam sua personalidade e que definem , em suas modalidades su- ven ções, suas hierarquias, as obras escapam delas e assumem densi-
cessivas, as formas da afetividade e da racionalidade. Compreende- dade , peregrinando, às vezes na longu íssima duraçã o, através do
se , então, a importâ ncia concedida por muitos historiadores a uma mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais e afetivos
obra longamente desconhecida, cujo projeto fundamental é justa- que constituem a cultura pró pria ( no sentido antropol ógico ) das
mente associar, na longa duraçã o , construção do Estado moderno , comunidades que as recebem , elas tornam-se em retorno um recur-
modalidades de interdepend ê ncia social e figuras da economia psí- so para pensar o essencial: a constru ção do laço social , a consciê n-
quica: a de Norbert Elias.19 cia de si , a relação com o sagrado.
Inversamente, todo gesto criador inscreve em suas formas e seus
l !l
Sobre a obra de Norbert Elias, ver Materialen zu Norbert Elias Zivilisalionstheorie, sob a temas uma relaçã o com as estruturas fundamentais que , em um
direção de P. Gleichmann .J . Goudsblom e H . Korte, Francfort-sur-le-Main , Suhrkamp , momento e um lugar dados, modelam a distribui çã o do poder, a
2 vol . , 1977 e 1984; Hermann Korte , Uber Norbert Elias, Das Werden eines Menschenwissens- organiza ção da sociedade, a economia da personalidade. Pensado
chaftlers, Francfort-sur-le-Main , Suhrkamp, 1988; Stephen Mennell , Norbert Elias: Civili-
zation and the Human Self- Image, Oxford , Basil Blackwell , 1989 , e Roger Chartier, “ For- t ( e se pensando como um demiurgo ) , o artista , o fil ósofo ou o cien-
mation sociale et économie psychique: la socié té de cour dans le procès de civilisation ” , tista inventa , no entanto, na imposição. Imposi ção em relação às
Prefácio a Norbert Elias , La Société de cour, Paris , Flammarion , 1985 , p. i-xxviii , e “ Consci- regras ( do patronato, do mecenato, do mercado, etc.) que definem
ence de soi et lien social ” , Avant-propos à Norbert Elias , La Socié té des individus, Paris ,
Fayard, 1991 , p . 7-29. sua condição. Imposição mais fundamental ainda em relação às de-

92
93
(ermina ções ignoradas que habitam cada obra e que fazem com que cada vez mais o lugar a lutas que tê m por armas e por fundamentos
as representações. De outro lado, é do crédito concedido ( ou recu-
ela seja concebível , transmissível , compreensível . O que toda histó-
ria deve pensar é , pois, indissociavelmente , a diferença através da qual sado ) às representações que propõem de si mesmos que depende a
todas as sociedades separaram , do cotidiano, em figuras variáveis, um autoridade de um poder ou o poderio de um grupo. No terreno das
representações do poder com Louis Marin, no da construção das
20
dom ínio particular da atividade humana , e as dependências que ins-
crevem de m ú ltiplas maneiras, a inven ção esté tica e intelectual em identidades sociais ou culturais com Bronislaw Geremek 21 e Carlo
suas condi ções de possibilidade. Ginzburg,22 definiu-se assim uma histó ria das modalidades do fazer-
crer e das formas da cren ça , que é antes de tudo uma histó ria das
rela ções simbólicas de força , uma histó ria da aceitaçã o ou da rejei-
LUTAS DE REPRESENTAÇÕ ES E VIOL Ê NCIAS SIMBÓ LICAS çã o pelos dominados dos princ í pios inculcados , das identidades
impostas que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento.
£

Assim firmemente apoiada nas ciê ncias sociais, a histó ria n ão Essa questã o encontra-se, por exemplo, no centro de uma his-
pode , no entanto, evitar um outro desafio: superar o confronto, a tó ria das mulheres que dá amplo espaço aos dispositivos da violê n -
termo esté ril , entre o estudo das posi ções e das rela çõ es de um lado cia simbólica que, como escreve Pierre Bourdieu , “ só tem êxito na
e a an á lise das ações e das interações de outro. Superar essa oposi- medida em que aquele que a sofre contribui para sua eficá cia ; que
ção entre “ física social ” e “ fenomenologia social ” exige a constru ção ela só o força na medida em que ele está predisposto por uma apren -
de novos espaços de pesquisa em que a defini ção mesma das ques- dizagem prévia a reconhecê-laP Duradouramente , a construçã o da
tões obrigue a inscrever os pensamentos claros, as inten ções indivi- identidade feminina enra íza-se na interiorização, pelas mulheres, de
duais, as vontades particulares nos sistemas de restri ções coletivas que normas enunciadas pelos discursos masculinos. Um objeto maior da
as tornam possíveis e, ao mesmo tempo , as freiam. histó ria das mulheres é, pois, o estudo dos dispositivos, desenvolvi-
Tal abordagem , cujo primeiro traço é atingir as fronteiras ca- dos sob m ú ltiplos registros, que garantem ( ou devem garantir ) que
n ó nicas, lembra que as produções intelectuais e esté ticas, as repre- as mulheres consintam nas representações dominantes da diferen-
sentações mentais, as pr á ticas sociais são sempre governadas por ça entre os sexos: a inferioridade jur ídica , a inculca ção escolar dos
mecanismos e depend ê ncias desconhecidos pelos próprios sujeitos. papé is sexuais, a divisão das tarefas e dos espaços, a exclusão da es-
É a partir dessa perspectiva que se deve compreender a releitura his- fera pú blica, etc. Longe de afastar do real e de indicar apenas as fi-
tó rica dos cl ássicos das ciê ncias sociais ( Elias, mas també m Weber, guras do imagin á rio masculino, as representações da inferioridade
Durkheim , Mauss, Halbwachs ) e a importâ ncia reconquistada , em feminina , incansavelmente repetidas e mostradas , inscrevem-se nos
detrimento das noções habituais à histó ria das mentalidades , de um
conceito como o de representação. 20
Louis Marin , Le Portrait du roi, Paris, Editions de Minuit , 1981 , e Des pouvoirs de l'image.
Numerosos foram os trabalhos de história que manipularam Gloses, Paris, Editions du Seuil , 1993.
21
Bronislaw Geremek , Inutiles au monde. Truands et misérables dans l'Europe moderne ( 1350-
recentemente a noção de representação. Há duas razõ es para isso. 1600 ), Paris, Gallimard /Julliard, 1980, e La Potence ou la Pitié. L'Europe et les pauvres du
De um lado , o recuo da viol ê ncia , que caracteriza as sociedades oci- Moyen Age à nos jours, Paris, Gallimard , 1987.
dentais entre a Idade Média e o século XVIII e que decorre da con- .
“ Carlo Ginzburg, I Benandanti Stregoneria e culli agrari Ira Cinquecento e Seicento , Turim ,

Einaudi , 1966 ( tradução francesa Les Batailles nocturnes. Sorcellerie et rituels agraires aux XVI'
fiscação ( ao menos tendencial ) do monopólio sobre o emprego le- etXVII' siècles, Paris, Flammarion , 1984 ).
gítimo da força pelo Estado, faz com que os confrontos sociais fun- 2 ri -
Pierre Bourdieu , La Noblesse d 'Etat . Grandes écoles et esprit de corps, Paris, Editions de Mi
nuit, 1989, p. 10.
dados sobre os afrontamentos diretos, brutais, sangrentos, cedam
95
94
um ú nico e mesmo sexo” sucedem “ uma anatomia e uma fisiologia
pensamentos e nos corpos de ambos, delas e deles. Mas uma tal in- da incomensurabilidade ” .25 Inscrita nas prá ticas e nos fatos, organi-
corpora ção da dominação nã o exclui , longe disso, possíveis variações zando a realidade e o cotidiano, a diferen ça sexual é sempre cons-
c manipulações que , pela apropriaçã o feminina de modelos e de tru ída pelos discursos que a fundam e a legitimam. Mas estes se en-
normas masculinos, transformam em instrumento de resistê ncia e raízam em posições e interesses sociais que, no caso, devem garan-
em afirmaçã o de identidade as representações forjadas para garan- tir o assujeitamento de umas e a dominação dos outros. A histó ria
tir a depend ê ncia e a submissão. das mulheres, formulada nos termos de uma história das relações
Reconhecer assim os mecanismos, os limites e, sobretudo, os usos entre os sexos, ilustra bem o desafio maior lan çado hoje em dia aos
do consentimento é uma boa estratégia para corrigir o privilégio lon- historiadores: relacionar constru ção discursiva do social e constru-
gamente concedido pela história às “ vítimas ou rebeldes” , “ ativas ou ção social dos discursos.
atrizes de seu destino” , em detrimento “ das mulheres passivas, consi-
deradas com demasiada facilidade como aquiescentes à sua condição,
embora justamente a questão do consentimento seja totalmente cen- FICÇÃO E FALSIFICAÇÕ ES
tral no funcionamento de um sistema de poder, quer seja social ou / e
sexual.24 Nem todas as fissuras que fendem a dominação masculina Existe, enfim , um último desafio, que n ão é o menos tem ível.
assumem a forma de rupturas espetaculares nem se expressam sem- Da constata ção, totalmente fundada, segundo a qual toda histó ria ,
pre pela irrupção de um discurso de recusa e de rebeliã o. Elas nas- seja qual for, é sempre uma narrativa organizada a partir de figuras
cem freq úentemente dentro do pró prio consentimento, reutilizando e de fó rmulas que mobilizam també m as narrações imaginá rias, al-
a linguagem da dominação para fortalecer a insubmissão. guns conclu íram pela anulação de qualquer distin ção entre ficção
Definir a dominação imposta às mulheres como uma violê ncia e história, já que esta é, e apenas é uma fiction-making operation, se-
simbólica ajuda a compreender como a rela ção de dominaçã o, que gundo a expressão de Hayden White. A história n ão proporciona um
é uma relação histórica e culturalmente constru ída , é afirmada como conhecimento do real mais verdadeiro ( ou menos ) do que o faz um
uma diferen ça de natureza , irredutível, universal . O essencial n ão romance, e é totalmente ilusó rio querer classificar e hierarquizar as
é, portanto , opor termo a termo uma defini ção biológica e uma de- obras dos historiadores em fun ção de crité rios epistemológicos in-
finição histórica da oposição masculino / feminino, mas, antes, iden- dicando sua maior ou menor pertin ê ncia a dar conta da realidade
tificar os discursos que enunciam e representam como “ natural ” passada que é seu objeto: There has been a reluctance to consider histori-
( portanto , biol ógica ) a divisão social ( portanto, histó rica ) dos pa- cal narratives as what they most manifestly are: verbal fictions, the contents
péis e das fun ções. A leitura da variação entre o masculino e o femi- of which are as much invented as found and the forms of which have more
nino é, aliás, ela mesma historicamente datada , ligada ao apagamen- in common with their counterparts in literature than they have with those in
to das representações m édicas da similitude entre os sexos e à sua the science?* [ Houve uma reticê ncia a considerar as narrações histó-
substituição pelo indefinido inventá rio de suas diferen ças biológi- ricas como o que sã o manifestamente: ficções verbais cujos conte ú-
cas. Como constata Thomas Laqueur, a partir do final do século dos são tão inventados quanto descobertos e cujas formas tê m mais
XVIII , ao “ discurso dominante [que ] via nos corpos masculinos e
femininos versões hierarquicamente, verticalmente, ordenadas de
25
Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud, Cambridge, Mass.,
Harvard University Press, 1990, p.5-6 ( tradução francesa La Fabrique du sexe. Essai sur le
corps et le genre en Occident , Paris, Gallimard , 1992, p.38 ) .
21
Arlette Farge e Michelle Perrot, “ Au-del à du regard des hommes” , Le Monde des Dé- 2b
Hayden White , Tropics of Discourse, op. cit., p.82.
bats, n . 2 , novembro 1992, p.20 21 .
*

97
96
em comum com seus equivalentes literá rios do que científicos] . Os de sua disciplina , a ú nica que pode manter sua ambição a enunciar
ú nicos crité rios que permitem uma diferenciação dos discursos his- o que aconteceu , os historiadores escolheram diversos caminhos.
t ó ricos lhes vê m de suas propriedades formais: A semiological Alguns consagraram-se ao estudo do que tornou e ainda torna pos-
approach to the study of texts permit us [...] to shift hermeneutic interest from síveis a produção e a aceitação das falsificações em história. Como
the content of the texts being investigated to their formal properties11 [ Uma mostraram Anthony Grafton 29 e Julio Caro Baroja, as relações são
30

abordagem semiológica do estudo dos textos permite-nos [...] des- estreitas e rec íprocas entre as falsificações e a filologia , entre as re-
locar o interesse hermen ê utico do conte ú do dos textos que são ob- gras às quais devem se submeter os falsá rios e os progressos da cr íti-
jeto de an á lise para suas propriedades formais]. ca documental. Por essa razão, o trabalho dos historiadores sobre a
Contra uma tal abordagem , ou um tal shift , deve-se lembrar que falsificação, que cruza o dos historiadores das ciê ncias, ocupados com
a meta de conhecimento é constitutiva da pró pria intencionalida- a mand íbula de Moulin-Quignon ou com o crâ nio de Piltdown , é
de histó rica. Ela funda as operações espec íficas da disciplina: cons- uma maneira paradoxal , irónica , de reafirmar a capacidade da his-
tru ção e tratamento dos dados, produ ção de hipó teses, cr ítica e ve- tó ria para estabelecer um saber verdadeiro. Graças às suas técnicas
rificação dos resultados, validação da adequação entre o discurso de pró prias, a disciplina é apta a fazer com que se reconheçam as falsi-
saber e seu objeto. Mesmo que escreva em uma forma “ literá ria ” , o ficações como tais, portanto, a denunciar os falsá rios. E retornando
historiador n ão faz literatura, e isso, devido à sua dupla depend ê n- a seus desvios e suas perversões que a histó ria demonstra que o co-
cia. Depend ê ncia em relação ao arquivo, portanto em rela ção ao nhecimento que produz inscreve-se na ordem de um saber contro-
passado de que este é o traço. Como escreve Pierre Vidal-Naquet: l ável e verificável , logo, que está armada para resistir ao que Cario
Ginzburg designou como a “ máquina de guerra cé tica ” que recusa
O historiador escreve, e essa escrita n ão é nem neutra nem transparente.
Ela se modela sobre as formas literá rias, até mesmo sobre as figuras de
à histó ria toda possibilidade de dizer a realidade que foi e de sepa-
retó rica. [...] Que o historiador tenha perdido sua inocê ncia, que se deixe rar o verdadeiro do falso.31
tomar como objeto , que se tome ele mesmo como objeto, quem o la- Todavia , n ão é, ou n ão é mais possível pensar o saber histórico,
mentará? Resta que se o discurso histórico n ã o se ligasse , por meio de instalado na ordem do verdadeiro, nas categorias do “ paradigma
tantos intermediá rios quanto possível, ao que se chamará , na falta de algo
melhor, de real, estar íamos sempre no discurso, mas esse discurso dei-
galileano” , matemá tico e dedutivo. O caminho é então forçosamente
xaria de ser histó rico.28 estreito para quem pretende recusar, ao mesmo tempo, a redu çã o
da histó ria a uma atividade literá ria de simples curiosidade , livre e
Depend ê ncia, a seguir, em relação aos crité rios de cientificidade e aleató ria, e a definição de sua cientificidade a partir apenas do mo-
às operações técnicas pró prios a seu “ of ício” . Reconhecer suas varia- delo do conhecimento do mundo físico. Em um texto ao qual se deve
ções ( a histó ria de Braudel n ão é a de Michelet ) n ão implica, entre- sempre retornar, Michel de Certeau formulara essa tensã o funda-
tanto, concluir que essas restri ções e crité rios n ão existem e que as mental da histó ria. Ela é uma prá tica “ científica ” , produtora de co-
ú nicas exigê ncias que freiam a escritura de histó ria são as que go-
vernam també m a escritura de ficção. 29
Anthony Grafton , Forgers and Critics: Creativity and Duplicity in Western Scholarship, Prin-
ceton , Princeton University Press, 1990 ( tradução francesa Faussaires et critiques. Créati-
Comprometidos em definir o regime de cientificidade pró prio vit é et duplicité chez les érudits occidentaux, Paris, Les Belles Lettres, 1993 ) .
“ Julio Carlo Baroja , Las falsificaclones de la historia ( en relación com la de Espana ), Barcelo-
27
Hayden White , The Content of the Form, op. cit., p. 192-193. na , Seix Barrai , 1992 .
2Hpierre Vidal-Naquet , Les Assassins de la mémoire. Un Eichmann de papier et autres études sur 31
Carlo Ginzburg , “ Préface” à Lorenzo Valla , La Donation de Constantin, texto traduzido
le révisionnisme, Paris , Editions La Découverte , 1987 , p . 148-149. e comentado porJ .-B. Giard , Paris , Les Belles Lettres , 1993 , p . ix-xxi ( citação p.xi ) .

98 99
nhecimentos, mas uma prá tica cujas modalidades dependem das
varia ções de seus procedimentos técnicos, das restrições que lhe
impõem o lugar social e a instituição de saber onde é exercida , ou 4. Figuras retóricas
ainda , das regras que necessariamente comandam sua escritura. O
que pode igualmente ser enunciado ao inverso: a histó ria é um dis- e representações históricas
curso que coloca em ação constru ções, composições, figuras que são
aquelas de toda escritura narrativa , logo, també m da fá bula, mas que,
ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados “ científicos” , se
entendermos por isso “ a possibilidade de estabelecer um conjunto
de regras que permitem ‘controlar’ operações proporcionais à produ-
ção de objetos determinados” .32
O que Michel de Certeau convida-nos aqui a pensar é o pró-
prio da compreensão histórica. Em que condições pode-se conside-
rar coerentes, plausíveis, explicativas, as relações institu ídas entre ,
de um lado, os ind ícios , as sé ries ou os enunciados constru ídos pela
operaçã o historiográfica e, de outro, a realidade referencial que 1973: Hayden White publica Metahistory } Na Fran ça, o livro
pretendem “ representar ” adequadamente? A resposta n ão é fácil, passa despercebido. Ignorado, n ã o encontra seu lugar na discus-
mas é certo que o historiador tem a tarefa espec ífica de fornecer um são sobre a histó ria que iniciara , dois anos antes, com a obra pro-
conhecimento apropriado, controlado, dessa “ população de mortos vocante de Paul Veyne Comment on écrit Chistoirê e que será marca-
- personagem , mentalidades, preços” que são seu objeto. Abando- da pela publica çã o , em 1974, do ensaio de Michel de Certeau ,
nar essa inten ção de verdade , talvez desmesurada mas certamente “ L’ opé ration historique ” .3
fundadora , seria deixar o campo livre a todas as falsificações, a to- Um encontro fracassado, portanto. E um desconhecimento
dos os falsá rios que , por traírem o conhecimento, ferem a mem ó- muito danoso se lembrarmos das propostas avan çadas por Paul Vey-
ria. Cabe aos historiadores, fazendo seu ofício, ser vigilantes. ne. Ele recusava termo a termo as certezas que fundavam a cientifi-
cidade da história quantitativa e serial, tida então por uma verdadeira
“ revolução da consciê ncia historiográfica ” .4 Para Veyne , a histó ria
n ão pode ser separada das formas literá rias tradicionais; as explica-

1
As obras de Hayden White, citadas no corpo deste artigo, são Metahistory. The Historical Ima-
gination in Nineteenth-Century Europe, Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University
Press, 1973, Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore e Londres , The Johns
Hopkins University Press, 1978, e The Content of the Form. Narrative Discourse and Historical Re-
presentation, Baltimore e Londres , The Johns Hopkins University Press, 1987.
2
Paul Veyne , Comment on écrit l'histoire. Essai d’épistémologie, Paris, Editions du Seuil , 1971 .
3
Michel de Certeau , “ L’ opération historique ” , in Faire de l’histoire, sob a direção de Jac-
32
Michelde Certeau , “ L’ opération historiographique ” , em L’Ecriture de l’histoire, op. cit .,
*
ques Le Goff e Pierre Nora , Paris, Gallimard , 1974, 1.1, p . 3-41 .
4
p.63-120. François Furet, “ L’ histoire quantitative et la construction du fait historique” , Annales
E.S.C., 1971: p.63-75 .

100
101
ções que ela produz são apenas “ a maneira que a narrativa tem de ture of the historical imagination { ibid. ) [a estrutura profunda da ima-
se organizar em uma intriga compreensível ” 5 e, finalmente, ela n ão ginação histó rica ] que comanda as possíveis combinações entre os
pode servir sen ão a fins de simples curiosidade. diferentes modos de mise en intrigue ou emplotment ( romanesca , trá-
A ré plica mais viva veio de Michel de Certeau , primeiramente gica , cómica, satírica ) , os diferentes paradigmas da explicação his-
em uma cr í tica nos Annales,6 e depois em um ensaio que parecia tó rica ( “ formista ” , mecanicista , organicista , contextualista ) e as di-
endossado pela comunidade “ annalista ” , pois Jacques Le Goff e ferentes posições ideol ógicas ( anarquista , radical , conservadora , li-
Pierre Nora publicaram-no como abertura de Faire de Vhistoire. O tex- beral ) . Os diversos tipos de associação entre esses doze elementos
to foi retomado no ano seguinte, em sua versão completa , na cole- ( ou seja, em teoria , sessenta e quatro possibilidades l ógicas, mas
tâ nea de artigos de Michel de Certeau intitulada L’Ecriture de l’histoire.' menos, na realidade, pois certas ligações são impossíveis ) definem
Como Veyne, de Certeau salienta que toda escritura histórica , seja estilos historiográficos coerentes, reunindo uma percepção esté ti-
qual for sua forma , é uma narrativa que constrói seu discurso de acor- ca , uma operação cognitiva e um engajamento ideológico. O obje-
do com processos de “ narrativização” que reorganizam e reordenam to fundamental da “ poé tica da histó ria ” é, pois, identificar as “ estru-
as operações da pesquisa. Mas, distanciando-se de Veyne , ele sugere turas profundas” que são as matrizes dessas associações.
um duplo deslocamento. O que determina as escolhas dos historia-
dores ( no recorte dos objetos, na preferê ncia dada a uma forma de
trabalho, na elei ção de um modo de escritura ) é muito mais o lugar DETERMINISMO LING ÜÎST1CO E EIBERDADE DO SUJEITO
que eles ocupam na “ instituição de saber ” do que o prazer de sua
Para Hayden White , as estruturas profundas devem ser locali-
subjetividade. O que d á coerê ncia ao seu discurso n ã o é , ou n ão so-
zadas nas prefiguraçõ es ling ü isticas e poé ticas do pró prio campo
mente, o respeito às regras próprias aos gê neros literá rios que eles
histó rico, isto é, na maneira como o historiador both creates his object
empregam , mas as prá ticas específicas determinadas pelas técnicas
of analysis and predetermines the modality of the conceptual strategies he will
de sua disciplina.
use to explain it ( Metahistory, p.31 ) [ cria simultaneamente seu objeto
Por que lembrar aqui essa discussão? Talvez para mostrar o que
de an álise e predetermina a modalidade das estratégias conceituais
poderia lhe ter trazido o conhecimento da obra de Hayden White
que utilizará para dar conta dele ] . As quatro modalidades principais
que, de uma outra maneira , aprofundava seus termos. Com efeito,
dessa prefiguração sã o designadas e descritas pelos quatro tropos
a proposta de Metahistory n ão é, ou n ã o unicamente, a descrição das
clássicos da linguagem poé tica: a metáfora , a meton ímia, a sin édo-
formalidades discursivas da histó ria - mesmo que esta, assim como
que e, com um estatuto particular, “ metatropol ógico” , a ironia. O
em Veyne e em de Certeau , seja definida como a a verbal structure in
porqu ê da afirmaçã o: In short, it is my vieiu that the dominant tropologi-
the form of a narrative prose discourse ( Metahistory, p.IX ) [ uma estrutu-
cal mode and its attendant linguistic protocol comprise the irreducibly “ me-
ra verbal na forma de um discurso narrativo em prosa ] . A ambição
tahistorical” basis of every historical work ( Metahistory, p.XI ) [ Em resu-
tem maior amplitude, já que se trata de compreender the deep struc-
mo, penso que o modo tropológico dominante e o protocolo lin-
g ü istico que lhe é relacionado formam a irredutível base “ metahis-
5 Paul Veyne, Comment on écrit Vhistoire, op. cit ., p.111. tó rica ” de cada obra histó rica ] .
6
Michel de Certeau, “ Une é pisté mologie de transition : Paul Veyne” , AnnalesE.S.C., 1972, Buscando identificar essa metahistorical basis, o projeto de Me-
p.1317-1327.
7
Michel de Certeau , “ L’opé ration historiographique ” , in L'Ecriture de l'histoire, Paris, tahistory superava em muito as caracterizações que os historiadores
Gallimard , 1975, p. 63-120.

102 103
franceses propunham , na mesma é poca, da “ escritura histórica ” - portante das que submeteram a história a um linguistic turn. A consta-
isto é , na constru ção de Hayden White , do que diz respeito sobretu- tação é, aliás, compartilhada pelos adversá rios e pelos partidá rios de
do à mise en intrigue. Porém , já de in ício, sua proposta encerrava uma uma tal “ reviravolta ” . Dentre os primeiros, Gabrielle Spiegel observa:
ambigü idade. Como , de fato, compreender essas deep structural forms No one has been more forceful in articulating the implications of post-Saussu-
of the historical imagination { Metahistory, p. 31 ) ? O pró prio emprego rean linguistics for the practice of history than Hayden Whit# [ Ningu é m
do termo deep structure leva naturalmente a pensar as prefigura ções enunciou mais vigorosamente as implicações da lingü istica pós-saus-
do discurso histórico de acordo com um estrito modelo lingü istico sureana para a prá tica da histó ria do que Hayden White ]; dentre os
e estruturalista , portanto, a considerar que elas regulam automá ti- segundos, David Harlan reconhece a Hayden White o mé rito por sua
ca e impessoalmente as preferê ncias historiográficas. Hayden Whi- acute sensitivity to the ways in which languege both constitutes and dissolves
te incitava a essa interpretação de seu pensamento, manipulando as the subject’ [sua aguda sensibilidade à maneira como a linguagem si-
oposições, caras à lingü istica estrutural , entre a superf ície e a pro- multaneamente constrói e dissolve o sujeito].
fundidade , entre o manifesto e o impl ícito, entre a linguagem e Retornemos, poré m , ao prefá cio de Metahistory. O vocabulá rio
o pensamento. E com tais categorias que ele define seu procedimen- empregado n ã o é apenas o do estruturalismo, ling ü istico ou n ão

to: I have tried first to identify the manifest epistemological, aesthetic, and
moral - dimensions of the historical ivork and then to penetrate to the deeper
{ deep structure, understructure, deeper level) . Ele coloca em jogo um re-
pertó rio que vem de uma direção bem diferente: historical conscious-
level on which these theoretical operations found their implicit , precritical ness é utilizado quatro vezes, choice ou to choose, três vezes. Os histori-
sanctions ( Metahistory, p.XI ) [ Tentei primeiramente identificar as di- adores parecem entã o decidir livremente , conscientemente ( ou ,
mensões manifestas - epistemológica, esté tica ou moral - do traba- segundo uma fó rmula menos afirmativa, more or less self-consciously ) ,
lho histó rico; depois, penetrar no n ível mais profundo onde essas sua preferê ncia por um ou outro dos estilos historiográficos reco-
opera ções teó ricas encontram sua valida ção impl ícita e pré-crítica ]. nhecidos por Hayden White. As prefigurações tropol ógicas são as-
E é com elas que ele designa a força impositiva da linguagem , enun- sim constitu ídas em um conjunto de formas poss íveis entre as quais
ciando assim the essential point de sua demonstraçã o: that , in any field, o historiador pode escolher em fun ção de suas inclinações morais
of study not yet reduced ( or elevated ) to the status of a genuine science, ou ideológicas. Hayden White ilustra por meio de sua pró pria deci-
thought remains the captive of the linguistic mode in which it seeks to grasp são essa realidade da livre escolha: It may not go unnoticed that this book
the outline of objects inhabiting its field of perception ( ibid . ) [ em todos os is itself cast in an Ironic mode. But the Irony which informs it is a conscious
campos de saber ainda n ão reduzidos ( ou elevados ) ao estatuto de one, and it therefore represents a turning of the Ironic consciousness against
uma ci ê ncia verdadeira , o pensamento permanece cativo do modo Irony itself { Metahistory , p.XII ) [Talvez n ão passe despercebido que
lingü istico pelo qual ele busca apreender as configura ções dos ob- este livro é ele pró prio moldado em um modo iró nico. Mas a Ironia
jetos presentes em seu campo de percepção ] . Pré-cr í ticas, pré-cog- que o informa é totalmente consciente , ela representa, pois, um re-
nitivas, as matrizes tropológicas dos discursos histó ricos podem ser torno da consci ê ncia iró nica contra a pró pria Ironia ].
assim interpretadas como estruturas impostas, desconhecidas, co- A contradiçã o latente entre as duas perspectivas n ã o escapou
mandando as “ escolhas” dos historiadores independentemente de
sua vontade e de sua consciê ncia. 8
Gabrielle M. Spiegel. “ History, Historicism , and the Social Logic of the Text in the
Foi exatamente desse modo que , na maioria das vezes, foi com- Middle Ages ” , Speculum. A Journal of Medieval History, 65, janeiro 1990, p.64.
preendida a obra de Hayden White, tida por muitos como a mais im- 9
David Harlan , “ Intellectual History and the Return of Literature ” , American Historical
Review, 94, junho 1989, p.593.

104 105
aos comentaristas - em particular, àqueles que se encontram entre que uma revolu ção copernicana ocorra, os estudos históricos per-
os mais fervorosos defensores da aplicação do modelo lingü istico à manecerão um campo de pesquisa no qual a escolha de um m é to-
história. Hans Kellner caracteriza-a assim: If language is irreducible, a do para estudar o passado e de um modo de discurso para escrever
“ sacred ” beginning, then human freedom is sacrificed. If men are free to choose a seu respeito continuará mais livre do que imposta ] . Ou, bem mais
their linguistic protocols, then some deeper, prior, force must be posited . Whi- adiante: Although it [tropology ] assumes that figuration cannot be avoided
te asserts as an existential paradox that men are free, and that language is in discourse, the theory, far from implying linguistic determinism, seeks to
irreducible [Se a linguagem é irredut ível , um começo “ sagrado ” , provide the knowledge necessary fora free choice among different strategies of
então a liberdade humana é sacrificada. Se os homens são livres para figuration13 [ Mesmo que a tropologia suponha que a figura çã o n ão
escolher seus protocolos lingü isticos, uma força mais profunda , an- pode ser evitada no discurso, a teoria , longe de implicar um deter-
terior, deve ser posta em princípio. White sustenta como um para- minismo lingü istico, busca fornecer o saber necessá rio para uma li-
doxo existencial que os homens são livres, e que a linguagem é irre- vre escolha entre diferentes estratégias de figuração ] . Deslocada das
dutível ] . É esse mesmo dilema que formula David Harlan que , após elaborações filosóficas às preferê ncias tropol ógicas, a liberdade do
ter reconhecido a sensibilidade de White à maneira como a lingua- sujeito que pensa e escreve, tã o cara à histó ria intelectual cl ássica , é
gem , conjuntamente, constitui e dissolve o sujeito, lembra on the other assim totalmente salvaguardada.
hand, [ his ] deep commitment to liberal humanism, to the human subject and Resta, no entanto, o problema da compatibilidade entre essa
epistemological freedom}' [ por outro lado , seu profundo engajamento posi ção e a adoção de uma teoria da linguagem , extra ída da lingúís-
liberal e humanista a favor do sujeito humano e da liberdade epis- tica estrutural , que repousa sobre dois postulados: por um lado, de
temológica ] - o que o leva a aproximar de modo um tanto surpre- que existe um código prévio a todo enunciado , uma “ l íngua ” ante-
endente Hayden White e J. G. A. Pocock. 1 rior a qualquer “ fala ” ( language [... ] is itself in the world as one “ thing”
Em um artigo recente, destinado a responder às objeções levan- among others and is already freighted with figurative, tropological, and ge-
tadas contra sua teoria tropol ógica do discurso histó rico, Hayden neric contents before it is actualized in any given utterance [a linguagem
White retorna a essa possível tensão. O essencial , para ele , é marcar [...] está ela pró pria no mundo como uma “ coisa ” entre outras e já
distância em relação a qualquer determinismo lingü istico, seja ele está carregada de conte ú dos figurativos, tropológicos e gen é ricos
qual for. Contra suas cr íticas - mas também , talvez , contra alguns de antes de ser atualizada em qualquer enunciado ] ) ; por outro lado,
seus adeptos excessivamente zelosos - ele reafirma que a escolha de que toda linguagem opera sempre independentemente daque-
entre uma ou outra das estratégias argumentativas e discursivas é uma les que a empregam , fora de seu controle ou de sua vontade, e pro-
escolha feita com total liberdade e consciê ncia: Until [... ] a Copemi- duz significa ções imprevistas e instáveis ( historical discourse [... ] like
cian Revolution occurs, historical studies will remain a field of inquiry in metaphoric speech, symbolic language, and allegorical representation, alioays
which the choice of a method for investigating the past and a mode of dis- means more than it literally says, says something other than what it seems to
course for writing about it will remain free, rather than constrained [Até
12
mean, and reveals something about the world only at the cost of concealing
something elsd 4 [o discurso histó rico [...] , assim como o enunciado
10
Hans Kellner, “ A Bedrock of Order: Hayden White’s Linguistic Humanism ” , History metafó rico, a linguagem simbólica e a representação alegó rica, sig-
and Theory, 19 , 1980 , p. 23.
11
David Harlan , “ Intellectual History and the Return of Literature ” , op. cit ., p. 593.
nifica sempre mais do que diz literalmente, diz algo diferente do que
12
Hayden White, “ ’ Figuring the Nature of the Times Deceased ’ : Literary Theory and
Historical Writing” , in The Future of Literary Theory , sob a direção de R . Cohen , New York Ibid., p. 34.
e Londres , p. 28 , 1990 . M
Ibid., p. 23-25.

106 107
parece significar, e revela algo sobre o mundo somente mascaran- seu campo de validade apenas a essa tradição cultural ocidental ) . Essa
do alguma outra coisa ]. perspectiva é explicitamente formalista ( My method, in short, is formalist,
Razão de nossa primeira questão: é possível articular, sem gra- Metahistory, p.3) , postulando a existê ncia de estruturas mentais invari-
ve contradição, a lingü istica pós-saussureana e a liberdade do histo- antes que podem ser identificadas nas obras, independentemente de
riador como criador literá rio? sua é poca e meio de produção ( uma vez que foi definido o espaço cul-
tural a que pertencem ) . Nesse sentido, a constituição tropol ógica da
imaginação histórica e, mais geralmente, de todas as operações de fi-
O ESTATUTO DA RETÓ RICA guração é totalmente dissociada das formas históricas da retórica, en-
tendida como arte do discurso e da persuasão.
A segunda questão concerne à tropologia como teoria do dis- Entretanto, o pró prio Hayden White n ão pode evitar a ques-
curso. Em vá rias ocasiões , Hayden White indicou as duas origens: tão da relação entre o emprego do modelo tropológico por um au-
de um lado, Vico; do outro, Nietzsche. Sua proposta n ão é, portan- tor particular e o lugar ocupado pela retórica em sua formação in-
to, descrever ou manipular as regras da retó rica clássica - e são, pa- telectual ou a configuração de saber em que se insere. Assim , acer-
rece-me , processos erró neos que o recriminam de tê-la simplifica- ca de Freud e da teoria do sonho:
do ou traído. O que lhe importa é outra coisa: identificar as estrutu-
ras fundamentais a partir das quais podem ser produzidos todos os I am interested here, obviously, in the mechanisms which Freud identifies as
discursos figurativos possíveis, ou seja , os quatro tropos da retó rica effecting the mediations between the manifest dream contents and the latent dream
clássica e neoclássica. thoughts. These seem to correspond , as Jakobson has suggested , to the tropes
systematized, as the classes of figuration in modem rhetorical theory ( a theory with
No prefácio a Tropics of Discourse, Hayden White delimita a á rea which, incidentally, insofar as it classifies figures into the four tropes of metaphor,
de pertin ê ncia deste pattern of tropologicalpré figuration [ modelo de pre- metonymy, synecdoche, and irony, Freud would have been acquainted as a
figuração tropológica ]: I claim for it only the force of a convention in the component of the educational cursus of gymnasia and colleges of his time ) ( Tropics
discourse about consciousness and, secondarily, the discourse about discourse of Discourse, p.13-14 )
[ Estou interessado aqui, evidentemente, pelos mecanismos que Freud
itself, in the Western cultural tradition ( p.13) [ Reivindico para ele somente identifica como efetuando as media ções entre os conte ú dos manifestos
a força de uma conven ção no discurso a propósito da consciê ncia e, dos sonhos e os pensamentos latentes dos sonhos. Estes parecem corres-
secundariamente, no discurso a propósito do pró prio discurso, na tra- ponder, como Jakobson sugeriu , aos tropos sistematizados como catego-
dição cultural ocidental ] . Por isso, seus empregos recorrentes: em rias de figura ção na teoria retó rica moderna ( uma teoria da qual , entre
Vico, para caraterizar as etapas do processo que faz passar da selvage- parê nteses, Freud , na medida em que classifica as figuras entre os qua-
tro tropos que sã o a metáfora , a meton ímia, a sin édoque e a ironia , pôde
ria à civilização; em Piaget, para qualificar os quatro momentos do tomar conhecimento, já que ela constitu ía um componente do currícu-
desenvolvimento cognitivo; em Freud, para designar os quatro meca- lo dos gymnasium e escolas secund á rias de seu tempo ) ].
nismos em andamento no trabalho do sonho. Hayden White trans-
forma, pois, em uma matéria gen é rica da produção dos discursos, Essa observação, colocada entre parê nteses, parece-me refletir
portanto dos modos de compreensão, um conjunto de categorias tra- uma certa indecisão. Com efeito, ou a estrutura tropol ógica é ine-
dicionalmente restritas à descri ção das figuras de estilo. rente à imaginação do homem ocidental - e então pouco importa
Tal deslocamento sugere que os quatro tropos fundamentais ( me- que Freud tenha ou não se familiarizado com a retórica clássica em
táfora, meton ímia, sin édoque e ironia ) devem ser compreendidos como sua educação -, ou o fato é pertinente para compreender como
categorias a priori do entendimento ocidental ( visto que Hayden limita Freud desloca um modelo de compreensão de um dom ínio ( o dis-

108 109
curso ) a um outro ( o sonho ) - e então a pertin ê ncia da caracteriza- cidade para escolher entre o verdadeiro e o falso, para dizer o que
ção tropológica depende muito das variações do estatuto e da im- foi, para denunciar as falsificações e os falsá rios.
portâ ncia da retó rica nas configura ções histó ricas sucessivas que São numerosas as citações na obra de White que podem confir-
constituem a “ tradição ocidental ” . Dessas duas perspectivas, Hayden mar uma tal leitura. Para ele, a história tal como escrita pelo historia-
parece claramente preferir a primeira. No entanto, a observa ção dor n ão depende nem da realidade do passado, nem das operações
sobre a formação escolar de Freud soa como uma d ú vida , que rein- próprias à disciplina. A escolha que ele faz de uma matriz tropológica,
troduz a contextualização histó rica em uma sistemá tica que visa a de uma modalidade de mise en intrigue, de uma estratégia explicativa é
identificar estruturas gen é ricas. totalmente semelhante àquela do romancista. A posição é reafirmada
O porqu ê desta segunda questão: é legítimo aplicar o modelo com força: One must face thefact that when it comes to apprehending the histo-
tropológico da prefiguraçã o poé tica e lingúísdca sem levar em con- rical record, there are no grounds to befound in the historical record itself for pre-
ta o lugar, muito diferente conforme as situações históricas, da retó- ferring one way of construing its meaning over another ( The Content of the Form,
n ça e sem medir a distâ ncia ou a proximidade dos atores em rela- p.75) [ Deve-se aceitar a evidê ncia segundo a qual quando se chega a
ção a essa modalidade de codificação do discurso que n ão foi nem apreender o documento histó rico, não há nenhuma razão no próprio
ú nica nem estável entre a Renascen ça e o século XX? documento para preferir uma maneira de interpretar sua significação
em detrimento de outra ]. E, portanto, totalmente ilusório querer clas-
sificar ou hierarquizar as obras dos historiadores ( e dos filósofos da his-
O SABER DA FICÇÃO tó ria ) em fun ção de sua menor ou maior pertin ê ncia a dar conta da
realidade passada que é seu objeto. Os ú nicos critérios de diferencia-
A crítica mais freq ü ente dirigida a Hayden White deve-se à sua
ção entre eles são puramente formais e internos ao discurso, quer se
recusa de atribuir à história o estatuto de um conhecimento que seria
devam à coerência e à completude da narrativa, quer demonstrem uma
de uma outra natureza que aquela trazida pela ficção. De Arnaldo
consciência aguda das diversas possibilidades oferecidas pelos mode-
Momigliano 15 a Cario Ginzburg, 16 de Gabrielle Spiegel 17 a Russell los tropológicos e narrativos concorrentes.
Jacoby,18 a constataçã o é a mesma: considerando a histó ria como a
Face a seus adversá rios, que denunciam tal posi ção como des-
form of fiction-making operation ( Tropics of Discourse, p.122 ) , Hayden truidora de todo saber, Hayden White responde que considerar a
White faz-se o arauto de um relativismo absoluto ( e muito perigo-
histó ria como uma ficção, como compartilhando com a literatura
so ) que denega toda possibilidade de estabelecer um saber “ cientí-
as mesmas estratégias e procedimentos, n ão significa retirar-lhe todo
fico” sobre o passado. Assim desarmada , a histó ria perde toda capa-
valor de conhecimento, mas simplesmente considerar que ela n ã o
tem regime de verdade pró pria . Com efeito, o mito e a literatura são
13
Arnaldo Momigliano, “ The Rhetoric of History and the History of Rhetoric: On Hay- formas de conhecimento: Does anyone seriously believe that myth and
den White ’s Tropes” , in Settimo contributo alla storia deglistudi classici del mondo antico, Roma,
Edizioni di Storia e Litteratura , 1984, p. 49-59 . literary fiction do not refer to the real world, tell truths about it, and provide
16
Carlo Ginzburg, “Just One Witness” , in Probing the Limits of Representation . Nazism and useful knowledge of it ?19 [ Quem poderia crer seriamente que o mito e
the “ FinalSolution ” , sob a direção de S. Friedlander, Cambridge ( Mass. ) e Londres , Har- a ficção literá ria n ã o se referem ao mundo real , dizem verdades a
vard University Press, 1992 , p . 82-96.
17
Gabrielle Spiegel , “ History, Historicism , and the Social Logic of the Text in the seu respeito, e d ão dele um conhecimento ú til? ] . Engendrada pela
Middle Ages” , op . cit . , p. 64, 69 e 75.
18
Russell Jacoby, “ A New Intellectual History” , American Historical Reviero, 97 , abril 1992 , I!)
Hayden White , “ Figuring the Nature of the Times Deceased ’ : Literary Theory and
pp . 405-424 ( sobre Hayden White , p.407-413 ) . Historical Writing” , op. cit . , p. 39.

110 111
mesma matriz, a narrativa histórica desenvolve o mesmo tipo de co- objeto histó rico pode ser suscet ível de vá rias descrições ou narrações
nhecimento que as construções de ficção. Hayden White n ão é por- igualmente plausíveis, negam na verdade a realidade do referente, de-
tanto daqueles que opõem retó rica e verdade. fendem um relativismo destruidor que permite todas as manipula ções
20
dos dados desde que a narrativa produzida seja estruturalmente coeren-
Contudo, sua resposta n ão é satisfató ria. Como, de fato, pen- te e, conseq íientemente, autorizam o gê nero de perspectiva que permi-
sar a história sem quase nunca fazer referê ncia às operações próprias te até mesmo que uma versão nazista da história do nazismo reivindique
da disciplina: constru ção e tratamento dos dados, produ ção de hi- um m ínimo de credibilidade].
pó teses, verificação crítica dos resultados, valida ção da coer ê ncia e
da plausibilidade da interpretação? O que leva minha terceira ques- Como enunciar melhor a cr ítica maior feita à obra de Hayden Whi-
tã o a Hayden White: se a histó ria produz um conhecimento que é te? Em diversas ocasiões, ele tentou dar respostas a essa acusação de
id ê ntico àquele gerado pela ficçã o, nem mais nem menos, como “ relativismo” , que assume uma gravidade particular quando concer-
considerar ( e porque perpetuar ) essas operações tão pesadas e exi- ne aos fen ô menos histó ricos tais Como os crimes cometidos pelas
gentes que são a constituição de um corpus documental , o controle tiranias ou , mais ainda , pelo Holocausto.
dos dados e das hipó teses, a construção de uma interpretação ? Se A primeira resposta , já encontrada , consiste em ressaltar a ver-
realmente historical discourse resembles and indeed converges with fictio- dade da ficção. Considerar a narrativa histórica como a fiction-making
nal narrative, both in the strategies it uses to endow events with meanings operation n ão é reduzi-la a um mero jogo arbitrá rio e derrisório, mas,
and in the kind of truth in which it deals [o discurso histó rico asseme- ao contrá rio, considerá-la como capaz da força e da lucidez que são
21

lha-se à ficção narrativa, e até mesmo converge com ela , tanto pelas aquelas das mais poderosas obras de imaginaçã o. É assim que ele
estratégias que emprega para atribuir um sentido aos acontecimen- replica a Gene Bell-Villada , que sustentava que a ú nica reação do U.S.
tos quanto pelo tipo de verdade com o qual lida ] , se a realidade dos “ criticai establishment ” diante das ditaduras brutais da Am é rica latina
fatos tramados n ão importa à natureza do saber produzido , a “ ope- eram its wars on referentiality and its preachments that History is Fiction,
ração historiográflca ” n ão seria tempo e pena perdidos? Trope and Discourse2* [suas guerras quanto à referencialidade e suas
predicações enunciando que a Histó ria é Ficção, Tropo e Discurso ].
Fazendo alusão aos romancistas sul-americanos, White declara:
It is alleged that formalists ” such as myself , who hold that any historical object
can sustain a number of equally plausible description or narrative of its processes, Would he [Bell-Villada ] to say that their works do not teach us about real history
effectively deny the reality of the referent, promote a debilitating relativism that per- because they are fictions ? Or that being fictions about history, they are devoid of tro-
mits any manipulation of the evidence as long as the account produced is struc- pisms and discursivity ? Are their novels less true for being fictional! Could any his-
turally coherent, and thereby allow the kind of perspectivism that permits even a tory be as true as these novels without availing the kind of poetic tropes found in the
Nazi version of Nazism's history to claim a certain minimal credibility ( The Con- work of Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier, José Donoso and Julio Cortazarf 23
tent of the Form, p. 76 ) . [ Ele diria [ Bell-Villada ] que suas obras n ão nos ensinam nada acerca da
[ Pretende-se que os “ formalistas” tais como eu , que sustentam que cada histó ria real porque são ficções? Ou que , porque são ficções a respeito da
hist ória, sã o desprovidas de tropos e de discursividade? Seus romances são

Para a rejei ção da oposição entre retórica e prova , ver Carlo Ginzburg, Préface , Lo-
20 “ ”

renzo Valla , La Donation de Constantin ( Sur la Donation de Constantin, à lui faussement attri
-
22
Gene H . Bell-Villada. “ Criticism and the State ( Political and Otherwise ) of the Ameri-
buée et mensongère ), texto traduzido e comentado por J .-B . Giard , Paris, Les Belles Let- cas ” , in Criticism in the University: Triquarterly Series on Criticism and Culture, Evanston , 1985,
tres, 1993, p. IX-XXI . p. 143.
Hayden White , ‘“ Figuring the Nature of the Times Deceased : Literary Theory and
21 ’
23
Hayden White ‘“ Figuring the Nature of the Times Deceased ’ : Literary Theory and
Historical Writing” , op. cit . , p. 29 . Historical Writing” , op . cit .

112 113

; .
. « • T T'
j
menos verdadeiros porque são ficcionais? Que histó ria poderia ser tão into a story. Among these elements are those generic story patterns we recognize as
verdadeira quanto esses romances sem utilizar o gê nero de tropos poé- providing the “ plots” [... ]. Here the conflict between “ competing narratives ” has less
ticos encontrados nas obras de Mario Vargas Llosa , Alejo Carpentier, José to do with the facts of the matter in question than with the different story-meanings
Donoso e Julio Cortazar? ] . with which the facts can be endowed by emplotemenf 5
[ Evidentemente , consideradas como narrativas de acontecimentos já
Uma segunda resposta foi elaborada após a emergê ncia dos estabelecidos como fatos, as “ narrações concorrentes” podem ser avalia-
das, criticadas e classificadas segundo sua fidelidade aos dados factuais,
historiadores “ revisionistas” , mais justamente designados como “ ne- sua completude e a coerê ncia de sua argumenta ção, seja ela qual for. Mas
gacionistas” , os quais pretendem propor uma narrativa , um emplot- as narra ções n ão consistem unicamente em enunciados factuais ( propo-
ment , da histó ria do nazismo e da Segunda Guerra Mundial a partir sições existenciais singulares ) e argumentos: elas são igualmente com-
de alguns “ dados” , assim resumidos por Vidal-Naquet: 1. As câ ma- postas de elementos poé ticos e retó ricos graças aos quais o que seria ape-
nas uma lista de fatos é transformado em uma histó ria. Dentre esses ele-
ras de gás jamais existiram e n ão houve genocídio perpetrado pelos mentos / h á os modelos gen éricos que organizam as maneiras de contar
alem ães. 2. A “ solução final ” consistia apenas na expulsão dosjudeus as histó rias e que identificamos como fornecendo as “ intrigas” [... ] Nes-
em direção ao Leste europeu. 3. O n ú mero das vítimas judias do se sentido, o conflito entre “ narra ções concorrentes” tem menos a ver
nazismo é muito menor do que se disse. 4. O genocídio é uma in- com os fatos relativos ao assunto tratado do que com as diferentes signi-
ficações atribu ídas a esses fatos pela mise en intrigue] .
ven ção da propaganda aliada , principalmente judaica , e muito par-
ticularmente sionista. 5. A Alemanha hitlerista n ão tem a responsa- Tal distin ção levanta, parece-me, duas questões. Por um lado, ela
bilidade maior da Segunda Guerra. 6. Nos anos 1930 e 1940, a amea- reintroduz uma concepção bem tradicional do fato histó rico, atesta-
ça principal contra a humanidade era constitu ída pelo regime sovi- do, certo, identificável. Assim , por exemplo, a existência das câ maras
é tico.24 Podendo ser separados e associados em formas e proporções de gás. O problema, aqui , é o da compatibilidade entre essa proposta
variáveis, esses elementos fornecem os fundamentos de uma reescri- e a perspectiva global de Hayden White. Como articular essa evid ê n-
tura radical da histó ria contemporâ nea. Pode-se considerá-la como cia do fato com a frase de Barthes, utilizada como epígrafe de The Con-
plausível , aceitável? E se n ão fosse o caso, por qu ê? tent of the Form: “ O fato n ão tem jamais senão uma existê ncia lingii ísti-
Para poder recusá-la sem abandonar os princípios que coman- ca ” ? E sobre que bases, a partir de que operações, com quais técnicas,
dam toda sua obra , Hayden White é levado a avan çar uma distin çã o o historiador pode estabelecer a realidade do fato ou verificar que um
que considero um tanto problem á tica. Evocando as competing narra- discurso histórico é fiel ou não ao factual record? Deve-se convir que,
tives propostas sobre o regime nazista e o exterm ínio dosjudeus e ignorando sistematicamente os procedimentos pró prios da história,
dos ciganos, ele observa: entendida como uma disciplina de saber, Hayden White encontra-se
Obviously, considered as accounts of events already established as facts, “ competing
muito desprovido para responder a tais questões.
narratives ” can be assessed, criticized, and ranked on the basis of their fidelity to the Por outro lado, restringindo a defini ção dos “ fatos” enunciáveis
factual record, their comprehensiveness, and the coherence of whatever arguments pelo historiador apenas às singular existential propositions, Hayden White
'

they may contain. But narrative accounts do not consist only of factual statements limita estritamente o dom ínio onde a histó ria pode funcionar segun-
( singular existential propositions ) and arguments: they consist as well ofpoetic and
rhetorical elements by which what would otherwise be a list of facts is transformed
do a oposição entre o verdadeiro e o falso. Não se vê, portanto, a par -
tir de que crité rios pode ser operada uma discriminação entre diver -
24Pierre Vidal-Naquet , Les Assassins de la mémoire. Un “ Eichmann de papier” et autres essais Hayden White, “ Historical Emplotment and the Problems of Truth ” , in Probing the Li
23
-
sur le révisionnisme, Paris, Editions La Découverte , 1987, p.33-34. .
mits of Representation , op. cit , p.38.

114 lift
sas narrativas históricas que constroem sua intriga utilizando apenas
“ fatos” reconhecidos. No entanto, nem todas são equivalentes: nem
quanto à sua modalidade discursiva, nem quanto à sua coerê ncia in-
terna, tampouco quanto à sua pertin ê ncia e sua exadd ão para dar con- SEGUNDA PARTE
ta da realidade referencial que pretendem representar. Estabelecer a
verdade referencial dos discursos históricos n ão é tarefa fácil, mas
considerar a tentativa como vã e in ú til é anular toda possibilidade de
Leituras
atribuir uma qualquer especificidade à histó ria, já que n ão lhe são
pró prias nem suas prefigurações tropológicas, nem suas modalidades
narrativas, nem mesmo o fato de que seu discurso é sobre o passado.26
Essa observação leva-me a uma questão final ( a quarta, como deve
ser diante de uma obra tão profundamente ligada ao princípio de uma
fourfold analysis ) . Ela retorna à Metahistory. Sem nenhuma d ú vida, o
livro liberou a historiografia dos limites severos na qual a continha uma
abordagem clássica totalmente insensível às modalidades e às figuras
do discurso. Por isso, deve ser louvado e reconhecido. No entanto, é
possível , e desejável intelectualmente , aderir a uma semiological
approach to the study of texts [ which ] permits us to moot the question's of the
text 5 reliability as witness to events or phenomena extrinsic to it, to pass over
the question of the text 's “ honesty ", its objectivity ( The Content of the Form,
p.192 ) [ uma abordagem semiológica do estudo dos textos [que ] per-
mite questionar a seguran ça do texto como testemunho de aconteci-
mentos ou de fen ômenos que lhe são externos, negligenciar a ques-
tão da “ honestidade” do texto, de sua objetividade ] ? Fazer a história
da histó ria n ão seria compreender como, em cada configuração his-
tó rica dada , os historiadores colocam em ação técnicas de pesquisa e
procedimentos cr íticos que justamente dã o a seus discursos, de ma-
neira desigual , essa “ honestidade” e essa objetividade?

26
Ver, a respeito dos livros de J. Spence , The Question oj Hu, New York , Alfred A. Knopf ,
1988, e S. Schama , Dead Certainties ( Unwarranted Speculations ), Londres, Grant’s Books,
1991, que , de maneira diversa, jogam com a fronteira entre histó ria e ficçã o; os artigos
de B. Mazlish , “ The Question of The Question ofHu ” e C. Strout, “ Border Crossing: His -
tory, Fiction , and Dead Certainties'” , History and Theory, 31, 1992, p.143-152 e 152-162. Para
suas traduções francesas, cf. Jonathan D. Spence , Le Chinois de Charenton. De Canton à
Paris au XVIIle siècle, Paris, Plon , 1990, e Simon Schama, Certitudes meurtrières, accompag-
nées de quelques spéculations, Paris, Seuil , 1996.

116
Introdução

Os quatro ensaios reunidos nesta segunda parte resgatam um


gênero clássico: o do diálogo com os mortos. Para os historiadores de
minha geração, e para muitos outros, a leitura das obras de Michel
Foucault, Michel de Certeau e Louis Marin foi uma fonte de inspira-
ção maior. Para alé m das diferen ças que os separam ou que os opõem ,
elas designam uma questão fundamental: como pensar as relações que
mantê m as produ ções discursivas e as prá ticas sociais?
Contra as formulações abruptas da “ reviravolta ling ü istica” , que
consideram que existem apenas jogos de linguagem e que n ã o h á
realidade fora dos discursos, a distin çã o proposta e trabalhada por
Foucault, de Certeau e Marin indica um outro caminho. Com eles,
trata-se de articular a constru ção discursiva do mundo social à cons-
tru ção social dos discursos ou , em outras palavras , de inscrever a
compreensão dos diversos enunciados que modelam as realidades
no seio das restrições objetivas que limitam e tornam possível , ao
mesmo tempo, sua enunciação. Para eles, a “ ordem do discurso ” ,
segundo a expressã o de Foucault, é dotada de eficácia: ela instaura
divisões e dominações, é o instrumento da violê ncia simbólica e , por
sua força ilocutó ria , pode fazer advir o que designa. Mas essa ordem
n ã o deixa de ter limites e restrições. Os recursos que os discursos
podem pôr em a ção, os lugares de seu exercício, as regras que os

119
limitam sã o histórica e socialmente diferenciados. De onde , a ê nfa- encontraram seus fundamentos e inspiração mais seguros na leitu-
se dada aos sistemas de representações, às categorias intelectuais, às ra desses três autores que atuaram como historiadores a partir de
formas retó ricas que, de maneiras diversas e desiguais, determinam saberes e de questões que ultrapassam em muito os limites clássicos
a potê ncia ( ou impotê ncia ) discursiva pró pria a cada comunidade. da disciplina.
Uma outra lição dada pelos três autores que reunimos aqui é
alertar contra uma apreciação demasiado simples dos mecanismos
da domina çã o. Cada um deles, a seu modo e em seu vocabulá rio
pró prio, salienta a distâ ncia que existe entre os mecanismos que vi-
sam a controlar e a assujeitar e , de outro lado, as resistê ncias ou in-
submissões daqueles - e daquelas - que são seu alvo. A tensão entre
dispositivos de imposição e ilegalismos em Foucault , a oposição en-
tre estratégia e tá tica em de Certeau , a distâ ncia entre as modalida-
des do “ fazer crer ” e as formas da cren ça em Marin são formula ções
dessa distância. Elas indicam que a força dos instrumentos postos em
a ção para impor uma disciplina , uma ordem ou uma representaçã o
( do poder, do outro ou de si mesmo ) deve sempre compor com as
rejeições, os desvios e os artif ícios daqueles e daquelas que eles pre-
tendem submeter.
A din â mica que liga assim sujei ção obrigató ria e identidade
preservada, consentimento e resistê ncia , transformou profundamen-
te a compreensã o das relações de poder, a das formas da domina-
ção colonial ou a das relações entre os sexos. Ela definiu igualmen-
te uma nova maneira de pensar a significação dos discursos, sempre
situada entre as diversas estratégias ( autorais, editoriais, cr í ticas, es-
colares ) que tentam fixar e impor seu sentido, e as apropriações plu-
rais, m óveis, dos leitores que os investem de usos e de compreensões
que lhes são particulares. Entre as imposições transgredidas e as li-
berdades limitadas, Foucault, de Certeau e Marin traçam um cami-
nho seguido por muitos depois deles, em particular por uma histó-
ria ( ou por uma sociologia ) cultural que , liberada das definições tra-
dicionais da histó ria das mentalidades, tornou-se mais atenta às
modalidades de apropriação do que às distribuições estat ísticas , aos
processos de constru ção do sentido do que à desigual circulação dos
objetos e das obras , à articula ção entre prá ticas e representa ções do
que ao inventá rio das aparelhagens mentais. Esses deslocamentos

120 121
5. UA quimera da origem ” .
Foucault, o Iluminismo
e a Revolução Francesa

A obra de Foucault n ão se deixa submeter facilmente às opera-


ções implicadas pelo comentá rio. Um tal projeto supõe, com efei-
to , que um certo n ú mero de textos ( livros, artigos, conferê ncias,
entrevistas, etc. ) seja considerado como formando uma “ obra ” , que
essa obra possa ser atribu ída a um “ autor” cujo nome pró prio ( “ Fou-
cault ” ) remeta a um indivíduo particular, dotado de uma biografia
singular e que , a partir da leitura desse texto primeiro ( a “ obra de
Foucault” ) , seja legítimo produzir um outro discurso em forma de
comentá rio. Ora , após Foucault, essas três operações perderam a
evid ê ncia e o imediatismo que por muito tempo foram os seus na
“ história tradicional das id éias” .1
Foucault deles retirou , primeiramente, sua suposta universali-
dade, restituindo sua variabilidade. Assim , determinando as condi-
ções histó ricas espec íficas ( jurídicas e pol íticas ) que fazem emergir
o nome pró prio como categoria fundamental da classificaçã o das
obras - o que chama de “ fun ção-autor ” -, ele convida a uma inter-

1
Michel Foucault, “ Qu ’ est-ce qu ’ un auteur?” , Bulletin de la Société française de philosophie,
julho-setembro 1969, p.73-104; retomado em Dits et écrits, 1954- 1988, ediçã o estabeleci-
da sob a direção de Daniel Defert e Fran çois Ewald , com a colaboração de Jacques La-
grange, Paris, Gallimard , 1994, 1.1, 1954- 1969, p.789-821, e L’Ordre du discours. Leçon inau-
gurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Paris, Gallimard , 1971.

123
o que delineia , mesmo a título de rascunho provisó rio, como o esboço
roga ção sobre as razões e os efeitos dessa operação: garantir a uni- da obra, e o que deixa de lado como declara ções cotidianas, todo esse
dade de uma obra relacionando-a a um ú nico n ú cleo de expressão; jogo de diferen ças é prescrito pela fun çã o-autor, tal como a recebe de
resolver as poss íveis contradições entre os textos de um mesmo “ au- sua é poca , ou tal como ele, por sua vez, a modifica . Com efeito, ele pode
tor ” , explicadas pelo desenrolar de uma trajetó ria biográfica ; esta- muito bem mexer com a imagem tradicional que se tem do autor ; é a
belecer, graças à mediação do indivíduo inscrito em seu tempo, uma partir de uma nova posiçã o do autor que ele recortará , em tudo que po-
deria ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo instante, o perfil
relação entre a obra e o mundo social. ainda tré mulo de sua obra.2
Por outro lado, todas as operações que designam e direcionam
as obras devem sempre ser consideradas como operações de seleção A incorporação pelo autor das categorias que dão conta das obras na
e de exclusão. “ Dentre os milh ões de traços deixados por algu é m ordem comum dos discursos é o que torna possível a articulação en-
após sua morte , como se pode definir uma obra? ” : responder à per- tre a escritura, compreendida como uma prá tica livre, abundante, alea-
gunta requer uma decisã o de divisão que distingue ( segundo crité- tória , e os procedimentos que visam a controlar, organizar e selecio-
rios que n ã o tê m nem estabilidade nem generalidade ) os textos que nar os textos. Entretanto, a comum aceitaçã o pelo interprete e pelo
constituem a “ obra ” e aqueles que dizem respeito a uma escritura autor das convenções que comandam o modo de atribuição e de clas-
ou a uma palavra “ sem qualidades” e que n ã o são portanto atribu í- sificação das obras n ão deve, no entanto, fazer com que sejam consi-
veis à “ fun ção-autor” . deradas neutras e universais.
Enfim , para Foucault, essas diferentes operações - delimitar A este primeiro desafio , Foucault acrescenta um outro. Todo
uma obra, atribu í-la a um autor, produzir um comentá rio sobre ela seu projeto de an álise cr ítica e histó rica dos discursos está , de fato ,
- n ão são neutras. Elas são sustentadas por uma mesma fun ção, de- baseado em uma recusa expl ícita dos conceitos classicamente ma-
finida como uma “ fun ção restritiva e impositiva ” que visa a contro- nipulados pela “ história tradicional das id éias” , que permanece o
lar os discursos classificando-os, ordenando-os e distribuindo-os. recurso mais imediatamente mobilizável para compreender e fazer
O primeiro e tem ível desafio lan çado por Foucault a seus leito- com que se compreenda um texto, uma obra , um autor. O postula-
res reside no seguinte: fazer vacilar, fissurar o que fundamenta, em do da unidade e da coerê ncia da obra , a ê nfase da originalidade cria-
nossa configuração de saber, a inteligibilidade e a interpretação de dora, a inscrição da significação no discurso: categorias contrats quais
toda obra ( inclusive da sua ) . E assim criada uma vertiginosa e ú nica deve ser constru ído um outro procedimento, atento, bem ao con-
tensão onde toda leitura de um texto de Foucault é sempre, ao mes- trá rio, às descontinuidades e às regularidades que restringem a pro-
mo tempo e necessariamente, questionamento dessa leitura e dos du çã o dos discursos. Compreender um conjunto de enunciados
conceitos usuais ( “ autor” , “ obra ” , “ comentário” ) que em nossa socie- supõe, portanto, para Foucault, recorrer a princípios de inteligibili-
dade governam a relação com os textos. Em uma observação de LOrdre dade que rejeitam as velhas noções - mal refiguradas nestes ú ltimos
du discours [A Ordem do Discurso] , onde, talvez, ele confessa algo de tempos - da histó ria das idéias.
si mesmo, Foucault n ão isenta o autor da submissão às categorias que A partir da í, surge uma dif ícil questão: em que condi ções é
caracterizam , em um momento histórico particular, o regime de pro- possível produzir uma leitura “ foucaultiana ” de Foucault, isto é, 1er
du ção dos discursos: suas obras, sua “ obra ” , a partir desta “ pequena varia ção” - como ele
Penso que - desde uma certa é poca pelo menos - o indiv íduo que se põe
a escrever um texto no horizonte do qual ronda uma obra possível reto-
ma por sua conta a fun çã o do autor: o que escreve e o que n ão escreve, 2
Michel Foucault, L’Ordre du discours, op. cil . p.31.

125
124
escreve ironicamente - que “ consiste em tratar, n ã o das representa- discursos ou de prá dcas. Quando sucumbe à “ quimera da origem ” ,
ções que podem existir por detrás dos discursos, mas dos discursos a histó ria carrega , sem ter clara consciê ncia disso, vá rios pressupos-
como sé ries regulares e descontínuas de acontecimentos” e que “ per- tos: de que cada momento histó rico é uma totalidade homogé nea,
mite introduzir na pró pria raiz do pensamento, o acaso, o descontí- dotada de uma significação ideal e ú nica presente em cada uma das
nuo e a materialidade ? Deve-se opor Foucault a Foucault e inscrever manifestações que a exprime; de que o devir histó rico é organizado
seu trabalho nas pró prias categorias que ele considerava impoten- como uma continuidade necessá ria; de que os fatos encadeiam-se e
tes para dar conta adequadamente dos discursos? Ou se deve sub- engendram-se em um fluxo ininterrupto, que permite decidir que
meter sua obra aos procedimentos de an á lise cr ítica e geneal ógica um é “ causa” ou “ origem ” do outro.
que ela propôs e , conseq úentemente, anular o que permite delimi- Para Foucault, é justamente dessas noções clássicas ( totalidade,
tar sua unicidade e singularidade? Foucault , sem nenhuma d ú vida , continuidade , causalidade ) que a “ genealogia ” deve se desfazer se
estava feliz por ter assim fabricado esta “ pequena ( e talvez odiosa ) quiser compreender adequadamente as rupturas e as variações. O
maquinaria ” que semeia a inquietude no pró prio seio do comentá- primeiro dos “ traços pró prios ao sentido histórico, tal como enten-
rio que pretende dizer o sentido ou a verdade da obra. Nesse golpe dido por Nietzsche , e que opõe a “ wirkliche Historie à histó ria tradi-
de mestre dado em todos aqueles - e eles foram e serão numerosos cional ” é inverter “ a relação geralmente estabelecida entre a irrup-
- que se esforçam para lê-lo, como n ão ouvir, metálico e fulgurante, ção do acontecimento e a necessidade contínua. Há toda uma tra-
o riso de Michel Foucault?3 dição da histó ria ( teol ógica ou racionalista ) que tende a dissolver o
acontecimento singular em uma continuidade ideal - movimento
teleológico ou encadeamento natural. A histó ria ‘efetiva ’ faz ressur-
A QUIMERA DA ORIGEM gir o acontecimento no que ele pode ter de ú nico e agudo” .
Com uma radicalidade permitida pela forma , a de um “ co-
Para o historiador, esse riso ressoa ainda mais mordaz. Em um mentá rio ” dos textos de Nietzsche , Foucault d á uma defini çã o
dos raros textos explicitamente consagrados ao que foi para ele a muito paradoxal do acontecimento, visto que ela situa o aleató-
referê ncia filosófica fundamental - ou seja, a obra de Nietzsche -, rio, n ão nos acidentes do curso da histó ria ou nas escolhas dos
Foucault faz uma crítica devastadora da pró pria noção de origem indiv íduos, mas naquilo que para os historiadores parece mais
tal como os historiadores estão habituados a empregá-la. Por justi-
4
determinado e menos ocasional , ou seja , as transforma ções das
ficar uma busca sem fim dos começos e por anular a originalidade rela ções de domina çã o.
do acontecimento, supostamente já presente antes mesmo de seu
advento, a categoria mascara , ao mesmo tempo , a descontinuidade Acontecimento - deve-se entender por isso n ão uma decisão, um trata-
radical dos surgimentos, das “ emergê ncias” , irredutíveis a qualquer do, um reino, ou uma batalha , mas uma rela ção de forças que se inver-
te, um poder confiscado , um vocabulá rio retomado e voltado contra seus
prefigura ção, e as discord â ncias que separam as diferentes sé ries de usuá rios, uma dominaçã o que se enfraquece, se distende, envenena a si
mesma, uma outra que faz sua entrada , mascarada. As forças que estão
3 Michel de Certeau , “ Le rire de Michel Foucault ” , Revue de la Bibliothèque nationale, n. 14, em jogo na histó ria n ã o obedecem nem a uma destinação nem a uma
1984, p.10-16; retomado sob uma forma modificada em Michel de Certeau, Histoire et psycha- mecâ nica , mas ao acaso da luta [ o grifo é nosso ] . Elas n ã o se manifestam
-
nalyse entre science et fiction, apresentação de Luce Giard , Paris, Gallimard , 1987, p.51 64. como as forças sucessivas de uma inten ção primordial ; tampouco assu-
4
Michel Foucault, “ Nietzsche, la gé n éalogie, l ’ histoire ” , in Hommage àJean Hyppolyle, Paris, mem a aparê ncia de um resultado. Surgem sempre na eventualidade sin-
P.U .F., 1971 , p.145-172; retomado em Dits et écrits, op. cil . , t. II , 1970- 1975 , p.136-156 ( ci- gular do acontecimento [ o grifo é nosso].
tações p. 146-149 ) .

126 127

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A abundâ ncia dos fatos, a multiplicidade das inten ções, o ema- mesmo sistema de pensamento. Nele, o tempo é concebido em ter-
ranhado das ações n ão podem , pois, ser referidos a nenhum siste- mos de totalização, e a revolu ção n ão passa nunca de uma tomada
ma de determinações capaz de deles fornecer uma interpretaçã o de consciê ncia ” .5
racional - isto é , de enunciar sua significação e causas. Somente acei- Contra esse “ sistema de pensamento ” , a histó ria que Foucault
tando essa ren ú ncia , “ o sentido histó rico se libertará da histó ria su- designa como a “ história, tal como praticada hoje” - entendamos
pra-histó rica” . Para o historiador clássico, o preço a pagar n ão é pe- aquela das conjunturas econ ómicas, dos movimentos demográficos,
queno, pois é o do abandono de qualquer pretensão ao universal, das mutações sociais, dominante na d écada de 1960, na dupla refe-
um universal tido como a condição de possibilidade e o objeto mes- rê ncia aos modelos braudeliano e labroussiano - considera sé ries
mo da compreensão histó rica: m ú ltiplas e articuladas, cada uma delas comandada por um princí-
pio de regularidade específico , cada uma delas relacionada às suas
A história “ efetiva ” distingue-se daquela dos historiadores pelo fato de condições próprias de possibilidade. Contrariamente ao que os his-
n ão se apoiar em nenhuma constâ ncia: nada no homem - nem mesmo toriadores pensam fazer ( ou dizem que fazem ) , tal abordagem n ão
seu corpo - é suficientemente fixo para compreender os outros homens
e neles se reconhecer. Tudo aquilo em que nos apoiamos para nos vol- significa absolutamente uma relegação do acontecimento, assim
tarmos para a histó ria e apreend ê-la em sua totalidade , tudo o que per- como a preferê ncia dada à longa dura ção tampouco implica a iden-
mite retra çá-la como um paciente movimento cont ínuo, tudo isso deve tificação de estruturas m óveis. Bem ao contrá rio, é pela constru ção
ser sistematicamente rompido. I . preciso partir em peda ç os o que per- de sé ries homogé neas e distintas que podem ser determinadas as
mitia o jogo consolador dos reconhecimentos.
descontinuidades e situados os surgimentos. À distâ ncia da “ histó-
ria filosófica ” e da an álise estrutural , a histó ria que trata serialmen-
te os arquivos maciços ( em L’Ordre du discours, Foucault menciona
FORMAÇÕ ES DISCURSIVAS E REGIMES DE PRÁTICAS as tabelas de preços de produtos, as certid ões notariais, os registros
paroquiais, os arquivos portuá rios ) n ão é nem o relato contínuo de
Sobre as ru ínas desta “ histó ria que n ão se faz mais” ( ou que n ão uma histó ria ideal , nem a maneira hegeliana ou marxista , nem uma
se deveria mais fazer ) , o que construir? Em vá rios textos publicados descri çã o estrutural sem acontecimentos:
entre 1968 e 1970 , em um momento de transi ção de sua trajetó ria
intelectual , Foucault multiplica as referê ncias à prá tica dos historia- E claro, h á muito tempo a histó ria n ão procura mais compreender os
acontecimentos por meio de um jogo de causas e efeitos na unidade in-
dores cuja característica essencial ( “ um certo uso da descontinuida- forme de um grande devir, vagamente homogé neo ou estritamente hie-
de para a an álise das sé ries temporais” ) pode sustentar intelectual- rarquizado; mas n ão é para resgatar estruturas anteriores e estrangeiras,
mente e legitimar estrategicamente seu próprio objeto de descrição hostis ao acontecimento. E para estabelecer as sé ries diversas, entrecru-
cr ítica e geneal ógica dos discursos. No “ trabalho real dos historia- zadas , freq ü entemente divergentes mas n ão autó nomas, que permitem
dores” , o essencial reside , n ão na inven ção de novos objetos, mas em circunscrever o “ lugar ” do acontecimento, as margens de sua eventuali-
dade, as condições de seu aparecimento.6
uma “ sistem á tica coloca ção em jogo do descont ínuo ” que rompe
fundamentalmente com a história imaginada ou sacralizada pela fi-
losofia - uma histó ria que é narrativa das continuidades e afirma- ’ Michel Foucault, “ Sur l ’ arch éologie des sciences. Ré ponse au Cercle d ’ é pisté mologie” ,
ção da soberania da consciê ncia: “ Querer fazer da an á lise histó rica Cahiers pour l'Analyse, 9, “ Gé n éalogie des sciences” , verão 1968, p.9-40; retomado em Dits
o discurso do cont ínuo , e fazer da consciê ncia humana o sujeito et écrits, op. cit . , 1.1, 1954 - 1969, p.696-731 ( cita ção p.699-700 ) .
6
Michel Foucault , L’Ordre du discours, op. cit . p.58
origin á rio de todo saber e de toda prá tica, eis as duas faces de um

128 129
mas um “ regime de enunciação” que emprega enunciados disper-
Pode-se então pensar em uma articulação entre a singularidade alea-
” , e as sos e heterogé neos, correlacionados por uma mesma prá tica discur-
tó ria das emergê ncias, tal como a designa a histó ria efetiva

o, siva. A rede teórica atua de mesma maneira no n ível conceptual , vi-
regularidades que governam as sé ries temporais, discursivas ou n ã sando as regras de formação das noções - inclusive em suas possí-
que são o pró prio objeto do trabalho empírico dos historiadores
.
veis contradições -, e n ão a presença de um sistema de conceitos
A partir disso, a dupla constatação - em forma de paradoxo em
permanentes e coerentes. Enfim , o campo de possibilidades estratégicas
relação à caraterização ingenuamente antifactual da história dos Annales
refe- recusa toda individualização dos discursos que seria conduzida a
- que associa a série e o acontecimento e que o destaca de toda partir da identidade de sua tem á tica ou de suas opini ões; o que ele
rência a uma filosofia do sujeito. F Foucault conclui: “ E por esse con-
pretende designar é a similitude de escolhas teó ricas que podem
junto que esta análise dos discursos na qual penso se articula certamente muito bem sustentar opiniões contrá rias, ou entã.o, ao contrário, suas
não sobre a temá tica tradicional que os filósofos de ontem ainda
tomam
o trabalh o efetivo dos historia dores ” .7 diferen ças aqué m de uma temá tica comum.
pela história ‘viva ’ , mas sobre
Duas razões levam a lembrar essas quatro noções, tidas por fun-
dadoras da descri ção arqueológica dos discursos nos textos de 1968
Freq ü entemente , Foucault opôs termo a termo a an álise que e 1969, ainda que n ão figurem mais explicitamente nem em L’Ordre
idéias,
visa a determinar as “ formações discursivas” e a história das
nais du discours nem nas obras posteriores. Com efeito, é a partir desses
este “ velho solo gasto até a misé ria ” . Contra os crité rios tradicio
8

” , “ tex- diferentes patamares da an á lise que Foucault, no momento de inau-


de classificação e de identificação dos discursos ( o autor o

na ou- gurar um novo estilo de trabalho, d á uma coerê ncia retrospectiva à
to” , a “ obra” , a “ disciplina” ) , a descrição arqueológica selecio
obrajá conclu ída. Cada um dos livros previamente publicados é ca-
tros princ ípios de recorte, menos imediatamente vis íveis: Quando
“ ,
um racterizado como a exploração, através do estudo de uma forma ção
em um grupo de enunciados, pode-se determinar e descrever discursiva particular, de um problema específico da an á lise arqueo-
,
referencial, um tipo de variação enunciativa , uma rede teó rica um lógica: “ a emergência de todo um conjunto de objetos, muito ema-
campo de possibilidades estraté gicas, então se pode estar certo de ranhado e complexo” em Histoire de la folie [ História da loucura na
que eles pertencem ao que se poderia chamar de formação discursi- Idade Clássica ] ( 1961 ) , as formas de enunciaçã o do discurso em
va .9 É preciso atentar aqui para as variações que essas noções pro
-
nticas, Naissance de la clinique [ Nascimento da cl ínica ] (1963) , “ as redes de
põem em relação àquelas, aparentemente próximas ou id ê conceitos e suas regras de formação” em Les Mots et les Choses [As
re-
que parecem aptas a individualizar conjuntos de enunciados O
.
os n ão é o “ objeto” estável , ú nico e palavras e as coisas ] ( 1966) .10 Não h á d úvida de que, por meio dessa
ferencialde uma sé rie de discursvisa : o que o define são as regras de leitura , Foucault designa seu próprio trabalho com o aux ílio de cri-
externo que ela supostamente
té rios ( unidade, coerê ncia , significaçã o ) que pertencem bem mais
formação e de transformação dos objetos m óveis e m ú ltiplos que à histó ria das id é ias do que à arqueologia que ele propõe. Ela desig-
.A
esses discursos constroem e estabelecem como seus referentes na , contudo, uma distâ ncia fundamental dos procedimentos da tra-
variação enunciativa designa, n ão uma forma ú nica e codificada de dição , ao considerar os discursos como prá ticas que obedecem a
,
enunciação, considerada como pró pria a um conjunto de discursos regras de formação e de funcionamento.
Por essa razão, a necessidade de pensar como as prá ticas dis-
7
Ibid., p. 59 .
Michel Foucault , IJArchéologie du savoir, Paris , Gallimard , 1969 , p. 179 ’
•s
.
d épisté mologie” ,
9
Michel Foucault, “ Sur l ’archéologie des sciences. Ré ponse au Cercle 10
Michel Foucault, L'Archéologie du savoir, op. cit ., p.86.
op. cit., p. 719.
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cursivas sao articuladas a outras, de natureza diferente. Esse tema , ( retomando uma categoria de Michel de Certeau ) e as regras que
que se tornará central no trabalho de Foucault a partir de Surveiller organizam a posidvidade dos discursos.
et punir [Vigiar e punir ] , é vá rias vezes esboçado em L’Archéologie du Manter a irredutibilidade de uma tal variação leva a questionar as
Savoir [Arqueologia do saber ] . Contra as causalidades diretas e re- duas id éias seguintes, recorrentes em toda histó ria estritamente pol íti-
dutoras, mas também contra o postulado de uma “ independê ncia ca da Revolução: que é possível deduzir as prá ticas dos discursos que as
soberana e solitá ria do discurso” , “ a arqueologia faz surgirem rela- fundam e asjustificam ; que é possível traduzir nos termos de uma ideo-
ções entre as formações discursivas e dom ínios n ão discursivos ( ins-
logia explícita a significação latente dos funcionamentos sociais. A pri-
tituições, acontecimentos pol í ticos, prá ticas e processos econ ómi- meira operação, clássica em toda a literatura consagrada aos vínculos
cos ) . Essas correlações n ão tê m o objetivo de trazer à tona grandes entre o Iluminismo e a Revolução, relaciona à difusão das idéias “ filo-
continuidades culturais, ou isolar mecanismos de causalidade. Dian- sóficas” os gestos de ruptura diante das autoridades estabelecidas, su-
te de um conjunto de fatos enunciativos, a arqueologia n ão se per-
#

pondo assim uma geração direta, automá tica, transparente, das ações
gunta o que pôde motivá-lo ( esta é a busca dos contextos de formu- pelos pensamentos. Da segunda, resulta o diagnóstico que designa como
lação ) ; també m n ão procura resgatar o que neles se exprime ( tare- jacobina a sociabilidade das associações voluntá rias (clubes, sociedades
fa de uma hermen ê utica ) ; ela tenta determinar como as regras de literárias, lojas maçónicas) , abundante ao longo do século XVIII, ou
-
formação de que ele depende e que caracterizam a positividade à então aquele que caracteriza a prática política dos primeiros meses da
qual pertence - podem estar ligadas a sistemas n11ão discursivos: ela Revolução como já concernindo a uma ideologia terrorista.
busca definir formas específicas de articulação ” . Contra essas duas operações - de dedução e de tradução - deve
Em toda reflexão sobre a Revolu ção Francesa e suas origens, e pode ser proposta uma outra articulação dos conjuntos de discur-
esse programa tem uma pertin ê ncia particular. De um lado, man- sos e dos regimes de prá ticas. De uns aos outros, não h á nem conti-
té m a exterioridade e a especificidade das prá ticas “ que n ão s
ão elas
nuidade nem necessidade. Se são articulados, n ã o é sobre o modo
mesmas de natureza discursiva ” diante de discursos que, de m ú lti- da causalidade ou da equivalência, mas sobre o da variação - a varia-
pias maneiras, são articulados sobre elas. Reconhecer que o acesso ção que existe entre “ a especificidade singular das prá ticas discursi-
a essas prá ticas sem discursos só é possível graças à decifração dos vas” e todas as outras. Assim , no século XVIII, entre os discursos ( aliás,
textos que as descrevem , prescrevem , proscrevem , etc., n ão impli-
concorrentes ) que , representando o mundo social , propõem sua
ca , no entanto, identificar a lógica que as comanda ou a “ racionali- refundação, e as prá ticas ( de resto, m ú ltiplas ) que inventam , em sua
dade ” que as informa àquelas que governam a produ ção dos discur- efetuação mesma, novas divisões.
sos. A prá tica discursiva é, portanto, uma prá tica específica ( “ estra- Essa perspectiva pode levar a modificar a caracterização do Ilumi-
nha” , escreve Foucault em algum lugar ) que n ã o reduz todos os nismo. Contra a definição clássica que o considera como um corpus de
e
outros “ regimes de prá tica ” a suas estratégias, suas regularidades enunciados explícitos, n ão se deveria , antes, considerá-lo como um
suas razões. Neste sentido, as posições atuais que dissolvem as reali- conjunto de prá ticas m ú ltiplas e emaranhadas, guiado pela preocupa-
dades sociais nas prá ticas discursivas anulam - erroneamente, acre-
12

” ção da utilidade comum, que visam a uma nova gestão dos espaços e
dito - a radical diferen ça que separa “ a formalidade das prá ticas das populações e cujos dispositivos ( intelectuais, institucionais, sociais,
etc.) impõem uma completa reorganização dos sistemas de percepção
u Ibid . , p. 212.
in e de ordenamento do mundo social? A constatação leva a reavaliar pro-
12Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution. Essays on French Political Culture
the Eighteenth Century , Cambridge , Cambridge University Press, 1990. fundamente a relação entre o Iluminismo e o Estado mon árquico, já

132
133

-- tr
tuições, as relações de dominação e, de outro , os textos, as represen-
que este, alvo por excelência dos discursos filosóficos, é sem d úvida o tações, as construções intelectuais. O real não pesa mais de um lado
mais vigoroso instaurador de prá ticas reformadoras o que Tocquevil- — do que do outro: todos esses elementos constituem “ fragmentos de
le salientou claramente no sexto capítulo do livro III de L’Ancien Regi- realidade” , cuja ordenação é preciso compreender e, assim, “ ver ojogo
me et la Révolution, intitulado “ De quelques pratiques [grifo nosso] à l aide

e o desenvolvimento de realidades diversas que se articulam umas so-
desquelles le gouvernement acheva l’ éducation révolutionnaire du bre as outras: um programa, o vínculo que o explica, a lei que lhe dá
peuple” [Sobre algumas prá ticas com as quais o governo concluiu a valor impositivo, etc., são tão realidades ( embora de um outro modo )
educação revolucion á ria do povo]. Pensar o Iluminismo como um dé- quanto as instituições que lhe dão corpo ou os comportamentos que
dalo de prá ticas sem discurso ( ou fora do discurso) , em todo caso irre- a ele se acrescentam mais ou menos fielmente” .14
dutíveis às afirmações ideológicas que pretendem fund á-las na verda-
de, talvez seja o meio mais seguro para evitar as leituras teleológicas do
século XVIII francês ( mais vivazes do que se poderia pensar ) , que o RACIONALIDADE E REVOLU ÇÃO
compreendem a partir de sua realização obrigatória - a Revolução - e
apenas retê m o que leva a este fim tido por necessá rio - a Filosofia. “ O que ocorre com este real que é, nas sociedades ocidentais
modernas, a racionalidade? ” 15 É a partir dessa pergunta que se deve
Estabelecer firmemente a distin ção entre as prá ticas discursi- compreender por que Foucault d á uma importâ ncia central ao Ilu-
vas e as prá ticas n ão discursivas n ão significa , entretanto, conside- minismo, por que , igualmente, esta análise histórica da formação e
rar que apenas estas ú ltimas pertencem à “ realidade ” ou ao social .
“ ” das fun ções da racionalidade n ão é uma cr ítica da razã o. Reconhe-
Contra aqueles (sobretudo historiadores) que têm “ do real uma idéia cer a contradição entre a filosofia emancipadora do Iluminismo e
bem magra ” , Foucault afirma: os dispositivos que, apoiando-se nele, multiplicam as imposições e
os controles n ão é denunciar a ideologia racionalista como sendo a
Deve-se desmistificar a instâ ncia global do real como totalidade a resti- matriz das prá ticas repressivas caracter ísticas das sociedades contem-
tuir. Não h á “ o” real que seria alcan çado desde que se falasse de tudo ou porâ neas ( “ que leitor eu surpreenderei afirmando que a an álise das
de certas coisas mais “ reais” do que outras, e ao qual se faltaria , em pro-
veito de abstra ções inconsistentes, se nos limitássemos a mostrar outros prá ticas disciplinares no século XVIII n ão é uma maneira de tornar
elementos e outras rela ções. Talvez també m devamos interrogar o prin- Beccaria responsável pelo Gulag ...” ) .16 Estabelecer um tal vínculo
c ípio, admitido com freq ü cncia implicitamente, de que a ú nica realidade seria enganar-se duplamente: constituindo a ideologia como a ins-
à qual deveria pretender a histó ria é a pró pria sociedade. Um tipo de racio- tância determinante dos funcionamentos sociais, ao passo que todo
nalidade, uma maneira de pensar, um programa , uma técnica , um con-
junto de esforços racionais e coordenados, objetivos definidos e perse-
regime de prá ticas é dotado de uma regularidade, de uma l ógica e
guidos, instrumentos para alcançá-lo, etc., tudo isso é o real, mesmo que de uma razão próprias, irredutíveis aos discursos que o justificam;
11
n ão pretenda ser “ a pró pria realidade ” nem “ a ” sociedade inteira . relacionando a uma racionalidade referencial , origin á ria, dada de
uma vez por todas como “ a ” racionalidade, as figuras m óveis e pro-
Encontra-se assim anulada a divisão, tida por muito tempo como blem á ticas da divisã o entre o verdadeiro e o falso. Talvez impruden-
fundadora da prá tica histó rica, entre, de um lado, o vivido, as insti- *

14 “
Table ronde du 20 mai 1978” , em L'Impossible Prison, op. cit., p.40-56; retomado em
sur le systè- -
Dits et écrits, t. IV, 1980 1988, p.20-34 ( citação p. 28) .
13
Michel Foucault, “ La poussière et le nuage” , em L'Impossible Prison. Recherches l
’ Michel Foucault, “ La poussi è re et le nuage” , of ), cit., p.16.
, 1980,
me pénitentiaire au XlXr siècle, reunidas por Michelle Perrot, Paris, Editions du Seuil 16
Ibid.
çã .15 .
)
p.29-39; retomado em Dits et éciits, op. cit., t. IV, 1980-1988, p.10-19 (cita o p
135
134
te , dez anos antes do Bicenten á rio , Foucault escrevia: Quanto à
“ Contra a certeza de um advento radical, de uma inaugura ção
Aujklãrung, n ão conheço ninguém , dentre aqueles que fazem an áli- absoluta, que habita as palavras e as decisões dos atores do aconte-
ses histó ricas , que veja nisso o fator responsável pelo totalitarismo. cimento, a insistê ncia nas discord â ncias que separam as diferentes
Penso, aliás, que essa maneira de levantar o problema n ã o teria in- sé ries discursivas ( que são inventadas ou transformadas com a Re-
teresse ” .17 O alerta é , acredito, uma outra maneira de ressaltar o erro volu ção ou que, ao contrá rio, n ão sã o absolutamente afetadas por
redutor de toda análise da Revolução que, por um jogo de articula- ela ) , lembra com vigor que a parte refletida e voluntá ria da a ção
ções sucessivas, inscreve 1793 em 1789 , o jacobinismo nas decisões humana n ã o fornece necessariamente a significação dos processos
da Constituinte , a viol ê ncia terrorista na teoria da vontade geral. histó ricos. Tocqueville e Cochin , os dois autores mais freq ü entemen-
De Histoire de la folie a Surveiller et punir, a Revolu ção está pre- te reivindicados pelos historiadores que defendem com mais for ça
sente em todos os livros maiores de Foucault. Poré m , em nenhum o retorno do primado do pol í tico, da id éia e da consciê ncia , fize-
JL

deles é considerada como o tempo de uma ruptura total e global , ram essa demonstra ção salientando que os homens da Revolu ção
reorganizando todos os saberes, discursos e prá ticas: o essencial está fazem , na realidade, o contrá rio do que dizem e pensam fazer. Ain-
em outro lugar, nas decalagens que atravessam a Revolu ção e nas da que os revolucion á rios proclamem uma ruptura absoluta com o
continuidades que a inscrevem em durações que a ultrapassam. A Antigo Regime, fortificam e concluem sua obra centralizadora. Ain-
obra Archéologie du savoir, fazendo o balan ço da an á lise das forma- da que as elites esclarecidas pretendam contribuir para o bem co-
ções discursivas identificadas em Histoire de la folie, Naissance de la cli- mum no seio de sociedades de pensamento pacíficas e leais a seu
nique e Les Mots et les Choses, acentua as primeiras: rei, elas inventam os mecanismos terroristas da democracia jacobi-
na. O que se questiona aqui n ão é a justeza das duas an á lises, mas
A idéia de um ú nico e mesmo recorte dividindo de uma só vez, e em um sua recusa em pensar a Revolu ção nas categorias que ela mesma criou
momento, todas as formações discursivas, interrompendo-as com um ú ni- - a começar pela proclamação de uma radical descontinuidade en-
co movimento e reconstituindo-as segundo as mesmas regras, - essa id éia tre a nova era pol ítica e a antiga sociedade. A inteligibilidade do
não poderia ser considerada. [...] Assim, a Revolu ção Francesa - já que foi
em tomo dela que se centraram até agora todas as an álises arqueológicas - acontecimento supõe , ao contrá rio, uma variação em relação à cons-
não desempenha o papel de um acontecimento externo aos discursos, do ciê ncia que dele tinham seus atores. O fato de que os revolucion á-
qual se deveria, para pensar como se deve, encontrar o efeito de divisão em rios tenham acreditado na absoluta eficácia do pol ítico, investido da
todos os discursos; ela funciona como um conjunto complexo, articulado
,
dupla tarefa de refundir o corpo social e de regenerar o indivíduo,
descritível , de transformações que deixaram intacto um certo n ú mero de
n ã o obriga a compartilhar sua ilusão. O fato de que a Revolu çã o
positividades, que fixaram para um certo n úmero de outras regras que ain
-
da são as nossas, que estabeleceram igualmente positividades que acabam possa ser caracterizada , antes de tudo, como a political phenomenon,
18
de se desfazer ou ainda se desfazem diante de nossos olhos. a profound transformation ofpolitical discourse involving powerful new forms
of political symbolization, experientially elaborated in radically novel modes
“ Resta aos amigos da Weltanschauung ficarem decepcionados” por of political action that were as unprecedented as they unanticipated19 [ um
essa constatação que subtrai o acontecimento a toda possibilidade fen ômeno pol ítico, uma transformação profunda do discurso poli-
de totalização n ão contraditó ria. tico implicando novas e poderosas formas de simbolizaçã o pol ítica ,
elaboradas experimentalmente em modos radicalmente novos da
Postface” , em L’Impossible Prison, op. cil . , p. 316- 318; retomado em Dits el écrits, op .
17 “ cit . ,
p. 35-37 ( citação p . 36 ) .
18
Michel Foucault , L’Archéologie du savoir, op. cit ., p . 228 e 231 .
19
Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution, op. cit . , p. 7 .

137
136
ação pol ítica tão desprovidos de antecedentes quanto inesperados] , mecanismos indissociáveis que asseguraram e perpetuaram uma
n ão implica que a histó ria do acontecimento deva ser escrita na l í n- nova hegemonia, socialmente designada:
gua que é a sua.
Com Surveiller et punir e os textos que preparam ou cercam o Historicamente , o processo pelo qual a burguesia tornou-se, no decor-
livro, a Revolu ção é como que transposta pela an á lise. De nenhuma rer do século XVIII , a classe politicamente dominante abrigou-se detrás
da implantaçã o de um quadrojurídico explícito, codificado, formalmente
maneira , seu recorte cronol ógico e seu conjunto de acontecimen- igualitá rio, e através da organiza çã o de um regime de tipo parlamentar
tos pol íticos são considerados como pertinentes para resolver o pro- e representativo. Mas o desenvolvimento e a generalizaçã o dos dispositi-
blema levantado - a saber: “ Como o modelo coercitivo, corporal , vos disciplinares constitu íram a outra vertente, obscura , desse processo.
solitá rio , secreto do poder de punir substituiu o modelo represen- [ ... ] As disciplinas reais e corporais constitu íram o subsolo das liberda-
des formais e jurídicas.21
tativo , cê nico significante , p ú blico, coletivo? Por que o exercício fí-
sico da p ú nição ( e que n ã o é o supl ício ) substituiu , com a prisã o, O diagn óstico ( retomado por Foucault na entrevista que precede a tra-
que é seu suporte institucional , ojogo social dos sinais de castigo, e du ção francesa de Panoptique de Bentham ) surpreende hoje em dia
22
da festa facunda que os fazia circular?” Compreender por que a
20
pelo que toma do marxismo mais rudimentar: o conceito unificado de
encarceração é colocada no centro do sistema punitivo moderno - burguesia, a categoria de liberdades formais, o modelo de um desen-
esta é a quest ão de Surveiller et punir - leva a determinar um dom í- volvimento histó rico que substitui uma classe dominante por outra. O
nio espec ífico de objetos e a construir uma temporalidade pró pria
que retenho disso aqui n ão são essas caracterizações, todas discut íveis,
que nada deve às periodizações clássicas. E, com efeito, entre a Ida- mas o fato de que, bem como o recorte das temporalidades que orga-
de Cl ássica e a metade do século XIX que deve ser situada a forma- nizam a demonstração, ele inscreve o período revolucion ário em uma
ção da “ sociedade disciplinar ” , que inventa as tecnologias de assu- duração mais longa, tirando-lhe assim sua singularidade.
jeitamento e os dispositivos de vigil â ncia dos quais a prisão é , ao Assim , uma perspectiva é tra çada para uma compreensão his-
mesmo tempo, herdeira e exemplar. tórica que desarticula a significa ção do acontecimento da consciê n-
A an álise desenvolve-se articulando vá rias temporalidades: a cia dos indivíduos. E entã o possível considerar que a Revolu çã o e o
virada dos séculos XVIII e XIX, para a passagem a uma penalidade Iluminismo pertencem , juntos, a um processo de longa duração que
de deten ção; as décadas de 1760-1840, para a redu çã o dos supl ícios os engloba e os ultrapassa e que , com modalidades diferentes, eles
e a transformação da economia do ilegalismo; o período que vai da tendem para os mesmos fins, permeados por expectativas semelhan-
segunda metade do século XVII ao século XIX, para a elaboração tes. Sem sociologismo redutor, Alphonse Dupront exprimiu com
das técnicas disciplinares nas instituições militares, m édicas, escola- força essa idéia:
res e manufatureiras. E ela atribui à “ conjuntura ” do século XVIII
este fato fundamental que é a generaliza ção das disciplinas , coman- Mundo do Iluminismo e Revolu çã o Francesa situam-se como duas ma-
dada pela multiplicação dos homens, pelo crescimento dos apare-
lhos de produ ção ( que n ão são apenas econ ó micos ) e pela domina- 21
Ibid ., p. 223-224.
ção burguesa. Para Foucault , de fato , as disciplinas e as liberdades , L’ oeil du pouvoir. Entretien avec Michel Foucault ” , in Jeremy Bentham , Le Panopti -
22 “

os “ pan-optismos de todos os dias” e as normas jurídicas foram os que, Paris, Pierre Belfond , 1977, p.9-31; retomado em Dits et écrits, op. cit . , t. III , 1976-
1979, p.190-207: “ A burguesia compreende perfeitamente que uma nova legislação ou
urna nova Constituição n ã o lhe bastarã o para garantir sua hegemonia; ela compreen-
de que deve inventar uma nova tecnologia que garantirá a irriga çã o em todo o corpo
20
Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de laprison, Paris, Gallimard , 1975, p.134. social, e até seus grãos mais finos, dos efeitos do poder” ( p.198-199 ) .

138 139

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nifestações (ou epifen ômenos ) de um processo mais integral , o da defi- ter êxito quanto fracassar e , de qualquer maneira , seu preço é tal
ni çã o de uma sociedade independente dos homens, isto é, sem mitos nem que dissuade para sempre de recomeçá-la: não pode, portanto, ser
religi ões ( no sentido tradicional do termo ) , sociedade “ moderna ” , ou tida como demonstração da inelutabilidade do progresso do gê ne-
seja , sociedade sem passado, nem tradi ções, do presente, e totalmente ro humano - bem ao contrá rio , poder-se-ia dizer. Em compensação,
aberta para o futuro. Os verdadeiros vínculos de causa e efeito entre uma a acolhida dada ao acontecimento atesta a força da “ tend ê ncia mo-
e outra são aqueles desta comum depend ê ncia a um fen ômeno histó ri-
co mais amplo , mais inteiro que o seu próprio.23 ral da humanidade” que leva os homens a se dotarem de uma cons-
tituição livremente escolhida , em harmonia com o direito natural
A “ verdadeira Revolu çã o” ( como escreve Dupront ) n ã o é o comple- ( “ ou seja , de que aqueles que obedecem à lei devem també m , reu-
xo de acontecimentos que os atores - e os historiadores - assim de- nidos, legislar ” ) e “ pró pria a evitar por princ ípio uma guerra ofen-
signaram , mas “ um desenvolvimento histórico mais amplo [...] que siva” . Nisso , a Revolução ou , antes, as reações que ela desencadeou
é essencialmente a passagem de uma m ítica tradicional ( m í tica da revelam na natureza humana uma “ faculdade para progredir ” mais
religiã o, de sacralidades, de autoridade religiosa e pol ítica ) a uma fundamental do que as eventualidades do acontecimento que a
nova m ítica , ou fé comum renovada, cuja afirma ção mais veemente manifesta. A partir da í, a constatação de Kant: “ Sustento que posso
é n ão se querer ou n ã o se saber m ítica ” .24 predizer ao gê nero humano, mesmo sem espírito profé tico, de acor-
do com as aparê ncias e sinais precursores de nossa é poca , que ele
alcan çará este fim e, ao mesmo tempo també m , que conseq üente-
O QUE É O ILUMINISMO ? mente esses progressos n ão serã o mais questionados.” Nem o cur-
so , nem o destino da Revolu ção contam enquanto tais; sua impor-
A rela ção entre a Revolu ção e o Iluminismo está no centro do tâ ncia deve-se ao fato de que ela dá uma visibilidade espetacular às
comentá rio que Foucault fez em 1983 de dois textos de Kant: Qu ést-
virtualidades que fundam a Aujklàrungc a tarefa dos filósofos:
ce que les Lumières ?, de 1784, e a segunda dissertaçã o do Conflit des
facultés, de 1798.2 Analisando este ú ltimo texto, Foucault segue passo
j

Esclarecer o povo é ensinar-lhe publicamente seus deveres e seus direitos


a passo a demonstraçã o através da qual Kant pretende mostrar em em face do Estado de que ele faz parte. Como se trata aqui apenas de
que a Revolu ção Francesa constitui o “ sinal histórico ” indiscutível direitos naturais, derivando do bom senso comum , seus anunciadores e
comentaristas naturais são junto ao povo , n ão os professores oficiais de
de que existe uma causa permanente garantindo o progresso cons-
direito, estabelecidos pelo Estado, mas professores livres, isto é, filóso-
tante do gê nero humano. Para fazê-lo, ele distingue a Revolu ção fos, que precisamente devido a essa liberdade que se permitem , são ob-
como acontecimento grandioso, como empreendimento voluntá rio, jeto de escâ ndalo para o Estado que quer sempre apenas reinar, e difa-
e a Revolu ção como produzindo em todos os povos “ uma simpatia mados, sob o nome de propagadores do Iluminismo, como pessoas perigo-
de aspiração que toca de perto o entusiasmo ” . Como processo his- sas para o Estado.*6
tórico, a Revolução, que acumulou misé rias e atrocidades, pode tanto
Com esse comentá rio, que abre seu curso do Collège de France
em 1983-1984, Foucault pretende mostrar que Kant não está somente
Alphonse Dupront , Qu 'est -ce que les Lumières ?, Paris , Gallimard , col . Folio / Histoire ,
1996 , p. 33. na origem da tradição filosófica que estabelece como central a ques-
24
Ibid . , p. 19.
21
Michel Foucault , “ Qu ’ est-ce que les Lumi ères? Un cours in édit ” , Le Magazine Litt érai- 26
Emmanuel Kant , Le Conflit des facult és en trois sections, 1798, traduzido do alemão por J .
re, n . 207 , maio 1984, p . 35-39; retomado em Dits et écrits, op. cil . , t . IV, 1980- 1988, p . 679-
Gibelin , Paris , Vrin , 1988, “ Deuxième section : Conflit de la faculté de philosophie avec
688 . Sobre o texto de Kant, Qu ’est -ce que les Lumières ?, cf. Roger Chartier, Les Origines cul- la faculté de droit” , p. 93- 112 ( as citações dadas neste parágrafo p . 100-108 ) .
turelles de la Révolution française, Paris , Editions du Seuil , 1990 , p. 37-41 .

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tã o das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro o texto de Kant fornece um instrumento para compreender como
( que ele designa como uma “ anal í tica da verdade” ) . Ele foi també m a Revolu ção inscreve-se no processo de maior duração que construiu
o primeiro a constituir o presente como objeto da interrogação fi- um espaço cr ítico e p ú blico onde podiam se voltar contra a razão
losófica. Com o texto de 1784, assim como com o de 1798, “ o dis- de Estado as exigê ncias é ticas que esta havia relegado ao foro da
curso deve reconsiderar sua atualidade, de um lado, para aí encon- consciê ncia individual.28
trar seu lugar pró prio e, de outro, para dizer seu sentido, enfim , para
especificar o modo de ação que ele é capaz de exercer no interior
dessa atualidade ” .27 Essa referê ncia ao fundamento de uma tradi çã o A TESE E O OBJETO
cr ítica que considera “ a questão do presente como acontecimento
“ A cultura européia, nos ú ltimos anos do século XVIII, delineou
filosófico ao qual pertence o fil ósofo que fala dele ” parece-me ca-
racterizar o trabalho de Foucault com uma acuidade maior ainda uma estrutura que ainda n ão está esclarecida; mal se começa a de-
do que a fó rmula freq ü entemente citada: “ Meus livros n ão são tra- semaranhar alguns fios , que nos são ainda tão desconhecidos que
tados de filosofia , nem estudos histó ricos: no m áximo, fragmentos os consideramos geralmente como maravilhosamente novos ou ab-
filosóficos em obras histó ricas” . solutamente arcaicos, ao passo que , h á dois séculos ( n ão menos e
Mas, aqu é m do que constitui a tese mesma do comentá rio de entretanto n ão muito mais ) , eles tê m constitu ído a trama sombria
Foucault, é possível reencontrar as an á lises de Kant que são seu ob- mas sólida de nossa experiê ncia ” 2 *: em Naissance de la clinique, bem '

jeto. A de 1798 separa a significação da Revolu ção de suas peripé- como, mais tarde , em Surveiller et punir, Foucault situa no meio sé-
cias factuais. A de 1784 opera uma dupla ruptura conceptual. Por culo, grosseiramente dividido, que engloba a Revolu ção e que vai
um lado , propõe uma articulaçã o in édita da oposição entre p ú bli- de 1770/ 1780 a 1830/ 1840, a constituição dos discursos e das prá ti-
co e privado , n ã o somente identificando o exercício público da ra- cas que fundam a “ modernidade ” .
zã o aos julgamentos produzidos e comunicados pelos indivíduos A maneira como ele caracteriza esse período decisivo foi freq üen-
privados agindo “ como sá bios ” ou “ na qualidade de eruditos” , mas temente muito mal compreendida. Se este é exatamente o momento
també m definindo o p ú blico como a esfera do universal e o privado em que os procedimentos disciplinares, as tecnologias de vigilância, os
como o dom ínio dos interesses particulares e “ dom ésticos” - sejam aparelhos pan-ó pticos são constitu ídos como os mecanismos essenciais
de um Estado ou de uma Igreja. Por outro lado, ela desloca radical- da organização e do controle do espaço social , isso n ão significa, entre-
mente a maneira como devem ser pensados os limites estabelecidos tanto, que eles efetivamente dividiram , policiaram e disciplinaram o
à atividade crítica: eles n ão são mais definidos pela natureza dos con- mundo social. Sua proliferação remete, não à sua eficácia, mas à sua
te ú dos de pensamento mas pela posição do indivíduo que pensa, le- fragilidade: “ Quando falo de sociedade ‘disciplinar’ , n ão se deve enten-
gitimamente forçado quando executa os deveres de seu cargo ou de der ‘sociedade disciplinada’. Quando falo da difusão de disciplina, isso
seu estado, necessariamente livre quando age como membro da “ so- n ão significa afirmar que ‘os franceses são obedientes’! Na análise dos
ciedade civil universal” . Em seu esforço para situar o lugar da filoso- procedimentos implantados para normalizar, n ão h á ‘a tese de uma
fia em seu pró prio presente ( o que é, para Foucault, a caracter ística normalização’. Como se, justamente, todos esses desenvolvimentos n ão
singular da Aufklárung, “ a primeira é poca que nomeia a si mesma” ) , 28
Reinhardt Koselleck , Kritik ind Krise. Eine Sludie zurPalhogenese der bü rgerlichen Welt , Fri-
burgo, Verlag Karl Albert, 1959, reedição Francfort-sur-le-Main ( tradu ção francesa Le
Règne dela critique, Paris, Editions de Minuit, 1979 ) .
27 Michel Foucault, “ Un cours in édit ” , op. cit., p.681. 8>
‘ Michel Foucault, Naissance de la clinique, Paris, P. U.F., 1963, reedição 1990, p.212.

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fossem proporcionais a um insucesso perpé tuo” .30 Há portanto um “ ver- A automaticidade do poder, o cará ter mecâ nico dos dispositivos onde
so” na história dos dispositivos disciplinares - um verso tramado de re- ele toma corpo n ã o é absolutamente a tese do livro. Mas é a id é ia , no
século XVIII , de que tal poder seria possível e desejável , é a busca te-
sistê ncias, de desvios, de ilegalismos. Contra as leituras redutoras de seu ó rica e prá tica de tais mecanismos, é a vontade , incessantemente en-
trabalho, Foucault lembra a força dessas prá ticas rebeldes que respon- tã o manifestada, de organizar semelhantes dispositivos que constitui
dem , de diversas maneiras, às microtécnicas de coerção: o objeto da an á lise. Estudar a maneira como se quis racionalizar o po-
der, como se concebeu , no sé culo XVIII , uma nova “ economia ” das
E preciso analisar o conjunto das resistê ncias ao pan-ó ptico em termos rela ções de poder, mostrar o importante papel que a í ocupou o tema
de tá tica e de estratégia, dizendo-se que cada ofensiva de um lado serve da m á quina , do olhar, da vigilâ ncia , da transpar ê ncia , etc., n ão signi-
de ponto de apoio a uma contra-ofensiva do outro. A an á lise dos meca- fica dizer nem que o poder é uma m á quina , nem que tal id é ia surgiu
nismos de poder náo tende a mostrar que o poder é ao mesmo tempo maquinalmente.33
an ó nimo e sempre vencedor. Trata-se, ao contrá rio, de determinar as +

posi ções e os modos de ação de cada um , as possibilidades de resistê ncia A confusão entre a “ tese ” e o “ objeto ” foi uma das razões maio-
e de contra-ataque de ambos.31 res, e recorrentes, da incompreensão do trabalho de Foucault. Ela
marcou as leituras da célebre conferê ncia dada em 22 de fevereiro
“ Estratégia ” , “ tá tica ” , “ ofensiva ” , “ contra-ofensiva ” , “ posições” , “ con-
de 1969 diante da Sociedade francesa de filosofia, “ Qu’ est-ce qu’ un
tra-ataque” : o vocabulá rio militar indica que, mesmo n ão sendo igual ,
auteur ” [ O que é um autor ? ] , que com freq üê ncia identificaram
a partida que se joga entre os procedimentos de assujeitamento e
( erroneamente ) a pergunta que ela faz - ou seja , a das condições
os comportamentos dos “ assujeitados” tem sempre a forma de um
de emergê ncia e de distribuição da “ fun ção-autor ” , definida como
confronto, e n ão aquela de uma sujeiçã o. E nesse confronto que “ se
o modo de classificação dos discursos que os atribui a um nome pró-
deve ouvir o rugir da batalha ” .32
prio - e o tema da “ morte do autor” , que relaciona a significação das
O final do século XVIII e o começ o do século XIX são funda-
obras ao funcionamento impessoal e autom á tico da linguagem.34 E
mentais, també m , por constitu írem uma nova figura do poder, an ó-
uma assimilação igualmente erró nea , sobre a inten çã o de seu tra-
nima, autónoma , operando através de prá ticas que nenhum discur-
balho, que Foucault recusa quando, no debate que segue sua con-
so acompanha ou legitima. Essa concepção do poder, sustentada por
ferê ncia , ele replica as objeções de Lucien Goldmann:
todos os dispositivos que visam a torná-lo, ao mesmo tempo, coerci-
tivo e dissimulado, disseminado e coerente , organizado e autom á ti- A morte do homem é um tema que permite trazer à tona a maneira como
co , n ão deve ser absolutamente confundida com o conceito do po- o conceito do homem funcionou no saber. [ ...] N ão se trata de afirmar
der que seria aquele empregado por Foucault. També m aqui , con - que o homem morreu , trata-se , a partir do tema - que não é meu , que
tra um contra-senso freq üente cometido pelos cr í ticos ( ou pelos n ão cessou de ser repetido desde o final do século XIX - de que o ho-
mem morreu ( ou que vai desaparecer, ou que será substitu ído pelo su-
adeptos ) de Surveiller et punir, ele reage vigorosamente: per-homem ) , de ver de que maneira , segundo que regras formou-se e
funcionou o conceito de homem . Fiz o mesmo com a noção de autor.
30
Michel Foucault, “ La poussière et le nuage ” , op. cit . , p . 15-16. Vamos então segurar nossas l á grimas.35
31 «
L’ oeil du pouvoir. Entretien avec Michel Foucaul ” , em Jeremy Bentham , Le Panopti -
que, op. cil . , p . 206.
32
Michel Foucault , Surveiller et punir, op. cit . , p . 315. Lembremos aqui a última frase do
livro: “ Nesta humanidade central e centralizada , efeito e instrumento de relações de 33
Michel Foucault , “ La poussière et le nuage” , op. cit . , p. 18.
poder complexas , corpos e forças assujeitados por dispositivos de ‘encarceração’ m ú l- 33
Roger Chartier, “ Figures de l ’ auteur” , in Culture écrite et socié té . L'ordre des limes ( XIV -
tiplos , objetos para discursos que são eles próprios elementos dessa estratégia , deve-se XVIIL siècle ), Paris, Albin Michel , 1996, p . 45-80 , aqui p. 48-50 .
ouvir o rugir da batalha ” . 35
Michel Foucault , “ Qu’est-ce qu ’ un auteur? ” , op . cit . , p. 817 .

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Naissance de la clinique e Naissance de la prison encontram , com LÓGICAS DISCURSIVAS, LÓGICAS SOCIAIS
doze anos de distâ ncia , um mesmo problema: como articular a cons-
tituição de uma nova formação discursiva ( i.e. o m é todo an á tomo- Distinguindo, como em L'Archéologie du savoir, as formas discur-
sivas e as prá ticas “ que n ão são elas mesmas de natureza discursiva ” ,
clínico ) ou de um novo regime de prá ticas ( i.e. as disciplinas pan-
mostrando, como em Surveiller et punir, como prá ticas sem discurso
ó pticas ) com o advento pol ítico - neste caso, a Revolu ção? Para re-
vê m contradizer, anular ou “ vampirizar” (segundo a expressão de
solvê-lo, Foucault recusa os dois modelos clássicos: o modelo hege-
Michel de Certeau ) 38 as proclamações da ideologia, o trabalho de
liano, que faz com que se considerem os diversos fen ô menos histó-
Foucault conserva hoje em dia toda sua pertinê ncia crítica tanto em
ricos como expressões de uma mesma forma e de um mesmo “ espí-
rela ção ao semiological challenge quanto ao “ retorno ao pol ítico ” .
rito” , e o modelo histó rico que, via consciê ncia dos homens, estabe-
lece uma relaçã o de causalidade entre as mudan ças pol íticas, as con-
Conhecem-se os fundamentos da “ reviravolta lingu ística” propos-
ta aos historiadores dos textos e das prá ticas: considerar a linguagem
figurações de saber e os dispositivos institucionais. Entre essas diver-
como um sistema fechado de signos que produzem sentido apenas pelo
sas sé ries de acontecimentos, as relações que se deve pensar são de
outra ordem . Vejamos o exemplo da medicina cl ínica. Por um lado,
funcionamento de suas relações; pensar a realidade social como sendo
constitu ída pela linguagem , independentemente de qualquer referên-
ela postula a existê ncia de um “ campo da experi ê ncia m édica intei-
cia objetiva.3y Contra essas formulações, Foucault ( talvez paradoxalmen-
ramente aberto [ ...] an álogo , em sua geometria impl ícita , ao espa-
te para aqueles que fizeram dele um estruturalista - rótulo que sempre
ço social com o qual sonhava a Revolu çã o, ao menos em suas pri-
meiras formulações” : “ há portanto um fen ômeno de convergê ncia rejeitou veementemente) 40 auxilia lembrando a ilegitimidade da redu-
ção das prá ticas constitutivas do mundo social à “ racionalidade” que
entre as exigê ncias da ideologia política e aquelas da tecnologia médica.
Em um ú nico movimento, m édicos e homens de Estado reclamam governa os discursos. A lógica comandando as operações que constro-
em instituições, dominações e relações n ão é aquela, hermen ê utica e
por meio de um vocabulá rio por vezes semelhante, mas por razões
diferentemente enraizadas, a supressão de tudo o que pode impe- logocêntrica, que produz e comenta os discursos. A irredutibilidade das
dir a constituição desse novo espaço ” ( os hospitais, a corporação
36

dos m édicos, as faculdades ) . Por outro, a nova prá tica pol ítica e as Michel de Certeau , “ Microtechniques et discours panoptique: un quiproquo” , in His-
38

toire et psychanalyse entre science et fiction, op. cit., p.37-50.


reorganizações institucionais por ela engendradas ( por exemplo, w Cf . a sé rie de artigos publicados cm American Historical Review por
John E. Towes, “ In-
mas n ão somente, as reformas hospitalares analisadas no cap ítulo V tellectual History after the Linguistic Turn : The Autonomy Meaning and the Irredu-
of
de Naissance de la clinique ) constituem uma das condições de possi- cibility of Experience” , A.H.R., 92, outubro 1987, p.879-907; David Harlan , “ Intellectu-
al History and the Return of Literature” , A.H.R., 94, junho 1989, p.581-609; David A.
bilidade do discurso. Trata-se, pois, para o procedimento arqueol ó- Hollinger, “ The Return of the Prodigal: The Persistence of Historical Knowing” , A.H.R ,
gico, de “ mostrar n ão como a prá tica pol ítica determinou o sentido 94, junho 1989, p.610-621; e Joyce Appleby, “ One Good Turn Deserves Another: Mo-
e a forma do discurso m édico, mas como e a que título ela faz parte ving Beyond the Linguistic; A Response to David Harlan ” , A .H.R., 94, dezembro 1989,
p.1326-1332. Cf. Roger Chartier, “ L’ histoire entre connaissance et récit” , M .L.N., 109,
de suas condições de emergê ncia , de inserção e de funcionamen- 1994, p.583-600, aqui p.87-107.
to” - entendamos o modo in édito como ela recorta o objeto desse 10
Tal rejeição é expressa, por exemplo, na discussão que segue a conferê ncia “ Qu ’ est-
ce qu ’ un auteur?” ( “ Quanto a mim , jamais empreguei a palavra estrutura. Procurem-na
discurso, confere-lhe uma nova fun ção e o atribui a especialistas que em Les Mots et les Choses e n ão a encontrarão. Então, eu gostaria que todas essas facilida-
detê m seu monopólio.37 des sobre o estruturalismo me fossem poupadas, ou que se dessem ao trabalho de justi-
ficá-las ” , op. cit., p.816-817 ) , e na lição inaugural no Collège de France ( “ E agora que aque-
Foucault, Naissance de la clinique, op. cit., p.37. les que tê m lacunas de vocabulá rio digam - se isso lhes convé m mais do que lhes diz -
“ Michel
37
Michel Foucault, L'Archéologie du savoir, op. cit ., p. 213-215. que isso é estruturalismo” , L'Ordre du discours, op. cit., p.72 ) .

146 147
práticas aos discursos, articuladas mas não homólogas, pode ser consi- A filosofia de Foucault n ão é uma filosofia do “ discurso ” , mas uma filo-
derada como a divisão fundadora para toda história cultural, incitada sofia da relação. Pois “ relação ” é o nome do que se designou como “ es-
de “ texto” , trutura ” . Ao invés de um mundo feito de sujeitos ou então de objetos ou
assim a desconfiar de um uso descontrolado da categoria
de sua dialé tica, de um mundo onde a consciê ncia conhece seus objetos
excessivamente empregada para designar práticas cujos procedimen- de antemão , visa-os ou é ela pró pria o que os objetos fazem dela, temos
tos não obedecem em nada à “ ordem do discurso” . um mundo onde a relação é primeira: são as estruturas que dão suas fisio-
O tema do “ retorno ao pol ítico” tem freq ü entemente a figura nomias objetivas à maté ria.42
inversa do linguistic turn. Longe de postular a automati
cidade da
produção do sentido, ele acentua a liberdade do sujeito, a parte re- Não h á , portanto, objetos histó ricos preexistentes às relações que
fletida da ação, a autonomia das decisões. Conseq ü entemente, en- os constituem , n ão h á campo de discurso ou de realidade delimi-
contram-se recusados todos os procedimentos que visam a estabele- tado de maneira estável e imediata: “ As coisas sã o apenas as objeti-
cer as determinações desconhecidas pelos indivíduos, ao mesmo vações de prá ticas determinadas, visto que a consciê ncia n ão as con-
tempo em que é afirmado o primado do político, tido como o í
n vel cebe ” .43 Entã o, é identificando as divisões e as exclusões que cons-
mais significativo de toda sociedade. També m aqui , Foucault pode
41 tituem os objetos que estabelece para si que a histó ria pode pensá-
dar apoio para definir uma perspectiva , oposta termo a termo, a essa los , n ão como expressões circunstanciadas de uma categoria uni-
proposição. Por um lado, considerando o indivíduo, n ão na liber- versal, mas, bem ao contrá rio, como “ constelações individuais ou
dade suposta de seu eu pró prio e separado, mas como constru ído mesmo singulares ” .44
pelas configurações ( discursivas ou sociais ) que determinam suas Transformar a definiçã o do objeto da histó ria é, necessariamen-
definições históricas. Por outro, postulando, n ão a absoluta autono- te, modificar as formas da escritura. Em seu comentário de Surveil-
mia do político, mas, em cada momento histó rico particular, sua ler et punir, Michel de Certeau enfatizou o deslocamento retó rico -
e os perigos - que implica uma histó ria das prá ticas sem discurso:
depend ê ncia em relação ao equil íbrio de tensões que modula seus
dispositivos e, ao mesmo tempo, resulta de sua eficácia. Quando , ao invés de ser um discurso sobre outros discursos que o pre-
cederam , a teoria arrisca-se em dom ínios n ão verbais ou pré-verbais onde
Foucault revolucionou duplamente a histó ria. Em primeiro se encontram apenas prá ticas sem discursos de acompanhamento, sur-
lugar, tornou-se impossível depois dele considerar os objetos, cuja gem certos problemas. Há uma brusca mudan ça, e a fundação, geralmen-
”, te tão segura, oferecida pela linguagem faz então falta. A operação teó-
histó ria o historiador pretende escrever, como “ objetos naturais
rica encontra-se repentinamente na extremidade de seu terreno normal,
como categorias universais das quais se deveria apenas determinar tal como um carro que chega à beira de uma falésia. Depois dela , ape-
as variações histó ricas - quer tenham por nome loucura, medicina, nas o mar. Foucault trabalha à beira da falésia, tentando inventar um dis-
Estado ou sexualidade. Por detrás da comodidade preguiçosa do vo- curso para tratar de prá ticas não discursivas.45
cabulário, o que se deve reconhecer são recortes singulares, distri-
buições específicas, “ positividades” particulares, produzidas por prá-
)
ticas diferenciadas que constroem figuras ( do saber ou do poder
irredutíveis umas às outras. Como escreve Paul Veyne: 42 Paul
Veyne, “ Foucault révolutionne rhistoire” , in Paul Veyne, Comment on écrit l ’histoire
seguido de Foucault révolutionne l ’histoire, Paris, Editions du Seuil , 1978, p.236.
Ibid ., p.217.
Ibid . , p. 231-232.
, 50, maio-
Marcel Gauchet, “ Changement de paradigme en sciences sociales? ” , Le Débat
41 45
Michel de Certeau , “ Microtechniques et discours panoptique: un quiproquo ” , op .
-
agosto 1988, p. 165 170. cit . , p. 44.

148 149

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Razão, em Surveiller et punir, de uma escritura contraditó ria que or-
ganiza o discurso de saber a partir dos pró prios procedimentos que 6. Estratégias e táticas.
são seu objeto e que, ao mesmo tempo, constrói essas “ ficções pan-
ó pticas” para exibir e subverter os fundamentos da racionalidade De Certeau e as “ artes de fazer ”
punitiva instaurada no final do século XVIII: “ Em um primeiro n í-
vel , o texto teó rico de Foucault é ainda organizado pelos processos
pan-ópticos que ele elucida. Mas, em um segundo n ível , esse discur-
so pan-óptico n ã o passa de uma cena onde uma m áquina narrativa
inverte nossa epistemologia pan -óptica triunfante” .
46

“ À beira da fal ésia ” . A imagem é bela para designar a inquietu-


de própria a toda história que tenta essa operação limite: dar conta
na ordem do discurso da “ razão” , ou da desrazão das prá ticas - tan-
to dessas prá ticas dominantes que organizam normas e instituições
quanto daquelas, disseminadas e menores, que tecem o cotidiano
ou sustentam os ilegalismos. Michel de Certeau n ão gostava muito de se definir, nem de
Poré m , para todos aqueles que dele se aproximam , há , à beira encerrar o que fazia em uma dessas categorias disciplinares que os
da fal ésia , um apoio amparador: o trabalho de um pensamento que universitá rios, como que para se tranqiiilizar, gostam tanto de rei-
sempre se situou “ no ponto de cruzamento de uma arqueologia das vindicar. Entretanto, em La Prise de parole, este pequeno livro escrito
problematizações e de uma genealogia das prá ticas ” .
47
justo após o acontecimento e que permanece uma das an álises mais
agudas da “ revolução simbólica ” de 68, ele reconhecia assim sua tra-
jetó ria: “ A questão que me inquiria uma experiê ncia de historiador,
de viajante e de cristão, eu a descubro, também , no movimento que
mexeu com as profundezas do pa ís. Elucid á-la era uma necessidade
para mim ” .1 De uma experi ê ncia à outra , a distâ ncia n ã o é tão gran-
de quanto poderia parecer. Para ele, a histó ria continua sendo, de
todas as ciê ncias humanas, a que tem mais condições, por heran ça
ou por programa , de representar a diferen ça, de pôr em cena a al-
teridade. Por isso, ela reté m algo desta busca da palavra do Outro,
que foi a paixão, até a desesperan ça , dos cristãos antigos dos quais
Michel de Certeau se fizera o historiador; algo, també m , deste en-
contro com a estranheza, proporcionada a cada vez pela descober-
ta de novos mundos, do Brasil à Calif ó rnia. Talvez seja por isso que ,
homem de todos os saberes, ele proclamasse sua identidade de his-
*(' Ibid., p. 49.
47 .
Michel Foucault, Histoire de la sexualité, t. II , / 'Usagedes plaisirs, Paris , Gallimaid, 1984, Michel de Certeau , La Prise de la parole, Paris , Desclée de Brouwer, 1968 , p. 22.
p. 19.

151
150

i ,
A

toriador como primeira - desejando, quando foi eleito para a Ecole existê ncias às margens, autorizados somente pela certeza de ouvir
des hautes études en sciences sociales, em 1983, pertencer ao Centro que em si mesmos a palavra de Deus. Perseguida de livro em livro , essa
re ú ne aqueles que, diversamente , nele fazem história. aten ção restabeleceu as perspectives de uma histó ria religiosa de vi-
Homem de muita leitura , como se escrevia no século XVII , sã o muito estrita, marcando distin ções mal percebidas, por exem-
Michel de Certeau n ão era um historiador comum . A viagem o fize- plo, entre bruxaria e possessão,5 ou propondo correlações que cau-
ra atravessar os espaços e as disciplinas. Para ele , fazer histó ria era savam escâ ndalo, como entre a palavra m ística e aquela do possuí-
ao mesmo tempo submeter à experimentação cr í tica os modelos do, ambas lugar do Outro, ambas inscritas, cada uma à sua manei-
forjados em outros contextos, quer fossem sociológicos, econ ó mi- ra , em um discurso de ordem , teol ógico ou demonológico.6 Essas
cos, psicológicos ou culturais, e mobilizar, para entender o sentido duas palavras, aquela habitada e extorquida da possessão, aquela
dos signos guardados pelo arquivo, suas competê ncias de semió ti- dialogada e voluntá ria da m ística , sã o assim cons ú tu ídas em experiê n-
co, de etn ólogo, de psicanalista. Dos cruzamentos inesperados, li- cias limites onde se pode observar a vacilação das divisões institu í-
vres, paradoxais, entre esses saberes que dominava nasce uma escri- das pela autoridade doutrinal , pela nova ci ência ou pelo poder do
tura pró pria onde os historiadores profissionais reconhecem as re- pr íncipe. Recalcitrantes às explicações de tradição ou de razã o, sus-
gras do of ício, soberbamente respeitadas, avaliando simultaneamen- tentando um surgimento do estranho em seu modo mais amea ça-
te suas pró prias falhas. Essa inteligê ncia sem limites por vezes inquie- dor, possessã o e m ística põem à prova todas as disciplinas, todas as
tou ou irritou as mentes demasiado pequenas para compreend ê-la racionalidades. Razão , para Michel de Certeau , de seu valor heur ís-
- e bastante numerosas, não somente dos historiadores, mas també m tico, e da busca de toda uma vida.
dentre eles, para que duas institui ções cient íficas francesas n ã o te- Esta, no entanto, foi sempre acompanhada por outros projetos,
nham querido abrir-lhe suas portas. outras invesúgações. Michel de Certeau gostava do trabalho em equi-
O percurso de historiador de Michel de Certeau foi dominado pe, em torno de um dossiê constru ído e decifrado em conjunto, na fra-
por uma questã o essencial: como dar conta das palavras e dos ges- ternidade da descoberta comum . Foi assim que abordou os relatos de
tos de uma espiritualidade situada fora da instituição eclesiástica e viagem às Américas do século XVI , e a dupla questão que levantam : a
rebelde à apropriação do sagrado apenas pelos clé rigos. Dos primei- do discurso sobre o estrangeiro, a da escritura da oralidade.7 Deste
ros livros sobre Favre e Surin 2 a La Fable mystique\ de La Possession de modo, em 1975, escreveu com dois amigos historiadores, Dominique
Loudun4 ao manuscrito, quase acabado e logo publicado, consagra- Julia eJacques Revel , um livro consagrado à investigação sobre os pato-
do às experiê ncias do corpo na m ística, seu trabalho modificou pro- ás do abade Grégoire, o que era uma maneira de trabalhar esses dois
fundamente nossa compreensão do cristianismo na é poca das refor- mesmos problemas sobre um outro material.8 Em um mundo universi-
mas religiosas. Gra ças a ele, pôde-se perceber melhor como in ú me- tá rio freq úentemente estreito e às vezes ferozmente individualista, ele
ras mulheres e homens nos séculos XVI e XVII viveram e enuncia- dava o exemplo precioso de um entusiasmo sempre novo, de um in-
ram sua fé , sem lugar legítimo para dizê-la , na errâ ncia arriscada de cansável desejo de aprender, de compartilhar generosamente.

2 Michel de Certeau , Le Mémorial de Pierre Fame, Paris , Desclée de Brouwer, 1960; Guide Ibid., p. 10-13.
spirituel de Jean-Joseph Surin, Paris , Desclée de Brouwer, 1963; Correspondance de Jean- L’Ecriture de l'histoire, ( 1975 ) , 3. ed . , Paris , Gallimard , 1984, “ Un langage altéré . Lit pa-
Joseph Surin , Paris . Desclée de Brouwer, 1966 . role de la possédée ” , p. 249-273.
Michel de Certeau , La Fable mystique, XVIe-XVIt, Paris , Gallimard, 1982 . Ibid ., “ Ethno-graphie . L’ oralité , ou l ’ espace de l ’ autre: Lé ry” , p . 215-248 .
3 7

4
Michel de Certeau , La Possession de Loudun, ( 1970) , 2 . ed. , Paris , Gallimard , col . Archi-
8
Michel de Certeau , Dominique Julia ejacques Revel , Une politique de la langue. La Révo-
ves , 1980. lution française et les patois: l’enquête de Grégoire, Paris , Gallimard , 1975 .

152 153
A OPERA ÇÃO HISTORIOGRÁ FICA se chama de explicação n ão passa da maneira que a narrativa tem
de se organizar em uma intriga compreensível ” . “ L’ opé ration histo-
Para compreender como Michel de Certeau pensava o traba- riographique ” deve ser lido como uma seq üê ncia dada a esse diálo-
lho histó rico, retomarei um de seus ensaios mais citados e mais co- go crítico travado com Paul Veyne, cuja obra mexera muito com os
mentados, ou seja, o texto que, sob o t í tulo “ L’ opé ration historique ” espíritos historiadores. Nele se encontram , com efeito, considera-
[ A operação histó rica ] , abre o primeiro tomo da coletâ nea Faire de dos - mas totalmente reformulados - dois dos diagn ósticos do his-
Vhistoire ( 1974 ) , publicada sob a direção de Jacques Le Goff e Pierre toriador de Aix-en-Provence. A histó ria é um discurso, mas um dis-
Nora.9 Este mesmo texto , com um t í tulo ligeiramente diferente , curso cujas determinações devem ser buscadas, n ão nas conven ções
“ L’ opé ration historiographique ” [A operação historiográfica ] , foi perpetuadas de um gê nero literá rio, mas nas “ prá ticas determina-
retomado no ano seguinte em L’Ecriture de Vhistoire, mas desta vez com das pelas institui ções técnicas de uma disciplina ” , diferentes confor-
sua terceira parte , amputada por razões de tamanho em Faire de me as é pocas e os lugares, articuladas pelos recortes vari áveis entre
Vhistoire e consagrada à pró pria escritura histó rica. Michel de Cer-
10
verdade e falsidade, ou pelas definições contrastadas do que, histo-
teau nele formula uma tensão central: pensar a histó ria como uma ricamente, d á provas. E , por outro lado, se toda escritura de histó-
prá tica “ cient ífica ” , se a ciê ncia consiste na “ possibilidade de esta- ria remete bem ao eu que a produz , este deve ser constru ído mais
belecer um conjunto de regras que permitam ‘controlar ’ operações em fun ção da posição ocupada por cada historiador na instituição
11
proporcionais à produção de objetos determinados” , e , ao mesmo histó rica de sua é poca do que segundo o princ ípio de curiosidade,
tempo, identificar as variações de seus procedimentos técnicos, as espécie de avatar a-histó rico do princípio de prazer.
restrições impostas pela instituiçã o de saber onde é produzida ou Se as questões levantadas por Paul Veyne tinham um tal peso,
ainda as regras obrigató rias de sua escritura. é sem d ú vida porque estavam em total ruptura com a prá tica mes-
Essa tensão, mantida em todo o texto e que o sustenta, deve ser ma dos historiadores - ou pelo menos dos mais inventivos ou dos
primeiramente compreendida no momento historiográ fico em que mais favorecidos dentre eles - que apoiava sobre o uso do compu-
foi escrito. Dois fatos maiores caracterizam-no. Em primeiro lugar, tador e das técnicas inform á ticas um novo paradigma da cientifi-
a interpelação epistemol ógica, em forma de provocação, que era o cidade histó rica. Para os historiadores, o trabalho quantitativo es-
livro de Paul Veyne , Comment on écrit Vhistoire, publicado em 1971.
12
tabelecido sobre sé ries longas de dados homogé neos era pensado
Michel de Certeau lhe havia consagrado uma nota crítica nos Anna- como uma verdadeira revolu ção: “ A histó ria serial n ão é somente , *

les13 que evidenciava o mais abrupto assalto: “ A histó ria é uma ativi- nem sobretudo, uma transformação do material histó rico. E uma
dade intelectual que, através de formas literá rias consagradas, serve revolu çã o da consci ê ncia historiográfica ” .14 Ela substitu ía uma his-
a fins de simples curiosidade” , ou ainda, outra asserção citada, “ o que tó ria-narrativa , embalada pelo recitativo factual, por uma histó ria-
problema , obrigada a construir seu objeto, a explicitar suas hipó-
teses, a declarar seus procedimentos. As incertezas dos julgamen -
9
Michel de Certeau , “ L’ opé ration historique ” , in Faire de l ’histoire , sob a direção de Jac-
ques Le Goff e Pierre Nora , Paris , Gallimard , 1974, 1.1, Nouveaux problèmes, p. 3-41 . tos que nada permite discriminar, ela opunha o rigor da cifra e as
L opé ration historiographique” , in L’écriture de l ’histoire, op. cil , p. 63-120 ( citamos de
10 “ ’
certezas do “ cientificamente mensur ável ” . Compreende-se os en-
acordo com esta versão) .
11
Ibid . , nota 5. D.64.
7 ' i t
.
12
Paul Veyne , Comment on écrit l histoire
’ . Essai d ’é pist é mologie , Paris , Editions du Seuil , 1971 .
13 Michel de Certeau , “ Une é pist é mologie de transition : Paul Veyne , Annales ” E . S . C . , t . HFran çois Furet , “ L’ histoire quantitative et la construction du fait en histoire ” , Annales
27 , 1972 , p. 1317-1327 . E. S .C . , t. 26 , 1971 , p . 63-75 , retomado em Faire de l’histoire, op. cit ., 1.1, p. 42-61 .

155
154
mentos maciços de dados informatizados, é constitu ída como um re-
tusiasmos da é poca: “ O historiador de amanh ã será programador corte epistemológico radical , que supostamente marque a entrada da
ou n ão ser á mais” .15 história na era da cientifícidade. O essencial continua sendo compre-
Mas essa mutaçã o do trabalho dos historiadores n ão era perce-
ender como “ um aparelho” in édito e técnicas novas permitem respos-
bida apenas por eles. É sobre ela que , na aurora dos anos 1970 , Mi-
tas e perguntas novas. Para ele, as mais interessantes suscitadas pela
chel Foucault apoia seu projeto de an álise dos discursos, opondo história em sé ries vê m justamente de seu verso, ligadas ao surgimen-
termo a termo o “ trabalho efetivo dos historiadores” na “ grande
to do singular, da exceção, da variação: “ Se a ‘compreensão’ histó rica
mutação de sua disciplina ” e a filosofia da histó ria - esta histó ria

não se encerra na tautologia da lenda ou não se dissipa na ideologia ,
como n ã o se faz mais” - que permanecia aquela dos fil ósofos mol- ela tem por caracter ística n ão primeiramente tornar pensáveis sé ries
dados pelo hegelianismo.16 Praticando a história como um “ uso re- de dados selecionados ( ainda que esta seja ‘sua base’ ) , mas jamais re-
grado da descontinuidade para a an á lise das sé ries temporais” , os nunciar à relação que essas ‘regularidades’ mantêm com ‘particularidades ’que
historiadores rompiam decisivamente com os conceitos maiores da lhes escapam ” .17 Mesmo que saiba fazer funcionar as m áquinas de seu
“ história filosófica” postulando a unidade do Esp írito através de suas
tempo, o historiador permanece um “ errante ” que freq ü enta as mar-
particularizações histó ricas sucessivas e necessá rias. gens e os caminhos. Para Michel de C Certeau , elas tiveram , durante toda
“ L’ opé ration historiographique ” fica dividida e, ao mesmo tem-
sua vida, a figura fulgurante das experiê ncias religiosas antigas situa-
po, distancia-se diante desse diagn óstico. Por um lado, Michel de Cer- das fora do ordin á rio da institui ção.
teau salienta os efeitos do recurso às “ té cnicas atuais de informação ,

Atento aos efeitos produzidos pelo cruzamento entre uma revo-
que precipita a redefinição do trabalho dos historiadores. Elas ope- lução metodológica ( aquela do serial ) e uma revolu ção técnica (aquela
ram seleções in éditas entre as fontes, discriminadas de acordo com
do computador ) , ele manté m-se no entanto à distâ ncia das ilusões
sua capacidade de fornecer ou n ão informações seriais, homogé neas científicas trazidas pelas conquistas da abordagem num érica, tão for-
e repetidas. Elas separam operações anteriormente mescladas: a cons-
tes nos anos 1960. Em uma é poca que esquecera um pouco isto , ele
trução do objeto, a coleta e o ac ú mulo dos dados, seu tratamento e
lembra que se a histó ria é uma instituição e uma prá tica , ela também
sua interpretação. Elas modificam a própria fun ção da histó ria, que é, e talvez sobretudo, uma escritura. Ele lhe consagra a terceira parte
se tornou um “ laborató rio de experimentação epistemológica” onde
de seu ensaio que, sem ela , fica desequilibrado e deformado. Nele
se testa a validade dos modelos extraídos das ciências sociais. O diag-
podem-se 1er duas propostas fundamentais. A primeira considera toda
n óstico - bem claro - reconhece as novas estratégias da prá tica histó-
escritura histó rica como uma narrativa, necessariamente constru ída
rica e perfila, a partir delas, “ uma teorização mais de acordo com as
segundo regras que invertem os pró prios procedimentos da pesqui-
possibilidades oferecidas pelas ciê ncias da informação” . sa, pois organizam , em uma ordem cronológica , em uma demonstra-
Entretanto, reinserido nas defesas e ilustrações da histó ria serial ,
çã o fechada e em um discurso sem lacunas, materiais sempre abertos
o texto de Michel de Certeau soa de modo diferente. Em parte algu-
e vazados. Fazendo essa constatação, Michel de Certeau abria o cami-
ma do texto, de fato, a compreensão pelo n ú mero, apoiada nos trata-
nho para todas as reflexões que, como aquela de Paul Ricoeur em
15
Emmanuel Le Roy Ladurie , Le Territoire de l’historien, Paris, Gallimard , 1973, p.14.
Temps et récit,18 designam a perten ça da história , em todas suas formas,
Ré ponse au Cercle d’épisté mologie” , Cahiers pour l’analyse, n . 9, 1968,
"•Michel Foucault, “em mesmo as mais estruturais, mesmo as menos factuais, ao campo do
p.9-40 , retomado Dits et écrits, 1954-1988, edição estabelecida sob a direção de
Daniel Defert e Fran çois Ewald , com a colaboração de Jacques Lagrange, Paris Galli-
,
, “ In-
17
Michel de Certeau , “ L’ opé ration historiographique ” , op. cil., p.99.
mard , 1994, 1.1, 1954-1969, p.696-731; L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard , 1969 l8
Paul Ricoeur, Temps et récit, Paris, Editions du Seuil, 1983-1985.
troduction ” , p.9-28; L’Ordre du discours, Paris, Gallimard , 1970.

157
156
narrativo. Por ser uma “ narra tivização” , a histó ria permanece depen- da , com efeito, como uma pura retórica ou tropologia que faria dela
dente das fó rmulas da “ trama das ações representadas” , para citar uma ficção, semelhante a outras ficções. Ela pretende ser um discurso
Aristó teles, e compartilha as leis que fundam todas as narrativas - em de verdade, construindo uma relaçã o, que pretende ser controlável,
particular, a obrigação da sucessão temporal. com o que estabelece como seu referente , no caso , a “ realidade ”
Lendo bem “ L’opé ration historiographique” , fica claro que o diag- desaparecida a ser resgatada e compreendida. O que se deve então
n óstico, feito alguns anos mais tarde, que caracteriza a evolução mais pensar é esse estatuto de verdade do discurso histó rico - e pensá-lo,
recente da histó ria como um “ retorno do narrativo” , é um amplo simu- n ão como uma emergê ncia do passado , que surgiria intacto à flor
lacro.19 Seja o que for, a histó ria é sempre narrativa, mas narrativa parti- de arquivos, mas como o resultado de uma correlação dos dados
cular, já que visa a produzir um saber verdadeiro: “ O discurso histáiico, recortados pela operação de conhecimento: “ Passa-se assim de uma
quanto a ele, pretende dar um conte údo verdadeiro (que depende da realidade histó rica (a Histó ria , ou Geschichte ) ‘recebida’ em um tex-
veriflcabilidade ) , mas sob a forma de uma narração” . De onde, todo
20
to a uma realidade textual ( a historiografia , ou Historie ) ‘produzi-
22
um leque de questões, claramente formuladas ou determinadas por da’ por uma operação cujas normas são fixadas de antem ão ” .
Michel de Certeau . Em primeiro lugar, a das particularidades que dis- O discurso de hist ó ria é , portanto , articulado sobre um re-
tinguem a narrativa de história de outros modos de narração, a serem gime de verdade que n ã o é nem aquele da literatura nem aquele
buscadas na estrutura “ folheada” ou “ clivada” do texto historiográfico. da certeza filol ógica. O “ controle dos fatos” , retomando a expres-
Por compreender em si mesmo, sob a forma da citação, os materiais sã o de Momigliano , isto é , as opera çõ es técnicas , renováveis e
que o fundamentam e os quais ele justifica, o discurso histórico organi- verificáveis que formam a cr í tica documental , n ã o basta para fun-
za de maneira específica tanto suas estratégias de abonação ( valendo o damentar a hist ó ria como uma reconstituiçã o objetiva do passa-
documento pelo real ) quanto seu funcionamento retó rico ( escreven- do , segura de seu estatuto de verdade. O que Michel de Certeau
do-se o saber na pró pria língua de seu objeto ) . Questão, também , dos nos convida a pensar é o pr ó prio da compreensão , ou da inter-
modos diferenciais de inteligibilidade implicados pela escolha desta ou preta çã o histó rica , ou seja , o trabalho de correla çã o que autori-
daquela forma de narrativa, visto que, por exemplo, a biografia permi- za a considerar coerente , plaus ível , explicativa a rela çã o institu í-
te mostrar a diferença em relação às construções globais dadas em for- da entre as unidades constru ídas pela operação histó rica , sejam
ma de narrativa estrutural. La Fable mystique resgatará algo dessa tensão elas s é ries ou ind ícios, e a realidade referencial de que sã o os tra-
apontada oito anos antes, empregando as “ Figuras do selvagem ” , que ços, esta “ população de mortos - personagens, mentalidades ou
constituem sua quarta parte, como sendo destinos em variação face a pre ços” que a escritura histó rica pretende pô r em cena.
regularidades do discurso m ístico. Em “ L’ opération historiographique” , Michel de Certeau abria um
Poré m , o ensaio de Michel de Certeau enuncia igualmente uma espaço in édito, em um momento chave da evolu ção da disciplina,
outra proposta que é uma espécie de resposta a Hayden White ( cujo dividida entre sua prá tica das sé ries, garantia de sua cientificidade
livro Metahistory data de 1973) .21 A histó ria n ã o pode ser considera- enfim conquistada , e suas caracterizações como um gê nero literá rio,
traçadas por um Barthes ou um Veyne. Deslocando os termos da anti-
nomia, ele se esforçava para estabelecer em que condições um discurso
Lawrence Stone , “ The Revival of Narrative. Reflections on a New Old History , Past

construído de acordo com os procedimentos específicos do trabalho
ly

and Present , t . 85 , 1979 , p . 3-24.



Michel de Certeau , “ L’ opé ration historiographique” , of ) cit ., p . 110 .
,

21 Hayden White , Metahistory . The Historical Imagination in 19h Century Europe, Baltimore

e Londres , The Johns Hopkins University Press, 1973. Michel de Certeau , “ Une é pisté mologie de transition” , op. cit ., p . 1324 .

159
158
histórico pode ser recebido como delineando adequadamente a con- artif ícios e ref ú gio diante dos empreendimentos que queiram desa-
figuração histó rica que construiu como seu objeto. O que supõe, evi- possá-lo e domesticá-lo:
dentemente, repudiar qualquer epistemologia da coincid ê ncia ime-
diata ou da transparê ncia entre o saber e o verdadeiro, entre o dis- Em resumo, poder-se-ia dizer que a m ística é uma reação contra a apro-
curso e o real. Mas o que supõe, igualmente, pensar a operação histó- pria çã o da verdade pelos clé rigos que se profissionalizam a partir do sé-
culo XIII; ela privilegia as luzes dos iletrados, a experiê ncia das mulhe-
rica como um conhecimento ( que outros dirão indiciai ou conjectu- res, a sabedoria dos loucos, o silê ncio da crian ça; ela opta pelas l ínguas
ral ) , como uma operação que é “ científica ” pelo fato de que “ trans- vernaculares contra o latim acad êmico. Ela sustenta que o ignorante tem
forma algo que tinha seu estatuto e seu papel [aqui o documento, o competê ncia em maté ria de fé. [...] A m ística é a autoridade da multi-
arquivo] em uma outra coisa que funciona diferentemente [ o texto dão, figura do an ó nimo, que faz um retorno indiscreto no campo das
histórico] ” . Por conseguir manter essa tensão primeira, o ensaio de autoridades acad ê micas.23
Michel de Certeau formula , como que por antecipação, os pró prios
De L’ Invention du quotidien24 a La Fable mystique, a busca é exatamen-
termos dos debates que, nestes últimos anos, tê m tratado dos para-
te a mesma , à procura dos procedimentos de uma criatividade que
digmas organizadores do discurso de história. a institui ção é impotente para cercear.
“ Pensar é passar ” .25 Michel de Certeau muito passou , e muito
A FORMALIDADE DAS PRÁTICAS pensou . Viajante e historiador - o que talvez seja um só. Mas , ao lon-
go do percurso, jamais faltou coerê ncia, e os desvios, na verdade, n ão
Fiel a essa epistemologia da variação, toda sua obra de historia- eram verdadeiros desvios. Fazer histó ria , para ele, exige que sempre
dor centralizou seu procedimento na an álise precisa , atenta , das seja elucidada a relação mantida entre o discurso de saber e o cor-
prá ticas através das quais os homens e as mulheres de uma é poca po social que o sustenta e onde ele se inscreve. Ao invés de dissolver
apropriam-se , à sua maneira , dos códigos e dos lugares que lhes são sua cientificidade , essa lucidez é sua pró pria condição. De onde, essa
impostos, ou entã o subvertem as regras aceitas para compor formas reflexão aguda sobre a disciplina, que a compreende tanto como um
in éditas. As prá ticas pró prias à linguagem da m ística são emblem á- lugar quanto como uma prá tica , tanto como uma ci ê ncia quanto
ticas dessas “ artes de fazer ” ou de “ fazer com ” que desviam os mate- como uma escritura. De onde , també m , no reconhecimento das
riais dos quais eles se apoderam . Passando de uma l íngua à outra , descontinuidades histó ricas, a ê nfase sobre a tensão entre discurso
usando da metáfora , que é uma maneira de misturar as fronteiras de autoridade e vontades rebeldes, sem d úvida porque ela atravessa
can ónicas entre os campos de saber, retirando das palavras sua sig- tanto nosso presente como as sociedades desaparecidas. A histó ria
nificação reconhecida , o discurso m ístico institui as condi ções de é lugar de experimentação, maneira de revelar diferen ças. Saber do
uma comunicação que n ão se parece com nenhuma outra. Assim outro e, portanto, de si mesmo.
moldado, por meio de reutilizações e deslocamentos, ele pode ten-
tar registrar uma experi ê ncia inaudita: dizer na primeira pessoa a
23
palavra que está em si , quando, enfim , se faz ouvir “ Aquele que fala” . Entrevista de Michel de Certeau , Le Nouvel Observateur, 25 de setembro de 1982,
p.118-121.
Em um momento em que se privilegiava a necessá ria descrição 24
Michel de Certeau , L'Invention du quotidien, t. 1 , Arts de faire, Paris, U.G.E., col . 10 /
dos dispositivos graças aos quais os poderes, sejam quais forem , pre- 18,1980.
tendem produzir controle e coerção, fabricar autoridade e confor-
2>
;
Michel de Certeau , “ Le rire de Michel Foucault ” , ( 1984 ) , retomado em sua coletâ -
nea Histoire et psychanalyse entre science et fiction, Paris, Gallimard , col . Folio, 1987, cap.
midade, Michel de Certeau lembrava que o “ homem comum ” tem 3, p.51-65.

160 161

fmf îH! tU i tllll fiiHf


7. Poderes e limites da representação.
Marin , o discurso e a imagem

Em 1639, Poussin escreve a seu amigo e cliente Chantelou para


anunciar-lhe o envio do quadro intitulado La Manne. Comentando
essa carta em uma é poca em que o emprego do termo “ leitura ” era
evidente para designar a decifração, a compreensão e a interpreta-
ção de objetos ou de formas que n ão pertencem à escrita ( “ 1er” uma
paisagem , “ 1er” uma cidade , “ 1er ” um quadro, etc. ) , Louis Marin pre-
tendia questionar a universalização dessa categoria que , implicita-
mente , implicava a de texto. 1 “ Se o termo leitura é imediatamente
apropriado ao livro, também o é ao quadro? Se, por extensão de sen-
tido, fala-se de leitura a respeito do quadro, levanta-se a questão da
validade e da legitimidade dessa extensã o ” .2 Para responder a essa
dupla questão e para romper com o imediadsmo cômodo de uma
maneira de dizer, aceito sem controle, uma definiçã o rigorosa dos
“ n íveis e campos teó ricos de pertin ê ncia da noção de leitura aplica-
da ao quadro” era tida por necessá ria.
Sem resgatar aqui os diferentes momentos da an álise da carta

Nas notas deste ensaio , as obras de Louis Marin são assinaladas apenas por seu t ítulo .
i «
Lire un tableau . Une lettre de Poussin en 1639” , in Pratiques de la lecture, sob a direção
de Roger Chartier, Marseille , Rivages, 1985 , p . 102-124; reedição , Paris , Payot e Rivages ,
col . Petite Bibliothèque Payot, 1993, p. 129-157.
- Ibid., p. 129.

163

UÎHÎff H ; t
>
de Poussin , retenhamos apenas sua conclusão. Ela
marca, ao mes- na ordem do filosófico, do esté tico ou do teológico ( como, por exem-
duas formas plo, a fulgurante “ visão” que constitui a oitava glosa confrontada com
mo tempo, a irredutibilidade e a imbricação entre essas
, que são o o “ segredo da transfiguração” ) , permite também, acredito, marcar a
de representação, que sempre se excedem uma à outra
importâ ncia do trabalho de Marin nos debates maiores que, hoje em
texto e a imagem, o discurso e a pintura:
dia , permeiam a histó ria e, alé m dela , todas as ci ê ncias humanas. Por
O sentido mais alto trabalha na variação entre o visível
, o que é mostra - essa razão, eu o tomarei como ponto de partida.
do, figurado, representado, encenado e o legível o que
, pode ser dito,
ção e, ao
enunciado, declarado; varia ção que é o lugar de uma oposi ção a partir
mesmo tempo, de uma troca entre um registro e outro, varia La Manne A TEORIA DA REPRESENTAÇÃO
da qual convé m levantar a questão do quadro, desse quadro” , foi a per
[ O Maná] , se é verdade que “ manne” , mann-hu, “ o que é
isto - A primeira proposição que ele estabelece é esta: “ Poder da ima-
gunta que fizeram os hebreus diante desta coisa esbranqu
içada , açuca-
, leram o acon- gem ? Efeito-representação no duplo sentido que dissemos, de pre-
rada , granulosa e através da qual eles nomearam a coisa
tecimento miraculoso. “ Maná” , o “ o que é isto” , coisa desconhe
cida , ino-
” da fó rmula euca-
-
sentificação do ausente - ou do morto e de auto-representação
min á vel, ilegível , fora do quadro, o “ isto é meu corpo ível.3 instituindo o tema de olhar no afeto e no sentido, a imagem é si-
se articula legivelme nte, no misté rio , uma fala comest
rística onde multaneamente a instrumentalização da força, o meio da potê ncia
- e sua fundação em poder ” .6 Um duplo sentido, uma dupla fun ção
Os “ registros” , como escreve Marin , cruzam-se, ligam-se respon
,
de mos- são deste modo atribu ídos à representação: tornar presente uma
dem-se, mas jamais se confundem. O quadro tem o poder ausê ncia , mas també m exibir sua pró pria presen ça enquanto ima-
texto pode-
trar o que a palavra n ão pode enunciar, o que nenhum gem e, assim , constituir aquele que a olha como sujeito que olha.
“ a fragilidade
rá dar a 1er. Ao contrá rio, o que Marin denominará Como gostava freq üentemente de fazer, Marin resgata e desloca
da produ-
do visível dos textos” deixa a imagem estrangeira à lógica definições antigas, que assim se tornam, em uma tensão fecunda, o
tensão
ção do sentido que sustentam as figuras do discurso. Foi essa objeto e , ao mesmo tempo, o instrumento de sua an álise. Em sua edi-
reler e
que ele tornou a trabalhar no ú ltimo livro que conseguiu ção de 1727, o Dictionnaire de Fured è re identifica duas fam ílias de sen-
da obra
corrigir antes de sua morte, Des pouvoirs de Vintage. A proposta tido, aparentemente contrárias, da palavra representação: “ Represen-
levanta uma
ultrapassa em muito, certamente , essa questão, visto que tação: imagem que remete à idéia e à memó ria os objetos ausentes, e
outra propriamente filosófica, aquela das condi
“ ções transcenden-
- ento da í' ma- que os pinta tais como são.” Neste primeiro sentido, a representação
-
tais de possibilidade e de legitimi dade do aparecim
ú lti- mostra o “ objeto ausente ” ( coisa, conceito ou pessoa ) , substituindo-o
gem e de sua eficácia ” ;4 para responder a ela , ele dedica suas por uma “ imagem ” capaz de representá-lo adequadamente. Represen-
mas glosas ao que autoriza a imagem e o olhar - ou seja a
, luz, “ a luz
, o invisível da tar é, pois, fazer conhecer as coisas mediatamente “ pela pintura de
e seu inseparável e transcendental inverso , a sombra um objeto” , “ pelas palavras e pelos gestos” , “ por algumas figuras, por
luz na própria luz. Condições supremas do ver e do ser visto , a luz é
algumas marcas” - como os enigmas, os emblemas, as fá bulas, as ale-
invisível enquanto tal - em seu pró prio ser” . Mas este
5 livro, inscrito
gorias. Representar, no sentido jurídico e político, é també m “ man-
ter o lugar de algué m , ter em m ãos sua autoridade” . De onde, a du-
* Ibid ., p. 154. pla definição do representante: “ aquele que , em uma fun ção p ú bli-
, 1993, “ Introduction . L ê tre de

4
Des pouvoirs de l 'image . Gloses, Paris , Editions du Seuil
l ’ image et son efficace” , p. 9-22 ( citação p . 18 ) . " Ibid . , p. 14.
5
Ibid., p.19.

165
164
ca, representa uma pessoa ausente que lá deveria estar ” e “ aqueles que sitivo: dimensão “ transitiva ” ou transparente do enunciado, toda repre-
sentação ref / resenta alguma coisa ; dimensão “ reflexiva ” ou opacidade enun-
são chamados a uma sucessão como estando no lugar da pessoa de ciativa, toda representa ção apresenta-se representando alguma coisa.8
quem tê m o direito” . Nessa acepção, que se ancora na significação
antiga e material da “ representação” entendida como a ef ígie coloca- Essa maneira de compreender o funcionamento do dispositivo re-
da no lugar do rei morto em seu leito funerá rio ( “ Quando se vêem os presentativo foi uma forte inspiração para todos os historiadores
Pr íncipes mortos em seu leito de morte, vê-se apenas sua representa- preocupados em resistir às sedu ções formalistas de uma semió tica
ção, sua ef ígie” ) , a distin ção é radical entre o representado ausente e estrutural sem historicidade e desejosos de se liberar da in é rcia ou
o que o torna presente, o faz conhecer. Uma relação decií rável é en- da univocidade das noções clássicas da histó ria das mentalidades.
tão postulada entre o signo visível e o que ele significa. Baseando-se na “ constru çã o operada , no â mago do sé culo
Poré m , no Dictionnaire de Fured è re, o termo tem també m uma XVII francês, pelos l ógicos de Port-Royal ” , Marin queria “ escapar
segunda significação: “ Representaçã o, diz-se, no Palácio, da exibi- aos anacronismos epistemológicos e às suas ilusões retrospectivas” .9
ção de alguma coisa” - o que encerra a definição de “ representar ” , Considerando que “ a teoria da representa çã o tinha ela pró pria uma
assim como “ significa també m comparecer em pessoa e exibir as histó ria ” ,10 ele lia a elaboraçã o conceptual de Port-Royal como a
coisas” . A representação é aqui a demonstração de uma presen ça , a conclusão do pensamento ocidental da representa çã o e, ao mes-
apresenta ção p ú blica de uma coisa ou de uma pessoa. Na modali- mo tempo , como uma constru çã o singular que tomava por matriz
dade particular, codificada , de sua exibi çã o , é a coisa ou a pessoa da teoria do signo o modelo teológico da Eucaristia. É esse mode-
mesma que constitui sua pró pria representa ção. O referente e sua lo que, em Le Portrait du roi, permite compreender como opera a
imagem fazem corpo, são uma ú nica e mesma coisa , aderem um ao representa çã o do monarca em uma sociedade cristã. Assim como
outro: “ Representação, diz-se às vezes das pessoas vivas. Diz-se de uma a Eucaristia , o retrato do rei, quer seja de pintura ou de escritura ,
expressão grave e majestosa: Eis uma pessoa de bela representaçã o.” é simultaneamente a representação de um corpo histó rico ausen-
Na reflexão que fez sobre a teoria de representação, do livro te, a ficção de um corpo simbó lico ( o reino no lugar da Igreja ) e a
sobre Pascal e a Logique de Port-Royal7 aos Pouvoirs de l’image, passan- presen ça real de um corpo sacramental , visível sob as santas espé-
do por Le Portrait du roi, Marin sempre manteve juntas essas duas cies que o dissimulam .11 E esse mesmo modelo eucarístico que , em
definições da noção. A primeira , evidentemente, reteve mais sua La Parole mangée, d á conta da teoria representacional do signo tal
aten ção, já que se inscreve diretamente na teoria representacional como enunciada na primeira parte de Logique de Port-Royal pelo
do signo elaborada pelos gram á ticos e l ógicos de Port-Royal. Se essa capítulo IV, “ Des id ées des choses, et des id é es des signes” [ Id éias
constru ção tem uma pertin ê ncia particular, é porque designa e arti- das coisas , e id éias dos signos] , acrescentado à edição de 1683, vinte
cula as duas operações da representa ção quando torna presente o anos após a primeira publica çã o de 1662.12 Após ter lembrado os
que está ausente:
H
Opacité de la peinture. Essais sur la représentation au Quattrocento, Paris, Usher, 1989, “ Paolo
Um dos modelos dentre os mais operató rios constru ídos para explorar Uccello au Chiostro Verde de Santa Maria Novella à Florence” , p. 73-98 (citação p. 73) .
o funcionamento da representação moderna - quer seja lingü istica ou 9
Ibid., “ Introduction ” , p. 9- 12 ( citação p. 10 ) .
visual - é o que propõe a considera ção da dupla dimensão de seu dispo- '11° Ibid.
Le Portrait du roi, Paris , Editions de Minuit , 1981 , “ Introduction . Les trois formules” ,
p. 7-22 , em particular p . 18-19.
La Critique du discours. Etudes sur la Logique de Port-Royal et les Pensées de Pascal, Paris , Edi- La Parole mangée et autres essais théologico-politiques, Paris, M éridiens Klincksieck , 1986 ,
7 12

“ La parole mangée ou le corps divin saisi par les


tions de Minuit, 1975. signes” , p . l 1 - 35.

166 167

BESí U í ;:;
crité rios expl ícitos a partir dos quais o texto distingue diferentes ra, no ornamento, no cen á rio, na arquitetura representada;16 no tex-
categorias de signos ( certos ou prováveis, anexados às coisas que to, o conjunto dos dispositivos discursivos e materiais que constitu-
eles significam , ou separados delas , naturais ou de instituiçã o ) , em o aparelho formal da enunciação. 17 O trabalho de Marin cruza-
Marin mostra que a coerê ncia da sé rie dos exemplos propostos é va assim as propostas que , contra o absoluto do texto sem materiali-
dada , implicitamente , pela referê ncia à teologia da Eucaristia. dade nem historicidade, pleiteiam uma aten çã o dada aos “ efeitos de
Conclui sua análise ressaltando os laços que unem nos lógicos de sentido das formas” , à “ relação da forma com a significação” , de acor-
Port-Royal a teoria eucar ística da enuncia çã o e a teologia lingü is- do com os termos de D. F. McKenzie.
tica da Eucaristia: “ E assim que o corpo teol ógico é a fun çã o semi- De maneira mais geral , o conceito de representação tal como ele
ó tica mesma e que , para Port-Royal em 1683, h á adequa ção per- o compreende e emprega foi um apoio precioso para que pudessem
feita entre o dogma católico da presen ça real e a teoria semió tica ser determinados e articulados, sem d ú vida melhor do que permitia
da representação significante ” .13 a noçã o de mentalidade, as diversas relações que os indivíduos ou os
Ligando em sua historicidade pró pria as duas dimensões da re- grupos mantêm com o mundo social: primeiramente, as operaçoes
presentação moderna , transitiva e reflexiva , Marin deslocava a aten- de recorte e de classificação que produzem as configurações m últi-
ção para o estudo dos dispositivos e dos mecanismos graças aos quais plas graças às quais a realidade é percebida , constru ída, representa-
toda representaçã o se apresenta como representando alguma coi- da; em seguida , os signos que visam a fazer reconhecer uma identida-
sa. Na iutrodução de seu livro Opacité de la peinture, ele lembra os efei- de social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo, a signifi-
tos heurísticos do deslocamento que o conduziu de uma semió tica car simbolicamente um estatuto , uma ordem , um poder; enfim , as
estrutural, fundada sobre uma estrita an álise da produ ção lingúísti- formas institucionalizadas através das quais “ representantes” encarnam
ca do sentido, à “ insistê ncia em explorar de maneira privilegiada os de modo visível , “ presentificam ” , a coerência de uma comunidade, a
modos e as modalidades, os meios e os procedimentos da apresen- força de uma identidade, ou a perman ê ncia de um poder. Discreta-
taçã o da representa ção” .14 De onde , um novo questionamento, res- mente, a seu modo, a obra de Marin modificou assim mais do que se
gatado e deslocado de livro em livro: imagina a maneira como os historiadores transformaram sua compre-
ensão do mundo social. Ela os obrigou , de fato, a repensar as relações
Eram então os modos específicos particulares da articula ção da opaci- mantidas pelas modalidades da exibição do ser social ou do poder
dade reflexiva e da transparê ncia transitiva da representaçã o no campo pol ítico com as representações mentais - no sentido das representa-
das artes visuais, eram as figuras e configura ções histó ricas e culturais,
ideológicas e políticas que singularmente essa articulação assumia em de- ções coletivas de Mauss e Durkheim - que dão ( ou recusam ) cren ça e
terminada obra , em determinada encomenda, em dado programa, eram crédito aos signos visíveis, às formas teatralizadas, que devem fazer
todos esses dom ínios de objetos indissoluvelmente históricos e teó ricos reconhecer como tal o poderio, seja soberano ou social.
15
que passavam a ser os objetivos da pesquisa.

De onde, també m , a aten ção dada aos elementos capazes de revelar "’ Ver, a t ítulo de exemplos, os dois ensaios “ Pinturicchio à Spello” e “ Paolo Uccello au
Chiostro Verde de Santa Maria Novella à Florence” , in Opacité de la peinture, op. cil., p.51-
o funcionamento refletido da representação: no quadro, na moldu-
*

72 e p.73-98.
* ' Ver, igualmente a título de exemplos, os ensaios “ Le pouvoir du récit” , in Le Récit est
un piège, Paris, Editions de Minuit , 1978, p.16-34 (sobre a fá bula de La Fontaine “ Le
"14 Ibid., p.35. pouvoir des fables” ) , e “ Une lisi è re de lecture” , in Lectures traversières, Paris , Albin Mi-
chel, 1992, p. 17-25 (sobre o frontispício da edição de 1697 de Histoires, ou Contes du temps
Opacité de la peinture, op. cil., “ Introduction ” , p.10.
" Ibid. passé de Perrault ) .

168 169

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A DOMINAÇÃO SIMBÓLICA Já os soldados n ão têm o que fazer dessas máquinas de produzir res-
peito: “ Somente os homens de guerra não se disfarçam desse modo,
O trabalho de Marin permite assim compreender como os con- porque com efeito sua participação é mais essencial, eles se estabele-
frontos baseados na violê ncia bruta , na força pura, transformam-se cem pela força , os outros, pela dissimulação” .20
em lutas simbó licas - isto é, em lutas que tê m as representações por Reformulado por Marin , o contraste indicado por Pascal tem
armas e por objetivos. A imagem tem esse poder pois “ opera a subs- uma dupla pertin ê ncia para toda histó ria das sociedades de Antigo
tituição à manifestação exterior onde uma força aparece apenas para Regime. Ele permite situar as formas da dominação simbólica, pela
aniquilar outra for ça em uma luta de morte, signos da força ou , an- imagem , pela “ exibiçã o ” ou pelo “ aparato” ( esta palavra aparece em
tes, sinais e ind ícios que só precisam ser vistos, constatados, mostrados, La Bruyè re* ) , como o corolá rio do monopólio sobre o uso legítimo
e depois contados e recitados para que se acredite na força de que são da força que o monarca absoluto pretende reservar-se. A força n ã o
os efeitos” .18 A constataçã o retoma a hipó tese global que subenten- desapareceu com a operação que a transforma em poderio. Ou ça-
de a demonstraçã o de Portrait du roie que considera que “ o disposi- mos Pascal , que continua assim o fragmento sobre a imagina çã o:
tivo representativo opera a transformação da força em poderio, da
força em poder, e isso duas vezes, de um lado, modalizando a força Assim , nossos reis n ã o buscaram essas fantasias. Eles n ão se mascaram
com roupas extraordin á rias para parecerem como tais; mas fazem-se
em poderio e , de outro, valorizando o poderio em estado legítimo e acompanhar de guardas, de alabardas. Essas tropas armadas que n ã o têm
obrigató rio, justificando-o” .
19
mã os e força sen ão para eles, as trombetas e os tambores que marcham
A referê ncia a Pascal é aqui bem próxima. Desvelando o mecanis- à frente e essas legiões que os cercam fazem tremer os mais impassíveis.
mo da “ exibição” , que se dirige à imaginação e produz cren ça, Pascal Eles n ão têm apenas a roupa, eles tê m a força.
opõe aqueles que precisam de um tal “ aparelho” e aqueles para quem
ele é totalmente supé rfluo. Dentre os primeiros, osjuízes e os médicos: Mas essa força , que permanece sempre à disposição do soberano, é
como que posta em reserva pela multiplicação dos dispositivos ( re-
Nossos magistrados conheceram bem este misté rio. Suas togas vermelhas, tratos, medalhas, louvores, narrativas, etc. ) que representam o po-
seus arminhos, com os quais se cobrem como gatos peludos , os palácios
*
derio do rei e que devem produzir, sem apelo a nenhuma viol ê ncia ,
onde eles julgam, as flores-de-lis, todo esse aparelho augusto era muito a obediência e a submissão. Os instrumentos da dominação simbó-
necessá rio; e se os m édicos n ão tivessem sotainas e pantufas brancas, e
lica garantem simultaneamente, portanto, “ a negaçã o e a conversa-
se os doutores não tivessem barretes e togas muito amplas em quatro
partes, jamais teriam enganado o mundo , que n ão pode resistir a essa ção do absoluto da força: negação, já que a força n ão se exerce nem
exibição tão autêntica. Se tivessem a verdadeira justiça , e se os m édicos se m anifesta , já que está em harmonia nos signos que a significam e
possu íssem a verdadeira arte de curar, eles n ão teriam o que fazer de a designam ; conserva ção, já que a força pela e na representa ção se
barretes; a majestade dessas ciê ncias seria venerável por si mesma . Mas dará como justiça, isto é, como lei obrigatoriamente impositiva sob
possuindo apenas ciê ncias imagin á rias, é preciso que tomem esses vãos
instrumentos que tocam a imaginação da qual tratam ; e assim , de fato, pena de morte ” .21 O processo de erradica çã o da violê ncia , cuja ma-
atraem respeito para si. nipulação é propensa ao confisco pelo Estado absolutista, tornou
possível um exerc ício da dominação pol ítica que se apóia na osten-
,s Des pouvoirs de l ’image, op. cit . , “ Introduction. L’ê tre de l ’ image et son efficace ” , p.14.
19Le Portrait du roi , op. cil ., “ Introduction. Les trois formules” , p. l 1.
20
Pascal, Pensées, Edition Lafurna: 44; Edition Brunschvicg: 82.
* Alusão a Rabelais, que utilizava essa imagem para se referir aos magistrados
, devido a * Em francês, a palavra é “ attirail ” . ( N. de T. )
suas peles de arminho. ( N. de T.)
21
Le Portrait du roi, op. cit., “ Introduction . Les trois formules” , p. l 2.

170 171

w*r tw rmrttt wmm ni 'ITF?


taçã o das formas simbólicas, na representação do poderio mon á r- me , crê que ele vem de uma força natural; e da í vêm estas palavras: “ O
quico, dada a ver e a crer na pró pria ausê ncia do rei gra ças aos sig- cará ter da divindade está impresso em sua fisionomia, etc.” 22
nos que indicam sua soberania. Prolongando esse encontro entre
A tensão entre o fazer-crer e a cren ça leva també m à Logique de
Marin e Elias, poderíamos acrescentar que foi essa mesma pacifica-
Port-Royal e ao capítulo XIV da segunda parte, “ Des propositions
ção ( ao menos relativa ) do espaço social que transformou , entre a
o ù l’ on donne aux signes le nom des choses” [ Propostas em que se
Idade M édia e o século XVII , os confrontos sociais abertos e brutais
d á aos signos o nome das coisas] , que identifica as duas condições
em lutas de representa ções cujo objetivo é o ordenamento do mun-
necessá rias para que a relação de representação seja inteligível: de
do social , logo, a ordenação reconhecida a cada estado, a cada cor- um lado, o conhecimento do signo como signo, em sua diferen ça
po, a cada indivíduo. da coisa significada ; de outro, a existê ncia de conven ções comparti-
lhadas regulando a relação do signo com a coisa. O texto determi-
FAZER-CRER E CRENÇA na as razões de uma possível deriva e de uma possível incompreen-
são da representação. Ou que uma relação arbitrá ria , “ extravagan-
De fato, é do crédito dado ( ou recusado ) às representações que te ” , tenha sido estabelecida entre o signo e o significado: por exem-
um poder pol ítico ou que um grupo social propõe de si mesmo que plo, se um homem tivesse o capricho de dizer que uma pedra é um
depende a autoridade do primeiro e o prestígio do segundo. Por cavalo, ou um asno, um rei da Pé rsia. Ou que o destinatá rio, por fal-
meio dessa constata ção, Marin delineou os contornos de uma du- ta de “ preparaçã o” , n ã o possa compreender o signo como signo. Por
pla histó ria: histó ria das modalidades do fazer-crer, história das fon- essa razão, nã o se pode dar aos signos de instituição o nome das coi-
mas da cren ça. Sua obra reuniu assim em um mesmo procedimen- sas, como, por exemplo, na pará bola ou na profecia, a não ser quan-
to a an á lise dos dispositivos, discursivos ou formais, retóricos ou nar- do aqueles a quem se dirige são capazes de conceber que o signo
rativos, que devem coagir o leitor ( ou o espectador ) , assujeitá-lo, n ão é a coisa significada sen ão em significa çã o e em figura. Mesmo
“ prend ê-lo na armadilha ” , e , por outro lado, o estudo das variações que tenha dado aten ção sobretudo aos mecanismos discursivos ou
possíveis em vista dessas mecâ nicas persuasivas - tanto mais poten- visuais que visam a manipular o leitor, a fazê-lo crer naquilo que se
tes quanto dissimuladas, mas tanto menos eficazes quanto desmon- quer que ele creia, o trabalho de Marin , apoiado na referência a Port-
tadas. A tensão leva necessariamente a Pascal , que desnuda as mo- Royal , ajuda a pensar as próprias condições da eficácia ou do fracas-
ías do dispositivo representativo e as pró prias condições de sua cre- so de uma tal inten çã o. Nisso, ele cruza diretamente as interroga-
dibilidade. Assim , este fragmento, citado na “ Introdução” de Portrait ções de Michel de Certeau sobre as formas da cren ça, assim compre-
du roi, que mostra como os mecanismos que transformam a força em endida: “ Entendo por ‘cren ça’ n ão o objeto do crer ( um dogma, um
poderio produzem respeito e terror, lembrando a seu espectador a programa , etc. ) , mas o investimento dos sujeitos em uma proposi-
violência originá ria fundadora de todo poder: ção, o ato de enunciá-la considerando-a verdadeira - ou seja, uma
‘modalidade ’ da afirmação e n ão seu conte ú do” .23
O costume de ver os reis acompanhados de guardas, de tambores, de As condições do crer remetem , primeiramente , aos lugares e
oficiais, e de todas as coisas que inclinam a m áquina para o respeito e o
terror, faz com que seu rosto, quando está algumas vezes só e sem seus
acompanhamentos, imprima em seus súditos o respeito e o terror, por- "
Pascal, Pensées, Edition Lafuma: 25; Edition Brunschvicg: 308.
que n ão se separa na mente suas pessoas de seus séquitos, geralmente 23
Michel de Certeau , L’Invention du quotidien, t. 1, Artes dé faire, ( 1980 ) , reedi ção Paris,
vistos juntos. E o mundo, que n ão sabe que esse efeito vem desse costu- Gallimard, 1990, p. 260.

172 173
as formas da inculcaçã o das conven ções, às modalidades da “ prepa- j mida , que justifica as maquinaçõ es discursivas de Pellisson assim
ração” para compreender os princípios da representação de que fa- j como a desmontagem minuciosa de sua motivação. E ela que fun-
lam os lógicos de Port-Royal. Elas supõem igualmente que a leitura , j damenta o objeto de um trabalho, complementar à quele feito por
a decifração, a interpretação nunca são totalmente nem controla- j Marin , que visa a identificar os limites e as figuras, as regularidades
das nem impostas pelos discursos e pelas imagens. E verdade que n ão j e as singularidades de uma tal liberdade.
se encontra em Marin nem teoria da recepção , nem histó ria da lei- j
lura . No entanto , o cuidado minucioso que ele dedicou a compre
- ]
.
O TEXTO E A IMAGEM
ender “ os estratagemas, artif ícios e maquinações” desenvolvidos
21

pelos textos e quadros para impor uma significação un ívoca, para Nessa tensão entre os efeitos de sentido visados pelos discursos
enunciar e produzir sua correta interpreta ção, parece-me repousar ou pelas pinturas e suas decifrações, as relações entre o texto e a
sobre o postulado de que o leitor ou o espectador pode sempre ser imagem sempre tiveram para Marin uma extrema importâ ncia. Em
rebelde. Assujeitá-lo ao sentido n ão é fácil , e a sutileza das armadi-
|
seu livro, Des pouvoirs de l'image, a proposta n ão é analisar os proce-
lhas que lhe são armadas é proporcional à sua capacidade, sá bia ou dimentos de apresentação da representação - o que era o objeto dos
desajeitada , de usar de sua liberdade. Como em Michel Foucault, ensaios reunidos em Opacité de la peinture -, mas estudar textos que,
para quem analisar os aparelhos disciplinares n ão significa entretan- de diversas maneiras, reconhecem e experimentam os poderes das
to concluir que a sociedade é forçosamente disciplinada , em Marin , | imagens. O procedimento é justificado deste modo:
desmontar as m á quinas textuais que constroem o leitor-destinatá rio j
como efeitos emitidos da mensagem n ão obriga a supor que os lei- j E nesta fragilidade do visível dos textos - “ visível ” que é no entanto seu
tores reais se conformem totalmente ao “ leitor-simulacro ” do diseur- j objeto - que os textos assim glosados e entreglosados resgatam , por essa
so. Os artif ícios podem ser dos mais h á beis, e os “ golpes” muito cer- I estranha refcrencialidade , uma capacidade renovada de abordagem da
teiros como , por exemplo , aqueles lan çados por Pellisson em seu I imagem e de seus poderes, como se a escritura e seus poderes específi -
cos se encontrassem excitados e exaltados por esse objeto que se ocul-
Projet de Vhistoire de Louis XIV, que visam a fazer com que uma narra- I tasse necessariamente, por sua heterogeneidade semi ótica , por sua oni-
tiva de histó ria seja lida por seu leitor como um discurso de louva- 1 potente influ ê ncia ; como se o desejo de escritura ( da imagem ) tentasse
çã o , pois “ o que n ão é dito na emissã o ( epí tetos e elogio ) o é - ne- j se realizar “ imaginariamente ” deportando-se fora da linguagem , no que,
sob muitos aspectos, constitui seu verso ou seu outro, a imagem.
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cessariamente - na recepção. O que n ã o é representado na narrati- 1


va e pelo narrador o é na leitura pelo narratá rio, a t ítulo de efeito 1
“ Fragilidade do visível dos textos ” , “ heterogeneidade semió ti-
da narrativa ” .2"’ Essa engenhosidade produtora de efeitos, sempre | ca ” da imagem à escritura: essas f ó rmulas são um ponto de apoio
pensados como necessá rios, jamais tem no entanto a garantia do 1
precioso para quem recusa identificar todas as produ ções simbóli-
leitor, cuja falta de saber ou m á vontade pode ser muito dif ícil de j cas, as imagens mas també m os rituais ou a “ invenção do cotidiano” ,
persuadir. É essa poss ível variação, jamais designada mas sempre te- j a uma textualidade. Contra tal posição, que anula todas as distin ções
fundadoras do trabalho histó rico ( entre texto e contextualização,
oj u
Pour une th éorie baroque de l ’ action politique . Lectures de Considérations sur les coups entre discurso e imagem , entre prá tica e escritura ) , deve-se estabe-
d 'Etat de Gabriel Naudé” , in Gabriel Naudé , Considérations politiques sur les coups d Etat
' ,
Paris , Editions de Paris , 1988 , p. 7-65 ( citação p. 31 ) . 1
25 Le Portrait du roi, op. cil ., “ Le ré cit du roi ou comment écrire l ’ histoire ” , p. 49- 107 ( cita-
-" Des pouvoirs de l'image, op. cil., “ Introduction . L’ ê tre de l ’ image et son efficace ” , p . 9-22
( citação p . 21 ) .
ção p .95 ) .

175
174
lecer a radical diferen ça entre a l ógica em açã o na produ ção dos dade da era cl ássica, o conceito obrigou os historiadores a banir de
discursos e as l ógicas outras, que habitam a “ visualizaçã o” , o rito ou seu repertó rio as noções anacrónicas, importadas à força para dar
senso prá tico. O trabalho de Marin sempre se baseou em uma cons- conta de realidades que lhes são totalmente estranhas. A introdu-
ci ê ncia aguda dessa heterogeneidade , portanto , da historicidade e ção de Portrait du roi descreve com acuidade a trajetó ria seguida: após
da descontinuidade dos funcionamentos simbó licos. ter determinado “ o lugar capital que ocupava, entre os gram á ticos
Da í sua pertin ê ncia para todos aqueles que consideram ilegíti- e os l ógicos de Port-Royal , a noção de representação e sua equiva-
ma a redu ção das prá ticas constitutivas do mundo social e de todas l ê ncia geral , que era por eles posta ou pressuposta com a noção de
as formas simbólicas que n ão recorrem ao escrito, aos princ ípios que signo em qualquer n ível que se analisasse a linguagem ( termo, pro-
comandam os discursos. Reconhecer que as realidades passadas não posi ção, discurso ) , a qualquer dom ínio que essa linguagem perten-
são acessíveis, na maioria das vezes, sen ã o através dos textos que pre- cesse ( verbal, escrito, icônico ) ” ,28 Marin identificou a matriz euca-
tendiam organizá-las, descrevê-las, prescrevê-las ou proscrevê-las, n ã o r ística dessa teoria , depois reconheceu as modalidades e os efeitos
obriga no entanto a postular a identidade entre a l ógica que gover- do dispositivo de representa çã o no campo do pol ítico. A operaçã o
na a produ ção dos discursos e a lógica prá tica que regula as condu- de conhecimento encontra-se assim solidamente apoiada na apare-
tas ou a l ógica “ icô nica ” que governa a obra de pintura. De sua irre- lhagem nocional que os pró prios contemporâ neos utilizavam para
dutibilidade ao discurso decorre uma necessá ria prud ê ncia no uso ( ornar sua pró pria sociedade menos
opaca a seu entendimento.
da categoria de “ texto” , excessiva e indevidamente aplicada a formas Alé m desse primeiro uso, historicamente localizado, a noção de
ou a prá ticas cujos modos de constru ção, princ ípios de organização representação carregou-se de uma pertin ê ncia mais ampla, desig nan-
nao sao em nada semelhantes às estratégias discursivas. Por isso, a do o conjunto das formas teatralizadas e “ estilizadas” (segundo a ex-
tensão que habita os textos selecionados em Des pouvoirs de limage e pressão de Max Weber) graças às quais os indivíduos, os grupos, os
que se encontram todos diante da mesma dificuldade, lembrada aqui poderes constroem e propõem uma imagem de si mesmos. Como es-
acerca de Salons de Diderot: “ Como fazer com palavras uma imagem creve Pierre Bourdieu , “ a representação que os indivíduos e os grupos
ou entã o [ ... ] como dar a uma imagem constru ída em e pelas pala- fornecem inevitavelmente através de suas prá ticas e de suas proprie-
vras seu poder pró prio ou , ao inverso, como transferir às palavras , à dades faz parte integrante de sua realidade social. Uma classe é defi-
sua ordenação e às suas figuras o poder que a imagem encerra por nida tanto por seu ser-percebido quanto por seu ser, por seu consumo -
sua pró pria visualidade, pela imposiçã o de sua presen ça.2 ' Com essa que n ão precisa ser ostentador para ser simbólico - quanto por sua
transposiçã o necessá ria mas imposs ível , apesar de toda a arte da posição nas rela ções de produ ção ( mesmo que seja verdade que esta
ekphrasis, marcam-se , em sua singularidade, as forças e os poderes comanda aquela ) ” .211 Assim entendido, o conceito de representação
que , diversamente , são aqueles da imagem e da linguagem . leva a pensar o mundo social ou o exercício do poder de acordo com
Há uma dupla pertin ê ncia ao conceito de representação tal um modelo relacional. As modalidades de apresentação de si são, cer-
como compreendido e empregado por Marin. De in ício, conside - tamente , comandadas pelas propriedades sociais do grupo ou pelos
rado como um instrumento essencial para compreender os mode - recursos pró prios de um poder. No entanto, elas n ão são uma expres-
los de pensamento e os mecanismos de domina çã o pró prios à socie- sã o imediata, autom á tica, objetiva, do estatuto de um ou do poder do

w Le Portrait du roi , op . cil ., “ Introduction . Les trois formules” , p.7.


27Ibid . , “ Le descripteur fantaisiste. Diderot, Salon de 1765, Casanove, n . 94, Une marche

j J
' l’ iorre Bourdieu , La Distinction . Critique sociale du jugement , Paris, Editions de Minuit,
d armée', description ” , p.72-101 ( cita ção p .72 ) .
' 1079, p.563-564.

176 177
outro. Sua eficácia depende da percepção e do julgamento de seus j nou suas ú ltimas pesquisas sobre os processos e os eteitos da repre-
destinatá rios, da adesão ou da distâ ncia ante mecanismos de apresen- j sentação para a constitui ção do sujeito pol ítico na Europa dos sécu-
tação e de persuasão postos em ação. < los XVI e XVII. O relató rio de seu semin á rio da Ecole des hautes étu-
No século XVII, essa pluralidade das apreciações é inquié tante. des de 1990-1991 indica claramente isso:
De onde a busca de relações necessá rias, de equivalê ncias estáveis: nos
No centro da problem á tica do pol ítico, foi colocada a questão do poder
tratados de civilidade , entre a posição e o parecer; no ritual pol ítico, de Estado, centralizando-a precisamente na operacionaliza çã o do gover-
entre o princípio da soberania mon á rquica e as formas de sua expres- no e das técnicas visando a criar o consentimento necessá rio à sua cons-
são simbólica; na teoria do signo, entre a coisa que representa e a coi- tituiçã o e à sua reprodu çã o. Como, nessa é poca , são analisadas e cons-
sa representada. Marin pôs no centro de seu trabalho essas conven- j tru ídas l ógicas passionais subentendendo os comportamentos individuais
e coletivos e como essas lógicas são utilizadas e desenvolvidas na mam-
ções que visavam a fixar e a imobilizar os funcionamentos sociais, a pulação das paixões em vista do assujeitamento?30
assegurar uma plena eficácia aos modos simbólicos da dominação
pol ítica , tanto mais poderosos quanto mais conhecidos e reconheci- j Faltou tempo para as respostas, embora em 1991-1992, em um
dos como legítmos por aqueles que eles devem submeter. Mas entre semin á rio que devia ser o último, Marin , retornando ao quiasma do
demonstração e imaginação, entre a representação proposta e o sen- j poder pol í tico e da representação do teatro, ele cruzasse a figura do
tido constru ído, discordâ ncias são poss íveis. Não somente nas socie- \
dades menos rigidamente codificadas do período posterior à Révolu- j
rei como autor - Jaime I , o autor de Basilikon Dôron com aquela
do poeta como rei - o Prospero-Shakespeare de A Tempestade.31 Fal-

ção, mas até mesmo no século XVII. Ouçamos La Bruyè re: j tou tempo, mas, deixando- nos as quest ões, Marin nos disse també m
como se devia abord á-las:
Tu te enganas, Philé mon , se com essa carruagem brilhante, esse grande
n ú mero de velhacos que te seguem , e essas seis bestas que te carregam , j Como atravessar este texto, de sua intimidade, sem dilacera ção, ao final,
pensas que te estimam mais por isso: descarta-se todo esse aparato que | no momento de deixá-lo? Dever-se-ia frequentar o texto como o cami-
te é estranho para penetrar até ti , que n ã o passa de um pretensioso. N ã o j nhante freqiienta habitualmente a Rua Traversi è re*, tomando com um
que se deva perdoar algumas vezes aquele que, com um grande cortejo, j passo vivo uma parte de seu percurso sem nela flanar por curiosidade
uma vestimenta rica e um magn ífico equipamento, crê-se mais bem-nas- 1
nem nela se deter por interesse. Simplesmente para passar mais depres-
eido e mais arguto: ele l ê isso na atitude e nos olhos daqueles que lhe 1
j sa a outros lugares ou abrir mais facilmente outros espa ços. É este tam-
falam ( Les Caracteres de Théophraste traduits du grec, avec les Caract ères ou les
bé m o sentido do atalho: ‘caminho particular mais curto que o caminho
moeurs de ce siècle, 1688, “ Du m é rite personnel ” ) .
principal ou que leva a um lugar ao qual o caminho principal n ão leva’ ,
De um lado, portanto, a constataçã o da for ça da representação que j
manipula o destinatá rio faz com que ele reconheça a posiçã o e o 1 “ Sé mantique des systè mes de représentation ” , in Ecole des hautes é tudes en sciences
30

sociales, Annuaire. Comptes rendus des cours et confé rences 1990- 1991 , p.400-401. Iniciado
m é rito por detrás da “ exibi çã o” , transforma-o em um espelho onde em 1978-1979, o semin á rio de Louis Marin teve por título “ Sé mantique des systè mes
o poderoso vê e se persuade de seu pró prio poder. Mas, de outro représentatifs” [ “ Sem â ntica dos sistemas representativos” ! até o ano 1988-1989. Em seu
lado, o texto diz as falê ncias do engodo, o desvelamento do artif í- i ú ltimo ano, em 1991-1992, ele figura sob o t ítulo “ Systè mes de représentation à l ’âge
moderne ” [ “ Sistemas de representação na idade moderna ” ] .
cio, a percepção da distâ ncia entre os signos exibidos, o “ aparato ” j " Des pouvoirs de l'image, op. cit ., “ Le portrait du roi en auteur.Jacques Ier d ’ Angleterre, le
ostentador, e a realidade que eles n ão podem dissimular. Basilikon Dôron, sonnet , 1588-1603” e “ Le portrait du poè te en roi. William Shakespea-
A obra de Marin sempre se situou entre a onipotê ncia da re- re, La Tempête, ato I , cenas 1 e 2 ( 1611 ) ” , p.159-168 e p.169-185.
s
* A Rua Traversière localiza-se no 12 > arrondissement de Paris, e seu nome significa uma
l

presenta çã o e seus possíveis desmentidos. Foi essa tensão que orde- rua que corta caminho, um atalho. ( N. de T. ) :

178 179
mas sem d úvida com um efeito de surpresa ou de espanto: o atalho que
tomo, singularmente , conduz a outro lugar, lá onde ‘o caminho princi-
pal n ão leva’ , um fim outro, que eu n ão suspeitava: descoberta . Não era 8. O poder, o sujeito, a verdade.
aonde eu queria ir e , no entanto, secretamente , esse lugar revela se o de -
um verdadeiro desejo, do desejo de verdade.32 Foucault leitor de Foucault

Nas entrevistas , nos pref á cios, nas conferê ncias, nos cursos,
hoje reunidos em Dits et écrits, Michel Foucault manifesta uma preo-
cupa ção constante: inscrever em uma coerê ncia global o trabalho
já feito e as investigações em andamento. Através de m ú ltiplos re-
trocessos, Foucault revela-se assim o primeiro leitor de Foucault.
As leituras m ú ltiplas que ele propôs de sua “ obra ” serão o objeto
deste ensaio.

OLHARES RETROSPECTIVOS

Desses olhares retrospectivos, os primeiros pretendem estabe-


lecer proximidades intelectuais. Enunciam-se de modo às vezes ba-
nal e classicamente biográfico quando Foucault, em uma situação
de entrevista, acha-se questionado sobre os autores e as leituras que
o marcaram. Mas podem ser mais “ foucaultianos” quando Foucault
se esforça para aplicar a seu pró prio trabalho uma abordagem ge-
nealógica , entendida como “ uma forma de história que d ê conta da
constituição dos saberes, dos discursos, dos dom ínios de objetos, etc.,
sem ter que se referir a um sujeito, quer seja transcendente em rela-
32
Lectures traversières, op. cit., “ Rue Traversiè re ” , p.9-15 ( citação p.14-15 ) . Nas notas deste ensaio, as obras de Louis Marin são assinaladas apenas por seu título.

180 181
Recusar as noções antigas associadas à “ fun ção-autor ” ( origina-
ção ao campo de acontecimentos, quer flua em sua identidade va-
lidade da obra, singularidade do discurso, subjetividade do autor )
zia ao longo de toda a histó ria ” .
1
permitia desenvolver uma abordagem crítica e geneal ógica dos dis-
Há nisso um alerta fundamental contra todas as leituras que co-
cursos que podia legitimamente ser aplicada ao seu próprio. O pre-
locam espontaneamente em cena, para compreender seu trabalho, f á cio à tradu ção inglesa de Les Mots et les Choses inscreve o livro, por
as categorias clássicas da histó ria das idéias - este “ velho solo gasto até
exemplo, em uma sé rie de discursos que o engloba e que uma mes-
a misé ria ” 2 que ele pretendia justamente levar ao pousio definitivo.
ma situação de enunciação e uma mesma rede teó rica re ú nem: “ Ser-
Assim , uma tensão extrema atravessa o discurso de Foucault sobre si
me-ia inconveniente - mais a mim do que a qualquer outro - pre-
mesmo, sempre preso entre as exigê ncias e as armadilhas dos enun- tender que meu discurso é independente das condições e de regras
ciados na primeira pessoa e o esforço feito para se liberar delas. Para das quais sou, em boa parte, inconsciente, e que determinam os
resolver isso, ele delineou , vá rias vezes, o possível e desejável apaga-
outros trabalhos efetuados hoje em dia ” .5
mento da “ função-autor” , como na conferê ncia pronunciada diante A segunda forma da relação mantida por Foucault com sua pró-
da Sociedade Francesa de Filosofia em 1969: “ Vendo as modificações
pria “ obra ” é classificató ria ou “ arquitetô nica ” : trata-se de inscrever
históricas que aconteceram , n ão parece indispensável , longe disso, que
os livros já escritos e aqueles em andamento em uma organização
a fun ção-autor permaneça constante em sua forma, em sua comple- sistem á tica, uma arquitetura cuja fun ção é, ao mesmo tempo , dar
xidade, e mesmo em sua existê ncia. Pode-se imaginar uma cultura conta da lógica de uma trajetó ria de pesquisa e da coerência de um
onde os discursos circulariam e seriam recebidos sem que a fun ção-
procedimento. O modelo dessas reorganizações retrospectivas é for-
autorjamais aparecesse ” .3 Percebe-se o mesmo nas palavras iniciais da necido desde 1969 em LArchéologie du savoir. Foucault já publicara
aula inaugural do Collège de France.
Histoire de la folie ( 1961 ) , Naissance de la clinique ( 1963) e Les Mots et
No discurso que devo fazer hoje, e naqueles que deverei fazer aqui , tal- les Choses (1966 ) . Cada um desses livros parece-lhe então a explora-
vez durante anos , eu gostaria de poder deslizar sub-repticiamente. Mais ção de um dos traços constitutivos de toda forma çã o discursiva e a
do que tomar a palavra , eu gostaria de ser envolvido por ela , e levado aplicação de um dos patamares da an á lise arqueológica. No vocabu-
bem al é m de todo começo poss ível . Eu gostaria de perceber que, no l á rio de L’Archéologie du savoir, um tanto abandonado na seq üê ncia,
;
momento de falar, uma voz sem nome me precedia h á muito tempo
bastar-me-ia então encadear, continuar a frase, alojar-me, sem chamar
esses diferentes patamares concernem à constituição de um “ refe-
a aten çã o, em seus interst ícios , como se ela me tivesse feito um sinal
, rencial ” , entendido como a forma ção do dom ínio particular de ob-
mantendo-se por um instante em suspenso. Começo, n ão haveria ne- jetos que o discurso visa; à formula ção de uma “ variaçã o enunciati-
nhum ; e ao invés de ser aquele de onde vem o discurso, eu estaria mais va ” , isto é, do regime específico de enunciaçã o à produ ção desse
ao acaso de seu desenrolar, uma pequena lacuna , o ponto de seu desa-
discurso; e à presen ça de uma “ rede conceptual ” definida pelas re-
parecimento possível.4
gras de formaçã o dos conceitos pró prios à formação discursiva con-
siderada. As três obras da d écada de 1960 encontram muito natu-
sob a ralmente espaço nessa arquitetura sistem á tica:
I «
Entretien avec Michel Foucault ” , Dits et écrits, 1954- 1988, edição estabelecida
direção de Daniel Defert e Fran çois Ewald , com a colaboraçã o de Jacques Lagrande
,
Em Histoire de la folie, eu tratava de uma forma ção discursiva cujos pon -
Paris, Gallimard , 1994, III, 1976- 1979, p.140-160 ( cita ção p.147 ) .
2 L’Archéologie du savoir, Paris, Gallimard , 1969, p.179. tos de escolha teó ricos eram bem fá ceis de determinar, cujos sistemas
Qu ’ est-ce qu’ un auteur?” , Dits et écrits, I, 1954- 1969, p.789-821 (citação p 811 ^ Pa
3« . ).
* L’Ordre du discours . Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre
1970, - 5“
Préface à l ’édition anglaise” , Dits et écrits, II , 1970- 1975 , p.7-13 ( citação p.13) .
ris, Gallimard , 1970, p.7-8.

183
182
conceptuais eram relativamente pouco numerosos e sem complexida- PARENTESCOS INTELECTUAIS
de , cujo regime enunciativo, enfim , era bastante homogé neo e mon ó-
tono; em contrapartida , o que causava problema era a emergê ncia de Na longa entrevista que dá a D. Trombadori no final de 1978, Fou-
todo um conjunto de objetos muito emaranhados e complexos; antes cault inscreve seu trabalho em três linhagens.7 A primeira é uma famí-
de mais nada, tratava-se de descrever, para determinar em sua especifi-
cidade o conjunto do discurso psiquiá trico, a forma çã o desses objetos. lia de escritores: Blanchot, Bataille, Klossowski , aos quais, em outros
Em Naissance de la clinique, o ponto essencial da pesquisa era a maneira textos, outros nomes podem-se acrescentar - como Artaud , Breton ,
como se tinham modificado, no final do século XVIII e no in ício do Leiris. O ponto comum entre esses autores foi “ arrancar o sujeito de si
século XIX, as formas de enuncia ção do discurso médico; a an á lise in- mesmo, fazer de modo que ele não seja mais ele mesmo ou que seja
cidia portanto mais sobre o estatuto, a situa ção institucional , a situa-
çã o e os modos de inserção do sujeito que discorre do que sobre a for-
levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução” .8 Na experiê ncia do
ma ção dos sistemas conceptuais ou sobre aquela das escolhas teó ricas. limite, ao mesmo tempo escriturai e existencial, Blanchot, Bataille e
Enfim , em Les Mots et les Choses, o estudo incidia, em sua parte princi- Klossowski operam uma fundamental “ dessubjetivizaçâo” .
pal, sobre as redes de conceitos e suas regras de formação ( idê nticas Tal lembran ça remete à presen ça recorrente, obsédante, des-
ou diferentes ) , tais como podiam ser determinadas na Gram á tica ge- ses três autores nos textos de Foucault dos anos 1960. Em 1963, em
6
ral , na Histó ria natural e na An á lise das riquezas.
um artigo de Critique, ele caracteriza a obra de Bataille como uma
E Foucault conclui que resta a estudar a quarta caracter ística das prova do limite que é ruptura com a “ soberania do sujeito que filo-
formações discursivas, ou seja , o “ campo de possibilidades estraté- sofa ” , “ fratura do sujeito filosófico” .9 Com Bataille, “ o fil ósofo sabe
gicas” que delineia escolhas teó ricas similares por detrás da diferen- que ‘n ão somos tudo’ ; mas descobre que ele próprio n ão habita a
ça das opiniões ou , ao inverso , marca irredut íveis variações teó ricas totalidade de sua linguagem como um deus secreto e onifalante, des-
alé m de uma tem á tica comum. cobre que há, ao lado dele, uma linguagem que fala e da qual não é
A operação intelectual efetuada em L'Archéologie du savoirser á o mestre ” .10 Um ano mais tarde , o ensaio sobre Klossowski publica-
muitas vezes reiterada por Foucault ao longo de todo seu trabalho. do em La Nouvelle Revuefrançaisè 1 determina, nas figuras do simula-
Ela marca a importâ ncia que tinham para ele as exigê ncias da or- cro propostas pelo escritor, o desdobramento ou a dispersão do su-
denaçã o que devia tornar visível a l ógica da obra . Ao mesmo tem- jeito, falando “ em vozes que se sopram , se sugerem, se apagam , se
po, havia sempre o risco do retorno às categorias clássicas da his- substituem umas às outras - dispersando o ato de escrever e o escri-
tó ria das id é ias, no entanto recusadas, já que esse projeto postula , tor na distâ ncia do simulacro onde ele se perde, respira e vive ” .12 O
contrariamente ao que mostra a an álise arqueológica das forma- sujeito ú nico e unificado da filosofia idealista é assim substitu ído pela
ções discursivas, que a obra deve necessariamente ter unidade e “ multiplicação teatral e demente do Eu ” .13
coerê ncia. Foucault leitor de si mesmo n ã o se encontrava , portan - Um pouco mais tardio, o texto sobre Blanchot, publicado em
to, numa situa ção melhor do que seus comentaristas, sempre divi- Critique de 1966,14 faz da experi ê ncia da linguagem uma “ experi ê n-
didos entre a evid ê ncia enganosa das noções que permitem falar
das obras e a radicalidade das rupturas impostas pelo pró prio em- “ Entretien avec Michel Foucault” , Dits et écrits, IV, 1980-1988, p.41-95.
7

* Ibid., p.43
.
preendimento foucaultiano. « “ Préface à la transgression ” , Dits et écrits, I , p.233 250.
-
10
Ibid., p.242.
n « La prose d ’ Actéon ” , Dits et écrits, I , p.326-337.
12
Ibid., p.337.
13 “
La pensée du dehors” , Dits et écrits, I , p.518-539 ( citação p.522 ) .
6
L’Archéologie du savoir, p.86.
" Ibid.
184 185
cia do exterior : “ Desde Mallarm é, já se sabia bem que a palavra é a Entre os historiadores das ciê ncias, a “ questã o da Aufklãrung’ é situ-
inexistê ncia manifesta do que designa; sabe-se agora ljque o ser da ada em uma “ filosofia do saber, da racionalidade e do conceito ” - e
linguagem é o visível apagamento daquele que fala’ . A obra nao este é um segundo ponto em comum , mais fundamental ainda , que
expressa uma individualidade singular; ela “ existe de alguma maneilb- opõe termo a termo essas quatro obras à filosofia da experiê ncia , do
ra por si mesma, como o escoamento nu e an ónimo da linguagem . sentido e do sujeito, que é a de Sartre e de Merleau-Ponty. Para Fou-
A dissolu ção do sujeito em uma experi ência limite, quer sua natu- cault, essa clivagem é antiga e estruturante na filosofia francesa , da
reza seja sexual com Bataille ou ling ü istica com Blanchot, situa-se oposição entre Comte e Maine de Biran até aquela entre Poincaré
em total discord â ncia com a exigê ncia do nome pró prio que gover- e Bergson . E ele encontra sua mais recente formula ção na dupla lei-
na o estatuto da literatura desde a Renascen ça. Essa contradi ção tura de M éditations cartésiennes de Husserl: aquela epistemológica de
maior estará no centro da reflexão em “ Qu ’ est-ce qu ’ un auteur ” e Cavaillès, aquela fenomenol ógica de Sartre.
será ela que conduzirá Foucault a identificar os diferentes dispositi- A história das ciê ncias, em sua definição filosófica francesa , tem
vos ( apropriação penal dos discursos, primeiramente , definição ju- um primeiro objetivo: evidenciar a historicidade do pensamento do
r ídica do direito de autor, a seguir ) que sustentaram a constru ção universal , opor à razão - entendida como uma invariante antropo-
da “ fun ção-autor ” , entendida como a atribuição a um nome pró prio l ógica - a descontinuidade das formas da racionalidade. Trata-se
da obra literá ria. entã o de questionar “ uma racionalidade que pretende ao universal ,
A segunda genealogia na qual Foucault inscreve seu pró prio desenvolvendo-se ao mesmo tempo na contingê ncia , que afirma sua
trabalho é a da histó ria das ciê ncias. Na entrevista dada a D. Trom- unidade e que só procede no entanto por modificações parciais, que
badori , ele menciona apenas o nome de Koyré, mas na introdu ção valida a si mesma por sua pró pria soberania mas que n ã o pode ser
que redigiu para a tradução inglesa do livro de Canguilhem, Le Nor- dissociada em sua história , das in é rcias, das lentidões ou das coer-
mal et le Pathologique, publicada em 197817 e revisada em 1984 para o ções que a assujeitam ” .20 Um segundo deslocamento operado pela
n ú mero da Revue de méíhaphysique et d£ morale consagrado à obra de histó ria das ciê ncias à francesa substitui uma concepção da verdade
Canguilhem ,18 a linhagem dos “ historiadores das ciê ncias” compre- tida como presente nas pró prias coisas pelas modalidades variáveis
en de quatro nomes: Koyré , Bachelard , Cavaill ès e o pró prio Cangui- da divisão entre o verdadeiro e o falso. Foucault analisa assim o tra-
lhem. O trabalho desses autores tem um primeiro ponto em comum: balho da epistemologia histó rica:
Mesmo que obras como as de Koyré, Bachelard , Cavaillès ou Canguilhem A histó ria das ci ê ncias n ão é a histó ria do verdadeiro , de sua lenta epi-
possam ter por centros de referê ncia dom ínios precisos, “ regionais” , cro- fania , ela n ão poderia pretender contar a descoberta progressiva de uma
nologicamente bem determinados da histó ria das ciê ncias, elas funcio- verdade inscrita desde sempre nas coisas ou no intelecto, salvo a ima-
naram como n ú cleos importantes de elaboraçã o filosófica, na medida ginar que o saber de hoje a possui enfim de maneira tã o completa e
em que faziam agir sob diferentes facetas esta questão da Aujklà rung, es- definitiva que pode tomar a partir dela a medida do passado. E, no
11
sencial à filosofia contemporâ nea. ' entanto, a histó ria das ci ê ncias não é uma pura e simples histó ria das
ideias e das condi ções nas quais elas apareceram antes de se apagar. Nã o
se pode, na histó ria das ciê ncias, dar a verdade como adquirida , mas
15
Ibid., p.537. tampouco se pode evitar uma relaçã o com o verdadeiro e com a oposi-
“ Interview avec Michel Foucault” , Dits et écrits , I , p.651-662 ( cita ção p.660 ) .
I (> çã o do verdadeiro e do falso. E essa referê ncia à ordem do verdadeiro
17 “
Introduction par Michel Foucault” , Dits et écrits, III, p.429-442. e do falso que d á a essa histó ria sua especificidade e sua import â ncia .
18 “
La vie: l’ expé rience et la science ” , Dits et écrits, IV, p.763-776.
Ibid., p.767. 20
Idem.

186 187
Sob que forma ? Concebendo que se deve fazer a histó ria dos “ discur-
mite a essa obra matricial: “ Li Nietzsche por causa de Bataille, e li Ba-
sos verídicos” , isto é , a histó ria de discursos que se retificam , se corri- taille por causa de Blanchot ” .23 Com uma evid ê ncia menos imediata,
gem e operam sobre si mesmos todo um trabalho de elabora ção flnali- a proximidade entre Nietzsche e Canguilhem ainda assim é óbvia:
zado pela tarefa de “ dizer a verdade ” .
21

Nietzsche dizia que a verdade era a mais profunda mentira. Canguilhem


Enfim , ao sujeito soberano fundador do sentido, à centralidade do diria talvez, ele que está distante e simultaneamente próximo de Nietzsche,
cogito, a história das ciê ncias opõe a constituição rec íproca do obje- que ela é, no enorme calend á rio da vida , o mais recente erro; ou mais exa-
tamente, ele diria que a divisão verdadeiro-falso assim como o valor atri-
to de saber pelo sujeito conhecedor e aquela do sujeito conhecedor bu ído à verdade constituem a mais singular maneira de viver que uma vida
pelos saberes que o objetivam. possa inventar, a qual, do fundo de sua origem , portava em si a eventuali-
Foucault reconhece para si uma terceira fam ília, mais desunida: dade do erro.24
aquela formada pelos “ estruturalistas que n ão o eram ” ( à exceção,
22

sem d úvida, do primeiro deles) , ou seja, Lévi-Strauss, Lacan , Althusser. Enfim , como marca com força um dos raros textos que Foucault
Entre os trabalhos desses autores e o seu , Foucault reconhece um consagrou exclusivamente a Nietzsche , 25 o conceito de aconteci-
ponto comum que n ão é a utilização dos conceitos ou dos m é todos mento tal como empregado pela wirkliche Historie, a “ histó ria efeti-
de an á lise estrutural, freq ü ente e veementemente recusada, mas um va ” nietzscheana , é a alavanca fundamental que permite separar
comum questionamento da teoria do sujeito. Nas regras do parentes- todo trabalho de compreensã o, estruturalista ou n ão, da sobera-
co ou na produção das narrativas m ísticas, no funcionamento do in- nia do sujeito significante. Entendido como “ uma rela çã o de for-
consciente, na articulação entre modos de produ ção e formações so- ças que se inverte ” ,26 considerado em seu radical surgimento , o
ciais, suas obras identificaram ojogo automático das estruturas lá onde acontecimento obriga a romper com o “ jogo consolador dos reco-
os pensamentos idealistas viam a inventividade criadora, a transparên- nhecimentos” e a fazer “ o sacrif ício do sujeito de conhecimento ” .27
cia da consciência ou o resultado do agir humano.
O que une essas três linhagens onde Foucault se inscreve é ,
ARQUITETURAS DA OBRA: O PODER, O SUJEITO, A VERDADE
portanto, uma formulação radicalmente original da questão do su-
jeito, de um sujeito despojado dos poderes e atributos tradicionais Na entrevista de 1978 com D. Trombadori, Foucault propõe uma
que o faziam dar sentido ao mundo, fundar a experiê ncia e o co- classificação dos livros que já publicou a partir da forma de trabalho
nhecimento, produzir a significação. No lugar da soberania irrestri- que os sustentou:
ta da subjetividade cartesiana ou fenomenológica, os escritores do
limite , os historiadores das ciê ncias e os “ estruturalistas” instalaram Cada um dos meus livros é uma maneira de recortar um objeto e de for-
os “ discursos negativos” sobre o sujeito. Seu trabalho remete a uma jar um m é todo de an á lise. Terminado meu trabalho, eu posso, por meio
mesma obra , a de Nietzsche. Foucault gosta de lembrar a importâ n- de uma espécie de olhar retrospecdvo, extrair da experiê ncia que acabo
cia decisiva que ela teve em sua trajetó ria intelectual mas, mais ain-
de fazer uma reflex ã o metodol ógica que revela o m é todo que o livro
da , situa-a na origem de cada genealogia.
Nietzsche é o primeiro dos escritores da “ dessubjetivização” . De 23 “
Structuralisme et poststructuralisme ” , Dits et écrits, IV, p . 431-457 ( citação p . 437 ) .
onde, o percurso ao inverso que levou Foucault dos escritores do li-
24
“ La vie: l ’ expérience et la science” , Dits et écrits, IV, p . 775 .
23 «
Nietzsche , la gé n éalogie , l ’ histoire” , Dits et écrits, II, p. 136-156.
Ibid . , p . 148.
21
Ibid . , p . 769 . 27
Ibid ., p 147 e 154 . :
,

" “ Entretien avec Michel Foucault” , Dits et écrits, IV, p. 52.

189
188
deveria ter seguido. De modo que escrevo, um pouco em altern â ncia , trabalho tais como os vê na é poca. Em um primeiro momento, desti-
livros que eu chamaria de exploração e livros de m é todo.28 nou-se à “ história da subjetividade ” , entendida como a história das
modalidades da constituição do sujeito. Elas são de dois tipos: de um
Foucault conta dentre esses “ livros de exploração” Histoire de la folie
lado, as divisões que institu íram o sujeito normal em oposição ao lou-
e Naissance de la clinique, e dentre os “ livros de m é todo ” , L'Archéologie
co ( Histoire de la folie) , ao doente ( Naissance de la clinique ) , ao delin-
du savoir. Les Mots et les Choses, “ livro marginal ” , “ exercício formai ” ,
n ã o encontra lugar nessa taxonomia , nem , aliás, as obras mais re-
q û ente ( Surveiller et punir)', de outro, os saberes que o objetivaram
enquanto ser que fala, trabalha e vive ( Les Mots et les Choses) .
centes, assim evocadas: “ Em seguida , escrevi coisas como Surveiller
Uma segunda etapa colocou no centro das interrogações a “ histó-
et punir, La Volonté de savoir [Vontade de saber ] ” . Inscrever em uma
ria da govemamentalidade” . O termo aparece pela primeira vez no curso
coerê ncia global e em uma trajetória sensata essas “ coisas” será o ob-
do Collège de France de 1977-1978. Ele designa então o conjunto dos apa-
jeto mesmo das outras classificações.
relhos, dos procedimentos, dos cálculos e das técnicas que definem uma
Em uma entrevista concedida um ano an tes,129 Foucault fizera do
forma específica de poder, cujo alvo é a população, o saber de referê n-
deslocamento da categoria de poder o princípio de organização de
cia, a economia pol ítica, e o instrumento técnico, os dispositivos de se-
seu trabalho. São assim distinguidos os livros fundados sobre uma gra-
de de leitura “ jurídica e negativa ” do poder, onde o poder interdita ,
gurança. De onde o próprio título do curso: “ Sécurité, territoire et po-
oculta , exclui, e aqueles que operacionalizam uma grade diferente,
pulation ” [Seguran ça, território e população].31 Em 1981, Foucault re-
ú ne como formas de exploração da “ govemamentalidade ” os livros que
“ técnica e estratégica” . Os “ efeitos de poder ” aí n ão remetem mais a
concernem ao internamento e às disciplinas ( Histoire de la folie e Survei-
uma instâ ncia ú nica e central , mas resultam das relações estabeleci-
ller etpunir, já citados e que, bem entendido, não fazem uso da noção ) ,
das entre os indivíduos ou os grupos. Longe de reprimir uma subjeti-
os cursos consagrados à arte de governar e à razão de Estado ( ou seja,
vidade que lhes seria anterior e exterior, esses efeitos de poder regu-
os de 1977-1978, de 1978-1979, “ Naissance de Ia biopolitique” [ Nasci-
lam divisões, definem papé is, modelam os indivíduos; são, portanto,
mento da biopolítica], de 1979-1980, “ Du gouvernement des vivants”
a seu modo , produtores dos pró prios sujeitos. Histoire de la folie e, mais
[ Do governo dos seres humanos] ) , e o estudo desenvolvido com Arlet-
estranhamente , L’Ordre du discours são citados como sustentados pela
te Farge sobre as cartas régias, que será publicado em 1982.32 O resu-
primeira concepção do poder; Surveiller et punir e La Volonté de savoir,
mo do curso de 1979-1980 indica um remanejamento do conceito de
como constru ídos a partir da segunda. Aqui dissociados, até mesmo
“ govemamentalidade ” , liberado do exercício ú nico do poder. Subsu-
opostos, Histoire de la folie o Surveiller et punir serão em seguida recolo-
mindo agora todas “ as técnicas e procedimentos destinados a dirigir as
cados em uma mesma sé rie quando o crité rio primeiro da organiza-
condutas dos homens” , ele amplia seus objetos ( o Estado, evidentemen-
ção da obra será os modos de constitui ção do sujeito - o que, ao mes-
te, mas também a casa ou o próprio indivíduo ) e seus alvos ( os corpos,
mo tempo , distanciará La Volonté de savoir, primeiro volume de Histoi-
mas também as almas ou as consciências) ,33
re de la sexualité [ História da Sexualidade] , de Surveiller et punir.
O curso de 1980-1981 inaugura uma nova investigação que, sob
No resumo do curso que proferiu no Collège de France durante o
ano letivo de 1980-1981,50 Foucault propõe um novo recorte retros-
pectivo, organizado de acordo com os deslocamentos temá ticos de seu 31 “ La ‘gouvernementalité’ ” e “ Sécurité, territoire et population ” , Dits et écrits, III , p.635-
-
657 e 719 723.
28 “
Entretien avec Michel Foucault ” , Dits et écrits, IV, p. 42.
32
Le Désordre des familles . Lettres de cachet des archives de la Bastille au XVIIF siècle, Paris, Galli-
29
“ Les rapports de pouvoir passent à l ’ inté rieur des corps ” , Dits et écrits , III , p.228-236. mardjulliard , col. Archives, 1982 ( com Arlette Farge ) .
33 «
30 “
Subjectivité et vé rité” , Dits et écrits, TV , p.213-218. Du gouvernement des vivants” , Dits et écrits, IV, p.125-129 ( citação p.125 ) .

190 191
o t ítulo “ Subjectivité et vé rité ” [Subjetividade e verdade ] , estabele- preocupação l ógica atinge aqui a sucessão cronológica, visto que as
ce como objeto a histó ria da preocupação consigo e das técnicas duas primeiras divisões sã o objeto de livros ( Histoire de la folie, Nais-
relacionadas a isso. Os deslocamentos propostos são de duas ordens: sance <te la clinique) evidentemente anteriores à publicação de Les Mots
da objetivação do sujeito pelas divisões e saberes às relações de si para et les Choses. O “ trabalho em andamento” , iniciado em 1978 com La
si; do exerc ício do governo sobre as popula ções às formas e aos Volont é de savoir, tem uma outra proposta: estudar como, por si mes-
modelos do governo de si por si. Nesse projeto, como já indicava uma mo, o ser humano se transforma em sujeito.
conferê ncia feita no Brasil em 1976,34 a sexualidade desempenha um O progresso desse “ trabalho em andamento” , marcado pela re-
papel central, já que aí se encontram articuladas regulações de po- dação de L’Usage des plaisirs [ Uso dos prazeres] e Souci de soi, leva Fou-
pulações e disciplinas individuais do corpo. cault a uma nova reorganização. Ele a enuncia no texto que deve ser-
Na entrevista que concede a Dreyfus e Rabinow, publicada em vir de introdu ção geral aos novos volumes de Histoire de la sexualité -
1982 sob o título The Subject and Power, Foucault formula de outro ou seja, as duas obras citadas e aquela que devia completá-las, Les Aveux
modo a trama cronol ógica de seu trabalho.3 > A questão central que
:
de la chair. Publicada em Le Débat , em novembro de 1983, alguns me-
o conduziu é claramente formulada , recusando explicitamente uma ses antes da publicaçã o de L’Usage des plaisirs?* essa apresentação ge-
outra leitura: “ Não é o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral ral articula a nova reconstrução retrospectiva a partir da relação en-
de minhas pesquisas” .30 O porqu ê de um trabalho sempre preocu- tre “ problematizações ” e prá ticas. Seguindo o indice de Dits et écrits, a
pado com os “ diferentes modos de subjetivação do ser humano em noção de “ problematização” é de uso tardio: todas as ocorrê ncias do
nossa cultura ” .37 O conceito de “ subjetivação” faz assim sua entrada termo ( exceto uma em 1976 ) encontram-se em textos dos três últi-
no vocabulá rio foucaultiano, tardiamente mas de maneira decisiva. mos anos, entre 1982 e 1984. Em uma entrevista publicada em maio
A trajetória delineada retoma aquela apresentada no resumo do j de 1984, o conceito, que se tornou central, é assim definido:
curso de 1980-1981, mas com algumas variantes. Ela abre-se com os j
estudos consagrados à objetiva ção do sujeito pelos saberes: objeti- Problematização não quer dizer representação de um objeto preexisten-
te, tampouco criaçã o pelo discurso de um objeto que nã o existe. É o con-
vação do sujeito que fala , pela gram á tica , Filologia e lingü istica; ob- junto das prá ticas discursivas ou n ã o discursivas que faz entrar algo no
jetivação do sujeito que trabalha , pela economia política; objetiva- jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensa-
ção do sujeito que vive , pela histó ria natural e pela biologia. Estes mento ( seja sob a forma da reflexã o moral, do conhecimento científi-
sao os objetos de Les Mots et les Choses, dotado aqui de um estatuto co, da análise política , etc. ) .39
inaugural. Depois, Foucault indica que, “ na segunda parte de [seu ]
Uma “ problematização” caracteriza-se , pois, por dois traços: a cons-
trabalho ” , a aten çã o se deslocou para a objetiva çã o do sujeito por
“ prá ticas divisoras” , isto é, prá ticas que o separam dos outros ou en-
tã o que o dividem no interior de si mesmo. Assim , as divisões entre
tru ção em uma radical descontinuidade de categorias e questões

a loucura , a sexualidade que n ã o devem ser consideradas nem

como invariantes antropológicas, nem como modalidades históricas
o louco e o homem sadio de espírito, entre o doente e o indivíduo
particulares de noções universais; a submissão aos crité rios do dis-
gozando de boa sa ú de , ou entre o delinq üente e o “ bom moço” . A curso ver ídico dos enunciados que formam os dom ínios de pensa-
mento assim constitu ídos.
34
Les mailles du pouvoir” , Dits et écrits, IV, p. 182-201.
U

35 “
36 Ibid., .223.
-
Le sujet et le pouvoir ” , Dits et écrits, IV, p.222 243.
38
“ Usage des plaisirs et techniques de soi ” , Dits et écrits, IV, p.539-561.
p
37
Ibid . ' ' “ Le souci de la vé rité” , Dits et écrits, IV, p.668-678 ( citação p.670 ) .

192 193
As rela ções do pensamento com a verdade aparecem então a ou n ã o discursivas ) que o estabelecem como objeto de um saber
Foucault como o que foi o verdadeiro fio condutor da obra: possível e que submetem esse saber ao crité rio do verdadeiro e do
falso , ao princípio de veracidade entendido como “ as formas segun-
Parece-me que percebo melhor agora de que maneira , um pouco às ce- do as quais se articulam em um dom ínio de coisas discursos suscet í-
gas, e por fragmentos sucessivos e diferentes, eu entrara neste empreen- veis de serem ditos verdadeiros ou falsos” .42
dimento de uma histó ria da verdade: analisar n ão os comportamentos ou
as idéias, não as sociedades ou suas “ ideologias” , mas as problematizações atra.- A partir da í, as três modalidades do sujeito exploradas pela
vés das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado e as práti- obra. De um lado, o sujeito que fala, trabalha ou vive tal como cons-
cas a partir das quais elas se formam . A dimensão arqueológica da an álise titu ído pelo discurso com estatuto cient ífico das “ ciê ncias huma-
permite analisar as formas mesmas da problematização; sua dimensão ge- nas ” . Esse era o objeto de Les Mots et les Choses. De outro, o sujeito
nealógica, sua formação a partir das prá ticas e de suas modificações.40
desviante , designado como louco, doente ou delinq ü ente, tal como
Cada livro, ou cada conjunto de livros, encontra assim sua singulari- constru ído pelas prá ticas da psiquiatria , da medicina cl í nica ou da
dade e sua razão no registro particular de prá ticas que conduziram penalidade. Histoire de la folie, Naissance de la clinique e Surveiller et
a “ problematização” que é seu objeto: prá ticas sociais e m édicas em punir foram os livros que colocaram no centro de suas pesquisas
Histoire de la folie e Naissance de la clinique, prá ticas discursivas em Les essas divisões normativas operadas pelas pró prias prá ticas. Enfim ,
Mots et les Choses, prá ticas punitivas em Surveiller et punir, prá ticas de “ a constituiçã o do sujeito como objeto para si mesmo ” , sustentada
si em Histoire de la sexualité. A cada vez, a problematiza ção seleciona- pelo conhecimento e pelas té cnicas de si. A objetivação do sujeito
da como objeto da an álise ( problematização da loucura e da doen- pelos discursos de conhecimento ou pelas prá ticas que dividem e
ça, problematização da vida, da linguagem e do trabalho, problema- separam , esse terceiro modo de formaçã o do sujeito opõe a histó-
tização dos comportamentos criminosos, problematização da ativi- ria da subjetividade, “ se entendermos por essa palavra a maneira
dade e dos prazeres sexuais ) acha seu fundamento em um regime como o sujeito faz a experiê ncia de si mesmo em um jogo de ver-
específico de prá ticas. Esse regime é comandado em cada caso por dade onde ele tem relaçã o consigo ” .43
regras e crité rios pró prios: os que definem os dispositivos de norma- Nesta ú ltima etapa , ele vê seu trabalho como tendo sido sem-
lização, as regras da produ ção dos discursos, as técnicas disciplina- pre guiado, n ão pela questão do poder, n ão por aquela do sujeito,
res, ou a esté tica da existê ncia. mas pela histó ria dos “ jogos de verdade ” . No texto publicado em
Uma ú ltima releitura de Foucault por Foucault aparece no ar- 1983, que abrirá Les Usages des plaisirs, três tipos de “ jogos de verda-
tigo “ Foucault” do Dictionnaire des philosophes, publicado em 1984. Em de” são distinguidos, os quais correspondem a três momentos { Les
parte, esse verbete assinado por Maurice Florence ( M. E ) , retoma o Mots et les Choses, Surveiller et punir, Histoire de la sexualité) :
texto que Foucault redigira como introdu ção ao segundo volume
Após o estudo dos jogos de verdade uns em relação aos outros - sobre o
de Histoire de la sexualité.41 A classificação retrospectiva do trabalho exemplo de um certo n ú mero de ciê ncias empíricas nos séculos XVII e
n ão é mais operada aqui a partir do tipo de prá ticas que sustentou a XVIII -, depois aquele dos jogos de verdade em relação às relações de
formação das problematizações pelas quais Foucault se interessou , poder, sobre o exemplo das prá ticas punitivas, um outro trabalho pare-
mas a partir do tipo de sujeito constru ído pelas prá ticas ( discursivas cia impor-se: estudar os jogos de verdade na rela ção de si consigo mes-
mo e a constituição de si mesmo como sujeito , tomando por dom ínio

40 «
Usages des plaisirs et techniques de soi” , Dits et écrits, IV, p.545. Ibid., p.632.
42
41 «
Foucault” , Dits et écrits, IV, p.631-636. " ., p.633.
Ibid

194 195
de referê ncia e campo de investigação o que se poderia chamar de “ his- sim uma nova coerê ncia no desenvolvimento de uma ú nica e mes-
tó ria do homem de desejo.44
ma questão, presente de livro em livro.
Assim , o questionamento sobre a constituição do sujeito, no duplo Essa reconstrução parece coexistir com uma classificação mais
cl ássica da obra , por exemplo, aquela que aparece na entrevista de
processo de sua objetivação e de sua subjedvação, que era dado como
o princ ípio fundamental de organização da obra a partir dos anos abril de 1983 com Dreyfus e Rabinow. Nesse texto, Foucault resgata
seu trabalho, distribuindo-o segundo três eixos possíveis de uma ge-
1980, apaga-se diante de uma outra interrogação, que teria forneci-
do a trama contínua do trabalho: a questão da verdade, ou , dizen- nealogia de nosso presente:
do melhor, a dos dom ínios de pertin ê ncia , das modalidades de em- Primeiramente, uma ontologia histó rica de n ós mesmos em nossas rela-
pregos, das regras de constituição dessa divisão essencial segundo a ções com a verdade, que permite que nos constituamos como sujeitos
qual “ a propósito de certas coisas, o que um sujeito pode dizer tan- de conhecimento; a seguir, uma ontologia histórica de n ós mesmos em
ge à questão do verdadeiro e do falso” .45 nossas rela ções com um campo de poder, onde nos constitu ímos em su-
A originalidade do “ ú ltimo Foucault ” deve-se essencialmente a jeito enquanto agimos sobre os outros; enfim , uma ontologia histó rica
de nossas relações com a moral, que permite que nos constituamos como
essa centralidade retrospectivamente dada à questão do verdadeiro agentes é ticos.47
e do falso. Ela habita as ú ltimas entrevistas. Naquela publicada por
Telosm. primavera de 1983, é ela que organiza toda a arquitetura do Naissance de la clinique e L'Archéologie du savoir exploraram o primei-
empreendimento intelectual conduzido desde Histoire de la folie. "
ro eixo, o da verdade; Surveiller et punir, o segundo, o do poder ; His-
toire de la sexualité, o terceiro, o da moral , e todos os três estavam pre-
Enquanto os historiadores das ciê ncias, na Fran ça, interessavam-se essen- sentes, “ mesmo de uma maneira um tanto confusa ” , em Histoire de
cialmente pelo problema da constituição de um objeto cient ífico , a per-
gunta que me fiz foi esta: como acontece que o sujeito humano estabe-
la foliei Limitando aparentemente a questã o da verdade a um ú ni-
leça a si mesmo como um objeto de saber possível , através de que for- co dom ínio, a grade de classificaçã o assim proposta pode , todavia ,
mas de racionalidade, através de que condições históricas e , finalmente, ser entendida de outro modo. As três ontologias histó ricas que ela
a que preço? Minha pergunta é esta: a que preço o sujeito pode dizer a distingue sã o, de fato, definidas por aquilo com o qual a verdade
verdade sobre si mesmo?46
manté m uma relação: o conhecimento, o poder, a é tica. Cada um
Cada livro ou cada conjunto de livros é conseq ú entemente pensa- desses dom ínios de discurso e de prá ticas coloca em jogo, à sua ma-
neira , as formas do “ dizer a verdade ” , as regras de produ ção e de
do como tendo explorado os discursos verdadeiros que o sujeito
validação dos “ discursos ver ídicos” .
pode manter sobre si mesmo, seja um sujeito louco ( Histoire de la fo-
Assim , o que devia ser a ú ltima etapa da pesquisa, o entrela ça-
lie ) , um sujeito doente ( Naissance de la clinique ) , um sujeito que fala ,
mento entre a questão da histó ria da verdade e aquela da subjetiva-
trabalha ou vive ( Les Mots et les Choses ) , um sujeito criminoso ( Sur-
ção tornara-se para Foucault a trama fundamental de seu percurso
veiller et punir ) , ou um sujeito de prazer sexual ( Histoire de la sexuali-
intelectual. A questão dosjogos de verdade fornecia a chave que per-
té) . A obra inteira , à exclusão de L'Archéologie du savoir, encontra as-
mitia 1er sua obra da maneira mais englobante, mais coerente , na

44 « Usages des plaisirs et techniques de soi ” , Dits et écrits , IV, p. 541 . 47 «


A propos de la gén éalogie de l ’ éthique: un aperçu du travail en cours” , Dits et écrits,
45 «
Foucault , Dits et écrits, IV, p .632.
” IV, p. 383-411 e 609-631 .
4< > «
Structuralisme et poststructuralisme” , Dits et écrits, IV, p. 442. " Ibid . , p . 393 e 618 .

196 197
expectativa de outras reconstruções que teriam sem d ú vida sugeri-
do as investigações futuras. O que esta indicava , de maneira mais
aguda do que as anteriores, era a tensão irredutível e fundamental
que acompanhara todo o trabalho. Um trabalho necessariamente TERCEIRA PARTE
submetido às divisões instáveis entre o verdadeiro e o falso, ao pas-
so que pretendia enunciar sua verdade. Afinidades

198
Introdução

Os quatro ensaios que constituem a ú ltima parte deste livro al-


mejariam evocar as rela ções, às vezes dif íceis, entre a história e vá-
rias disciplinas afins: a geografia , a sociologia, a filosofia , a crítica li-
terá ria. O objetivo de tais confrontações é triplo. Primeiramente, tra-
ta-se de compreender quais foram as eleições ou as rejeições dos
historiadores engajados, a partir dos anos 1930 , na definição e na
prá tica de uma histó ria nova , aberta, inventiva. A preferê ncia dos
fundadores dos Annales pela monografia regional e sua desconfian-
ça acerca da morfologia social ou , em outras palavras, sua escolha
por Vidal de La Blache ao invés de Durkheim , marcou por longo
tempo a tradição historiográfica francesa , habituada a construir seus
objetos a partir de sua inscrição territorial. O estudo monográfico
de uma cidade , de um “ territó rio” , de uma região foi assim pensado
como a necessá ria condição de toda comparação. Essa escolha , que
trouxe grandes êxitos para a histó ria social francesa , teve por conse-
q üê ncia o afastamento dos historiadores de um procedimento mais
preocupado com as regularidades e relações do que com as diversi-
dades. Quando o primado do recorte territorial perdeu sua evid ê n-
cia , veio o tempo das incertezas.
A segunda proposta destes ensaios é mostrar que as questões que
preocupam hoje em dia a prá tica histó rica só tê m a ganhar com uma

201
formulação teó rica rigorosa. Os historiadores n ão devem se fazer fi-
l ósofos, muito menos filósofos da histó ria. Mas se quiserem refundar 9. A histó ria entre geografia e sociologia
o estatuto de conhecimento de sua disciplina, sempre dividida entre
a pluralidade possível das interpretações e a constru ção de crité rios
que permitam considerar inaceitáveis algumas dentre elas, n ão podem
sen ão acompanhar as ciê ncias, humanas ou n ão, quando elas se in-
terrogam sobre as condições de validação de seus enunciados. Por
muito tempo, grandes mal-entendidos separaram a história e a filo-
sofia ou, antes, a definição positiva do conhecimento histó rico e a
concepção filosófica da história na posteridade hegeliana. Isso n ão
corre mais, porque a filosofia renunciou a considerar o devir históri- i
co através das categorias de necessidade e de finalidade e, ao mesmo
tempo, porque a histó ria centralizou suas reflexões sobre a relação
entre o objeto a conhecer e o discurso de conhecimento. Um terre-
no comum , aberto à an álise epistemológica , pôde assim ser definido. Em seu livro de 1922 , La Terre et révolution humaine, Lucien
A ú ltima inten ção destes ensaios é propor um m é todo de aná- Febvre credita ao final do século XVIII a inven ção da “ preciosa no-
lise , aplicável tanto à literatura como à filosofia , tanto às produ ções . ção de região natural ” para, em seguida, deplorar que por muito tem-
esté ticas como aos enunciados científicos. Ele visa a apreender, em
po nem os geógrafos, nem os historiadores, nem os estat ísticos te-
um mesmo movimento, as imposições e modalidades que regem a nham feito uso dela , prisioneiros da geografia administrativa - “ após
elaboração, a transmissão e a recepção dos discursos e das obras. Esse i terem descrito a Fran ça em suas províncias, eles a dissecavam em seus
projeto supõe que os dispositivos de representação que d ão a 1er ou departamentos ” - ou vítimas de seus recortes quim é ricos, como
a entender os textos ( ou a ver as imagens ) sejam colocados no cen- Herbin , autor em 1805 de uma Statistique générale et particulière de la
tro da an álise. Vem da í a aten ção dada ao deslocamento que trans- France, que divide o pa ís em dez “ regiões” , cada uma delas sendo
formou a bibliografia, entendida como uma disciplina que descre- “ composta de um n ú mero mais ou menos igual de departamentos” .1
ve objetos impressos e seu processo de fabricação, em uma sociolo- j Certo da legitimidade da divisão regional , Febvre faz de seu empre-
gia dos textos que pretende compreender como as formas materiais ? go a condição do progresso no estudo dos fatos sociais. Para ele,
que sustentam os discursos contribuem para a significação que seus qualquer outro recorte espacial remete seja à abstra ção das divisões
diferentes leitores - ou espectadores - lhes atribuem . Atento ao sen- j pol í ticas, seja à gratuidade de um produto da imaginação. Isso sig-
tido das formas, o procedimento histó rico pode abordar os textos nificava descartar um fato essencial , ou seja , que a estatística social
canónicos que o intimidaram por muito tempo e deles propor uma j se construiu no primeiro terço do século XIX contra a noção de re-
interpretação que respeite a historicidade de sua produ ção e de sua I gião , e mais geralmente contra todos os espaços “ naturais” , quer sua
apropriação. Em uma é poca em que reflui a onipotê ncia das abor- j unidade (suposta ) lhes venha da histó ria , do solo ou do clima. No
dagens formalistas, estruturalistas ou n ão, tal programa carrega a j
promessa de uma compreensão in édita , mais densa e mais comple- j
xa, das obras e das prá ticas. j 1
Lucien Febvre, La Terre et l'évolution humaine. Introduction géographique à l'histoire, Paris,
1922, reed . Paris, Albin Michel , col. L’Evolution de l’ Humanité, 1970, p.67-68.

202 203
século XVIII , as histórias naturais, os inventá rios provinciais estabe- \ pin em 1826, essa divisão da Fran ça em duas partes desiguais forne-
lecidos por iniciativa das academias, as topografias m édicas insere- i ce uma estrutura espacial que permite ordenar as estatísticas econ ó-
vem suas coletas no interior dessas unidades dadas de antem ão, micas ( Dupin , 1827 ) , as contas da justi ça criminal , os índices do
m ú ltiplas e diferentes. Trata-se então de inventariar os caracteres, j pauperismo ( Bigot de Morogues, 1832; Villeneuve-Bargemont, 1834)
ben éficos ou infelizes, de conjuntos territoriais cuja personalidade j e, finalmente, todos os indicadores quantificados. Assim , tendo reu-
é fundada historicamente e que freq ú entemente , al é m disso, pos- j nido noventa e sete í ndices e mapeado dezesseis dentre eles ,
suem uma homogeneidade geográfica. O reino é percebido como \ d ’ Angeville concluiu em 1836: “ Quanto mais se estuda a estatística
sendo constitu ído de entidades singulares que se justapõem assim j do homem , mais se encontra essa divisão racional dependente dos
como as peças de um mosaico irregular. As novas curiosidades que ] fatos que se relacionam à populaçã o ” .3 A verdade regional n ão é
subentendem as descrições geográficas das histó rias naturais ou as j mais, portanto, tida por pertinente; ao contrá rio , ela embaralha , pela
topografias médicas apenas reforçam essa consci ê ncia da heteroge- incoerê ncia das disparidades que revela , as razões maiores que dão
neidade, acumulando, para cada um dos espaços legí timos, provas | conta dos fatos sociais.
suplementares de sua irredutível originalidade. ] Para os estat ísticos no in ício do século XIX , a constru çã o de um
espaço de an álise que n ão seja a simples reprodu ção dos espaços
naturais, histó ricos ou administrativos tem uma dupla significação.
DO CONJUNTO DAS DIFERENÇAS Primeiramente, ele torna legível a dispersão “ selvagem ” das diferen-
À INVEN ÇÃO DE DUAS FRANÇAS ças registradas pela coleta estatística. Reunidas em territó rios teó ri-
cos, que nada devem aos quadros herdados mas que são o resultado
Nas d écadas de 1820 e 1830, os aritm é ticos sociais, de Dupin a de uma manipulaçã o intelectual , as desigualdades dispersas organi-
d ’ Angeville, põem abaixo essa apreensão do espaço nacional. Para zam-se em oposições fundamentais e , por isso mesmo, tornam-se
eles, n ão se trata mais de estocar dados novos, identificando cada ,
i
decifráveis e compreensíveis. E possível , de fato, isolar um princípio
vez mais acuradamente as unidades reconhecidas ( províncias, terri- explicativo que permite enunciar o porquê da variaçã o entre Norte
tó rios, regiões, etc. ) , mas de reduzir a oposições simples, abstratas,
e Sul , quer seja o desenvolvimento desigual da instru ção elementar
macroscópicas, as diferen ças constatadas pela estatística departamen- ,
ou o atraso meridional em maté ria de ind ústria. A significação dos
tal. A operação fundamental consiste em agregar - portanto dissol- fatores assim identificados n ão é, aliás, un ívoca: celebrada em Du-
ver - as particularidades locais em conjuntos coerentes, cujo contras- pin como a chave de uma riqueza avaliada pelas finan ças p ú blicas e
te é suscetível de explicação racional. Razão da progressiva emergê n- 1
pela renda m édia por habitante, a industrializa çã o torna-se , em Bi-
cia de um motivo que rejeita a leitura fragmentada do espaço fran- | got de Morogues e Villeneuve-Bargemont, a fonte de todos os ma-
cês: o da Fran ça dupla , imaginariamente dividida por uma frontei- ] les, materiais e morais, que afetam a Fran ça setentrional. A signifi-
ra linear que vai de Saint-Malo a Genebra. Em outro texto, traçamos I cação do recorte espacial é , pois, revers ível já que nele se investem
o histó rico desse tema que focaliza todos os grandes debates do in í- ideologias sociais contraditó rias.
cio do século XIX.2 Evidenciada primeiramente no terreno do de- j
A Fran ça dupla da Restauraçã o substitui a lição das descrições
senvolvimento escolar desigual por Malte-Brun em 1823 e por Du- regionais ou provinciais que equilibravam o balan ço de cada terri-
1
- Roger Chartier, “ Les deux France . Histoire d ’ une géographie ” , Cahiers d ’histoire, 1978, A . d ’ Angeville , Essai sur la statistique de la population française considérée sous quelques- uns
4 , p . 393-415 . de ses aspects physiques et moraux, Bourg-en- Bresse , 1836 , p . 15-16.

204 205
tó rio e moviam-se no mundo do inventário por uma outra , direta- N ós dividiremos a Fran ça em cinco regiões naturais , do norte , do sul , do
leste , do oeste e do centro, formadas cada uma delas pela reunião de
mente política , visto que a reflexão sobre o espaço pretende ser o
dezessete departamentos lim ítrofes. Essa divisã o nada tem de arbitrá-
teste dos diferentes modelos de organiza çã o social e econ ó mica. rio e n ão tende a favorecer nenhum sistema , visto que é bem geométrica
Já no século XVIII , os íf siocratas, construindo o princípio de uma e que a circunscri çã o de cada regi ã o é determinada pela das outras
divisão espacial totalmente teó rica e eliminando de sua demons- quatro4 ( o grifo é nosso ) .
tra çã o todo recurso aos espaços histó ricos, atestam este v ínculo
entre um projeto “ pol í tico ” ( no caso , estender a grande cultura , Nesse texto, que n ão deixa de lembrar o de Herbin , escarnecido por
ú nica aproveitável ) e uma apreensão abstrata do espa ço. E a par- Lucien Febvre, Guerry situa-se no extremo oposto dos geógrafos do
tir da oposição entre duas categorias econ ómicas fundamentais século XVIII , autores das histórias naturais onde se inventava a des-
( grande cultura / pequena cultura ) e, no interior de cada uma de - crição regional. Suas “ regiões naturais” o são apenas na ordem da
las , de uma distribui çã o em classes estritamente dependente da geometria , já que n ão assumem absolutamente divisões já existen-
proximidade das cidades, que podem ser determinadas as oposi- tes e que n ão são constru ídas a partir da observação de conjuntos
ções verdadeiras que diferenciam os territó rios agr ícolas, e n ã o a \ geograficamente homogé neos. Consciente do investimento ideoló-
partir da nomenclatura tradicional dos territ ó rios e prov íncias. gico que sobredetermina todo recorte do espaço, Guerry, sem d ú vi-
Antes mesmo de esperar mudar o espa ço concreto , todo projeto da ingenuamente, quer neutralizar tanto quanto poss ível as classes
unificado de transformação socioecon ômica começa por construir j geográficas onde ordenar os dados estatísticos. De fato, sua Fran ça
o seu pró prio , para reconhecer as desigualdades do terreno que é j qu íntupla permite reconhecer, n ão mais a concord â ncia , mas as dis-
necessá rio modificar e , simultaneamente , para demonstrar a legi- * cord â ncias entre os fatos sociais: os crimes contra as propriedades
timidade de sua inten ção. O jogo com as divisões geográficas ins ] - são mais numerosos onde a instru çã o é mais difundida , e, onde h á
mais ignorâ ncia , n ão se comete o maior n ú mero de crimes contra
creve-se , conseq ú entemente, em uma retó rica da persuasão que \
fundamenta suas evid ê ncias no sentido atribu ído à distribuiçã o j as pessoas. Contra os espa ços tradicionais ( administrativos, histó ri-
espacial das varia ções. ] cos, geográficos ) , mas també m contra a Fran ça dicotô mica , que se
tornou por sua vez um espaço herdado, impondo sua lógica dualis-
ta aos observadores que valorizam uma ou outra de suas partes, Guer-
POLÍTICA E ESTATÍ STICA SOCIAL ry e outros tentam tratar do espaço francês como uma superf ície per-
feitamente neutra , onde o escalpelo pode cortar com toda liberda-
A relação entre uma maneira de recortar o espaço e o apego a de. As regras de recorte n ão remetem mais aos acidentes do terre-
um sistema cuja validade ela ajuda a provar é claramente reconhe- no mas aos princípios de uma geometria elementar. Todavia , o pro-
cida nos anos 1830. Para evitar o que poderia haver de tautológico jeto n ão altera em nada a força demonstrativa da Fran ça dupla , pro-
nesse procedimento (sendo a distribuição geográfica probatória metida a um belo sucesso , de Dupin a Maggiolo.
apenas porque foi constru ída de modo a sê-lo ) , alguns aritmé ticos Entre 1820 e 1840, o quadro regional, para aqueles que refle-
sociais tentam utilizar espaços de racioc ínio os mais neutros possí- tem sobre os fatos sociais, caiu no maior descrédito. Ao passo que o
veis, agregando os dados estatísticos em divisões a priori, desemba - século XVIII se envolvera no inventá rio cuidadoso das pequenas
raçadas de qualquer conotação herdada. Como Guerry, trabalhan - pá trias, impostas pela geografia ou forjadas pela histó ria , os aritm é-
do em 1833 sobre as estatísticas do Compte général de Vadministration
de la justice criminelle. A. M. Guerry, Essai sur la statistique morale de la France, Paris, 1833, p.9.

206 207
tingue a geografia da escola francesa da “ antropogeografia ” de Rat-
ticos sociais da Restauração e da Monarquia de Julho pretendem zel que, manipulando os espaços em maior escala, estava mais ten-
, as dispari-
identificar, por meio de grandes massas e em suas razões tado a acreditar no determinismo das condições naturais. Através das
as in-
dades de toda ordem ( econ ó micas, culturais ou morais que
)
nacional. teses que se amontoam em cinco anos - a Picardia de Demangeon
vestigações administrativas reconhecem sobre o territó rio em 1905, a Flandres de Blanchard em 1906, a Baixa-Bretanha de
em uma
A passagem de uma atitude à outra enra íza-se sem d ú vida Vallaux em 1907, a Normandia oriental de Sion em 19095 -, afirma-
de seu
nova maneira de pensar a relação entre o poder e o terreno se uma maneira pró pria de tratar as organizações sociais em seu
a
exercício. A monarquia antiga , mesmo que desejasse centralizar enraizamento geográfico. Em seu fundamento, o recorte de um es-
conduta das questões, adaptava-se em contrapartida à diversid
ade
, as re- paço nem desmesurado nem pequeno, cuja coerê ncia seja claramen-
reconhecida, explorada , celebrada , do reino. As províncias te identificável e possa ser aceita como um dado evidente. Que es-
gioes, os territó rios constituem as c
élulas fundamentais de sua or-
balbu- paço é este? A região. Mas, justamente, o que é a região para os geó-
4

ganização social e pol ítica. A missão das ciê ncias humanas grafos vidalianos? O territó rio que designam assim não pode ser
. ós a Re-
ciantes é , portanto, estabelecer seus caracteres pró prios Ap definido nem pela histó ria nem pela consci ê ncia de perten ça dos
volução , a homogeneidade do espaço nacional é entã pensada
o
eficaz habitantes, mas apenas por sua individualidade geográfica. Trata-se
como a condição necessá ria de uma boa pol ítica. Um poder de um espaço a construir, simultaneamente homogé neo em seus
a cada
supõe uma superf ície lisa onde se exercer, n ão se perdendo caracteres fundamentais e nitidamente distinto dos territó rios q ue
é reco-
instante no mosaico das diferen ças. Logo, a tarefa primeira
nhecer a distribuição das variações, portanto, as leis simples
que re- o cercam. As regi ões naturais dos geógrafos vidalianos sã o, portan-
ti- to, espaç os inscritos no pró prio solo , mas cuja existê ncia e contor-
gulam uma diversidade que se podia crer aleató ria. Nessa perspec nos n ão foram nem sancionados pelos recortes pol íticos nem per-
va, a justaposição dos inventá rios regionais n ão é de nenhum
a aju-
- cebidos pelas sociedades que eles sustentaram , e ainda sustentam.
da; constitui, ao contrário, um obstáculo ao conhecimento fragmen
,
ser com- E uma operação intelectual , a da identificação geográfica, que, re-
tando o que deve ser reunido, disseminando o que deve encontrando a unidade desses espaços, institui-os como o â mbito
rdios do
preendido de modo unitá rio. A estat ística social dos prim ó legítimo de uma descrição científica.
ó das so-
século XIX deixa então a região à curiosidade arqueol gica
ciedades científicas e fundamenta sobre recortes espaciais
bem di - Mesmo quando a terminologia é a mesma , a região natural n ão
pode ser superposta ao espaço histó rico; é o caso da Flandres defi-
ferentes o estudo racional dos fatos sociais. nida por Blanchard , em contraste com as regi ões vizinhas, como o
pa ís baixo, o pa ís plano , o pa ís ú mido: “ O territ ó rio cujos traços
A REGIÃO SEGUNDO AS GEOGRAFIAS VI DALI ANAS carater ísticos compõem uma região natural n ão corresponde exa-
tamente àquele que se está habituado a tomar para a Flandres his-
rude-
No in ício deste século, o debate no qual se confrontam tó rica; seus limites ora ultrapassam as fronteiras pol í ticas, ora per-
entre essas duas
mente geógrafos e sociólogos reativa a oposição
ção social.
apreensões do espaço, entre essas duas escalas da observa ,
a região
r
’ A. Demangeon , La Picardie et les régions voisines, Artois-Caynbrésis- Beauvaisis, Paris, 1905;
Para a geografia humana da escola de Vidal de La Blache R . Blanchard , La Flandre. Etude géographique de la plaine flamande eu France, Belgique et
ção en-
constitui o ú nico espaço legítimo onde conceber a articula Hollande, Lille , 1906; C. Vallaux , La Basse-Bretagne. Etude de géographie humaine, Paris , 1907;
tre as solicitações do meio natural e a açã o volunt
á ria dos grupos J . Sion , Ixs Paysans de la Normandie orientale. Pays de Caux, Bray, Vexin normand , Vallée de la
humanos. Aliás, é essa primazia dada à monografia regional
que dis- Seine, Paris, 1909.

209
208
manecem aqu é m ” ( Blanchard , p.17 ) . Lm outros s ítios, o geógrafo A plan ície picarda n ão corresponde, pois, exatamente nem à extensã o
deve n ão somente identificar a unidade natural a partir de crité ri- < natural de um terreno particular, nem à circunscrição artificial de um
território administrativo. Em um pa ís como a Fran ça , civilizado e povoa-
os que lhe sejam próprios, mas també m nomeá-la. E o caso da pla- do h á muito tempo, acontece freq ü entemente de uma região geográ fi-
n ície picarda: | ca ser definida mais por um conjunto de rela ções entre o homem e o
meio natural [...]. A originalidade de uma fisionomia geográfica prové m ,
Toda esta terra divide-se em três províncias da Antiga Fran ça: Picardia, portanto, de uma síntese dos dados da natureza e dos dados do homem
Artois e Cambrésis; mas passa-se de uma à outra sem sentir diferen ça; ( Demangeon , p.455-456 ) .
de cada lado, sâo os mesmos campos, os mesmos rios, os mesmos povoa-
dos. E, no entanto, os homens que nela vivem parecem jamais ter tido a E então a pró pria concepção das relações, n ão necessá rias, que exis-
noção dessa unidade; nunca na histó ria ela teve um ú nico nome ; é im- tem entre as condições naturais e a a ção dos homens em sociedade
possível encontrar na linguagem uma palavra científica ou popular, ofi-
cial ou familiar que a açambarque e a defina inteiramente; nenhuma pro- que funda aqui o reconhecimento da unidade geográfica. Para de -
víncia , nenhum Estado, nenhum agrupamento humano deve-lhe a exis- finir o espa ço de seu estudo, J. Sion acentua mais ainda o peso dos
tê ncia , a individualidade [... ] . Mas se ela não conheceu a personalidade fatores humanos. Apesar de uma ( relativa ) unidade natural , a Nor-
histó rica , sua personalidade geográfica manifesta-se por toda a parte , mandia oriental é, na verdade, uma agregação de regiões “ diversas
fundada sobre a unidade de sua natureza f ísica e consolidada pelas obras
de seus habitantes ( Demangeon , p.2-3) .
pelo solo e por suas culturas” . Se, entretanto , pode ser constitu ída
como espaço homogé neo, isso se d á fundamentalmente por razões
També m a Normandia oriental é um recorte e uma designação cujo j socioeconômicas que se devem à propriedade e à exploração do solo,
ú nico fundamento é a observação geográfica. Ela constitui “ um con- j à economia das trocas, ao passado industrial. O porqu ê desta cons-
junto orgâ nico de regi ões naturais” : j tatação essencial: “ Do homem mais do que de sua natureza lhe vem
sua unidade geográfica ” ( Sion , p.12 ) .
A geografia física n ão as separa [...] . A geografia humana pode ainda me - Resgatar os geógrafos vidalianos autoriza, portanto , duas cons-
nos dissociar essas regiões que tiveram a mesma história e, com raras ex - i tatações. Em primeiro lugar, fica claro que todos pretendem inven-
ceções, as mesmas regras jurídicas. Ela observa que a própria variedade tar um novo recorte do espaço francês. Suas regiões n ão repousam
de seus produtos colocou-as h á muito tempo em rela ções contínuas [...].
Essa unidade manifesta-se também em seu estado social ( Sion , p.12 ) . ] nem sobre as configurações histó ricas, nem sobre os sentimentos de
perten ça; elas são um dado objetivo, na maior parte do tempo obli-
Embora , de um texto a outro, a operação que identifica e desig- terado na histó ria e nas consciê ncias , que somente a an álise geográ-
na a região natural como um espaço puramente geográfico seja idê n- i fica está em condi ções de restituir, ao isolar um certo n ú mero de
uca, os critérios que a fundamentam mudam um pouco. A Flandres i
de Blanchard encontra sua unidade fundamental na natureza do solo,

fatores distintivos. Mas e este é um segundo dado por vezes esque-
cido - a natureza desses fatores dominantes varia muito de um au-
em sua baixa al ú tude, sua horizontalidade, sua impermeabilidade. Este j tor a outro. Mesmo que retoricamente as f ó rmulas equilibrem o
é o crité rio que permite isolar um espaço homogé neo e desenhar uma ! natural e o humano, na verdade, são muito diferentes as ê nfases de
Flandres que nada deve às fronteiras pol íticas ou lingúísticas. Em j Blanchard , que delimita uma unidade topográfica, a Sion , que cons-
Demangeon , a definição de par ú da n ão é somente natural , já que o j titui sua região sobre uma base essencialmente econ ó mica. De res-
subsolo gredoso ultrapassa os limites da plan ície picarda, entendida : to, essa variação leva a inversões sintom á ticas. Fortemente unitá ria
essencialmente como um espaço cerealífero, distinto das florestas, das i em sua definição f ísica , a Flandres de Blanchard fragmenta-se ao
pastagens e das regiões industriais que a cercam: j longo da descrição:

210 211
-
Descobre se assim nesta plan ície flamenga , aparentemente uniforme e
Iam a existência de uma “ ação essencial do meio í f sico” sobre os fatos
monotonamente semelhante a si mesma em todos seus aspectos, uma
inesperada variedade de caracteres, regiões cujas culturas, ind ústria, cos- económicos ou sobre as instituições sociais, ao passo que freq úentemen-
tumes, interesses diferem tanto quanto sua temperatura , solo ou cursos te suas próprias observações desmentem tal relação e que sempre “ o
d’àgua. São mais do que nuances, trata-se de territó rios distintos, conhe- fato verdadeiramente explicativo seja humano e psicológico, e o fato
cidos do povo, aos quais ele deu nomes e cujas diferen çasjustifica ( Blan-
chard , p.117; o grifo é nosso ) . físico seja, no máximo, apenas uma condição” ; 3o condenam-se à incer-
teza , fechando-se no â mbito limitado da descriçã o regional. Para
Ao contrá rio, a diversidade das “ regiões naturais” que constituem a Simiand , este é sem d úvida o erro maior. Pouco lhe importa a defini-
Normandia oriental de Sion ( Caux, Bray, Vexin , as margens do Sena ) ção dada de região; sejam quais forem seus crité rios, ela só pode mas-
transforma-se progressivamente em unidade na an álise das estruturas carar as verdadeiras relações explicativas: “ Limitar-se a uma região tão
que lhes são comuns. O vocabulá rio dos geógrafos, que emprega a pa- estreita é fechar a ú nica via que permite distinguir entre as coincidên-
lavra região para designar territórios de escalas muito diferentes, revela cias acidentais ou não influentes e as correlações verdadeiras, já que sig-
por sua incerteza uma hesitação fundamental: como articular região e nifica fechar a via da comparação entre conjuntos diferentes bastante

regiões, como individualizar territórios cuja diversidade interna n ão numerosos; em uma matéria tão complexa, limitar-se a um ú nico caso
destrua a homogeneidade, ou pelo menos, como escreve M. Sorre, “ uma de observação é condenar-se de antemão a n ão poder provar nada” .
certa homogeneidade das partes constituintes” . Os procedimentos de uma “ ci ê ncia da morfologia social ”
opõem-se termo a termo ao m é todo erróneo dos geógrafos. Com
efeito, nela o recorte essencial n ão é o do territó rio a ser considera-
MORFOLOGIA SOCIAL E MONOGRAFIA REGIONAL do mas o do fen ômeno a ser analisado. Conseq úentemente, os es-
paços mais convencionais ( como a Fran ça ou a Europa ocidental )
Finalmente menos seguros e unâ nimes do que podia parecer, os são quadros legítimos, já que sua pró pria extensão multiplica os sí-
geógrafos vidalianos tiveram de sofrer os golpes críticos da sociologia tios onde observar as relações entre o fato social escolhido e os dife-
durkheimiana. O texto fundamental aqui é uma breve recensão dos rentes dados suscet íveis de explicá-lo. A ú nica exigê ncia espacial da
quatro livros de Blanchard, Demangeon , Vallaux e Sion , feita por Fran- morfologia social é a da extensão; portanto, a regiã o encontra-se
çois Simiand em L’Année sociologique ( t. XI, 1906-1909, p.723-732) . Pu- totalmente desqualificada como espa ço pertinente de an á lise. O
blicada na seção Morphologie sociale [Morfologia social] , ela constitui, com programa proposto à ciê ncia social define, então, como tarefa pri-
uma crítica de Halbwachs consagrada a um livro de Ratzel, sua primei- meira o estudo anal ítico dos diferentes fatos sociais. Os geógrafos
ra parte: Bases géographiques de la vie sociale [ Bases geográficas da vida tê m a í seu espaço desde que deixem de lado seu mé todo e renunci-
social]. Aos geógrafos, François Simiand dirige uma crítica tripla: Io eles em à ilusó ria monografia regional:
estendem indevidamente a noção de fato geográfico ao conjunto dos
fatos materiais ou mentais, destruindo assim o que deveria ser o dom í- Imaginemos que, ao invés de se aterem a um problema presentemente ( e
nio próprio da geografia ( ou seja, apenas o estudo dos fatos, cuja loca- ainda por muito tempo, sem d úvida ) tão insol úvel , os mesmos homens,
lização íf sica seja um elemento constitutivo ou explicativo ) 6; 2o postu- com sua consciê ncia , sua faculdade de erudição, e sua preocupa ção com
trabalho e resultados científicos se tivessem aplicado a estudar, por exem-
6
plo, as formas da habitação, ou a localização destas ou daquelas ind ústrias,
O porquê, na recensão de Simiand , do elogio ao livro de Vacher, Le Berry , publicado etc., cada um deles em toda a França, ou mesmo, se fosse o caso, na Euro-
em 1908, que n ã o se evade do dom ínio da geografia, centralizando sua aten çã o sobre pa ocidental , no presente e també m , como seria sem d úvida necessá rio,
fatos “ verdadeiramente ” geográficos: o relevo, a hidrografia, o clima. no passado: será que não teriam chegado a perceber e mesmo a extrair

212
213
relações mais concludentes, e penetrado mais depressa e mais verdadeira- que n ão é um estudo de geografia regional e que, em nenhum caso,
mente na pró pria compreensão dos fen ômenos que uma ciê ncia da
mor- pode ser igualada às monografias que a precedem - o que faz entre-
fologia social pode legitimamente se dar a tarefa de explicar? tanto Febvre em uma enumeraçã o de La Terre et l'évolution humaine
( p.29 ) . Sorre salienta , efetivamente, a dupla originalidade de seu
Essa abordagem , que postula implicitamente que as condições m é todo. De um lado, o território que ele estuda n ão constitui abso-
geográficas tê m apenas uma influ ê ncia menor sobre os fen ômenos lutamente uma região natural: trata-se de uma “ reunião de peque-
sociais, situa a descrição regional como o estágio derradeiro do co- nas regi ões mais ou menos fortemente individualizadas” ( p.2 ) , sem
nhecimento, uma vez estabelecidas as leis gerais que d ã o conta de homogeneidade e sem clara originalidade em relação às regiões vi-
cada um dos fatos sociais elementares: zinhas. De outro, sua proposta n ã o visa a descrever a totalidade dos
fatos naturais e humanos inscritos no espaço considerado , mas a le-
Supondo que as regiões cpnsideradas sejam mesmo unidades ao mesmo
tempo geográficas e humanas ( freq üentemente, aliás, mais humanas
do vantar um problema: “ Mostrar como os gê neros de vida transfor-
que geográficas) , começar por estudar a totalidade dessa região, querer mam-se sob a influ ência das transformações do meio vegetal - e re-
apreender tudo e tudo explicar ao mesmo tempo, é querer começar pelo ciprocamente - no contato de dois mundos e sob a depend ê ncia das
mais difícil, pelo que se pode no máximo conceber como o termo da ciê n- mudan ças de clima ” ( p.17 ) . O terreno escolhido n ão o é, portanto,
cia: pois significa querer, de fato, explicar um indivíduo em toda sua in-
dividualidade complexa e integral ao invés de iniciar, como em toda ciê n- por sua unidade , mas, bem ao contrá rio, pela diversidade de seus
cia , pela an á lise das relações gerais simples. sítios, diferenciados pela altitude , pela distâ ncia do mar, pelo clima.
Sorre recorta , pois , um espaço-laborató rio que n ão corresponde a
Isso significava abalar um credo que os geógrafos do século XX haviam nenhuma região natural e que ele denomina com uma designação
herdado daqueles do século XVIII: o primado necessário dos estudos um tanto paradoxal: os Pireneus mediterrâ neos.
locais, dos quais apenas a acumulação pode autorizar uma apreensão Fiel a Vidal de La Blache , o livro de Sorre coloca, contudo, no
global das enddades nacionais. Para Simiand , a descrição regional não
7
centro de sua problemá tica, sem dizer, talvez sem saber, as preocu-
está ( ou não ainda ) na ordem do dia; somente uma abordagem analí- pa ções dos sociólogos. Na exposição de seus motivos, encontram-se
tica e comparativista, movendo-se em espaços, cuja definição n ão é im- de fato as propostas de Simiand: pela multiplicação das comparações
deli-
portante desde que eles sejam suficientemente vastos, é capaz de e pela observação das repetições, extrair leis universais.
mitar as leis gerais que regulam as formas da vida social.
Criticada radicalmente por Simiand , a noção de regi ão natu- N ã o teríamos naturalmente descartado a noçã o de região natural se
n ã o tivéssemos acreditado que a perda era compensada por um be-
ral tal como fora empregada por Demangeon , Blanchard ou Sion , nef ício apreciá vel . Quando se estuda uma regi ã o, tem-se a preocupa-
é igualmente questionada no pró prio seio da geografia vidaliana. E çã o de indicar o que h á de singular na combina çã o dos fen ô menos
deste modo que deve ser compreendida a tese de Sorre, Les Pyrénées8 que nela se desenrolam ; estudam -se individualidades geográficas ir-
méditerranéennes [ Os Pireneus mediterrâ neos] ( publicada em 1913) , redut íveis às individualidades vizinhas; apresentam-se, enfim , os fatos
ou os agrupamentos de fatos sob seu aspecto de oposição. Ora , é igual-
mente essencial à ci ê ncia apresentar os fatos sob seu aspecto de repeti-
è-
7
Dentre outros, este texto de E . Beguillet e C. Courtépée, Description générale et particuli çã o [ ... ] . A vantagem do ponto de vista que adotamos é precisamente
íncias,
re du duché de Bourgogne, Dijon , 1774: “ Somente após a descri ção exata das prov permitir as compara ções [ ...] . Em resumo, nosso m é todo tem a van-
uma des-
feita sobre os lugares , pelos cientistas que lá permanecem , pode-se esperar ver tagem de colocar em relevo o cará ter de generalidade dos fen ô me-
Philosophe s.
cri ção geral e completa da França ” ( citado por N . Broc , La Géographie des nos estudados (Sorre, p.12-13 ) .
Géographes et voyageurs français au XVIIIe siècle, Paris, 1975 , p . 415 ) .
8
M . Sorre , Les Pyrénées méditerranéennes. Etude de géographie biologique, Paris , 1913.

215
214
Em Sorre, a região é , portanto, um artefato constru ído de manei- dos casos, ao lado do particular, do individual, do irregular - isto
i é, afí-
nal de contas, do mais interessante.9
ra a testar as poss íveis intera ções entre meios naturais e gê neros
de vida. Seu espa ço limitado é o ú nico a possibilitar a observa çã o Encontra-se nesse texto uma idéiajá expressa por Febvre no Prefácio de
acurada das diferen ças ( por exemplo, nos “ Pireneus mediterrâ- sua tese de 1912, ou seja, de que todo mé todo comparativista apenas
neos” , o escalonamento de quatro gê neros contrastados de vida ) , pode se fundar na avaliação das variações que existem entre situações
mas a finalidade da descriçã o está no estabelecimento dos princí-
regionais descritas em sua totalidade. Assim , em 1912 ele defendia a
pios que fazem com que, em diferentes s í tios, condiçõ es naturais multiplicação das descrições históricas consagradas às províncias tardia-
equivalentes definam gê neros de vida compará veis e que, em re- mente incorporadas ao reino, que são “ em uma certa medida, como
torno, estes últimos tenham uma mesma açã o transformadora so-
i cam pos de experiência e de comparação instalados, mantidos nas fron-
bre o meio. Ao contrá rio das “ regi ões naturais” , cuja individuals ' teiras
pela vida e pelos próprios séculos” .10 Regiões naturais dos geógra-
dade se pretende irredutível , aquela recortada por Sorre deve por fos, individualidades políúcas dos historiadores, pouco importa: é idên-
sua pró pria diversidade oferecer uma ampla gama de combinações \ tico o mé todo que faz da monografia a condição da comparação. Por
que podem ser determinadas em outro lugar. A definiçã o de um um lado, a primazia dada ao estudo regional é também subentendida
â mbito de estudo restrito n ã o é então aqui absolutamente contra-
por uma concepção da descrição regional mais apegada à diferença do
ditó ria com a generalização das constata ções que ela permite: ao
que à repetição. Escolher um quadro limitado não é, portanto, apenas
contrá rio, é sua pró pria condição. No terreno da geografia bioló- í
questão de comodidade ou de possibilidade, mas também de adaptar
gica , encontram-se assim cruzadas a an álise morfológica e a obser- a escala da observ ação à pró pria natureza dos fatos da vida social, pois
vação localizada. as variações e as singularidades a í são mais freq ü entes do que as rela-
No debate travado entre “ antropogeógrafos” e sociólogos, a ções estáveis e universais. Na verdade, na escolha do regional investe-
preferê ncia de Lucien Febvre é bem clara, e por duas razões funda- j
se, sub-repticiamente, uma representação dos fatos sociais, de suas ra-
mentais. A primeira delas deve-se à sua pró pria concepção do traba- zões e de suas relações, totalmente oposta àquela de Simiand.
lho científico. Para ele, a coleta de informações m ú ltiplas ( quer se-
jam recolhidas no terreno ou buscadas nos arquivos ) só é possível , !

com efeito , em um â mbito monográfico talhado à dimensão de uma !


METODOLOGIAS E ESTRATÉGIAS UNIVERSITÁ RIAS
pesquisa individual. Somente essa restri ção espacial é garantia da
validade dos dados reunidos. Portanto , é ilusó rio pretender estabe- j Essas poucas observações visam, não a estabelecer um inventá rio
lecer “ relações gerais simples” antes da descrição dos conjuntos ter- exaustivo das maneiras como a região foi manipulada ou ignorada pe-
ritoriais. Bem ao contrá rio, é apenas do ac ú mulo dos estudos locali- las ciê ncias sociais no in ício deste século, mas somente a marcar bem a
zados que poderá surgir uma problemá tica pertinente para a an áli- radical oposição existente entre duas apreensões do espaço - aqui ilus-
se das formas e das distribuições dos fatos sociais fundamentais: tradas pelos geógrafos vidalianos, de um lado, e por Simiand , porta-voz
dos sòciólogos durkheimianos, de outro. Tomando por objeto de an á-
Quando tivermos novamente algumas boas monografias regionais novas, lise o que habitualmente é tido por um dado evidente - todos sabem
entã o, mas somente neste momento, agrupando seus dados, comparan-
do-os, confrontando-os minuciosamente , poderemos retomar a questão
global , levá-la a dar um passo novo e decisivo, ter êxito. Proceder de ou-
9
Lucien Febvre, op. cit., p.92-93.
tro modo seria partir, munido de duas ou tr ês ideias simples e grossei- Lucien Febvre , Philippe 11 et la Franche-Comté. Etude d 'histoire politique, religieuse et sociale,
10

Paris, 1912, reedição. Paris, Flammarion Science , 1970, p. ll .


ras, para uma espécie de rá pida excursão. Seria passar, na maior parte

216 217
que as monografias regionais fundamentam-se em um recorte regio- hierarquia escolar. Por outro lado, ela goza de uma legitimidade cien-
nal - e esboçando o que poderia ser uma história cr ítica dos instrumen- j tífica crescente que se baseia na definição de um objeto próprio ( a re-
tos de pensamento aparentemente menos question áveis, n ão se trata j gião ) e de novos procedimentos de investigação (a análise da paisagem ,
nem de acrescentar uma rubrica a uma história da história ou a uma ' o cruzamento dos dados naturais e humanos, etc.) , sem que seja no
ciê ncia da ciê ncia social que encontraria seu fim em si mesma, nem de entanto abandonada esta garantia essencial de respeitabilidade que é
denunciar, a partir de uma posição presumidamente mais l úcida, as o trabalho na dimensão histórica. Para fazer com que se reconheça essa
ilusões ou incoerê ncias dos autores antigos - tampouco, aliás, de lou- legitimidade crescente, os geógrafos vidalianos empregam diferentes
vá-los se, por sorte, podem ser reconhecidos em seus textos achados tá ticas, comuns, aliás, a todas as disciplinas novas no in ício deste sécu-
de nosso presente. O projeto é outro: ordenar as categorias de pe nsa- lo: a referê ncia, porém distanciada, à ciência alemã - aqui, a an tropo-
mento utilizadas contraditoriamente por este ou aquele grupo disci- j geografia de Ratzel, inspiradora mas criticada; a fundação de uma re-
plinar, por esta ou aquela escola de pensamento, para tentar compre- i vista, Annales de géographie, criada em 1891, que dá uma imagem legível
ender, no interior da prá tica científica, como se retraduzem em opo- da unidade do grupo e, ao mesmo tempo, possibilita desqualificar as
sições epistemológicas finas as diferen ças (sociais, escolares, institu- abordagens antigas ou concorrentes; uma nova apresentação dos resul-
cionais, etc. ) que distinguem as diferentes populações universitá rias. j tados científicos, na verdade moldada em um gênero tradicional, a tese
É certo, com efeito, que escolher o regional ou o universal , o estudo j de doutorado de Estado, mas apoiada em novos signos de cientificida-
localizado ou a an álise comparativista , o inventá rio das diferen ças ou de, como o mapa utilizado não mais para localizar, mas para mostrar o
o estabelecimento de leis gerais é uma opção que tem suas razões - j ordenamento dos indícios constru ídos pela observação; a fotografia, não
na maioria das vezes desconhecidas. porque ilustra, mas porque define o objeto que deve ser compreendi-
As pesquisas de Victor Karady possibilitam sugerir algumas hipó- do; os croquis e gráficos extraídos das ciências da natureza, etc.
teses sobre as razões que fundamentam , no in ício do século, dentre Ora , na mesma é poca , a sociologia da Escola sociológica revela-
outras diferen ças metodológicas, as concepções contrastadas do que são > se duplamente dominada. É verdade que ela també m recruta no es-
os espaços legítimos e pertinentes da ciê ncia social. No momento em |
11
calão superior do sistema escolar, dentre os normaliens e os agrégés, mas
que se confrontam geógrafos vidalianos e sociólogos durkheimianos, a | ainda tem dificuldades para se ancorar no sistema universitá rio e para
posição das duas disciplinas n ão é idê ntica. A geografia, primeira den- j fazer com que se aceite universalmente sua legitimidade científica.
tre as ciê ncias sociais a ter quebrado o monopólio das disciplinas clássi- Razão de uma estratégia bem evidenciada por Victor Karady:
cas nas faculdades de letras, já se beneficia de uma grande legitimida-
de, tanto mais garantida porque soube captar para si a da história, atrain- Para garantir a legitimidade científica da sociologia e assegurar-lhe um
do historiadores normaliens e agrégés , situados, portanto, no cume da lugar equivalente à quele das disciplinas clássicas, principalmente nos
programas de ensino, era preciso implantar uma rela ção de interdepen-
dê ncia com as ciê ncias do homem estabelecidas nas faculdades - sobre-
11
Cf. Victor Karady, “ Durkheim , les sciences sociales et l ’ Université: bilan d ’ un semi- j tudo a histó ria, a geografia e a filosofia , mas també m a psicologia - por
échec ” , Revue française de sociologie, XV, 2 , abrihjunho 1976 , p. 267-311 , e “ Stratégies de 1 meio de ofertas de serviços, bem como de uma eficaz e radical cr ítica de
ré ussite et modes de faire-valoir de la sociologie chez les durkheimiens” , Revue française seus pressupostos epistemol ógicos. Tratava-se, portanto, de uma estraté-
de sociologie, XX , 1979, p. 49-82. | gia de alian ça com as disciplinas legítimas que comportava també m um
* Normaliens são professores do ensino secundário e universitário e pesquisadores , for- esforço de substitui ção e de ocupa ção de á reas a conquistar sobre estas.12
mados pela Ecole Nomale Supérieure, instituição universitária de alto nível; agrégé s são os
titulares de uma agrégation, exame que sanciona para cargos de professor secundário e
de algumas faculdades. ( N. de T. ) ' - Victor Karady, op. cit . , 1976 , p. 305.

218 219
Aplicada à relação cient ífica entre sociólogos e geógrafos e à ques- 1 do com procedimentos n ão sabidos, mais claramente determin áveis
tã o do recorte do espa ço, essa proposta permite compreender a nos textos antigos. A definição da região dos geógrafos vidalianos
dupla significação da rejeição sociológica da noção de região. De um mostra , por exemplo, que as exclusões impl ícitas tê m tanta impor-
lado, ela autorizava a captar o pró prio objeto da geografia humana, 1 tâ ncia quanto as propostas expl ícitas. Todo um conjunto de fatores,
ao mesmo tempo redefinindo totalmente os â mbitos de seu trata- I aqueles mesmos que podem apoiar hoje em dia o regionalismo,
mento , e a trazer assim para a “ morfologia social ” uma aquisi çã o, si- ] encontram-se a í ocultados, jamais considerados, jamais discutidos,
multaneamente utilizada e denegada , que permitia nã o reduzir as como acontece com a língua , a relação com o poder central, o lu-
bases da vida social apenas à infra-estrutura econ ómica. De outro, gar mantido no campo cultural nacional. Em busca da personalida-
essa rejeição permitia usar um dos ú nicos trunfos de que dispunha j de regional “ objetiva ” , os disc ípulos de Vidal de La Blache não po-
a sociologia contra a histó ria ou a geografia, ou seja , seu enraizamen- j dem pensar a região de outro modo que n ão seja através da evid ê n-
to filosófico, portanto, um estatuto de ciê ncia teó rica , abstrata, des- 1 cia de uma paisagem . Seria necessá rio poder delimitar melhor as
tinada ao universal e aos conceitos, ao passo que o estudo geográfi- origens e as perten ças desses homens para elucidar o paradoxo que
co permanecia dentre as ciê ncias sociais - e sem d ú vida mais ainda ] subentende sua obra: afirmar a primazia do â mbito regional igno-
com a escolha da descriçã o regional - o mais mergulhado no con- rando os fatores que poderiam lhe dar consistê ncia. Essa ignorâ n-
creto , no terreno, na observação local , na abordagem naturalista. cia é às vezes rejeição expl ícita. Assim , Blanchard rejeita o crité rio
Reivindicar, contra a monografia regional , o primado das an á lises lingúístico quando define a fronteira ocidental de sua Flandres:
comparativistas e analíticas, as ú nicas capazes de extrair leis gerais, j Assim , toda a plan ície é exatamente um peda ç o da Flandres, apesar da
era traduzir em termos de metodologia disciplinar uma das proprie- I opinião expressa por seus habitantes de que o territó rio flamengo ter-
dades mais recompensadoras da sociologia: sua proximidade com a I mina nas encostas de Hazebrouck e de Bailleul , porque tomam por uma
filosofia , até mesmo sua pretensão a ser a filosofia. Perifé rica no ta- I fronteira verdadeira o caprichoso limite das l ínguas, errante do Lis aos
buleiro universitá rio, ela tenta , como que por compensação, defi- J cimos , e confundem flaminguista e flamengo ( Blanchard , p.8) .
nir sobre o modo do universal e no espaço nacional seus objetos de |
estudo , negando, portanto, toda legitimidade às abordagens disci- I Os esquemas centralistas e unificadores da intelligentsia universitá-
plinares que, situadas no cora ção do sistema universitá rio, tratam ou ] ria e republicana parecem então esconder aos geógrafos vidalianos
antes maltratam esses mesmos objetos, fragmentando-os em uma 1 os dados que, na verdade, deveriam conferir toda sua significa çã o a
leitura empírica e parcelada. | seu projeto intelectual. Toda relação científica com um objeto re-
mete a uma definição por falta do objeto considerado , que revela,
mais ainda do que o que é dito, as determinações que pesam sobre
O VAIV É M DA REGI ÃO E DO REGIONALISMO o trabalho de conhecimento.
Para os historiadores, o debate sobre a região teve uma impor-
Constituir os confrontos antigos em torno do recorte regional ] tâ ncia decisiva. Seguindo Febvre, após um tempo de latê ncia , já que
em documento para uma ciê ncia da ci ê ncia social n ão é somente as grandes teses de histó ria “ regional ” são empreendidas nos anos
fazer o trabalho de arqueólogo. É també m questionar a prá tica cien- j 1950, eles consagram seus esforços à apreensão global de territó rios
t ífica contemporâ nea , porque esta é herdeira - e na maioria das ve- j bem circunscritos. E verdade que a região dos geógrafos vidalianos
zes herdeira inconsciente - de categorias recebidas agora como n ão ] não é mais o m ódulo obrigató rio, visto que os espaços explorados são
problem á ticas, e també m porque ela constrói seus objetos de acor- ] de natureza , de tamanho e de definição muito diversos: o “ país” ( Beau-

220 221

4
vaisis ) , a província ( Languedoc ) , a nação - mesmo sufocada - ( a Ca-
talunha ) , para ficar apenas nos três maiores sucessos, muito vezes 10. Filosofia e história
imitados depois disso. Se a escala varia, é globalmente semelhante a
abordagem que dedica atenção aos grupos majoritá rios, instala-se no
tempo longo ( um século ou mais ) , consagra-se à descrição das estru-
turas mais fundamentais, demográficas, econ ó micas, sociais. As razões
que fizeram da histó ria dita regional o gê nero dominante na historio-
grafia francesa ainda devem ser esclarecidas amplamente. Evidente-
mente, a justificativa pelas exigê ncias próprias do trabalho histó rico
( o exame minucioso de arquivos maciços só é possível em um â mbito
restrito ) n ão poderia bastar para explicar uma prá tica tão coletivamen-
te aceita. Duas razões parecem fundamentá-la. De um lado, a acumu-
lação das teses regionais remete sem nenhuma d úvida à divisão do
poder no interior da comunidade histórica , podendo a competê ncia
histórica reconhecida em um território dado converter-se em autori- O tema n ão é daqueles que o historiador aborda sem inquieta-
dade universitá ria regional. Regionalizar a história n ão era també m ção. Há vá rias razões para seus temores, sobretudo o medo de que
delimitar áreas de poder? De outro, todos os estudos de história regio- sejam despertados os fantasmas hoje adormecidos das “ filosofias da
nal baseiam-se na idéia, expressa ou n ão, de que a singularidade das histó ria ” à Spengler ou à Toynbee - essas filosofias “ baratas” ( como
situações é tal que n ão h á constatações generalizáveis fora do espaço escrevia Lucien Febvre ) que desenvolvem seu discurso sobre a his-
de seu estabelecimento. Esse credo da diferen ça revela à sua maneira tó ria universal a partir de um conhecimento de terceira m ão das
que a história, ainda que adotasse as t écnicas das ciê ncias sociais mais regras e procedimentos do trabalho histórico.
sofisticadas, continuava a se conduzir como uma disciplina mais des- Mais seriamente, a inquietação histó rica nasce da distâ ncia cons-
critiva do que conceptual , mais empírica do que teórica. O gê nero tatada entre dois universos de saber, amplamente estranhos um ao
monográfico era incontestavelmente o mais adaptado ao estatuto outro. A histó ria tal como se faz n ão atribui muita importâ ncia, de fato,
mediano ocupado pela histó ria na hierarquia das disciplinas, à igual ao questionamento clássico dos discursos filosóficos produzidos a seu
distâ ncia da observação sem razão e da abstração sem terreno. Como respeito, cujos temas parecem não ter pertin ê ncia operatória para a
nos anos 1930, quando se esgotava a tradição vidaliana e Febvre po- prá tica histó rica. As interrogações, as incertezas, as hesitações que a
dia ridicularizar “ o círculo encantado das monografias monografizan- atravessam têm pouco a ver com uma caraterização global do que é o
tes” , a asfixia da histó ria “ regional ” , que n ão deixa de ter vínculos com saber histórico: daí a distâ ncia aparentemente intranspon ível entre,
as transformações do sistema e das carreiras universitá rias, leva a um de um lado, a reflexão filosófica sobre a história , na qual os historia-
questionamento radical dos procedimentos que pareciam mais garan- dores n ão reconhecem nada ou quase nada de suas prá ticas e de seus
tidos e, finalmente , desqualifica a região como espaço de an álise no problemas, e, de outro, os debates travados, dentro da própria histó-
próprio momento em que ela se torna objetivo simbólico e pol ítico. ria , sobre a definição, as condições, as formas da inteligibilidade his-
tó rica e onde se encontram formuladas, sem referê ncia à filosofia,
in ú meras questões todavia plenamente filosóficas.

222 223
A FILOSOFIA DA HISTÓ RIA “ essencial para a ci ê ncia da filosofia ” . Essa relação original, ú nica,
DA HISTÓ RIA DA FILOSOFIA que a filosofia manté m com sua pró pria histó ria, funda um objeto
singular, constitu ído a partir do presente da disciplina: “ O espírito
Tecer um diálogo entre filosofia e histó ria supõe , portanto, que filosófico afirma-se como o criador da história da filosofia, pois é sua
se conheçam melhor os desconhecimentos rec íprocos e suas razões. atividade que confere aqui aos objetos da história seu valor de obje-
Para os historiadores, a filosofia tem como que duas faces: de um tos dignos da hist ória [...] . E , portanto, o pensamento filosófico do
lado, a história da filosofia, do outro, a filosofia da história. Ora, nem historiador da filosofia que erige a doutrina intrínseca em objeto” .2
um nem outro gê nero encontra-se no mesmo plano da história tal Da í vem , primeiramente, o postulado do cará ter específico do
como ela se construiu nos ú ltimos cinquenta anos. A histó ria da fi- dado filosófico presente em cada doutrina, um dado que n ão somen-
losofia , que poderia ter constitu ído o mais imediato dos lugares de te c tido por irredutível às circunstâ ncias históricas de seu aparecimen-
encontro, ocasionou na verdade ( pelo menos na tradi ção francesa ) to, mas mais ainda é pensado como “ n ão estritamente histó rico” , por-
a manifestação das maiores diferen ças. tanto negado ou destru ído por toda leitura que o constitui como um
Para Febvre e para os historiadores dos primeiros Annales, a » “ acontecimento” inscrito na histó ria, submetido a um conjunto de
histó ria da filosofia tal como escrita pelos fil ósofos ilustrou o pior ] determinações complexas e ligado a outros “ acontecimentos” :
de uma histó ria desencarnada , voltada para si mesma, fadada inu- i
tilmente ao jogo das id éias puras. Essa cr í tica antiga , formulada em j A decomposição de cada doutrina em elementos de origem disparatada
um vocabul á rio que sem d ú vida n ão empregar íamos mais, indica e externa, a resolu ção dos mesmos em uma soma de influê ncias, de cir-
cunstâ ncias materiais, de necessidades psicol ógicas individuais ou cole-
bem o mal-estar duradouro dos historiadores diante de uma histó- tivas, levá-los-iam a aparecer como o reflexo epifenomenal de um mo-
ria da filosofia que postula a absoluta liberdade da criação intelec- j mento da vida da humanidade no intelecto de um homem historicamen-
tual , totalmente desvinculada de suas condi ções de possibilidade , e te determinado e destruiriam assim sua substâ ncia mesma.
3

a existê ncia autó noma das id éias, desarticuladas dos contextos onde j
se elaboram e circulam. Em seus desenvolvimentos mais poderosos, j Razã o, corolariamente , de uma prá tica da histó ria da filosofia que
a histó ria da filosofia n ão pretendeu preencher essa distâ ncia da estabelece como objeto - e poder-se-ia dizer objeto exclusivo - a
história dos historiadores. Bem ao contrá rio, poder-se-ia dizer, a par- ] desmontagem da “ lei interna específica da cada doutrina” , organi-
tir do momento em que ela define seu objeto como a “ an á lise obje- j zadora do corpo de demonstrações articuladas que é a pró pria subs-
tiva das estruturas da obra ” , ou ainda o desvelamento das “ estrutu- ] tâ ncia de toda obra filosófica.
ras demonstrativas e arquitetônicas da obra ” .1 Assim compreendida, 1 Assim fundada, a história da filosofia, totalmente estrutural e
a histó ria da filosofia é uma histó ria espec ífica , irredutível a todas as 1 “ internalista” , pôde desenvolver-se em uma singularidade radical que
outras formas do saber histórico, inarticulável com o conhecimen- 1 contribuiu bastante para afastar história e filosofia, já que definia em
to deste “ mundo das realidades” de que falava Febvre. 1 termos bem diferentes daqueles dos historiadores tanto seu objeto
Esse estatuto pró prio, que subtrai absolutamente a filosofia à 1 quanto seu m é todo. Constituindo a histó ria da filosofia a partir da
interrogação histó rica ordin á ria, deve-se ao fato de que a histó ria da 1
filosofia é filosofia ela mesma ou , segundo a fó rmula hegeliana , é o I
- Martial Guéroult , Dianoématique. LivreII - Philosophie de l'histoire de la philosophie, Paris, Aubier-
Montaigne , 1979, p.49. Este texto foi escrito por Martial Gu é roult entre 1933 e 1938, por-
1
Essas fórmulas pertencem ao prefácio do livro de Martial Gué roult, Descartes selon l'ordre tanto antes de suas obras mestras sobre Leibniz, Malebranche, Descartes e Spinoza.
des raisons. I. L’â me et Dieu , Paris, Aubier-Montaigne , 1968, p. l ü.
:t Ibid., p.46.

224 225
própria interrogação - e apenas dela -, afirmando não somente a o do social e o da metaf ísica ) . Pensar a poss ível reinserção da his-
irredutibilidade do discurso filosófico a toda determinação, mas mais j tó ria da filosofia na histó ria da produ çã o cultural - e portanto na
ainda a impossibilidade mesma de pensar historicamente o objeto j história , nada mais - n ã o é necessariamente anular o dado filosó-
filosófico, visto que fazer assim é , na verdade, destru í-lo, a história j fico do discurso filosófico, mas tentar compreender sua racionali-
filosófica da filosofia - monopólio dos filósofos - instituía uma deshis- ] dade espec ífica na historicidade de sua produ ção e de suas rela-
torização radical de sua prá tica. Que haja nisso uma maneira toda i ções com outros discursos. As maneiras de entender a histó ria da
filosófica de consagrar a eminente dignidade da posição e da postu- filosofia constituem , pois, evidentemente , um dos primeiros desa-
ra filosóficas, nem determinadas nem preocupadas com a contingê n- j fios das relações entre filosofia e histó ria.

cia histó rica, quase n ão h á d úvida 4 mesmo se ou sobretudo se tal
perspectiva leva a uma leitura muito rigorosa das obras, guiada pela
j

preocupação de compreender a ordem de suas razões. RENUNCIARA HEGEL


Da histó ria da filosofia , os historiadores ( e outros ) podem , to-
davia, ter uma id éia diferente , a qual substitui a questão das con- | A essa primeira antinomia entre a histó ria filosófica da filoso-
dições de determina çã o da verdade filosófica , ú nica que permite fia e a história histó rica acrescenta-se uma segunda , h á muito con-
estabelecer o “ valor” ou a “ realidade ” filosófica de certas doutrinas, ceptualizada , entre conhecimento histórico e filosofia da histó ria ,
.] ou melhor, “ história filosófica ” , segundo a expressão hegeliana. É
portanto do “ pensamento filosofante ” ( questã o que Martial Gu é-
rouit colocava no centro de sua dianoemáticà) , por aquela das con- 1 exatamente Hegel , com efeito, que deve ser resgatado se quisermos
di ções sociais de produ ção e de recepçã o dos discursos considera- j compreender corretamente a distâ ncia entre as prá ticas dos historia-
dos como filosóficos nesta ou naquela economia de discurso (ques- j dores e a representação filosófica da histó ria. Desde o primeiro es-
tão que é justamente o impensado fundamental de toda filosofia ) . j boço da introdu ção às Leçons sur la philosophie de l 'histoire, que data
Essa interroga ção tem valor operatório para a an álise das obras? 1 de 1822, é firmemente estabelecida a distin ção entre todas as for-
Sabe-se bem que algumas das tentativas feitas para articular um 1 mas de histó ria praticadas pelos historiadores - a histó ria original
discurso filosófico e as estruturas da sociedade onde ele surgiu l dos Antigos ou dos cronistas medievais, a histó ria universal à Ranke ,
deixaram lamentáveis lembran ças por seu reducionismo apressa- 1 a histó ria pragm á tica moralizante , a histó ria cr ítica e filológica , en-
do e seu determinismo ingé nuo. A legitimidade de uma “ interpre- I fim , as histó rias especiais destinadas a um dom ínio particular - e a
histó ria filosófica a construir, que é a ú nica verdadeira histó ria , já
tação socioecon ô mica de um sistema intelectual ” ( retomando a J
5
f ó rmula dejon Elster em seu livro sobre Leibniz ) exige um outro
mé todo que não a correlação direta de um discurso e de uma po- 1
J que seu objeto é, segundo a definição dada no curso ministrado por
Hegel em 1830 , “ a manifestação do processo divino absoluto do Es-
sição social - um m é todo que determine antes de tudo as transfe- 1 p írito em suas maiores figuras: a caminhada gradual através da qual
rê ncias de paradigmas de um dom ínio a outro ( no caso , do discurso 1 ele chega à sua verdade e toma consciê ncia de si. Os povos histó ri-
econ ó mico ao discurso filosófico ) , ou entã o a utilização de analo- I cos, os caracteres determinados de sua é tica coletiva , de sua consti-
tuição , de sua arte, de sua religião , de sua ciê ncia, constituem as con-
gias que aproximem universos conceptuais disjuntos ( em Leibniz , 1
figura ções dessa caminhada gradual [... ] Os princ í pios dos esp íritos
dos povos [ Volksgeist ] , na sé rie necessá ria de sua sucessão, n ão pas-
4
Pierre Bourdieu , “ Les sciences sociales et la philosophie ” , Actes de la recherche en sciences
sociales , n . 47/ 48, 1983, p.45-52. sam eles mesmos de momentos do ú nico Esp í rito universal: graças
5
Jon Elster, Leibniz et la formation de l'esprit capitaliste, Paris, Aubier-Montaigne , 1973. a eles, ele eleva-se na histó ria a uma totalidade transparente a si mes-

226 227
ma e traz a conclusão” .6 Necessidade , totalização, finalidade: noções - mas també m em relação a uma história estrutural que supostamen-
fundamentais que por muito tempo moldaram os discursos filosófi- te eliminaria , com o acontecimento, rupturas e fissuras. O diagn ós-
cos sobre a história, fiéis em maior ou menor grau a Hegel. tico feito sobre a história tal como ela é, nos anos 1960, focaliza en-
Ora , é justamente contra tal apreensão da realidade histórica tã o a aten ção sobre o conceito que mais a diferencia da heran ça
que se tem constru ído, nos ú ltimos cinq úenta anos, a prá tica histó- deixada pela “ histó ria filosófica ” : o de descontinuidade. Em sua prá-
rica mais concreta , que trabalha com descontinuidades, varia ções, tica, os historiadores romperam decididamente com um pensamento
diferen ças. Desse distanciamento, a constatação mais aguda é incon- da totalidade - que identifica o princípio ú nico, “ espírito substancial”
testavelmente aquela trazida por Michel Foucault em todo um con- universalmente presente nas diferentes “ formas” ou “ esferas” que o
junto de textos do final dos anos 60 ( “ Ré ponse au Cercle realizam em um momento dado ( o Estado, a religião, o direito, os
d’ é pisté mologie ” , em 1968, Arqueologia do saber, em 1969, A Ordem do costumes, etc. ) - e um pensamento da continuidade - que postula
discurso, em 1970 ) , onde ele opõe , termo a termo, a id éia da histó- a unidade do Espírito através de suas diferentes, sucessivas e neces-
ria geralmente admitida pelos filósofos - atravessada pela referê n- sá rias particularizações histó ricas. A histó ria no local procede de
cia hegeliana - e o “ trabalho efetivo dos historiadores” . Para a histó- outro modo: ela faz “ um uso regulado da descontinuidade , para a
ria tal como praticada , e que é operacionalização serial de fontes an álise das sé ries temporais” 8 e tenta estabelecer as rela ções que ar-
maciças, “ as noções fundamentais que se impõem agora n ão são mais ticulam as sé ries diversas e entrecruzadas sem reduzir todas “ ao prin-
aquelas da consciê ncia e da continuidade ( com os problemas cor- c ípio universal que impregna todas as esferas particulares da vida ” .9
relatos da liberdade e da causalidade ) , tampouco aquelas do signo Histó ria nova contra “ hist ó ria filosófica ” , os Annales contra
e da estrutura. Sã o aquelas do acontecimento e da sé rie , com ojogo Hegel: o destino dessa antinomia é interessante. Por um lado, foi a
das noções que lhes são ligadas; regularidade , acaso , descontinuida- própria filosofia que se desligou do projeto hegeliano, consideran-
de, depend ê ncia , transformação” .7 do impossível pensar e produzir esta “ filosofia da histó ria universal ”
Leitor atento daquilo que designa como uma “ histó ria nova ” que as lições de 1830 pretendiam fundar. Dessa ren ú ncia a Hegel ,
em Arqueologia do saber, e que é constitu ído antes de tudo pelas gran- desse abandono do hegelianismo, a modalidade maior não é a da
des teses e pesquisas francesas dos anos 1950 e 1960 sobre os movi- refuta çã o, mas antes a da varia ção , do deslocamento. Ouçamos Ri-
mentos dos preços e dos tráficos ( de Labrousse a Chaunu ) , as varia- coeur: “ O que nos parece altamente problem á tico é o projeto mes-
ções demográficas reconstru ídas a partir do m é todo de reconstitui- mo de compor uma histó ria filosófica do mundo que seja definida
çã o das fam ílias, e as evolu ções das sociedades, geralmente apreen- pela ‘efetuação do Esp írito na histó ria ’ [...] O que abandonamos foi
didas em um â mbito secular e monográfico ( do Beauvaisis ao Lan- o pró prio trabalho em andamento. Nã o buscamos mais a fó rmula
guedoc, de Amiens a Lyon ou Caen ) , Foucault percebe nesses tra- sobre a qual a histó ria do mundo poderia ser pensada como uma
balhos, feitos in situ e sem reivindicar nenhuma teoria expl ícita da totalidade efetuada ” .10 A inteligibilidade da histó ria é assim separa-
histó ria , uma dupla originalidade intelectual: em relação a uma his- da de todo projeto de totalização, quer seja na escala de cada mo-
tó ria global fadada a narrar o “ desenrolar cont ínuo de uma histó ria mento histó rico particular ou naquela do devir universal .
ideal ” - que é a histó ria dos fil ósofos e dos avatares do hegelianismo
8
Michel Foucault, “ Réponse au Cercle d ’é pistémologie ” , Cahiers pour l’analyse, n. 9, 1968,
'’ G.W. F. Hegel, La Raison dans l’histoire. Introduction à la philosophie de l’histoire, Paris, U.G. E., Paris, Editions du Seuil , p.9-40 ( citação p. l 1 ) .
.
col 10 /18, 1965 ( citação p.97-98) . 9
G.W. F. Hegel , op. cil., p. l 57.
7
Michel Foucault, L’Ordre du discours, Paris, Gallimard , 1970 , p.58-59. 10
Paul Ricoeur, Temps et récit, t. III , Paris, Editions du Seuil , 1985, p. 297. Foi desse livro
que extra ímos o título dessa seção.

228 229
Mas, por outro lado, no próprio momento em que se opera essa herdada do marxismo e reforçada por uma leitura das durações brau-
renuncia, esse abandono filosófico de Hegel , a prá tica histórica , que
delianas hierarquizando a longa duração dos sistemas econ ómicos, as
contribuiu para torn á-lo possível, encontra-se também profundamen-
conjunturas menos estendidas das evolu ções sociais e o tempo curto
te transformada. A história tal como se escreve hoje não é mais aquela,
do conjunto dos acontecimentos políticos. Essa concepção - que su-
ou não é mais somente aquela à qual Foucault queria articular seu pro-
põe uma definição estável das diferentes instâ ncias, identificáveis em
jeto de an álise dos discursos. No centro das revisões contemporâ neas,
qualquer sociedade, que implica uma ordem das determinações e que
a própria noção de série, no entanto tida por central na caracterização
postula que os funcionamentos económicos ou as hierarquias sociais
de uma história desembaraçada da referência hegeliana. Menos apai-
são produtores das representações mentais ou ideológicas, e não pro-
xonada pelas tabelas de preços ou pelos arquivos portuá rios, a história duzidos por elas - quase n ão é mais aceitável , nem admitida. Em mo-
então pôde interrogar-se sobre a validade dos recortes e dos procedi-
dalidades diversas, a pesquisa histórica tentou pensar diferentemen-
mentos implicados pelo tratamento serial do material hist órico. A crí-
te a leitura das sociedades, esforçando-se para penetrar no -labirinto
tica foi dupla. De um lado, ela denunciou as ilusões sustentadas pelo
das tensões que as constituem a partir de um ponto particular de en-
projeto de uma história serial ( portanto quantitativa na tradição histo- trada, que pode ser um acontecimento, maior ou obscuro, a trajetó-
riográfica francesa ) dos fatos de mentalidade ou das formas de pensa-
ria de uma vida, ou a história de um grupo específico. O porqu ê, atual-
mento. Esse projeto, de fato, só pode ser redutor e reificante, já que
mente, de um grande n ú mero de formas da histó ria, bem diferentes
supõe que os fatos culturais e intelectuais se dão de saída em objetos
daquelas evocadas por Foucault nos anos 1968-1970: a microstoria, na
bons de contar, que devem ser apreendidos em suas expressões mais
Itália, o anthropological mode of history praticado por certos historiado-
repetitivas e menos individualizadas e, portanto, ser reduzidos a um res americanos, o retorno ao estudo do acontecimento, na Fran ça. Em
conjunto fechado de fórmulas do qual se trata somente de estudar a todos os casos, trata-se exatamente de ir às estruturas, não construin-
freq úê ncia desigual conforme os sítios ou os meios. Foi contra essa re- do diferentes sé ries em seguida articuladas umas às outras, mas a par-
dução, que estabelece correlações demasiado simples entre n íveis so-
tir de uma apreensão ao mesmo tempo pontual e global da socieda-
ciais e indicadores culturais, que se propôs a perspectiva de uma histó-
de considerada , dada a compreender através de um fato, de uma exis-
ria cultural outra, centrada mais sobre as prá ticas do que sobre as dis-
tê ncia, de uma prá tica. O programa explicitado por Foucault ( “ deter-
tribuições, mais sobre as produções de significações do que sobre as re-
minar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre as
partições de objetos. A noção de série não é necessariamente expulsa
diferentes séries” ) encontra-se incontestavelmente formulado em no-
dessa história - por exemplo, no sentido em que Foucault falava de “ sé-
vos termos, exigindo que sejam elaboradas na fronteira da prá tica his-
ries de discursos” , tendo cada uma delas princípios de regularidade e
tó rica e da reflexão filosófica novas questões. Gostar íamos de evocar
seus sistemas de restrições - mas aí se encontra certamente emancipa-
agora algumas delas.
da da definição imposta pela construção das séries econ ómicas, demo-
gráficas ou sociais, necessariamente fundada sobre o tratamento esta-
tístico de dados homogéneos e repetidos. DO OBJETO HISTÓ RICO OU A QUERELA DOS UNIVERSAIS
Segundo problema: aquele levantado pela articulaçã o das dife-
rentes “ sé ries” determinadas em uma sociedade dada. A solu ção con- “ A histó ria é descrição do individual através dos universais” 11: a
sistiu por muito tempo em reparti-las entre os “ n íveis” ou “ instâncias” afirmação de Paul Veyne designa claramente uma das tensões pri-
que supostamente estruturam a totalidade social - uma distribuição
11
Paul Veyne , Comment on écrit l'histoire, 1971 , Paris, Editions du Seuil , 1978, p.87.

230
231

WWtMli •»
meiras com as quais se confronta o conhecimento histórico, habi-
zação das sociedades. Vem da í a variabilidade das categorias psico-
tuado a manipular, como se fossem evidentes, categorias aparente-
l ógicas e da pr ó pria estrutura da personalidade , de maneira algu-
mente estáveis e invariantes. Ora , depois de Foucault ( e / ou Elias ) ,
ma redut íveis a uma economia psíquica universal da natureza hu-
passou a ser impossível considerar os objetos histó ricos, quaisquer mana, mas moldadas diferentemente pelas depend ê ncias recípro-
que sejam , como “ objetos naturais” dos quais apenas as modalida- cas que caracterizam cada forma çã o social. Vem da í, enfim , o re-
des histó ricas de existê ncia variariam. Para alé m da comodidade
corte “ concreto ” , “ objetivo” , das pró prias formas sociais pelo cru-
enganosa do vocabulá rio , deve-se reconhecer, n ão objetos, mas “ ob- zamento de prá ticas interdependentes:
jedvações” , produzidas por prá ticas diferenciadas que constroem , a
cada vez, figuras originais, irredutíveis umas às outras: “ neste mun- Nem o “ jogo” , nem os “ jogadores” são abstrações. O mesmo acontece
do, n ão se joga xadrez com figuras e ternas, o rei, o peão: as figuras com a configuração dos quatro jogadores em torno da mesa. Se o termo
são o que as configurações sucessivas sobre o tabuleiro fazem delas” .12 de “ concreto ” tem um sentido, pode-se dizer que a configura ção que for-
Dois comentá rios acerca disso. O primeiro para salientar q ue a mam esses jogadores, e os pró prios jogadores, sã o igualmente concre-
tos. O que se deve entender por configura ção é a figura global , sempre
constatação dessa variação das objetivações históricas n ão deve ser em muta ção , formada pelos jogadores: ela inclui n ã o somente seu inte-
confundida com uma avalia ção dos conceitos dos historiadores, ti- lecto, mas toda sua pessoa, as a çõ es e as rela çõ es recí procas.13
dos por necessariamente flutuantes porque “ sublunares” . Reconhe-
cer a mutabilidade das configurações que constroem de maneira Entre Elias e Foucault, as diferen ças sã o grandes e devem-se
espec ífica dom ínios de prá ticas, economias discursivas, formas so- fundamentalmente à oposi ção entre um pensamento da duraçã o,
ciais n ão significa postular necessariamente que os conceitos mani- onde as formas sociais e psicol ógicas deslizam de uma à outra em
pulados para design á-las - desde que n ão sejam mais os conceitos uma continuidade longa - o que Elias designa pelo termo de figura-
gen éricos, ou universais, do repertó rio histó rico clássico - são por tional changes -, e um pensamento da descontinuidade, que estabe-
essência frágeis e vagos. lece como essenciais as rupturas entre as diferentes figuras sociais
Segunda observação: é a partir dessa mesma imagem de jogo ou discursivas. Entretanto, ambos apelam para uma “ revolu ção” na
- o jogo de cartas ou a partida de xadrez - que Norbert Elias expli- história, obrigando a disciplina a pensar de outro modo seus obje-
cita o conceito maior de todas suas an álises: o de figuration, tradu- tos ou seus conceitos. Livrar-se tão radicalmente dos automatismos
zido por formação, ou melhor, por configuraçã o, constelação, disposi herdados, das evid ê ncias n ão questionadas n ão é fácil , e as antigas
tivo. També m aqui a meta visada é a suposta invariâ ncia dos obje-
- certezas desmoronam com dificuldade. Mesmo entre os mais bem
tos histó ricos, a universalidade postulada da economia psíquica , das intencionados, os falsos objetos naturais retornam naturalmente,
categorias de pensamento, da estrutura ção social. Para Elias, ao como se a evidê ncia primeira segundo a qual o Estado, a medicina,
contrá rio, é a modalidade própria das relações de interdependê a loucura , realidades evidentes em todos os tempos, constitu ísse o
n-
cia , que ligam os indivíduos uns aos outros em uma forma ção dada, obstáculo principal que impede a constru ção, em sua variabilidade ,
que define a especificidade irredutível dessa formação ou configu- das objetivações histó ricas como correlatos das prá ticas.
ra ção. Vê m da í as figuras sempre singulares das formas de domi-
nação , dos equil íbrios entre os grupos, dos princ í pios de organi-
13
Norbett Elias , Qn’est-ce que la sociologie? ( 1970 ) , Paris, Pandora, 1981, p.157. Sobre Elias,
u Paul Veyne , cf. nosso prefácio “ Formation sociale et économie psychique: la socié té de Cour dans
Foucault révolutionne l’histoire, texto publicado após a reedição de Comment
on écrit l’histoire, Paris, Editions du Seuil, 1978, p.236. le procès de civilisation ” , a Norbert Elias, La Société de cours , Paris, Flammarion , 1985,
p. I-XXVIII.

232
233
if
DO NARRATIVO OU AS ARMADILHAS DA NARRATIVA com efeito, a partir das fó rmulas da narrativa ou da trama. Existem
diversos substitutivos ou formas de transição que remetem “ das es-
Das questões atuais dos historiadores, a das pró prias formas da truturas do conhecimento histó rico ao trabalho de configuração
escritura histó rica é sem d úvida uma das mais vivas e també m uma narrativa” e que associam em ambos os discursos a concepçã o da
daquelas que a referê ncia filosófica pode auxiliar a constituir com causalidade, a caracterização dos sujeitos da ação, a constru ção da
uma pertin ê ncia maior. Conhece-se o debate aberto pelo diagn ósti- temporalidade.16 Por essa razão, a histó ria é sempre narrativa , mes-
co que quis caracterizar a histó ria em suas tendê ncias mais novas mo quando pretende afastar o narrativo, e seu modo de compreen-
como um retorno à narrativa, à narração e , corolariamente , como são permanece tributá rio dos procedimentos e operações que asse-
um abandono da descri ção estrutural das sociedades.14 Dois postu- guram a trama das a ções representadas.17
lados fundamentam essa constatação: em primeiro lugar, que esse Mas - e este é um segundo ponto - essa perten ça da histó ria ao
refluxo em direçã o à narrativa significa uma ren ú ncia às explicações narrativo, que funda a identidade estrutural entre narrativa de fic- i

coerentes e cient íficas - em particular, àquelas fornecidas pelas cau- çã o e narrativa de histó ria , n ã o é exclusiva de inteligibilidade. A
salidades econ ó micas e demográficas -, a seguir, que essa eleiçã o de oposi ção que pretende contrastar as explicações sem narrativa e as
um modo particular de escritura histó rica que “ consiste em organi- narrativas sem explica ções é demasiado simples: a compreensão his-
zar a maté ria de acordo com a ordem contínua da cronologia e a tórica é constru ída , com efeito , em e pela pró pria narrativa , por seus
ajustar a imagem de tal modo que, pela convergê ncia dos fatos, o ordenamentos e suas composições. Mas h á duas maneiras de com-
conte ú do da narra ção será cont ínuo e ú nico, ainda assim haverá preender essa asserção. Ela pode significar que a trama é compre-
intrigas secund á rias ” 15 indica simultaneamente um deslocamento ensão em si mesma - portanto, que h á tantas compreensões poss í-
dos objetos ( que n ão são mais prioritariamente as estruturas sociais, veis quantas intrigas constru ídas e que a inteligibilidade histó rica só
mas os sentimentos, os valores , os comportamentos ) , dos tratamen- é medida pela plausibilidade oferecida pela narrativa. “ O que se
tos ( os procedimentos quantitativos cedendo diante da investigação chama de explica ção n ão passa da maneira que a narrativa tem de
das particularidades) e da compreensã o histó rica ( o “ princ ípio de organizar uma intriga compreensível ” ,18 escrevia Veyne, estabelecen-
indeterminaçã o ” substituindo os modelos deterministas ) . do ao mesmo tempo que narrar é sempre dar a compreender mas
Semelhante diagn óstico parece duplamente apressado. Por um que, coroloriamente, explicar em história n ão é senão desenlear uma
lado, onde ele pensa identificar um retorno da narrativa em uma intriga . Todavia , a proposição que liga narra çã o e explicaçã o pode
história que a teria desqualificado e abandonado, deve-se reconhe - ter um outro sentido se ela elaborar os dados postos em intriga como
cer com Ricoeur o contrá rio, isto é, a plena perten ça da histó ria em tra ços ou ind ícios autorizando a reconstru ção , jamais sem incerteza
todas suas formas, mesmo as menos factuais, mesmo as mais estru- mas sempre submetida a controle, das realidades que os produziram.
turais, ao campo da narrativa. Toda escritura histó rica constrói-se, O conhecimento histó rico é assim inscrito em um paradigma do
saber que n ão é o das leis matematizáveis, tampouco apenas o das
11
Lawrence Stone , “ The Revival of Narrative. Reflections on a New Old History” , Past
and Present , n . 85, 1979, pp. 3-24 ( tradu çã o francesa “ Retour au récit ou réflexions sur Paul Ricoeur, Temps et récit , 1.1, Paris, Editions du Seuil ,1985, cm particular o capí tulo
une nouvelle vieille histoire ” , Le Débat , n . 4, 1980, p. 116-142 ) . Para as respostas a “ L’ intentionnalité historique ” , p. 247-313.
Lawrence Stone, cf. Eric Hobsbawn , “ The Revival of Narrative Some Comments” , Past 17
Cf. a leitura feita por Paul Ricoeur de La Mediterrannée de Braudel , onde a pró pria
and Present , n . 86, 1980 ( tradu ção francesa, “ Retour au récit? Ré ponse à Lawrence Sto- noçã o de longa duração é mostrada como sendo derivada do acontecimento tal como
ne” , U Débat , n . 23, 1983, p.153-160 ) . é constru ído pelas configurações narrativas, Temps et récit , 1.1, op . cit ., p.289-304.
15
Ibid . , p.117. 18
Paul Veyne, Comment on écrit l’histoire, op . cit . , p.67.

J
234 235

i
VERSUS “ STORY”
“ HISTORY”
uma ope-
narrativas verossímeis. A trama deve ser entendida como
19
OU AS REGRAS DA NARRATIVA VERÍ DICA
ível in-
ração de conhecimento que estabelece como central poss
a
da , a
teligibilidade do fen ômeno histórico, em sua realidade apaga Narrativa dentre outras narrativas , a histó ria singulariza-se , en-
partir do cruzamento de seus tra ços acessíveis. tretanto, pelo fato de que mant é m uma rela çã o espec ífica com a
Uma vez resolvida a falsa antinomia entre conhecimento -
his
verdade ou , antes, de que suas constru ções narrativas pretendem ser
tó rico e configuraçã o narrativa , resta o problema
da operacionali- a reconstrução de um passado que existiu. Essa referê ncia a uma
narrativa , de realidade situada fora e antes do texto histó rico e que este tem a fun-
zação pela histó ria de diferentes modos de escritura
, evidentemen-
diferentes registros de narrativa. O de La Mediterranée ção de resgatar, à sua maneira , n ão foi abdicada por nenhuma das
te , não é o de Montaillou , o de um gráfico de pre
ços n ão é o de uma formas do conhecimento histó rico; mais ainda , ela é o que consti-
variações seja
histó ria de vida. Revelou-se tentador dar conta dessas tui a histó ria em sua diferen ça mantida com a fá bula e a ficção. Ora ,
atí-
considerando-as como té cnicas de observação totalmente comp , é justamente essa divisão que parece menos certa , e isso por dois
veis, assim como as manipulações do microscó pio e
do telescó pio conjuntos de razões. Por um lado, a reinscri ção da escritura histó ri-
am a constru-
seja relacionando-as às próprias mutações que afetar ca no campo do narrativo pôde levar praticamente ao apagamento
, decorrer
ção das narrativas de ficção, em texto e em imagens no da fronteira que a separa da narrativa de ficção e considerá-la como
ou daquele
deste século. Mas, sem d ú vida, h á mais na escolha deste um literary artifact , colocando em ação os mesmos procedimentos
ções
modo de narração, e em particular a tradu ção de representa narrativos e as mesmas figuras retóricas que os textos de fantasia. De
mais pensa-
diversas, até mesmo contraditó rias do social, que n ão é onde, um deslocamento dos crité rios de identificação dos modos de
do como uma totalidade estruturada em instâ ncias, defini
tivamen- discurso, classificados segundo os paradigmas da trama que os arti-
te hierarquizadas , mas como um labirinto de rela
ções complexas culam , e n ão mais de acordo com a rela ção que supostamente eles
de m ú ltipla s mane iras ,20
onde cada indivíduo encon tra -se inscri to mantê m com a realidade. De onde , um deslocamento conjunto da
todas elas culturalmente constru ídas. Fica portanto claro
que as es- definição mesma da explicação histó rica , entendida como o proce-
colhas feitas entre as diferentes escrituras histó ricas poss
íveis - e que dimento de identificação e de reconhecimento dos modos e figu-
todas, certamente, tangem ao gê nero narrativo - constroem
modos
ras do discurso operacionalizados pela narrativa , e n ão mais como a
dife-
de inteligibilidade diferentes de realidade histó ricas pensadas explicação do acontecimento passado. Mesmo quando, em tal pers-
21

rentemente. É sem d ú vida através desses contrastes que


distinguem pectiva , a meta referencial da histó ria n ã o é negada ou evacuada -
lam , hoje
as o peracionalizações do material histórico que se formu sen ão como constituir a histó ria como específica? - a ê nfase está alhu-
didá ti-
em dia , nas pró prias prá ticas de an álise e n ão no enunciado res, nas identidades retó ricas fundamentais que aparentam histó ria
os his-
co das teorias da história , as clivagens maiores que separam e romance, representa ção e ficção.
as oposi-
toriadores e que n ão coincidem sen ão parcialmente com Por outro lado, e parafraseando Ricoeur, é o pró prio conceito
ções herdadas e institucionalizadas. de “ realidade” aplicado ao passado que é dif ícil de problematizar
hoje em dia. As aporias ou ingenuidades históricas neste caso devem-
” , in Crisi delia ragione. Nuovi
19 Carlo Ginzburg, “ Spie. Radiei di un paradigma indiziario
modelli nel rapporlo Ira sapere e attivil à uvnane, sob a responsabilid
ade de A. Gargani , Tu -
rim , F.inaudi, 1979, p.56-106 ( tradu ção francesa “ Signes
, traces, pistes. Racines d ' un pa - 21
Hayden White, Metahistory . The Historical Imagination in XIXth Century Europe, Baltimo
re e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1973, “ Introduction : The Poetics of
radigme de l’indice” , H Débat , n. 6, 1980, p. 3-44 ) . Storici, n . 40, 1979, p.181- History ” , p.1-42, e Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism, Baltimore e Londres,
20
Carlo Ginzburg e Carlo Poni, “ Il noine e il corne ” , Quaderni , The Johns Hopkins University Press, 1978.
. 17, 1981 p.133-136 ) .
190 ( tradução francesa “ La microhistoire ” , HDébat , n
237
236
se sem d ú vida à confusão perpetuada entre uma discussão metodo- artefato literá rio, portanto à criação singular, a pró pria base do co-
l ógica, tão antiga quanto a histó ria, sobre o valor e a significação dos nhecimento histó rico é considerada como algo que escapa a essas
traços que autorizam um conhecimento mediato, indireto, dos fe- varia ções ou a essas singularidades, já que sua “ verdade ” é garantida
n ô menos que os produziram , e uma interrogação epistemol ógica, por opera ções control áveis , verificáveis, renováveis.24
geralmente evitada pelos historiadores, talvez porque paralisaria sua De acordo. Esta é a imposição primeira do discurso histórico,
prá tica , sobre o pró prio estatuto da correspond ê ncia programada , reconhecida até mesmo por aqueles menos inclinados a considerá-lo
reivindicada , entre seus discursos, suas narrativas, e a realidade que científico. Abandonar seus requisitos seria, de fato, destruir a pró pria
pretendem tornar compreensível. Sem elaborar essa questã o, talvez idéia de saber histó rico. Entretanto, a experiê ncia de cada um indica
se possa assinalar o que nela está em jogo: a defini ção mesma dessa claramente que uma seguran ça na objetividade das técnicas pró prias
“ realidade ” a reconstruir, um problema que está no coração dos vi- à disciplina - quer sejam filológicas, estatísticas, inform á ticas - n ão
vos debates na Alemanha entre os defensores da Alltagsgeschichte, de basta para eliminar as incertezas inerentes ao estatuto do conhecimen-
uma histó ria do existencial cotidiano , e os defensores de uma histó- to que ela produz, dito “ indireto, indiciai e conjectural ” .25
ria social conceptualizada , ou daqueles engajados na Itália em tor- A questão com que se confronta a histó ria hoje é a da passa-
no da microstoria, definida como “ ciê ncia do vivido” . gem de uma valida çã o do discurso histó rico sobre o fundamento
“ A questão da prova permanece mais do que nunca no centro do controle das operações que o fundam - e que n ã o sã o nada
da pesquisa histórica” ,22 mas o que significa “ provar” em histó ria? A menos do que arbitrá rias - a um outro tipo de validação, permi-
pergunta sugeriu por muito tempo uma resposta de tipo filológico, tindo considerar poss íveis, prováveis , verossímeis, as relações pos-
ligando a verdade da escritura histó rica ao correto exercício da cr í- tuladas pelo historiador entre os traços documentais e os fen ô me-
tica documental e à justa manipula çã o das técnicas de an á lise dos nos de que são o ind ício, ou , em um outro vocabulá rio, as repre-
materiais histó ricos. Desse exerc ício ou dessa manipulação, contro- senta ções atualmente manipul áveis e as prá ticas passadas que elas
les sã o possíveis, verificando ou desqualificando, sobre uma base designam . Formular deste modo o problema da histó ria como nar-
totalmente técnica , os enunciados histó ricos que eles produzem . rativa ver ídica é ao mesmo tempo estabelecer todo um conjunto
Assim apoiada em seus procedimentos mais objetivos, a histó ria de questões que concernem tanto à pertin ê ncia e à representativi-
pode , ao mesmo tempo, ser diferenciada da fá bula ou da ficção e dade dos tra ços acessíveis ( problema que talvez n ão baste para re-
ser validada como reconstitui ção objetiva do passado conhecido so- gular um conceito paradoxal como o de “ excepcional normal ” ) 21'
bre tra ços, da realidade encontrada a partir de seus vestígios. “ Essa quanto à maneira de articular a relação entre representações das
reconstituição pode ser considerada verdadeira se puder ser repro- prá ticas e prá ticas da representa çã o.
duzida por qualquer outra pessoa que saiba praticar as técnicas ne-
cessá rias para a circunstâ ncia ” 23: mesmo que as modalidades de tra- 24 Cf. a posi ção de Aido Momigliano, “ L’ histoire à l ’ â ge des id éologies” , Le Débat , n . 23,
ma possam variar, mesmo que a escritura histó rica diga respeito ao 1983, p.129-146 e “ La retó rica della storia e la storia delia retórica: sui tropi di Hayden
White” , in Sui fondamenti della storia antica, Turim , Einaudi , 1984, p. 456-476, onde ele
indica que o que distingue “ a escritura histórica de qualquer outro tipo de literatura é
22
Carlo Ginzburg, “ Prove e possibilita ” , in N . Z . Davis, Il ritorno di Martin Guerre. Un caso o fato de que é submetida ao controle dos fatos” ( p.466 ) - i.e. às disciplinas obrigató-
di doppia identil à nelleFrancia del Cinquencenlo, Turim , Einaudi, 1984, p.131-154 ( cita çã o rias da rr ítica e da interpreta ção dos documentos.
p.149 ) .
25
Carlo Ginzburg, “ Signes, traces, pistes” , op. cil., p.19.
23 K.
Pomian , “ Le passé: de la foi à la connaissance” , Le Débat , n . 24 , 1983, p.151-168 ( ci-
2H
A noção vem de E. Grendi, “ Micro-analisi e storia sociale ” , Quademi Storici, n . 35, 1972,
tação p.167 ) . p.506-520.

238 239
N

Todos os debates travados, sobretudo na Itália, acerca do “ para- questionamento a todos os tipos de representações manipuláveis pelo
digma do ind ício” , seus mé ritos ou suas falê ncias,27 parecem-me, na historiador - é estabelecer, em princípio, que n ão há entre elas sen ão
verdade, remeter à dupla operação que funda todo discurso histó rico: relações conjecturais. Querer opor as certezas da ciê ncia filológica,
restituindo o “ verdadeiro” ou o “ real ” a partir de uma correta crítica
a ) constituir como representações os traços, de qualquer ordem documental, e as incertezas das reconstru ções hipoté ticas ou arbitrá-
- discursiva, iconográfica, estatística, etc. - que assinalam as prá ti- rias do trabalho sobre ind ícios é totalmente ilusório.
cas constitutivas de toda objedvação histó rica; De fato, a questão pertinente é a dos crité rios que permitem
b ) estabelecer hipoteticamente uma relaçã o entre as sé ries de considerar possível a rela ção institu ída pela escritura histó rica en-
representa ções, constru ídas e trabalhadas como tais, e as prá ticas que tre o traço representante e a prá tica representada ( parodiando o
sã o sua referê ncia externa. vocabulá rio de Port-Royal ) .29 Essa relação pode ser considerada acei-
tável , diz Carlo Ginzburg, se for plaus ível , coerente e explicativa.
Disso decorre todo um conjunto de conseq íi ê ncias. As primei- Ningu é m duvidará que cada um desses termos n ão esteja facilmen-
ras dizem respeito ao tratamento dos discursos que constituem , n ão te fundado ou definido - sobretudo no que tange à pró pria noção
o ú nico, mas o mais maciço dos materiais da histó ria. Nenhum dis- de “ explicação” . Todavia , eles indicam os lugares dos controles pos-
curso pode ser manipulado sem ser submetido ao duplo questiona- síveis de todo enunciado histó rico. Escrever a história com tais cate-
mento, crítico e genealógico, proposto por Foucault , visando a de- gorias parecerá talvez decepcionante e um retrocesso em relação à
terminar suas condições de possibilidade e de produção, seus prin- inten ção de verdade que constituiu a pró pria disciplina. No entan-
c í pios de regularidade, suas restrições e apropriações. 28 A tarefa é to, n ão h á outra via, salvo a postular - o que poucos pretendem fa-
inscrever no centro da cr ítica documental , que constitui a mais du- zer, acredito - quer o absoluto relativismo de uma histó ria que n ão
radoura e a menos contestada das caracter ísticas da histó ria, o ques- é sen ão ficção , quer as ilusó rias certezas de uma histó ria definida
tionamento e as exigê ncias do projeto de an álise dos discursos tal como ciê ncia positiva.
como foi formulado em articulação “ com o trabalho efetivo dos his-
toriadores” e cujo objeto é, finalmente , as restrições e os modos que
regulam as prá ticas discursivas da representa çã o. HISTÓ RIA E FILOSOFIA: ABALAR CERTEZAS
Por um lado, pensar o trabalho histó rico como um trabalho so-
bre a relação entre representações e prá ticas - ampliando o mesmo Para um historiador, pensar a relação entre as duas disciplinas
é , em primeiro lugar, levantar uma questão bem prá tica e ú til: em
que e como a reflexão filosófica permite elaborar melhor os proble-
27
Cf. os debates travados em torno de dois livros que reivindicam a microstoria e o paradig-
ma do in ício . Sobre o de Carlo Ginzburg, Indagini su Piem. II Baltesimo, il ciclo di Arezzo, la mas sobre os quais tropeça hoje em dia todo trabalho histó rico con-
Flagellazione di Urbino, Turim , Einaudi , 1981 ( tradução francesa Enquête sur Piero della Fran- creto e empírico?
cesca. Le Baptême, le cycle d'Arezzo, la flagellation d ’Urbino, Paris, Flammarion , 1983) , ver o dossiê
“ Storia etstoria deH ’Arte ” per un statute della prova indiziaria” , Quademi Slorici, n . 50, 1982,
p.692-727, com uma cr í tica de A . Pinelli e uma resposta de Carlo Ginzburg; sobre o de 29
A tí tulo de exemplo, ver a discussão do livro de Robert Darnton , The Great Cat Massa -
Pietro Redondi , Galileo eretico, Turim , Einaudi , 1983 ( tradução francesa , Galilée hérétique, cre and Other Episodes in French Cultural History , New York , Basic Books, 1984 ( tradução
Paris, Gallimard , 1985 ) , cf . o artigo de V. Ferrone e M . Firpo , “ Galileo tra Inquisitori e francesa Le Grand Massacre des chats . Attitudes et croyances dans l 'ancienne France, Paris , Ro-
bert Laffont , 1985 ) in Roger Chartier, “ Text, Symbols and Frenchness , Journal of Mo

microstorici” , Rivista Storica Italiana , 1985, 1 , p. 177-238 , e a resposta de P. Redondi , “ Gali- -

dem History , n. 57 , IV, 1985, p.682-695 , e Philip Benedict e Giovanni Levi , Robert Darn-

leo: eretico anatema ” , Rivista Storica Italiana , n . 3, 1985, p. 62-72 .
Michel Foucault , L'Ordre du discours, op. cit . , particularmente p . 62-72. ton e il massacro dei gatti ” , Quademi Storici , n . 58 , 1985 , p. 257-277 .

240 241

a.- -. a -
T v*’ . vf •
Sem d ú vida , a interrogação sobre a histó ria sofreu por ter sido
por muito tempo apenas um discurso de historiador geralmente 11 . Bibliografia e história cultural
normativo, enunciando o que a histó ria devia ser ou n ã o ser mais,
ou explicativo, indicando como ela procedia diante do documento
( ou pelo menos como ela acreditava proceder ) . Disso decorre a eli-
minaçã o de questões, todavia , essenciais para constituir a pró pria
disciplina: as do recorte de seus objetos, de suas formas narrativas,
de seus crité rios de validação. Conceptualizar tais problemas supõe
um necessá rio e proveitoso companheirismo com a filosofia , pelo
pró prio fato de que esta obriga a inscrever os debates metodológi-
cos referentes à legalidade ou à pertin ê ncia das técnicas históricas
em um questionamento epistemol ógico sobre a rela çã o existente
entre o discurso produzido por tais operações e o referente do qual
ele pretende estabelecer o conhecimento.
A tarefa supõe, indubitavelmente, o abandono de certas postu- O pequeno livro de D. F. McKenzie, centro de nossas reflexões,
ras naturais a cada tradição disciplinar: de um lado, o desprezo pelo
La Bibliographie et la sociologie des textes, x já tem uma história. Seus três
empírico, identificado ao histórico e, do outro, a ostentaçã o de um cap ítulos foram de in ício tr ês conferê ncias que inauguraram em
real bem “ real ” , considerado ao alcance de documento, suposto legí-
1985 a sé rie das Panizzi Lectures na British Library. Publicado no ano
vel em arquivo aberto. Abalar essas certezas, por vezes altamente rei-
seguinte pela biblioteca londrina, o livro imediatamente chamou a
vindicadas mas quase sempre aceitas espontaneamente como eviden-
aten ção ( e, às vezes suscitou as cr íticas ) dos bibliógrafos, dos histo-
tes, requer, primeiramente, que seja constitu ída a história compara-
riadores do livro , dos conservadores e dos bibliotecá rios.2
da de sua instituição - portanto a do estabelecimento das identida-
Duas id éias subentendem esta obra. A primeira , que abala as
des disciplinares -, em seguida , que sejam constru ídas historicamen-
tradições estabelecidas da bibliografia em suas formas cl ássicas, es-
te as questões da filosofia - a começar pela de sua própria história - e
tende o conceito de texto bem al é m de suas acepções habituais. Para
elaboradas filosoficamente as dificuldades da prá tica histórica.
McKenzie , é preciso desfazer o vínculo estabelecido pela tradição
letrada ocidental entre o texto e o livro. Com efeito, nem todo tex-

1
D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts, Londres, The British Library, 1986
( tradu ção francesa La Bibliographie et la sociologie des textes, Paris, Editions du Cercle de la
Librairie, 1991 ) .
'
Os guardiões da tradição bibliográfica expressaram sua hostilidade ( maior ou menor )
às propostas de D. F. McKenzie nos resumos de Hugh Amory em The Book Collector, 36,
1987, p.411-418, de T. N. Howard-Hill em The Library, 6th ser. 10, 1988, p.151-158 e de
G. 1 homas Tanselle, “ Textual Criticism and Literary Sociology” , Studies in Bibliography,
42 , 1991 , p.83-143 ( particularmente, p.87-99 ) . Na crítica literá ria , a acolhida foi, em
contrapartida, muito favorável: cf. a recensão de Jerome J. McGann em The London Re-
view of Books, 18 de fevereiro de 1988, p. 20-21.

242 243

1
to é necessariamente dado na forma do livro: as produ ções orais, os DA BIBLIOGRAFIA À SOCIOLOGIA DOS TEXTOS
dados informatizados ou digitais sã o igualmente non book texts que
mobilizam os recursos da linguagem sem pertencer, no entanto, à Essas duas id éias, ligadas uma à outra , lan çam tem íveis desafi-
classe dos objetos impressos. Mas, mais ainda, há textos que n ão su- os aos h á bitos adquiridos em vá rios campos de saber e de prá tica.
põem absolutamente a udlização da linguagem verbal: a imagem em E, primeiramente, dentro da própria disciplina que D. F. McKen-
todas as suas formas, o mapa geográfico, as partituras musicais, o zie reivindica como sua: a bibliografia. Compreender esse primei-
pró prio território devem ser considerados como non verbal texts. O ro objetivo n ã o é forçosamente fácil para o leitor francês, pouco
que autoriza a designar como “ textos” essas diversas produ ções é o familiarizado com os trabalhos e os debates que marcaram uma
fato de que são constru ídas a partir de signos, cuja significação é fi- tradição de estudos muito mais influente no mundo anglo-saxã o
xada por conven ção, e de que elas constituem sistemas simbólicos ( na Inglaterra , nos Estados Unidos, na Austrália ou na Nova Zelâ n-
propostos à interpreta ção. A linguagem verbal, escrita ou oral, n ão dia ) do que na Fran ça. Os postulados que definem a bibliography e
é a ú nica a obedecer a um funcionamento sem â ntico. Por isso, a que ligam entre elas suas diferentes modalidades ( sistemá tica , des-
extensão da categoria de texto. critiva , anal í tica , textual ) podem ser assim enunciados: Io o esta-
Essa ampliaçã o conduz , em retorno, a uma maneira nova de belecimento de um texto ( e, eventualmente , sua edi çã o ) supõe a
considerar os textos escritos. A segunda , e forte , id éia do livro con- reconstru çã o rigorosa da histó ria de sua composição e de sua im-
siste em sublinhar os efeitos de sentido das formas. Um texto ( aqui pressão na oficina tipográfica; 2° a compreensão desse processo de
na definição clássica ) está sempre inscrito em uma materialidade: produ ção do livro implica a descri çã o e a an álise das característi-
a do objeto escrito que o porta , a da voz que o l ê ou o recita , a da cas f ísicas dos exemplares conservados da ediçã o ( ou das edições )
representação que o d á a ouvir. Cada uma dessas formas é organi- do texto considerado.
zada de acordo com estruturas pró prias que desempenham um Nessa perspectiva, que é a dos grandes clássicos da bibliografia,3
papel essencial no processo de produ ção do sentido. Para ficar no a an álise material do livro é posta a serviço do estudo do texto, do
escrito impresso , o formato do livro, as disposições da paginaçã o, confronto entre suas versões e variantes e, finalmente, do estabeleci-
os modos de recorte do texto , as conven ções tipográficas sã o in- mento de uma edição que seja a mais exata possível. Para a analytical
vestidos de uma “ fun ção expressiva ” e sustentam a constru çã o da bibliography ( ou bibliografia material ) assim ampliada, os dados mais
significa ção. Organizados por uma inten çã o, a do autor ou do edi- fundamentais são aqueles que permitem reconstituir o modo de com-
tor, esses dispositivos formais visam a forçar a recepção, a contro- posição do texto, determinando, por exemplo, os há bitos gráficos e
lar a interpretação, a qualificar o texto. Estruturando o inconscien- ortográficos dos diferentes compositores que trabalharam em uma
te da leitura ( ou da escuta ) , eles são os suportes do trabalho da mesma obra , ou então identificando certas particularidades ( letras
interpreta çã o. Tanto a imposição como a apropria çã o do sentido
de um texto dependem , pois, de formas materiais cujas modalida- f
Por exemplo: R. B. McKerrow, An Introduction to Bibliography for Literary Students ,
des e ordenações, consideradas por muito tempo como insignifi- Oxford , Clarendon Press, 1927; Fredson Bowers, Bibliography and Textual Criticism,
cantes, delimitam as compreensões desejadas ou possíveis. Forms Oxford , Clarendon Press, 1964, e Essays in Bibliography, Text and Editing, Charlottesville ,
University Press of Virginia , 1975; Philip Gaskell , A New Introduction to Bibliography ,
effect meaning, contra todas as definições unicamente sem â nticas dos Oxford , Clarendon Press, 1972. Em francês, ver Roger Laufer, Introduction à la textolo-
textos, McKenzie lembra com vigor o valor simbólico dos signos e gie. Vérification, établissement , édition des textes, Paris, Larousse, 1972, e La Bibliographie
das materialidades. matérielle, mesa-redonda organizada para o C. N .R.S por Jacques Petit, Editions du
C. N. R.S, 1983.

244 245
deterioradas, iniciais, adornos) de seu material próprio.4 O ritmo de Em Panizzi Lectures, McKenzie propõe um passo a mais, que
reaparecimento desses elementos claramente reconhecíveis no livro chocou um pouco os defensores da tradição bibliográfica. Definida
impresso pode ensinar muito sobre a organ i / a ção de sua fabricaçã o, como o “ estudo da sociologia dos textos” , a disciplina é convidada a
sobre a ordem da composição e da impressão, sobre as decisões tex- ampliar duplamente seu campo de estudo: de um lado, estabelecen-
tuais atribu íveis aos compositores , sobre a maneira como o texto foi do protocolos de descri ção e formas de controle bibliográficos ca-
composto ( seriatim, isto é, seguindo a ordem das páginas, ou então por pazes de levar em conta todos os textos que não são livros; de outro,
formas) , ou sobre as correções introduzidas no decorrer da tiragem. considerando que seu objeto é constitu ído pelo conjunto dos pro-
Prá tico virtuose dessas spelling analysis e desses compositor studi- cessos de produ ção, de transmissão e de recepção dos textos - em
es,5 D. F. McKenzie n ão limitou entretanto as lições da bibliografia todas suas formas. Longe de ser um saber limitado e auxiliar, desti-
apenas ao dom ínio da crítica textual . Para ele , a disciplina constitui nado ao inventá rio e à interpretaçã o de dados formais postos a ser-
um recurso fundamental para compreender as prá ticas de oficina e vi çb da edição de textos, a bibliografia assim redefinida torna-se uma
a organização do trabalho tipográfico durante os quatro séculos que
disciplina central , essencial para reconstituir como uma comunida-
separam a inven çã o de Gutenberg da industrialização da imprensa. de dá forma e sentido a suas experiê ncias mais fundamentais a par-
Confrontadas com os dados fornecidos pelos arquivos das empre- tir da decifra çã o dos textos m ú ltiplos que ela recebe , produz e dos
sas ( quando existem ) e pelos antigos manuais de imprensa , as ca- quais se apropria. Atribuindo assim à bibliografia a tarefa fundamen-
racter ísticas materiais dos exemplares conservados são o arquivo mais tal de compreender as relações entre a forma e o sentido, McKen-
maciço - e talvez o mais rico - de uma histó ria das condições e dos zie apaga as antigas divisões entre ciê ncias da descrição e ciê ncias
há bitos que governam a produ ção dos textos impressos.6 da interpretação e confere à disciplina , apoiada em sua técnicas pró-
prias, uma posição central no estudo das prá ticas simbólicas.
4
A obra maior que ilustra essa perspectiva é a de Charlton Hinman , The Printing and
Proof-Reading of the First Folio of Shakespeare, Oxford , Clarendon Press , 1963. Para urn es- Essa nova acepção dada à bibliografia , ampla e ambiciosa , leva
clarecimento sobre a erudi çã o bibliográfica concernente às edi ções de Shakespeare , a definir de outro modo as missões das instituições destinadas à con-
ver Fredson Bowers , “ A Search for Authority: The Investigation of Shakespeare ’s Prin- servaçã o dos textos: as bibliotecas. Em um momento em que, em
ted Texts ” , Print and Culture in the Renaissance. Essays on the Advent of Printing in Europe,
Gerald P. Tyson e Sylvia Wagonheim ( ed . ) , Newark , University of Delaware Press , e Lon- todo o mundo, reflete-se sobre as fun ções e as estruturas das gran-
dres e Toronto, Associated University Press , 1986 , p . 17-44 . des bibliotecas, nacionais ou n ão, grande é a pertin ê ncia das confe-
5
Cf. a título de exemplo , seus artigos “ Compositor B’s Role in ‘ The Marchent of Venice' Q2 rê ncias de McKenzie.
( 1619 ) ” , Studies in Bibliography, 12, 1959 , p. 75-89; “ Eight Quarto Proof Sheets of 1594 Set
by Formes: A Fruitfull Commentarie” , The Library, 5 th ser. , 28 , 1973, p . 1 - 13, e “ Stretching a De um lado, elas ressaltam com vigor a responsabilidade das bi-
Point: Or, the Case of the Spaced-out Comps” , Studies in Bibliography, 37 , 1984, p. 106-121 . bliotecas na coleta, classificação, conservação e comunicação não so-
b
Cf . os estudos mais significativos de D . F. McKenzie que demarcam seu percurso inte-
lectual: The Cambridge University Press, 1696- 1712. A Bibliographical Study , Cambridge, Cam-
mente dos objetos impressos ( livros, periódicos, jornais, mapas, estam-
bridge University Press, 1966; “ Printers of the Mind: Some Notes on Bibliographical pas, etc. ) , mas també m dos documentos novos, multiplicados no
Theories and Printing-Houses Practices” , Studies in Bibliography, 22 , 1969, p . 1-75; e The mundo de hoje: gravações sonoras, fotografias, filmes, programas de
London Book Trade in the Later Seventeenth Century , Sandars Lectures, Cambridge , 1976,
datilografado ( David Gerard oferece um resumo em The Library, 5th ser. , 33, 1978, p. 242-
televisão, fitas de vídeo, dados informatizados, etc. Mesmo que a pre-
246 ) . Para outras formulações do vínculo entre bibliografia material e história da pro- servação dessas diferentes categorias de “ textos” não implique neces-
dução do livro , ver G. Thomas Tanselle , “ Analytical Bibliography and Renaissance Prin- sariamente seu arquivamento em uma instituição ú nica , ela é uma
ting History” , Printing History, vol . Ill , n . 1 , 1981 , p. 24-33, ejeanne Veyrin-Forrer, La Let-
tre et le texte. Trente années de recherches sur l’histoire du livre, Paris , Collection de l ’ Ecole tarefa essencial das bibliotecas contemporâ neas, ú nicas capazes de
Normale supé rieure de jeunes filles , n. 34, 1987 ( particularmente a “ Troisième Partie: impedir a destruição desses objetos freq úentemente frágeis, subme-
De la fabrication des livres à la bibliographie matérielle ” , p . 271 -366. ) .

246 247
tidos à lógica comercial, negligenciados pela cultura legídma. Conse- do resulta apenas do funcionamento da linguagem. Essa posição, que
q ü entemente, devem-se modificar todas as noções classicamente de- foi a da cr ítica estruturalista e do New Criticism, repousa sobre vá rios
finidas em relação à produção escrita e impressa , sejam elas jur ídicas postulados: a afirmação do absoluto do texto, separado de toda for-
( o copyright ) , regulamentares ( o depósito legal ) ou bibliotecon ômi- ma f ísica particular e reduzido à sua estrutura verbal apenas; o apa-
cas ( a catalogação ) . Da ampliação desse conceito de texto decorre, gamento do autor, cuja inten ção n ã o é investida de nenhuma perti-
então, logicamente a transformação da pró pria fun ção da biblioteca. n ê ncia particular; a recusa de considerar que a maneira como uma
Corolariamente, a constatação segundo a qual as formas afetam obra foi transmitida, recebida , interpretada tem uma importâ ncia
o sentido deve levar a considerar normal e necessá ria a consulta dos qualquer no estabelecimento de sua significação.
textos em sua materialidade original. Contra a tend ê ncia que alme- Em um estudo que se tornou clássico, D. F. McKenzie opôs a essa
java substituir a comunicação dos documentos originais por aquela perspectiva , na qual o texto n ão tem materialidade, autor e leitor ( à
dos substitutos fotográficos e digitais, é preciso lembrar que dar a exceção do crítico literá rio que enuncia seu sentido ) , um procedimen-
1er um texto em uma forma que n ão é sua forma primeira é mutilar to bem diferente.7 A aná lise das inovações introduzidas na edição de
gravemente a compreensão que o leitor pode dele ter. A biblioteca 1710 das peças de teatro de Congreve, pelo próprio autor e por seu
que aparece em filigrana no texto de McKenzie é portanto uma bi- editor Tonson , mostra como transformações formais aparentemente
blioteca onde n ão h á somente livros, longe disso, e onde todos os desprovidas de significaçã o textual ( por exemplo, a passagem do in-
textos produzidos pelas técnicas modernas encontram um grande quarto ao in-oitavo, a numeração das cenas, a presen ça de um ador-
espaço. Mas é també m uma biblioteca onde cada um desses textos no entre cada cena, a lembran ça dos nomes dos personagens presen-
deve poder ser consultado sem sofrer as deforma ções que acarreta tes no in ício de cada uma delas, a indicação à margem daquele que
inelutavelmente toda mudan ça de suporte. A lição sem d úvida é fala, a men ção das entradas e das saídas) tiveram um efeito maior so-
preciosa em uma é poca em que as possibilidades abertas pelas no- bre o estatuto da obra. De um lado, permitiram uma nova maneira
vas tecnologias eletrónicas sustentam a forte tend ê ncia de transfe- de 1er o texto, que se tornou mais manipulável pelo pequeno forma-
rir os textos do livro à tela. A operaçã o tem incontestavelmente sua to, inscrevendo em sua paginação algo do movimento dramat ú rgico
legitimidade e sua utilidade, já que permite ( ou permitirá ) prote- - o que significava romper com as antigas conven ções, respeitadas por
ger melhor o patrim ó nio escrito e multiplicar sua comunica çã o. mais tempo na Inglaterra do que na Fran ça, que imprimiam as peças
Entretanto, ela n ão deve separar radicalmente os leitores da forma sem restituir nada de sua teatralidade. De outro, os dispositivos tipo-
que governou a produ ção, a transmissã o e a interpretação dos tex- gráficos utilizados na edição de 1710, distintos das edições francesas,
tos que eles, por sua vez, l ê em . deram um novo estatuto às peças de Congreve, atribuindo-lhes uma
legitimidade que levou o autor a afinar aqui e ali seu estilo, a fim de
torn á-las mais conformes à dignidade de sua nova forma. As li ções
A CONSTRU ÇÃO DO SENTIDO propostas por esse estudo sobre Congreve são m últiplas: contra a abs-
Em um esforço para refundar a bibliografia , D. F. McKenzie
mapeia , na verdade, um espa ço intelectual novo que articula o es- 7
D. F. McKenzie, “ When Congreve Made a Scene” , Transactions of the Cambridge Biblio-
tudo dos textos, a an álise de suas formas e a histó ria de seus usos. - -
graphical Society, vol. VII , 2;' parte , 1979, p.338 342 e , sobretudo, “ Typography and Mea
ning; the Case of William Congreve ” , in Buck und Buchhandel in Europa im achtzehten
Tal proposta é , primeiramente , uma maneira de tomar distâ ncia de
Jahrhundert , Giles Barber e Bernhard Fabian (ed.) , Hamburgo, Dr. Ernst Hauswedell und
todas as formas de cr ítica literá ria , para a qual a produ çã o do senti- Co, 1981, p.81-126.

248 249
tração do texto, ele demonstra que o estatuto e a interpretação de uma Sem contradizer esses procedimentos, a proposta de McKenzie
obra dependem de suas materialidades; contra a “ morte do autor” , é outra, visando a reconstruir em sua historicidade fundamental o
ele salienta o papel que este pode desempenhar, ao lado do editor, processo de constru ção do sentido. Por essa razão, ela define a histó-
na definição das formas dadas às suas obras; contra a ausê ncia do lei- ria da leitura como central para a cr ítica textual ou para a histó ria do
tor, ele lembra que a significação de um texto é sempre uma produ- livro. Um texto só alcan ça verdadeiramente a existê ncia se um leitor
ção historicamente situada, dependente das leituras, diferenciadas e se apropriar dele: assim formulada em sua maior generalidade, a cons-
plurais, que lhe atribuem um sentido.8 tatação subentende todos os métodos ( hermen ê utico, fenomenoló-
Se , como observa McKenzie, bibliografia material e cr ítica es- gico, esté tico, sociológico ) que tentaram caracterizar os efeitos e as
truturalista compartilharam uma mesma perspectiva - ou seja , a aten- modalidades da atividade leitora. McKenzie compardlha dela , mas lhe
ção exclusiva dada à lógica e ao funcionamento interno do sistema atribui uma dimensão fundamentalmente histórica. New readers make
de signos que organiza seja a materialidade de um objeto, seja a sig- neto texts, and their neiu meanings are a function of their neiu forms [ Novos
nificação de um texto -, a “ sociologia dos textos” que ele propõe leitores criam textos novos cujas novas significações dependem dire-
concilia-se com as correntes cr íticas que hoje em dia , de ambos os tamente de suas novas formas]: a observação designa com acuidade
lados do Atl â ntico, pretendem reinscrever as obras na histó ria . O o duplo conjunto das variações - de um lado, variações das compe-
procedimento pode levar a uma sociologia da produ çã o cultural , tê ncias, das expectativas, dos h á bitos dos leitores; de outro, variações
atenta às leis e às hierarquias pró prias do campo literá rio ( ou de das formas nas quais os textos são dados a 1er - que deve levar em conta
qualquer outro campo: art ístico, acad êmico, etc. ) , às estratégias de toda história preocupada em reconstruir a maneira como os leitores
carreira que elas comandam e à sua tradu ção nas pró prias obras ( em produzem sentido apreendendo um texto.
termos de gê nero, de tema , de estilo ) .9 Pode també m levar, como Assim esboçado em um livro cujo objeto principal n ão é este,
no caso do Nexo Historicism, a situar a obra literá ria em sua relação esse programa de trabalho já demonstrou sua pertin ê ncia. Permi-
com os textos “ comuns” ( prá ticos, jurídicos, pol íticos, religiosos, etc. ) tiu compreender melhor como a passagem de um texto de uma for-
que constituem o material sobre o qual ela se edifica e que estabele- ma editorial à outra pode transformar, separadamente ou ao mes-
cem a possibilidade de sua inteligibilidade.10 mo tempo, a base social e cultural do p ú blico, os usos do texto e suas
interpreta ções possíveis. Aos exemplos mencionados por McKenzie
8
Para um estudo feito no mesmo espí rito que o de D. F. McKenzie sobre Congreve , ver ( a edi çã o de 1710 das peças de Congreve, o recorte da B íblia em
Francisco Rico , “ La prínceps dei Lazarillo. Título, capitulació n y epígrafes de un texto vers ículos, as edi ções de Ulisses ) , pode-se acrescentar como particu-
apócrifo” , Problemas del Lazarillo , Madri , Cá tedra , 1988, p . 113-151 . larmente exemplar o caso do repertório de venda a domicílio ( cha-
9 Cf . , a t í tulo de exemplo , Alain Viala , Naissance de l ’écrivain . Sociologie de la litt é rature à

l 'é poque classique, Paris , Editions de Minuit, 1985. A base teórica dessa abordagem é dada pbooks ingleses, pliegos castelhanos, plecs catalães, Biblioteca bleue fran-
pelo trabalho de Pierre Bourdieu , particularmente seus dois artigos fundadores, “ Champ cesa ) que , em todo lugar, d á formas novas a textosjá publicados para
intellectuel et projet créateur” , l^s Temps Modernes, n . 246, novembro 1966, p . 865-906,
e “ Structuralism and Theory of Sociological Knowledge” , Social Research, XXV, 4, inver-
leitores letrados a fim de que possam angariar um outro pú blico ,
no 1968 , p . 681 -706 e , mais recentemente , “ Le champ litté raire” , Actes de la recherche en mais amplo e mais humilde.
sciences sociales, n . 89 , setembro 1991 , p. 3-46, e Les Règles de l'art . Genèse et structures du champ A an á lise das diferencia ções socioculturais e o estudo morfol ó-
litt éraire, Paris , Editions du Seuil , 1992 .
10
Cf. , a tí tulo de exemplo , Stephen Greenblau . Shakespearean Negotiations. The Circulation of gico dos dispositivos materiais, longe de se exclu írem um ao outro,
Energy in Renaissance England , Berkeley e Londres , University of California Press, 1988. Para parecem , portanto, necessariamente ligados. Por um lado , é em fun-
uma perspectiva global , cf . The New Historicism, H . Aram Veeser ( ed . ) , New York e Lon- çã o das competê ncias e das expectativas supostas do p ú blico visado
dres, Routledge , 1989.

250 251
que são organizadas as formas dadas aos textos. Mas, por outro lado, ra totalmente oral. Nos vinte anos que precedem o tratado de Wai-
os dispositivos através dos quais um texto é proposto ( para leitura tangi , a populaçã o maori é confrontada com uma tripla revolu ção:
ou para escuta ) tê m uma din â mica pró pria: conforme o que são, a fixa ção da l íngua ind ígena em uma l íngua escrita alfabé tica , uma
podem ou n ão criar um p ú blico novo e autorizar apropriações in é- campanha de alfabetização em l íngua vernacular ( e n ão em inglês )
ditas. 11 A “ sociologia dos textos” de McKenzie n ão é uma sociologia conduzida pelos mission á rios das diferentes confissões, e a introdu-
fixa onde divisões sociais cristalizadas e prévias comandam impera- ção da imprensa ( com , em 1830, a primeira impressã o publicada na
tivamente as distribuições culturais; bem ao contrá rio, ela visa a de- Nova Zel â ndia - hinos em l íngua ind ígena - e , em 1837, a edição
terminar como, gra ças à mobilidade de suas formas, os textos sã o de um Novo Testamento maori , com uma tiragem de 5000 exempla-
suscet íveis de reempregos e de reinterpretações pelos diversos p ú- res feita pelo tipógrafo William Colenso ) .
blicos que eles atingem , ou inventam. Mas, contrariamente ao que os mission á rios pensavam ( ou que-
riam pensar ) , a entrada da populaçã o maori na cultura da escrita
n ão significa, contudo , sua compreensão ou aceitação dos concei-
ESCRITURA E DOMINAÇAO tos, dos usos ou das significações associadas ao texto escrito na civi-
lização ocidental . Para os ind ígenas, nem o livro, nem a leitura , nem
Entretanto, nem todos os usos e interpretações são equivalen-
a escrita são investidos dos mesmos valores que para os colonizado-
tes. O controle da significação e a imposi ção do sentido são sempre
res britâ nicos: o livro, em particular a Bíblia , é um objeto ritual , que
uma questão fundamental das lutas pol íticas ou sociais e um instru- dá poder e proteção; a leitura ( ou a escuta de uma leitura feita em
mento maior da dominação simbólica. Em um ensaio que lhe é par-
voz alta ) n ão é sen ão a condição da memorização e da recitação dos
ticularmente caro, pois demonstra que o trabalho científico també m
textos sabidos de cor; o texto escrito tem apenas um valor secundá-
pode ser engajamento cívico , D. F. McKenzie o comprova a partir rio em relação às conven ções orais. Essa distâ ncia cultural , da qual
de um episódio essencial da história de seu pa ís , a Nova Zelâ ndia: o
se encontrariam muitos equivalentes nas sociedades rurais da Euro-
tratado de Waitangi assinado, em fevereiro de 1840, por quarenta e
pa moderna, até mesmo contemporâ nea,13 tem uma significa ção
seis chefes maoris que concedem assim à Rainha da Inglaterra a so-
política maior com o tratado de Waitangi: para os ingleses, a assina-
berania sobre seus próprios territó rios.12 Reconstruir a histó ria des-
tura pelos chefes maoris de um texto onde eles declaram ceder to
se texto decisivo é reconstruir a histó ria da imposi ção dos usos oci-
Her Majesty the Queen of England , absolutely and without reservation, all
dentais da escritura , da alfabetizaçã o e da imprensa em uma cultu-
the rights and powers of sovereignty constitui um reconhecimento sem
ambigüidade da domina ção pol í tica do colonizador. Para os mao-
11
Para uma ilustração dessa perspectiva , a partir de uma tradição intelectual bem dife- ris, n ão se trata da mesma coisa , porque o termo ind ígena que tra-
rente , cf . o artigo de Lawrence W. Levine , “ William Shakespeare and the American duz sovereignty na versão vernacular do tratado ( ou seja , kawanatan-
People . A Study in Cultural Transformation ” , American HistoricalReviezu, vol . 89 , feverei- ga) designa somente a aceitação da administração britâ nica , e n ã o
ro 1984, p . 34 , e seu livro Highbrow / Lowbrow. The Emergence of Cultural Hierarchy in Ameri-
ca , Cambridge , Mass . , e Londres, Harvard University Press , 1988 .
12 D . F. McKenzie , Oral Culture, Literacy and Flint in Early Neiv Zealand : the Treaty of Waitan- 13 Para dois exemplos em dois contextos diferentes ( A Alemanha luterana dos séculos
gi . Wellington , Victoria University Press corn Alexander Turnbull Library Endowment XVII e XVIII , os Pireneus dos séculos XIX e XX ) , ver os estudos de Etienne Fran çois,
Trust, 1985 . ( Uma primeira versão desse ensaio foi publicada sob o t í tulo “ The Sociolo- “ Les protestants allemands et la Bible . Diffusion et pratiques” , Le Siècle des Lumières et la
gy of a Text: Orality, Literacy and Print in Early New Zealand ” , The Library, 6th ser. , 6 , Bible, sob a direção de Yvon Bé laval e Dominique Bourel , Paris, Beauchesne , 1986 , p.46-
p. 333-365 , retomada em The Social History of Language, Peter Burke e Roy Porter ( ed . ) , 58 , e de Daniel Fabre , “ Le livre et sa magie” , Pratiques de la lecture, sob a direção de Ro-
Cambridge , Cambridge University Press , 1987 , p. 161 -197 . ger Chartier, Marseille , Rivages, 1985 , p . 181 -206.

252 253

.
r 'J ; : » .
dfv î r *
o abandono do poder sobre a terra , e porque o fato de assinar n ão
tem nenhum valor particular, já que o essencial reside nas palavras 12. História e literatura
proferidas e nos compromissos feitos oralmente.
Esse soberbo estudo de D. F. McKenzie é emblem á tico de toda
reflexão sobre os usos sociais da escrita. Esta jamais é neutra. Con-
trolar sua produção, emprego, significação, é um poderoso instru-
mento de poder. De onde , nas sociedades de Antigo Regime , a ex-
pressão e a marca da soberania pelo controle do “ espaço gráfico ,
em particular gra ças aos programas epigráficos que multiplicam as
letras monumentais;14 as vivas concorrê ncias entre todos aqueles
( mestres-escolas, notá rios, secretá rios ) que pretendem ao monopó-
lio da per ícia sobre a escrita ; ’ ou ainda o controle sobre os ucorpos
1

exercido pelas próprias técnicas da aprendizagem da escrita. A his-


>

tó ria das formas e das apropria ções da escrita n ão é , portanto uma


história sem conflitos: estas implicam sempre relações de poder, a Para um historiador que abordou a an álise dos textos literá rios a
começar por aquele que articula , de acordo com os termos de Ar- partir da história sociocultural à maneira dos Annales, o objeto essen-
mando Pé trucci , “ o poder da escrita ( que pertence àquele que pos- cial da história literá ria e da crítica textual (seja qual for a identidade
sui a capacidade de escrever e o exerce ) e o poder sobre a escrita disciplinar dos que as praticam ) é o processo pelo qual leitores, espec-
( detido pela autoridade institu ída que o delega e que exerce um tadores ou ouvintes dão sentido aos textos dos quais se apropriam.
controle qualquer ) ” .17 A interrogação n ão é nova no campo da histó ria das literatu-
Com ousadia e originalidade, McKenzie formula a questão cen- ras. Ela até mesmo sustentou , reagindo contra o estrito formalismo
tral que atravessa hoje tanto a cr ítica textual como as ciê ncias sociais: da Nouvelle Critique ou do New Criticism, todas as abordagens que
aquela da produção do sentido, constru ído nas relações travadas quiseram “ sair” a leitura do texto e pensar a produção da significa-
entre formas e interpretações. ção seja como uma relação dial ógica entre as propostas das obras e
as categorias esté ticas e interpretativas de seus p ú blicos, seja como
uma interação din â mica entre o texto e seu leitor, seja como o re-
H Armando Pretrucci, La Scritlura. Ideologia e rappresentazione, Turim , Piccola Biblioteca sultado de uma “ negociaçã o” entre as pr ó prias obras e os discursos
Einaudi, 1986 ( tradução f rancesa Jeux de lettres. Fonnes et usages de l’inscription en Italie 1 l' -2 ï
(
ou as prá ticas ordin á rias que sã o, ao mesmo tempo, as matrizes da
cle, Paris, Editions de l ’ Ecole des hautes é tudes en sciences sociales, 1993) . criação esté tica e as condições de sua inteligibilidade.
,sir’ èChristine M é tayer, “ De l’école au Palais de Justice: l’ itin é raire singulier des ma î tres
écrivains de Paris ( XVT-XV1IP si ècles” , Annales E.S.C., 1990, n . 5, p.1217-1237 Laura
; Semelhantes perspectivas perturbaram muito, felizmente , o
Antonucci , “ La Scrittura giudicata. Perizie graflche in processi romani del primo Sei - sono dogm á tico do estruturalismo triunfante, que reduzia o senti-
cento” , Scritlura e Civüità, 13, p.489-534. do dos textos ao funcionamento automá tico e impessoal da lingua-
“ ’ Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison , Pans, Gallimard - -
, 1975, p 151
158; Jonathan Goldberg, Writing Matter: From the Hands oj the English Renaissance, Stan - gem , substituindo assim os atores historicamente implicados na cons-
ford , Stanford University Press, 1990. trução do sentido pela interpretação soberana do cr ítico literá rio,
17
Armando Pétrucci, “ Pouvoir de l ’ écriture , pouvoir sur l ’ écriture dans la Renaissance descobridor onipotente da significaçã o. Todavia , elas n ão podem
italienne ” , AnnalesE.S.C., 1988, p.823-847 ( citaçã o p.823-824 ) .

255
254
satisfazer totalmente aos crité rios de uma abordagem plenamente nadas em Versalhes durante festas da corte, onde sã o encaixadas
histó rica da literatura , e isso por duas razões. entre outros divertimentos e outros prazeres, depois são represen-
tadas no teatro do Palais-Royal, despojadas de seus ornamentos ( can-
tos , m ú sica , bal és, etc. ) e , finalmente , são transmitidas pelo impres-
MATERIALIDADE DO TEXTO, CORPORALIDADE DO LEITOR so ( em edições muito diferentes ) ao seu p ú blico leitor. Um “ mesmo ”
texto, portanto, mas três modalidades de sua representa ção , três
Seu primeiro limite deve-se ao fato de que elas consideram os relações com a obra, três p ú blicos. O estudo de suas significa ções
textos ( na maioria das vezes ) como se existissem em si mesmos, in- n ão pode deixar de levar em conta essas diferen ças.
dependentemente das materialidades ( sejam quais forem ) que são Um segundo limite das abordagens literá rias que consideram
seus suportes e ve ículos. Contra essa “ abstração ” dos textos, deve-se a leitura como uma “ recepção” ou uma ‘resposta ” lhes vem da “ abs-
lembrar que as formas que os d ão a 1er, a ouvir ou a ver participam , tração” e da universalização da leitura que elas operam implicitamen-
elas també m , da constru ção de sua significação. O “ mesmo ” texto, te. Tida como um ato de pura intelec çã o , cujas circunstâ ncias e
fixo em sua letra , n ão é o “ mesmo ” se mudam os dispositivos de sua modalidades concretas n ã o importam , a leitura que elas supõem
inscrição ou de sua comunicação. De onde, a importância reconquis- resulta , na verdade , da projeção ao universal de prá ticas do 1er his-
tada no campo dos estudos literá rios pelas disciplinas cujo objeto é toricamente particulares: as dos leitores letrados e , freq ú entemen-
justamente a descrição rigorosa das formas materiais que sustentam te, profissionais de nosso tempo. Contra esse “ etnocentrismo espon-
os textos: paleografia , bibliografia e estudo de manuscritos. tâ neo da leitura ” ( conforme os termos do historiador brasileiro da
Essas disciplinas eruditas conheceram , nestes ú ltimos anos, uma literatura “ barroca ” João Hansen ) , é preciso lembrar que a leitura ,
dupla evolu ção. A primeira conduziu-as de uma an álise estritamen- també m ela , tem uma histó ria ( e uma sociologia ) e que a significa-
te morfológica dos objetos a uma interrogaçã o sobre a fun ção ex- ção dos textos depende das capacidades, dos códigos e das conven-
pressiva dos elementos n ão verbais que intervê m , n ão somente na ções de leitura pró prios às diferentes comunidades que constituem ,
organiza ção do manuscrito ou na disposição do texto impresso, mas na sincronia ou na diacronia, seus diferentes p ú blicos. Deve-se tam-
també m na representação teatral , na recitação, na leitura em voz alta, bé m lembrar, com Pierre Bourdieu , que a leitura letrada , aquela do
etc. - o que D. F. McKenzie designa como the relation of form to mea- torsilencioso e hermeneuta, n ão é universal e que supõe suas pró-
ó
ning 1 [ a relação da forma com o sentido] . A segunda evolu ção ten- prias condições de possibilidades. “ Interrogar-se sobre as condições
tou localizar no pró prio estudo desses dispositivos formais a deter- de possibilidade da leitura é interrogar-se sobre as condi ções sociais
minação das diversas rela ções socialmente determinadas, que dife- de produ çã o dos lectores. Uma das ilusões do lector é a que consiste
rentes pú blicos mantê m com a “ mesma ” obra. em esquecer suas pró prias condições sociais de produ ção, em uni-
É com essas questões que se pode abordar, por exemplo , o es- versalizar inconscientemente as condições de possibilidade de sua
tudo de certas com édias de Moli è re.2 Elas são primeiramente ence- leitura” 3: uma das tarefas principais da histó ria das obras e dos gê-
neros consiste , justamente, em dissipar essa ilusão.
1
D. F. McKenzie, Bibliography and the sociology of texts, Londres, The British Library, 1986 Uma história da literatura é, pois, uma histó ria das diferentes
( tradu çã o francesa La Bibliographie el la sociologie des textes, Paris, Editions du Cercle de la modalidades da apropriação dos textos. Ela deve considerar que o
Librairie, 1991 ) .
2
Roger Chartier, “ George Dandin , ou le social en représentation ” , Annales, Histoire, Scien-
ces sociales, março-abril , n . 2 , 1994, p.277-309, retomado em Culture écrite et sociét é . L'ordre 3
Pierre Bourdieu , 1987, “ Lecture, lecteurs, lettrés, litt é rature ” , Choses dites , Paris ,
des lixrres ( XIV - XVIIL siècle ), Paris, Albin Michel , 1996, p.155-204. Editions de Minuit, p.132-143.

256 257
“ mundo do texto” , usando os termos de Ricoeur, é um mundo
de grande entre os historiadores ) de reduzir os textos a um mero estatu-
objetos e de performances cujos dispositivos e regras permitem
e res- to documental , deve-se trabalhar sobre as variações. Variações entre
tringem a produção do sentido. Deve considerar paralelamente
q ue as representações literárias e as realidade sociais que elas representam
o “ mundo do leitor” é sempre aquele da “ comunidade de interpreta
- deslocando-as sobre o registro da ficção e da fá bula. Variações entre
ção” (segundo a expressão de Stanley Fish ) à qual ele pertence e que a significação e a interpretação corretas tais como a fixam a escritura ,
é definida por um mesmo conjunto de competências, de normas
, de o comentá rio ou a censura , e as apropriações plurais que, sempre in-
usos e de interesses. O porquê da necessidade de uma dupla aten
ção: ventam , deslocam , subvertem . Variações, enfim , entre as diversas for-
à materialidade dos textos, à corporalidade dos leitores. mas de inscrição, de transmissão e de recepção das obras.
Essa defini ção do projeto da histó ria literá ria leva necessaria- Produzidas em uma ordem específica , as obras escapam dela e
mente à sua dissolu ção ou sua absorção em um campo intelec
tual ganham existê ncia sendo investidas pelas significações que lhes atri-
mais vasto - o dos cultural studies, por exemplo? Talvez n ã o se
, consi- buem , por vezes na longa dura ção, seus diferentes p ú blicos. Articu-
derarmos que, em cada configuração social , certos discursos
são lar a diferen ça que funda ( diversamente ) a especificidade da “ lite-
designados por sua distâ ncia dos discursos e prá ticas comuns e que ratura” e as depend ê ncias ( m ú ltiplas ) que a inscrevem no mundo
são produzidos e difundidos em um espaço social específico que
tem social: esta é, a meu ver, a melhor formulação do necessá rio encon-
seus lugares, suas hierarquias e seus objetivos pró prios. A hist tro entre a histó ria da literatura e a hist ó ria cultural .
ó ria da
literatura tem portanto como objeto primeiro o reconhecimento
das Trata-se portanto, antes de mais nada, de construir um novo espa-
“ litera- ço intelectual que obrigue a inscrever as obras nos sistemas de restri-
fronteiras, diversas conforme as é pocas e os lugares, entre a
tura ” e o que n ão é ela. Por isso, a defini ção de á reas de
investiga- ções que limitam , mas que també m tornam possíveis sua produ ção e
ção particulares ( o que n ão quer dizer pró prias a esta ou aquela dis
- sua compreensão. O cruzamento in édito de abordagens por longo tem-
ciplina ) : por exemplo , a variação dos crité rios que definiram
a “ lite- po estranhas umas às outras ( a crítica textual, a histó ria do livro, a so-
ralidade” em diferentes per íodos; os dispositivos que constitu íram ciologia cultural ) tem um objetivo fundamental: compreender como
os repertó rios das obras can ó nicas; os traç os deixados nas pró prias a recepção particular e inventiva de um leitor singular ( ou de um ou-
( as- vinte, ou de um espectador ) encerra-se em uma sé rie de determinações
obras pela “ economia da escritura ” na qual foram produzidas
sim , segundo as é pocas, as restri ções exercidas pela institui
ção, pelo complexas e relacionadas - os efeitos de sentido visados pelos pró prios
constru í- dispositivos da escritura; os usos e apropriações impostos pelas formas
patronato ou pelo mercado ) ou , ainda , as categorias que
ram a “ institui ção literá ria ” ( como as noções de “ autor , de obra
” “ ”, de “ representação” do texto ( na escrita ou no oral , no volumen ou no
de “ livro ” , de “ escritura ” , de copyright , etc. ) .
4
codex, no manuscrito ou no impresso, no livro ou na tela, etc.) ; as com-
Essa historicização da especificidade da “ literatura” tem por co- petê ncias, as categorias e as conven ções que comandam a relação de
rolá rio a interrogação sobre as relações que as obras mantêm com
o cada comunidade com os diferentes discursos. E analisando conjunta-
mundo social. Mantendo distâ ncia da tentação (que, infelizmente
, foi mente essas diferentes determinações e reintroduzindo no centro de
seu questionamento a historicidade e, portanto, a descontinuidade de
seus objetos, que a história literária e a crítica textual poderão afirmar
çaise de philosophie,
Michel Foucault, “ Qu ’ est-ce qu un auteur? , Bulletin de la Sociét é fran sua pertinência , em uma é poca em que todas as disciplinas ( inclusive a
4 ’ ”

t. LXIV, julho-setembro 1969 , p. 73- 104 , retomado em Dits


et écrits, 1954 - 1988, edi ção
estabelecida sob a direção de Daniel Defert e François Ewald , com ’
a colaboração de histó ria e as ciê ncias mais “ duras” ) voltam-se para a dimensão necessa-
, e L Ordre du discours,
Jacques Lagrange , Pans, Gallimard , 1994, 1.1, 1954- 1969, p. 789 821
- riamente “ literá ria” de sua escritura.
Paris, Gallimard, 1971 .

259
258
REPRESENTAÇÕ ES E IND ÍCIOS DE ORALIDADE narrar de Sancho e as expectadvas de leitor de Dom Quixote.5 San-
cho narra multiplicando as retomadas, os retrocessos, as relativas,
Determinar os efeitos pró prios aos diferentes modos de repre- as incisas; interrompe constantemente sua histó ria com referê ncias
sentação, de transmissão e de recepção dos textos é, portanto, uma à situação na qual se encontra com Dom Quixote.Já este espera uma
condição necessá ria para evitar todo anacronismo na compreensão narrativa linear, sem retomadas, sem repeti ções , sem digressões.
das obras. Isso cria, para o historiador, um problema de m é todo par- Cervantes representa assim a distâ ncia absoluta que diferencia os
ticularmente difícil , quando pretende reconstruir as modalidades es- modos de dizer e as maneiras de 1er ( ou de escutar 1er ) . Sancho narra
pecíficas das apropriações orais dos textos antigos, ao passo que estas, como se tem o h á bito de dizer os contos ( consejas) em seu vilarejo.
por definição, são para sempre oralidades mudas. A relação contem- Mas Dom Quixote impacienta-se ao escutar essa fala tão estranha à
porâ nea com as obras e com os gê neros n ão pode, de fato, ser consi- rela çã o que é a do leitor diante de um texto escrito, estável , fixo, li-
derada nem como invariante, nem como universal. Contra as tenta- near. Do mesmo modo, no cap ítulo V de Propos rustiques, Noë l Du
ções do “ etnocentrismo da leitura ” , deve-se lembrar que in ú meros são
Fail coloca em cena a maneira como um rico campon ês, Robin Che-
os textos antigos que n ão supõem absolutamente, como destinatá rio, vet , narra antigos contos diante de seus familiares reunidos.6 Os tra-
um leitor solitá rio e silencioso em busca do sentido. Feitos para se- ços que Du Fail escolhe para caracterizar essa recitação são os mes-
rem recitados ou lidos em voz alta e compartilhados em uma escuta mos que Cervantes utiliza para qualificar a maneira como Sancho
coletiva , investidos de uma fun ção ritual , pensados como m áquinas narra os consejas - as interpela ções da audi ê ncia, as digressões, as
de produzir efeitos, eles obedecem às leis pró prias da performance ou incisas, as repetições, etc. Essa primeira direção de investigaçã o n ão
da efetuação oral e comunitá ria. Foram recebidos, identificados, com-
pretende absolutamente reduzir as obras a um estatuto documen-
preendidos a partir de crité rios totalmente diferentes daqueles que tal , mas considera que as representações literá rias das prá ticas da
caracterizam nossa pró pria relação com a escrita. Deve-se então his- oralidade designam , deslocando-os para o registro da ficção, os pro-
toricizar os crité rios de classificação, as maneiras de 1er, as represen- cedimentos específicos que as governam.
tações da destinação e dos destinatá rios das obras tais como nos fo-
Uma segunda perspectiva de pesquisa visa a recolher os “ ind í-
ram legados pela “ instituição literá ria” . Diante das obras dos séculos
cios de oralidade ” , tais como definidos por Paul Zumthor: “ Por in-
XVI e XVII ( e a fortiori dos períodos anteriores ou das culturas n ão d ício de oralidade, entendo tudo o que , dentro de um texto , infor-
ocidentais ) , as categorias que manejamos sem refletir devem assumir ma-nos sobre a interven çã o da voz humana em sua publicação, que-
sua imediata evid ê ncia e sua impl ícita universalidade. ro dizer, na mutaçã o pela qual esse texto passou , uma ou vá rias ve-
Para reconstituir algo das formas orais da transmissão das obras zes, de um estado virtual à atualidade e a partir de então existiu na
e dos gê neros, há vá rias estratégias possíveis. Em primeiro lugar, trata- aten çã o e na mem ó ria de um certo n ú mero de indivíduos” .7 Esses
se de decifrar nas representações literá rias as prá ticas da oralidade: ind ícios de oralidade , depositados no interior dos textos , não são
recitação, canto, leitura em voz alta, etc. Em seguida , trata-se de cons-
tituir o corpus dessas oralidades silenciosas que certos textos “ dão a 3
Miguel de Cervantes, El Ingenioso Hidalgo Don Quijole de la Mancha, (1605) JohnJay Allen
ouvir ” na ficção da escritura. E o caso do conto narrado por Sancho ( ed. ) , Madri , Cá tedra, 1984 ( tradu ção francesa L'Ingénieux Hidalgo Don Quichotte de la
a Dom Quixote no cap í tulo XX da primeira parte do romance. A Manche, tradução de Louis Viardot, Paris, Garnier-Flammarion , 1969 ) .
descrição mostra com uma acuidade extraordin á ria, que se poderia
11
Noë l Du Fail , Propos rustiques, ( 1548 ) , in Conteurs français du XVf siècle, Paris, Gallimard ,
Biblioth èque de la Pléiade, 1965.
qualificar de “ etnossociológica ” , a distâ ncia que separa o modo de ' Paul Zumthor, La lettre et la voix. De la “ litt érature ” médiévale, Paris, Editions du Seuil ,
1987.

2G0 261
representações de prá ticas da oralidade , mas dispositivos, expl ícitos em um lugar fechado ) com as condições reais de sua circulação ( pela
ou impl ícitos, que atribuem aos textos destinatá rios que Iêem em voz leitura em voz alta ) .
alta e escutam 1er. Eles podem ser indiscutíveis: quando, por exem-
plo , uma nota musical indica que o texto deve ser cantado. Eles po- A PONTUAÇAO
dem ser simplesmente prováveis, como no caso dos textos que se
dirigem a um duplo p ú blico: os que lerão e os que ouvirão 1er. Em Uma outra via de pesquisa é mais técnica e mais específica. Ela
todas as l ínguas europeias, um par de verbos sempre associados sa- dedica-se às transforma ções da pontua ção, partindo da hipó tese da
lienta essa dupla recepção: to reade to hear, vere oír, ou leere escuchar, passagem de uma pontuaçã o de oraliza ção a uma pontuaçã o grama-
vere ouvir. Os prólogos, as advertê ncias aos leitores, os t ítulos de ca- tical ou , como escreve William Nelson , da mutação ( que ele data do
pítulos indicam com muita freq úê ncia essa dupla destina çã o e du- final do século XVII ) que faz com que elocutionary punctuation indi-
pla circulaçã o do texto.8 cative of pauses and pitches xuas then largely supplanted by syntactic [ a pon-
Outros ind ícios, inscritos na estrutura formal das obras, podem tua ção de oralização indicando as pausas e as alturas tenha sido em
igualmente sugerir a destinação oral dos textos. In ú meras obras an- seguida suplantada por uma pontuaçã o sintá tica ] . Verificar essa hi-
tigas, a começar pelas maiores, como Dom Quixote, sã o organizadas pó tese levanta uma dif ícil questão preliminar: a quem se deve atri-
em curtos cap í tulos, perfeitamente adaptados às necessidades de per- buir as formas gráficas e ortográficas das edições antigas? Isso signi-
formance oral , que supõe uma dura ção limitada para n ão cansar a au- fica levantar, de maneira mais ampla, o problema das diferentes in-
diê ncia e a impossibilidade de memorização de uma intriga dema- terven ções que dã o suas formas materiais ao texto impresso. Segun -
siado complexa. Os cap ítulos breves, que são igualmente unidades do as diversas tradições de estudo, a ê nfase n ã o é dada nem ao mes-
textuais, podem ser assim pensados como unidades de leitura , fecha- mo momento do processo de edição, nem aos mesmos atores.
das sobre si mesmas e disjuntas. William Nelson mostrou assim como Para a bibliografia , em sua definição anglo-saxã , as escolhas
a reescritura de certas obras ( Amadigi de Bernardo Tasso ou Arcadia gráficas e ortográ ficas devem-se aos compositores. Nem todos os
de Spencer ) podia ser compreendida como o ajuste da obra às res-
operá rios tipográficos das oficinas antigas tinham a mesma manei-
trições da leitura em voz alta em uma é poca em que esta é uma for- ra de ortografar as palavras ou de marcar a pontuação. Isso explica
ma maior da sociabilidade letrada.9 A divisã o do texto em unidades o retorno regular das mesmas formas nos diferentes cadernos do li-
menores, a multiplicação de episódios autó nomos, a simplificação vro em fun ção das preferê ncias do compositor das páginas quanto
da intriga sã o també m ind ícios dessa adapta ção da obra a uma mo- à ortografia, à pontua ção ou à paginação. Por essa razã o, as spelling
dalidade essencial de sua transmissão. O mesmo acontece sem d úvi- analysis e os compositor studies, que permitem atribuir a composição
da com in ú meras obras antigas , em verso ou em prosa - particular- desta ou daquela folha ou desta ou daquela forma a determinado
mente as coletâ neas de novelas, onde coincide a enunciaçã o fict í-
compositor, constitu íram , juntamente com a an álise da recorrê ncia
cia colocada em cena ( que imagina a reunião de vá rios contadores dos caracteres danificados, um dos meios mais seguros para conhe-
cer o pró prio processo de fabricação do livro , seja seriatim ( isto é ,
8
Margit Frenk, “ ‘Lectores y oídores’. La difusión oral de la literatura en el Siglo de Oro” ,
Act as del Seplimo Congreso de la Asociaci ó n Internacional de Hispanist as, celebrado en Vene- seguindo a ordem do texto ) , seja por forma ( isto é , compondo as
cia del 25 ao 30 de agosto de 1980 , Giuseppe Bellini ( ed. ) , Roma , Bulzoni Editore, 1981, páginas na ordem em que elas aparecem em cada uma das duas for-
.
vol. I , p.101-123 mas necessá rias à impressão dos dois lados de uma folha , o que per-
' William Nelson , “ From ‘Listen , Lording’ to ‘Dear Reader’ “ , University of Toronto Quar-
terly . A CanadianJournal of the Humanities, vol. XLVI , n . 2 , 1976-1977, p. 110-124. mite uma impressão mais rá pida mas que supõe , també m , uma cali-

262 263

#
bragem precisa da có pia ) .10 Nessa perspectiva de pesquisa , baseada plar.12 Em uma carta a seu amigo Loisel , em abril de 1586, Etienne
no exame da materialidade das obras impressas, a pontuação é con- Pasquier descreve , para o pior, o papel dos corretores e o descon-
siderada , a exemplo das varia ções gráficas e ortográficas, como re- tentamento que ele produz entre os autores:
sultante , n ã o das vontades do autor que escreveu o texto, mas dos
h á bitos dos operá rios que o compuseram para que ele se tornasse Portanto, seja qual for meu livro, eu o enviarei assim que ele tiver sa ído da
um livro impresso. impressã o. Tenho certeza de que você encontrará mais erros na impres-
sã o do que eu gostaria. Pois que livro pode ser novamente impresso que
Em uma segunda perspectiva , a da histó ria da l íngua, o essen- não seja infinitamente sujeito a isso? Enviam-se ao Impressor cópias o mais
cial passa-se em outro lugar: na preparação do manuscrito para a corretas possível. Que passam primeiramente pelas m ã os do Compositor.
composiçã o tal como operada pelos “ corretores ” , que acrescentam Seria certamente um milagre que ele pudesse reunir todas as letras sem
capitais, acentos e pontua ção , normalizam a ortografia , fixam as erro: é por isso que se escolhe como controlador um homem que toma o
conven ções gráficas. Se restam o resultado de um trabalho ligado título de Corretor, ao qual é apresentada a primeira prova. Este , devido à
opinião que tem de sua sufici ê ncia, resolve algumas vezes julgar as con-
à oficina tipográfica e ao processo de publicaçã o, as escolhas quan- cepções do autor e, querendo relacion á-las às suas, inverte-as, e mesmo que
to à pontuação n ão sã o mais atribu ídas aqui aos operá rios compo- não se autorize a isso , é possível que seu olho falhe. Razão por que se re-
sitores, mas aos letrados ( cl é rigos, detentores de t ítulos universi- corre ao autor para a segunda prova; mas, ou ele n ão é encontrado de
tá rios , professores, etc. ) empregados pelos editores e tipógrafos modo algum , ou se encontra impossibilitado por outras razões, que impe-
dem que tenha a mente bem atenta a essa correção.
13
para garantir a maior correçã o poss ível de suas edições. Paolo Tro-
vato lembrou o qu ã o era importante para o sucesso de um livro na
O papel dos corretores na fixação gráfica e ortográfica da l ín-
Itá lia do Quattrocento e do Cinquecento a exatid ão de sua “ corre-
gua foi muito mais decisivo do que as propostas de reforma da orto-
çã o ” , salientada pela fó rmula Con ogni diligenza correttou [ corrigido
grafia feitas pelos escritores que queriam impor uma “ escritura oral ” ,
com todo o cuidado possível ] . De onde , o papel decisivo dos “ cor- inteiramente comandada pela maneira de dizer. Com efeito, é gran-
14

retores” , cujas interven ções manifestam-se em vá rios momentos do


de a distâ ncia entre a moderação das solu ções escolhidas para as
processo de ediçã o: a preparaçã o do manuscrito que serve de c ó- edi ções impressas e a ousadia das “ reformações” sugeridas pelos au-
pia para a composi çã o; a correçã o das provas; as corre ções duran- tores da Pléiade. Ronsard , por exemplo, propõe em seu Abrégé de VArt
te a tiragem , a partir da revisão das folhas j á impressas ( o porqu ê
poétique françois a supressão de “ toda ortografia supérflua ” ( isto é,
dos diferentes estados das páginas pertencentes a uma mesma for-
todas as letras que n ão são pronunciadas ) , a transformação da gra-
ma em uma mesma edi çã o ) , ou o estabelecimento de errata em suas
fia das palavras a fim de aproximá-la do modo como são pronuncia-
duas formas, seja sob a forma de correções a pena nos exemplares
das ( como, por exemplo , “ roze ” , “ kalité ” , “ Franse ” , “ langaje ” , etc. -
*

impressos, seja sob a forma de folhetos de errata acrescentados ao o que tornará in ú teis o qe o c) e a introdu ção em francês do // ou do
final do livro , que permitem ao leitor corrigir ele mesmo seu exem- fi espanhol , para marcar bem a pron ú ncia de palavras como

"’ Thomas G. Tanselle , “ Analytical Bibliography and Renaissance Printing History” , Prin- 12
Brian Richardson , Print Culture in Renaissance Italy. The Editor and the Vernacular Text ,
ting History , xo\. 3, n . 1 , 1981 , p. 24-33, eJeanne Veyrin-Forrer, “ Fabriquer un livre au XVT 1470-1600, Cambridge , Cambridge University Press , 1994.
siècle ” , Histoire de l'édition française, Roger Chartier e Henri-Jean Martin ( ed . ) , t. 1 , Le 13
Citado por Jeanne Veyrin-Forrer, op. cit.
Livre conquérant . Du Moyen Age au milieu du XVIL siècle, Paris , Fayard / Cercle de la Librai- N Nina Catach , L Ortographe fran çaise à l 'époque de la Renaissance ( auteurs, imprimeurs,

rie , 1989 , p.336-369. ateliers d’imprimerie ) , Genebra , Librairie Droz, 1968.
' 1 Paolo Trovato , Con ogni diligenza correlto. La stampa e le revisioni ediforiali dei testi lelterari ‘ï * Em francês usual , rose [ rosa] , qualité [qualidade ] , France [ França] e langage [ linguagem ] .
ilaliani ( 1470- 1570 ), Bolonha , Il Mulino , 1991 . ( N . de T. )

‘264 265

r ï Í ï f -i Z : .V ’ T - f ~ - i '
\
“ orgueilleux ” [orgulhoso ] ou “ Monseigneur ” [ Monsenhor ] , 15 * Na
Os dicion á rios de l í ngua do final do século XVII registram a
advertê ncia endereçada ao leitor no pref ácio aos quatro primeiros
eficácia do sistema proposto por Dolet ( enriquecido dos dois pon-
livros de Franciade, ele expressa a mesma preocupação de ligar es-
tos que indicam uma pausa de uma duração intermediá ria entre o
treitamente formas gráficas e maneiras de 1er: “ Eu te rogarei apenas
coma, ou ponto-e-vírgula , e o ponto final ) , mas també m a distâ ncia
uma coisa. Leitor: queira pronunciar bem meus versos e acomodar
entre a voz leitora e a pontuação, considerada então, de acordo com
tua voz à sua paixão, e não como alguns os lêem , mais à maneira de
o termo do dicion á rio de Furetiè re , como uma “ observação grama-
uma missiva , ou de algumas cartas Reais, do que de um Poema bem
tical ” que marca as divisões do discurso. Nos exemplos de emprego
pronunciado: e te suplico ainda mais uma vez, onde vires esta mar-
propostos por este dicion á rio de Fureti è re, publicado em 1690, ele
ca !, queira elevar um pouco tua voz para dar graça ao que tu leres” .16
indica: “ Este Corretor de Imprensa compreende muito bem a pon-
Distante dessas propostas radicais, a prá tica dos editores e tipógra-
tua ção” e “ A exatid ão deste Autor chega mesmo a prestar aten çã o
fos, mesmo conservando algum vínculo com a oralização, limita as
aos pontos e às vírgulas” . Se o primeiro exemplo atribui com muita
inovações à fixaçã o do tamanho das pausas.
naturalidade a pontuação à competê ncia técnica pró pria aos corre-
Aqui , o texto fundamental é o do tipógrafo ( e autor ) Etienne I
tores empregados pelos tipógrafos, o segundo, implicitamente, re-
Dolet, intitulado La Punctuation de la languefrançoise. Ele define, em
mete ao desinteresse usual dos autores pela pontuação.
1540, as novas conven ções tipográficas que devem distinguir, con-
Todavia , este segundo exemplo assinala que h á autores atentos
forme a duração da interrupçã o e a posi ção na frase, o point à queue
à pontuação de seus textos. E poss ível encontrar tra ços dessa “ exati-
[ ponto com cauda ] ou vírgula, o coma ( ou ponto-e-vírgula ) , “ o qual
dã o” nas edições impressas de suas obras? Vejamos o caso de Moliè-
•tk

é colocado em senten ça suspensa e n ão terminada” , e o point rond


re. Seria muito arriscado atribuir diretamente as escolhas de pontua-
[ ponto redondo] ( ou ponto final ) que “ se coloca sempre no final
ção tais como aparecem nas edições originais de suas peças, consi-
da senten ça ” - aos quais se acrescentam o interrogante ( ou ponto de
derando que , como se mostrou na edição de 1660 de As Preciosas ri-
interrogação ) e o admirativo ( ou ponto de exclamação ) . Tal distri- dículas, elas variam de acordo com as diferentes folhas, até mesmo
,
buição da pontuação remete , ao mesmo tempo, às divisões do dis- 17
as diferentes formas, ao sabor das preferê ncias dos compositores.
curso e à fala leitora:
Entretanto, as variações de pontua ção que existem entre as primei-
E preciso entender que todo argumento e discurso de propósito - seja ras edições das peças, publicadas pouco tempo depois de suas pri-
ordin á rio, seja poé tico - é deduzido por períodos. Período é uma dic- meiras representações parisienses, e as edições posteriores permitem
ção grega que os latinos chamam de clausula ou compraehensio: isto é, uma reconstruir, sen ão as “ inten ções” do autor, pelo menos as modalida-
clá usula ou uma compreensão de palavras. O período ( ou clá usula ) é des visadas da destinação do texto impresso.
distinguido e dividido pelos pontos acima mencionados. E geralmente
ele n ão deve ter senão dois ou três membros pois, se por sua extensão i#
$
Conhecem-se as reticê ncias de Moli è re diante da publica ção
exceder a aleine ( por haleine [ respira ção] , no sentido de fôlego ) do ho- •i
impressa de suas peças.18 Antes de As Preciosas rid ículas e da necessi-
:
dade de antecipar a publica ção do texto por Somaize e Ribou , feita

mem , ele é vicioso.


a partir de uma có pia roubada e sob a cobertura de um privilégio
1
poétique françois, ( 1565 ) , in Oeuvres complètes, Paris, Gallimard ,
’ Ronsard , Abrégé de l’Art
Bibliothèque de la Pléiade, 1950, t. II , p.995-1009. ’ ” , in La Lettre et le texte. Trente années
Jeanne Veyrin-Forrer, “ A la recherche des ‘Précieuses
17
* Notação foné tica [oRgœ j0 ] “ orgueilleux’ e [ m ãsEjiceR ] “ monseigneur” ( N. de T.) de recherches sur l’histoire du lime, Paris, Collection de l ’ Ecole normale supé rieure de jeu-
Ronsard , Les quatre premiers livres de la Franciade. Au lecteur, ( 1572 ) , in Oeuvres complètes, nes filles, 1987, p.338-366.
op. cil., t. II, p.1009-1013. IH
Abby E. Zanger, “ Paralyzing Performance: Sacrificing Theater or the Altar of Publica-
tion ” , Stanford French Review, outono-inverno 1988, p.169-185.
I
266
267
obtido por surpresa , Moliè re jamais quisera mandar uma de suas ra silenciosa a reconstru ção, interna , dos tempos e das pausas da
com édias para impressão. Sem a ameaça de se ver impresso sem o interpretação dos atores. A passagem de uma pontuação à outra n ão
seu consentimento, o mesmo teria acontecido com As Preciosas Ridí- é isenta de efeitos no pró prio sentido das obras.21 De um lado, as
culas. No prefá cio à edição, ele se justifica: pontuações primeiras, sempre mais numerosas, caracterizam dife-
rentemente os personagens - caso da vírgula presente na edição de
Embora eu tivesse a pior opiniã o do mundo sobre minha peça As Precio- 1669 e que desapareceu em seguida após a primeira palavra ( “ Gor-
sas ridículas antes de sua representa ção, devo agora crer que ela vale al- do ” ) neste verso de Tartufo: “ Gordo, e corpulento, a tez fresca , e a
guma coisa , já que tantas pessoasjuntas falaram bem dela. Mas como uma boca escarlate ” ( ato I , cena 4, verso 233) , ou a multiplica ção das vír-
grande parte das gra ças nela encontradas dependem da a ção e do tom
de voz, eu julgava importante que n ão fosse despojada de seus ornamen- gulas e das capitais que distingue as maneiras de falar do professor
tos; e achava que o sucesso que ela teve na representaçã o era muito bo- de filosofia e do professor de dan ça em O Burguês fidalgo ( ato II , cena
nito para ficar nisso.19 3) . De outro lado, as pontuações das edições originais fazem pausas
que permitem os jogos de cena ( ou sua reconstituição imaginada ) .
Havia razões financeiras para a recusa da publicação das peças, Por exemplo, na cena dos retratos de O Misantropo ( ato II , cena 4,
pois, uma vez publicada , uma peça pode ser representada por qual- versos 586-594 ) , a edi ção de 1667 conté m seis vírgulas a mais do que
quer trupe, mas também razões esté ticas. Para Moliè re , de fato , o as edições modernas, o que permite a Celimena destacar as palavras,
efeito do texto de teatro sustenta-se inteiramente na “ açã o” , isto é, fazer pausas, multiplicar as m ímicas. Enfim , essas pontuações origi-
na representação. A advertê ncia ao leitor que abre a edição de O Amor nais evidenciam palavras carregadas de uma significação singular.
médico, representada em Versalhes e depois no teatro do Palais-Royal Enquanto os dois ú ltimos versos de Tartufo n ão comportam nenhu-
em 1665, e publicada no ano seguinte , salienta a distâ ncia entre o ma vírgula nas edições modernas, o mesmo n ão se dá na edição de
espetáculo e a leitura: “ Nã o é necessá rio adverti-los de que h á mui- 1669: “ E por um doce himeneu , coroar em Valè re , / A chama de um
tas coisas que dependem da a çã o: sabe-se bem que as com édias são amante generoso, e sincero.” A ú ltima palavra da peça, “ sincero ” , é
feitas apenas para serem representadas; e aconselho que a leiam assim claramente designada como o antó nimo daquela que figura
apenas as pessoas que tê m olhos para descobrir na leitura todo ojogo no t ítulo, Tartufo, ou o Impostor. Essa pontuação abundante, que in-
do teatro ” .20 N ão seria a pontuação um dos suportes possíveis ( com dica pausas mais numerosas e , geralmente , mais longas do que as
a imagem e as didascálias ) para que seja restitu ído no texto impres- sucederam , ensina ao leitor como ele deve dizer ( ou 1er ) os versos e
so e em sua leitura algo da “ ação ” ? ressaltar um certo n ú mero de palavras, geralmente dotadas de capi-
Comparada sistematicamente àquela adotada nas edições pos- tais de imprensa , també m elas suprimidas na edições posteriores.
teriores ( n ão somente no século XIX , mas també m desde o século A investigação aqui esboçada levanta vá rios problemas gerais. O
XVIII , até mesmo do final do século XVII ) , a pontuação das primei- primeiro é a datação da passagem da pontuação retórica à pontua-
ras edições das peças de Moliè re atesta claramente seu v ínculo com çã o gramatical . Ela se organizaria de acordo com uma trajetória cro-
a oralidade, quer destine o texto impresso a uma leitura em voz alta nológica ú nica cujo momento decisivo seria o final do século XVII?
ou a uma recitaçã o , quer permita ao leitor que dela fará uma leitu- Obedeceria a ritmos diferentes conforme os gê neros? Ou então, se-

' Moliè re , Les Précieuses ridicules, ( 1660 ) , in Oeuvres complètes, Paris, Gallimard , Biblioth è-
I! iaston H . Hill , “ Ponctuation et dramaturgie chez Moliè re ” , La Bibliographie matérielle,
71 (

que de la Pl é iade , 1971 , 1.1, p.247-287. apresentada por Roger Laufer, mesa-redonda organizada para o C. N. R.S. porjacques
-° Molière, L’Amour médecin, ( 1666 ) , in Oeuvres complètes, op. cil., t. II, p.87-120. .
l 'é lit Editions du C. N. R.S., 1983, p.l 25-141.

268 269
Y

gundo a hipó tese formulada por Philip Gaskell acerca do maske de Ao contrá rio de Condorcet ou de Malesherbes, desconfiados em
Milton Com,us,22 n ão se deveria relacionar essas variações às diversas relação às paixões e às emoções engendradas pela retórica oratória e,
destinações, contemporâ neas umas das outras, de um mesmo texto? por isso, louvadores da superioridade do escrito impresso,24 Franklin
Segundo problema: as razões e dispositivos que sustentam as julga possível superar uma contradiçã o aparentemente insol úvel:
tentativas de restaura ção da pontua ção de oralização no século como organizar em torno da fala um espaço pú blico que n ão fique
XVIII. Benjamin Franklin é , desse ponto de vista , exemplar. Imagi- necessariamente encerrado nos limites de uma cidade à antiga?
nando diversos dispositivos que permitirão manter o papel do ora- No prólogo de Comedy of Pyramus and Thisbe, em Sonho de uma
dor p ú blico no seio de um povo disperso, ele esforça-se para conci- noite de verão, uma pontuação incorreta leva Quince a dizer o con-
liar a nova definiçã o do espaço p ú blico e pol ítico, que tem as dimen- trá rio do que queria - e do que deveria: If we offend , it is with our
sões de uma vasta rep ú blica , e a força tradicional da palavra viva , good will. / That you should think, we come not to offend , / But
endereçada aos cidad ãos reunidos para deliberar. 23 Por um lado , os with good will. To show our simple skill, / That is the true beginning
autores dos “ discursos p ú blicos” são convidados a fazer uso, em seus of our end ” 25 [Se n ós os desgostamos, é nossa inten ção. / Não pen-
textos, dos gê neros mais diretamente ligados à oralidade: o prové r- sem que n ã o queremos fazê-lo, / Pois é nossa inten ção. Mostrar-lhes
bio, o diá logo, a carta ( que pertence ao gê nero orató rio ) . Por ou- nossa simples competê ncia, / Este é de nosso fim o verdadeiro co-
tro , a aprendizagem da leitura em voz alta , que ensina a duraçã o das meço ] , ao passo que a pontua ção correta desses mesmos versos da-
pausas e as elevações de voz, deve tornar-se um elemento fundamen- ria um sentido contrá rio sem que uma ú nica palavra fosse mudada
tal do curr ículo escolar. Enfim , uma reforma das conven ções tipo- ( ao menos em inglês ) : “ Se n ós os desgostamos, é nossa inten ção /
gráficas deve tornar mais fácil a oralização dos textos gra ças a uma Que vocês não pensem que queremos fazê-lo. / Pois é nossa inten-
“ tipografia expressiva ” que joga com os itálicos, com as capitais em si ção mostrar-lhes nossa simples competência: / Este é de nosso fim
.=
certas palavras, ou com uma pontuação nova ( por exemplo, com a o verdadeiro começo. ” O jogo da pontuação erró nea , que inverte o
introdu ção em inglês dos pontos de exclamação ou de interroga ção pró prio sentido do texto, foi vá rias vezes usado na literatura elisabe-
invertidos, pró prios ao espanhol , que , colocados no in ício da frase , thana. Ele indica que a constru ção da significação dos textos depen-
indicam de in ício como colocar a voz ) . Mobilizando esses recursos de estreitamente das formas que comandam sua transcrição e gover-
que conhecia bem , já que fora tipógrafo, Franklin esforça-se para nam sua transmissão. Contra todas as abordagens críticas que con-
aproximar os discursos impressos o m á ximo possível das performan- } sideram sem importâ ncia a materialidade dos textos e as modalida-
ces oratórias e, ao mesmo tempo, permitir a oradores diferentes que r des de sua performance, Quince, o desajeitado, nos lembra que iden-
reproduzam de modo id ê ntico , em diferentes lugares, a alocu ção tificar os efeitos de sentido produzidos pelas formas, sejam elas do
original. Graças à leitura em voz alta , gra ças à “ tipografia expressi- escrito, do impresso ou da voz, é uma necessidade para compreen-
va” , o publick Orator poderá ser multiplicado, como que “ presente” I der, em sua historicidade e em suas diferen ças, os usos e as apropria-
em sua pró pria ausê ncia. çõ es dos quais os textos, literá rios ou n ão, foram objeto.
f
f
" Philip Gaskell , “ Milton , A Maske ( Cornus ), 1634 ” , From Writer to Reader. Studies in Editori-
al Method, Winchester, St Paul’s Bibliographies, J 984, p.28-61. 21
Roger Chartier, Culture écrite et société, op, cit ., p. 21-26.
-’ Jacob Melish , As Your Newspaper juas Reading. La culture de la voix, la sphère publique et la politi- I 25
William Shakespeare, A Midsummer Night’s Dream, (1600 ) , Harold F. Brooks ( ed. ) , Lon-
que de l’alphabétisation: le monde de la construction de l’imprimé de Benjamin Franklin, dissertaçã o dres e New York , Routledge, “ The Arden Edition of the Works of William Shakespea-
?
de D. E.A., Paris, Ecole des hautes é tudes en sciences sociales, 1992, datilografado. i re ” , 1979, reedição 1993.
I
270 271

g
Fontes

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foi publicado na Revue de Synthèse, 3. sé rie , n . 111-112, julho-dezem-
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O capítulo 3, “ A histó ria entre narrativa e conhecimento ” , foi
publicado em M .L.N., 109, 1994, p.583-600.
O cap í tulo 4, “ Figuras retó ricas e representa ções histó ricas.
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O cap í tulo 5, “ ‘A quimera da origem ’. Foucault , o Iluminismo
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Editions du Centre Georges Pompidou , 1987, p.155-167.
O capítulo 7, “ Poderes e limites da representa ção. Marin , o dis-
ï curso e a imagem ” , foi publicado nos Annales H . S.S., março-abril
1994, p.407-418.
O cap ítulo 8, “ O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de

273
Foucault ” , foi publicado em Les Cahiers de la Villa Gillet, n. 3, novem-
/
bro 1995, p.188-203.
O cap ítulo 9, “ A histó ria entre geografia e sociologia ” , foi pu- Indice de autores citados
blicado em Actes de la recherche en sciences sociales, 35, novembro 1980,
p.27-36.
O capítulo 10, “ Filosofia e história” , foi publicado em Philoso-
phie et histoire, Paris, Editions du Centre Georges Pompidou , 1987,
p. l 15-135.
O capítulo 11, “ Bibliografia e histó ria cultural ” , foi publicado
como pref ácio à tradu ção francesa do livro de D. F. McKenzie, La
Bibliographie et la sociologie des textes, Paris, Editions du Cercle da la
Librairie , 1991, p.7-18.
O capítulo 12, “ História e literatura ” , é um ensaio in édito.

Althusser, Louis, 59, 188 Canguilhem , Georges, 45, 186, 189


Anderson , Benedict, 15 Cantimori , Delio, 23
Angeville , Adolphe d \ 204 Carpentier, Alejo, 113, 114
Appleby, Joyce, 16 Carrard , Philippe, 88
Artaud , Antonin , 185 Cavaill ès, Jean , 186, 187
Certeau , Michel de, 7, 14 , 18, 52, 77 ,
Bachelard , Gaston, 45, 186 85, 87, 99 , 100-102, 119, 120, 133,
Baker, Keith Michael , 89 147, 149, 151-154, 156-161, 173
Bakhtin , Mikhail , 50 Chaunu , Pierre, 37, 38, 228
Baroja , Julio Caro, 99 Comte, Auguste, 187
Barthes, Roland , 115, 159 Condorcet, Marie-Jean-Antoine ,
Bataille , Georges, 185, 186, 189 Marquès de, 271
Bell-Villada , Gene , 113 Contreras, Jaime , 85
Bergson , Henri , 187 Cortazar, Julio, 113, 114
Berr, Henri, 8, 26
Bigot de Morogues, Pierre, 205 Darn ton , Robert, 24
Blanchard , Raoul , 209-212, 214 , 221 Delaruelle, L., 26
Blanchot, Maurice, 185, 186, 189 Demangeon , Albert, 209-212, 214,
Bloch , Marc , 26, 33, 39 218, 224
Blondel , Charles, 35 Diderot , Denis, 176
Bourdieu , Pierre, 41, 91, 95, 177, 257 Dolet, Etienne , 266, 267
Braudel, Fernand , 66, 86, 98, 129 Donoso, José, 113
Breton , André , 185 Dreyfus, Hubert, 192, 197
Burckhardt, Jakob , 29
‘Yi '
274
275
Droz, Edouard, 26 Hansen , Joã o, 257 Malesherbes, Chré tien-Guillaume Ronsard , Pierre de, 265
Dupin , Barão Charles, 204, 205, 207 Harlan, David , 81, 105, 106 de Lamoignon de , 271 Rorty, Richard , 12
Dupront , Alphonse , 36, 42 , 139, 140 Hegel , Georg Wilhelm Friedrich , Malte-Brun , Conrad , 204
Durkheim , Emile, 73, 94, 169, 201 227-230 Mandrou , Robert, 35 Sartre, Jean -Paul , 187
Herbin , P. E., 203, 207 Marin , Louis, 13, 18, 95, 119, 120, Schorske, Cari, 56, 57
Ehrard , Jean , 24, 41 Higham , John , 48 163-179 Shakespeare , William , 76, 179
Elias, Norbert, 10, 11, 78, 92-94, 172, Hobsbawm , Eric, 15 Mauss, Marcel , 73, 94, 169 Simiand , Fran çois, 212, 214, 215,
232, 233 Hoggart, Richard , 53 McKenzie, D. F., 13, 169, 243, 244, 217
Elster, Jon , 226 Hunt , Lynn , 16 246-252, 254, 256 Sion , Jules, 209-212, 214
Husserl , Edmund , 187
Meyerson , Ignace, 36 Sorre , Maximilien , 212, 214-216
Farge , Arlette , 9, 191 Michelet, Jules, 8, 98 Spengler, Oswald , 223
Favre, Pierre, 152 Jacob, Margaret, 16 Miller, Perry, 23 Spiegel , Gabrielle, 90, 105, 110
Febvre, Lucien , 26-36, 39-41 , 45, Jacoby, Russell, 110 Milton , John , 270 Surin , Jean-Joseph , 152
203, 207, 215-217, 221-224 Jaime I , Rei da Inglaterra, 179 Moli è re, Jean-Baptiste Poquelin ,
Fish , Stanley, 70, 258 Jakobson , Roman, 109 dito, 256, 267, 268 Tocqueville, Alexis de, 137
Florence , Maurice , 194 Julia , Dominique, 153 Momigliano, Arnaldo, 110 Toews, John , 88
Foucault, Michel, 7, 18, 58, 67, 78,
Toynbee, Arnold , 223
83, 119, 120, 123-132, 134-136, Kant , Emmanuel , 140-143
Nelson , William , 262, 263 Trombadori, D ., 185, 189
138-150, 156, 174, 181-192, 196 , Karady, Victor, 218-219 Nietzsche , Friedrich , 108, 126, 127, Trovato, Paolo, 264
197, 228, 230-233, 240 Kellner, Hans, 106 188, 189
Franklin , Benjamin , 270, 271 Klossowski , Pierre, 185 Nora , Pierre, 102, 154 Vallaux , Camille, 209, 212
Freud , Sigmund , 108-110 Koselleck , Reinhart , 87
Vargas Llosa, Mario, 113, 114
Furetiè re, Antoine, 74 , 165, 166, 267 Koyré , Alexandre, 45, 46, 186 Panofsky, Erwin , 29, 30, 32, 33, 41 Venturi, Franco, 42
Kuhn , Thomas, 57
Pascal , Blaise , 41 , 166, 170-172 Vernant, Jean-Pierre, 36
Gaskell , Philip , 270
Pasquier, Etienne, 265 Veyne , 58, 101, 102, 148, 154, 155,
Gauchet, Marcel , 90 Labrousse, Ernest, 38, 129, 228
Pellisson , Paul, 174, 175 159, 231, 235
Geertz, Clifford , 59 La Bruyère, Jean de, 171 , 178 Pé trucci, Armando, 13 Vidal de La Blache, Paul , 201, 208,
Geremek , Bronislaw, 95 Lacan , Jacques, 188 Pocock , John, 106 215, 221
Gilbert , Felix , 51 Laqueur, Thomas, 96 Poincaré, Henri , 187 Vidal-Naquet, Pierre , 98, 114
Gilson , Etienne, 28, 29 Le Goff , Jacques, 35, 102, 154
Poussin , Nicolas, 163, 164 Villeneuve-Bargemont, Jean-Paul,
Ginzburg, Carlo, 44 , 50, 82, 95, 99, Leiris, Michel , 185
205
110, 241 Levi, Giovanni , 84
Rabelais, Fran çois, 31
Goldmann , Lucien , 40, 41, 43, 46, 145 Lévi-Strauss, Claude, 188
Rabinow, Paul , 192, 197 Wallon , Henri , 35
Gombrich , E. H., 57 Levine, Lawrence W., 76
Racine, Jean , 41 Weber, Max, 94, 177
Grafton , Anthony, 99 Lévy-Bruhl, Lucien , 28, 30, 31 Ranciè re, Jacques, 8, 85 White, Hayden , 15, 57, 87, 97, 101-
Greenblatt, Stephen , 91 Lovejoy, Arthur, 23 Ranke, Leopold von , 227 106, 108-115, 158
Gu é roult, Martial , 226 Luk á cs, Gyõ rgy, 40
Ratzel , Friedrich , 212, 219
Guerry, André-Michel , 206, 207 Revel , Jacques, 153 Zumthor, Paul , 261
Maggiolo, Louis, 207 Ricoeur, Paul , 14-17, 85, 86, 157,
Halbwachs, Maurice , 94, 212 Maine de Biran , Marie Fran çois, 187
234 , 237, 258

276
277
Esta sua obra À beira da falésia:
n hist ória entre certezas
e inquietude, que ora se publica
no Brasil pela Editora
da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul , é bem
uma mostra de sua trajetória
intelectual, a evidenciar
sua posiçã o de vanguarda , %
de uma continuada renovaçã o
nas maneiras de 1er e fazer
a História . Reunindo vá rios
textos, podemos acompanhar
o autor na sua discussão frente
às incertezas que povoam
o terreno da Histó ria, mas
justamente para mostrar que,
nesta era da d úvida , o saldo
é positivo. Ë bem prova disso
a combinação, erudita e ousada ,
da escrita de Chartier, nestes
textos aqui reunidos,
que discutem a História
de seu tempo.

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Fotolitos
nã o é apenas obrigatório,
Cathedral Oi ital é também um prazer...
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Rua I .u / ituna . 45A Porto Alegre. RS
Fone/ Fax (51 ) 3343-4141
SANDRA JATAHY PESAVENTO
/ iuptrssão Historiadora .
Editora Evangral Professora Titular na Universidade
. -
Rua Waldoiniro Schapke 77 Porto Alegre RS . Federal do Rio Grande do Sul
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Fone ( 51 ) 33364) 422 e 3336 2466
QUANDO OS historiadores sã o levados a um questiona -
mento radical de suas certezas, alguns deles encontram ref úgio
em um retomo à erudiçã o e ao arquivo, outros ficam tentados a
renunciar à dimensão de conhecimento inscrita no bojo de sua
disciplina .
ROGER CHARTIER, diretor de estudos na École des Houles
É tudes en Sciences Sociales - EHESS, conhecido por seus trabalhos
de história cultural, jamais deixou de se interrogar sobre o esta -
tuto do discurso histó rico. Entre ciência e ficção, a história cami-
nha i? beira da falésia .Segundo que critérios pode ser considerada
uma reconstrução v á lida da realidade passada, quando se sabe
que o respeito às regras tradicionais nã o é mais uma garantia
suficiente? Convencido de que a famosa "crise" da história cons-
titui nã o um impasse, mas um apelo premente à refundação,
Roger Chartier esclarece, num diá logo constante com as outras
ciências humanas e através de sua releitura das obras de Michel
de Certeau , Michel Foucault ou Louis Marin, a intençã o de ver-
dade que atra vessa o discurso dos historiadores.

No MOMENTO em que a compreensão do passado é vista


como menos necessá ria e que o presente parece se bastar, a his-
tó ria deve reencontrar seu vigor de disciplina critica abrindo-se a
novas questõese forjando novos instrumentos de compreensão.

S Edftora
da Universidade
UrairwWE t+dtm t
*3 Gwm do SJ

ISBN 05 / 025 623 X

HH 5 7 0 25o2

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