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PUC-RS – PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

Lucas Elias Rodrigues de Almeida

A PAZ A PARTIR DE QOELET: MAIS VALE SABEDORIA DO QUE ARMAS


(Ecl 9,13-18)

Pesquisa realizada à disciplina de


Exegese do Antigo Testamento IV para
obtenção de nota parcial.

Prof: Rafael Santamaria Santamaria.

NOV – 2008
2

INTRODUÇÃO

A busca pela paz consiste em um dos anseios do ser humano. Kant vai dizer que
a paz é uma exigência moral. Contudo, para que a paz possa armar a sua tenda entre
nós, é preciso que ela não esteja vinculada com a guerra, ou seja, de forma alguma se
pode conceber que a busca da paz seja através de guerra. Nesse sentido, o
pensamento de Qoélet: “mais vale sabedoria do que armas”, parece ser de grande
proveito. É o que pretendemos desenvolver nas páginas posteriores, ressaltando a
sabedoria em Israel, a sabedoria no exílio e no pós-exílio, a contribuição de Qoélet a
respeito da paz e, por fim, a contribuição de Qoélet para a atualidade.
3

1. SABEDORIA EM ISRAEL.

Os sapienciais caracterizam-se pela experiência de vida que os ditados contêm.


O sábio Qoélet, conhecido também por Eclesiastes, recolhe muitas sentenças no meio
do seu povo, por volta do ano 250 a.C. A reflexão de Qoélet está fundamentada na
experiência e na observação da vida cotidiana. O seu livro consiste num protesto.
A sabedoria é uma forma especial de conhecimento que se adquire ao longo da
vida, nas experiências cotidianas. É ainda, a capacidade do ser humano em viver cada
momento da vida de forma intensa e descobrir nas pequenas coisas o sentido para a
vida. Na Antigüidade, quem detinha o saber consistia na

pessoa que possuía mestria, habilidade em qualquer área da atividade humana. Em


todo o Oriente Médio antigo, a raiz hkm, como adjetivo ou substantivo, designava a
pessoa experiente em qualquer coisa, da magia aos trabalhos manuais ou de alta
especulação1

No início da formação do povo de Israel, a sabedoria nasceu da experiência e da


vida das pessoas, dos encontros, da maneira com que o povo se organizava, a fim de
ter alguns princípios que ajudassem na vivência. Assim, o conhecimento é transmitido
de geração em geração como podemos observar no livro dos Provérbios: “Conserva
minhas palavras no teu coração, guarda os meus preceitos e viverás” (Pr 4,1-4).

1.1. A sabedoria no exílio e no pós-exílio

A monarquia e o sofrimento do povo estão juntos. As guerras contra a Babilônia,


o exílio (597-838 a.C), a chegada dos persas e a teocracia agravam a situação do povo,
pois “da cidade sobem os gemidos dos moribundos e, suspirando, os feridos pedem
socorro; e Deus não ouve a sua súplica (Jó 24,12).

A época da monarquia israelita, que abrange cerca de quatro séculos, pode ser muito
bem visualizada, mas cobre a época exílica e pós-exílica as informações históricas
são bem menos freqüentes. A conquista definitiva de Jerusalém por Nabucodonosor

1
LINDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. p. 29.
4

em 587/6 a.C. destruiu logo de forma tríplice os fundamentos visíveis da fé em Javé:


o templo, a dinastia de Davi e a propriedade da terra.2

É importante notar que no pós-exílio surgem distintas formas de compreender a


sabedoria. Uns ressaltavam a sabedoria como um mistério ligado à criação: “Javé me
criou” (Pr 8,22). Não se tratava de uma sabedoria que brotava da vida, do cotidiano,
mas de um mistério que existe antes de tudo. Assim, a sabedoria torna-se revelação. O
ser humano somente deve acolhe-la como dom de Deus.
No pós-exílio existe uma tendência a analisar a Lei como verdadeira fonte de
sabedoria, isto é, quem vive a Lei obtém a sabedoria. Contudo, existe outra maneira de
compreensão da sabedoria. O povo, num contexto de opressão, cultivava na sabedoria
popular uma forma de defender os seus projetos e sonhos.
Após esta breve explanação sobre a sabedoria no exílio e no pós-exílio,
começaremos a entrar mais precisamente no livro de Eclesiastes, abordando,
primeiramente, a chegada de Alexandre Magno, em 333 a.C. É a partir daqui que
entenderemos com maior precisão o tema proposto.
Com a chegada de Alexandre dá-se início a uma expansão do helenismo, isto é,
uma presença das formas de pensar e de viver da cultura grega. A alta sociedade de
Jerusalém toma parte aos novos costumes e à sabedoria oficial, que beneficia os
interesses das classes dominantes e despreza os menos favorecidos. É nesse
contexto, então, que surge a posição de Coélet frente a esta realidade: o sábio procura
apontar que a maneira de agir dos gregos está equivocada. Para ele, as novidades
trazidas pelos gregos, como por exemplo, a cultura, educação, escravidão, não estão a
serviço da vida da grande maioria das pessoas, principalmente os mais pobres, muito
pelo contrário, está a serviço de um pequeno grupo, que detém o poder. Coélet chega a
ponto de zombar da sabedoria oficial, dizendo: “pois o abrigo da sabedoria é como o
abrigo do dinheiro, e a vantagem do conhecimento é que a sabedoria faz viver os que a
possuem” (Ecl 7,13).

2. “MAIS VALE A SABEDORIA DO QUE ARMAS”.


2
SCHIMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. p. 421.
5

A experiência da sabedoria ajuda o ser humano a pautar a sua vida sobre o


alicerce de uma ética consistente, isto é, ajuda a dar direções para a vida, para que o
ser humano não caia em erros. Pois bem, um aspecto da sabedoria que gostaríamos
de ressaltar é a paz. O profeta Baruc exorta-nos a procurar a sabedoria para perceber
onde está a paz: “Aprende, pois, onde está a prudência, onde a força e a inteligência,
para conheceres ao mesmo tempo onde se encontra a longevidade e a vida, a luz dos
olhos e a paz” (Br 3,14).
A paz na Sagrada Escritura, principalmente no Antigo Testamento, aparece
como shalom, quase sempre relacionado ao aspecto da justiça 3. Segundo Mckenzie,
shalom “significa em geral completação, perfeição, talvez mais precisamente, uma
condição à qual não falta nada”,4 por isso, vinculado à justiça. “A paz não consiste em
mera prosperidade e bem-estar; um componente essencial da paz é a justiça, e onde
não há justiça não há paz verdadeira”5. Schillebeeckx, ainda que em outra perspectiva,
falando a respeito da mística, diz que a mística verdadeira não é aquela que está fora
do mundo, desvinculada da realidade concreta da vida, mas aquela que se compromete
com a vida. É aproximação e não fuga 6. Assim é a paz. Ela passa pelo crivo da justiça,
do comprometimento com a vida. Mais tarde Jesus dirá que veio trazer a espada e não
a paz, isto é, uma paz tranqüila não pode ser paz verdadeira.
Se existem guerras é porque falta algo para alguém ou para um povo. É a luta
pela terra, por um território, pelo alimento, enfim, são várias as causas da guerra.
Podemos perceber, então que há uma injustiça e esta injustiça faz com que as pessoas
entrem em conflitos: A guerra é fruto da injustiça. Por isso, quando há justiça também
há paz: A paz é fruto da justiça. Porém, este trabalho não parece muito fácil. Há muita
reflexão sobre a problemática da guerra; muitos intelectuais pensam sobre isso. Qoelet
questiona se muita reflexão também não seria vaidade. É o que ele vai dizer em 9,13-
18.

3
Shalom aparece na Sagrada Escritura “29 vezes em Isaías, 31 em Jeremias, 27 nos Salmos”. Ao
tratarmos, aqui, da palavra Shalom, referimo-nos principalmente ao aspecto ético social, “porque a paz
está ligada ao compromisso do homem e à luta incessante, necessária para realizá-la no âmbito da
sociedade (Is 2,2-5). MATTAI, G. Paz e pacifismo: In: DICIONÁRIO DE TEOLOGIA MORAL, p. 922.
4
MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, p 704.
5
__________________. Dicionário Bíblico, p 704.
6
SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana Revelação de Deus. p. 102.
6

Também vi essa sabedoria debaixo do sol, e ela me parece importante:


Havia uma cidade pequena com poucos habitantes. Um grande rei veio contra ela,
cercou-a e levantou contra ela obras de assédio. Nela encontrou um homem pobre e
sábio, que salvou a cidade com sua sabedoria, mas ninguém se lembrou desse
homem pobre. E eu digo:
Mais vale a sabedoria do que a força, mas a sabedoria do pobre é desprezada e
ninguém dá ouvidos às suas palavras.
Palavras calmas de sábios são mais ouvidas do que gritos de quem comanda
insensatos. Mais vale sabedoria do que armas, mas um só pecador anula muita coisa
boa.

Qoelet, com esta história, diz que a sabedoria é importante. Este sábio ensina
com base na vida. Não é reflexão abstrata, fora da realidade. Por isso ele afirma: “vi
essa sabedoria debaixo do sol”. “Vi” em hebraico, nesse sentido em que está na frase a
cima, não significa ver com os olhos, mas sim, de constatar, observar, conhecer. É uma
ação que ultrapassa o sentido material de enxergar. Assim, o sábio vê que uma
pequena cidade foi salva de uma invasão por um sábio pobre. Com isso, o autor do
texto bíblico quer salientar o poder da sabedoria acentuando o contraste entre uma
pequena cidade, mas com uma grande população e um rei junto com seus soldados
prestes a invadi-la. Quando tudo parece perdido, um homem pobre salva a cidade, mas
pela condição de pobreza do homem, este é esquecido.
Conforme a configuração grega de pensar, o pobre não tem existência social,
isto é, não é cidadão da polis, é “não-pessoa”. No pós-exílio, em 538 a.C, a pobreza
também é considerada castigo divino à pessoa que não cumpre a Lei. Para Qoelet a
sabedoria pertence ao homem pobre e a força, às pessoas que não conseguem
enfrentar o rei com seu exército. Na verdade, quando Qoelet diz que “mais vale a
sabedoria do que armas”, está fazendo um protesto contra as pessoas que pautam sua
confiança nos poderosos e nas armas e não na paz e na justiça.
Naquele tempo, como hoje, a palavra dos pobres não é ouvida, mas “quando o
rico fala, todos se calam e elevam até às nuvens a sua palavra” (Eclo 13,23). Porém, no
capítulo quarto Qoelet tenta mostrar que a riqueza não garante a honra: “Mais vale um
jovem pobre sábio do que um rei velho e insensato que não aceita mais conselho” (Ecl
4,13).
7

A sabedoria é um saber que brota da vida e se preocupa em transmitir a arte de


viver. A sabedoria não consegue, contudo, resolver todos os problemas, mas aponta
novos caminhos. Qoélet diz: “Palavras calmas de um sábio são mais ouvidas do que
gritos de quem comanda insensatos” (Ecl 9,17). Gritar é sintoma de quem não tem
argumentos consistentes, dos insensatos. O uso da força, da guerra, da violência,
caminha nessa perspectiva.
A sabedoria está a cima do uso de armas, de guerras. Trata-se de uma crítica ao
poder bélico dos gregos e contra as guerras. Porém, o sábio lembra que a sabedoria
pode fracassar quando mal usada pelo ser humano. Quando a sabedoria é usada para
construir a paz entre os seres humanos, então ela é boa, do contrário, não. Qoélet
ensina-nos a usar a “sabedoria com sabedoria”.

3. PAZ E SABEDORIA: ATUALIDADE DE QOÉLET.

O mundo de hoje caracteriza-se por uma gama de conhecimentos que, em


princípio, deveria visar o bem-estar social dos habitantes desta terra. Contudo, nem
sempre este conhecimento é usado para construir, mas sim para destruir. Não tem
como meta a paz, mas a guerra. Assim, estamos diante da cultura da guerra, tendo
como suporte a sabedoria, e não da cultura da paz. “O objetivo de ‘construir a paz’ é,
(...), uma forma de impedir, no cotidiano, os efeitos perversos de todo o tipo de
exclusão e discriminação”7.
Consideramos Santos Dumond o inventor do avião. Em si, a idéia era boa. A
invenção poderia ser usada para ajudar muitas pessoas, para fazer o bem em um curto
espaço de tempo. Mas, logo Dumond viu sua invenção a serviço da guerra. Com este
exemplo podemos perceber a facilidade do ser humano em colocar a sabedoria a
serviço da guerra e não a serviço da paz. Quando o sábio Qoélet diz que mais vale a
sabedoria do que armas, está vinculando a sabedoria à paz. Dessa forma podemos
dizer com clareza que a sabedoria vinculada à guerra, ou às armas, como diz o texto de
Eclesiastes, é uma deturpação, um mau emprego da sabedoria. Arriscamos dizer que a
sabedoria é sinônimo da paz.
7
RIVIÈRE, Françoise; FERRY, Luc. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura. p. 20.
8

Percebemos também, que a sabedoria, muitas vezes está a serviço do poder,


mas não de um poder que aponta para o bem. O que dizer dos Estados Unidos em
território iraquiano? Sua economia gira em torno da indústria bélica. Querem a todo
custo dominar o mundo e trazer a paz valendo-se das guerras. Quem perde com isso
tudo sempre são os mais pobres e desfavorecidos: os “não-pessoa” que vivem nos
países em conflito.
Diante desta problemática da busca pela paz, temos sempre que nos reportar à
Sagrada Escritura, pois aí está a resposta, ou pelo menos, a indicação do caminho que
devemos seguir: “mais vale sabedoria do que armas.

CONCLUSÃO

A busca pela paz não deixa de ser busca pela justiça, que implica em um mundo
melhor, onde todos tenham suas necessidades supridas. Só haverá paz verdadeira
quando houver justiça verdadeira, onde não haja uns mais iguais que os outros. A
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causa de conflitos é justamente esta: o que falta a um superabunda em outro. No


Antigo Testamento o sentido hebraico de Shalom consiste em não faltar nada, e isto é
justiça. Se há guerras no mundo de hoje necessariamente é porque falta justiça.
Somente quando todos entendermos que “o fruto da justiça será a paz” (Is 32,17) é que
teremos um mundo mais fraterno e menos individualista. Pois, “quando se fala de paz,
fala-se sempre da nossa e nunca da paz dos outros; aliás, estes acabam suportando as
guerras que dão respaldo à nossa paz”8.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

DICIONÁRIO DE TEOLOGIA MORAL. São Paulo: Paulus, 1997.

LINDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Col. Bíblica nº 25. São Paulo:
Loyola, 1999.

MACKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984.

SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana Revelação de Deus. Col. Teologia


Sistemática. São Paulo: Paulus, 1994.

SCHIMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

8
UMBERTO, Eco. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. In:
Definições a propósito da paz e da guerra. p. 40.
10

V.V.A.A. ONU – PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Imaginar a paz. São


Paulo: Paulus, 2006.

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