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Leg]

FÉ E REALIDADE JOÃO BATISTA LIBANIO, SJ


1. O mistério de Deus em nossa vida, Mário de F. Miranda, (esg.)
2. Argumento moral e aborto, Márcio F. dos Anjos, (esg.)
3. Teologia da libertação: política ou profetismo?, A. G. Rúbio, 2º ed.
4. Conhecimento de Deus e evangelização, J. A. R. de Gopegui ABLIOTECA CAFARNAUM
5. Sinais dos tempos, C. Boff Pe. Antonio José E Soares
6. Jesus Cristo: história e interpretação, Carlos Palácio Nº À
7. O leigo cristão no mundo e na Igreja, Enio J. C. Brito, (esg.)
8. Libertados para a práxis da justiça, Mário de F. Miranda, 2º ed.
9. O Reino e a história, Félix A. Pastor, (esg.)
10. Cristianismo e história, C. Palácio e outros
11. Semântica do mistério, Félix A. Pastor
12. Umbanda 1, Valdeli C. da Costa o "
13. Umbanda II, Valdeli C. da Costa T ] d R
14. Os pobres e o Reino, Álvaro Barreiro, (esg.) eo 0g1a | eve aÇAO |

TAPA SAIA, partir da modernidade


15. A idéia de Estado na doutrina ético-política de Sto. Agostinho,

17. Fé e política, J. B. Libanio, (esg.)


18. Candomblé e salvação, Franziska C. Rehbein, (esg.)
19. CEBs e inculturação da fé, M. de C. Azevedo, (esg.)
20. O Reino de Deus e os pobres, Inácio Neutzling
21. O Mistério Santo, Luciano C. Lavall
22. Teologia da libertação. Roteiro didático, J. B. Libânio
23. Fé na vida (A), Faustino L. C. Teixeira
24. O Deus da revelação, Vítor G. Feller
25. Teologia dos ministérios não-ordenados na AL, A. J. de Almeida
26. Utopia e esperança cristã, J. B. Libânio (esg.)
27. A lógica do inefável, Félix A. Pastor
28. Em tudo amar e servir, Maria Clara L. Bingemer
29. Fé e eficácia, Paulo Fernando C. de Andrade
30. Só Deus é grande, Alexandre H. Otten
31. Teologia da revelação a partir da modernidade, J. B. Libânio, 4º ed.
32. Servir a Cristo na comunidade, Geraldo Hackmann |
33. Este cristianismo inquieto, Afonso Murad |
34. “Justo Sofredor” — interpretação do caminho de Jesus,
O. P. Scherer
35. Bíblia e a ética, René Bucks
36. Uma opção renovadora, Mº Carmelita Freitas
Í Edições Loyola
Capítulo Segundo

PRIMEIRA
TENTATIVA
DE RESPOSTA:
A APOLOGÉTICA

“A verdade do testemunho é, definitivamente,


o único sinal de presença da mensagem de sal-

B.-D. Dupuy
1. Introdução

“Fora da razão, não há salvação”, eis o dogma máximo da


modernidade! A razão ocupa-lhe o proscênio. A teologia, em defesa
da revelação cristã, vê-se obrigada a defrontar-se
Justificativa com tal situação e elabora lentamente um método
racional da fé | de resposta. Assume, como ponto de partida, a pró-
pria pergunta da modernidade, a autonomia da ra-
zão, construindo uma teologia fundamental.

2. Consideração histórica D

A perspectiva de uma justificação racionalda revelaçãoé tão


antiga quanto a própria revelação neotestamentária e preocupará a
Tgreja ao longo de sua história, com matizes diferentes, conforme as
diversas épocas culturais. Desde um Lucas, que se preocupou em
oferecer a Teófilo uma “exposição ordenada para que ele conhecesse
a solidez daqueles ensinamentos que recebera” (Lc 1,4) até um
Teilhard de Chardin, que buscou apresentar uma visão cristã compa-
tível e acessível à mentalidade científica evolucionista moderna, os
apologetas e ham-se em mostrar a revelação como algo solida-
— o INNapa renas Teo AO AA RANA
7 ones
mente fundadoe portanto à altura das exigências da “razão crítica”
de todos os tempos.
Na Antiguidade e na Patrística, as apologias assu-
Antiguidade e
miam a defesa do cristianismo, seja diante do pa-
Patrística
ganismo!, seja diante do judaísmo?. Resumindo esta

1. Carta a Diogneto: séc. II; Atenágoras, Legatio pro christianis, ca. a. 177;
Quadrato, Apologia, ca. a. 124; Justino, Apologia, ca. a. 150-155; Tertuliano,
Apologeticum ca. a. 197.
2. Epistola de Barnabé, ca. a. 96-98; S. Justino, Diálogo com Trifão, o judeu, |
ca. a. 150-155; Tertuliano, Adv. Judaeos, ca. a. 200-206; id., Adversus Marcionem
ca. a. 207-8; Sto. Irineu, Adv. Haereses ca. a. 140-202; Orígenes, Contra Celsum
ca. a. 248; Eusébio de Cesaréia, Praeparatio evangelica ca. a. 315-320.

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preocupação da patrística, Sto. Agostinho formul
a de modo lapidar nas três partes: demonstratio religiosa, christiana et catholica. Entre-
tanto ainda não se processara a ruptura entre fato e conteúdo da re-
|
Í!
o papel da inteligência na fé:
velação. Pois à luz da fé se adere à revelação, fato e conteúdo.
Entende para que creias e
“Tntellige ut credas, crede ut intelligas”. 2. A verdadeira teologia fundamental tradicional, em
urgimento da
crê para que entendas. geral conhecida sob o nome de apologética, nasce.
apologética na
da atividade intelec- Idade Moderna no início da modernidade. Não se deve a um tra-
Reivindica assim a legitimidade e utilidade balho teórico de gabinete, mas é resultado de uma
estud os profa nos, seja do exer-
tual a serviço da fé, seja através dos exigência histórica contra os adversários
da fé católica. À confecção
cício dialético. dessa apologética passou por várias etapas”.
paganismo, as disputas
Na Idade Média, com o declínio do Num primeiro momento, defrontou-se com a/reforma,
-as. heresias dentr o do próprio seio à.
apologéticas se voltam c A teologia luterana acentua os/aspectos súbjetivos/ “sola fide”,
- Igreja?. Não falta m, porém , obras que se en.
ainda forte no mun- “sola gratia” e “sola Scriptura” — só com a fé, só conf a graça e só
Idade Média: Summa frentam com o judaí smo,
o =—— com a Escritura — para a justificação e salva-
contra Gentiles do ocidental europeu, especialmente com ção. Insiste no papel do Espírito Santo. No
Resposta à Refor-
pensador judeu Maimônides (11204). Sto.
ma Protestante momento em que pela força da graça, da fé, se
escreve a clássica obra Summa contra Gentiles, quando o
Tomás e contra a adere ao conteúdo da Revelação, se tem a certe-
a invasão moura
cristianismo devia premunir-se contra za de sua origem divina. | Íj
interpretação panteísta de Aristóteles”.
muito o e / A Igreja católica/ por sua vez, vai acentuar os/fatores objetivos/ Por
A Summa contra Gentiles supera certamente de isso procura insistir na apresentação normativa do objetoda fé por
o de Raimundo de Penafort,
Thanual missionário. Foi composto a pedid os de armas
parte da Igreja e mostrar a possibilidade de uma justificativa racional
equipar os missionári
conforme uma longa tradição, para do fato da revelação. Introduz-se a distinção entre o fato e conteúdo da
ameaça da presença dos se —
intelectuais necessárias, diante da no po. :
revelação. O primeiro cai sob a presa da demonstração.
Nisso distan-
a Gentiles e.
na Espanha”. De fato, a Summa contr Sua amos à
cia-se da tradição patrística e medieval, em que se ensinava poder
andad e diant e do Islã:
de uma dupla preocupação da crist pi
aderir ao fato e conteúdo da revelação em força da luz da fé.
Espanha, e sua ameace
militar Com à presença geográfica na ã
muito rica. A entrada de e. que A apologética dessa época centrava-se na problemática da Reve-
ral, por meio de uma civilização rso. lação, mas com atenção especialmente à questão da Igreja, já que ela
visao do unive
graças ao Islã, abre aos cristãos nova
i de -“erra ntes” " que sãoão e examinados — estava no centro da polêmica entre católicos e reformados. A Igreja
Sto. Tomásás éé toda uma série
—, com a intenção de defendero católica era apresentada como a única Igreja verdadeira em meio às
pagãos, muçulmanos, judeus, hereges diversas confissões e denominações cristãs: Contudo notava-se já o
intei ro do pensamento crististãão, dianti e da concepç epção científica
corpo intei nte. A .— Ssdog abandono mais ou menos refletido das crenças cristãs e a recusa da
ada ao Ocide
greco-árabe do universo, então revel m: eo e fé confessional. Lutava-se então contra o ateísmo que já se infiltrava
scritos a intit ulava
apologética, como aliás, vários manu sob h secretamente em alguns círculos e contra o que se chamará mais
infidelium — Livro
veritate catholicae fidei contra errores tarde de deísmo?.
dos infiéi s”. Encontramos assim É
verdade da fé católica contra erros lemas gpoogooa " “
- .na Idade Média sínte ses siste mátic as dos prob
apologétic:
iros inícios da atual e tradicional divisão da
7. R. Latourelle, Apologétique et fondamentale, Problêmes de nature et de
rece primeo
os nd méthode, in: Salesianum 27 (1965) n. 2, pp. 254-274; id., Nueva imagen de la
fundamental, in: R. Latourelle — G. O'Collins, Problemas y perspectivas de teo-
chen Problems in der Scholastik des
3. A. Lang, Die Entfaltung des apologetis logia fundamental, Salamanca, Sígueme, 1982 (coleção Verdad e Imagen 65) pp.
64-94 (ed. br. no prelo: São Paulo, Loyola).
s von Aquin, Múnster, 1949; M.- 8. Cl. Geffré, Un nouvel Age de la théologie, Paris, Cerf, 1972, pp. 19-21; Cl.
Mi ETEO Maua PS Werke des hl. Thoma
e de St. Thoma s d'Aquin, Paris, 1950. Geffré, L'histoire récente de la théologie fondamentale. Essai d'interprétation, in:
D. Chenu, Introduction à Vétud
Concilium (1969) n. 46, pp. 13ss; H. Bouillard, La tâche de la théologie
5. M. Grabmann, op. cit., p. 291.
fondamentale, in: Le Point Théologique, Paris, Beauchesne, 1972, n. 2, p. 12.
6. M.-D. Chenu, op. cit., pp. 247-250.

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Já nesse momento começa a esboçar-se a forma tripartida da em questão construir uma teodicéi igorosa que demonstrasse a
apologética, como nas obras: P. Charron, Des trois vérités (1514) e H. necessidade da religião e a positividade do cristianismo, tão atacada.
Grotius, De veritate religionis christianae (1627). Ela se tornará mais e aaa orleans Cla: ias
Num terceiro momento, ela se estrutura para enfrentar os deístas
tarde clássica, ao ser consagrada pela obra de Joseph Hooke, Religionis
e enciclopedistas do século XVIII. Nesse momento da Ilustração, bus-
naturalis et revelatae principia (1754). Contra os ateus, que negam |
toda religião, opõe-se uma demonstração da religião (demonstratio ca-se reduzir as verdades da fé a verdades
Resposta aos deístas puramente racionais, isto é, compreensíveis,
religiosa); contra os deístas, quese contentavam com uma religião
natural, rejeitando a mediação cristã, se busca mostrar que o cristia- demonstráveis pela evidência racional. Partia-
| nismo é a verdadeira religião (demonstratio christiana); e finalmente,
-se do dado fundamental de que o mundo é obra e criação de Deus.
contra os reformadores, demonstra-se que a Igreja católica é a única Máquina perfeita. Deus é o grande arquiteto e engenheiro. Qualquer
| e verdadeira Igreja de Cristo (demonstratio catholica).
revelação histórica ou atividade de Deus para além da criação pertur-
baria o curso do mundo e deporia contra a perfeição da criação e, em
Num segundo momento, disputou-se com os libertinos e ateus prá- última instância, contra o próprio Deus criador. Portanto, qualquer /
/
ticos do século XVII. Antes de tudo, trata-se de um movimento com- intervenção reveladora de Deus seria indigna dele. No fundo, defende-
plexo com muitas tendências no seu interior. Os libertinos apresenta- -se naturalismo,
um em que só existe o reinoda natureza. ST
vam-se como espíritos fortes, emancipados da
Não há espaço para a revelação fora de possíveis conteúdos da
Resposta aos liberti- autoridade religiosa no referente às crenças e à
nos e ateus práticos prática dos costumes. Este fenômeno do século
razão crítica. e da razão prática. O racionalismo afirma-se como
autonomia e pretensão à auto-suficiência da razão moderna. O even-
XVII na França surge especialmente entre jo-
to histórico é um caso, um sinal, um acontecer específico e único de
vens da corte e da rica burguesia, que, através de atitudes escandalo-
um Universal. No máximo, a revelação histórica pertence ao mundo
sas, zombavam dos pregadores, opunham-se a práticas da Igreja etc.
da “percepção sensitiva”, que é um degrau infantil a ser superado
Apesar de pertencer mais à história das atitudes coletivas que à das pela idade adulta do pensar maduro e autônomo (1. Kant).
idéias, ser mais conduta que sistema, assume também forma teórica.
Nisso os libertinos foram precursores imediatos dos livre-pensadores. As reações católica e protestante a essa dissolução da teologia na
Desposavam idéias céticas e epicuristas. Assumiam desde posições de filosofia insistem no caráter obscuro e indemonstrável das verdades
simples tolerância religiosa até o ateísmo. Não faltaram entre eles os
que adotaram posturas fideístas e anti-racionalistas. Instituíram eríti- racionalismo, a apologética terminou caindo prisioneira do racionalismo,
ca radical às religiões positivas, sobretudo mostrando as contradições
LE———

da Bíblia. Buscavam desfazer os argumentos positivos do cristianismo lação. Desenvolveu-se uma apologética dos sinais externos, das profe-
e das religiões, apoiando-se, quer sobre o estudo da literatura antiga, cias e milagres, para demonstrar a evidência do fato da revelação.
quer das recentes narrações de viagens. Mostravam a relatividade de Procurou-se mostrar também que a revelação cristã é verdadeira
muitas afirmações consideradas universais e absolutas pelas religiões religião e há provas convincentes do fato fundamental de Jesus Cristo
positivas. Além disso, já se alimentavam do espírito científico que os ser o enviado de Deus. Os teólogos católicos e protestantes aplicam-se
í

atingia através da influência da obra de Bacon, em oposição às ciências a definir e organizar de modo mais sistemático uma ciência apologética,
que se apoiavam na autoridade e não na razão”. distinta da dogmática e que lhe lançava os fundamentos. Este esforço
Por isso a apologética nesse momento instaura uma luta contra a prosseguirá, trilhando caminhos diferentes, ao longo de todo o século
irreligião. Já não setrata de enfrentar os reformadores dentro ainda XIX e durante a primeira metade do século XX". Os maiores adver-
da revelação cristã, mas de salvar toda e qualquer religião. Estava sários, como vimos, foram os deístas. Nesse sentido, o clássico tratado
da revelação — elementos e estrutura — se determinou pela luta contra
9. Este fenômeno predomina na França na primeira metade do século XVII. o deísmo. Desloca o problema de Deus para o da revelação.
Entre os nomes mais conhecidos citam-se: P. Gassendi, F. de la Mothe Le Vayer,
G. Naudé, J. des Barreaux, C. de Bergerac, etc. A. Adam, Le libertinage au XVII 10. H. Bouillard, La táche actuelle de la théologie fondamentale. Le Point
siêcle, in: Libertins, Encyclopaedia Universalis, Paris, 1968, IX, 990-991. théologique, 2. Institut Catholique de Paris, Paris, Beauchesne, 1922, p. 13.

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Para fazer frente a tal situação, de maneira oficial e solene, no Somente no início do século XX, aparecem os primeiros tratados
final do século XIX, a Igreja católica com o Concílio Vaticano I de apologética que tratam de justificar epistemologicamente o seu
(1869-1870) procura dar uma resposta às estatuto teórico, perante a filosofia e perante a
Resposta do Concílio dificuldades que comprometem a fé na re- Os primeiros tra- teologia dogmática, nas obras seguintes: Gardeil,
Vaticano I ao raciona- velação divina. Este Concílio trata ampla- tados críticos La crédibilité et Vapologétique (1908) e Garrigou-
lismo e tradicionalismo mente na perspectiva apologética o tema -Lagrange, De revelatione (1930)!,
da revelação. Defende a sobrenaturalidade
Assim constituída, resistiu no ensino dos seminários e faculdades
e gratuidade da ordem da revelação e da salvação de Deus. Estabe-
eclesiásticas até os albores do Concílio Vaticano II. Ela viveu numa
lece o fato, a possibilidade, a conveniência, a finalidade, a
situação de defesa contra a Reforma e contra o mundo moderno.
discernibilidade e o objeto da revelação sobrenatural. Ambos eram vistos como inimigos irreconciliáveis, de quem se devia
As teses do Concílio são resposta ao “espírito do tempo”, marca- defender e a quem se devia atacar. Esse espírito de defesa e ataque
do por dois extremos. De um lado, afirma-se a radical autonomia da terminou por identificar-se com o sentido de apologética. E quando
razão humana,
que rejeita de antemão toda possibilidade da revela- surgir o espírito irênico e ecumênico, consagrado no Concílio Vatica-
ção sobrenatural divina. Doutro lado, grassam também uma descon- no II, ela cairá em total desuso.
fiança
ud e um des
descrédito em relação ) à razão em nome do sentimento,
daexperiência subjetiva interna, da vivência, da necessidade da tra- fo
dição para o conhecimento. Nesse sentido, o Concílio afirma os dois/ À Aí 3. Estrutura do método da apologética tradicional
pólos: a possibilidade, a existência de uma revelação sobrenatural em /
contraposição à absoluta autonomia da razão e o poder da razão A finalidade principal da apologética tradicional consiste fundamen-
humana a respeito da possibilidade do conhecimento da verdade em / talmente em demonstrar a credibilidade do dogma católi-
contraste com um irracionalismo fideísta. Numa palavra, estabelece Objetivo co, a saber, que a Igreja católica é a única e verdadeira
tanto a soberania absoluta de Deus como a capacidade cognitiva do | principal Igreja, que a revelação cristã é a única e verdadeira reve-
" homem. ; i lação, que a religião é uma exigência da natureza humana.
Essa finalidade principal se alcança através de diversos objetivos :
concretos. Antes de tudo, busca-se a autojustificação da fé para aquele
que crê. Nesse sentido, responde a uma necessidade permanente da
revelação, sobretudo no papeldo Espírito Santo, que garante a cer- E fé, que Sto. Anselmo formulou lapidarmente
teza da origem divina da revelação. O Concílio vai frisar a possibi- na expressão: “Fides quaerens intellectum”.
lidade de estabelecer racionalmente o fato da revelação. Além disso, Autojustificação da fé
É a fé do cristão que necessita de uma inte-
o deísmo dos séculos XVII e XVIII pretendia criar
religião
uma uni- ligência. No caso, trata-se de demonstrar a
câmente : à base da razão, rejeitando, como indigna de Deus, qualquer racionalidade do fato da revelação, para que o conteúdo da fé não
revelação. Nega-se qualquer intervenção de Deus fora da criação e, paire no ar, sem um fato racionalmente demonstrável.
portanto, todo espaço para úuma revelação sobrenatural fora dos
possíveis conteúdos da razão crítica e da razão prática. A religião Desde seu nascimento, ela pretendeu responder as objeções dos |
está no interior do limite da razão pura. Negam-se as noções de adversários. Como vimos, ela nasceu, em grande parte, para refutar
sobrenatural, de revelação, de mistério. Este deísmo professa o mais os inimigos da fé religiosa (os ateus), da fé cristã (os deístas) e da fé
cru racionalismo, com a autonomia e pretensão auto-suficiente da católica (os protestantes). Ao contrapor-se às di-
razão. Só vale o reino da pura razão. Nesse contexto, entendem-se as Confronto com
ficuldades e ataques levantados pelos adversários,
afirmações do Concílio Vaticano I. Mas uma apologéticá posterior os adversários a apologética busca simultaneamente reforçar a
assumiu muitas de suas asserções, arrancou-as de seu ambiente fé dos católicos e converter os que estavam enga-
hermenêutico e absolutizou-as, em detrimento da sua própria verda-
de. 11. Cl. Geffré, L'histoire récente..., p. 21.

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nados e se deixavam convencer pelos seus argumentos. Julgava-se camente a aceitação de seu conteúdo. E se prova pelo conteúdo que
que muitos não eram católicos ou por ignorância ou porque engana- a Igreja católica é a unica verdadeira: término do processo ii
dos pelos adversários. Ao apresentar-se-lhes uma argumentação sé- |
ria e cerrada, eles se converteriam à fé católica. Tanto mais se espe- ' quer dúvida razoável, ainda que não possua necessariamente aquele
rava tal sucesso, quanto mais se cria que a argumentação da grau que convença independentemente da disposição
apologética era de tal evidência e clareza, que somente pessoas de má Evidência e intelectual ou moral do homem. Ainda que a funda-
vontade ou de enorme preconceito não se deixariam convencer. cientificidade | mentação científica da fé não possa basear-se na
Os construtores de tal apologética estavam convencidos de que do método experiência interna, nas consolações espirituais, que
eles realmente estavam respondendo às verdadeiras perguntas dos haurimos da fé ou esta nos provoca, contudo tais
adversários ou dos próprios fiéis, vindas do novo contexto sociocul- realidades desempenham papel importante para os casos individuais.
tural em que se vivia. Para isso, procuravam traduzir ou mesmo Este método, porém, eleva-se aoníveldo universal— fundamentação
reduzir a dificuldade do adversário a seu universo de pensamento e e obrigação do homem e não deste homem — , por isso, deve apoiar-
aí dentro desfaziam-na teoricamente com argumentos contundentes se sobretudo em sinais exteriores e constatáveis (DS 3009). Deve
de perfeita lógica escolástica. responder às possibilidades intelectuais de pessoas simples e às exi-
gências das mentes críticas. Portanto, goza de valor universal, quan-
Estes SDISUTOR impunham e decidiam já sobre a natureza do to ao destinatário.
Tal reflexão deve ser
s metodicamente científica. Não significa
Natureza racional do sível e e E a as pessoas. de iniciar-se com uma posição cartesiana de dúvida metódica de todos
método: especulativo qualquer Tugar. Ora, a única realidade co- os dados iniciais que se possuem, mas, pelo contrário, em posição
e histórico-crítico mum a todos a que podemos apelar é a.ra-. aberta diante deles, procura-se testá-los à luz da razão, para fazer
zão ana. Deve ser, portanto, um método aparecer sua demonstrabilidade, sem preconceitos, sem a prioris.
uramente racional, que não possa apelarem nada à fé, já que é esta Posição crítica não significa frieza ou indiferentismo desinteressado,
que está em « questão e que necessita ser racionalmente justificada. mas atitude científica séria, que só aceita os dados provados de modo
Evita-se assim o círculo vicioso
de apelar à fé para justificar a fé. convincente.

A racionalidade do método se construirá sobre duas funções da Antes de descer a um maior detalhamento do método, pode-se
razão moderna. Trabalhar-se-á com a lógica do raciocínio dedutivo. perguntar pelo seu pressuposto teórico fundamental. Em outras pa-
Emprega-se um método especulativo filosófico, partindo de verdades lavras, essa teologia fundamental trabalha dentro de um horizonte
demonstráveis pela razão humana. Estabelecer-se-ão premissas uni- cultural filosófico bem definido. Situa-se no
versais, evidentes, irrefutáveis. Delas deduzir-se-ão pela via do racio- Pressupostos interior da metafísica clássica. A pergunta bá-
cínio conclusões que gozarão, portanto, da mesma evidência lógica. Em teóricos: metafísico | sica que persegue a inteligência é a respeito do
x outro momento, usar-se-á a razão crítico-histórica e literária, quando e antropológico ser, como fundamento último de tudo. O ser é
| se tratar do uso das fontes da revelação. Estas serão consideradas na entendido na perspectiva aristotélico-tomista
sua qualidade de livros históricos e submetidas, por conseguinte, à crí- como inteligível, uno, bom e verdadeiro. Existe o Ser último, abso-
tica histórico-literária, que também goza da evidência em seu gênero. luto, que é fundamento de tudo. E podemos provar racionalmente a
existência de tal Ser. Aduzem-se as famosas cinco vias de Sto. To-
À O método não recorre a nenhuma fonte da revelação na sua qua- más. Além disso, predomina o horizonte cosmológico sobre o antro-
lidade de revelação, de autoridade de fé, mas simplesmente de docu- pológico. A natureza é a grande matriz de compreensão. Da natureza
mento histórico, sujeito às análises críticas da razão humana. Nem se retiram as principais categorias de intelecção. E a compreensão da
também aduz argumentos provindos da tradição e do magistério da natureza está ainda presa ao esquema ptolomaico.
Igreja. A intenção metodológica fundamental é mostrar a evidência
do. fato da revelação, apoiando-se unicamente na racionalidade filo- E quando se pensa no homem, é dentro da perspectiva de sua
isófica e histórica de sua verdade, de modo que depois se segue logi- natureza racional, de inteligência feita para a verdade e vontade

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para o bem. O homem é considerado na sua essência inalterável: as provas racionais. Este Deus, ato puro, motor imóvel, ser de si e por
animal racional. E como ser racional só pode comprometer sua exis- si mesmo, inteligência subsistente se manifestou pela criação, a “re-
tência com alguma realidade que lhe pareça razoável, racional. Deve velação natural”. Foi através dessa mani-
submeter ao juízo da razão as decisões fundamentais de sua vida. Ponto de partida: concei- | festação, que a filosofia elaborou sua “teo-
Ora a dimensão religiosa é fundamental na existência humana. Por- to a priori de revelação | Jogia natural”. Agora se pode perguntar -
tanto, só é razoável proceder nesse campo, se antes se justificar ra- se Deus pode manifestar-se de outra ma- /
cionalmente tal conduta. Este “antes” não precisa ser necessaria- neira. Se ele o fizer, tal será i uma revelação sobrenatural, livre e
mente temporal, mas lógico. Por isso o homem, chamado à fé, deve imerecida por parte do homem. Portanto, Revelação (sobrenatural) é
poder fazer um juízo certo sobre a credibilidade da revelação que lhe uma manifestação, uma fala de Deus atestando uma verdade, por
é dirigida e sobre a obrigatoriedade de crer nela. Portanto, devem- outra via além da criação. O homem acol he não por
tal verdade,
-se propor provas que possam conduzir o ouvinte à evidência de uma causa de sua evidência intrínseca, mas por causa da autoridade de
revelação que pode e deve ser crida. Sem tal evidência, a fé seria um Deus revelador".
ato infantil, irracional, puramente sentimental, em desacordo com a
Esta revelação será, portanto, sobrenatural por diversas razões.
natureza humana racional. A apologética é, por conseguinte, esta O ato livre de Deus revelar-se supera todas as forças intelectuais,
atividade da razão”. espirituais, físicas da natureza criada. Assim nada criado pela sua
A razão é a faculdade de averiguar os fatos, não os aceitando própria constituição, por suas exigências ou por via de consequência
ingenuamente, e de demonstrar-lhes a coerência. A filosofia distin- pode alcançar tal manifestação de Deus. A revelação divina, por
gue o entendimento da razão. “De um modo geral, entendimento conseguinte, não pertence a nada criado, nem de maneira constitutiva,
significa, de preferência, a atividade pensante que abstrai, compara nem exigitiva, nem decorrente. O homem só poderá ter acesso a ela
e disseca; e razão significa a atividade mental superior que tem em se Deus tomar a iniciativa de comunicar-lha.
mira a conexão e unidade definitiva do saber e do operar”"?. É, por- Uma vez esclarecido o conceito de revelação sobrenatural, per-
tanto, uma psicologia metafísica que comanda a antropologia. gunta-se se Deus pode ou não revelar-se ao homem. A possibilidade
da revelação se estabelece a partir de três ân-
Razões da possibili- Os: de Deus, do homem e do objeto revela-
4. Desenvolvimento do tratado da teologia dade da revelação o. Da parte de Deus, a revelação
é possível,
fundamental tradicional por ser Ele um ser infinito em poder, em sabe-
doria, em bondade. Da parte do homem, ele poderá captar a comu-
A tese principal de tal tratado é provar que a revelação de Deus nicação de Deus, já que é um ser inteligente, cuja inteligência é
chegou a sua plenitude em Jesus Cristo e é conservada e proposta ordenada a todo ser e capaz de apreender tudo, desde que lhe seja
pela Igreja Católica. Pela evidência de tal prova, pode-se (evidentia aptamente proposto. Da parte do objeto revelado, nada impede que
o homem aprenda o que não sabia ao tratar-se de uma verdade so-
credibilitatis) e deve-se (evidentia credenditatis) aceitar tal revela-
é a única verdadeira brenatural ou se confirme e conheça mais facilmente, se Deus lhe
ção. Por conseguinte a Igreja Católica Romana
revelar algo já manifesto pela natureza (verdade natural).
portadora da revelação de Deus. Toda a argumentação está pensada
para provar tal tese. Mais. A revelação se faz necessária da parte de Deus, se Ele
quiser que o homem tenha acesso a uma verdade sobrenatural, isto
O primeiro passo é estabelecer com clareza o conceito de revela-
ção. Não se parte de um fato, mas de uma definição abstrata, racio-
14. Ch. Pesch, Compendium Theologiae Dogmaticae. I: De Christo legato divino.
nal, lógica. A existência de Deus já vem garantida pela filosofia com
De Ecclesia Christi. De fontibus theologicis, Friburgo, 1926, p. 29: Revelatio di-
vina stricte dicta est locutio Dei, qua Deus ex iis quae cognoscit, quaedam cum
12. A Kolping, Fundamentaltheologie LI. Theorie der Glaubwirdigkeitser- hominibus communicat, ut homines ea propter auctoritatem Dei loquentis credant:
kenntnis der Offenbarung, Múuúnster 1968, p. 30. A revelação divina no sentido estrito é a fala de Deus, pela qual Deus comunica
13. J. de Vries, Razão, in: W. Brugger, Dicionário de Filosofia, São Paulo, aos homens algo daquilo que ele conhece, para que os homens creiam nisto por
Herder, 1962, pp. 442/3. causa da autoridade do Deus que fala.

40 41
é, a uma verdade que supere totalmente as possibilidades criadas. naria, ou nos enganaria. Isso seria contra a sua infinita santidade e
Para outras verdades não-sobrenaturais, como aquelas próprias de sabedoria. Deus, por sua natureza santa e sábia, só pode abonar e
uma religião natural verdadeira, a revelação pode atestar uma revelação verdadeira. Logo onde houver milagre, aí está
Necessidade tornar-se moralmente necessária para que todos os a verdadeira revelação, CONES
da revelação homens, de modo mais fácil, possam ter acesso a Ao chegar a esse ponto, a apologética já tem bom caminho anda-
elas, já que eles vivem em situação adversa à obten-
do. Já tem um critério certo para descobrir a verdadeira revelação
divina, caso Deus se tenha revelado. Toca agora percorrer todas as
revelações que se dizem divinas, para ver se nelas existe esta pedra
de toque do milagre. Tal caminho seria longo e difícil. Mas viável.
Entretanto, se existir uma revelação que se pretende única e se ela
des que ultrapassam totalmente a inteligência humana, como é a vida ostentar de maneira cientificamente irrefutável a presença do mila-
íntima de Deus, e moralmente necessária para verdades sobre Deus gre, já está resolvido o problema. Ela é a verdadeira revelação, já que
que o homem, em si, teria capacidade de conhecer, mas que nas
Deus não poderia atestá-la com o milagre, se fosse falsa. Ela é tam-
atuais conjunturas dificilmente o faria de maneira segura, fácil e
bém verdadeira no fato de dizer-se “única e verdadeira”, excluindo
universal. todas as outras. '
|
O itinerário teórico da apologética prossegue, perguntando-se
A apologética com este método aproxima-se da revelação divina
como discernir a verdadeira revelação divina entre tantas que se cristã. De fato, ela se pretende única e verdadeira. Apresenta como
pretendem verdadeiras, É a questão da sua fonte sobretudo os quatro evangelhos. São
Milagre: critério de discernibilidade da revelação divina. Deve-se, Caráter científico das livros que podem ser investigados com toda a
discernibilidade portanto, encontrar na verdadeira revelação fontes da revelação racionalidade científica, aplicando-se-lhes os
algum sinal externo, fácil de ser verificado, que
métodos de natureza crítico-histórica e críti-
indubitavelmente indique a presença de Deus. Ora, tal sinal é o
co-literária. Entrega-se, pois, a apologética a um trabalho científico
milagre. Com efeito, o milagre é uma ação que só pode ser feita por a respeito das fontes históricas da revelação cristã, perguntando-se
Deus, porque é um fato externo, visível, constatável que supera todas sobretudo se os quatro evangelhos e os atos dos apóstolos são livros
as forças da natureza. Não serviriam como critério para discernir a históricos, genuínos, autênticos e íntegros. Num primeiro momento,
verdadeira revelação sinais que fossem de natureza subjetiva, tais prova-se que o texto que hoje possuímos dos evangelhos é íntegro em
como: a inspiração interior do Espírito Santo, o gosto espiritual, a relação ao texto original, usando os critérios de crítica interna e.
consolação ou moção da graça. Nem servem aqueles que dependes- externa. Conclui-se por uma integridade substancial dos evangelhos,
sem de apreciações interpretativas tão diferentes das pessoas, como como nenhum outro livro histórico do passado.
a beleza ou excelência da doutrina revelada. Aí as opiniões divergi-
riam. Nenhuma inteligência honesta, porém, pode deixar de reconhe- Em momento ulterior, pesquisa-se a autenticidade ou genuinidade
cer a presença do Ser supremo num ato que ultrapasse absolutamen- dos evangelhos. Conclui-se que os quatro evangelhos são de Mateus,
te todas as forças da natureza, como seria ressuscitar um morto, Marcos, Lucas e João, e do tempo de Jesus Cristo, tal como eles
transformar água em vinho, restituir um órgão amputado. Numa afirmam. Para isso, recorre-se de novo à crítica interna e externa. As
palavra, o milagre pertence à mesma natureza de um ato criativo, e | testemunhas e a análise interna dos livros confirmam tal autentici-
segundo a sã filosofia, só Deus pode criar, e nenhuma criatura pode dade. Chega-se à conclusão de que as fontes da revelação cristã são
por si mesma participar desse ato, a não ser como mediadora de | autênticas, genuínas e gozam de plena fé histórica.
Deus.

Uma vez bem claro que o milagre é uma ação exclusiva de Deus, Milagre na re-
fica fácil discernir onde está a verdadeira revelação. Pois Deus não velação cristã
pode fazer um milagre, seja diretamente, seja através de uma criatu- ticidadedá revelação
e as fontes históricas da reve-
ra, para confirmar uma falsa revelação. Nesse caso, ele ou se enga- lação íntegras, genuínas, autênticas, fidedignas.
É
42 Àa 43
o critério do milagre às afirmações centrais dessas tamente orgânica (e não simplesmente funcional). Conclui-se tal parte
Falta aplicar
fontes. com a rotunda afirmação: Jesus é o verdadeiro revelador divino.
Lendo essas fontes, saltam aos olhos três afirmações centrais, Chegado a esse ponto, busca-se ver a quem J esus confiou a guar- S%
contundentes e únicas. Um homem, Jesus de Nazaré, apresenta-se da fiel e a transmissão dessa revelação. Mostra-se como ele funda
com uma tríplice pretensão de ser Messias, Filho do ' uma Igreja, escolhendo os doze apóstolos, a
Afirmação | Homem e Filho de Deus. E esta tríplice pretensão re- Jesus funda a Igreja quem transmite seu poder. Assim o colégio dos
de Jesus sume-se, ao fim e ao cabo, na função de revelador doze apóstolos, com Pedro como sua cabeça, é
divino. Está-se, portanto, diante de uma revelação que a suprema autoridade na guarda e transmissão da revelação divina.
se arroga a qualidade divina. Em outros termos, reivindica para si o Mais. Jesus quis que esta revelação atingisse todos os homens até o
atributo de única revelação verdadeira, caminho de salvação neces- final dos tempos, através dessa Igreja que fundou com doze apóstolos
sário para todos os homens de todos os tempos. e uma cabeça.

Tais afirmações brotam da simples leitura dos quatro evangelhos. Sendo revelador divino, não pôde ter-se enganado. Então deve
Nesse momento, a apologética faz uma leitura exaustiva dos evange- existir alguma Igreja que seja a sucessora dos apóstolos e de Pedro.
É
lhos que põem na boca de Jesus essas afirmações contundentes. Ora a Igreja católica apostólica romana é a única que reivindica e
a de afirmaçõ es, que são autêntica s, genuínas , que historicamente de fato é a sucessora dos doze
uma simples coletâne
fidedignas, já que se provou antes que as fontes onde elas estão A Igreja católica e da cabeça Pedro, logo ela é a única Igreja ver-
possuem essas qualidades. Conclui-se tal parte com três afirmações: éa Igreja de dadeira. Com efeito, nenhuma religião não-cris-
Jesus Cristo tã reivindica ser a transmissora da revelação de
Jesus disse que Ele é o Messias é Cristo. As igrejas cristãs, exceto a Igreja católi-
Jesus disse que Ele é o Filho do Homem ca, não querem ter a Pedro como cabeça. Ora, pertence à Igreja,
Jesus disse que Ele é o Filho de Deus. querida por Cristo, que Pedro e seus sucessores fossem a cabeça.
Numa palavra, Jesus disse que Ele é o revelador divino e que Logo, as outras Igrejas cristãs não podem ser a verdadeira Igreja de
propõe uma revelação divina necessária para a salvação de todos os Cristo. Somente na Igreja católica se encontra a condição imposta
homens e por isso mesmo obrigatória. por Cristo, para ser sua Igreja. Por conseguinte, ela é a verdadeira
greja.
Há sempre uma distância entre o dizer e ser. Jesus, em princípio,
seu
poderia, seja ter-se enganado, seja ter querido enganar-nos sobre Desse modo chegou-se ao final do trajeto da apologética clássica.
próprio ser e vocação. Cumpre mostrar que tais Abrem-se os umbrais da teologia dogmática. Doravante, basta recor-
Deus testifica a afirmações, históricas e genuínas quanto à sua rer ao ensinamento da Igreja para saber qual é o conteúdo da reve-
afirmação de Jesus | fonte, possuem a verdade intrínseca de seu con- lação, porque ela é a única, verdadeira, autêntica guardiã e
teúdo. Ora, a única garantia que se pode ter da transmissora da revelação cristã. O ensinamento da Igreja católica é
sigilo
absoluta verdade de tais afirmações é o selo divino, a marca do a garantia da verdadeira revelação. Termina a apologética e começa
de Deus. Se Deus testifica, aprova, abona uma afirmaçã o com mila-
a dogmática. Estão racionalmente provados o fato da revelação cristã
gres, esta deve ser necessariamente verdadeira. Ora, Jesus faz verda- e o fato da Igreja, como transmissora oficial dessa revelação ao longo
deiros milagres para testificar suas afirmações sobre seu ser e mis- da história e por todo o mundo.
são, logo o que ele disse de si é verdade. Deus não seria Deus se Jesus
fizesse milagres para corroborar uma falsidade, uma mentira.
Na verdade, os quatro evangelhos estão repletos de 5. Observações críticas a tal apologética
verdadeiros milagres para abonar as afirmações de
Jesus é o re-
velador divino Jesus. São fatos que superam absolutamente todas O ponto de partida é um conceito a priori, abstrato de revelação.
as forças da natureza, como ressurreições, transfor- Tal conceito é artificial e leva a uma distinção também artificial
mação de água em vinho, curas de natureza estri- entre fato e conteúdo da revelação. Não se pode evitar certo

44 45
extrinsecismo entre o juízo de credibilidade do fato e o assentimento procede e do qual se tira o material bruto que alimenta o pensamen-
de fé no conteúdo. Esta noção intelectualista de to". A apologética tem vários pressupostos passíveis de críticas.
Conceito abstrato | revelação reduz praticamente a revelação à Um desses pressupostos é de que a aceitação do fato da revelação
de revelação comunicação de verdades impossíveis de serem está no término de um processo lógico, racional, evidente. Por sua
conhecidas pelo homem e a fé à adesão a elas, vez, supõe uma antropologia em que o ho-
devido à autoridade de Deus, que não pode enganar-se e não quer Pressuposto racionalista | mem seja inteligência e vontade. De fato, o
enganar-nos. e intelectualista homem tem uma estrutura essencial. Mas
Tal conceito explica-se pelo contexto de luta contra o deísmo e. não existe um homem abstrato, e sim histó-
o tradicionalismo. Estavam em questão a sobrenaturalidade da reve- rico, dentro dum contexto sociopsicológico, diferente em cada época.
lação, de um lado, e, doutro, a capacidade da razão. Para responder Deste modo tal apologética desconhece-lhe todo o lado de experiên-
a ambos os problemas estabelece-se a verificabilidade racional do cia, de subjetividade. As condições culturais, ideológicas, psicológi-
fato e a sobrenaturalidadedo conteúdo. Além disso, paga-se tributo cas do homem influenciam-lhe a percepção sobretudo de verdades
ao sistema dualista herdado da teologia pós-tridentina e reforçado que implicam compromisso, atitude de vida, decisões existenciais.
Por isso não é um sistema de arrazoados bem travado que o levará
cada vez mais pela polêmica antideísta. Além disso, favorece-se uma
, à aceitar uma revelação que o empenha radicalmente. Com efeito, há
concepção autoritária e literalista da revelação,.como se a ordem
[| argumentos que valem para certa época e não dizem nada em outro
sobrenatural viesse sobrepor-se a uma ordem natural". A revelação
|! momento. Há na realidade enorme diferença entre argumentos racio-
tem um caráter profundamente intervencionista de Deus na história nais para crer e as motivações reais vividas pelo fiel. Há um salto no
dos homens, sem consideração da autonomia da ordem criatural e ato de fé, que não encontra na pura lógica da razão seu fundamento.
sobretudo do ser humano. A fé é um ato vital, torna-se cada vez mais uma experiência pessoal
A Constituição dogmática Dei Verbum apresenta conceito bem e cada vez menos otérmino de um processo racional. São as experi-
diferente de revelação. Focaliza o ato de Deus revelar-se a Si mesmo ências que mais aproximam ou afastam as pessoas da revelação e não
e tornar conhecido o mistério de sua vontade sobretudo na pessoa de tanto os argumentos lógicos, Os aspectos subjetivos e existenciais da
Cristo. Este plano de revelação se concretiza através de acontecimen- fé assumem hoje maior relevância. A sociologia do conhecimento tem
desenvolvido muito a reflexão sobre os condicionamentos sociais do
tos e palavras intimamente conexos entre si (Dei Verbum n. 2). A Dei
conhecimento, das decisões humanas'º.
Verbum assume a noção bíblica, que é dinâmica, parte da realidade,
evento e palavra, fato e conteúdo, numa relação profunda, interna. O Constata-se cada vez mais o fracasso da visão tradicional da
fato é conteúdo, e o conteúdo interpreta o fato. O fato da revelação revelação diante da mentalidadê moderna, por causa de seu acento
já é revelação e, portanto, objeto de fé. Só se obtém o verdadeiro no aspecto mais racional, objetivo, reificante e extrínseco da fé en-
conceito de revelação porque se conhece a realidade histórica da quanto a modernidade acentua a dimensão
revelação e não vice-versa. Desconhecimento da subjetiva, a abertura do homem ao irmão, ao
dimensão existencial| novo, a tudo o que se apresente como “huma-
Entra em questão o próprio pressuposto da no”. A justificativa da fé não se pode fazer a
Pressuposto na | apologética clássica!º. O pressuposto é algo que se partir de provas extrínsecas, de conceitos a priori, mas através de
apologética toma como estabelecido de modo não-crítico e não- uma elucidação da existência do fiel no seio da Igreja e do mundo.
— -reflexo. Faz parte de um mito a partir do qual se Há uma exigência de uma perspectiva mais antropológica”. Numa

15. H. Bouillard, La tâche actuelle de la théologie fondamentale. Le Point 17. R. Panikkar, Métathéologie ou théologie diacritique comme théologie
théologique. 2. Institut Catholique de Paris, Beauchesne, 1972, pp. 15ss. 1 fondamentale. In: Concilium 46 (1969) 40/41.
16. Distingue-se postulado de pressuposto. O postulado é algo que se admite 18. P. Berger — Th. Luckmann, A construção social da realidade. Tratado de
por uma série de razões possíveis: tradicionais, heurísticas, axiomáticas, pragmá- Sociologia do Conhecimento (col. Antropologia, 5), Petrópolis, Vozes, 1973. :
ticas, hipotéticas. É um princípio que se põe à base de um processo intelectual de 19. K. Rahner, Théologie et anthropologie, in: Théologie d'aujourdhui et de
modo explícito, mesmo que haja graus de consciência explícita. demain [Cogitatio Fidei, 23], Paris 1967, pp. 99-120.

46 47
palavra, esconde-se por detrás da posição tradicional uma visão do Esta apologética trabalha com um conceito de história, de crítica
homem, desligada de sua situação, como essência abstrata, como das fontes anterior às descobertas da história das formas, das tradi-
“razão” pura, desconhecendo a psicologia profunda, as filosofias ções e da redação. Com isso, as provas histó-
existencialistas, personalistas e vitalistas, que apresentam um ho- Desconhecimento das ricas e literárias que aduzem para demons-
mem-em-situação, histórico, ser-carente em construção dentro das ciências históricas e trar sua tese sobre o milagre, sobre as afir-
coordenadas concretas do tempo e do espaço, condicionado pelo lingúísticas modernas mações de Jesus, não se sustentam quando
ambiente cultural, social, religioso em que vive. submetidas à crítica moderna. A apologética
faz uma leitura realmente fundamentalista da. Escritura, com desco-
Além disso, tal perspectiva tradicional esquece a função | nhecimento da exegese moderna.
hermenêutica da teologia. Não há afirmação sobre Deus que não
implique afirmação sobre o homem”. A teo- | R. Bultmann distingue entre Mirakel e Wunder. O primeiro é o fato
Desconhecimento da di- logia não pode contentar-se somente em na sua exterioridade. O segundo é seu significado. O conceito de mila-
mensão hermenêutica conhecer a verdade objetiva de enunciados gre trabalhado pela apologética mostra-se problemátieo. Ele só é real-
teológicos, mas deve interpretar-lhes o sen- mente inteligível no interior da fé. Cair-se-ia, por conseguinte, num
tido para hoje. A função interpretativa da teologia alinha-se à círculo vicioso ao querer apelar para ele, a fim de provar o fato fun-
fenomenologia hermenêutica de Heidegger, segundo a qual todo co- damental da Revelação. Supor-se-ia já a fé para aceitar o milagre,
nhecimento do ser só pode ser compreendido através da elucidação enquanto na apologética é ele que dá o fundamento racional da fé. O
deste ser que se põe a questão do ser: o homem?!. mundo aparece para o homem moderno antes como obra e tarefa sua
que como teatro de ações milagrosas de Deus**. A economia dos sinais
Ao considerar-se mais detalhadamente tal apologética, percebe-
deve ser vista e articulada com a economia da salvação. Aí dentro eles
-se que sua pretensão à universalidade é ilusória. De fato, ela foi
são coerentes. A economia da salvação é maravilhosamente adaptada
elaborada dentro de um contexto sociocultural bem
a uma revelação que nos vem pela via da história e da: carne”.
Pretensão à definido, a saber, dum racionalismo agressivo. Daí
universalidade seu caráter defensivo e polêmico, e, até certo pon-
to, marcado por complexo de inferioridade. Essas
marcas históricas limitam-na e dão-lhe o perfil do tempo das contro- 6. Conclusão
=

vérsias. O homem de hoje tem rejeição a esse mundo de disputas, que


lhe sabe a intransigência, patrulhamento, fanatismo. Vive-se hoje um Durante séculos esta teologia fundamental cumpriu papel impor-
clima de diálogo, de ecumenismo, de pluralismo cultural tão distante
tante na justificação e defesa da fé católica para os seus fiéis. Não
poucos deixaram convencer-se por ela, convertendo-se à fé. Enquan-
desse “espírito de campanário”.
to os condicionamentos socioculturais conservaram certa continuida-
Em outras palavras, tal método funcionou naquele momento de com aqueles em que nasceu tal apologética, ela desempenhou com
cultural em que os jovens ainda vinham à teologia tranqúilos e po- brilhantismo sua missão. As grandes transformações por que passou
diam fortificar a fé com esse arcabouço racional. Hoje eles vêm de sobretudo o mundo centro-europeu com as duas grandes guerras e
um meio ambiente de penúria de fé. Não basta uma justificação suas terríveis consequências esvaziaram o quadro cultural em que tal
formal, como lhe apresentava a apologética tradicional. Vive-se uma apologética funcionava.
problemática muito mais complexa que exige um “verdadeiro curso Fomos levados a criar novos modelos de teologia. fundamental.
fundamental da fé” como base e resposta”, Por isso, precisamos deter-nos um momento no estudo de tais mu-
danças e modelos.
20. K. Rahner, op. cit. p. 99.
21. Cl. Geffré, L'histoire récente de la théologie fondamentale, in: Concilium
n. 46 (1969, junho) p. 22. 23. J. B. Metz, L'Eglise et le monde, in: Théologie d'aujourd'hui et de demain,
22. K. Rahner, Úber die theoretische Ausbildung kúnftiger Priester heute, in: [Cogitatio Fidei n. 23] Paris, du Cerf, 1967, pp. 141-2.
STdz 175 (1964/5,3) pp. 117-118; K. Rahner, Curso fundamental da fé, São Paulo, 24. R. Latourelle, Démembrement ou renouveau de la théologie fondamentale.
Paulinas, 1989. In: Concilium 46(1969) p. 36.

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