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resenha

QUESTÕES E INTERLOCUÇÕES
Trabalho de campo: procedimentos de
pesquisa estética e etnográfica

Cibele Saliba Rizek


Socióloga, professora PPG Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo-SC
e pesquisadora CNPq

Resenha do Seminário Apprehénder la transformation de la ville [CNPq/FAPESB,


CNRS, Roma Tre] Realizado em fevereiro de 2013, no Département de recherche
Ecole Nationale Supérieure d’Architecture de Paris la Villette
Coordenação: Alessia de Biase (ENSA Paris La Villette) e Paola Berenstein Jacques (PPG-AU/FAUFBA)
Grupos de pesquisa participantes: Laboratoire Architecture Anthropologie (LAA – Paris-França), Laboratorio
Arti Civiche (Roma – Itália), Centre de recherche sur l’espace sonore et l’environnement urbain (CRESSON –
Grenoble – França) e Laboratório Urbano – PPG-AU/FAUFBA (Salvador – Brasil)

Minha única missão no Seminário realizado em


Paris, em fevereiro de 2013, não era nada fácil. Fui
convidada e incumbida de organizar uma síntese
dos relatos, informes e proposições que tinham
tido lugar a partir do que me pareceu ser cen-
tral ao longo, de todo o período do encontro: o
estatuto do trabalho e da pesquisa de campo, no
entrecruzamento de experiências de investigação
e de ensino voltadas para as possibilidades/im-
possibilidades de apreensão e – em alguns casos
de intervenção – na cidade contemporânea, em
seus processos acelerados de transformação. Para
cumprir a tarefa que me foi atribuída fiz um pe-
queno inventário comentado dos temas, pontos

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de partida e questões colocadas em cada apre- ção – 19, rue Madeleine Vionnet, em Aubervilliers,
sentação no sentido de aproximar pesquisas e ao norte de Paris induz a esse curioso – para dizer
abordagens que tiveram por origem os diferentes o mínimo, passeio aquático. Dois apontamentos
grupos e laboratórios de pesquisa. Esse inventário apenas são suficientes para compreender o que
que buscou enfatizar as questões e interlocuções de fato parecia se passar ao longo do percurso
entre as experiências apresentadas foi a primeira pelo canal: o primeiro explicitava a natureza dos
formulação dessa resenha. empreendimentos imobiliários às margens do
fluxo de água – antigos galpões de uso provavel-
O Seminário começou com um percurso, quase
mente industrial, devidamente reconfigurados e,
um passeio, que permitiu o contato com dimen-
obviamente, à venda. O segundo era um tanto
sões mais ou menos visíveis e, ao menos para al-
mais bizarro: ao mesmo tempo que se sucediam
guns de nós, totalmente desconhecidos: os quar-
às margens do canal os edifícios reconvertidos,
teirões demolidos, grandes obras de construção
uma tela de televisão anunciava os empreendi-
que tinham a marca de processos especulativos
mentos imobiliários dando a sensação de que o
importantes, a marca da ação do mercado imobi-
Shopping ao qual no dirigíamos era pouco mais
liário e, evidentemente, dos poderes e instituições
do que um chamariz, um grande dispositivo espa-
que regulam o uso do solo urbano. Em meio a um
cial de propaganda do que realmente parecia ser
canteiro de obras pelos quarteirões arrasados do
importante vender: um pedaço da cidade e seus
norte de Paris algumas surpresas: embaixo de
grandes edifícios. Um shopping vazio – com pou-
uma ponte a primeira delas – La Vache Bleue. Con-
quíssimos consumidores – Le Millénaire – cujos
junto composto de ateliês de pintura e escultura,
anúncios depois pude observar na área nordes-
La Vache Bleue congregava o local onde se desen-
te de Paris (jamais teria prestado atenção a esses
volviam essas atividades sob a gestão de um res-
anúncios de rua, em papel, se não tivesse estado
ponsável que nos apresentou a alguns dos artistas
nesse lugar constituído por imagens tanto quanto
ali presentes. A cena e seu estranhamento se com-
pela materialidade das lojas das grandes empre-
pletavam pela recepção do grupo por um homem
sas varejistas da França). Ainda no percurso pelo
vestido estranhamente, quase um clown, um
Norte de Paris, passamos pelos assentamentos
cicerone que nos acompanhava por entre mate-
dos ciganos – cuja pobreza era evidenciada não
riais e obras mais ou menos inacabadas. La Vache
só pela precariedade das habitações como pelo
Bleue parecia um resíduo, um espaço residual ou
frio intenso – ao lado de outro assentamento pre-
um resquício de vida em meio a quarteirões intei-
cário habitado por imigrantes e franceses pobres,
ramente destruídos, vazios, em processo de valo-
também ao lado da Porte de la Chapelle. Bem per-
rização e enobrecimento ao norte de Paris. Depois
to dali, já no final do passeio, um centro cultural,
de uma caminhada por esses quarteirões inóspi-
local de convergência de imigrantes, populações
tos, fomos caminhando em direção à embarcação
locais, práticas e atividades diversas entre si do
que nos conduziria – por meio de um canal do Rio
ponto de vista geracional, onde finalmente pa-
Sena a um Shopping Center de proporções bastan-
recia haver o que seria possível reconhecer como
te inéditas para a região parisiense. Sua localiza-

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mixité social, étnica e geracional. Essa Paris um partagés,1 em busca de recuperar formas de con-
tanto surpreendente, muito distante do eixo mo- vivência urbana já perdidas. Esse primeiro tema
numental e consagradamente turístico abriu esse de pesquisa apontou ainda para a discussão das
Seminário, ainda que pudesse ter sido melhor ex- dificuldades de participação da população local
plorada, ao longo dos três dias de discussão que ao lado da participação institucionalizada – a par-
se sucederam. ticipação dos debaixo, ao lado da participação dos
de cima – e, por outro lado, apontava como pro-
As apresentações da quarta-feira – primeiro dia
blema e como questão as expertises da cidada-
de apresentações – começariam pelos anfitriões:
nia – as expertises citoyennes. Saberes específicos,
as exposições se voltaram para os temas de pes-
agenciamentos, desigualdades importantes nos
quisa do Laboratoire Architecture et Anthropolo-
quadros mais ou menos institucionalizados de
gie. A primeira apresentação teve como objeto o
participação, reposição significativa de desigual-
norte de Paris, mais especificamente a Porte de la
dades no solo mesmo da produção de uma su-
Chapelle, no limite do que pode denominar como
posta igualdade – afinal as zonas de concertação
Petite Ceinture – o primeiro anel que circunda a
apontaram dimensões em que as virtudes da ne-
cidade de Paris, onde se localizam real ou simbo-
gociação podiam ser no mínimo investigadas sob
licamente suas portas. Essa apresentação permi-
o crivo de seus resultados concretos. Nesse pa-
tiu que se pusesse em questão exatamente esse
norama, seria possível falar de um contrapoder?
primeiro anel, bem como suas transformações e
O que de fato quer dizer concertação e participa-
um conjunto múltiplo de resistências, ao lado de
ção, já que as palavras não são inocentes? Mais
um emaranhado de leis que institucionalizaram a
uma vez a questão das diferenças entre interesse
participação da população – uma espécie de en-
geral e bem comum se recolocaram, sobretudo
genharia institucional da participação, no interior
quando as populações locais aparecem revestidas
do processo de reestruturação do espaço urbano.
por sua qualificação enquanto “comunidades”.
Uma das questões mais importantes desse tema
e dessa abordagem de pesquisa diz respeito à re- Pela discussão da pesquisa e das questões relati-
definição dos limites e das bordas da região me- vas à Porte de la Chapelle e de suas transformações
tropolitana como questão de governança urbana, que começavam a se configurar, as questões rela-
redefinindo o que fica dentro e o que permanece tivas às diferentes escalas da cidade e da pesquisa,
fora do território da metrópole bem como suas bem como das dimensões relativas ao trabalho de
consequências materiais e simbólicas. campo e seus desdobramentos heurísticos ganha-
vam densidade. A passagem das escalas locais às
As chamadas zones d´action concerté – territórios
escalas intermediárias – por exemplo, as regiões
de transformação em que se agenciam formas de
metropolitanas – até as escalas nacionais e ainda
concertação urbana em conjunto com procedi-
mais amplas, como as relativas à comunidade eu-
mentos de gestão das obras, gestão dos conflitos,
ropeia entravam em cena, bem como sua reversão:
bem como um conjunto de novas práticas dos
isto é, a passagem das grandes escalas às dimen-
artistas locais e da população – como os jardins
sões escalares mais localizadas. Entretanto, cabe

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perguntar se esse percurso de volta, das escalas constituem em um quadro de exceção, um qua-
de maior dimensão em direção às escalas locais dro que põe em suspensão o direito à resistência
pode ou não implicar em compreendê-las como e à resistência urbana em particular.
mais restritas. Essa questão é significativa como
Nesse cenário, a pesquisa do Laboratoire Archi-
problema de pesquisa, já que nos âmbitos locais
tecture Anthropologie (LAA) colocava em ques-
e a partir deles é possível apreender um conjunto
tão as relações entre associações e prefeitura,
de processos que adquirem visibilidade e densi-
formas de participação em suas relações com as
dade apenas nesse âmbito. Todo um conjunto de
questões relativas ao equilíbrio financeiro, assim
questões sobre as relações entre singularidades e
como os interstícios – os entre tempos e entre es-
processos mundializados, um conjunto de nexos
paços que podiam ser identificados a partir das
entre dimensões escalares diversas se desenha,
incursões de campo.
assim, a partir das transformações urbanas e das
reações e práticas que tiveram lugar na região nor- As ocupações de edifícios por artistas e coletivos
te parisiense. Desse modo, talvez fosse possível re- poderiam ser qualificadas como um desses in-
conhecer um objeto que pode ser visto e pensado terstícios? Todo um outro conjunto de questões
a partir de diferentes escalas e de seu cruzamento. ainda ganhava relevo: que modelo de cidadania?
O que se entende por cidadania em cada contex-
Mais um problema então pôde ser colocado: a
to de participação? Qual cidade, que modelo de
questão da(s) cartografia(s) como jogo de repre-
cidade se anuncia em acordos, conflitos, conflu-
sentações e – enquanto jogo de representações –
ências e disjunções? Que ações coletivas, o que
o que se pode e o que não se pode apreender por
significam, no que implicam? O que se pode en-
seu intermédio, ou ainda, aquilo que se deixa ou
tão apreender no detalhe, na particularidade, em
não se deixa entrever por meio dessa forma de re-
cada singularidade?
presentação. O que de fato é passível de ser cato-
grafado? O que nos dizem as representações car- A segunda pesquisa apresentada pelo LAA apon-
tográficas? Um conjunto de cartografias diversas tou, como seu objetivo, qualificar as transforma-
entre si foram apresentadas: cartografias de reuni- ções urbanas em curso e – ao longo do processo
ões, de encontros públicos, de passeios e vilegia- – possibilitar e provocar o que se designou como
turas, organizadas por coletivos de arquitetos, de salto metodológico. O objeto de pesquisa é a for-
deambulações urbanas, bem como dos acordos e mação da Grande Paris como projeto governa-
conflitos entre técnicos e habitantes, movimentos mental, assim como a presença ambígua dos ar-
sociais e movimentos ambientalistas; ou ainda quitetos nesse processo de constituição das novas
as cartografias dos projetos de renovação urba- geometrias da aglomeração parisiense que rede-
na nos limites da cidade, bem como aqueles que senham seus limites, bem como as implicações
cruzam e atravessam obras e processos de ação para os habitantes dessas regiões. Entrava em
social. Tais projetos acabam por operar e por criar cena mais uma vez, as diferentes escalas do olhar:
formas de estigmatização. É possível, então, per- o olhar do urbanismo, o dos políticos, o olhar
ceber que as obras e as transformações da cidade dos habitantes, o olhar do ateliê internacional da

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Grande Paris – isto é, das parcelas do projeto e constelações. Como resultado dessas constelações
das equipes que foram postas em contato e em uma questão ganhava corpo: como nomear os pro-
diálogo para a elaboração dos projetos parcelares. cessos e seus resultados? Como traduzir categorial-
Uma pergunta parecia orientar a investigação: o mente o que se constata e se observa? Como dotar
que se pode dizer da grande escala a partir das de densidade e de significação aquilo que se quer
escalas menores e vice versa: o que se pode dizer descrever por meio das categorias? Assim, os temas
das escalas locais, de menor âmbito a partir das de acessibilidade, urbanidade, concreção, descentrali-
maior escopo? zação e seus outros ganhavam o estatuto de ques-
tões, tanto no âmbito da apreensão, como no âm-
Apontando essa diversidade de olhares, afirmava-
bito de sua tradução categorial. O que os mapas de
-se também a questão da construção da diversi-
categorias de fato permitem narrar? Como apreen-
dade das narrativas, bem como a necessidade de
der e problematizar os saltos e as passagens entre
construção das categorias de análise que com-
as escalas? Como se situar entre as escalas e dentro
preendessem e descrevessem essas diversidades
de cada escala? Qual o rendimento da articulação
– de olhar e de narrativas. O relato de pesquisa
entre as escalas? Afinal, onde se situava a experiên-
apontava como processo dessa construção o di-
cia da cidade e a pesquisa sobre essa experiência
álogo com 18 interlocutores e 19 atores designa-
com as dimensões éticas que lhes são inerentes?
dos como atores territoriais – ao que tudo indica,
atores que estariam inseridos em 19 territórios da Os saltos de escala colocam ainda como questão
região parisiense. Tratava-se assim de uma pesqui- as implicações de sua operação. Por exemplo, en-
sa que se desenvolveu como experimento, como tre as escalas a operação de justaposição contradiz
experimentação teórico-metodológica. Por meio a necessidade de articulação? A articulação entre
desses procedimentos, constituiu-se um mapa as escalas não esbarraria na ideia de determina-
de categorias que deveria permitir encontrar os ção – as grandes escalas influenciando ou deter-
temas e as questões relevantes da pesquisa. Ob- minando as escalas mais locais? Por outro lado, a
serve-se que foi necessário falar do tempo para justaposição não induziria à ideia de continuidade
poder encontrar as palavras que descrevessem pacificada entre as dimensões singulares e locais
as transformações do espaço. Esse falar do tem- e aquelas de maior amplitude? A justaposição
po teve como motes, como provocações, quatro de escalas permite pensar a mudança de sentido
cenários presentes e três cenários futuros. Entre das transformações que se deseja apreender? Ou,
os cenários ou cenas do presente havia também ainda, como pensar os tempos da transformação
a simples duração do passado, bem como entre articulando-os às escalas? Fazer os mapas e as car-
cenas futuras era possível encontrar situações em tografias falarem o que elas não poderiam falar,
que não havia nenhuma transformação ou mu- provocá-las transformando seu caráter de máqui-
dança, eram simples continuidade do presente. nas de guerra em textos, em descrições e sentidos
– talvez aqui se possa encontrar uma das questões
Em meio a esse experimento e de certo modo
mais interessantes das relações entre a pesquisa
como seu resultado, as categorias apareciam como

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de campo e a apreensão das transformações da para o mercado imobiliário – e o discurso sobre
cidade contemporânea. esses espaços que vinculam investimentos com
a recorrente expulsão das populações mais po-
Os mapas e as respostas sobre os mapas, os inves-
bres. O resultado são paisagens artificiais homo-
timentos simbólicos das instituições e dos pode-
gêneas, que trazem a marca da forma mercantil,
res sobre as imagens de Paris em contraponto à
fetichizadas e espetacularizadas, paisagens que se
região parisiense (urbanidade, centralidade, aces-
apresentam como uma privatopia homogeneizan-
sibilidade) e as narrativas das diferentes escalas
te de centros comerciais e loteamentos fechados
temporais colocaram em cena os tempos da ci-
em âmbito mundial, espaços onde as relações e
dade e suas relações com os tempos da pesquisa,
as porosidades entre o legal e o ilegal, o formal e
bem como duas outras dimensões de reflexão: as
o informal se tornam bastante evidentes. Nesse
escalas – elas também – como agenciamentos e
quadro uma questão ainda se desenha – o que se
dispositivos por um lado, bem como as relações
entende no âmbito das cidades em transforma-
entre cada particularidade, entre cada situação
ção por monumento? Sobretudo a partir de um
singular e as dimensões comuns, o que mais uma
processo de patrimonialização que se verifica por
vez nos remete à questão da problematização
todas as cidades do mundo? É possível habitar um
das relações entre escalas e determinações, assim
monumento? Como compreendê-los, discuti-los,
como à questão das representações como tradu-
caracterizá-los?
ções e seus perigos.
Ao lado das questões que se configuraram a partir
O segundo grupo de apresentações foi o do La-
da primeira apresentação, o Laboratório de Arte
boratório de Arte Cívica, também composto, por
Cívica apontaria para um outro conjunto de prá-
comunicações de teores diversos entre si. A pri-
ticas: as que se referem à ação e à resistência, à
meira apresentação dizia respeito ao que se de-
produção de um outro espaço, à produção da ci-
nominou como desenho urbano (urban design)
dade efêmera e das centralidades em movimento.
e seu trabalho de campo. Qual o estatuto de
Do ponto de vista teórico, um eixo de interro-
trabalho de campo para esse tipo de atividade,
gação foi ganhando centralidade: a questão do
distante da pesquisa etnográfica e antropológica
direito à cidade como forma superior do direito
ainda que fortemente envolvida com os temas da
à liberdade individual dentro das coletividades,
cidade e da transformação urbana? As expertises,
desdobrando-se no direito à produção, à própria
os consultores, as formas de circulação dos proce-
obra, à atividade e à participação permanentes.
dimentos e operações de intervenção urbana, de
A descrição das práticas e das ações nos edifí-
políticas urbanas e de suas concepções ganharam
cios ocupados pela população pobre e imigrante
forte relevo na primeira apresentação. Ao longo
apontou, por um lado, a questão do medo e das
das descrições sobre processos de intervenção ur-
entradas em campo e suas negociações – perma-
bana, ganharam ainda intensidade o que poderia
necer em um território pode implicar em algum
identificar como espaços de exceção – como, por
perigo. Mas, a questão, talvez mais significativa,
exemplo, a disponibilização de espaços urbanos
dizia respeito à intervenção artística na cidade.

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Como intervir na cidade enquanto artistas, sem de campo que se configura como intervenção de
provocar gentrificação ou enobrecimento? Como natureza artística em um universo de ocupações
intervir e desaparecer depois da intervenção? Es- bastante distante das – para não dizer avesso às –
sas questões que aliam as dimensões éticas e es- esferas institucionais. Outras dimensões de refle-
téticas das intervenções artísticas no espaço e nos xão podem ainda inquirir as relações – concomi-
territórios da cidade implicam em uma relação tantemente próximas e distantes – entre o mundo
com um trabalho de campo cuja natureza é mui- das ocupações de edifícios, os movimentos de
to diversa das práticas de pesquisa concebidas e moradia e as instituições. Também por essa via,
postas em operação pelas Ciências Sociais, em es- a partir das práticas das ocupações e dos artistas
pecial pela Antropologia. que nelas intervêm, seja necessário perguntar o
que é a crítica do urbano tal como ele se configu-
O contexto em que essas questões apareceram é
ra em nosso tempo e como de fato é feita, como
o de uma Roma que evidencia a crise econômi-
de fato opera? Quais são os vínculos entre atores
ca e, por consequência, uma volta acentuada da
urbanos e atores políticos? Seria possível revelar
pobreza, das condições precárias de habitação,
e desvelar os muitos vínculos entre atores e prá-
das remoções e expulsões, dos acampamentos e
ticas, entre arte e política, entre atores urbanos e
ocupações. O Laboratório de Arte Cívica apresen-
atores políticos? Seria possível deslocar ou supe-
tou uma experiência de intervenções ao longo do
rar as clivagens – tomadas como pontos de par-
percurso pelo Gran Racordo Annulare – um cintu-
tida – entre público e privado, formal e informal,
rão viário que circunda a cidade, onde um con-
aberto e fechado e ainda, talvez, almejar transfor-
junto de ocupações e práticas teve lugar em três
mar a realidade de modo mais direto e imediato
ocupações dos movimentos por moradia. Nessas
por um conjunto de práticas artísticas? Quem tem
ocupações foram descritas, como por exemplo,
o direito e a capacidade de fala e de enunciação –
a intervenção que colocava em pauta imaginar
isto é, quem fala, quem são os porta-vozes? Quem
uma lua de todos – o que permitiria talvez des-
é nomeado e quem nomeia? Nesse emaranhado
locar a dimensão imaginada para um planeta ou
de atores e de relações, qual o lugar e quais prá-
uma cidade de todos. Ou ainda o jardim do navio,
ticas cabem à universidade? É possível atuar con-
em uma ocupação em edifício que fazia alusão a
juntamente com esses outros atores?
barcos em que se propunha a realização de um
jardim e de uma praça abertos para a cidade, no Nesse quadro de questões, que evidentemen-
contraponto às intervenções de caráter exclusiva- te não têm respostas imediatas, é possível ainda
mente comunitário. perguntar a quem se dirigem discursos e práticas
acadêmicas e artísticas, bem como qual é o lugar
Na aproximação entre os dois grupos – LAA e LAC
de fala de cada uma dessas experiências de cam-
– algumas perguntas foram tomando corpo: a pri-
po. A questão é tão mais pertinente quanto mais
meira dizia respeito à quase impossibilidade de
se vincula ao fato de que esse lugar nos permite
aproximação entre o trabalho de campo informa-
colocar algumas questões e não outras, fazer al-
do metodológica e teoricamente e um trabalho
gumas proposições e não outras. Será que é possí-

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vel a pesquisadores e artistas partilharem práticas a vigilância, entre outras, uma questão parecia se
de trabalho de campo? O que se conforma como impor: as relações entre os espaços de mobilidade
trabalho de campo, procedimentos, protocolos, e os espaços de controle, entre segurança material
método, para o trabalho estético e para o trabalho e moral e as ambiências. Assim, essa prática e con-
de pesquisa etnográfica e antropológica? Qual o cepção de pesquisa interrogava as relações entre
lugar e como se constroem categorias? Seus pon- vigilâncias e ambiências ou, dito de outro modo,
tos de partida se ancoram na pesquisa de campo procurava apreender e interrogar as ambiências
ou a partir de uma reflexão teórica? a partir do eixo da vigilância e da segurança, ten-
tando observar os vigiados, mas também os en-
Essas e outras questões de pesquisa ganharam
carregados de vigiar, descrevendo em palavras e
novos contornos a partir das apresentações do La-
por meio de imagens de vídeo o que acontece no
boratoire CRESSON da Ecole Nationale Supérieure
trabalho de campo e de pesquisa. Desse modo, a
d´Architecture de Grenoble, unidade/centro de
questão teórica e metodológica colocada interro-
pesquisa que tem como questão as transforma-
gava a relação nunca de fato estável ou passível
ções urbanas e sua ocorrência em diferentes seto-
de estabilização entre o universal e o particular,
res e escalas da cidade. Essas dimensões põem em
entre o universal e o singular. Chegou-se assim,
tela a complexidade, os paradoxos, os enigmas e,
pela formalização de protocolos e pelo trabalho
sobretudo, os enigmas sensíveis das mobilidades
de campo a uma autoetnografia e por seu inter-
urbanas contemporâneas. Como se reconhece
médio, a uma autorreflexão corajosa sobre as prá-
os participantes, os atores dessas formas de mo-
ticas dos próprios pesquisadores.
bilidade em operação? Como se reconfiguram e
quais os vínculos e engajamentos cotidianos que Outro elemento interessante dessas apresenta-
são postos em operação? ções de experiências de pesquisa foi o exercício
de falar e de descrever por palavras o trabalho de
O ponto de partida da pesquisa desse centro e ao
campo, por meio da composição de uma conste-
mesmo tempo suas mais importantes questões
lação. Mais uma vez a ideia de uma constelação
teóricas têm como núcleo o conceito de ambi-
de categorias e conceitos se colocava entre a re-
ência (ambiance). O que perguntam é se a partir
flexão teórica e as práticas de pesquisa empírica.
dessa noção ou conceito é possível elaborar e
Uma palavra tinha uma recorrência evidente nes-
desenvolver uma crítica do urbano. Quais são os
sa constelação – o panóptico. Uma questão em
modos de perceber o que acontece na pesquisa
especial poderia ser alvo de novas interrogações:
de campo para além da utilização de um conjun-
de onde surgiram palavras e frases que compõem
to de ferramentas ou instrumentos de trabalho?
constelações de conceitos? Com quais referências
É possível reconhecer uma caixa de ferramentas,
dialogam? Algumas são claramente oriundas de
um conjunto de instrumentos de trabalho na pes-
contribuições teóricas e, desse ponto de vista, têm
quisa de campo? Qual seria seu papel?
uma origem distante da experiência de pesquisa
Por meio desses eixos – mais precisamente a paci- de campo. Essas constelações são operadores
ficação das mobilidades, seus espaços e tempos, que funcionariam como corpos teóricos partilha-

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dos entre pesquisadores, como instrumentos de entre cientificidade e fidelidade ao que a pesquisa
descrição e de análise? O centro ainda colocava de campo permitiu observar, descrever e explicar?
como questão as câmeras de vídeo como registro O caráter científico se assenta nos conceitos? No
de pesquisa. Seu uso não acabaria por reproduzir método? Nos procedimentos de pesquisa previa-
os dispositivos de segurança e controle – alvos da mente definidos ? Nas complexas relações entre
própria crítica teórica utilizada? As câmeras não essas instâncias? Certamente a natureza científica
acabariam por se configurar como mediadores da pesquisa de campo poderia permitir a aproxi-
importantes entre os pesquisadores e seus obje- mação entre alguns – mas não todos – dos inter-
tos de pesquisa? locutores presentes no Seminário, sob a condição
de que houvesse um acordo sobre o que se podia
A sequencia da apresentação do laboratório apre-
entender por conhecimento científico da cidade e
sentava um outro protocolo de pesquisa voltado,
de suas práticas. Outra questão sobre a natureza
sobretudo, para os espaços de pedestres. Seu ob-
científica da pesquisa e do conhecimento produ-
jetivo é o de apreender as relações entre corpos
zido por seu intermédio esbarra no risco de uma
e ambiências, relações marcadas por um caráter
hierarquização perigosa entre a descrição e siste-
plástico cuja descrição e inteligibilidade não são
matização científica e os outros modos de conhe-
nada óbvias, tampouco evidentes. Nessa vertente
cer e experimentar o real.
de pesquisa três eixos se colocavam: fazer corpo,
tomar corpo e dar corpo. Desse modo, o corpo se Cientificidade e métodos, métodos e procedimen-
colocava no centro dos protocolos de pesquisa tos de investigação, ferramentas utilizadas para
em duas modalidades: por meio da utilização do registro e descrição, a pesquisa de campo como
vídeo e através do próprio corpo. Algumas vezes experiência do pesquisador, as relações entre
os dois protocolos se cruzariam e esse cruzamen- noções e conceitos de um lado e o que se pode
to pode se constituir como o ponto de partida de apreender a partir da pesquisa de campo, todas
uma discussão cujo resultado nem sempre se coa- essas dimensões permitem ainda problematizar
duna ou se articula com os protocolos de uso das o estatuto do trabalho de campo: há de fato uma
câmeras como instrumento de pesquisa. diferença significativa de conhecimento sobre a
cidade e suas transformações, sobre as práticas
A discussão que se originou dessas apresentações
materiais e dimensões simbólicas antes e depois
foi voltada para algumas questões relativas à cien-
da pesquisa? Apesar de uma ênfase bastante fre-
tificidade dos resultados e dos procedimentos de
quente na continuidade dos processos sociais e
pesquisa de campo, mesmo se essa cientificidade
urbanos no mundo contemporâneo, parece cla-
acabe por obstaculizar, mais do que impulsionar
ro que há dimensões inéditas e desconhecidas,
a descrição e talvez a compreensão do que o tra-
ainda opacas, mais do que simples reiterações e
balho de campo permite apreender. Mas afinal de
continuidades. Como apreeender, descrever e
que cientificidade se trata? Os protocolos defini-
analisar essas dimensões ainda nebulosas? Como
dos passo a passo garantem o caráter científico
desvendá-las ?
dos resultados de pesquisa? Quais as relações

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Uma vez ainda a diversidade interna dos grupos como questão a articulação entre objetos de pes-
que apresentavam suas experiências parecia se quisa, práticas e atividades, quadro conceitual e
desenhar com clareza, desta vez pelas apresen- trabalho empírico. Dentro desse escopo de dimen-
tações do Laboratório Urbano da Universidade sões, a questão da experiência se configurava em
Federal da Bahia. Aqui também uma diversidade diferentes níveis: o do corpo, o do urbano e a expe-
interna se fazia notar, diversidade de temas e de riência dos sujeitos concebidos como sujeitos não
objetos, mas também de investimentos em gran- essencializados, sem substância fixa – isto é, esses
de parte voltados para a formação de estudantes sujeitos não são entidades, mas processos e nessa
e de pesquisadores. Na sua maior parte, a pesqui- condição se constituem como tema, como eixo, ao
sa brasileira se realiza pelas e nas universidades mesmo tempo teórico e de pesquisa empírica.
o que faz dos grupos e centros encarregados da
Se o trabalho teórico procura uma composição
produção de conhecimento, concomitantemente,
em constelações – já que não são necessaria-
grupos de docentes-pesquisadores. Nesse senti-
mente as mesmas para todos os objetos e temas
do, o Laboratório Urbano é um centro de pesqui-
de pesquisa – de conceitos e contribuições sobre
sa, por certo, mas também um centro de ensino e
os sujeitos, sua produção e seu encolhimento, as
de formação. O projeto que desenvolvem assimila
possibilidades e impossibilidades da experiên-
assim estudantes e pós-graduandos e se ramifi-
cia humana e urbana, o trabalho de campo é um
cou, na plataforma CORPOCIDADE – como um lu-
trabalho de experimentação de lugares, de cami-
gar de experimentações coletivas mais do que um
nhos. Essa experimentação não se circunscreve
trabalho de campo tal como ele pode ser compre-
ao trabalho etnográfico strictu senso. Trata-se de
endido pela perspectiva etnográfica; um trabalho
um trabalho exploratório sobre e no urbano para
teórico que de modo bastante instigante acabou
compreender ao mesmo tempo investimentos,
por dispor noções e conceitos em uma rede de re-
obras, intervenções urbanas e resistências, prá-
lações entre autores e temas. Formariam conste-
ticas, vida cotidiana e acontecimentos excepcio-
lações? Relacionam-se entre si ou apenas se jus-
nais. Como e o que se observa? Como é feito o
tapõem? Arendt, Foucault, Agamben, Deleuze e
registro dessas observações e vivências? Como
Guatarri, entre outros autores, são contribuições
se construiu o olhar que observa? Qual o registro
teóricas importantes, ainda que não as únicas.
corporal dessa experiência que quer reconhecer
Ao lado do trabalho teórico, um trabalho empírico sujeitos? De certa forma busca-se o experimento,
foi apresentado: a rota pelos lugares da precarie- aquilo que possibilite relações que escapem à pré-
dade, dos perigos e do espetáculo urbano, articu- codificação entre os pesquisadores e a cidade de
lando projetos e temas de pesquisa mais ou me- Salvador. Essas formas exploratórias começavam a
nos individuais e coletivos que ganhariam assim exigir novas abordagens, talvez novas nomeações
um solo comum. e descrições e de alguma forma, para além desse
conjunto de desafios, chegava-se ao esboço de
Uma palavra parece saltar como necessidade e
uma auto etnografia, como tinha identificado na
como imperativo: articulação. Colocava-se então
pesquisa sobre mobilidades, um pesquisador do

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Cenas do seminário e do percurso no nordeste de Paris
Autoria: Fabiana Dultra Britto, Jana Lopes, Maria Isabel Menezes, Osnildo Wan-Dall e Paola Berenstein Jacques.

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CRESSON. No caso do Laboratório Urbano, essa suas múltiplas dimensões ganharam – ao longo
experimentação se conformava como experimen- desses três dias de apresentação e discussão em
tação das ruas, dos vínculos – como aquele que se Paris – um tom de desafio respeitoso e de mapea-
estabelece quando é possível “ser freguês”, quan- mento de uma diversidade rica que se volta, pelo
do alguém se torna “freguês” – das interações mais trabalho de cada um, para uma reflexão sobre
ou menos difíceis, comuns ou extraordinárias com como apreender as transformações e as comple-
os espaços e entre os habitantes da cidade. xidades da cidade contemporânea.

Para além da multiplicidade interna a cada grupo Nota


ou laboratório de pesquisa e/ou de intervenção
1 Jardins partilhados por artistas e populações locais devidamen-
artística na cidade, o Seminário colocou desafios e
te investidas do caráter de “comunidades”. Dessa perspectiva
questões que permitiram a busca de uma reflexão
pode ser interessante recorrer à ideia de comunidade como um
– entre outras possíveis – que acabei por sistema-
dispositivo de gestão da população configurada como público
tizar, sobretudo, na forma de perguntas sobre nos-
alvo de um conjunto de políticas e de programas.
sos objetos e temas, mas também sobre nossos
próprios pontos de partida, sobre nossos próprios
procedimentos. Se é impossível ou pelo menos
improdutivo homogeneizar as diferenças e os âm-
bitos de conhecimento sobre a cidade que fazem
parte do trabalho e dos resultados de cada grupo
e de cada laboratório, que essas diferenças pos-
sam permitir não uma autoetnografia como exer-
cício de conhecimento, mas uma reflexão crítica
pelo contraponto, tomado como diferença insti-
gante e fértil, como possibilidade de recolocar o
estatuto e a forma de produção do conhecimento
da cidade que habitamos e da cidade que nos ha-
bita. O ensaio, a intervenção artística, os relatórios
de pesquisa, as descrições e análises a partir da
investigação empírica são maneiras heterogêneas
de conhecer as transformações da cidade, o que
é novo, suas modulações, as complexas relações
entre cidades, corpos e subjetividades. Em cada
um desses modos de conhecer contextos, rela-
ções e práticas o estatuto do trabalho de pesquisa
de campo ganha coloração e densidade próprias.
O que e como compreendemos esse trabalho e
como podemos ver, nomear, descrever e analisar

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Equipe do projeto de pesquisa PRONEM ESTUDANTES ASSOCIADOS:
Programa de Apoio a Núcleos Emergentes – FAPESB/CNPq Amine Portugal Barbuda – UFBA
“Laboratório Urbano: experiências metodológicas para a Ana Rizek Sheldon – UFBA
compreensão da complexidade da cidade contemporânea” Cinira d’Alva – UFBA
Daniel Sabóia – UFBA
coordenadores de atividades:
Felipe Caldas Batista – UFBA (egresso UNEB)
Fabiana Dultra Britto – UFBA
Gustavo Chaves de França – UFBA
Fernando Gigante Ferraz – UFBA
Janaina Chavier – UFBA
Francisco de Assis Costa – UFBA
João Soares Pena – UFBA (egresso UNEB)
Luiz Antonio de Souza – UNEB
José Aloir Carneiro de Araujo – UNEB
Paola Berenstein Jacques – UFBA (coord. geral)
Jurema Moreira Cavalcanti – UFBA
Pasqualino Romano Magnavita – UFBA
Keila Nascimento Alves – UNEB
Thais de Bhanthumchinda Portela – UFBA
Luciette Amorim – UNEB
Washington Luis Lima Drummond – UNEB
Luiz Guilherme Albuquerque Andrade – UFBA
pesquisadores convidados: Marina Carmello Cunha – UFBA
Alessia de Biase – LAA – CNRS-Paris Osnildo Adão Wan-Dall Junior – UFBA
Ana Clara Torres Ribeiro – in memoriam, IPPUR/UFRJ Patricia Almeida – UFBA
Cibele Saliba Rizek – IAU/USP-SC Paulo Davi de Jesus – UNEB
Francesco Careri – LAC/Roma Tre Renato Wokaman – UFBA
Frederico Guilherme Bandeira de Araujo – IPPUR/UFRJ Tiago Nogueira Ribeiro – UFBA
Lilian Fessler Vaz – PROURB/UFRJ
Margareth da Silva Pereira – PROURB/UFRJ www.laboratoriourbano.ufba.br/pronem/
Rachel Thomas – CRESSON-CNRS – Grenoble
Suely Belinha Rolnik – PUC-SP

distribuição gratuita - venda proibida

Impresso em Salvador - Bahia - Brasil, em dezembro de 2013,


pela Impressãobigraf, em papel off-set 90 g/m2 e capa em papel
supremo duo design 300g/m2. As fontes usadas foram Eurostile,
Origami Making e Myriad Pro. Tiragem: 1.000 exemplares.

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