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CoRREio IIRAzn.

IENsE • Brasilia, segunda-feira, 14 de outubro de 2019 • Direito&justiça • 7

PONTORNAL

ALEI DA BOA RAZÃO (AGOSTO DE 1769): UMA REVOLUCÃO NA HERMENÊUTICA


- A :J

ENAAPLICAÇAO DO DIREITO PORTUGUES, APÀRTIR DE POMBAL .


n te s de mais nada, para melhor
compreender-se o porquê da deno-
minação Lei da Boa Razão, faz-se
necessário ir às origens da expres-
são, que se transformaram em funda-
mentos para a interpretação e a própria
aplicação do direito português, a partir
do período pombalino.
Encontra-se isso, precisamente, no
Livro III das Ordenações Filipinas (que
tratava da legislação processual civil), no
preâmbulo do seu Título LXIV, que era
expresso:
"Como se julgarão os casos que não
foram determinados pelas Ordenações
Quando alguém for trazido na prática
por alguma Lei de nossos Reinos, ou estilo
de nossa Corte, ou costume dos ditos Rei-
nos, ou em cada uma parte delas longa-
mente usado, e tal, que por Direito se deva
guardar, será por eles julgado, sem embar-
go do que as Leis Imperiais acerca do dito
caso noutra maneira disponha; porque
onde a Lei, Estilo ou costume de nossos
Reinos dispõem· cessem todas as outras
Leis e Direitos. E quando o caso de que se
· -~trata, não for determinado por Lei, Estilo
ou costume de nossos Reinos, mandamos
que seja julgado, seja matéria que traga
pecado, pelos Sagrados Cânones. E sendo
matéria, que não traga pecado seja julga-
. do pelas Leis Imperiais, posto que os Sa-
grados Cânones determinem o contrário.
As quais Leis Imperiais mandamos guar- pela Casa da Suplicação, admitia-sere- ria consistir na autoridade extrínseca, reito canônico, ou, como nas palavras
dar pela boa razão, em que são fundadas." curso para a dita Casa. consequentemente, deveria, obrigatoria- das Ordenações, Sagrados Cânones, as
Malgrado aparente singeleza no tex- As Relações subalternas aí referidas, mente, residir nos referidos princípios es- causas de caráter religioso seriam exclu-
to-base do qual originou-se a Lei da Boa recorde-se, eram as do Porto, Bahia, Rio senciais e inalteráveis, hauridos do direi- sivamente da competência dos tribunais
Razão (de 18 de agosto 1769, ou de 22 de de Janeiro e Índia. E o procedimento era to natural e no direito das gentes. eclesiásticos, até porque, aos tribunais
agosto de 1769, contando-se de sua se- o mesmo e sempre com a destacada par- Ipso facto, não eram admitidas am- seculares não cabia cuidar de pecados, e,
gunda publicação), constituiu-se ela em ticipação do Regedor no processo; d) os pliações ou restrições a textos do direi- sim, quando se tratasse de delitos.
uma das maiores revoluções (sem qual- assentos firmados em face da decisão so- to civil luso, com fundamentos roma- Por último, quanto aos costumes, estes
quer hipérbole na assertiva), com espe- bre as dúvidas em destaque eram enca- nísticos, salvo se estes estivessem con- deveriam ser não só longamente usados ,~
cial destaque à participação da Universi- minhados aos chanceleres das mencio- forme com os princípios fixados na Lei (ou seja, tivessem mais de cem anos), co-
dade de Coimbra, tanto no ensino e na nadas Relações; e) no concernente à da Boa Razão. mo também, obedecessem, a um só tem-
cultura do direito, quanto na concepção, aplicação das Leis Imperiais, isto é, do Por outro lado, nos negócios políticos, po, aos demais requisitos, isto é, não serem
na inteligência (sem redundância) e na direito romano, estava condicionada, a econômicos, mercantis e marítimos, a contrários à boa razão e não contrariassem
aplicação do próprio direito, no mundo ser também fundada na boa razão. boa razão extraía-se do que sobre a maté- às leis do reino em hipótese alguma (o que
de expressão lusitana. -Todavia, o que era mais precisa- ria tivessem estabelecido a maioria das deve ser entendido cum grana salis, sa-
Em apertada síntese, a Lei da Boa Ra- mente a Boa Razão? nações cristãs. bendo-se da existência de costumes con-
zão determinou: a) quanto às dúvidas - Por tais palavras, devia-se entender Naturalmente, essa nova óptica de ver tra legem, praticados, por exemplo, em de-
sobre interpretação na Casa da Suplica- os princípios essenciais e inalteráveis o direito levou a que fossem abolidas as corrência das próprias condições e contin-
ção, que fossem publicados os assentos aceitos pelos povos cristãos, bem como célebres glosas de Acúrsio e a própria au- gências da realidade nas colônias).
já estabelecidos, dando-lhes força de lei os dos Direito das Gentes, que serviam toridade dos comentários de Bártolo. Acrescentem-se, por absoluta identi-
daí em diante; b) nos estilos, em que se para regular as relações jurídicas das na- Já no concernente à aplicação do di- dade (ou indissolubilidade) dos temas o
suscitassem dúvidas, em sua aplicação, o ções civilizadas. seguinte: a célebre Reforma dos Estudos
chanceler deveria levá-las, com acima a Como cautela, para evitar arbítrios Jurídicos (sec. XVIII), os Estatutos da Uni-
respectiva glosa, ao Regedor, para que se hermenêuticos, a Lei da Boa Razão fixou versidade de Coimbra, o Compêndio His-
procedesse sua interpretação, isto é, fir- algumas medidas delimitadoras, no refe- CARLOS FERNANDO tórico e o chamado Usus Modernus Pan~'~
mando sua exata inteligência, antes de se rente à aplicação do direito romano, tais MATHIAS DE SOUZA dectarum (o Uso Moderno das Pandectas
decidir sobre o direito das partes em si. como: a) se houvesse Ordenações dorei- ou do direito romano), tão próximos e
Tal inteligência, como já se registrou, era no, leis pátrias e usos sobre a questão em Professor titular da UnB e do UniCEUB, contemporâneos (ou até mesmo simul-
firmada por meio de assento; c) na hipó- exame, de plano, já não deveriam Ser vice-presidente do Instituto dos Magistrados tâneos, poder-se-ia dizer) com o advento
tese de dúvidas sobre interpretação das aplicadas as Leis Imperiais. do Brasil, membro fundador do Instituto dos da Lei da Boa Razão. J
leis suscitadas nas Relações subalternas, Assim, por hipótese, se a matéria fos- Mvogados do DF e membro efetivo do É matéria a exigir mais espaço e exa-
sobre especificada inteligência firmada se de direito civil, a boa razão não pode- Instituto dos Advogados Brasileiros me mais apurado.

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